O LUGAR DA IDEOLOGIA NO TOTALITARISMO
– NOTAS A PARTIR DE HANNAH ARENDT 1. Preliminares
As classificações históricas de regimes políticos – as quais se devem, nas suas formas mais acabadas, a Aristóteles e a Montesquieu – provaram-se inadequadas perante as experiências experiências observadas observadas no século XX, sobretudo sobretudo perante aquelas que que vieram a ser designadas como experiências totalitárias. Nestas observou-se algo de novo, imprevisto e imprevisível, mesmo pelos mais poderosos pensadores do passado. Hannah Arendt, se não foi responsável pela introdução do termo totalitarismo, foi inteiramente rigorosa ao fazer-lhe corresponder um regime político radicalmente distinto, assim não reconduzível à tirania descrita pelos Antigos ou ao despotismo descrito por Montesquieu 1. 2. A ideologia como princípio de governo
2.1.
O impulso para a identificação de um novo regime político encontrou-se
sobretudo no confronto com as características próprias das experiências soviética e nacional-socialista. Como explana Arendt, qualificar tais experiências como formas 1
Este novo termo – totalitarismo – veio a constituir o primeiro pri meiro termo da classificação de regimes políticos hoje dominante. Nesta classificação, pela qual se procuram apreender os traços essenciais dos regimes contemporaneamente observados no quadrante euro-americano, o totalitarismo surge contraposto ao autoritarismo e à democracia constitucional . Deve dizer-se que a este outro tratamento dos regimes políticos, muito embora correspondam experiências experiências e termos novos, não subjaz um corte com os referidos tratamentos históricos. Desde logo, e como referido, os termos tirania e despotismo constituem precisamente aqueles no confronto com os quais o totalitarismo surge como uma novidade. Por outro lado, esta nova classificação mantem presente a distinção entre natureza e princípio de governo – entre elemento externo e elemento interno do regime – enquanto via essencial de aproximação e de caracterização dos regimes políticos.
modernas de tirania – “um governo sem leis onde o poder é exercido por um só homem” – não seria satisfatório.
É certo que estes novos regimes desafiam todas as leis no tradicional sentido normativo, estabilizador e limitador, mesmo aquelas que são estabelecidas por si próprios: tenha-se presente a Constituição soviética de 1936 onde tal é inclusivamente assumido. Mas caso tomemos a expressão “leis” noutro sentido que não o referido sentido tradicional, não se pode rigorosamente dizer que estes regimes tenham como característica própria o desprezo pelas mesmas .
Pelo contrário: supõe-se sempre estar em causa uma rigorosa subordinação a “leis”
tidas como inexoravelmente correspondentes à história ou à natureza
(designadamente, a uma “natureza” tida como culminante na afirmação da “raça mais forte” ou “mais apta”)2/3. Com efeito, os regimes totalitários são compreendidos por aqueles que o materializam como atualizadores do movimento inexorável dessas “leis”4. Tais “leis” consubstanciam a premissa maior de uma ideologia na qual – prosseguindo com Arendt – se encontra o princípio de governo correspondente a um regime totalitário. Na verdade, aquilo que aí determina a agir, que impele à assunção do papel de carrasco (e também de vítima, assim perversamente no momento em que “o monstro começou a devorar os seus próprios filhos ”), não reside verdadeiramente no medo
(ao contrário do que sucede no despotismo de Montesquieu); nem mesmo reside
em algo que ultrapassa o medo em grau e natureza e que se pode qualificar como terror . O terror caracteriza, é certo, um regime totalitário, sendo-lhe mesmo essencial. Ainda assim, o terror é apenas uma decorrência da ideologia: é a partir da adesão a esta última que se tomam leis inexoráveis da natureza ou da história como ditadoras do próprio agir; já o resultante terror destina- se a “converter em realidade” o movimento 2
Cfr. The Origins of Totalitarianism , San Diego: Harcourt Brace & Company, (1 a ed., 1951) 1976, p. 460 segs. (nalgumas transcrições socorremo-nos da tradução portuguesa da responsabilidade de Roberto Raposo: As Origens do Totalitarismo, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004). 3
Interessantemente, Arendt assinala o facto de as “leis” que encabeçam um regime totalitário ocuparem o lugar ocupado pela “lei natural” (ou, alternativamente, pelo fundamental consensus iuris) da qual as leis
positivas recebem a sua legitimidade num regime de Direito. Verifica-se , no entanto, uma radical diferença: “A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer directamente o
reino da justiça na Terra, executa a lei da História ou da Natureza sem a converter em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei directamente à Humanidade, sem atender à conduta dos homens. Espera que a lei da Natureza ou a lei da História, devidamente executada, engendre a Humanidade como produto final (…). A política totalitária afirma transformar a espécie humana em portadora activa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos apenas passiva e relutantemente se submeteriam”, Idem, p. 462. 4 Tenha-se particularmente em conta o seguinte passo: “Na intepretação do totalitarismo , todas as leis se tornam leis de movimento. Embora os nazis falassem da lei da Natureza e os bolcheviques falem da lei da História, Natureza e História deixam de ser a força estabilizadora da autoridade para as acções dos homens mortais; elas próprias tornam- se movimentos”, Idem, p. 463.
correspondente a tais “leis”.
Por outro lado, o terror não se dirige sobretudo contra os
homens do regime (aqueles cuja ação um princípio de governo permite apreender ou explicar) mas contra os seus inimigos (assim, ainda que no limite ninguém se possa considerar seguro). Nas palavras de Arendt, que sintetizam estes dois aspe tos, “o terror executa sem mais delongas as sentenças de morte que – de acordo com a ideologia – a natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são «indignos de viver» ou que a história decretou contra as «classes agonizantes» sem esperar pelos processos mais lentos e menos eficazes da própria história ou n atureza”5. O princípio de governo de um regime totalitário (a ideologia) ocupa o lugar correspondente aos princípios de ação pensados por Montesquieu (virtude, numa república; honra, numa monarquia; medo, no despotismo). Ainda assim, distingue-se destes últimos, revelando-se aqui a essencial dimensão desumanizadora do totalitarismo. Na verdade, aqueles princípios são ainda extraídos da esfera da ação humana: pode dizer-se que ainda lhes corresponde um desejo de agir intrínseca ou naturalmente humano (mesmo que diferentemente potenciador da excelência humana), encontrando-se aí a razão de ainda serem princípios de ação em sentido próprio. Já o princípio de governo de um regime totalitário substitui o desejo de agir pelo agir mecânico ditado pela cegueira ideológica e que corresponde ao processo meramente objetivo (tido como tal) da natureza ou da história 6. 2.2.
A ideologia apresenta algumas características próprias, perante as quais se
torna compreensível o facto de nela se encontrar o princípio de governo correspondente ao totalitarismo. A primeira dessas características é a cientificidade. O cerne da ideologia encontra-se numa teoria tida como objetiva (isto é, como estritamente adequada ao seu objeto ou suposto objeto, consubstanciado este na natureza ou na história), assim porque presumivelmente assente em processos de conhecimento incontaminados pela subjetividade do sujeito cognoscente e porque essencialmente consubstanciada em “leis”
tidas como “ próprias” do seu objeto (leis da natureza ou da história,
precisamente). Ao pretender-se científica a ideologia encontrou uma forte base persuasória, independentemente agora da defensabilidade de tal pretensão em sede de Filosofia da 5 6
Idem, p. 466. Idem, p. 467-468.
Ciência e da maior ou menor seriedade com que a correspondente atitude científica terá sido assumida. Facto, em qualquer caso, foi que aqueles que devotaram à teoria as suas certezas, ter-lhe-ão reportado a respeitabilidade e a dignidade da ciência 7, a mais prestigiada instituição moderna8. Para além da cientificidade, a ideologia caracteriza-se pelo totalismo e pela compulsividade
ou inexorabilidade. Pelo totalismo porque o que está em causa é uma
pretensão de conhecimento total do ser humano e do processo histórico – um conhecimento explicativo não apenas do que foi ou do que é, mas também do que virá a ser 9 – , o qual se supõe “desvendado” no âmbito da ideologia. Pela compulsividade porque a lógica da ideologia, cuja premissa se encontra nas leis da natureza ou da história que lhe correspondem e no seu movimento, se revele inexorável – revelando-se compulsivo o agir correspondente – , ao ponto de suspender as capacidades humanas de experiência e de pensamento 10. O seguinte passo de Arendt é bem ilustrativo a este respeito: «Esse processo argumentativo não podia ser interrompido nem por uma nova ideia (que teria sido outra premissa com um diferente conjunto de consequências) nem por uma nova experiência. As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de trocar a necessária segurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e pela sua weltanshauung não é tanto o risco de ser iludido por uma alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica como o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa-de-forças da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente como uma força externa»11. 7
Salientando este aspecto especificamente a respeito do marxismo-leninismo, cfr. François Furet, O trad., Lisboa: Presença, 1996, 422. 8 Sobre este último aspecto, cfr. Charles Taylor, A Secular Age, Cambridge MA: Harvard University Press, 2007, em especial, p. 299 segs. 9 The Origins of Totalitarianism , p. 469. 10 Para mais desenvolvimentos sobre a destruição das capacidades humanas no âmbito das experiências totalitárias, cfr. A Banalidade do Mal como Ausência de Direito . 11 The Origins of Totalitarianism , p. 470 segs. Arendt ilustra esta subjugação, no que diz respeito à preparação de vítimas e carrascos nos seguintes termos: Na lógica correspondente à ideologia, «o argumento mais persuasivo – argumento muito do gosto de Hitler e de Estaline – é: não se pode dizer A sem dizer B e C e assim por diante, até ao fim do infame alfabeto. Parece ser esta a origem da força coerciva da lógica: emana do nosso pavor à contradição. Quando o expurgo bolchevique faz com que as vítimas confessem delitos que nunca cometeram, confia principalmente nesse medo básico e argumenta da seguinte forma: todos concordamos com a premissa de que a História é uma luta de classes e com o papel do partido nessa luta. Sabemos, portanto, que, do ponto de vista histórico, o partido tem sempre Passado de uma Ilusão – Ensaio sobre a Ideia Comunista do Século XX ,
razão (nas palavras de Trotski, “só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos concede outro meio de termos razão”). Ne ste momento histórico, que obedece à lei da História, alguns
2.3.
Como vimos, Arendt rejeita a classificação das experiências nacional-
socialista e soviética como tirânicas – preferindo o termo totalitarismo – em ordem a frisar que o que está aí em causa não são governos independentes de “leis”. Antes são governos que seguem “leis” – aquelas “leis”, da natureza ou da história, que consubstanciam a premissa das correspondentes ideologias – , ainda que “leis” num sentido muito diferente do tradicional sentido normativo, estabilizador e limitador. Com efeito, e como já referido, as “leis” em causa já não demarcam uma “estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os a tos e os movimentos humanos” 12, correspondendo muito pelo contrário ao inexorável movimento da natureza ou da história13. Também Leo Strauss se ocupou das experiências contemporâneas que constituem a base de reflexão de Arendt, diagnosticando as suas características essenciais em termos não muito distantes: o que caracterizaria essencialmente tais experiências, segundo Strauss, seriam as ideologias – ideologias pressuponentes da “ciência”,
ou melhor dizendo , “de uma particular interpretação, ou tipo, de ciência” –
aliadas à disponibilidade de tecnologia 14. Ainda assim, Strauss rejeita o termo totalitarismo, preferindo a conservação do termo tirania. A razão prende-se com a perspetiva envolvida num e noutro termo. Segundo Strauss, termos como
totalitarismo
envolveriam uma perspetiva
valorativamente neutra, assim não condenatória, das experiências classificadas. Já o termo tirania envolveria uma perspetiva valorativa, trazendo implicada uma condenação
crimes serão certamente cometidos e o partido, conhecendo a lei da História, deve puni-los. Para esses crimes, o partido necessita de criminosos; pode suceder que este, conhecendo os crimes, não avalie inteiramente os criminosos; porém, mais importante que ter a certeza quanto aos criminosos é punir os crimes, porque, sem essa punição, a História não poderia progredir e até mesmo o seu curso poderia ser tolhido. Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo partido para desempenhar o papel de criminoso – de qualquer forma, és objectivamente um inimigo do partido. Se não confessares, deixarás de ajudar a História através do partido e tornar-te-ás um verdadeiro inimigo. A força coerciva do argumento é: se te recusas, contradizes-te, com esta contradição toda a tua vida perde o sentido; pois o A que pronunciaste domina toda a tua vida através das consequências B e do C que se lhe seguem logicamente». 12 Idem, p. 463. 13 O facto de os totalitarismos serem marcados por este constante movimento conduz alguns a afirmar ser inadequada a respectiva designação como regimes. Nesse sentido, Emilio Gentile contrapõe à expressão regime a designação experiência, pretendendo assim sublinhar “o facto de o totalitarismo ser um processo contínuo que não pode considerar- se completo em nenhuma fase da sua implementação”, cfr. Politics as Religion, trad., Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2006, 48. 14 Cfr. On Tyranny e Restatament on Xenophon’s Hiero, in Leo Strauss On Tyranny, ed. Victor Gourevitch / Michael S. Roth, Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2000, p. 22-131 e 177212.
das formas de governo em causa como formas degeneradas. Nesta linha, em lugar de abandonar o termo tirania – e a perspetiva valorativa nele implicada – impunha-se conservá-lo, distinguindo simultaneamente tiranias antigas e tiranias modernas, estas últimas caracteristicamente permeadas por ideologias marcadas por certa ideia de ciência. A principal marca de degenerescência das tiranias modernas (as quais não se esgotam, segundo Strauss, no sovietismo e no nacional-socialismo) encontrar-se-ia na inerente destruição daquela possibilidade que em maior grau demarca a excelência humana: a possibilidade de filosofia. Na verdade, a liberdade envolvida na filosofia (o questionamento constante e a intransigente busca que esta por natureza envolve) seria necessariamente comprometida perante “um Tirano final que se apresenta a si mesmo
como um filósofo, como a autoridade filosófica maior, como o supremo exegeta da única filosofia verdadeira, como o executor e carrasco autorizado pela única filosofia verdadeira”15.
A nosso ver, caso o termo totalitarismo envolvesse a perspetiva neutralmente não condenatória a que Strauss se refere, esse seria um argumento decisivo para o rejeitar. Não é seguro, no entanto, que assim seja, pois ao firmar-se que o governo totalitário tem por princípio uma ideologia inibidora das capacidades humanas de experiência e de pensamento – precisamente aquilo que Arendt assinala – está-se a reportar ao mesmo a degenerescência que Strauss reporta em exclusivo ao termo tirania. Assim sendo, dizer totalitarismo ou dizer tirania moderna no sentido desenvolvido por Strauss não será significativamente diferente. 2.4.
Tal como Strauss, também Alexander Kojève preferiu continuar a referir-se
a tirania, distinguindo concomitantemente tirania antiga e tirania moderna. Quanto à caracterização desta última, afirma Kojève que a mesma se caracteriza, não por ser um governo arbitrário de um só em prossecução do interesse próprio (tal era o caso na tirania antiga), mas por ser um governo desinteressadamente prosseguido ao serviço de “ideias políticas, sociais ou económicas verdadeiramente revolucionárias”16.
Kojève assinala ainda que o princípio correspondente à tirania moderna não é o medo ou o terror, sublinhando mesmo que a situação de um governo que “comanda
15
Restatement on Xenophon’s Hiero , p. 211. Tyranny and Wisdom , in Leo Strauss On Tyranny,
16
ed. Victor Gourevitch / Michael S. Roth, Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2000, p. 135-176, p. 139.
através do terror” é “absolutamente impossível”
17
. Os governos tirânicos são sempre
reconhecidos por alguns, precisamente aqueles que comungam das ideias revolucionárias que se lhes encontram subjacentes. A análise de Kojève revela-se interessante na medida em que nos permite identificar – porventura contra Kojève – um problema traduzido na distinção entre o reconhecimento
correspondente
às
tiranias
correspondente a outras formas de governo
modernas
e
o
reconhecimento
(ou, de outro modo, entre o reconhecimento
correspondente aos governos totalitários e o reconhecimento correspondente aos governos não totalitários). Uma das vias de solução desse problema, sugerida em Arendt, prende-se com a distinção entre princípio de ação e princípio de governo: às tiranias modernas ou governos totalitários corresponderá tão só um princípio de governo e não um princípio de ação. Assim, o reconhecimento que lhes corresponde não relevará de um desejo de agir intrínseca ou naturalmente humano. Ao comando e à obediência espontâneos que perturbadoramente se verificam nos governos totalitários antes corresponde uma disposição a um agir mecânico implementador do movimento das leis supostamente científicas e inexoráveis em que a ideologia se centra. Uma outra via, porventura conexa, de distinção prende-se com o facto de os governos tirânicos ou totalitários serem irreconhecíveis por alguns daqueles que lhes subordinam – pelo menos independentemente de auto-negação. Na verdade, a ideia que lhes preside é invariavelmente uma ideia redutora de alguns à condição de inimigos – em razão da raça ou da classe, consoante os casos – , algo particularmente gravoso, já que não apenas os exclui de entre aqueles cujo reconhecimento é relevante, como os destina mesmo à destruição física ou moral (neste último caso, por via do castigo exemplar ou da reeducação). Nesta última linha, o que poderá distinguir governos tirânicos de governos não tirânicos não será o reconhecimento efetivo por um número significativo – esse será necessário tanto num caso como noutro, pois um governo absolutamente não reconhecido é absolutamente impossível. O que poderá distinguir uns e outros governos antes será a suscetibilidade de reconhecimento por todos os que se lhe subordinam, ou
17
Idem, p. 144.
seja, a não redução de alguns à condição de inimigos , a qual terá lugar nos governos não tirânicos18.
3. Ideologia, ciência e religião
3.1.
Ter presente que aos governos totalitários corresponde um princípio não
significa ainda compreender o porquê da sua disseminação. De outro modo, não significa apreender a razão pela qual as ideologias correspondentes mereceram a adesão de conjuntos significativos de pessoas, mesmo apesar da sua implausibilidade filosófica e repugnância moral. Uma primeira resposta a esta última questão coloca a tónica na cientificidade (ou suposta cientificidade) das ideologias em causa, as quais constituíram uma outra expressão – porventura a expressão por excelência – de certa mentalidade moderna permeada pelo mecanicismo19. Uma segunda resposta, não necessariamente incompatível com a primeira, acrescenta que às mesmas ideologias, cientificamente cunhadas (ou assim supostamente), corresponderam fórmulas (ou “contra-fórmulas”) substitutivas dos referentes das antigas religiões espirituais e inerentes mundividências, estas últimas declaradas como ilusórias ou opiáceas. Esta resposta foi desenvolvida por Eric Voegelin, em cujos termos, na Modernidade, «os métodos da ciência como formas únicas de estudar os conteúdos do mundo são declarados genericamente como o único alicerce em que os homens podem basear a sua atitude face ao mundo (…). A palavra “metafísica” foi banida, a religião declarada “ópio do povo” como “ilusão” condenada a prazo. Contra -fórmulas
ou, noutra formulação,
opostas às religiões espirituais e às
18
Perturbadoramente Kojève parece supor que a tirania não pode verdadeiramente ser contraposta a uma não tirania, supondo pois uma inescapabilidade do político no sentido schmittiano: não podendo ser afastada, a tirania apenas pode ser minorada naquilo que a fragiliza e que se prende com o não reconhecimento efectivo por alguns. Ainda mais perturbadoramente, Kojève parece admitir que uma tirania possa superar a sua própria fragilidade por via de uma activa prossecução da homogeneidade, assim violentamente geradora de um efectivo reconhecimento por todos os sobreviventes após a eliminação dos não homogéneos, cfr. Tyranny and Wisdom, em especial, p. 166 segs. Como bem assinala Strauss a este respeito, é chocante ser confrontado com “a mais que maquiavélica violência” como
Kojève se refere à tirania e a toma como garantida. Kojève não hesita em proclamar os ditadores contemporâneos como tiranos, não vendo aí qualquer objecção ao seu governo e admitindo-se mesmo aconselhá-los quanto à superação daquela que considera ser a sua maior fragilidade. E “quanto a qualquer reverência pela legitimidade, Kojève não tem nenhuma”, cfr. Strauss, Restatament on Xenophon’s Hiero , p. 185. Se Strauss é certeiro nesta sua apreciação de Kojève, pode dizer-se que se afasta deste último no essencial? É que também Strauss parece supor uma inescapabilidade do político no sentido schmittiano, pelo menos tido em conta aquilo que afirma ser ilustrado pelo diálogo Tyrannicus de Xenofonte a respeito da natureza das coisas políticas, cfr. On Tyranny, p. 66 segs. 19 Strauss, On Tyranny, p. 23 segs. e também Aron, The Future of Secular Religions , p. 177 segs.
correspondentes mundividências são cunhadas e legitimadas supostamente no âmbito da ciência moderna, única forma válida de conhecimento, contrária à revelação e ao pensamento místico. Emergem, assim, as “Weltanshaunngen científicas”, o “socialismo científico” e a “teoria científica da raça”»20.
Uma terceira resposta tem em conta o facto de as ideologias em causa assumirem um papel parametrizador, preenchendo aqueles que constituem os inescapáveis enquadramentos morais dos seres humanos. A noção de enquadramentos ou parâmetros morais foi contemporaneamente desenvolvida por Charles Taylor e refere-se àqueles eixos de avaliação em cujo âmbito os homens determinam o seu valor, o valor dos outros e aquilo que consideram uma vida com sentido 21. Ora, às fórmulas ideológicas e correspondentes “leis” correspondem precisamente eixos de avaliação moral (sempre fundamentalmente distintivos de amigos e inimigos, em razão de um qualquer termo, como a classe ou a raça), sendo que, na respetiva atualização, muitos encontraram um sentido para a sua existência e um concomitante sentido constitutivo de comunidade, o que explica o seu animismo ao serviço dos governos totalitários 22. As manifestações ritualísticas de massas e as formas brutais de expressão características das experiências totalitárias – nas quais tendeu a manifestar-se uma repulsiva franqueza – terão precisamente significado exteriorizações desse seu significado anímico.
20
(1938), in The Collected Works of Eric Voegelin , V, ed. Manfred Henningsen, Columbia e Londres: University of Missouri Press, 2000, p. 20-73. Assinala perturbadoramente Voegelin que a adesão a estes conteúdos é tão forte que persiste, mesmo quando as suas pretensões científicas são desmentidas por críticas indisputadas ou por uma experiência que não as confirma. Na verdade, muitos não aceitaram então ter aderido a uma construção desmentida ou mentirosa: «em vez disso, o próprio conceito de verdade é alterado (…); o sistema que antes pretendera ser racional -teorético, nacionalThe Political Religions
económico, ou sociológico, é substituído por “mito”», Idem, p. 62.
No que diz respeito à história intelectual do marxismo, pode dizer-se que esse movimento é aquele que ocorre em Sorel: a partir da admissão de que o marxismo não pode ser encarado como construção científica, Sorel passa a tê-lo como construção pragmática, a expressão ideológica do único grupo de pessoas capaz de resgatar a humanidade – o proletariado – , cuja marcha poderia e deveria ser sustentada em “mitos sociais”. Para uma síntese do pensamento de Sorel, que coloca a tónica neste aspecto, cf. Jan Werner Müller, Contesting Democracy – Political Ideas in Twentieth-Century Europe , New Haven e Londres: Yale University Press, 2011, p. 96 segs. 21 Cfr. Sources of the Self – The Making of Modern Identity , Cambridge Mass: Harvard University Press, 1989, p. 1 segs. 22 Tendo em conta esta terceira resposta, o que se pode eventualmente dizer, é que a observação dos governos totalitários não desmente, bem pelo contrário, a ideia aristotélica de homem como animal político, ou seja, como criatura formada no âmbito dos sentidos – parâmetros – correspondentes a cada cultura política. Neste sentido, o nacional-socialismo e o sovietismo constituíram experiências políticas possíveis na precisa medida em que às ideologias correspondentes hajam correspondido parâmetros susceptíveis de “preencher” o homem, conferindo propósito à sua existência e orientando a sua acção.
É sobretudo em razão desse seu significado que alguns Autores se referiram às ideologias totalitárias como “religiões políticas” (Eric Voegelin)23 ou “religiões seculares” (Raymond Aron)24. Tal fórmula, podendo ser interessante e sugestiva, não nos deve ainda assim fazer esquecer a radical diferença existente entre essas mesmas “religiões” e as antigas religiões espirituais, entre elas o Cristianismo. No primeiro caso, do que fundamentalmente se trata é de referir o homem a supostas leis objetivas, vinculando-o a comportamentos inexoráveis porque relevantes da respetiva atualização – ou seja, trata-se de “objetivar” o homem e o seu comportamento , ainda que perversamente o homem objetivado encontre um significado parametrizador ou anímico nas fórmulas ideológicas que o objetivam. Já nas antigas religiões espirituais, o homem é referido a um sentido fundamental de ser 25 que se projeta em normas em sentido próprio – designadamente, todos os fundamentais “tu deves” e sobretudo “tu não deves” da tradição judaico-cristã – , normas cujo cumprimento não é tido como inexorável, mas antes como atualizador de uma primordial liberdade26.
4. O Estado em perda perante o movimento
4.1.
É comum afirmar-se ser característica dos regimes totalitários uma
hipervalorização do Estado 27. Não nos parece que seja esse o caso, pelo menos se o 23
Segundo Voegelin, a estas mundividências correspondem formas de religiosidade mundana e pagã constitutivas de comunidades políticas – comunidades de raça, de classe ou outras – nas quais se materializa um radical abandono de Deus e da ideia de transcendência. O Autor fala a este respeito em religiões políticas contrapostas às religiões espirituais, cfr. The Political Religions , passim. 24
Perguntou Aron: se “a religião tem a função de estabelecer os valores mais altos e dar sentido à
existência humana, como podemos negar que as doutrinas políticas da nossa era têm uma essência religiosa?”. Para Aron, essas doutrinas – religiões seculares, caracterizadas por “estabelecer um objectivo quase sagrado e por definir o bem e o mal por referência a esse ideal” – encontraram terreno fértil nas necessidades existenciais do homem moderno, um homem encerrado na “ jaula férrea” a que se referiu Weber, assim isolado e desorientado numa Modernidade burocrática e anónima, cfr. Raymond Aron, The Future of Secular Religions , trad., in The Dawn of University History , org. Tony Judt, p. 177-223. 25 Carl Jung desenvolveu precisamente este ponto, assinalando a radical diferença existente entre os sentidos correspondentes às ideologias totalitárias e os sentidos assentes num princípio indisponível de preservação e desenvolvimento espiritual, cfr. Aion – Researches into the Phenomenology of the Self , Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 36 segs. e The Archetypes and the Collective Unconscious, Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 207 segs. 26 A respeito da descoberta do homem interior nesta tradição, ver muito particularmente Hannah Arendt, A Vida do Espírito – II – Querer , trad., Lisboa: Instituto Piaget, 2000, em especial, p. 63 segs. 27 Assim por exemplo Paulo Otero no âmbito de um tratamento do totalitarismo que inclui o fascismo italiano e que encontra entre as suas fontes o pensamento de Hegel lido em termos popperianos, cfr. A Democracia Totalitária, p. +.
Estado
for entendido no sentido mais próprio, ou seja, enquanto construção jurídica a
que, por definição, corresponde um alto grau de institucionalização e estruturação normativa (aquele Estado que, na sua mais acabada construção teórica, surge concebido como pessoa jurídica atuante através dos seus órgãos). Ora, o Estado assim concebido – uma estrutura normativa formal, desfulanizada e estável com uma inerente relevância estabilizadora e limitadora – surge necessariamente em perda perante a lógica do totalitarismo. Com efeito, o movimento das leis em que se centram as ideologias totalitárias pede outra corporização que não o Estado: pede uma corporização permeada pela incessante dinâmica desse movimento, dele constantemente atualizadora. Fala-se do partido único de massas e do seu líder . 4.2.
A subordinação do Estado ao partido ou movimento foi assumida enquanto
tal nos regimes totalitários. No regime soviético, a concentração do poder num só partido, tido como guarda e intérprete das leis da história , e – um
a correspondente relevância subordinadora do Estado
Estado condenado a desaparecer, assim segundo uma lógica marxista antitética à
lógica hegeliana – encontra as suas premissas no próprio marxismo. Aí, preconizou-se já a ditadura de um movimento fortemente centralizado ao mesmo tempo que se procurou alcançar uma síntese entre determinismo histórico e vontade humana. Depois, com a teoria e prática da ação revolucionária concebida por Lenine, a identificação do partido com uma vanguarda fortemente voluntarista ficou firmemente estabelecida 28. Uma tal identificação e uma inerente desvalorização do Estado enquanto instituição veio a ser objeto de expresso reconhecimento constitucional no período estalinista: o artigo 126.º da Constituição de 1936 determinou ser o partido “a vanguarda do povo trabalhador na sua luta para fortalecer e desenvolver o sistema socialista e o núcleo liderante de todas as organizações ”, entre elas o próprio Estado. Quanto ao regime nacional-socialista, é de assinalar que a sobreposição do movimento ao Estado não foi inicialmente pacífica, ainda que tenha acabado por ser muito intensa. Ora, a discussão ocorrida em seu torno é particularmente interessante pois ilustra bem o que está em causa nessa sobreposição. Vale pois a pena registá-la.
28
Com efeito, Lenine acentua fortemente o element voluntarístico da teoria marxista em ordem a explicar o facto de a “ditadura do proletariado” conhecer a sua implementação num país fortemen te agrícola e não num país industrial avançado, cfr. Raymond Aron, From Marxism to Stalinism, trad., in The Dawn of Universal History, cit., p. 203-223, p. 206 segs.
Tal discussão foi marcada por texto de Ernst Forsthoff, datado de 1933, no qual o Autor condenou uma subordinação do Estado ao partido nacional-socialista. Com efeito, Forsthoff opôs-se de um modo assinalável à dissolução da instituição Estado perante a lógica irrestrita e fulanizada do movimento. É particularmente demonstrativo o seguinte passo: «O Estado e o movimento não são identificáveis um com o outro. O movimento pode emergir na pessoa do seu líder. O Estado não. Por mais forte que o momento da liderança pessoal possa ser, ele é mais que um contexto de liderança pessoal. A comunidade de liderança pessoal extingue-se com a pessoa do líder e está, por isso, ligada ao tempo. O Estado não se pode extinguir; ele é a forma da existência política do povo e o povo não pode declinar politicamente. O Estado está ligado à tradição, à lei e à ordem»29.
Ora, um nacional-socialismo ortodoxo não deixou de reagir a esta tentativa de preservar um Estado definitoriamente ligado “à tradição, à lei e à ordem” – e por isso mesmo inerentemente civilizador e limitador – contrapondo-lhe uma inequívoca preeminência do movimento e do seu líder. Assim, por exemplo, Alfred Rosenberg, em obra publicada pela editora do partido nacional-socialista, sustentou ser o Estado enquanto instituição – qualificado como um “aparelho mecânico” – nada mais do que uma “petrificação” e uma “alienação do povo” a que cumpriria opor a “totalidade da mundividência nacional -socialista”
corporizada pelo movimento. Impunha- se, pois, a dissolução de tal “aparelho”, apenas se admitindo a subsistência de um “Estado” meramente instrumental do movimento 30. Este “Estado” meramente instrumental – este Estado dissolvido perante a lógica
desinstitucionalizada do movimento corporizador da ideologia – veio a ser o “Estado nacional-socialista”, algo apenas remotamente coincidente com o Estado em sentido próprio, isto é, com o Estado enquanto construção jurídica. Na fórmula de Ernst Fraenkel, o “Estado nacional-socialista ”, na sua progressiva afirmação durante a década de 30, é cada vez menos um característico “Estado normativo” e cada vez mais um incaracterístico “Estado prerrogativa”31. Franz Neumann, por seu turno, referiu-se
29
Cfr. The Total State (excertos), trad., in Arthur J. Jacobson / Bernhard Schlink (eds.), Weimar: A Jurisprudence of Crisis, Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2000, p. 320 segs. 30 Citado por Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder: Ficção e Ordem no Combate de Carl Schmitt em Torno do Poder , Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009, p. 458-59. 31 Desenvolve o Autor, a respeito da sua noção de “Estado - prerrogativa” que o nacional -socialismo “não mostrou qualquer pejo em demonstrar o seu desprezo pela regul ação jurídica do Estado (…). A ‘justiça formal’ não tem qualquer valor para o nacional -socialismo”, cfr. The Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship , trad. E. A. Shils, New Jersey: The Lawbook Exchange, 2006, em especial, p. 46 segs.
mesmo ao “Estado nacional-socialista ” como um “não Estado”32. Seja qual for a fórmula, do que se trata é de identificar um “Estado” fulanizado, desformalizado e desestruturado, atuante através de medidas arbitrárias pelas quais se tenta executar e mesmo antecipar as “leis” do movimento.
De dizer que o movimento totalitário veio a permear, dissolvendo-a, toda a estrutura estadual, tanto administrativa como judicial. Mesmo os juízes foram reduzidos a agentes do movimento, declaradamente vinculados aos “interesses do nacional socialismo”, nomeados e destituídos livremente pelo líder do movimento 33.
4.3.
É precisamente por referência à dissolução da construção jurídica do Estado
– ou do “Estado normativo” – que Carl Schmitt proclamou a “morte de Hegel” no
nacional-socialismo34. Semelhante dissolução foi tanto mais marcada quanto o movimento partidário se estruturasse segundo um princípio de liderança ( Führerprinzip) que se converteu em princípio nuclear do Direito Público nacional-socialista35 - um princípio cuja acabada formulação se encontra no seguinte passo de Hans Frank: “todo o poder político da raça alemã se encontra unido no líder, está na sua mão. Em consequência, a lei deriva em exclusivo dele”36.
No caso do nacional-socialismo, a relevância do líder e inerente culto de personalidade apresentou-se como algo plenamente congruente com uma ideologia centrada na existência de uma comunidade de raça concebida em união total com aquele. Semelhante primitivismo não se coadunaria à partida com a racionalidade marxista – ou com o marxismo-leninismo, para o qual o verdadeiro centro do movimento era o partido e não o líder, tendo mesmo Lenine reagido contra qualquer
32
Assinalando a importância destes Autores, os quais logo no final da década de 30 e início da década de 40, verificaram ser o nacional- socialismo essencialmente marcado pela “morte do Estado”, cfr. Jan Werner Müller, Contesting Democracy… , p. 119 segs. 33 Cfr. Franz Neumann, Behemoth – The Structure and Practice of National Socialism , 1933-1944, Chicago: Ivan R. Dee, 2009, p. 452 segs. 34 Assim, precisamente, afirma Manuel Braga da Cruz que, “O nazismo, como ditadura do movimento relativizou o Estado. (…) A ssim se compreende que Carl Schmitt tenha dito que, no mesmo dia em que Hitler subira ao poder, Hegel morrera. O Estado totalitário era considerado um resquício do liberalismo, que antepunha o Estado à nação e ao povo. Por isso o nazismo recusou ao Estado qualquer personalidade jurídica ou ideal de soberania. O nazismo, a par da afirmação do caráter instrumental do Estado, pretendia a substituição do totalitarismo de Estado pelo totalitarismo da mundividência nacional- socialista”, cfr. O Partido e o Estado no Salazarismo , Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 19. 35 A este respeito, cfr. Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914 -1945 , trad., Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 332 segs. 36 Citado em Franz Neumann, Behemoth…, p. 447.
“glorificação da personalidade”
37
. Não obstante isso, a experiência soviética evoluiu
também no sentido da concentração de poder no secretário-geral do partido e mesmo do culto de personalidade 38. 2.4.4. No
que diz respeita ao poder, o totalitarismo caracteriza-se pela sua
desnormativização, não apenas porque o desinstitucionaliza e fulaniza, mas também e sobretudo porque o ilimita sob o ponto de vista jurídico e moral. Com efeito, o poder segue agora a dinâmica inexorável das “leis” em que a ideologia se centra, algo inteiramente diverso de leis no tradicional sentido jurídico e moral, estas últimas correspondentes a normas que conjuntamente entretecem uma estrutura de garantia, estabilidade e previsibilidade. A obediência cega às “leis” da ideologia – e àqueles homens tidos como corporizadores do respectivo movimento – veio a gerar aquilo que Arendt designou como uma “indecente pesquisa experimental do possível”, de modo a assinalar a natureza sem precedentes do poder totalitário. Com efeito, não se trata apenas de transcender limites demarcados dentro daquilo que se imaginaria até então possível. Trata-se de transcender as próprias fronteiras do possível – ou tido como possível pelos “homens normais”,
isto é, pelos homens cujos sentidos haviam sido permeados pela
moral e pelo Direito, aqueles que “não sabem que tudo é possível” 39.
37
Perante os primeiros sinais de um culto de personalidade em seu torno – e que após a sua morte se manifestariam na preservação mumificada do seu corpo em mausoléu – Lenine reagiu negativamente, afirmando que “durante as nossas vidas persistimos sempre num a luta ideológica contra a glorificação da personalidade… Esta não é nada boa”, citado em Jan -Werner Müller, Contesting Democracy… , p. 35. 38 A este respeito, referindo-se à influência dos elementos carismáticos da tradição russa que se evidenciam a partir do estalinismo, cfr. Raymond Aron, From Marxism to Stalinism, p. 214 segs. 39 Cfr. The Origins of Totalitarianism, 436.