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Prefácio: A ética e o espelho da cultura
José Castello Quatro atributos todos detestáveis, compõem o perfil da cultura brasileira hoje o cinismo, a delinqüência, a violência e o narcisismo. !o é fácil, antes é muito doloroso, admitir que eles se tornaram a confusa ima"em de nosso pa#s. $ cotidiano brasileiro nos leva, sempre a deparar com c#nicos, delinqüentes homens violentos e lamentáveis narcisistas com a pose de homens de bem. %er&is de tempos obscuros, obscuros, eles est!o por toda parte parte ' e um pouco dentro de n&s mesmos. mesmos. !o é fácil defrontar com essa ima"em no espelho. (uardamos uma ponta de desconfian)a, desconfian)a, tentamos nos prote"er, mas preferimos n!o pensar muito, e ver apenas o indispensável para se"uir em frente. $ psicanalista Jurandir *reire Costa, ao contrário, quer fitar essa ima"em frontalmente. +ai a importnc importncia ia ' e a contundê contundência ncia ' do livro que o leitor leitor a"ora tem em suas m!os. !o é simples acaso que um psicanalista, e n!o um soci&lo"o, um cientista pol#tico, um antrop&lo"o, tome essa decis!o. *oi relendo *reud, com aten)!o voltada para a realidade do pa#s, que Jurandir *reire Costa formulou seu esbo)o de teoria do -rasil. m te/tos que al"uns psicanalistas pra"máticos e contaminados contaminados de reli"iosidade cient#fica preferem encarar como fic)ões freudianas em ve0 de teoria psicanal#tica ' casos de 12al3estar na civili0a)!o4, 12oisés e o monote#smo4 e 15sicolo"ia de massas4 ', *reud mostrou que, sem um olhar que transcenda a realidade, sem um v6o sobre o real, o homem cai na a"onia, na atomi0a)!o, no pnico. perde a pr&pria humanidade. humanidade. +esprovidos de ideais que produ0am al"uma ordena)!o no mundo concreto, homens desnorteados se afo"am no temor. !o há homem, portanto, sem um ideal. 17omos n&s, indiv#duos, que inventamos os universos de valores que nos permitem viver em comunidade, ou seja, assumindo compromissos4, di0 o psicanalista. 17& com valores nos tornamos capa0es de prometer. +e prometer e de cumprir84 $ homem se diferencia do animal justamente porque seu destino n!o está tra)ado no automatismo do instinto. 9 sociedade humana, fundada sobre um caos, precisa de artif#cios culturais para sobreviver 1: em resposta ; vulnerabilidade do corpo, ; potência esma"adora da nature0a, ; mortalidade que os homens inventam as civili0a)ões4. stria cultural, um simples artefato de revestimento que retoca as aparências do universo humano. !o é uma 1superestrutura4, como os mar/istas fi0eram crer por décadas? n!o é um lu/o, uma pausa entre dois momentos de seriedade, como fa0 crer a ind>stria da divers!o e do la0er. 9o contrário, ela é a pr&pria condi)!o de sobrevivência do homem no planeta. 17e você ataca sistematicamente o equil#brio cultural de um povo, você retira dos indiv#duos seu >nico dispositivo de prote)!o para enfrentar a desordem e o va0io4, enfati0a o psicanalista @ocê se torna, ent!o, um suicida. =oda essa di"ress!o é indispensável para se entender a vi"orosa teoria do -rasil esbo)ada nos ensaios de Jurandir *reire Costa. stamos, hoje, no pa#s da descren)a. 1$s indiv#duos no -rasil tomaram3se social e moralmente supérfluos4, pensa o autor. 1les nada valem como cida cidad! d!os os,, pess pessoa oass que que têm têm resp respon onsa sabi bilid lidad ades es.. 9o cont contrá rário rio,, s!o s!o post postos os me situ situa) a)!o !o de desqualifica)!o e de tutela4. 5essoas lan)adas neste fosso moral passam a descrer das leis. @alores, re"ras, ética, compromissos passam a ser entendidos, apenas, como racionali0a)ões racionali0a)ões que encobrem a violência. Cidad!os amar"os preenchem o va0io produ0ido por esta descren)a com
G uma moral c#nica. 1$ que vi"ora hoje, no -rasil, é uma ra0!o c#nica4, identifica Jurandir Costa, tomando emprestado um conceito de 5eter 7loterdijB. 1o lu"ar da indi"na)!o, produ0iu3se um discurso desmorali0ante que di0 que toda lei é convencionalismo, formalismo, idealismo, conservadorismo4. =orpedeada a lei, é todo um universo simb&lico que desmorona. 5or isso esta sensa)!o nacional de que nada mais tem valor de que tudo 1termina em pi00a4. =ornamo3nos, todos, homens sem pudor. !o s!o apenas os mar"inais or"ani0ados em falan"es para o que der e vier, nem os pol#ticos destilados na malversa)!o e na corrup)!o renitente que se dei/am diri"ir por essa ra0!o c#nica. 1/iste um elo indissol>vel entre o pol#tico que lesa o erário p>blico e o cidad!o que ultrapassa o sinal vermelho e o assaltante que mata4, aponta o psicanalista. 1=odos dei/aram de levar em conta a lei4. 2as nos parece muito sensato, quase sempre, ultrapassar o sinal vermelho enquanto reclamamos do deputado corrupto, ou falsificar um recibo médico para o imposto de renda enquanto lamentamos o aumento da violência nas cidades.
H a derrota. 1: esse cinismo aplicado ; vida cotidiana que se torna o mais peri"oso4 di0 o psicanalista. $s cidad!os brasileiros parecem, hoje, condenados a um destes dois terr#veis destinos ou se tornam burocratas obedientes, indiv#duos rotineiros que fa0em da anula)!o de si uma maneira de ser, ou rea"em tomados pela arro"ncia delinqüente, atributo e/tremo de uma cultura re"ida pelo narcisismo. $s obedientes enfileiram3se na le"i!o de provadores daquilo que %annah 9rendt chamou de 1banalidade do mal4, porque até o mais enlouquecido torturador é, antes de tudo, um burocrata dobrado pelo desejo de obedecer. $s que optam por delinqüir, perdendo a no)!o de prêmio e san)!o, de permiss!o e interdi)!o, afundam3se na cultura do narcisismo e do cinismo. $ burocrata servil é, na aparência, o oposto do delinqüente arro"ante, mas ambos fa0em o mesmo tipo de jo"o desmerecem a importncia de um ideal. 9qui voltamos a *reud. 7em um ideal que caucione a vida social, o homem se torna um ente que viaja na escurid!o. 5assa a sofrer, ent!o, de um 1pnico narc#sico4, e/press!o pescada por *reud num romance de se"unda classe in"lês chamado Whem it was dark , que descreve a desordem provocada por uma suposta descoberta cient#fica de que Jesus Cristo n!o foi, de fato, imortal. $ 1pnico narc#sico4 é um efeito, avassalador, de situa)ões em que o homem perde suas referências de equil#brio. +iante dele, a op)!o é a frui)!o imediata do mundo. $ espelho de arciso é o presente tornado destino.$ futuro se transforma apenas numa quimera, est>pida, que esfarela em nossas m!os. $ sentimento dominante, ent!o, é o de 1fim de festa4. stamos pr&/imos, é preciso dar o nome, da psicopatia. 1$ que é o psicopata sen!o aquele que, dentro de uma cultura que funciona adequadamente, é ce"o em rela)!o a valoresD4, per"unta Jurandir Costa. 17e todos passam a a"ir ; revelia da lei, entramos, de fato, numa cultura de psicopatas4. 2as o autor, prudente em rela)!o aos esti"mas de hábito acoplados ; no)!o psiquiátrica de psicopatia, prefere falar mesmo em delinqüência. $ que desnorteia o pa#s hoje é, mais do que uma doen)a, o sentimento de que fomos lan)ados de volta a um tempo primitivo e disforme, anterior a toda lei. m tempos sombrios, o narcisismo aparenta ser a >nica máscara capa0 de "arantir ao homem um m#nimo de imunidade. 7& provido da cápsula narc#sica ele ainda pode sentir confian)a para nave"ar pelos desv!os de um pa#s que e/terminou a lei. 2as aqui é preciso fa0er uma distin)!o a cultura do narcisismo e da delinqüência n!o é um atributo necessário da cultura da violência. 2as o que parece um al#vio é um peri"o. 1m re"imes totalitários, re"idos pela violência, leis draconianas podem manter a sociedade funcionando, porque ainda resta a lei da obediência a um s& l#der4, distin"ue o psicanalista. 2as é uma coes!o mecnica, produ0ida pela dissuas!o, pelo medo, pela intimida)!o. 9 cultura do narcisismo formou3se no -rasil, cabe lembrar, ap&s a queda do autoritarismo. 1*oi a incapacidade dos pol#ticos de catalisar o desejo de mudan)a que produ0iu a descren)a e justificou a delinqüência4, di0 o autor. 5or isso parece fa0er sentido, hoje, o sentimento irresponsável de que nos tempos do re"ime autoritário, ao menos, o pa#s tinha al"uma lei. 9qui Jurandir Costa nos dei/a diante de uma "rave advertência num pa#s em que a lei foi posta em descrédito, qualquer promessa de lei, por mais draconiana que seja, ou talve0 quanto mais draconiana for, pode comportar um poder de sedu)!o irresist#vel. 7ur"e uma ilus!o a do 1eu era feli0 e n!o sabia4. 5odemos estar montados, na ce"ueira de nosso pnico, sobre o ovo da serpente. 9 cultura narc#sica é, em al"um "rau de possibilidade, uma cultura pré3 fascista. Justiceiros moralistas, seitas fanáticas e skin heads espocando aqui e ali nos fornecem, hoje, ind#cios desse risco. 9 análise afiada de Jurandir *reire Costa, desenvolvida em ensaios esparsos mas contundentes publicados na imprensa e reunidos nesta coletnea, nos coloca cara a cara com um peri"o o da paralisia social. $ sintoma da doen)a brasileira pode ser, hoje, a incapacidade de rea)!o. $u o sentimento "enerali0ado de que qualquer rea)!o se transforma, inevitavelmente, em frustra)!o. 2esmo aqueles que conservam um m#nimo de responsabilidade para com o pa#s n!o escapam dessa sensa)!o de impotência. 1nfati0o isso porque n!o tenho uma vis!o id#lica do que pode vir a acontecer4, admoesta o psicanalista. , desmontando a hip&tese de qualquer
K falsifica)!o de seu pensamento em catecismo idealista, adverte 1u acho que o -rasil pode n!o dar certo, acho que a catástrofe pode che"ar. ada asse"ura que as coisas tenham solu)!o. %á coisas que se encaminham para um ponto em que n!o há mais solu)!o poss#vel4. Jurandir Costa n!o fa0 essa dura advertência movido pelo pessimismo, mas pelo realismo e pelo desejo de rea)!o. $ desencanto pode, de fato, destruir o pa#s ' e é contra ele que se deve a"ora lutar. 19s classes médias passam a sentir, ultimamente, o mesmo va0io de perspectiva que sempre foi sentido pelas popula)ões mar"inali0adas4, aponta. 1las nunca tiveram qualquer universo de esperan)a. 7& que isso, que antes era sentido apenas no "ueto, passa a"ora a ser comum a todos n&s.4 $ cinismo aparece, na verdade, para encobrir o sofrimento. $ amar"or, a ironia encobrem a triste0a e a desesperan)a. nunca é bom fu"ir do sofrimento e da infelicidade. 9 sa#da narc#sica leva os cidad!os a buscar a felicidade na prote)!o de suas casas, munidos de artefatos de consumo cada ve0 mais sofisticados, mas cada ve0 mais descrentes de qualquer sa#da coletiva. Jurandir Costa pensa que o que está em jo"o, por fim, é a liberdade. 19 liberdade, no sentido clássico, é a liberdade de sair ; rua, de participar do conv#vio comum. ra isso o que o escravo n!o tinha, e era por isso que ele n!o era livre.4 Intimidados pela violência, desconfiados até dos ami"os e enclausurados em nossa vida privada, tornamo3nos escravos do medo. =ornamo3nos nossos pr&prios carcereiros. Cidad!os reclusos em seu narcisismo, armados de cinismo até a alma, convictos de que atuar socialmente é o mesmo que delinqüir, vivemos da ilus!o de que podemos escapar solitários da catástrofe. 1!o vamos escapar4, enfati0a Jurandir Costa. 19 espécie humana n!o tem instinto de sobrevivência. la pode e/plodir o planeta de uma hora para outra, pode fa0er da pr&pria vida um verdadeiro inferno.4 $ que a prote"e de si mesma é, nunca é demais insistir, a cultura. ste mundo de leis e ideais que transcende cada desejo individual e nos fa0 empenhar a palavra e depois cumpri3la. 7em os limites ditados por esta lei, o pa#s permanecerá enjaulado nas pequenas mir#ades do narcisismo. : ele que nos enlouquece. $s arti"os e entrevistas de Jurandir *reire Costa reunidos nesse livro servem, se"uramente, como um poderoso ant#doto contra o pessimismo e a desilus!o. 7uas idéias, cruas e dif#ceis, a princ#pio fa0em estremecer? mas lo"o, passado o susto, nos levam a pensar. !o há, hoje, caminho fácil para os que desejam formular uma sa#da para o -rasil !o e/istem atalhos floridos, nem passa"ens secretas má"icas, ou vias e/pressas de se"uran)a má/ima. $ caminho que temos pela frente é lon"o, tortuoso e inse"uro. ada "arante, além disso, que encontraremos a lu0 em seu fim. 2as nossa >nica chance é lutar.