Aulas Site: Faculdade Unida Curso: 02. 02. Introdução ao Antigo Testame amento Livro: Aulas Impresso por: por: José Renato Nogueira Da t a : segunda, 23 Out 2017, 22:44
Sumário Apresentação da Disciplina Aula 1 - O Cânon e o estudo introdutório do Antigo Testamento Testamento Aula 2 - Os Contextos Histórico-Político e Cultural do AT Aula 3 - Estrutura Discursiva da Torá - Narrativas Aula 4 - Estrutura Discursiva da Torá - Normativos Aula 5 - Estrutura Discursiva da Torá - Identidade Aula 6 - Estrutura Discursiva dos Profetas Anteriores Aula 7 - Estrutura Discursiva dos Profetas Posteriores Aula 8 - Estrutura Discursiva nos Livros Sapienciais Aula 9 - Estrutura Discursiva nos Discursos Litúrgicos Aula 10 - Estrutura Discursiva em Narrativas dos Escritos Estudo Complementar
Apresentação Ap resentação da Disciplina Disciplina
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Aula 1 - O Cânon e o estudo introdutório do Antigo Testamento Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero Introdução
Nesta disciplina, partiremos do pressuposto de que toda a Escritura é inspirada por Deus (II Tm 3,15) e é Palavra de Deus, mas não aceitamos o conceito radical de inerrância acima brevemente descrito. Entendemos que as questões ligadas ao modo de escrita dos livros bíblicos, estruturas literárias, datação e autoria dos textos não são questões que devem ser resolvidas teologicamente, mas histórica e culturalmente. Entendemos que reconhecer mais de um autor para para livros bíblicos não significa afirmar que a Escritura contenha erros, mas, sim, reconhecer apenas que a definição de autor de um texto é muito diferente em nossa cultura e nas antigas culturas dos tempos bíblicos. Entendemos que reconhecer que alguns livros bíblicos possam ter sido escritos durante um longo período de tempo, passando por várias etapas de tradição, oral e escrita, e de redação, significa apenas reconhecer que os hábitos de produção de livros das culturas antigas eram diferentes dos nossos. Mais importante ainda do que o reconhecimento das diferenças é o reconhecimento de que é nossa tarefa interpretar a Escritura da forma mais eficiente, inteligente, crítica e fiel possível. O objetivo fundamental do estudo introdutório do Antigo Testamento é nos ajudar a cumprir essa tarefa, através da discussão de como os temas dos escritos vétero-testamentários estão organizados e distribuídos no cânon bíblico.
1. O Cânon do Antigo Testamento As Igrejas Cristãs se acostumaram a chamar a primeira parte de sua Bíblia como Antigo Testamento. Testamento. Esse, porém, não é o nome original dessa coleção de livros. Os judeus antigos, bem como os atuais, chamavam-no de Escritura, Torá, Palavra de Deus ou TaNaK (um acrônimo: T equivale a Torah [Torá, Instrução, Lei]; N equivale a Nebiim [Profetas] e K equivale a Ketubiim [Escritos]). Nas discussões exegéticas contemporâneas, o Antigo Testamento tem sido chamado de Bíblia Hebraica e de Primeiro Testamento. Testamento. Alguns autores evitam o termo “Antigo” Testamento, Testamento, a fim de reconhecer a validade da forma judaica dessa seção da Bíblia cristã, sem que ela seja comparada ao “Novo” Testamento. De qualquer forma, porém, o nome usado nos estudos exegéticos revela a influência cristã. Usaremos a forma tradicional Antigo Testamento, sem que o termo “Antigo” signifique que ele é inferior ao “Novo”. Outra diferença importante, além da relativa ao nome, é a da organização dos livros do Antigo Testamento. Testamento. As Bíblias cristãs seguem a ordem dos livros que encontramos na Septuaginta (LXX), uma tradução do texto hebraico para o grego, feita no final do primeiro milênio a.C. Essa ordem é mais adaptada à mentalidade ocidental, que organiza os livros de acordo com seus assuntos principais (note que os livros “históricos” ficam em sequencia, assim como os livros proféticos e os poéticos e os de sabedoria). No texto hebraico, porém, a ordem é bem diferente (Torá = Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio; Profetas = Josué,
Nesta disciplina, partiremos do pressuposto de que toda a Escritura é inspirada por Deus (II Tm 3,15) e é Palavra de Deus, mas não aceitamos o conceito radical de inerrância acima brevemente descrito. Entendemos que as questões ligadas ao modo de escrita dos livros bíblicos, estruturas literárias, datação e autoria dos textos não são questões que devem ser resolvidas teologicamente, mas histórica e culturalmente. Entendemos que reconhecer mais de um autor para para livros bíblicos não significa afirmar que a Escritura contenha erros, mas, sim, reconhecer apenas que a definição de autor de um texto é muito diferente em nossa cultura e nas antigas culturas dos tempos bíblicos. Entendemos que reconhecer que alguns livros bíblicos possam ter sido escritos durante um longo período de tempo, passando por várias etapas de tradição, oral e escrita, e de redação, significa apenas reconhecer que os hábitos de produção de livros das culturas antigas eram diferentes dos nossos. Mais importante ainda do que o reconhecimento das diferenças é o reconhecimento de que é nossa tarefa interpretar a Escritura da forma mais eficiente, inteligente, crítica e fiel possível. O objetivo fundamental do estudo introdutório do Antigo Testamento é nos ajudar a cumprir essa tarefa, através da discussão de como os temas dos escritos vétero-testamentários estão organizados e distribuídos no cânon bíblico.
1. O Cânon do Antigo Testamento As Igrejas Cristãs se acostumaram a chamar a primeira parte de sua Bíblia como Antigo Testamento. Testamento. Esse, porém, não é o nome original dessa coleção de livros. Os judeus antigos, bem como os atuais, chamavam-no de Escritura, Torá, Palavra de Deus ou TaNaK (um acrônimo: T equivale a Torah [Torá, Instrução, Lei]; N equivale a Nebiim [Profetas] e K equivale a Ketubiim [Escritos]). Nas discussões exegéticas contemporâneas, o Antigo Testamento tem sido chamado de Bíblia Hebraica e de Primeiro Testamento. Testamento. Alguns autores evitam o termo “Antigo” Testamento, Testamento, a fim de reconhecer a validade da forma judaica dessa seção da Bíblia cristã, sem que ela seja comparada ao “Novo” Testamento. De qualquer forma, porém, o nome usado nos estudos exegéticos revela a influência cristã. Usaremos a forma tradicional Antigo Testamento, sem que o termo “Antigo” signifique que ele é inferior ao “Novo”. Outra diferença importante, além da relativa ao nome, é a da organização dos livros do Antigo Testamento. Testamento. As Bíblias cristãs seguem a ordem dos livros que encontramos na Septuaginta (LXX), uma tradução do texto hebraico para o grego, feita no final do primeiro milênio a.C. Essa ordem é mais adaptada à mentalidade ocidental, que organiza os livros de acordo com seus assuntos principais (note que os livros “históricos” ficam em sequencia, assim como os livros proféticos e os poéticos e os de sabedoria). No texto hebraico, porém, a ordem é bem diferente (Torá = Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio; Profetas = Josué,
Juízes, Samuel, Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Os Doze; Escritos = Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crônicas). Além de a ordem ser diferente, também o número de livros é diferente, pois na forma hebraica, os livros de I e II Samuel; I e II Reis; I e II Crônicas e Esdras e Neemias não são divididos em dois volumes, mas cada um deles tem um único volume. Semelhantemente, os Doze Profetas Menores formam na Bíblia hebraica um único livro “Os Doze”, de modo que nas edições cristãs c ristãs há 39 livros canônicos enquanto na hebraica há 24 livros. Por fim, também os nomes dos livros são diferentes. No antigo judaísmo se costumava costumava dar ao livro, livro, como título, as primeiras palavras palavras do mesmo – com exceção dos livros proféticos. A diferença principal, porém, reside na compreensão da estrutura do cânon. Para os judeus, a Torá é Torá é a parte mais importante da Escritura – ela é o fundamento da Escritura, e as demais seções são subordinadas a ela. Os Profetas são Profetas são a segunda parte mais importante; funcionam como uma espécie de interpretação da Torá, ou de como o povo de Israel, em sua história antiga, seguiu ou não a vontade de seu Deus. Os Escritos ficam Escritos ficam em terceiro lugar e têm uma função mais tipicamente litúrgica, sendo uma espécie de comentário dos Profetas e uma afirmação de esperança. As três partes são consideradas Palavra de Deus, mas para a compreensão da vontade de Deus, deve-se observar a diferenciação canônica no Judaísmo. A mensagem mais importante dessa ordem canônica judaica para nós é que, por um lado, o Antigo Testamento é uma grande narrativa com unidade de enredo: a eleição, a libertação, o pecado e a restauração do povo de Deus; por outro lado, essa unidade é uma unidade tensa, plural e complexa, que não pode ser reduzida a uma única descrição teológica ou doutrinária.
2. Os blocos temático-literários do Antigo Testamento Na tradição acadêmica de pesquisa vétero-testamentária nos tempos modernos algumas conclusões se tornaram em espécie de norma organizadora dos estudos, sendo que a principal delas é a que vê um certo arranjo temático e literário dos livros do Antigo Testamento (A.T.) (A.T.)
O segundo grande bloco, que na academia se convencionou chamar de Obra Histórica Deuteronomista, é composto pelos livros de Josué, Juízes, I e II Samuel, I e II Reis. O nome “deuteronomista” foi dado por que esses livros contam a história do povo de Israel a partir de uma perspectiva teológica presente no livro do Deuteronômio – que é a da fidelidade exclusiva a Javé como o único Deus de Israel. Rico em diversidade de formas literárias, narrativas e não narrativas, estes livros contam a história das origens de Israel até o fim do estado de Judá sob o domínio babilônico – concluindo com uma afirmação de esperança (II Rs 25,27-30).Foram, assim, considerados alguns grandes blocos de livros da Bíblia Hebraica que possuem grande amplitude histórica e literária. O primeiro deles, na ordem em que aparece na Bíblia, é a Torá (palavra hebraica que significa instrução), e que costumamos chamar de o Pentateuco. Sua estrutura é a de uma grande narrativa que conta uma história que vai das origens do mundo (Gênesis 1), na criação divina, até as origens do povo de Israel, à beira da entrada na terra prometida por Deus (Deuteronômio 34). Nesse bloco de cinco livros (Pentateuco significa cinco rolos – material de pergaminho onde eram escritos os livros na antiguidade), encontramos narrativas dos mais variados tipos, confissões de fé, poemas, legislação cúltica, civil, criminal, genealogias, etc.O terceiro grande bloco é chamado de Obra Histórica Cronística, e é composto dos livros de I e II Crônicas, Esdras e Neemias. É uma descrição da história de Israel desde suas origens até a reconstrução de Jerusalém no período da dominação persa (séc.V a.C.). Para o período anterior ao exílio babilônico, os livros de Crônicas praticamente recontam a história narrada em I e II Reis, mas com um diferente ponto de vista teológico – o da teologia do culto como eixo da vida espiritual. Nos livros de Esdras e Neemias, são narradas as lutas para a reconstrução de Jerusalém e a restauração de Israel após o exílio babilônico.
O quarto grande bloco de livros do Antigo Testamento que deve ser lido em conjunto é o composto pelos livros que nós chamamos de proféticos: os três “profetas maiores” (Isaías, Jeremias, Ezequiel) e os doze “profetas menores” (Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Sofonias, Habacuque, Ageu, Zacarias e Malaquias). Embora eles não possuam uma ordem cronológica, o seu arranjo no cânon hebraico (que é diferente da ordem em que temos os livros nas traduções modernas)
aponta para uma leitura em conjunto, destacando a temática teológica da justiça de Deus na relação com seu povo e com os demais povos da terra. O bloco final é composto pelos livros chamados poéticos (Salmos e Cantares) e sapienciais (Provérbios, Jó, Eclesiastes). Por várias razões, esses livros não receberam da pesquisa a mesma atenção que os outros blocos, mas têm se tornado cada vez mais importantes na pesquisa atual.
3. As possibilidades e limites desta disciplina Diante do volume de material, uma disciplina de introdução ao Antigo Testamento não pode ser exaustiva – ou seja, não teremos tempo de estudar detalhadamente cada livro do Antigo Testamento, nem poderemos nos dedicar detalhadamente aos diversos aspectos da pesquisa introdutória (datação, autoria dos livros, estrutura de cada livro, história da composição dos livros individualmente e em blocos, história do povo de Israel, teologia, aspectos da religião de Israel, etc.). Reconhecidos os nossos limites, precisamos optar por um critério de seleção para os temas de nossa disciplina. O critério principal adotado é o da utilidade e importância do tema para o estudo exegético e teológico do Antigo Testamento em disciplinas subsequentes de nosso curso, levando em consideração a proposta hermenêutica de nosso curso, que dá prioridade ao modelo sêmio-discursivo de interpretação textual. Por isso, estruturamos nossa disciplina ao redor de dois eixos: (1) Descrição do contexto em que o Antigo Testamento foi escrito. Não é possível entender a literatura de um povo se não a estudamos à luz do seu contexto sócio-cultural e de sua história. O povo de Israel se desenvolveu em constante contato com outros povos do Antigo Oriente, e sua cultura, religião, estrutura política, etc. Foram desenvolvidas em intensa relação com esses outros povos – ora de forma mais polêmica, ora de forma mais amistosa. Assim, apresentaremos as principais características geográficas e culturais do Antigo Oriente, que nos ajudarão a entender melhor o pensamento do antigo povo de Israel. (2) A análise dos grandes discursos do Antigo Testamento, ou seja, dos grandes temas presentes nos livros do AT. Seguiremos uma ordem dupla – a do cânon hebraico, e a dos principais gêneros textuais dos livros vétero-testamentários. O estudo dos discursos de um povo é fundamental para que possamos entender como esse povo entendia a sua sociedade, sua vida, sua religião, seu contexto, etc. Este bloco nos ajudará tanto na exegese dos textos vétero-testamentários, em sua fase final, quanto preparará o terreno para o estudo, mais tarde, da teologia do Antigo Testamento.
Conclusão Para encerrar esta breve apresentação de nossa disciplina, deixo um convite especial a você – leia o Antigo Testamento! Nenhuma síntese introdutória é capaz de substituir o próprio texto. Ao contrário, a Introdução ao Antigo Testamento deve nos motivar a ler e estudar cuidadosamente os livros véterotestamentários. Sei que não é possível ler todo o Antigo Testamento em um mês, mas se esforce para ler pelo menos dois livros (grandes) de cada seção canônica hebraica (Torá, Profetas e Escritos), a fim de ter um antegozo das riquezas espirituais da primeira parte da Bíblia judaico-cristã. Introdução do Antigo Testamento - Cânon e …
Estudo Complementar
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Aula 2 - Os Contextos Histórico-Político e Cultural do AT O Contexto histórico-político do Antigo Testamento Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução
Israel se localiza na região que chamamos de Antigo Oriente Próximo (esta é a nomenclatura preferida dos estudos teológicos, mas também se usa falar desta região como o Oriente Médio), considerada o berço das civilizações humanas, se espraia por dois continentes, África e Ásia, e sua história remonta a cerca de 5.000 anos antes da era cristã. Tendo em vista o predomínio histórico posterior da Europa e da civilização euro-ocidental, os estudos históricos da Antiguidade no Brasil se concentram na chamada Antiguidade Clássica, cujo centro geográfico é a Europa, especialmente a antigas civilizações de Grécia e Roma, que exportaram a sua cultura, organização política e modo de vida para todo o mundo, graças às invasões imperialistas helênicas e romanas.
A esta região também se costuma dar o nome de Crescente Fértil , em função de sua semelhança com a lua crescente (vide mapa) e sua grande capacidade produtiva (agrícola e pastoril). É uma região que se estende ao longo de dois territórios dominados por grandes rios (Nilo, na África – onde está hoje o Egito; Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia – região da Ásia, onde hoje se encontram os países do Irã e Iraque), cujas cheias eram responsáveis pela extraordinária produtividade agrícola e contribuíram decisivamente para o desenvolvimento de nações com tendências imperialistas nessas regiões. Durante o período que mais nos interessa, do ponto de vista da história de Israel (séc. XV a.C. até inícios da era cristã), na África, o Egito foi uma grande potência que chegou a dominar, até o século X a.C., a região de Canaã e a região mesopotâmica. Na Ásia, as duas grandes potências concorrentes na Mesopotâmia – Babilônia e Assíria – disputavam o domínio imperial da região em direção à fronteira egípcia, e o domínio imperial mesopotâmico se consolidou ente os sécs. VIII e V a.C. Após o V século a.C., o domínio político-militar sobre o Antigo Oriente Próximo ficou nas mãos de persas, primeiro, e de greco-macedônios após a conquista da região por Alexandre Magno no IV século a.C.[1] Entre o Egito e a Mesopotâmia
O cenário da história de Israel é a região que se localiza entre o Egito e a Mesopotâmia, uma espécie de corredor entre o Mar Mediterrâneo e o Deserto, território que fazia a ligação terrestre entre as grandes potências vétero-orientais, propiciando não só o comércio e o intercâmbio cultural, mas também as disputas político-militares. Por isso, essa região sempre esteve sob a cobiça das grandes potências do Antigo Oriente, e sua história é determinada pela história dos impérios. Tal condição se aplica à história do povo de Israel, que só pode ser plenamente entendida à luz de sua situação geográfica. Canaã à época das origens de Israel
Nos séculos XIV e XIII (a.C.) o corredor cananeu estava sob o domínio imperial do Egito, que explorava a região econômica e politicamente. O território cananeu estava subdividido entre várias cidadesestado, com diversos tamanhos e áreas de influência, mas todas sob a égide egípcia. “Por volta de 1200 a.C. o sistema de impérios da segunda metade do segundo milênio desmoronou de forma relativamente rápida, se bem que não inesperada. O impulso para isso veio com a chamada migração dos povos do mar , que desde o séc. 13 aflui para as regiões da periferia ocidental do Oriente Médio, por água através do mar mediterrâneo e por terra através da Ásia Menor”.[2] Com isso, a dominação egípcia enfraquece e mudanças importantes ocorrem na região, inclusive a emergência de Israel. De acordo com Donner, “a partir do momento do término do equilíbrio de forças no Oriente Próximo os territórios situados entre os blocos de poder tornaram-se historicamente relevantes e capazes de produzir formações políticas próprias – mas que mantiveram uma condição periférica em relação aos centros imperiais. Tal possibilidade foi promovida pelo afluxo e surgimento de novos elementos populacionais, e por fim efetivada pelos filisteus e arameus. [...] De qualquer maneira, aos arameus pertenciam os amonitas, moabitas e edomitas da Transjordânia – e aquelas tribos que sob o nome de Israel posteriormente se estabeleceram e se tornaram sedentárias, sobretudo na Cisjordânia. Na região montanhosa, toparam com os filisteus, e os filisteus com eles: um conflito da mais alta relevância histórica, que, por fim, levou à formação do Estado israelita”. (A seguir, mapa do Oriente Médio, conforme a divisão nacional na atualidade.)
A Terra de Israel “Palco da história de Israel é a parte meridional do corredor siro- palestinense [...] Uma delimitação geográfica precisa dessa região é difícil: a oeste fica a costa do Mar Mediterrâneo; ao sul o território cultivado passa sem limites fixos para os desertos do Neguebe e do Istmo; a leste seguese, igualmente sem limites fixos, o deserto siro-arábico. Já que a Palestina, a Síria Ocidental e o Líbano formam geograficamente uma unidade, costuma-se considerar como divisa setentrional da Palestina uma linha imaginária que tem motivos históricos, e não geográficos: a leste do vale do Jordão na altura do Jarmuque, e a oeste do valo do Jordão na altura do Leontes ( Nahr Litani ). Esse é o território que, no Antigo Testamento, em geral é chamado “(terra de) Canaã” ou ainda “terra de Israel” (I Sm 13.19)”.
Sub-regiões geográficas e condições climáticas
A história do povo de Israel é fortemente determinada pela situação geográfica da terra israelita. Em uma época na qual as distâncias pequenas pareciam longínquas, posto que só atravessadas a pé ou em lombo de cavalos, burros e camelos; as divisões geográficas eram de grande importância na determinação da identidade de um povo, especialmente um povo que, como Israel, se estabelece tardiamente em um território que já era ocupado há séculos por outros povos. Leia a seguinte descrição da terra israelita feita por Donner e a acompanhe no mapa acima, que complementa informações sobre relevo, vegetação e chuvas:
A parcela palestinense na Depressão Síria é constituída pelo Vale do Jordão com os dois lagos remanescentes, o Mar da Galiléia (Lago de Genesaré) e o Mar Morto. Aqui se encontram as depressões mais profundas da superfície terrestre: o nível do Mar Morto, a aproximadamente 390 m abaixo do Mar Mediterrâneo, e as montanhas orientais e oci dentais até 1.000 m acima do Mar Mediterrâneo. O Vale do Jordão divide o país em duas regiões. Na Transjordânia o planalto antigo se conservou relativamente melhor. Em três lances ele cai para o oeste de forma íngreme em direção ao Vale do Jordão e é rasgado por vários sistemas de vales que correm no sentido leste-oeste, dos quais os mais importantes são: Jarmuque (Yarmuk), Jaboque (Nahr ez-Zerqa), Arnom (Sel el-Modjib) e Zerede (Wadi’l-Hesa). Na Cisjordânia o planalto está consideravelmente escarpado, decomposto e alterado. Está inclinado em quedas de muitos degraus em direção ao Vale do Jordão e ao Mar Mediterrâneo e forma as seguintes paisagens naturais: as montanhas da Galiléia (Alta e Baixa Galiléia), a planície do Meguido ou de Jezreel (Merdj Ibn Amir), a região montanhosa da Palestina Central com a região de colinas a oeste (em hebraico: Shefela), a planície litorânea e a Baía de Berseba.
Apesar de a Escritura nomear poeticamente essa terra como “terra que mana leite e mel”, as condições climáticas da região eram grandemente adversas para o desenvolvimento de sociedades. A terra israelita não contava com água abundante, pois a maioria de seus rios dependia da chuva para existir, enquanto as águas do Jordão, embora abundantes, ficavam fora do alcance prático para a agricultura e a vida animal e humana. Como as chuvas eram em pequena quantidade (a região se caracterizada pelo clima semi- árido), a vida dos israelitas era marcada por muito trabalho para garantir a mera sobrevivência. Assim, somente nas regiões com maior quantidade de chuva e, especialmente, nas planícies, a produção agro-pastoril era favorecida, enquanto nas regiões montanhosas e de menor índice pluviométrico, maior trabalho era exigido das populações para o ganho de seu sustento cotidiano (construção de poços e de cisternas para armazenamento da água).
Conseqüências históricas da geografia israelita
Estas características geográficas serão importantes para compreendermos, mais adiante em nosso curso, alguns aspectos da história de Israel, principalmente: (a) a sua formação como povo se deu primeiramente nas montanhas, fora do controle das cidadesestado e seus exércitos com carros de combate, um povo composto predominantemente por migrantes e populações marginais e periféricas das cidades-estado cananéias, com um conseqüente baixo grau de unidade cultural e religiosa, que se percebe mais facilmente nas diferenças políticoteológicas entre os territórios do Norte e do Sul (os futuros reinos de Judá e Israel); (b) a divisão do reino de Israel após a morte de Salomão, nos reinos do Norte (Israel) e do Sul (Judá), favorecida pela distinção geográfica e populacional entre as duas regiões, mais planícies e deserto no Sul, mais montanhas ao Norte – de modo que os dois reinos tiveram distintos inimigos e contatos internacionais prioritários; (c) o constante conflito de lealdades religiosas dos israelitas, ora aos deuses ‘cananeus’ de fertilidade (especialmente Baal), ora ao deus ‘estrangeiro’ (Javé), em função das grandes dificuldades climáticas e dos conflitos político-econômicos – não é à toa que o tema da idolatria perpassa agudamente o Antigo Testamento;
(d) o pequeno interesse econômico dos impérios vétero-orientais na região, cobiçada muito mais como espaço de defesa e de passagem para as conquistas – seja da perspectiva egípcia, seja da mesopotâmica – que permitiu, por exemplo, um largo período de desorganização política após o fim do reino de Judá; (e) a pluralidade teológica e política do povo de Israel, refletida nos textos do Antigo Testamento que, apesar de formarem uma unidade canônica, não ocultam a grande diversidade de interpretações da ação de Deus e de Sua vontade para o Seu povo.
Conclusão A história de Israel é a história de um povo cujo território era cobiçado pelas grandes potências de sua época e, quando essas potências estavam em declínio, pelos vários pequenos países que moldavam a região cananeu-araméia. Território marcado por grandes dificuldades para a sobrevivência econômica e para a unidade político-cultural, o que deixou profundas marcas na construção da identidade israelita – condição que veremos com mais detalhes ao longo do nosso estudo.
CARDOSO, Ciro F. Antigüidade oriental: política e religião. São Paulo: Contexto, 1990. . Sete olhares sobre a antigüidade. Brasília: Editora da UnB, 1994. DOWLEY, Tim. Pequeno Atlas Bíblico. Rio de Janeiro: CPAD, 2004. PEREGO, Giacomo. Atlas Bíblico Interdisciplinar. São Paulo: Paulus, 2001. SCHWANTES, Milton. História de Israel: local e origens. São Leopoldo: Oikos, 2008, p.17-23.
[1] Dominando regiões menores dentro do Antigo Oriente Próximo, também podemos mencionar os mitanitas e os hititas, antes da emergência de Israel, porém foge ao escopo desta disciplina entrar em detalhes tão precisos. No mapa você encontrará vários nomes de outros povos da região. [2] DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. São Leopoldo: Sinodal-IEPG & Petrópolis: Vozes, 1997, vol. 1, p. 45.
O Contexto histórico-cultural do Antigo Testamento Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução No texto anterior examinamos algumas características geográficas do Antigo Oriente Próximo e suas implicações políticas para a história de Israel. Agora nosso foco recairá sobre as implicações sociais e culturais da configuração geográfica do Crescente Fértil para a vida dos israelitas. Em certo sentido, o povo de Israel vivia em condição semelhante à nossa condição latino-americana. Um continente colonizado por europeus, subalterno à economia norte-atlântica, nossa organização social e nossas culturas vivem à sombra da economia, política e cultura do mundo acima do equador. Israel, nação 1 tardia no Antigo Oriente , também sofria sob a dominação cultural e religiosa das grandes potências vétero-orientais. Essa dominação torna ainda mais espantosa a força da identidade e da religião israelitas – um pequeno povo que marcou a história mundial com sua fé.
Estruturas Sócio-Econômicas no Antigo Oriente Próximo Durante quase todo o período da história de Israel no Antigo Testamento, as sociedades e países do Antigo Oriente eram organizadas economicamente ao redor da relação tensa entre a corte monárquica e a população rural-urbana. Uma das maneiras de descrever essa organização sócio-econômica vem do ambiente intelectual marxista, utilizando-se do conceito de Modo de Produção. As sociedades do Antigo Oriente Próximo podem ser descritas como organizadas de acordo com o que se convencionou chamar de Modo de Produção Tributário (Ciro Cardoso prefere o termo Palatino-Aldeão). Nesse tipo de organização social, há uma distinção entre dois grandes grupos sociais: a corte (ou o Estado monárquico) e a população trabalhadora em geral (ou o Povo). Em tais sociedades, o “rei” cobra tributos de camponeses (agricultores e pecuaristas) e trabalhadores urbanos para o sustento da corte (família real, funcionários, o aparato religioso e militar) e demanda trabalho gratuito da população (corvéia) com o apoio da aristocracia agrária e urbana. É a corte que controla o comércio internacional e estabelece as “regras do jogo” na vida interna do país. Nessas 2 sociedades, o conceito ideológico que explica as relações entre corte e povo é o de “contrato” entre a população e o “rei”. Não havia distinção, naquela época, entre conceitos religiosos e conceitos políticos, de modo que a religião exercia a função de legitimação do Estado e da família real. Como garantia de continuidade no poder a corte mantinha o exército, que não só servia para a defesa do território e para a conquista de novos, como também exercia as funções que atualmente cabem à polícia. De modo geral, as condições de vida do povo nas sociedades tributaristas eram bastante difíceis, pois a população ficava à mercê do arbítrio do rei no tocante ao volume dos tributos cobrados e dos trabalhos forçados. Quando essa cobrança ficava acima dos limites aceitáveis, o Estado praticava a opressão e a injustiça (note que a teologia do Antigo Testamento gira, em grande medida, ao redor do
tema da libertação – ou seja, da crítica e da rejeição à injustiça e à opressão, por exemplo, Êxodo capítulos 1-3; Amós caps. 3-5; Mq cap. 3; Isaías caps. 1-5; etc.). As relações internacionais eram dependentes de circunstâncias econômicas e do desejo de expansão dos reis dos grandes países. Nesse sentido, Israel teve sua história determinada, em grande medida, pela fúria conquistadora de Egito, Assíria, Babilônia e Pérsia que, na maior parte do período vétero- testamentário fitavam os olhos cobiçosos sobre a importante faixa de terra ocupada por israelitas. Se você tem interesse em ver como textos do Antigo Testamento descrevem a relação entre Estado monárquico e povo, pode ler I Samuel 8,11-17; I Reis cap.12 (sem contar os profetas Isaías, Miquéias, Amós e Oséias), que retratam a dura relação entre rei e povo, centrada na tributação e no trabalho forçado. Um texto muito interessante, voltado para a restrição dos poderes dos reis é o de Dt 17,14- 20, que também merece ser lido para entender um pouco melhor as lutas políticas internas de Israel. O quadro a seguir oferece uma diagramação das relações sócio-econômicas em sociedades tributaristas vétero-orientais, tendo por base o Egito:
Dessa forma, os Estados no Antigo Oriente eram de tipo monárquico (governado por um soberano), dinástico (sucessão por linhagem familiar) e despótico (não admitia desobediência). A legitimidade do Estado dependia da legitimidade do rei, que era descrito ou como a imagem dos deuses, ou como filho de Deus. De qualquer forma, os reis eram considerados os representantes dos deuses na terra e seus supremos sacerdotes e pontífices. Em II Samuel capítulo 7, a chamada profecia de Natã é exemplo de como os reis vétero-orientais se apresentavam como representantes da divindade (ver também os Salmos 2 e 72). O capítulo 14 de Oséias é exemplo de uma crítica radical à monarquia em Israel (reino do norte), enquanto Isaías caps. 6-9 descrevem uma crítica menos radical, mas não menos severa, à monarquia em Judá (reino do sul).
A população dos países vivia predominantemente no campo, que orbitava ao redor de cidades que serviam para proteção, comércio, religião e solução de conflitos jurídicos. Essas populações se estruturavam de modo familiar patriarcal (no AT a família patriarcal era chamada de bet ab “casa paterna”) e clânico (o que chamamos de família extensa por consangüinidade). Como alternativa ao Modo de Produção Tributário, grupos sociais resistentes se organizavam em associações de clãs ou de famílias, a que se chama de tribos, com economia e poder quase- igualitários e que, comumente, viviam às margens do território dominado pelos grandes países ou pelas cidades-estado fora desses grandes países. Israel, em suas origens, foi um país tribal , uma associação familiar livre, fundada na religião e interesses comuns, cujo exército era do tipo da milícia, ou seja, associação voluntária de homens para a defesa da família e do território. Como já mencionado, a religião era a ideologia estatal no Antigo Oriente Próximo. Como ideologia, cumpria as funções de criar, manter e legitimar as relações de dominação da corte sobre o povo. Podia, também, servir como fonte de utopia anti-estatal de grupos alternativos e, assim, cumpria as funções de resistir, rebelar-se contra o status quo e projetar uma nova sociedade. Além das funções ideológica e utópica, a religião era componente fundamental do Mundo-da-
Vida vétero-oriental. De modo diferente de nosso tempo atual, o Mundo-da-Vida não estava dividido em diversas formas de racionalidade e estrutura, de modo que a religião não era um elemento à parte da política, do direito, etc. Era a religião que, de fato, ocupava o centro do Mundo-da-Vida dos povos e nações do Crescente Fértil. Dessa forma, podemos perceber nos países vétero-orientais em geral e em Israel, em particular, pelo menos três grandes setores da prática e das crenças religiosas: a Estado da religião dos intermediários (o que hoje de elite Mundo-da-Vida é um termo técnico que visa explicar a dimensão simbólica das sociedades. O Mundo- da-Vida é composto pelas idéias, valores e crenças de um povo a respeito de sua cosmovisão, relações sociais, identidade pessoal e familiar, religião, e ética. É sinônimo do termo cultura. religião oficial do (legitimadora dominação), a setores da população chamaríamos econômica ou cultural); e a religião familiar dos camponeses e grupos alternativos (que chamaríamos hoje de religiosidade popular ). No Antigo Testamento, podemos analisar a presença predominante dos dois primeiros setores, que lutavam intensamente pelo poder de definir a identidade israelita. A presença das práticas e crenças religiosas populares no Antigo Testamento demanda um esforço maior de análise textual. A pesquisa arqueológica é, neste sentido, de importância fundamental para compreendermos de forma mais ampla a religião popular em Judá e Israel.
Conclusão
Ufa! Muita informação resumida. Certamente você está com muitas perguntas e dúvidas em sua mente. Não se preocupe. Estes conhecimentos gerais são necessários para você se situar melhor no estudo da introdução ao Antigo Testamento. É claro que, se você deseja conhecer essa história bem mais aprofundada, é preciso consultar os livros especialmente dedicados a esse tema. O pouco que vimos até agora, porém, já serve de alerta: se desejamos conhecer a história de Israel, precisaremos ler o Antigo Testamento com muito mais atenção do que costumamos fazer, bem como precisamos prestar atenção a detalhes que normalmente ficam ocultos em leitura de ênfase mais devocional ou teológica. Semelhantemente, precisaremos prestar atenção aos confrontos teológicos dentro dos próprios livros do Antigo Testamento, que revelam as posições de diferentes grupos sociais ao longo da história israelita. O hábito de uniformizar os textos bíblicos para construir doutrinas não nos ajudará a estudar a história de Israel. Não se trata de mudar doutrinas, mas de mudar hábitos. Não se trata de depreciar o Antigo Testamento enquanto Palavra de Deus, mas de enxergar aspectos que não costumávamos enxergar no testemunho bíblico. Se formos insistentes, disciplinados e curiosos, o estudo da introdução ao Antigo Testamento, com todas as dificuldades que pode criar para nossos conhecimentos, servirá também como fonte de crescimento espiritual. Introdução do Antigo Testamento - O model…
Sugestões de leitura para aprofundamento
CARDOSO, Ciro F. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. São Paulo: Ática, 1986. HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas . São Paulo: Paulinas, 1982. SCHWANTES, Milton. História de Israel . Local e origens. São Leopoldo: Oikos, 2008,p. 24-29.
[2] O Egito e a Mesopotâmia já existiam como sociedades organizadas há mais de dois milênios antes de Israel se tornar um povo assentado na sua terra. Outros povos como moabitas, edomitas, sírios, filisteus, fenícios, também já existiam organizados há mais tempo do que os israelitas. [3] Em textos bíblicos, textos de outros países da época vétero-testamentária e mesmo em textos acadêmicos atuais, usa-se o termo aliança ao invés de contrato. Prefiro contrato, pois o termo aliança é mais adequado para a descrição de relações pessoais não mediadas por instituições, enquanto o termo contrato descreve melhor relações pessoais mediadas por instituições, sejam estas jurídicas, políticas, econômicas ou religiosas.
Aula 3 - Estrutura Discursiva da Torá - Narrativas Textos Narrativos Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução A Torá é composta de cinco “livros” (daí o nome, derivado do idioma grego, Pentateuco) cujo conteúdo está dividido basicamente em dois tipos de textos: narrativos (contam estórias) e normativos (estabelecem normas, leis, diretrizes), que fazem parte da estruturação narrativa do conjunto. Do ponto de vista temático, o Pentateuco é essencialmente uma grande narrativa sobre a identidade de Israel como povo de YHWH (estas são as consoantes do nome hebraico de Deus. Como não sabemos ao certo a pronúncia, usarei esta forma nestes textos).
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Estruturalmente falando, o Pentateuco é bastante semelhante aos textos épicos da antiga Mesopotâmia e dos antigos cananeus. Tanto esses textos quanto o Pentateuco começam a narrativa com a criação do mundo, passam por um período em que havia grandes gigantes e grandes personagens que viviam centenas de anos e chegam, enfim, à narração das origens do povo – mesopotâmico ou judeu.
Consequentemente, nosso estudo do Pentateuco será baseado em três textos que se complementam. Este texto enfoca os principais temas presentes nas narrativas da Torá. No segundo, abordaremos os principais temas dos textos normativos. No terceiro, enfim, voltaremos nosso olhar para o conjunto da
Torá e examinaremos seu papel na constituição da identidade do povo de Deus. 1. Narrativas de origens No livro de Gênesis encontramos dois blocos de textos narrativos que abordam dois grandes temas: a origem do mundo e da civilização (caps. 1-11) que narram, de forma semelhante ao épico babilônico Enuma Elish (veja apêndice), o tempo entre a criação e a história de uma família; e a origem de Israel (Gn 12-50) que conta a história de três gerações de pais e mães de Israel (12-25 Abraão e Sara; 26-36 Isaque e Rebeca; e Jacó e Raquel/Lia 37-50). Quando lemos com atenção esses textos, percebemos que alguns episódios são narrados mais de uma vez. Por exemplo: (1) há duas narrativas da criação, uma em Gn 1,1-2,4ª (“Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados” é a parte a de 2,4; “No dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” é a parte b) e a outra em 2,4b-3,24; (2) duas vezes Abraão nega que Sara seja sua esposa (12,10-20 e 20,1-18), assim como uma vez Isaque nega que Rebeca seja sua esposa (26,1-12). Se prestarmos bastante atenção à narrativa sobre o Dilúvio (Gn 6-9), veremos que há textos com repetições internas. Por exemplo: (1) a introdução à narrativa em 6,1-12 oferece duas explicações para o dilúvio: a primeira (5-8) fala da “maldade” humana e usa o nome YHWH em referência a Deus; a segunda (9-12) é uma introdução à “história de Noé”, fala da “perversão” e da “violência” da humanidade e usa o termo Elohim para se referir a Deus; (2) Gênesis 9 pode ser subdividido em 1-17+28-29 e 1,18-27. Nos versículos 18-27 encontramos um relato centrado nos filhos de Noé que vêem a embriaguez de seu pai; em 1-17 e 28-29 o relato sobre a família de Noé é centrado no tema da aliança de Deus com Noé “e seus filhos” que não têm o nome sequer mencionado. Há pelo menos três maneiras de lidar com esse tipo de fenômeno, que é comum em toda a Torá e não só no livro de Gênesis. A primeira maneira pode ser chamada de ingênua, pois simplesmente não percebe a existência desses fenômenos e vê o texto como uma unidade simples, sem quaisquer tensões temáticas ou teológicas. A segunda é chamada de histórico-crítica e usa esse tipo de fenômeno para tentar descobrir as diferentes origens orais, tradições e fontes escritas usadas para a redação dos livros da Torá e foca a interpretação não na forma final dos livros, mas primariamente nas reconstruções hipotéticas dessas fontes. A terceira, que adoto aqui, pode ser chamada de literário- canônica a qual, percebendo os fenômenos acima descritos, busca entender os livros em sua forma final canônica, já demonstrando uma unidade teológica, mas não uma unidade simples, e sim uma unidade complexa, plural. Percebido este fenômeno, importa prestar atenção à mensagem de Gn 1-11. Este pequeno conjunto de onze capítulos, estrategicamente colocado no início da Bíblia, dá o tom para toda a teologia do Antigo Testamento. Os temas que se destacam são: (1) YHWH, o único Deus de Israel, é o criador de todo o mundo, e não se subordina a nenhum dos deuses cridos pelas nações antigas vizinhas de Israel. Como criador, o Deus de Israel é abençoador de toda a Sua criação sobre a qual ele colocou o ser humano como guardião e Seu representante (o sentido básico da expressão imagem e semelhança de Deus) (caps. 1-3); (2) apesar da bondade do Criador, o ser humano abençoado por Ele não foi fiel à sua vocação e permitiu que o pecado e a violência tomassem conta da vida humana pessoal, social,
cultural e religiosa (caps. 3-5); por isso, Deus quase destruiu toda a criação no dilúvio, mas, como demonstração de sua bondade e fidelidade, doou à criação uma segunda chance (caps. 6-9); (3) o ser humano continuou sua trajetória de infidelidade a Deus e de prática da violência contra o seu próximo, por isso Deus mais uma vez interferiu, dispersando a humanidade e confundindo as suas línguas – mas deixou uma família como responsável pelo anúncio da bênção divina (caps. 10-11).
2. Narrativas de opressão e libertação 2.1. Opressão e libertação do Egito (Êx 1-15) O segundo tipo de narrativas no Pentateuco são as que tratam da opressão e da libertação de Israel. Êxodo 1-15 (a única seção do Pentateuco que não tem uma narrativa paralela) descreve a opressão dos “filhos de Israel” no Egito, o seu clamor a YHWH, o chamado de Moisés e a saída do Egito sob a liderança de Moisés e a manifestação do poder de YHWH. Uma característica importante desse relato é a identificação dos “filhos de Israel” como hebreus. Esta palavra, que vem do aramaico hapiru, se referia a grupos de pessoas que não viviam sob o domínio das cidades-estado, sejam semi-nômades, sejam mercenários, sejam fugitivos. Quando se refere ao povo de Deus, o termo hebreu é usado quando se quer destacar a fragilidade, marginalização ou sofrimento do povo (I Sm 4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32; Dt 15:12; Jr 34:9). Somente no livro do Êxodo, em todo o Antigo Testamento, YHWH é chamado de Deus dos Hebreus (3:18; 5:3; 7:16; 9:1,13; 10:3), ou seja, o Deus que se identifica solidariamente com as vítimas da opressão. Javé, antes de ser Deus de uma etnia é o Deus de oprimidos, de marginalizados – sejam de que etnia forem (Is 19,24-26; Am 9,7; Rt; Jn; Gn 12,1-4).
Muito mais, porém, do que contar como foi a vida e a saída do Egito, a narrativa de Êxodo 1-15 tem como objetivo estabelecer a identidade de Israel e a sua relação com YHWH. Nesta bela narrativa, Israel é descrito como um povo pequeno e frágil, que sofre às mãos de nações poderosas, mas é auxiliado por seu Deus, que tem como característica principal ser um poderoso libertador. YHWH, o Deus de Israel, Deus dos hebreus, não é como os deuses dos povos vétero-orientais, que moram nos templos do rei ou do sacerdócio. YHWH mora em montanha, no Sinai, que está fora do território dos países poderosos do Antigo Oriente. Quando olhamos para a história de Israel contada na Bíblia, percebemos que na maior parte do tempo o povo de Deus foi dominado por impérios estrangeiros – Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia, Roma. Em contraposição aos reinos opressores humanos, Êx 1-15 anuncia o reinado de YHWH, deus libertador, que não se alia com os poderosos, mas com os humildes e contritos.
2.2. Travessia do deserto (Êx 15-18; Nm 10-36) Logo após a libertação do Egito, porém, o povo de Israel se vê em dificuldades e não consegue ser fiel ao seu Deus libertador. Êx 15-18 e Nm 10-36 são narrativas paralelas que intencionam apresentar os filhos de Israel como um povo desobediente ao seu Deus, saudoso da vida sob a opressão egípcia. O Deus de Israel é apresentado, em contrapartida, como um deus paciente, misericordioso, que não abandona seu povo mesmo quando esse povo não lhe é fiel: “Depois disse Moisés a Arão: Dize a toda a congregação dos filhos de Israel: Chegai-vos à presença do Senhor, porque ele ouviu as vossas murmurações. E quando Arão falou a toda a congregação dos filhos de Israel, estes olharam para o deserto, e eis que a glória do Senhor, apareceu na nuvem. Então o Senhor falou a Moisés, dizendo: Tenho ouvido as murmurações dos filhos de Israel; dize-lhes: é tardinha comereis carne, e pela manhã vos fartareis de pão; e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus” (Êx 16,9-12). O tempo da teimosia rebelde dos filhos de Israel no deserto é retratado como tempo de aprendizado. Note como no verso 12, acima, temos uma frase típica do livro de Ezequiel: “sabereis que eu sou YHWH, vosso Deus”.
Outro grande tema destas narrativas é a organização do povo de Deus. Em Êx 18 Moisés aprende com Jetro, seu sogro, como delegar tarefas e organizar o povo em grupos com líderes locais e regionais. Este era um elemento típico da mentalidade israelita (e vétero-oriental em geral): os tempos antigos serviam como modelo para a história e a vida do povo. Israel projetou para o passado anterior à vida na terra um modelo justo e equitativo de organização social – sem rei, mas sob liderança de YHWH, que dá instrução (Torá) a seu povo, através de Moisés, o grande profeta dos israelitas. Estes textos
nos ajudam a entender textos de Samuel e Reis que mostram, de forma ambígua, como a monarquia entrou na vida de Israel de modo contrário à vontade de YHWH (I Sm 8; 2 Sm 7; I Rs 12). Sendo o povo de um Deus libertador, Israel não pode se organizar de modo parecido com o modo de organização dos povos vizinhos, centrados no rei e na opressão dos camponeses e suas famílias. Enfim, estas narrativas da travessia do deserto também servem para ensinar ao povo de Israel como YHWH deu a sua Lei e como o povo teima em não obedecer à lei de seu Deus. O Sinai é o monte da morada de Deus e da revelação da Lei a Moisés. Fora da terra prometida, fora do território dos poderosos países do antigo Oriente, o Sinai indica a liberdade e a soberania de YHWH em relação a todos os povos e nações antigos. A história de Israel contada nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis é estruturada ao redor da soberania misericordiosa de YHWH e da rebelde teimosia do povo de Israel, que não consegue seguir a vontade do seu Deus libertador, mas volta sempre “às panelas do 2 Egito”.
2.3. Retrospectiva histórica (Dt 1-3) O último bloco de textos narrativos no Pentateuco se encontra em Deuteronômio 1-3. O livro do Deuteronômio é estilizado como um grande conjunto de pregações de Moisés e de coletânea das instruções (leis) de YHWH. Essa estrutura é similar a de antigos tratados entre nações orientais, especialmente tratados assírios. Esses tratados, chamados de tratados de vassalagem (subordinação), ou de suserania (soberania), serviam para estabelecer o modo do relacionamento entre um país poderoso e um país inferior, a fim de que o país poderoso não invadisse e conquistasse o inferior. Uma das seções desses tratados era uma espécie de retrospectiva histórica das relações entre os povos que assinavam o tratado. Os três primeiros capítulos de Deuteronômio são estilizados como esse tipo de retrospectiva histórica.
É uma retrospectiva relativamente breve. Trata apenas da história do povo de Israel no deserto, entre o êxodo e a entrada na terra prometida por YHWH. Na forma de um grande discurso de Moisés, estes capítulos não só mostram a ambiguidade do povo de Deus em relação à lei de YHWH mas,
principalmente, mostram como a revelação da Torá Torá ao seu povo é feita fora da terra, às portas da terra prometida. Neste sentido, sentido, Dt 1-3 reafirma a temática da liberdade e soberania de YHWH presente nas narrativas do deserto em Êxodo e Números. O texto, no capítulo 3, destaca que Moisés não pode entrar na terra (3,26-28) por causa do pecado do povo. Caberia a Josué, sucessor de Moisés, liderar o povo na entrada na terra, tema que é tratado no livro de Josué, o primeiro logo após o Deuteronômio. Antes de entrar na terra o povo é chamado a fazer f azer uma aliança com seu Deus YHWH, a fim de se submeter a Ele. “Chamou, pois, Moisés a todo o Israel, e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e preceitos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprir. cumprir. O Senhor nosso Deus fez um pacto conosco em Horebe. Não com nossos pais fez o Senhor esse pacto, mas conosco, sim, com todos nós que hoje estamos aqui vivos” (Dt 5,1-3). Este relato mostra que YHWH sempre se coloca diante de seu povo para ser seu soberano, enquanto o povo sempre tem dificuldade em seguir a YHWH. Os livros de Jeremias e Ezequiel, em especial, destacam esta ambiguidade e, cada um de seu jeito, propõe uma nova aliança aliança entre YHWH e seu povo. povo. A soberania de YHWH, porém, é radicalmente radicalmente distinta da soberania dos reis humanos e dos deuses não-israelitas. YHWH é libertador e abençoador, abençoador, não conquistador, conquistador, nem subordinado aos reis humanos. Introdução do AT - A relação entre os mitos …
Sugestões de leitura para aprofundamento
DE PURY, A., O Pentateuco em Questão. As Origens e a Composição dos Cinco Primeiros Livros da Bíblia à Luz das Pesquisas Recentes. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 89-164. SKA, J. L. Introdução à leitura do Pentateuco . São Paulo: Loyola, 2003. ZENGER, E. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 45-61.
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A forma Jeová, sabe-se hoje em dia, é um equívoco de leitura. Na língua hebraica as palavras são escritas sem as vogais; os escribas judeus que indicaram como o texto bíblico devia ser lido acrescentaram às consoantes YHWH as vogais da palavra Adonai (meu Senhor) – de modo que sempre que aparecesse YHWH o leitor falasse Adonai, a fim de não pronunciar o nome de Deus em vão. A forma Jeová deriva do não conhecimento dessa regra dos massoretas (escribas judeus responsáveis responsáveis pela transmissão do texto hebraico da Bíblia, cuja forma do século XI d.C. é usada como base para as traduções bíblicas atuais). 2
O conteúdo da Torá (instrução ou lei) de YHWH para seu povo é o tema do próximo texto para estudo nesta semana.
Aula 4 - Estrutura Discursiva da Torá - Normativos Estrutura Discursiva da Torá Torá Textos Textos Normativos Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução Na linguagem da igreja ou mesmo da academia teológica, costuma-se falar das leis do Pentateuco, ou dos seus textos legais, ou até mesmo se usa o título Código para descrever certos trechos do Pentateuco: Código da Aliança (Êx19-24), Código da Santidade (Lv 17-26), Código Deuteronômico (Dt 12-26). Esse costume, porém, dificulta a nossa compreensão desses textos. Por quê? * Quando chamamos esses textos de leis ou de códigos, pensamos neles como sendo equivalentes às leis e códigos de leis de nosso tempo. Para nós, as leis estabelecem os deveres e direitos dos cidadãos e regem a vida social. Se alguém quebra a lei deve ser punido por isso, e o Poder Judiciário é o responsável por aplicar a punição; * Enquanto leis, pensamos nesses textos como se fossem produto ou de uma determinação direta de Deus que deve ser aplicada em todo e qualquer lugar em todo e qualquer tempo – ou, ao contrário, pode-se pensar neles como sendo fruto da vontade humana, de modo que poderíamos selecionar as leis válidas e as leis revogadas; * O maior problema, porém, reside na confusão teológica que surge da conflitividade entre Lei e Graça na teologia cristã. “Lei” passa a ser entendida como as leis do Antigo Testamento, Testamento, superadas pela Graça de Deus, de modo que já não têm mais nenhuma validade para os cristãos.
Esses hábitos de compreensão dos textos normativos do Pentateuco são prejudiciais à interpretação dos mesmos. Precisamos, então, desenvolver novos conceitos e hábitos hermenêuticos a fim de compreender esses textos. Este será o tema da primeira seção deste texto.
1 - Uma nova hermenêutica dos textos normativos Os antigos judeus chamavam os seus textos normativos de torá. Esta palavra hebraica significa, em primeiro lugar, instrução, ensinamento. Quando a torá vem de Deus, ela é um ensinamento com autoridade, cumpre uma função normativa. Uma norma não é a mesma coisa que uma lei, embora ambas sejam muito parecidas. Todas as leis são normas, mas nem todas as normas são leis. Lei é um tipo de norma que, estabelecida pelo Estado, deve ser obedecida por todos os cidadãos desse Estado, sob pena de punição. Lei é, em sentido mais amplo, o conjunto de leis que definem a identidade político-jurídica de um país, e que encontra na Constituição a sua expressão máxima. As normas são guias para a conduta e os relacionamentos humanos, e a maioria delas não está escrita, nem faz parte de um conjunto de leis de uma nação ou Estado. Normas, nesse sentido mais genérico, são um componente da cultura de um povo, enquanto leis são um componente da estrutura política de um país. A torá (no plural hebraico: torôth) no Pentateuco é da natureza das normas e não das leis! Ou seja, as toroth que encontramos no Pentateuco não foram estabelecidas pelo Estado para servir de base para o julgamento das pessoas pessoas e instituições instituições sociais. Quando corriam crimes, por exemplo, exemplo, não havia um sistema de tribunais, semelhante semelhante ao nosso, nos quais quais os criminosos criminosos eram julgados. Os crimes eram julgados por “leigos”, por pessoas importantes de uma vila ou cidade, que se reuniam apenas quando necessário e tomavam suas decisões com base nos hábitos culturais – ou, nas normas daquela vila ou cidade. Casos que não conseguiam ser resolvidos no ambiente local eram enviados para o Templo ou para o Palácio, a fim de que os sacerdotes ou o rei tomassem tomassem a decisão de acordo com a instrução (torá) (torá) de Deus. O relato de I Rs 3,16-28 (quando Salomão ameaça dividir uma criança ao meio) é um exemplo da sabedoria superior do rei para lidar com situações difíceis – note que o rei não usa nenhum “código legal” para basear a sua decisão. As coleções de normas no Pentateuco, embora muito parecidas com códigos legais cumpriam, de fato, outras funções: (a) serviam como coleções de ensinamento para os líderes políticos políticos e religiosos do povo povo de Israel; Israel; (b) serviam como textos didáticos para escribas escribas e outros funcionários funcionários do Templo Templo e do Palácio; Palácio;
(c) serviam para demonstrar a grandeza do Deus de Israel que não era como os outros deuses dos povos antigos; (d) sua função mais importante, porém, era a de – juntamente com os textos narrativos do Pentateuco – definir a identidade do povo de Israel a partir da sua compreensão da ação e da vontade de Deus expressas na aliança entre Ele e Seu povo.
Precisamos, então, compreender os textos normativos como instrução, ensino ou teologia, e não mais como leis. São normas culturais-teológicas que visam instruir o povo de Deus à prática da fidelidade à aliança entre YHWH e Seu povo. Como os textos normativos fazem parte da narrativa do Pentateuco sobre a identidade de Israel, eles não são lei no sentido do debate teológico-eclesiástico, mas expressão da graça de Deus. Em outras palavras, Israel não se tornaria povo de Deus se cumprisse as leis; Israel se tornou povo de Deus pela graça libertadora de Deus no êxodo e na promessa da Terra. As normas divinas vieram depois da libertação divina. Repare bem nos seguintes textos bíblicos:
Antes da lista de normas (v. 3-17) para a vida do povo de Deus, vem a declaração da graça – “que te fez sair”. Note, ainda, como, no verso 1, o texto define o que nós, erradamente, chamamos de “Dez Mandamentos” – “todas estas palavras” – deveríamos, então, chamar este famosos texto de Decálogo (Dez Palavras) e não de dez mandamentos, posto que, embora tenham força normativa, não são leis, mas a instrução de Deus para nós que cremos nEle.
Note o primeiro verbo do texto: ensinei ! Os estatutos e normas da Torá são o ensinamento de Moisés ao povo de Israel. A finalidade do ensino é que o povo de Deus, após entrar na terra prometida: (a) mantenha a posse dela, (b) seja reconhecido como um povo sábio e inteligente, (c) cujo Deus é um Deus próximo, amigo do povo, o Deus da aliança. Mais uma vez temos a sequência: graça libertadora de Deus – promessa – ensino – prática do que foi ensinado. Para resumir e encerrar esta seção: os textos normativos do Pentateuco devem ser estudados e compreendidos como ensino de Deus para nós, não podem ser separados de seu contexto narrativo, não devem ser lidos como Lei em contraste com a Graça. As normas vétero-testamentárias são normas da graça, são expressão da fidelidade de Deus em relação ao seu povo e da fidelidade que Deus deseja que seu povo tenha para com Ele.
2 - Um exemplo de interpretação (Dt 14,22-29)
Empenha-te 23 em dar o dízimo de todos os frutos de tuas sementes, que saem do campo ano após ano. Comê-lo-ás diante de Javé, teu Deus, no lugar que Ele escolher para moradia de seu nome: o dízimo de teus cereais, de teu mosto, de teu azeite, e os primogênitos de teu gado 26 e de teu rebanho, a fim de que aprendas a temer Javé, teu Deus, todos 27 os teus dias. [...] E lá comerás, diante de Javé teu Deus, e te alegrarás, tu e tua casa, e o levita que mora em tua cidade, porque ele não tem porção nem herança em teu meio. 28 Ao final de três 29 anos tu trarás todo o dízimo de tuas colheitas nesse ano, e guardá-lo-ás em tua cidade, e virão o levita, que não tem porção nem herança teu meio, o imigrante, o órfão e a viúva - que vivem em tua cidade - e comerão e ficarão saciados, a fim de que te abençoe Javé, teu Deus, em toda obra de tuas mãos, que fizeres.
Vejamos, então, na prática, como podemos compreender um texto normativo a partir dessa nova hermenêutica. Escolhi uma das normas mais interessantes do Deuteronômio, a que trata do dízimo (Dt 14,22-29). Por uma questão de economia de espaço, deixarei de fora da discussão os versos 24-26a, o que nos permitirá prestar mais atenção aos demais versículos. A norma tem duas partes: a primeira se refere ao dízimo anual (22-27), a segunda ao dízimo trienal (2829). O dízimo que a norma pede ao israelita que se empenhe em praticar é o dos frutos da colheita, incluindo o vinho e o azeite, que seria ofertado juntamente com os primogênitos do gado (bovino) e do rebanho (ovino e caprino). O dízimo anual deveria ser levado ao lugar escolhido por Deus para ser adorado e, nesse lugar, deveria ser comido pelo ofertante, sua família e empregados ou escravos e pelos levitas da cidade do ofertante. Em relação ao levita, ele deveria ser incluído na festa das famílias porque ele não poderia dar o dízimo ao Senhor, pois não possuía terra ( herança é o termo teológico do Antigo Testamento para a propriedade de uma família – presente de Deus que não poderia ser dado nem vendido a outras pessoas). Repare que interessante: o dízimo é para ser comido festivamente, no culto de gratidão a Deus pela colheita, e não para ser entregue aos sacerdotes para o sustento deles (conforme pedia a norma em Levítico!).
E mais, a norma pede o dízimo anual com uma intenção didática: “a fim de que aprendas a temer Javé, teu Deus, todos os teus dias”. Que é temer a Deus? É reconhecer que Ele é o Senhor de nossa vida, de nossos bens, de nossa família, de nosso presente e de nosso futuro. É reconhecer que em Deus encontramos a fonte da sabedoria, da inteligência, da capacidade para o trabalho, etc. Assim, entregar o dízimo é uma forma de aprendizado. Ofertamos o dízimo a fim de não nos esquecermos de que tudo o que temos vem das mãos do Senhor. E o dízimo trienal? O dízimo trienal era para ser estocado nas cidades a fim de servir de alimento para os “sem-terra”: levitas, órfãos, viúvas, imigrantes (provavelmente fugitivos do reino do norte que foram morar no reino do Sul após a destruição de Samaria). O dízimo anual é gratidão, o trienal é solidariedade. Quem ama a Deus, ama ao próximo! Note o detalhe final do texto: “a fim de que te abençoe Javé, teu Deus, em toda obra de tuas mãos, que fizeres”. Somos gratos a Deus pelas bênçãos que recebemos, de modo que damos o dízimo dessas bênçãos para aprendermos a temer ao Senhor. Como tementes a Deus, somos solidários com os necessitados, e repartimos com ele nossas bênçãos. Quando assim fazemos, Deus renova a bênção sobre nosso trabalho! Quando acumulamos de forma egoísta a bênção divina, não repartindo com o próximo, transformamos a bênção em pecado!
Conclusão Propositadamente escolhi o texto deuteronômico sobre o dízimo. É um texto pouco conhecido sobre um tema muito discutido nas igrejas. Certamente você terá ficado interessado nas diferenças entre a norma deuteronômica do dízimo e a norma em Levítico e Malaquias. A presença de diferenças desse tipo é comum nas coleções de normas no Pentateuco e revela as diferentes interpretações que o povo de Deus fez do ensino de Deus sobre a fidelidade à Aliança. Caso você deseje estudar mais a fundo as coleções de normas do Pentateuco, você encontrará bastante material para sua edificação e para seu crescimento em sabedoria e discernimento.
Sugestões de leitura para aprofundamento
CRÜSEMANN, F. A Torá. Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2002, especialmente capítulos 3-7. DE PURY, A., O Pentateuco em Questão. As Origens e a Composição dos Cinco Primeiros Livros da Bíblia à Luz das Pesquisas Recentes. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 183-239. SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.
110- 118. SKA, J. L. Introdução à leitura do Pentateuco . São Paulo: Loyola, 2003.
Aula 5 - Estrutura Discursiva da Torá - Identidade Estrutura Discursiva da Torá A Identidade do Povo de Deus Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução Nossa atenção neste texto será dirigida ao papel da Torá na formação da identidade cultural-religiosa do povo de Israel no período do Segundo Templo (ou seja, a partir da reconstrução do Templo sob a dominação persa), especialmente a partir do trabalho de Esdras e Neemias. Em Ne 8,1-18 se descreve uma cerimônia de leitura e interpretação da Torá para os judeus no período do Segundo Templo, na semana da Festa do Ano Novo. Destaco os seguintes trechos: “Então o sacerdote Esdras trouxe a Torá diante da assembleia, que se compunha de homens, mulheres e de todos os que tinham o uso da razão. Era o primeiro dia do sétimo mês. Na praça situada diante da porta das águas ele leu o livro desde a aurora até o meio- dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão: todo o povo ouvia atentamente a leitura do livro da Torá. (2-3) [...] E Esdras leu no livro da Torá 1 de Deus, traduzindo e dando o sentido: assim podia-se compreender a leitura. (8) [...] Cada dia Esdras fez uma leitura do livro da Torá de Deus, do primeiro ao último. Durante sete dias celebrou-se a festa; no oitavo houve, como estava prescrito, uma reunião solene. (18)”. Esse relato é normalmente entendido como expressão da origem do uso da Torá como texto fundamental para a identidade do povo de Deus. Em outras palavras, nasce o Judaísmo como “religião do Livro”, ou seja, como uma fé cuja natureza e desenvolvimento dependem de que cada praticante conheça e pratique a instrução escrita canônica. A adoção de um cânon possibilita uma pluralidade interna da comunidade de fé, na medida em que o texto escrito é passível de ser interpretado de modos diferentes. No caso da Torá, não só é possível a pluralidade interpretativa, mas o próprio arranjo e a organização da Torá apresentam distintas ênfases teológicas que exigem a pluralidade de interpretações. A Torá, enquanto cânon, não propõe uma forma monolítica de religião, mas uma forma internamente plural e criativa. A seguir, estudaremos duas das grandes ênfases temático- teológicas da Torá – a sacerdotal e a deuteronômica – na medida em que essas duas teologias estão na base da identidade judaica que se desenvolve até o período dos inícios do Cristianismo. Há outras tradições teológicas no Pentateuco, mas o foco sobre estas duas nos permite analisar nos Profetas e Escritos outras formas de construção da identidade do povo de Israel.
1. A teologia sacerdotal na Torá Por teologia sacerdotal entende-se, na tradição acadêmica de estudos bíblicos, o conjunto de temas e textos do Pentateuco que giram ao redor dos conceitos de santidade, sacrifício e sacerdócio como mediação entre o povo e Deus. O livro de Levítico é a parte do Pentateuco que expressa com mais profundidade a teologia sacerdotal, embora essa teologia seja encontrada também em trechos de Gênesis, Êxodo e Números. Dentre os vários temas importantes da teologia sacerdotal, nosso foco de estudo neste texto recairá sobre o conceito de santidade. Preste bastante atenção ao seguinte texto, fundamental para a compreensão da santidade na teologia sacerdotal:
A santidade do povo de Deus depende da santidade de Deus. YHWH é um Deus santo e seu povo, necessariamente, precisa ser santo. Em que consiste a santidade de YHWH? Em primeiro lugar, santidade significa a peculiaridade de YHWH – Ele é um deus diferente de todos os demais deuses – por isso, Israel é convocado a não ter nenhum outro deus diante de YHWH. Como conseqüência de Sua peculiaridade, YHWH é um deus exaltado acima dos demais deuses, Ele está acima de todos os poderes, humanos ou sobre-humanos que tenham existido ou que possam existir. Em terceiro lugar, por ser santo, YHWH é um Deus exigente – não aceita ser profanado por nada nem por ninguém – a sua santidade é inviolável. Em quarto lugar, YHWH, o santo, santifica o seu povo – oferece a seu povo uma participação na Sua santidade. Enfim, sendo peculiar e exaltado acima de todos os poderes, YHWH é um deus transcendente – Ele não sofre as limitações das coisas criadas -, mas na Sua transcendência Ele se aproxima do Seu povo e vive em seu meio.
O Deus Santo de Israel se aproxima do seu povo mediante o ato de libertação. Como já vimos, na Torá a graça de Deus é anterior à exigência divina. Note a seqüência do pensamento em Lv 11,44-45: no verso 44, primeiro vem a afirmação de que YHWH é o Deus de Israel; a seguir, a afirmação de que Ele santificou Israel e, enfim, a exigência de
que Israel não se torne impuro. A seqüência é repetida no verso 45: YHWH libertou Israel do Egito, por isso, exige de seu povo que seja santo como Ele mesmo é santo. Mediante a ação libertadora, YHWH realiza uma aliança com o povo liberto, fazendo-se Seu Deus e tornando aquele povo o Seu povo. O agir de Deus torna mais concreta a nossa compreensão da peculiaridade de YHWH: Ele é diferente de todos os demais deuses, porque somente Ele é um deus libertador, um deus que socorre o necessitado e oprimido.
Por fim, podemos descrever a exigência de santidade a partir do caráter e do agir de YHWH. O povo de YHWH deve manifestar, em sua vida cotidiana, a santidade de Deus. Sendo o Santo um deus libertador, o seu povo precisa ser um povo que vive em liberdade. Povo livre é aquele que não se deixa escravizar pelas seduções do egoísmo, do dinheiro e do poder. Povo livre é povo que pratica a solidariedade, socorrendo o necessitado e o oprimido. Povo santo e livre é povo que, recusando-se a ser igual aos demais povos e pessoas, não se afasta deles, mas se aproxima para oferecer a palavra da santidade libertadora do seu Deus. Quando o povo de Deus se comporta de maneira egoísta, indiferente ao próximo e idólatra (seguindo deuses feitos por mãos humanas), o nome de Deus é profanado, a santidade de Deus é turvada e pessoas e povos que não O conhecem perdem a chance de conhecê-Lo. A exigência de santidade é, assim, exigência de testemunho ao mundo. No livro do Êxodo a presença da teologia sacerdotal da santidade é intensa na seguinte descrição da identidade do povo de YHWH: “Vós mesmos vistes o que fiz aos egípcios, e como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êx 19,4-6). É essa identidade missionária que a igreja cristã, novo Israel, assume e dá novo significado. Identidade descrita por Pedro ao interpretar este texto do Êxodo: “Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia” (1 Pd 2,9-10). O Novo Testamento não nega a Torá, a reinterpreta a partir do ministério e dos ensinamentos do Messias Jesus, aquele que cumpriu plenamente a Torá – “pois o fim da Torá é o Messias, para a justificação de todo aquele que crê” (Rm 10,4).
2. A teologia deuteronômica na Torá A teologia sacerdotal na Torá apresenta sua ênfase principal no conceito de santidade. Já a teologia deuteronômica tem como seu conceito central o de fidelidade a YHWH. Como o próprio nome indica, a teologia deuteronômica é a que se encontra no livro do Deuteronômio – mas está presente também em Gênesis e Êxodo. Duas são as principais diferenças em relação à teologia sacerdotal: (a) a teologia deuteronômica dá pouca atenção aos rituais sacrificiais e ao papel do sacerdócio (não há nada em Deuteronômio parecido com Levítico 1-10, que descreve detalhadamente rituais e normas para o sacerdócio); e (b) também dá pouca atenção à regulamentação da pureza e impureza, enfatizando mais a prática da Torá do que a manutenção da pureza pessoal e comunitária. Não há diferença, porém, na compreensão da santidade de Deus e da seqüência graça-exigência. O povo de YHWH deve ser fiel porque YHWH é fiel e manifestou sua fidelidade ao libertar os filhos de Israel do Egito. A exigência divina visa o bem-estar do seu povo. Entretanto, a teologia deuteronômica dá grande ênfase à exclusividade de YHWH e descreve a relação da aliança entre YHWH e Israel como uma relação de amor fiel. Vamos dedicar atenção a um texto que é fundamental até hoje para a identidade israelita, conhecido como Xemá (Ouve):
No primeiro verso do texto encontramos a afirmação fundamental da fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da exclusividade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham existido ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH – somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular , no sentido de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no pensamento véterooriental, os deuses tinham funções especializadas, por isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças, etc.). Como Deus pluralmente singular, YHWH é suficiente, Israel não necessita de nenhum outro Deus para atender as suas necessidades – ou seja, YHWH não é um deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e não são 2 capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão da sua crença na exclusividade e singularidade de YHWH. Por outro lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel. Consequentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus, é convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A escolha do verbo amar no livro do Deuteronômio tem significado muito especial. O livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados internacionais assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco que se associava ao rei de um país mais for te assumia o compromisso de amar o rei mais poderoso. Semelhantemente, os juramentos assírios feitos por oficiais que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a mesma exigência: o oficial do rei se comprometia a amar ao rei. Assim, ao convocar Israel a amar a YHWH, o Deuteronômio não só destaca a relação de aliança entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o único rei de Israel, o único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único rei a quem deveria servir. A repetição da palavra todo(a)
e a soma dos termos coração, alma e força indicam que o compromisso de Israel com YHWH deveria ser integral. Assim como YHWH é um, o povo de Israel deveria ser unido em um único propósito: ser fiel a YHWH. O coração do israelita não poderia se dividir entre seu Deus e outros deuses, entre YHWH 3 e outras lealdades. Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam ocupar o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas de geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em relação à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza, mantidas através da participação na vida litúrgica no Templo, a teologia deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do povo de Deus são convocadas à meditação, estudo e prática da Torá de YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularidade e exclusividade de YHWH a todos os povos.
Conclusão Finalizamos, com este texto, nosso passeio panorâmico pelo Pentateuco. Pudemos apenas vislumbrar algumas de suas riquezas e perceber parte da sua importância para o povo de Deus. Fica o convite a você para ler e meditar nas palavras e instrução de YHWH, pai de nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que cresçamos no conhecimento de Deus e sejamos capazes de enfrentar os ídolos da sociedade contemporânea: o individualismo, o consumismo, a indiferença para com o próximo, etc. Jesus ensinou que o cumprimento da Torá se resumia a dois mandamentos: amar a Deus de todo coração, alma, mente e forças (citando Deuteronômio) e amar ao próximo como a si mesmo (citando Levítico). Essa é a identidade messiânica do novo Israel: amor integral a Deus para podermos servir amorosa e integralmente ao próximo, alcançando também a nossa realização pessoal.
Introdução do Antigo Testamento - A lei divi…
Sugestões de leitura para aprofundamento
CRÜSEMANN, F. A Torá. Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2002, capítulo 8. DE PURY, A., O Pentateuco em Questão. As Origens e a Composição dos Cinco Primeiros Livros da Bíblia à Luz das Pesquisas Recentes. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 273-294. ZENGER, E. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 45-61.
1
No período do Segundo Templo os judeus já falavam aramaico, de modo que o texto hebraico da Torá precisava ser traduzido. 2
Termo técnico que nomeia o fato de os judeus não fazerem imagens de seu Deus, seguindo a exortação do Decálogo. Vem da língua grega: ícone=imagem; a=sem. 3
A teologia sacerdotal e a deuteronômica, na época de Jesus Cristo, eram assumidas e reinterpretadas por saduceus e fariseus, respectivamente. O Senhor Jesus, em sua pregação, instaurou a novidade teológica: quem segue o Messias, mediante a fé, é santificado por Deus, compromete-se a ser leal a Deus, e a participar da missão messiânica – por isso os discípulos de Jesus são enviados ao mundo.
Aula 6 - Estrutura Discursiva dos Profetas Anteriores Estrutura Discursiva dos Profetas Anteriores
Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução “Profetas Anteriores” é a designação do cânon hebraico para os livros de Josué, Juízes, I e II Samuel & I e II Reis. Por causa da influência da Septuaginta, as traduções para línguas ocidentais costumam agrupar estes livros juntamente com Esdras, Neemias & I e II Crônicas (lembre-se de que estes livros, no cânon hebraico, estão na seção Escritos) e chamá-los de históricos. Nomear estes livros como históricos cria um problema hermenêutico, na medida em que quando os lemos já pensamos neles como se fossem livros de história do tipo que usamos hoje em dia – ou seja, livros que contam fatos, acontecimentos, situações, em ordem cronológica e com alguma exatidão e provas cientificamente elaboradas. O nome dado pelos antigos judeus é muito mais apropriado. Os Profetas Anteriores não são livros de história, mas livros teológicos ou proféticos. Foram escritos com uma finalidade profética, ou seja, com vistas a entender porque os reinos de Israel e Judá se dividiram, porque o reino de Israel chegou ao fim sob os assírios e, em especial, porque o reino de Judá foi derrotado pelos babilônios, que destruíram o Templo e retiraram a dinastia davídica do trono. Embora eles tenham a aparência de livros de história, são, de fato, narrativas proféticas. Em outras palavras, esses livros não estão preocupados em descrever como as coisas aconteceram, mas em apresentar um ponto de vista teológico-profético sobre a vida do povo de Israel. Em síntese, os livros mostram que Israel iniciou sua existência como nação graças à ação de YHWH e teve sua existência nacional rompida graças, novamente, à ação de YHWH. A ação de YHWH, no início, foi libertadora e abençoadora. No fim, foi judicial e abençoadora – possibilitando um novo começo. Vamos, então, à análise da estrutura e conteúdo desses importantes livros proféticos do Antigo Testamento.
1. A estruturação narrativa dos Profetas Anteriores A sequência narrativa dos Profetas Anteriores é a seguinte: (1) a entrada dos israelitas na Terra Prometida, sob a liderança de Josué, recebendo de YHWH a bênção; (2) a vida dos israelitas na Terra Prometida, sem um governo central, enfrentando a ameaça de cananeus e filisteus, bem como problemas de unidade interna das tribos (livro de Juízes); (3) a transição da vida tribal para a monarquia, nos livros de Samuel; e (4) a vida de Israel sob o governo monárquico, do reino unido à destruição do reino de Judá, passando pela separação dos reinos do norte e do sul e pela destruição do reino do norte – nos livros dos Reis. A narrativa inicia com Israel fora da terra e conclui com Israel expulso da terra, o que sugere aos leitores desses livros que a temática da Terra Prometida é fundamental para o entendimento dos mesmos.
a. Israel, após a peregrinação pelo deserto, tem em Josué um líder segundo a vontade de Deus, que conduz o povo à entrada na Terra. Deus abençoa os israelitas e estes conseguem ocupar a maior parte da Terra prometida, embora ainda tenham cidades cananéias e filistéias para enfrentar (caps. 1-12). Nos capítulos 13-24 a distribuição das terras às tribos de Israel ocupa o cenário. O último capítulo do livro, antes da notícia da morte de Josué, tem um discurso colocado na boca desse líder, que conclama todos os israelitas a serem fiéis a YHWH e a adorá-Lo com exclusividade – “Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com integridade e fidelidade; lançai fora os deuses aos quais serviram os vossos pais do outro lado do Rio e no Egito, e servi ao Senhor. Porém, se não vos parece bem servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses aos quais serviram vossos pais do outro lado do Rio, ou aos deuses dos amorreus em cuja terra agora habitais. Quanto a mim e à minha casa, serviremos ao Senhor” (Js 24,14-15). A tentação da idolatria paira sobre Israel e, com ela, a ameaça de perder a terra;
b. O livro dos Juízes retoma a narrativa a partir do capítulo 12 de Josué e alista as cidades não conquistadas pelos israelitas, apontando para a permanência de conflitos na Terra prometida. Os três primeiros capítulos de Juízes introduzem o tema do livro: a tentação da idolatria e o juízo restaurador de YHWH; seguem narrativas de apostasia de Israel e restauração com juízes, até o capítulo 16. O livro se encerra com os capítulos 17 a 21 relatando conflitos internos das tribos, mostrando que a tentação da idolatria era muito forte e que o desejo de cumprir a aliança com o Senhor, embora forte, enfrentava adversários internos. Nestes capítulos finais ressoa um refrão: “naqueles dias não havia rei em Israel, cada um fazia o que lhe convinha” (17,6; 18,1; 19,1; 21,25) – preparando o terreno para os livros de Samuel, que narra a transição para a monarquia. O risco de tomar o juízo do refrão como um juízo universal é grande – a monarquia poderia ser melhor do que o tribalismo, mas ela também teria seus problemas sérios. Juízes, em contraste com Josué, destaca a dificuldade em cumprir as promessas feitas a Deus. A fidelidade à aliança com o Senhor é permanentemente testada;
C. Os livros de Samuel são estruturados em quatro grandes seções, emolduradas por dois cânticos de gratidão ao Senhor, o cântico de Ana (I Sm 2,1-10) e o cântico de Davi (II Sm 22,1-51, parcialmente repetido como Salmo 18). Em I Sm 1-15, a transição do governo de Samuel como juiz para o de Saul como rei é apresentada a partir da infidelidade dos filhos de Samuel e da ameaça dos filisteus; em I Sm 16 – II Sm 5 é narrada a ascensão de Davi ao trono de Judá e Israel, em substituição ao infiel Saul; em II Sm 6-20 trata-se da atividade de Davi como rei e sua futura sucessão. O livro conclui, nos caps. 21-24, com estórias e cânticos sem uma conexão aparente, mas que fazem a transição para os livros dos Reis. Mais uma vez, a questão da promessa da terra e da fidelidade do povo é retomada, desta vez com foco na fidelidade dos líderes do povo de Deus;
d. Por fim, os livros de Reis fazem uma interpretação teológico- profética da vida de Israel sob o governo de reis. Em I Rs 1-11 a sucessão de Davi por Salomão é retomada, juntamente com a descrição do governo do rei mais sábio de Israel, que não foi capaz, porém, de permanecer fiel ao Senhor, caindo na idolatria e na injustiça social. Em I Rs 12 temos o relato da divisão dos reinos de Israel (tribos do norte) e Judá (tribos do sul), motivada pela opressão real, mediante o excesso de
tributos. De I Rs 13 a II Rs 17 são relatados os atos de reis de Israel e Judá, sempre julgados pela fidelidade ao Senhor, até a tomada do reino de Israel pelos assírios (II Rs 17), como juízo divino contra a infidelidade e idolatria. De II Rs 18-25 temos o relato dos últimos anos do reino de Judá, cujos reis também foram incapazes de se manterem fiéis a YHWH. A destruição de Jerusalém, do Templo e o fim da família de Davi no trono são o juízo de Deus, mas o término do livro de Reis oferece uma esperança, pequena, mas uma esperança na restauração de Israel como povo santo sob uma liderança fiel à aliança de YHWH.
2. A estruturação discursiva dos Profetas Anteriores Por estruturação discursiva entendemos o arranjo temático dos livros, que nem sempre segue a estruturação narrativa. No caso dos Profetas Anteriores, os temas (discursos) principais atravessam a estruturação narrativa e dão unidade teológica aos livros. Esses temas são: (a) a fidelidade de YHWH à Sua aliança com os filhos de Israel; (b) a exigência de adoração exclusiva a YHWH e de justiça social como cumprimento da aliança com o Senhor por parte de Israel; (c) a infidelidade de Israel à YHWH e sua aliança, resultando no juízo de Deus contra Seu povo. Vejamos dois desses temas com um pouco de detalhes.
A. YHWH é Deus Fiel Em Josué 23,14-16 encontramos algumas das últimas palavras de Josué aos filhos de Israel. Neste texto encontramos uma clara e concreta afirmação da fidelidade de YHWH à Sua aliança com Israel: “Eis que vou hoje pelo caminho de toda a terra; e vós sabeis em vossos corações e em vossas almas que não tem falhado uma só palavra de todas as boas coisas que a vosso respeito falou o Senhor vosso Deus; nenhuma delas falhou, mas todas se cumpriram . E assim como vos sobrevieram todas estas boas coisas de que o Senhor vosso Deus vos falou , assim trará o Senhor sobre vós todas aquelas más coisas, até vos destruir de sobre esta boa terra que ele vos deu . Quando transgredirdes o pacto do Senhor vosso
Deus, que ele vos ordenou, e fordes servir a outros deuses, inclinando-vos a eles, a ira do Senhor se acenderá contra vós, e depressa perecereis de sobre a boa terra que ele vos deu”. YHWH é fiel porque Ele cumpre o que promete, Ele não mente, Ele mantém o relacionamento de aliança com Israel desde a época dos patriarcas. Como Deus fiel, porém, YHWH também exige fidelidade de seu povo e, assim como abençoa, Ele também julga e pode retirar dos infiéis a bênção que havia dado.
Em outras palavras, a fidelidade de YHWH, na teologia dos Profetas Anteriores, é descrita a partir da noção de aliança – o Senhor tem um acordo com Seu povo. Ele cumpre plenamente a sua parte do acordo que consiste não só em abençoar, mas também em orientar e julgar a vida do povo. Em II Sm 7, 12-15 - na profecia de Natã a Davi, a fidelidade pactual de YHWH é reafirmada: “Quando teus dias forem completos, e vieres a dormir com teus pais, então farei levantar depois de ti um dentre a tua descendência, que sair das tuas entranhas, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei pai, e ele me será filho. E, se vier a transgredir, castigá-lo-ei com vara de homens, e com açoites de filhos de homens; mas não retirarei dele a minha benignidade como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti ”. Aqui a aliança é feita com a
casa de Davi, e mantém a mesma exigência de fidelidade a YHAH da parte do rei e de seus descendentes. Por isso, II Rs termina afirmando o perdão do rei da Babilônia a Jeconias, descendente de Davi, como sinal de esperança para a restauração do reino de Judá (II Rs 25,27-29).
B. YHWH é Deus Zeloso Além de fiel, YHWH é um Deus zeloso. Os textos que vimos acima mostram que a relação de aliança é uma relação bilateral – cada parceiro deve cumprir sua parte, a fim de que a aliança não seja rompida. YHWH, além de abençoar, também vigia sobre Seu povo e seus líderes para que a aliança seja cumprida. Dois tipos de infidelidade são destacados nos Profetas Anteriores – a idolatria e a opressão. Em I Rs 11, 30-38 encontramos o relato profético da separação do reino de Israel do reino de Judá, como expressão do zelo de Deus: “E sucedeu naquele tempo que, saindo Jeroboão de Jerusalém, o
profeta Aías, o silonita, o encontrou no caminho; este se tinha vestido duma capa nova; e os dois estavam sós no campo. Então Aías pegou na capa nova que tinha sobre si, e a rasgou em doze pedaços. E disse a Jeroboão: Toma estes dez pedaços para ti, porque assim diz e Senhor Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino da mão de Salomão, e a ti darei dez tribos. Ele, porém, terá uma tribo, por amor de Davi, meu servo, e por amor de Jerusalém, a cidade que escolhi dentre todas as tribos de Israel. Porque me deixaram, e se encurvaram a Astarote, deusa dos sidônios, a Quemés, deus dos moabitas, e a Milcom, deus dos amonitas; e não andaram pelos meus caminhos, para fazerem o que parece reto aos meus olhos, e para guardarem os meus estatutos e os meus preceitos, como o fez Davi, seu pai. Todavia não tomarei da sua mão o reino todo; mas deixá-lo-ei governar por todos os dias da sua vida, por amor de Davi, meu servo, a quem escolhi, o qual guardou os meus mandamentos e os meus estatutos. Mas da mão de seu filho tomarei e reino e to darei a ti, isto é, as dez tribos. Todavia a seu filho darei uma tribo, para que Davi, meu servo, sempre tenha uma lâmpada diante de mim em Jerusalém, a cidade que escolhi para ali pôr o meu nome. Então te tomarei, e reinarás sobre tudo o que desejar a tua alma, e serás rei sobre Israel. E há de ser que, se ouvires tudo o que eu te ordenar, e andares pelos meus caminhos, e fizeres o que é reto aos meus olhos, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos, como o fez Davi, meu servo, eu serei contigo, e te edificarei uma casa firme, como o fiz para Davi, e te darei Israel.” Salomão foi idólatra e injusto, assim também Roboão seu sucessor, por isso, o Senhor dividiu o reino e entregou Israel a Jeroboão, como expressão de seu zelo justo contra o pecado do rei.
Este texto de I Reis serve como padrão para entendermos o zelo de YHWH: o Senhor cumpre fielmente o que promete, mas exige também fidelidade dos seus seguidores. Quem não é fiel a YHWH, é deixado por Deus à sua própria sorte – quem quer andar sozinho, andará sozinho! Não se trata de um mero “castigo”, mas, sim, do rompimento de uma relação pessoal. Como disse Jesus, bem mais tarde, “quem crê no Filho tem a vida eterna, quem se recusa a crer no Filho não verá a vida, pelo contrário, a
ira de Deus permanece sobre ele” (Jo 3,36). A infidelidade a YHWH nos separa dele e, separados dele, trazemos sobre nós mesmos o juízo divino. Apesar de nossa infidelidade, porém, o Senhor permanece fiel a Si mesmo e à sua aliança libertadora e abençoadora. O caminho da esperança está sempre aberto a quem O busca fielmente.
Sugestões de leitura para aprofundamento
GERSTENBERGER, Erhard. Teologias no Antigo Testamento. Pluralidade e sincretismo da fé em Deus no Antigo Testamento. São Leopoldo: CEBI, Sinodal & EST, 2007, p. 196-248. ZENGER, Erich. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 159- 210.
Aula 7 - Estrutura Discursiva dos Profetas Posteriores Estrutura Discursiva dos Profetas Posteriores (Parte 1) Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução No texto anterior examinamos um conjunto de livros que possui unidade narrativa e pluralidade temática. Neste texto o nosso foco recairá sobre um conjunto de livros que apresenta grande pluralidade temática, mas não possui unidade narrativa – os livros proféticos. No cânon hebraico esse conjunto de livros é conhecido como Profetas Posteriores (porque vêem depois dos Anteriores) e é composto por quatro livros: Isaías, Jeremias, Ezequiel (conhecidos por nós como Profetas Maiores, por causa do tamanho dos livros, e não por causa de sua qualidade) e Os Doze (nas Bíblias impressas os chamados Profetas Menores são divididos em doze livros, enquanto nos pergaminhos antigos eles formavam um só livro). Assim, no cânon hebraico, a seção Profetas é composta por oito livros – os quatro Profetas Anteriores (Josué, Juízes, Samuel e Reis) e os quatro Profetas Posteriores. Nas Bíblias impressas Daniel é, geralmente, colocado entre os livros proféticos, mas no cânon hebraico ele pertencia aos Escritos.
1. Os Profetas e seus Livros
A atuação de profetas é encontrada entre os povos cananeus e mesopotâmicos em tempos anteriores a Israel. Nos inícios da história israelita, durante o período tribal, não havia uma distinção profissional específica entre sacerdotes, juízes e profetas, mas são mencionados profetas e profetisas (e.g. Débora), provavelmente de cunho extático, a serviço de pessoas e famílias. Somente mais para o final do período tribal, profetas aparecem ligados a santuários (e.g. Aías, em Silo). É somente durante a monarquia que a especialização da atividade profética se concretiza, e passamos a encontrar quatro tipos de profetas: (a) Profetas extáticos: a forma mais antiga, adotada dos povos anteriores a Israel. Atuavam individualmente ou em grupos. Sua origem era a periferia social e no texto bíblico são denominados “videntes”, “adivinhos”, ou ”homem de Deus”. Podiam estar ligados, ou não, a santuários locais; (b) Profetas da Corte: a serviço do rei (e.g. Natã, Gade),visando a estabilização do poder real e a orientação do rei para decisões importantes; (c) Profetas do Templo: a serviço do sacerdócio oficial, ao longo da monarquia atuavam nos templos e cooperavam com os sacerdotes e os profetas da corte no ensino da teologia oficial; e (d) Profetas críticos/populares: chamados por Weber de “revolucionários éticos” – especializados na “pregação”, fazem a crítica do poder político, da religião e da vida social. Possivelmente, originários do reino do Norte, com Elias e Eliseu. É deste grupo que se originam os livros proféticos na Escritura.
Como os judeus selecionaram os textos proféticos que foram incluídos no cânon? A pista que encontramos nos próprios livros proféticos é a seguinte: a seleção foi baseada na conflitividade entre profetas, e a seleção aprovou os profetas que: (a) defendiam a exclusividade de Javé como Deus de Israel; (b) faziam crítica aos reis e outros líderes de Judá e Israel por não praticarem a vontade de Javé; (c) exigiam dos líderes e do povo a prática da justiça da aliança; e (d) anunciavam o juízo de Javé contra os reinos de Israel e Judá, mas também anunciavam a restauração futura do povo de Deus. Em outras palavras, entraram no cânon as mensagens dos profetas que, durante a monarquia, eram considerados hereges e inimigos do rei. Note, assim, o contraponto teológico com os Profetas Anteriores: nos primeiros livros da seção Profetas no cânon hebraico, a monarquia é apresentada de modo mais positivo do que negativo; nos livros dos Profetas Posteriores, ela é apresentada de modo mais negativo do que positivo.
Os livros dos Profetas Posteriores foram escritos durante um período longo de tempo: desde a segunda metade do século VIII a.C. (Oséias, Amós, Isaías e Miquéias), até a segunda metade do IV século a.C. (Malaquias). Dois desses livros têm como seu contexto o reino do Norte (Oséias e Amós), enquanto os demais têm como contexto o reino de Judá. Apesar da pluralidade temática dos livros, dois grandes temas dão aos mesmos uma unidade discursiva – o juízo divino sobre Judá e Israel (predominante nos livros escritos dos séculos VIII-VI a.C.) e a restauração divina de Judá e Israel (predominante nos livros escritos a partir do século VI a.C.). Isto não significa que nos profetas do VI século em diante o juízo divino desapareça, mas, apenas, que ele se torna um tema secundário em relação ao da restauração. Semelhantemente, nos profetas do VIII e VII séculos o tema da esperança está presente, mas é secundário em relação ao do juízo. Neste sentido, eles correspondem à unidade discursiva dos Profetas Anteriores: o Deus fiel abençoou seu povo e exigiu dele fidelidade, à infidelidade do povo e de seus líderes Deus respondeu com o juízo, mas este não foi a última palavra de YHWH: a restauração da relação de aliança com Deus é a última palavra – YHWH está sempre pronto a acolher de volta seu povo. Como os livros proféticos foram escritos? A pesquisa indica que os profetas que originaram os livros que levam seus nomes não foram os próprios escritores desses livros. A sua atividade era especialmente a da pregação oral e a do ensino de discípulos (Is 8,18; Jr 36,4-8). Coube a esses discípulos a tarefa de colocar por escrito a mensagem dos profetas e de fazer com que essa mensagem atravessasse as décadas e gerações, desde a origem na pregação oral, até a redação final dos livros proféticos quando se definiu que eles fariam parte do cânon. Durante o período pós-exílico, provavelmente logo após a redação final do Pentateuco, escribas fizeram a primeira coleção de livros proféticos, que deve ter sido completada por volta do III século a.C., antes da tradução da Septuaginta. Como estamos lidando com um número significativo de livros e páginas, não poderemos fazer mais do que apontar as principais características do discurso profético, sem entrar na riqueza de detalhes e da pluralidade temática dos livros. Neste texto focaremos o discurso pré-exílico da denúncia profética e, no próximo, o discurso exílico & pós-exílico da esperança e restauração do povo de Deus.
2. A denúncia profética pré-exílica Costuma-se chamar de denúncia as acusações que os profetas lançam sobre o povo de Deus. Nos profetas pré-exílicos a denúncia profética é o tema predominante, apresentando as razões para o juízo de Deus sobre a infidelidade do seu povo. Devemos destacar, porém, que o alvo principal da denúncia profética não é o povo como um todo, mas, principalmente, os governantes, os profissionais da religião (sacerdotes e profetas ligados ao Templo) e a elite econômica de Judá e Israel. Em Miquéias capítulos 2-3 encontramos uma espécie de síntese dos denunciados pelos profetas préexílicos e seus crimes:
A. em 2,1-5 os denunciados são os fazendeiros ricos que acumulam terras através da opressão e da falta de solidariedade para com os empobrecidos – “Ai daqueles que nas suas camas maquinam a iniquidade e planejam o mal! Quando raia o dia, põem-no por obra, pois está no poder da sua mão. E cobiçam campos, e os arrebatam, e casas, e as tomam; assim fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança” (v. 1-2);
B. em 2,6-11 os denunciados são os profetas que mentem a fim de ganhar dinheiro e prestígio – e só são considerados bons profetas porque havia ouvintes que esperavam as mentiras: “Se algum homem, andando em espírito de falsidade, mentir, dizendo: Eu te profetizarei acerca do vinho e da bebida forte; será esse tal o profeta deste povo” (v. 11);
C. em 3,1-4 os denunciados são os governantes que oprimem os pobres e corrompem os julgamentos a fim de enriquecerem – “E disse eu: Ouvi, peço-vos, ó chefes de Jacó, e vós, ó príncipes da casa de Israel: não é a vós que pertence saber a justiça?” (v. 1);
D. em 3,5-8 novamente os profetas são denunciados, os que buscam dinheiro pregam mentiras e enganam o povo: “Assim diz o Senhor a respeito dos profetas que fazem errar o meu povo, que clamam: Paz! enquanto têm o que comer, mas preparam a guerra contra aquele que nada lhes mete na boca” (v. 5);
E. em 3,9-12 sacerdotes, profetas e governantes são denunciados por fazerem de Jerusalém e do Templo um lugar de injustiça e opressão: “Ouvi agora isto, vós chefes da casa de Jacó, e vós governantes da casa de Israel, que abominais a justiça e perverteis tudo o que é direito, edificando a Sião com sangue, e a Jerusalém com iniquidade. Os seus chefes dão as sentenças por peitas, e os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao Senhor, dizendo: Não está o Senhor no meio de nós? nenhum mal nos sobrevirá. Portanto, por causa de vós, Sião será lavrada como um campo, e Jerusalém se tornará em montões de pedras, e o monte desta casa em lugares altos dum bosque”. A sentença contra os criminosos é a destruição do Templo e de Jerusalém! Ressalta nestas acusações o fato de que os denunciados não só foram infiéis a YHWH e oprimiram o Seu povo, mas também afirmavam que o que faziam era aprovado por Deus! Nesse sentido, mesmo quando não pregavam a adoração a outros deuses, os denunciados praticavam a idolatria, pois apresentavam uma visão distorcida de YHWH, fazendo o Deus de Israel se parecer com os deuses opressores dos impérios vétero-orientais. Encerro o texto com a sugestão que você leia os profetas pré-exílicos e preste atenção à denúncia nos mesmos. Você poderia começar com Isaías capítulos 1-5; Oséias caps. 4-8; Amós caps. 1-3 e Sofonias (todo o livrinho).
Sugestões de leitura para aprofundamento
ZENGER, Erich. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 367-419.
Estrutura Discursiva dos Profetas Posteriores (Parte 2)
Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução Em continuidade ao nosso estudo dos Profetas Posteriores, dedicaremos a nossa atenção agora à mensagem de esperança e a restauração futura de Israel, a partir de uma leitura introdutória dos livros de Jeremias e Ezequiel, os principais representantes da profecia israelita nos tempos da dominação babilônica.
1. Jeremias e a mensagem da Nova Aliança Jeremias atuou nos anos finais do Estado de Judá e nos anos iniciais da dominação babilônica (entre 600 e 570 a.C. aproximadamente, tendo sido importante personagem no período, conforme se pode depreender de seu livro. Sua pregação do juízo foi contestada pelo rei e pelo sacerdócio (e profetas do Templo), o que lhe rendeu prisões e controvérsias com Hananias, um profeta do Templo, mas acabou confirmada pelos fatos após a conquista dos babilônios. Após a destruição de Jerusalém e do Templo como expressão do juízo de Deus, a ênfase da pregação jeremiânica passa a recair sobre dois tópicos: (a) a vida no exílio e (b) a restauração de Israel e Judá após a punição divina sobre Judá. A polêmica de Jeremias continua mesmo após a primeira deportação de judeus. Em carta enviada aos exilados, Jeremias recomenda a aceitação do juízo divino e a reorganização da vida na Babilônia (29,123). Nos v. 5-7 Jeremias exorta os exilados a refazerem sua vida na Babilônia, mantendo a fé em YHWH, que poderia lhes dar bem-estar ( shalom), no bem-estar dos babilônios – uma irônica inversão da pregação de shalom para Jerusalém por Hananias (Jr 28,9; cf. caps. 27-28) que correspondia à teologia da corte mantida e pregada pelos agora exilados. Nos v. 8-10 nova exortação a não ouvir os falsos profetas é enunciada – claramente os exilados ainda não haviam rejeitado sua teologia – a esperança é mantida, mas somente para após setenta (cifra simbólica para um “tempo completo”) anos de cativeiro. Nos v.11-14 o anúncio da restauração é apresentado, com a exigência de fidelidade exclusiva a YHWH (v. 13), e a utilização de um novo termo técnico da esperança: restaurar a sorte (shuv ) – o mesmo verbo usado na exortação profética pré-exílica com o significado de “voltar a YHWH”. Os caps. 30-31 de Jeremias são denominados por vários pesquisadores como “livreto da consolação” e, atualizando a linguagem de Jr 3,12ss, anunciam a restauração do povo de Deus e a renovação da aliança entre YHWH e o seu povo restaurado. Os versos 1-3 formam a introdução ao livreto, indicando a procedência jeremiânica e a temática da restauração da sorte do meu povo – Israel e Judá. 30,5-7 e 23-24 formam o inclusio que estrutura a profecia salvífica, a qual enfoca a restauração de “Jacó” e a reconstrução de Sião, com novo governo (evitam-se os termos específicos para “rei” e “reinado”), como atos exclusivos de YHWH. 31,1 é a introdução ao capítulo, que inclui os seguintes oráculos: 2-9.10-
14.15-22.23- 25.27-30.31-34.35-37.38-40 que retomam os temas da restauração de Israel e Judá, da mudança da sorte e linguagem dos capítulos iniciais do livro de Jeremias. Dois desses oráculos merecem atenção especial: versos 27-30 e 31,34.
Em Jeremias 31-27-34 encontramos um exemplo de anúncio de restauração. O texto é sub-divido em três seções, iniciadas com a expressão “dias virão”, ou “naqueles dias”. Na primeira seção, YHWH promete restaurar a casa de Israel (que havia sido destruída pelos assírios no VIII século a.C.) e de Judá após o fim do reino de Judá (tomado pelos babilônios no VI século a.C.) – vigiei (juízo) & vigiarei (restauração). Na segunda seção, o Senhor anuncia uma nova mentalidade sobre o pecado e a culpa – cada um morrerá pela sua própria iniquidade – rompendo com a forma tradicional de incluir os filhos e netos na culpa dos pais/avós (quando um fazendeiro ficava endividado, por exemplo, suas filhas e filhos poderiam ser escravizados para abater a dívida), mentalidade que permitia, na prática, isentar os pais poderosos de castigo (note, por exemplo, que é o filho de Davi com Bateseba que morre, ao invés do pecador Davi, e isto é atribuído pelo escritor ao juízo de Deus). Na terceira seção temos um dos textos mais famosos do Antigo Testamento para os cristãos: o anúncio da nova aliança!
O profeta anuncia a necessidade de renovação da aliança que fora, segundo a denúncia profética, desrespeitada pelos líderes políticos e religiosos de Judá. A nova aliança terá como característica predominante a internalização do conhecimento de Deus em cada membro do povo da aliança –
eliminando a mediação monárquico-sacerdotal desenvolvida pela teologia oficial da corte e do templo de Jerusalém. Note como Jeremias usa termos semelhantes aos de Oséias capítulo 4, no qual o profeta pré-exílico denunciava os sacerdotes por não ensinarem ao povo o verdadeiro conhecimento de YHWH. Esta nova aliança é descrita como uma nova relação entre YHWH e seu povo, mediante a internalização da lei de YHWH : a radical afirmação “ninguém ensinará a ninguém” e a declaração do perdão dos pecados diretamente por YHWH, sem sacrifícios, devem ser entendidas como a pregação do fim do monopólio sacerdotal sobre o ensino da lei do Senhor, bem como a rejeição do sistema sacrificial. A Epístola aos Hebreus, em o Novo Testamento, interpretou desta maneira a nova aliança de Jeremias, acrescentando que foi mediante o sacrifício definitivo de Jesus, sumo-sacerdote e cordeiro sacrificial, que se concretizou em plenitude a pregação de Jeremias.
2. Ezequiel e a mensagem do Novo Povo de YHWH Ezequiel foi, provavelmente, o primeiro profeta tipicamente exílico de Judá e seu livro apresenta intensas marcas de seu novo lugar – o limiar entre a profecia e a apocalíptica posterior. Enquanto Jeremias inclui em seu livro as suas orações e luta contra YHWH, Ezequiel (que fala sempre em primeira pessoa) apresenta uma atividade profética peculiar, com intensa somatização de sua prática (3,15.22-23; 4,4; 6,11; 12,18; 21,12; 33,21s, etc.) e com desproporcional importância às visões (1-3; 811; 37; 40-48), comparado com os profetas que lhe precederam. Do ponto de vista das formas textuais, além das visões, o livro de Ezequiel também possui duas marcas peculiares: (a) as alegorias, ou falas metafóricas – sobre as mulheres (16 e 23), a videira (15; 17; 19,10ss), o fogo (22,17ss; 24); (b) retrospectivas históricas (caps. 16; 20; 23). Na teologia, novas ênfases são: (a) o tema do reconhecer YHWH (6,7; etc.); (b) o tema da contaminação e purificação – usando linguagem similar a Lv 17-26; (c) a releitura de temas proféticos anteriores – mão (Ez 1,3; 8,1; 37,1; 40,1 – cf. 1Rs 18,46); espírito (3,12ss; 8,3; etc. – cf. 2Rs 2,16; 5,26); releituras de Jr 3 e Os 2 em Ez 16; 23; o santuário como modelo do novo povo de YHWH (40-48).
Dois oráculos, para nossos propósitos, merecem destaque. Ez 36,16-38 (oráculo da nova aliança) e 37,1-28 (relato de visão [1-14] e ação simbólica tripartite [15-28]) podem ser destacados como palavras de salvação/esperança que encontraram uma intensa recepção na história da interpretação cristã do livro – a ponto de alguns terem chamado Ezequiel de “o Calvino do Antigo Testamento”. Em 36,16ss destaca-se que a restauração da “casa de Israel” será efetuada “por amor de meu santo nome” (v. 21.22.32) e para que todos saibam que “eu sou YHWH” (v. 23.36.38). A exclusividade da adoração a YHWH e a importância do conhecimento de Deus ressaltam aqui e retomam com grande intensidade as palavras de Oséias. YHWH fará para si, de Israel, um novo povo mediante a purificação interior e uma nova aliança/coração (v. 25-27.29.33), perdoando os pecados do passado e gerando um novo futuro. É anunciado, então, o retorno do exílio e a multiplicação populacional, retomando as palavras de bênção aos pais e mães de Israel em Gênesis (v. 24.28.30.33.34-38). A grande novidade deste texto é a individualização da responsabilidade ética e a internalização da palavra de Deus, de modo semelhante à pregação da Nova Aliança por Jeremias. A fé em YHWH passa a ser descrita como predominantemente pessoal, sendo secundária a atuação dos sacerdotes na mediação entre povo e Deus.
Ez 37,1-14 é a famosa visão do vale de ossos secos que, retomando a linguagem de 36,26, a amplia para o corpo como um todo. Nela Ezequiel fala da restauração de Israel como ação do Espírito de YHWH que vivificará a nação morta em seus pecados – linguagem que será retomada tanto por João como por Paulo. O vale de ossos secos simboliza, em primeiro lugar, a separação dos reinos de Israel e Judá e, em segundo, a destruição de Judá pelos babilônios. A vivificação dos ossos secos é metáfora da volta do exílio e da restauração do reino unido de Israel e Judá sob a soberania de YHWH. 37,15-28 é uma ação simbólica em três partes (15-19.20- 24ª.24b-28) que destaca a reunificação de Israel e Judá sob um rei davidida como a nova aliança entre YHWH e seu povo, que fará sua santidade (santuário) habitar para sempre em seu meio. Aqui encontramos já a presença da esperança messiânica, cuja origem podemos remontar pelo menos a Isaías 6-9, e que terá importante papel na teologia judaica até hoje. Para os primeiros cristãos, somente no Messias Jesus é que foram cumpridas as profecias messiânicas do Antigo Testamento, e não mais como profecias para a nação de Israel, mas como anúncio de salvação para toda e qualquer pessoa que, mediante a fé, desejasse
fazer parte do povo de YHWH. O Novo Testamento radicaliza, dessa forma, o anúncio da relação pessoal entre Deus e os indivíduos, assim como a internalização do conhecimento de Deus e de sua vontade.
Conclusão Tivemos apenas um pequeno vislumbre da grande riqueza da mensagem profética. Espero que este texto sirva de incentivo para você estudar a fundo os Profetas Posteriores, em busca de conhecimento para uma espiritualidade mais sólida e íntegra, bem como uma prática missionária mais relevante e integral. Fiquemos com a exortação profética: “Ele (YHWH) te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor requer de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benevolência, e andes humildemente com o teu Deus?” (Mq 6,8). Introdução do Antigo Testamento - Os Profet…
Sugestões de leitura para aprofundamento
ZENGER, Erich. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 430-447 & 460-544.
Aula 8 - Estrutura Discursiva nos Livros Sapienciais Estrutura Discursiva nos Escritos Discursos Sapienciais Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução Iniciaremos o estudo dos Escritos, indicando as suas características gerais e analisando o discurso sapiencial. Nos próximos textos estudaremos os discursos litúrgico e narrativo.
1. Os Escritos e a Poesia Hebraica Os Escritos formam a terceira seção do cânon hebraico da TaNaK e são compostos de livros de diferentes gêneros literários e procedências sócio-culturais, tais como: Crônicas, Esdras e Neemias = gênero histórico-biográfico; Ester e Rute = gênero novelístico; Daniel = gênero apocalíptico; Salmos = gênero litúrgico e Provérbios, Eclesiastes, Jó e Cantares de Salomão = gênero sapiencial. O fato de fazerem parte dos Escritos já sugere que esses livros são de redação pós-exílica tardia (ainda que haja materiais bem antigos em alguns desses livros), tendo sido escritos por volta dos séculos III e II a.C. Eles refletem as estratégias de implantação da identidade étnica-religiosa monocêntrica e as resistências à mesma, bem como o enfrentamento com a cultura helênica pós-persa (séc. III a.C. em diante). O livro dos Salmos e os livros sapienciais também são chamados de livros poéticos, pois quase todos os seus textos são escritos como poesia para uso pessoal ou litúrgico, declamada ou cantada. No Antigo Israel, como hoje em dia, a música e a poesia eram meios privilegiados para expressão da interioridade pessoal e comunitária, de tal modo que a linguagem da poesia é, predominantemente, metafórica e simbólica. Característica essa que dificulta a datação e a referenciação (a que situações históricas o texto se refere) de poesias em particular (Sls, Ct), bem como a sua interpretação. No livro de Salmos são usados os seguintes termos para descrever a música e a poesia litúrgicas: Mizmor – Poesia cantada, exclusivamente, com o acompanhamento de instrumentos de corda; Shir – canto de qualquer tipo, mesmo sem acompanhamento instrumental; Mashal - comparação, provérbio, enigma. Também é usado para cântico satírico; Quiná – Lamento em geral, ou cântico fúnebre em especial; Tehillá - Hino de louvor. Diferentemente da poesia atual, a hebraica antiga não é caracterizada pela rima, e sim pelo ritmo sonoro e pela métrica textual. A poesia é, em geral, articulada por meio de versos e estrofes, podendo haver o uso de estribilhos ou refrões. O paralelismo é a característica dominante da poesia hebraica (e mesmo de textos não propriamente poéticos), tanto em relação ao conteúdo, quanto em relação à forma. Por paralelismo se descreve o hábito linguístico hebraico antigo de apresentar as idéias através da repetição temática. Ao invés de escrever em forma linear (introdução, desenvolvimento, conclusão), como é nosso costume, os antigos judeus escreviam em forma paralela, numa espécie de ir e vir, fazendo o pensamento crescer mediante a repetição criativa. Há vários tipos de paralelismo no Antigo Testamento.
Paralelismo Sinonímico: a segunda (ou a segunda e terceira) linha, com vocábulos diferentes, reforça/repete a temática da primeira: Salmo 24,1 - "Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam”;
Paralelismo Antitético: a segunda linha apresenta um contraste em relação à primeira: Salmo 1,6 "Pois o Senhor conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios perecerá”;
Paralelismo Sintético (muito parecido com o sinonímico): a segunda linha sintetiza o sentido da primeira: Salmo13,6 “Cantarei ao Senhor; porquanto me tem feito muito bem”;
Paralelismo Emblemático: a primeira linha serve de emblema para ilustrar a segunda - não há contraste e se confunde com o sinonímico: Provérbios 25,25: "Como água fria para o sedento, tais são as boasnovas vindas de um país remoto”. Estas são classificações baseadas no conteúdo, veremos a seguir tipos baseados na forma: Paralelismo Quiástico, cuja forma segue o padrão esquematizado pela letra X (QUI, em grego): AB BA o elemento A está em paralelo com o segundo A e o elemento B com o outro B. Exemplo, Sl 25,7: a de meus pecados juvenis, de minhas culpas, b não te lembres; b lembra-te de mim a segundo a tua fidelidade”
Paralelismo Semi-Quiástico, padrão AB AB. Exemplo, Zc 7,13: a b a
Visto que eu clamei, e eles não me ouviram, eles também clamaram,
b e eu não os ouvi, diz o SENHOR dos Exércitos”;
Paralelismo Concêntrico, padrão ABCDCBA, que também pode ser usado para organizar perícopes extensas e até mesmo seções de livros e livros inteiros. Exemplo, Dt 10,12-22:
2. A sabedoria israelita – uma filosofia prática A sabedoria era um fenômeno intercultural no mundo antigo – tanto no Oriente como no Ocidente (com o nome de filosofia „amor à sabedoria) – e sua função básica era responder à pergunta: “como viver bem?”. No Antigo Oriente, a teoria comum, subjacente a toda reflexão sapiencial era a noção de ordem cósmica, garantida pela(s) divindade(s) – ou seja, a pessoa sábia era aquela que conseguia decifrar e entender o funcionamento do mundo e, a partir desse entendimento, explicar como o ser humano pode viver bem nesse mundo. Embora Israel e Judá tenham desenvolvido sua própria sabedoria, a interculturalidade da reflexão sapiencial deixa sua marca no próprio Antigo Testamento, tanto na apropriação crítica de temas sapienciais egípcios, cananeus, mesopotâmicos e/ou helênicos, quanto na utilização de elementos e gêneros textuais estrangeiros (e.g. Pv 1-9 segue o estilo egípcio da Instrução; Pv 22,17-23,14 similar à Sabedoria de Amenêmope; bem como as coleções de Agur e Lemuel, Pv 30-31).
“A arte sapiencial da vida consiste em reconhecer a ordem abrangente universal no exercício da vida e solidificá-la pela prática da „justiça (axioma: justiça produz shalom „salvação, paz). O ponto de partida da arte sapiencial da vida não é uma revelação de Deus, qualquer que seja sua forma, mas a razão do ser humano que visa dominar a vida. Na teologia sapiencial tardia de Israel é a própria sabedoria divina que inspira as pessoas em sua busca por sabedoria” (ZENGER, 2003: 284). Não se pode, porém, entender esta descrição como se a sabedoria israelita fosse secular (sem Deus). Como descreve Zenger: “em Israel isso está fundamentado no que a sabedoria denomina „temor a Deus Cf. Pv 1,7; 9,10; 15,32; Jó 28,28” (ZENGER, 2003:284). O temor a Deus consiste na reverente confiança em Deus como aquele que “não obstante todas as perturbações e perigos, governa o todo e dá sucesso à trajetória de vida das pessoas que buscam as ordens da vida, que agem de acordo com elas e as comunicam adiante” (ZENGER, 2003: 285).
3. Os Livros da Sabedoria Israelita Seguindo o cânon hebraico, os livros de Sabedoria (ou Sapienciais) são: Provérbios, Jó, Eclesiastes e Cantares de Salomão (Cântico dos Cânticos). Vejamos as principais características de cada um deles.
a. O livro de Provérbios é uma coletânea (coleção) de ditos sapienciais (provérbios) e narrativas sapienciais. Os textos que compõem o livro de Provérbios são de diferentes autores, épocas da história de Israel, e até mesmo de fora de Israel (em Pv 30 e 31 os ditos são atribuídos a sábios de Massá. Como indicado acima, os textos sapienciais são fruto da reflexão dos sábios sobre a vida humana e da natureza e, desse modo, refletem os limites e possibilidades da condição social, econômica e pessoal de seus autores. Por isso, encontramos no livro de Provérbios ditos que descrevem aspectos da realidade de formas distintas e até mesmo antagônicas. A estrutura do livro de Provérbios, seguindo os títulos internos do próprio livro é constituída de sete partes:
Não é fácil perceber uma estrutura temática no livro, pois os “conhecimentos dos sábios” versam sobre assuntos bastante diversos, embora ligados pelo tema de viver de acordo com o temor de YHWH. Um dos fios temáticos mais interessantes do livro é o da personificação da Sabedoria como Mulher. EM 1,20-33 a Sabedoria é mulher que discursa perante o público, enquanto em 31,1-31 é a mulher sábia quem governa bem a casa. Também no capítulo 8 é a Sabedoria Mulher quem fala e ensina e no capítulo 9 é ela quem constrói a casa. Como o livro, o poema sapiencial de 31,10-31 é estruturado em sete partes. Segundo Schönberger, “A mulher eficiente, sábia e temente a Javé é uma forma da encarnação da Sabedoria preexistente, por intermédio da qual Javé criou o mundo e cuja alegria é estar com os seres humanos (8,22-31). Ela é um paradigma da existência humana bem sucedida, que concretiza a boa ordem da Criação no lar vivencial das pessoas” (em ZENGER, p. 326).
b. Jó toa que apresenta, por um lado, grande fascínio para leitores e leitoras e, O livro de Jó e um dos mais belos livros da literatura mundial. Não é à por outro lado, grandes dificuldades para sua compreensão. Sua estrutura é bastante simples, porém: um Prólogo (caps. 1-2); Diálogos (caps. 3-42,6) e Epílogo
(42,7-17). Essa simplicidade, porém, encobre a complexidade dos temas tratados no livro. Em síntese, os discursos do livro de Jó representam duas visões contrastantes da sabedoria no antigo Israel: os discursos dos amigos de Jó e mesmo os discursos de Jó representam a visão conservadora da sabedoria israelita, semelhante à sabedoria de outros países do Antigo Oriente, na qual tudo na vida se explica por uma relação causa-efeito: se você é bem-sucedido, é abençoado por Deus; se é malsucedido, é amaldiçoado por Deus. Se é rico, é abençoado; se tem saúde, é abençoado; se é justo, é abençoado. Essa teologia simplória está na base de várias formas de moralidade e teologia ao longo da história e, hoje em dia, é a base da chamada teologia da prosperidade. Entretanto, o livro de Jó questiona essa visão conservadora! Nos discursos de YHWH (38,1-40,2 e 40,6-41,26), o Senhor ensina a Jó e a quem lê o livro, que a vida é muito complexa e que somente YHWH conhece o princípio e o fim das coisas. A pessoa sábia não é aquela que explica tudo, mas aquela que teme a YHWH e, mesmo quando não consegue explicar algo, pratica a vontade do Senhor. Em particular, o tema do sofrimento é tratado, a partir da situação de Jó. O sofrimento, as doenças, a falta de dinheiro, os fracassos na vida não são evidência de que uma pessoa não é abençoada por Deus. O sofrimento é uma conseqüência do pecado e da injustiça humana, mas não pode ser explicado com base no que a pessoa que sofre fez em sua vida. A vida humana não possui uma ordem de causa-efeito,mas uma ordem relativamente misteriosa, que não pode ser explicada por nós mesmos. Diante do sofrimento, a atitude a se desenvolver é a da solidariedade para com quem sofre e a da fidelidade a YHWH, que criou o mundo, o governa e sofre com os que sofrem.
c. Cantares de Salomão O livro de Cantares é uma coletânea de poesias de amor. Não sabemos com certeza se é uma coletânea com uma espécie de enredo, ou se, simplesmente, uma coleção sem ordem temática. As muitas tentativas de encontrar a estrutura do livro dão testemunho desse nosso desconhecimento. Podemos perceber pelo menos três partes principais: 1,1-2,7; 2,8-5,1 e 5,2-8,14 – mas a organização de cada parte e as relações entre as partes podem ser explicadas de formas bem diferentes. Mais importante, porém, é como interpretar o livro. O modelo hermenêutico mais conhecido é o tipológico-alegórico: Cantares representa o amor de Deus pela humanidade, ou por Israel, ou o amor entre Cristo e a Igreja. Embora essa interpretação seja possível e tenha valor, ela encobre o aspecto mais claro e direto do livro: ele trata do amor entre homem e mulher, ele trata do amor Eros, da paixão que une duas pessoas e as faz “uma só carne”. Se adotamos o modelo da hermenêutica não alegórica, enxergamos em Cantares uma sublime explicação do amor e da paixão entre duas pessoas. Em uma época, como a nossa, em que os discursos sobre a sexualidade enfatizam apenas o prazer, Cantares oferece uma teologia do amor e da sexualidade que pode fazer a diferença.
d. Eclesiastes Por fim, chegamos ao Eclesiastes. É o livro mais recente dos sapienciais do cânon hebraico, escrito já no período helenístico. É conhecido, também, como Qohélet (transliteração da palavra hebraica que indica o autor do livro em Ec 1,1 e significa colecionador, pregador, ou membro da assembléia). De modo semelhante ao livro de Cantares, não há consenso entre os estudiosos em relação à estrutura do livro, nem mesmo com relação a como interpretar a estrutura temática e argumentativa do mesmo. O que mais importa para entender Eclesiastes é perceber que o livro apresenta uma visão conflitiva da sabedoria. Eclesiastes tenta, ao mesmo tempo, questionar as visões vétero-oriental e helênica da sabedoria, e contrapor essas visões à sabedoria baseada no temor a YHWH. Suas idéias básicas parecem ser: (a) a vida humana é marcada pela finitude e pela morte, de modo que pouco importa o ter , e sim, o ser fiel e temente a YHWH; (b) mesmo sendo finita, a vida humana no presente é valiosa e deve ser vivida com intensidade, sob o temor de YHWH; (c) para viver a vida intensamente, é preciso refletir cuidadosamente sobre os seus limites, a fim de não desperdiçarmos tempo e energias com o que não nos fará felizes diante de YHWH.
Como você percebeu, apenas tocamos a superfície teológica dos livros sapienciais! Há muito que se garimpar ainda!
Sugestões de leitura para aprofundamento
CERESKO, Anthony R. A Sabedoria no Antigo Testamento. Espiritualidade Libertadora. São Paulo: Paulus, 2004. LÍNDEZ, José V. Sabedoria e Sábios em Israel . São Paulo: Loyola, 1999.
ZENGER, Erich. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 283-306; 323-348. ZIENER, Georg. “A Sabedoria do Oriente Antigo como Ciência da Vida”. In: SCHREINER, Joseph (ed.). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 333-349.
Aula 9 - Estrutura Discursiva nos Discursos Litúrgicos Estrutura Discursiva nos Escritos Discursos Litúrgicos Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução O livro dos Salmos é, certamente, o livro vétero-testamentário mais lido nas igrejas cristãs. A sua forma hínica e poética, as suas temáticas litúrgicas, devocionais, pessoais atraem leitores que buscam desenvolver sua espiritualidade, sua capacidade de oração, sua percepção da majestade divina, seu crescimento espiritual. Mas, juntamente com esses aspectos mais pessoais e devocionais, os Salmos também apresentam-nos temas da sabedoria (como viver bem), da história de Israel, da política (há vários salmos que tratam da entronização de reis humanos, assim como há salmos que tematizam o reinado divino), da controvérsia teológica entre profetas e sacerdotes, da esperança messiânica. Embora seja o mais lido, o livro dos Salmos não é o mais bem conhecido. A familiaridade litúrgica e devocional com os Salmos, por um lado, nos ajuda, mas, por outro lado, apresenta um inconveniente: os salmos são tão parecidos com nossa devoção que não conseguimos, muita vez, perceber a imensa diferença teológica e de visão litúrgica que nos separa deles. Neste texto, focalizaremos as diferenças, a fim de ampliar nosso conhecimento e desenvolver nossa capacidade hermenêutica.
1. O Livro dos Salmos O Saltério, como também é chamado o livro dos Salmos, é uma coletânea de poemas e canções litúrgicas de várias épocas da história israelita (de c. 1.100 a.C. [Sls 29, 68] até c. 300 a.C. [Sl 119]) cuja forma final foi elaborada por volta de 300 a.C. O livro de Salmos, em semelhança à Torá, é dividido em cinco livros: 1-41; 42- 72; 73-89, 90-106; 107-150 – de modo que ele funciona como uma espécie de Torá Litúrgica. Não sabemos como a redação final foi feita, nem os critérios de seleção dentre o
material certamente bem mais rico da poesia cúltica israelita, mas podemos comparar o livro dos Salmos com os hinários das Igrejas, que representam a fé vivida liturgicamente pela comunidade ao longo de sua história. Há uma rica variedade de formas textuais e litúrgicas no livro, que expressam a diversidade da vida religiosa e do culto propriamente dito:
O Lamento Litúrgico
A maior parte dos Salmos tem a forma textual e litúrgica do lamento. O termo lamento, no mundo hebraico antigo, é a forma especializada da palavra “grito”, “pedido de socorro” que se usou, por exemplo, em Êxodo 2-3 para falar do grito dos hebreus oprimidos ao seu Deus em busca de libertação. Ao longo da história de Israel, o lamento se tornou uma prática litúrgica fundamental – tanto na devoção pessoal quanto no culto público. Do ponto de vista devocional-litúrgico, o lamento expressa: (a) súplica, o pedido de ajuda, ou a oração por socorro; (b) a intercessão; e (c) a confissão de pecado ou de insuficiência diante de Deus. Neste sentido, o lamento é o contraponto do louvor ou ação de graças, e, juntamente com este, constitui a totalidade da devoção: louvor e gratidão a Deus, por um lado, confissão e petição, por outro.
Ao lado dos salmos de lamento, os de ação de graças completam a maior parte dos salmos da devoção pessoal e da liturgia pública. Eles expressam a gratidão e o louvor do israelita a YHWH, que age em seu benefício e em benefício de toda a criação. Em certo sentido, o salmo de gratidão é a continuação do lamento, pois representa o reconhecimento, por parte do adorador, de que Deus atendeu sua oração. A gratidão é componente fundamental da devoção pessoal e do culto público, pois ela manifesta o reconhecimento do agir de Deus, da Sua graça e misericórdia, de Sua atenção para com Seu povo. Claus Westermann, teólogo do Antigo Testamento, afirmou que gratidão e lamento compõem a totalidade da vida cúltica, pessoal e litúrgica, na medida em que, por meio deles, a relação com Deus abrange todas as dimensões da vida humana. Uma forma textual derivada da ação de graças é o hino ou salmo hínico. Por salmos hínicos a classificação acima entende aqueles Salmos que expressam gratidão a Deus, não tanto pelo que Ele faz ou fez, mas, primariamente, pelo que Ele é ou pode fazer. Os hinos são expressões de gratidão nas quais se destaca o conhecimento de Deus, o aprendizado de quem Ele é e faz, a fim de que saibamos o que pedir e como agradecer.
Salmos Litúrgicos e Tipos Especializados
Na classificação acima, salmos litúrgicos são aqueles salmos que, acreditam os pesquisadores, eram usados em festas cúlticas específicas. Os salmos da Aliança teriam sido usados nas festas de final de ano, celebrando a aliança entre YHWH e seu povo. Os salmos reais teriam sido usados em cerimônias de entronização de um novo rei, ou em cerimônias de exaltação de um rei já no exercício de seu poder. Os salmos de Sião e as Liturgias do Templo eram usados nas peregrinações ao Templo de Jerusalém e celebravam a grandeza do Templo e a alegria de adorar a Deus no seu santuário. Do ponto de vista da sua atitude litúrgica, eram salmos de ação de graças, e indicavam a gratidão a Deus pela colheita, pela eleição, pela fidelidade divina, pelo privilégio de adorar a Deus. Os Salmos de sabedoria não eram, provavelmente, usados nas liturgias públicas, mas na devocional pessoal e fazem uma espécie de contraponto ao teor quase “secular” da reflexão sapiencial. Os salmos da Torá, por outro lado, deveriam ser usados em cultos públicos nos quais a leitura da Palavra de Deus era um componente importante. Estes dois tipos especializados de salmos são os mais recentes, já da época do Segundo Templo, e manifestam o crescimento da importância da leitura da Palavra no culto público e na vida devocional privada, juntamente com a sabedoria necessária para entendê-la.
2. Um exemplo de leitura – Salmo 97 1. YHWH reina (97,1)
O primeiro verso do Salmo é um convite à alegria universal, baseado na afirmação de que YHWH reina. YHWH é um deus que reina para libertar, não para conquistar, por isso merece ser adorado com alegria, pois Ele é fonte de alegria e vida. A memória das origens humildes e subversivas do povo de Israel alimentou a sua fé e forjou a sua teologia. Seguir a YHWH não é um trabalho estafante, adorá- Lo é festejar alegremente o seu reinado. A alegria e o regozijo são termos que ocorrem muitas vezes nos salmos, porque são as marcas do culto a YHWH, o rei da vida. Diante dos agudos problemas de nosso tempo, somente a alegria não alienada da fé em um Deus soberanamente amoroso e justo pode nos dar motivação para agir decididamente em cumprimento à nossa vocação missionária. 2. A majestade justa e gloriosa de YHWH (97,2-6) O trono é uma figura para a realeza - reis sentam-se em tronos e os deuses também se assentavam em tronos. O trono de YHWH está rodeado de nuvens escuras que o tornam invisível. Sabe-se que ele está lá, mas não se pode vê-lo, uma tempestade impede a visão, o céu encoberto faz o dia parecer noite sem estrelas e sem luar. Ser invisível é uma característica de Deus no Antigo Testamento. Deus é tão grandioso, tão santo e majestoso que o ser humano não pode vê-lo e permanecer vivo (Êx 33,18-23). Mesmo quando se manifesta e revela, Deus permanece oculto (Is 45,15). Para ver Deus é preciso crer! O trono de YHWH tem a justiça e o direito como o seu fundamento. Ou seja: Deus reina com justiça e direito. Este par de palavras é muito usado em todo o Antigo Testamento. Descreve a obrigação de juízes, nos tribunais, que devem julgar honestamente, sem aceitar suborno, sem aceitar falsos testemunhos (Êx 22,6-9; Dt 16,18-20; Am 5,10-13.24). Descreve a obrigação dos reis: proteger o inocente, defender os pobres, libertar os oprimidos (Sl 72; Is 11,1-5). Acima de tudo, porém, descreve a ação de YHWH (veja, também, Sl 85,11-12; Is 32,17-18). A ação soberana de YHWH deve se tornar o critério de julgamento das ações de seu povo, especialmente no campo da adoração e da ética. O que significava afirmar que YHWH reina com justiça e direito? Significava afirmar que Ele liberta os pobres e oprimidos que clamam sob o peso da injustiça (Êx 3,6-10). Significava afirmar que Ele estabelece uma aliança com seu povo para lhe dar vida e vida digna e abundante (Dt 10,12ss). Significa que YHWH defende as vítimas da injustiça e cria uma ordem social e cósmica justa, sem desigualdades, sem sofrimento para os inocentes (Is 65,1525). Por isso se pode cantar alegremente que YHWH reina: Ele ouve o clamor de quem sofre, ele: exerce justiça e direito, liberta o pobre, salva a pessoa aflita, inclui as pessoas excluídas, cria uma sociedade justa e íntegra.
3. A vergonha dos idólatras (97,7) O Salmo afirma que somente YHWH é deus (usando linguagem de Is 43,8-13; 44,6-20), e que diante dele todos os deuses se prostram. Aqui também temos um exemplo da apropriação israelita de crenças de outras religiões vétero-orientais: o deus supremo era servido subordinadamente pelos demais deuses e deusas, que diante dele se prostravam. O próprio da fé israelita é a afirmação anterior – com exceção de YHWH, todos os deuses são apenas ídolos. São ídolos porque oprimem e não libertam. São ídolos por que não dão vida e não têm vida em si próprios. 4. A esperança e o compromisso do povo fiel (97,4-12) O hino leva, então, seus celebrantes a desviarem o olhar dos outros povos e dos idólatras, e olharem para si mesmos. Sião, a montanha de Deus, o local do Templo em ruínas, ouve o cântico alegre e se regozija junto com a alegria do povo esperançoso. As filhas de Judá – as cidades do interior – também ouvem e se regozijam. O país todo se alegra junto com o resto do povo. A fé e a esperança têm uma face bem concreta: YHWH irá restaurar a terra destruída, o país derrotado. Judá nascerá de novo. A alegria não desconsidera a história. É “por causa de tuas justas sentenças, ó YHWH” que a nação e o povo se regozijam. Ao olhar para a destruição, o povo enxerga a sentença justa de Deus. O passado é uma lição prática sobre a justiça e o direito de YHWH. O passado próximo é o da destruição, do juízo. O passado remoto é o do êxodo, da libertação e da posse da terra. As justas sentenças de YHWH são diferentes em diferentes momentos históricos, mas sempre são justas, porque são expressão da fidelidade de YHWH à sua própria palavra e ação. Os versos 8-9 declaram a esperança alegre do povo de YHWH. Os versos 10- 12 afirmam o seu compromisso solene. Quem segue a YHWH é protegido por Ele, é abençoado por Ele, encontra nele a fonte de toda felicidade. Quem segue a YHWH, porém, odeia o mal , é fiel , justo e reto de coração. Odiar o mal é a outra face do amar o bem. Esta dupla exortação faz parte das tradições da sabedoria e dos profetas de Judá (Am 5,14-15a; Is 5,20; Sl 34,15; Pv 3,7; Pv 11,19; Mq 6,8). Fazer o bem é fazer a vontade de YHWH, é praticar justiça, é socorrer o necessitado, é ser fiel nos relacionamentos, é ser
generoso, é construir a paz, a harmonia e a justiça social. Pessoas justas e de coração reto são, portanto, as pessoas que amam o bem e vivem em fidelidade a YHWH e seu projeto de liberdade e justiça para todos.
Sugestões de leitura para aprofundamento
ZENGER, Erich. (org.) Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 306-323.
Aula 10 - Estrutura Discursiva em Narrativas dos Escritos Estrutura Discursiva nos Escritos Discursos Narrativos Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
Introdução Os textos narrativos que pertencem à seção canônica Escritos são: Rute, Ester, Esdras e Neemias (um só livro na Bíblia Hebraica), & I e II Crônicas (também um só livro na Bíblia Hebraica). Do ponto de vista do conteúdo teológico e do lugar social, esses livros podem ser divididos em dois grupos: (1) Esdras, Neemias & I e II Crônicas (que alguns pesquisadores têm chamado de Obra Histórica Cronística OHCr); e (2) Rute e Ester. A OHCr e o livro de Rute se contrapõem social e teologicamente, enquanto o livro de Ester, mais tardio do que os outros, lida com um problema específico da vida dos judeus sob a dominação helênica.
1. A Obra Cronística e Rute A OHCr e Rute (em sua forma final), provêm da segunda metade da dominação persa sobre Judá e representam duas posições antagônicas relativas à identidade e estruturação social de Judá. A OHCr é uma defesa da identidade étnico-religiosa monocêntrica , enquanto Rute é um escrito de resistência contra essa proposta identitária. Por um lado, a OHCr valoriza Davi e Salomão como grandes reis e homens de fé mas, por outro, defendem o papel dos sacerdotes e escribas como os novos governantes de Judá sob os persas. Os sacerdotes e escribas são os conhecedores da Torá, por isso acabam ocupando o lugar dos reis no governo do povo, cf. II Cr 36,22-23 (que liga textualmente Crônicas a Esdras e Neemias).
Por identidade étnico-religiosa monocêntrica indico as seguintes características do discurso cronístico: (1) busca de “pureza” étnica das famílias israelitas, com a destituição de casamentos “mistos” (Ne 13,23ss; Ed 9,1-10,44). A expulsão das esposas estrangeiras indica que a linhagem judaíta era de cunho patriarcal. Uma definição rígida da pertença a “Israel” era necessária para: (a) reorganizar a divisão fundiária entre as famílias que apoiavam a missão oficial persa e que deviam pertencer à antiga elite do reino de Judá; (b) a “purificação” da fé em YHWH que, na ótica dos novos governantes judaítas, estava ameaçada pela adoração a deuses estrangeiros, que seria transmitida às novas gerações por suas mães. Esta seria a posição adotada pelos exilados que retornaram, sob a liderança intelectual do sacerdócio e escribas afinados com a teologia sacerdotal. No exílio, a questão da pureza, isto é, a não- mistura com outros povos e outros costumes religiosos, deve ter se tornado primária e, na volta, manteve a primazia, desta vez como modo de não só afastar os não-israelitas, como também de estabelecer a reivindicação à terra dos exilados contra a dos que haviam ficado na terra após a conquista babilônica;
(2) reorganização do sacerdócio, com a rígida distinção hierárquica entre sacerdotes oficiantes do culto sacrificial e levitas – auxiliares do sacerdócio sacrificial, bem como a reestruturação do sistema sacrifical (Ne 12,1ss; 13,4-14; I Cr 15-16), ao redor dos conceitos de pureza e impureza cúlticas. Isto possibilitaria que o reconstruído Templo de Jerusalém (chamado em livros de história de “Segundo Templo”) pudesse servir como o novo e único lugar sagrado do povo de YHWH. É possível que a distinção entre “sacerdotes” e “levitas” também seja um reflexo da distinção entre os sacerdotes que retornaram do exílio e os que haviam ficado na terra de Judá; (3) a Torá de YHWH (também Torá do rei persa, cf, Ed 7,26, de modo que a submissão ao Império ficasse garantida e legitimada pela prática religiosa judaíta) como norma religiosa, política, cúltica e identitária para todo o “Israel” (Ed 7; Ne 8-9), a partir da qual se enfatizavam a exclusividade de YHWH
como deus de Israel, o culto sacrificial, a recitação dos atos salvíficos de YHWH, a circuncisão e a guarda do sábado como elementos peculiares dos judaítas. Um detalhe interessante e algo enigmático é que nem no livro de Esdras nem no de Neemias encontramos citações propriamente ditas de textos do Pentateuco como fundamento legal para as ações desses governantes (com a exceção de Ne 13,13 que cita, parcialmente, Dt 23,4); (4) uma lógica moral retributiva baseada na concepção sapiencial da justiça como “ordem do cosmos”, que permitia explicações simples de alguns fenômenos sociais, por exemplo: pobres são pobres por que não são obedientes à Torá; as doenças são fruto de algum tipo de impureza, YHWH recompensa as pessoas de conformidade com as suas obras de obediência à Torá.
O livro de Rute, em contraste com a OHCr, resiste contra a identidade monocêntrica, especialmente em oposição à noção de “pureza genealógica” e à supervalorização do masculino na religião e poder. Rute defende: (a) que o povo de YHWH pode ser composto por pessoas não-judaítas, a sua principal personagem é moabita e ascendente do rei Davi; (b) o protagonismo das mulheres, tanto na fé (Rute decide ser javista), quanto na vida social (Noemi e Rute trabalham para que o costume do levirato seja cumprido e elas tenham o seu sustento garantido). Em outras palavras, o livro de Rute joga a Torá (o casamento pelo levirato e a aceitação de estrangeiras) contra a Torá (expulsão das esposas estrangeiras), valorizando a pluralidade e a solidariedade. O Judaísmo do Segundo Templo costumava ler este livro na Festa das Semanas. A estrutura do livro de Rute é relativamente simples, demonstrando uma organização quiástica:
2. Ester e a Sobrevivência do Povo de Deus O livro de Ester, como mencionado antes, pode ser classificado em separado da polêmica entre a OHCr e o livro de Rute. Ele, provavelmente, é de um período posterior ao da redação da OHCr e de Rute (sua complicada história textual dá testemunho disso, pois há diferentes versões antigas do livro, em hebraico e grego – com duas versões, uma delas na LXX e outra apenas em manuscritos isolados. As edições protestantes da Bíblia usam o texto hebraico, enquanto as católicas e as ortodoxas orientais dão preferência ao texto grego da LXX. Assim, caso você tenha interessa em verificar as diferenças entre essas duas versões, já sabe como fazê-lo) sugerindo fortemente que o livro seja datado no início do período helênico. Sua temática também é peculiar: a sobrevivência do povo de YHWH em uma sociedade antagônica a ele. É lido liturgicamente na festa dos Purim. A narrativa é ambientada no período persa e descreve um rei autoritário e fraco (não consegue sequer fazer sua esposa principal obedecê-lo), facilmente manipulável por membros da corte. Esse rei edita um decreto ordenando o extermínio dos judeus que encontram o caminho para se livrar dessa ameaça, através da atuação sábia e contundente de Ester, a bela e sagaz rainha – o ponto que mais ressalta no livro é a ausência de YHWH! Nesse sentido, o livro pode ser entendido como uma teodicéia, a defesa da fé diante do sofrimento injustificado.
Conclusão Chegamos ao fim de nosso estudo introdutório do Antigo Testamento. Pudemos apenas vislumbrar pequenos relances do conteúdo e da riqueza teológica e espiritual da Bíblia Hebraica. Minha expectativa é que os textos que aqui estudamos juntos tenham ajudado você a enxergar melhor o arranjo teológico do Antigo Testamento e, acima de tudo, tenham estimulado você a ler e estudar mais detalhadamente a primeira parte da Bíblia cristã. Há muito ainda que estudar e aprender, estes foram apenas os primeiros passos de uma longa jornada. A jornada da pessoa sábia e fiel, descrita no Salmo 1,2: “o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite”. Introdução do Antigo Testamento - A pluralid…