BERNARD LEWIS
OS ARABES NA HISTÓRIA 2.® edição
1990 Editorial Estampa Lisboa
ÍNDICE
Prefácio da edição portuguesa............................................... Prefácio
.................................................................................
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...........................................................................
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Introdução I II
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A Arábia antes do Islão
......................................................
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Maomé e a origem do Islão ...............
43
III
A época das Conquistas
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IV
O Reino Árabe ..........................................
75
O Império Islâm ico................................................
93
V VI VII VIII IX X
...........................................
«A Revolta do Islão» ............................................................
113
Os Árabes na Europa ..............
131
A civilização islâmica ...........................................................
149
O eclipse dos Árabes ..........................................
163
O impacto do Ocidente...........................................................
185
Quadro Cronológico................................................................
201
Bibliografia
207
.............
Índice analítico ..............................................
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PREFÁCIO DA EDIÇÃO PORTUGUESA
Apresenta-se ao público de língua portuguesa o livro clássico do Professor Bernard Lewis intitulado The Arabs in History. A u tor e obra são bem conhecidos pelos especialistas e pessoas interes sadas pelo Mundo Arabe e Islâmico. Bernard Lewis é professor de Estudos do Próximo Oriente na Universidade de Princeton (EUA), antigo professor da Universidade de Londres e é co-director da prestigiosa Enciclopédia do Islão (em publicação). Laureado pelas Universidades de Londres e de Paris, foi professor visitante nas da Califórnia em Los Angeles, na Colúmbia e na de Indiana. É membro da British Academy, do Institut d ’Egypte, da Turkish Historical Society e da American Philosophical Society. É autor de uma vasta bibliografia em que se salientam: The Origins of Ismailism (1940)', The Emergence of Modem Turkey (I96I); Istam bul and the Civiüzation of the Ottoman Empire (1963); The Middle East and the West (1964); Islam from the Prophet Muhammad to the Capture of Constantinople (1974); e The World of Islam (1976). Foi um dos autores da The Cambridge History of Islam (1971). Os seus livros encontram-se traduzidos em numerosas lín guas, entre as quais o árabe. O Professor Bernard Lewis tem-se distinguido pela extensão e profundidade da sua obra histórica, pela lucidez da análise, pela constância com que tem defendido a importância dos estudos sobre «orientalismo» e pelo cuidado evidenciado na difusão dos resultados da investigação. Os Árabes na História foi escrito em 1950, sucessivamente actualizado até à 6.“ edição, publicada em 1975, e já foi traduzido
em árabe, turco, hebreu, francês, espanhol, servo-croata, japonês e malaio. Estuda a identidade árabe e islâmica e procede sucessi vamente ao exame dos diferentes períodos históricos desde o apa recimento de Maomé até à colonização europeia. Livro de carácter explicativo de sólida base informativa, constitui uma excelente introdução para aqueles que queiram iniciar-se no conhecimento do respectivo tema ou que pretendam verificar as suas próprias concepções sobre matéria tão controversa e actual. Antônio Dias Farinha
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PREFÁCIO
O que se segue não é tanto uma historia dos Árabes quanto um ensaio interpretativo. Mais do que condensar urna tão vasta matéria num enunciado árido de datas e de eventos, procurei isolar e analisar alguns aspectos fundamentais — o lugar ocupado pelos Arabes na historia da humanidade, a sua identidade, os seus empreendimentos, e os traços mais salientes das diferentes épocas da sua evolução. Num trabalho desta natureza, não é possível nem desejável indicar as fontes de cada um dos factos ou interpretações referi dos. Os orientalistas reconhecerão de imediato a minha dívida aos mestres, do passado e do presente, que se dedicaram ao estudo da história islâmica. Resta-me tão-só expressar a minha gratidão a todos aqueles que me precederam, professores, colegas e alunos, e que contribuíram de diversas formas para a construção da pers pectiva da história árabe desenvolvida nestas páginas. Agradeço muito especialmente ao Professor Sir Hamilton Gibb, aos Professores U. Heyd e D. S. Rice, já falecidos, o terem lido e criticado o meu manuscrito, a Miss J. Bridges que preparou o índice, ao Professor A. T. Hatto pelas muitas e valiosas sugestões. B. L.
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INTRODUÇÃO
^ O que é um á ra b ^ A definição de expressões étnicas é extre mamente difícil, é ésta não é das mais fáceis. Uma das definições possíveis pode ser posta de lado de imediato. Talvez os Árabes constituam uma naç^ão; não sãp por enquanto jim a nacionaM no sentido legal. Um indivíduo que se autodefina como árabe pode ser identificado no respectivo passaporte como nacional da Arábia Saudita, de um dos dois lémenes, do Iraque, da Síria, da Jordânia, do Sudão, da Líbia, da Tunísia, da Argélia, de Marrocos ou de qualquer outro do conjunto de estados de identificação árabe. Alguns desses estados — como é o caso da Arábia Saudita, da União dos Emiratos Árabes, das Repúblicas Árabes da Síria e do Egipto— adoptarem mesmo a expressão árabe na. sua no menclatura oficial. Não obstante, os seus cidadãos não são desig nados simplesmente por Árabes. Há estados árabes e existe efec tivamente um liga de Estados árabes, mas não existe ámda um EstadQ-árabe único de que todos os Árabes sejam nacionais. Se o Arabismo, porém, não possui conteúdo legal, não deixa por isso de constituir uma realidade..^ orgulho do árabe na sua arabicidade, a consciência dos vínculos que o ligam a outros árabes, tanto no passado como no presente, não ^ o menos fortes. P factor de unificação será então xun factor lingüístico — será árabe aquele que tem como língua-mãe a língua árabe? A res posta afigura-se simples e, à primeira vista, satisfatória — no entanto, levantam-se algumas dificuldades. São Árabes o judeu de língua árabe do Iraque ou do lémen, ou o cristão de língua 13
árabe do Egipto ou do Líbano? O investigador obteria respostas diferentes não só entre esses mesmos povos, como junto dos seus vizinhos muçulmanos. O próprio muçulmano de expressão árabe do Egipto será árabe? Muitos consideram-se como tal, mas não todos, e a expressão árabe continua a ser usada coloquialmente, tanto no Egipto como no Iraque, para distinguir o beduino dos desertos circundantes do camponês indígena dos vales dos gran des rios. Nalgumas zonas, a expressão depreciativa arabófono é utilizada para distinguir aqueles que se limitam a falar a língua árabe dos que são verdadeiramente árabes. Num encontro efectuado há alguns anos atrás entre vários chefes árabes, árabe foi definido do seguinte modo: feTodo aquele que vive no nosso país, fala a nossa língua, é educado na nossa cultura e tem orgulho na nossa glória é um dos nossoí^Comparemos estas palavras com a definição produzida por uma fonte ocidental autorizada, o Professor Gibb de H arvard:t^ão Árabes todos aqueles para quem a missão de Maomé e a memória do Império Árabe constituem « cerne da história e que preservem a língua árabe e a sua herança cultural como patrimônio e cm m m S y Note-se que nenhuma das definições é puramente linguísticàT" Ambas introduzem um requisito cultural, e uma, pelo menos, um requisito religioso. Ambas devem ser interpretadas historicamente, pois só através da história dos povos ditos árabes podemos esperar compreender o sentido dessa expressão, desde a sua utilização primitiva e restrita nas épocas mais recuadas até ao seu âmbito vasto, ainda que vagamente delimitado, de hoje. Como iremos ver, ao longo deste período vastíssimo, o significado da palavra Arabe tem sofrido mutações constantes, e porque esse processo é lento, complexo e longo, verificamos que a expressão pode ser usada em diferentes sentidos distintos, simultaneamente, e que raramente tem sido possível chegar-se a uma definição geral e uniforme do seu conteúdo. A origem da palavra Arabe é ainda obscura, mau grado as explicações de maior ou menor plausibihdade avançadas pelos filólogos. Para alguns, a palavra deriva de uma raiz semítica significando ocidente, e foi usada pela primeira vez pelos habi tantes da Mesopotâmia referindo-se aos povos a ocidente do vale 14
do Eufrates. Esta etimologia é discutível em termos puramente lingüísticos, podendo ainda objectar-se que a expressão foi usada pelos próprios Árabes e não se afigura muito plausível que um povo se identifique através de uma palavra indicativa da posição que ocupa relativamente a um outro. Mais profícuas se revela ram as tentativas no sentido de estabelecer a ligação entre essa expressão e o conceito de nomadismo. Foram diversos os mé todos empregados: relacionando-a com o hebraico 'Arabha — terra escura ou estepe; com o hebraico ‘Erebh — misturado e, portanto, desorganizado por oposição à vida organizada e ordenada das comxmidades sedentárias, rejeitadas e desprezadas pelos nómadas; com a raiz ‘Abhar — mover ou passar— de que deriva, prova velmente, a nossa palavra hebreu. A relação com o nomadismo é comprovada pelo facto de os próprios Árabes terem usado, ao que parece, esta expressão, em tempos recuados, para distinguirem os beduinos dos habitantes de língua árabe das cidades e aldeias, distinção que se mantém, em certa medida, até hoje. A etimologia árabe tradicional que faz derivar o substantivo de um verbo signi ficando «expressar» ou «enunciar» representa quase com certeza uma inversão do processo histórico. Um caso paralelo é a conexão estabelecida entre o alemão deuten — tornar claro para o povo — e deutsch — originalmente, do povo. — ^ A primeira notícia que chegou até nós da Arábia e dos Árabes é-nos dada no capítulo X do Génesis, onde se refere o nome de muitos dos povos e distritos da península. No entanto, a palayra Árabe não aparece no texto, surgindo pela_primeira vez numa inscrição assíria de 853 a.C , em que o rei Shalmaneser III reíata o esmagamento de uma conspiração de príncipes rebeldes pelas forças assírias. Um deles era Gindibu, o Aribi, cujo contributo para o referido conluio foi de mil camelos. A partir dessa data e até ao século VI a.C. encontramos referências freqüentes a Aribi, Arabu e Urbi em inscrições assírias e babilónicas. Essas inscrições referem o pagamento de tributos por chefes Aribi, constituídos normalmente por camelos e outros produtos característicos do deserto, e por vezes falam de expedições militares em território Aribi. Alguma das inscrições mais recentes são acompanhadas de ilustrações dos Aribi e dos seus camelos. As campanhas contra 15
os Aribi não constituíam, obviamente, guerras de conquista, mas expedições pimitivas que visavam chamar a atenção dos nómadas errantes para os seus deveres de vassalos assírios. Tinham como finahdade a defesa e protecção das fronteiras e vias de comuni cação assírias. Os Aribi das inscrições são um povo nómada do extremo norte da Arábia, provavelmente do deserto siro-árabe. Não incluem a florescente civilização sedentária do Sudoeste da Arábia, mencionada à parte nos registos assírios. Podem identificar-se com os Árabes dos últimos livros do Velho Testamento. Por volta de 530 a. C. começa a aparecer em documentos persas de escrita cimeiforme a palabra Arabaya. A mais antiga referência clássica encontra-se em Ésquilo, que no Prometeu menciona a Arábia como mna terra remota de onde vêm guerreiros de lanças ponteagudas. É possível que o Magos Arabos a que se faz referência nos Persas como um dos comandantes do exército de Xerxes seja também árabe. JÉ em escritos gregos que deparamos pela primeira vez com o topónimo Arábia, formado por analogia com Itália, etc. Heródoto e, depois dele, muitos outros escritores gregos e latinos estenderam as expressões Arábia e Árabe a toda a península e a todos os seus habitantes, incluindo os Árabes do Sul e o deserto a leste do Egipto entre o Nilo e o Mar Vermelho. Nesta época, a expressão parece abranger, pois, todas as regiões desérticas do Próximo e Médio Oriente, habitadas por povos de língua semítica. É igualmente na hteratura grega que a expressão Sarraceno começa a ser divul gada. Aparece pela primeira vez nas antigas inscrições, supon do-se que seria o nome de uma única tribo do deserto da região do Sinai. Na literatura grega, latina e talmúdica é usada em relação aos nómadas em geral, e em Bizâncio e no Ocidente medieval foi, posteriormente, aplicada a todos os povos muçul manos. A primeira utilização árabe da palavra ocorre nas antigas inscrições do Sul da Arábia, relíquias da florescente civilização fundada no lémen pelo ramo meridional dos povos árabes, e que datam de finais da era pré-cristã e princípios da era cristã. Nessas inscrições. Árabe significa beduino, muitas vezes assal tante, e aplica-se à população nómada em contraste com a popu 16
lação sedentária. No Norte, a primeira ocorrência verifica-se nos inícios do século IV d.C. no Epitáfio de Ñamara, um dos mais antigos registos que nos chegaram na língua árabe do norte e que vdo a ser mais tarde o árabe clássico. Essa inscrição em árabe, na escrita aramaica nabateia, relata a morte e os feitos de Imru’1-Qais, «Rei de Todos os Árabes», em termos que sugerem não ter a clamada soberania ido muito além dos nómadas do Norte e centro da Arábia. Só depois do surgimento do Islão em princípios do século VII, viemos a ter informações concretas quanto ao uso da palavra no centro e Norte da Arábia. Para Maomé e seus contemporâneos, os Árabes eram os beduinos do deserto e no Alcorão a expressão é usada exclusivamente neste sentido e nunca em relação aos habitantes de Meca, de Medina ou de outras cidades. Por outro lado, a Ungua falada nessas cidades e a do próprio Alcorão é designada por língua árabe. Aqui encontramos já em embrião a ideia dominante em épocas posteriores de que a Jforma mais pur^ de Árabe é a dos beduinos, os quais preservaram com maior fide lidade do que quaisquer outros o modo de vida e a hngua árab^ originais. As. imensas vagas de conquistas que se sucederam à morte de Maomé e o estabéíecimento do Califado pelos seus sucessores na chefia da nova comunidade islâmica difundiram o nome Árabe através dos três continentes, na Ásia, na África e na Europa, e colocaram-no como título de um capítulo vital, ainda"qüè não duradouro, da história do pensamento e do esforço huraanos,jC!s povos de língua árabe da Arábia, tanto as populações nómadas como as sedentárias, fundaram um vasto império que se estendia desde a Ásia Central, através do Médio ^Oriente e do Norte de África, até ao Atlântico. Téndò' cTTslãi^ Õ m o religmo nacíóhál e grito de guena, e o novo impérió^ómo objectivo, os Árabes encontraram-se a viver no meio de uma grande variedade de povos de diferentes raças, línguas e religiões, em que constituíam uma minoria dominante de conquistadores e senhores. As diferenças étnicas de tribo para tribo e as diferenças sociais entrç a popu lação das cidades e a população do deserto tomaram-se por algum tempo menos significativas do que a diferença entre os senhores 17
do novo império e os diversos povos conquistados. Durante este primeiro período da historia islámica, quando o Islão era apenas urna religião árabe e o Califado um reino árabe, o termo «Árabe» aplicava-se àqueles que falavam árabe, eram membros por des cendência de urna tribo árabe e, pessoalmente ou através dos seus antepassados, eram originários da Arábia. Estabelecera a distinção entre eles e a multidão de Persas, Sirios, Egipcios e outros que as grandes conquistas haviam submetido ao dominio árabe, e constituia como que o rótulo do novo povo imperial excluindo os que não pertenciam à «Casa do Islão». Os primeiros dicionários árabes clássicos oferecem duas formas para a palavra «Árabe» — ‘Arab e A ‘rab — e dizem-nos que esta última significa «Beduino», en quanto a primeira era usada no sentido amplo acima descrito. Esta distinção, a ser autêntica — e muito do que encontramos nos primitivos dicionários tem uma existência puramente lexicográ fica— deve datar deste período. Não há indicios anteriores, e parece não ter sobrevivido por muito tempo. A partir do século VIII, o Califado foi-se transformando gradualmente de um Império Árabe num Império Islâmico, em que o acesso à casta dominante era determinado mais pela fé do que pela origem. À medida que um crescente número de povos conquistados se ia convertendo ao Islão, â religião deixou de ser o culto nacional ou tribal dos conquistadores árabes e adquiriu o carácter universal que manteve até hoje. O desenvolvimento económico e o termo das guerras de conquista, que tinham cons tituído a principal actividade produtiva dos Árabes, deu origem a uma nova classe dirigente de administradores e comerciantes, de raça e língua heterogéneas, que desapossou a aristocracia mihtar árabe criada pelas conquistas. Esta mudança reflectiu-se na organização do governo e dos seus funcionários. O árabe permaneceu a única língua oficial e a principal língua da administração, do comércio e da cultura. A rica e diver sificada civilização do Califado, criada por homens de muitas nações e fés, era árabe tanto na língua como no espírito. O uso do adjectivo «árabe» para qualificar as múltiplas facetas desta civihzação tem sido frequentemente posto em causa com base 18
no facto de o contributo dos que eram de ascendência árabe para a «medicina árabe», a «filosofía árabe», etc., ser relativamente pequeno. Mesmo o emprego da palavra «muçulmano» tem sido objectivo de críticas, na medida em que muitos dos arquitectos desta cultura eram cristãos e judeus, pelo que o termo «islâmico», de conotação cultural e não apenas religiosa ou nacional, é con siderado preferível. As características autenticamente árabes da civilização do Califado são, contudo, maiores do que poderia sugerir o mero exame das origens rácicas dos seus criadores indi viduais, e o uso desta expressão é justificado desde que se faça uma clara distinção entre as suas conotações culturais e étnicas. Outro aspecto importante é o de que na consciência colectiva dos Árabes de hoje é a civilização árabe do Cahfado, no seu sentido mais amplo, que constitui a sua herança comum e a in fluência formativa da sua vida cultural. Entretanto, o próprio conteúdo étnico da palavra «Árabe» foi-se alterando. A irradiação do Islão entre os povos conquistados foi acompanhada pela irradiação da língua árabe. Este processo foi acelerado pela fixação de grande número de Árabes nas pro víncias e, a partir do século X, pela chegada de uma nova raça dominante, os Turcos, em relação aos quais a distinção entre os .descendentes dos conquistadores árabes e os nativos arabizados deixou de ter significado. Em quase todas as províncias a oeste da Pérsia as velhas línguas nativas morreram e o árabe tornou-se a principal língua falada. A partir dos finais do período abássida, a palavra «Árabe» retomou o seu primitivo significado de Beduino ou nómada, de sentido predominantemente social e não étnico. Em muitas das crónicas ocidentais das Cruzadas a expressão é usada apenas para os Beduinos, designando-se aqueles que for mavam a maioria da população muçuhnana do Próximo Oriente de Sarracenos. É certamente neste sentido que, no século XVI, Tasso fala de «altri Arabi poi, che di soggiorno, certo non sono stabili abitanti;» (Gèrusalemme Liberata, XVII 21) 19
o historiador árabe do século XIV Ibn Khaldun, ele próprio um citadino de ascendência árabe, usa a palavra neste sentido. Naquela época o principal critério classificativo era rehgioso. As diversas crenças minoritárias organizavam-se em comunidades religioso-políticas, cada uma com os seus próprios chefes e leis. A maioria pertencia ao Ummat d-lslam, a comunidade ou nação do Islão. Os seus membros consideravam-se a si próprios Muçul manos, antes do mais. Se havia necessidade de uma outra classisificação, esta tanto podia ser territorial — egípcio, sírio, ira quiano—, como social — citadino, camponês, nómada. É a este último que o termo «Árabe» pertence. Mas reteve tão pouco do seu significado étnico que chegamos a encontrá-lo por vezes asso ciado a nómadas não-árabes de origem curda ou turcomana. Quando a classe social dominante no seio da Ummat al-Islam era predominantemente turca — como foi o caso, durante muitos séculos, no Próximo Oriente — encontramos por vezes a expressão «Descendentes ou Filhos dos Árabes» {Abna’al-’Arab ou Awlad al-’Arab) aphcada à população de língua árabe da cidade e do campo, para os distinguir da classe governante turca, por um lado, e dos nómadas ou Árabes, por outro. No árabe coloquial esta situação manteve-se substancial mente inalterada até aos dias de hoje, muito embora os Turcos tenham cedido o lugar a outros como classe dominante. Todavia, entre os intelectuais dos países de Ungua árabe verificou-se uma alteração de alcance significativo. A rápida evolução da actividade e influência europeias nestas regiões trouxe consigo o conceito europeu de nação como um conjunto de pessoas com um território, uma língua, carácter e aspirações políticas comuns. O Império Otomano havia dominado desde 1517 a maior parte dos povos de língua árabe do Próximo e Médio Oriente. O impacto da ideia de nação num povo nos estertores da violenta transformação social provocada pelo eclodir do imperialismo ocidental produziu os primeiros esboços de um renascimento árabe e de um movi mento nacional árabe, visando a criação de um ou vários estados independentes. O movimento começou na Síria e os seus primei ros mentores parecem tê-lo concebido em termos estritamente locais. Em breve alastrou ao Iraque, e nos anos imediatos esta 20
beleceu relações mais estreitas com os movimentos nacionalistas locais do Egipto e dos países de expressão árabe do Norte de África. Para os teorizadores do nacionalismo árabe os Árabes são uma nação no sentido europeu, nela incluindo todos aqueles que dentro de certas fronteiras falam a língua árabe e são sensíveis à memória da glória árabe passada. Há diferentes pontos de vista acerca da localização destas fronteiras. Alguns consideram apenas os países de língua árabe do Sudoeste da Ásia. Outros acrescen taram o Egipto — embora neste caso houvesse conflito de opinião com muitos Egípcios que conceberam o seu nacionalismo em ter mos puramente egípcios. Muitos incluem todo o mimdo de Ungua árabe, desde Marrocos até aos confins da Pérsia e da Turquia. Nesta perspectiva, a barreira social entre sedentários e nómadas deixou de ter significado, apesar da sobrevivência na linguagem coloquial de «Árabe» com o sentido de Beduino. Torna-se mais difícil remover a barreira religiosa de uma sociedade longamente dominada por uma fé teocrática. Embora só um pequeno número dos porta-vozes do movimento o reconheçam, muitos árabes ex cluem ainda aqueles que, mesmo falando a língua árabe, rejeitam a sua fé e, consequentemente, grande parte da civilização que ela forjou. Resumindo: a palavra «Árabe» surge pela primeira vez no século IX a.C., referindo-se ao Beduino da estepe do Norte da Arábia. Manteve-se em uso com este sentido durante vários sé culos entre os povos sedentários dos países circunvizinhos. Na Grécia e em Roma o seu âmbito foi alargado pela primeira vez a toda a península, abrangendo os povos dos oásis e a civilização relativamente avançada do Sudoeste. Na própria Arábia, parece ter sido ainda limitada aos nómadas, conquanto a língua comum dos árabes sedentários e nómadas tivesse a designação de árabe. Após as conquistas islâmicas e ao longo do Império Árabe, fez a distinção entre a classe dominante de língua árabe dos conquis tadores de origem árabe e toda a massa dos povos conquistados. À medida que o Reino Árabe se ia transformando num cosmo polita Império Islâmico, passou a abranger — numa utilização mais exterior do que interior— a variegada cultura do Império, 21
criada por homens de muitas raças e religiões, mas em língua árabe e condicionada pelo gosto e tradição árabes. Com a fusão dos conquistadores árabes e dos conquistados arabizados e a sua sujeição comum a outros elementos dominantes, perdeu gradual mente o seu conteúdo nacional, constituindo uma expressão social aphcada apenas aos nómadas que haviam preservado com maior fidelidade do que quaisquer outros a hngua e o modo de vida árabes originais. Os povos de língua árabe das regiões povoadas eram normalmente classificados como Muçulmanos, por vezes como «descendentes ou filhos dos Árabes», para os distinguir dos Muçulmanos de outras línguas. Conquanto todas estas diferentes utilizações tenham sobrevivido em determinados contextos até hoje, uma nova acepção resultante do impacto do Ocidente foi ganhando força nos últimos cinqüenta anos. Considera os povos de língua árabe como mna nação ou um conjunto de nações irmãs no sentido europeu, unidas por um território, por uma língua e por uma cultura comuns e por uma aspiração comum à inde pendência política. É uma tarefa bastante mais fácil examinar o alcance do Arabismo em termos de espaço, na actuahdade. Os países de língua árabe dividem-se em três grupos: Sudoeste Asiático, Egipto e Norte de África. O maior território árabe do primeiro grupo é a própria Península Arábica, na sua maior parte ocupada pelo reino patriarcal da Arábia Saudita, que permanece, não obstante o advento da indústria petrolífera, largamente pastoril e nómada. Um golpe republicano contra a monarquia no lémen, em 1962, deu início a uma guerra civil que se prolongou durante anos. Em 1967 a colônia e os protectorados de Adém tomaram-se indepen dentes com o nome de «República Popular do lémen do Sul», e em 1971 os Estados do Golfo conseguiram também a sua inde pendência, a maior parte deles agrupando-se na União dos Emi ratos Árabes. Para norte estendem-se as terras do Crescente Fértil, até 1918 províncias do Império Otomano, e que constituem actualmente o Iraque, a Síria, o Líbano, a Jordânia e Israel. É nestes países que o processo de arabização foi mais longe e onde o sentimento de identidade árabe é mais forte. Ligado à Ásia 22
árabe, no canto nordeste de África, fica o Egipto, o mais popu loso, desenvolvido e homogéneo dos Estados de língua árabe, possuidor da mais longa tradição de nacionahsmo político e de existência política distinta nos tempos modernos. Em Fevereiro de 1958 o Egipto''formou com a Siria a República Árabe Unida, de que a Siria veio a sair em 1961. A sul do Egipto, no continente africano, fica a República do Sudão, de língua predominantemente árabe, que obteve a inde pendência em 1956. Para oeste, a antiga colônia italiana da Libia tornou-se urna monarquia independente em Dezembro de 1951 a independência da Tunísia e de Marrocos foi reconhecida em 1956, e a da Argélia, depois de uma longa e dura luta, em 1962 Na maior parte destes países a população é mista, com predo minio da língua árabe, ainda que com minorias de língua berbere, sobretudo em Marrocos. Alguns europeus permaneceram. Todos estes países têm sido extremamente afectados pela penetração económica, cultural e poUtica europeia, menos do que pelo ressur gimento árabe. Nos últimos anos os movimentos nacionalistas no Norte de África tornaram-se cada vez mais vigorosos. Con quanto os seus objectivos sejam ainda essencialmente locais, a irradiação das influências culturais árabes do Próximo Oriente,, especialmente na Tunísia, vai criando um maior sentimento de afinidade com os Árabes orientais. Além destes países, há comu nidades árabes nas antigas dependências inglesas e francesas em África, inseridas no meio de populações predominantemente ne gras, e pequenas minorias árabes em Israel, na Turquia e na Pérsia. A população total de língua árabe na Ásia e em África é calculada habitualmente em cerca de cem milhões, dos quais cerca de trinta e cinco milhões vivem no Egipto e outros trinta e cinco milhões no Norte de África. Todos estes países têm muito em commn. Todos eles se encontram na fronteira entre o deserto e as terras de cultivo, e todos se confrontam desde sempre com o problema permanente do invasor nómada. Dois dos mais importantes, o Egipto e o Iraque, são os vales irrigados de grandes rios, importantes rotas comerciais e sedes de Estados centralizados desde épocas remotas. Quase todos são países de campesinato, assentes na mesma ordem 23
social e nas mesmas classes governantes — muito embora as for mas exteriores e as próprias realidades sociais se vão alterando à medida que o impacto do mundo moderno os vai afectando sepa radamente, em épocas diferentes, de formas diferentes e com diferentes «tempos». Todos, com excepção da própria Arábia, foram arrastados para o Arabismo e para o Islão pelas grandes conquistas, e todos receberam o mesmo grande legado de língua, religião e civilização. No entanto, a língua apresenta muitas dife renças locais, do mesmo modo que a religião, a cultura e a tra dição social. Um longo afastamento e as grandes distâncias con tribuíram para que os Árabes, em fusão com diferentes culturas nativas, criassem marcadas variantes locais da tradição comum, por vezes, como no Egipto, com um sentido de identidade local e nacional que mergulha as suas raízes no passado. Entre os povos conquistados, aqui e ali, houve os que recusaram quer a língua do conquistador, quer a sua religião, ou mesmo ambas, sobrevivendo no meio dos Árabes, como foi o caso dos Curdos ou dos Berberes no Iraque ou no Norte de África, dos Maronitas ou dos Coptas no Líbano ou no Egipto. Surgiram novas seitas no próprio Islão, por vezes através da acção de cultos preexistentes: Xiitas e Yaziditas no Iraque, Druzos na Síria e no Líbano, Zaiditas e Ismailitas no lémen. A época moderna, ao submeter os territórios árabes a uma grande diversidade de processos, trouxe novos factores de desunião que se prendem com a existência de níveis sociais diferentes e também com interesses tanto regionais como dinásticos. Todavia, os progressos actuais também contribuem para reforçar os factores de unidade — o rápido desenvolvimento das comunicações mo dernas, possibilitando uma maior e mais rápida aproximação das diversas partes do mundo árabe; o alargamento da educação e da instrução, conferindo maior ampUtude ao poder unificador de uma língua escrita e de uma memória comuns; e, obviamente, a nova solidariedade em oposição ao Ocidente e em reacção à influência ocidental. Resta discutir um último problema nestas notas introdutórias. O escritor europeu que se dedica à história islâmica trabalha em condições especialmente difíceis. Ao escrever numa língua oci24
dental, terá que usar necessariamente termos ocidentais. Esses termos têm por base categorias ocidentais de pensamento e de análise, determinados na sua maior parte pela Historia do Oci dente. A sua aplicação aos condicionalismos de outra sociedade formada por influências diferentes e vivendo formas de vida diferentes pode, na melhor das hipóteses, ser urna mera analogia e perigosamente enganadora. Consideremos um exemplo: alguns binômios como Igreja e Estado, espiritual e temporal, eclesiástico e laico, não tinham verdadeiramente correspondência em árabe até aos tempos modernos em que foram criadas para traduzir ideias modernas; dado que a dicotomia que expressam era desco nhecida da sociedade muçulmana medieval e desarticulada em relação à mentalidade muçulmana medieva. A comunidade do Islão era simultaneamente Igreja e Estado num todo, indistinta mente interligados; o seu chefe titular, o Caüfa, era ao mesmo tempo chefe secular e religioso. Também a expressão «feuda lismo», em sentido estrito, refere-se à forma de sociedade exis tente na Europa Ocidental entre a queda do Império Romano e o começo da ordem moderna. A sua utilização noutras áreas e para outras épocas, a menos que seja cuidadosamente definido no seu novo contexto, pode gerar a impressão de que o tipo de sociedade assim descrito é idêntico ou pelo menos similar ao feu dalismo europeu ocidental. Não existem, porém, duas sociedades exactamente iguais, e muito embora em certos períodos a ordem social do Islão apresente um número significativo de semelhanças com o feudalismo europeu ocidental, tal não justifica a total iden tificação que está implícita numa utihzação não restritiva da palavra. Expressões como religião, estado, soberania, democracia, significam coisas muito diversas no contexto islâmico e assumem significações distintas em diferentes partes da Europa. O recurso a tais palavras é, porém, inevitável ao escreveí-se em inglês e, pof conseqüência, ao escrever-se nas línguas modernas do Oriente, influenciadas por quase um século de formas de pensamento e de classificação ocidentais. Nas páginas que se seguem devem ser entendidas sempre no seu contexto islâmico, não implicando nunca um maior grau de semelhança com as instituições ocidentais correspondentes do que o que é especificamente indicado. 25
I
A ARÁBIA ANTES DO ISLÃO
Oráculo contra o deserto do mar. Como vêm os tufões da parte do meio-dia, assim vem ele (o inimigo) do deserto, de urna térra terrível. (Isaías, xxi. I)
A Península Arábica forma um vasto rectángulo com urna área de cerca de um milhão e duzentos e cinqüenta mil milhas quadradas. É limitada a norte pela cadeia de territorios comummente designados por Crescente Fértil — da Mesopotâmia, Síria e Palestina — e desertos limítrofes; a leste e a sul pelo Golfo Pérsico e pelo Oceano Indico; a oeste pelo Mar Vermelho. Os distritos do Sudoeste do lémen são uma região montanhosa bem irrigada, o que favoreceu desde muito cedo o desenvolvimento da agricultura e a implantação de civilizações sedentárias relati vamente avançadas. O resto do território é constituído por estepes áridas e por desertos aqui e ali interrompidos por um oásis, atra vessados por algumas rotas de comércio e caravanas. A população era essencialmente pastoril e nómada, vivendo dos rebanhos e do produto das incursões aos habitantes dos oásis e das províncias vizinhas cultivadas. Os desertos da Arábia apresentam diversos tipos: os mais importantes, de acordo com a classificação árabe, são os de Nufud, imensa vastidão de dunas móveis que formam uma paisagem em permanente mutação; os de Hamad, de terreno mais consistente nas zonas próximas da Síria e do Iraque; a zona das estepes, de solo mais compacto, onde chuvas oca.sionais fazem surgir uma vegetação súbita e efémera; e por último, o imenso e impenetrável deserto do Sudeste. As comunicações entre estas regiões são escas.sas e difíceis, dependendo essencialmente dos wadis. pelo que os 27
habitantes dos diferentes pontos da Arábia tinham poucos con tactos entre si. O Centro e o Norte da península são tradicionalmente divi didos pelos Árabes em três zonas. A primeira é a Tihama, palavra semítica que significa «terras baixas», que caracteriza as planicies e vertentes do htoral do Mar Vermelho. A segunda, mais para leste, é a do Hijaz ou «barreira». Esta expressão referia-se inicial mente apenas à cordüheira montanhosa que separa a planicie costeira do planalto de Najd, mas veio mais tarde a englobar grande parte da região litoral. Para leste do Hijaz fica o grande planalto interior de Najd, grande parte do qual constitui o deserto de Nufud. Desde muito cedo que a Arábia constituiu uma rota de trá fego entre os países do Mediterráneo e o Extremo Oriente, e a sua historia foi determinada, em larga medida, pelas vicissitudes do tráfico este-oeste. As comunicações tanto no interior como através da Arábia foram condicionadas pela configuração geográ fica da península, segundo linhas precisas. A primeira é a rota de Hijaz, que vai desde os portos do Mar Vermelho e postos fronteiriços da Palestina e Transjordánia, ao longo do flanco interior da cordüheira costeira do Mar Vermelho até ao lémen. Em épocas diversas foi urna rota de caravanas entre o Império de Alexandre e dos seus sucessores no Próximo Oriente e os países do Extremo Oriente. Foi também a rota do caminho-de-ferro de Hijaz. Urna segunda rota atravessa o Wadi d-Dawasir, desde o extremo nordeste do lémen até à Arábia central, onde se une a urna outra rota, a Wadi r-Rumma para o sul da Mesopotámia. Esta constituiu a principal via de comunicação, nos tempos anti gos, entre o lémen e as civilizações da Assíria e da Babilônia. Por último, a Wadi s-Sirhan liga a Arábia central ao sudeste da Siria através dos oásis de Jawf. Enquanto a investigação histórica na Arábia não se processar em moldes idénticos ao que se tem feito no Egipto, na Palestina e na Mesopotámia, os primeiros séculos da sua história permane cerão obscuros, e o investigador terá de ir abrindo caminho cautelosamente por entre os destroços de hipóteses semiconstruídas, semidestruídas, que o historiador, com o escasso material de 28
que actualmente dispõe, não pode nem completar nem deitar por terrq. De todas, talvez a mais famosa seja a teoria de Winckler-Caetani, assim designada em homenagem aos seus dois expoentes mais célebres. De acordo com esta teoria, a Arábia foi na sua origem um território extraordinariamente fértil e pátria dos povos semitas. Ao longo de milênios foi sofrendo todo um processo de seca constante, de esgotamento de riquezas e de cursos de água, e de alastramento do deserto em detrimento das terras cultiváveis. A produtividade decrescente da península, jimtamente com o aumento da população, levou a uma série de crises de sobrepovoamento e, consequentemente, a um processo cíclico de inva sões dos países vizinhos pelos povos semitas da península. Foram essas diversas crises que levaram os Sírios, os Arameus, os Cananeus (incluindo Fenicios e Hebreus) e, finalmente, os Árabes até ao Crescente Fértil. Os Árabes de que nos fala a história seriam, assim, como que uma massa residual indiferenciada depois de terem tido lugar as grandes invasões da história antiga. Muito embora não tenha sido feito até à data nenhum levantamento geológico minucioso da Arábia, já vierani a lume algumas provas em apoio desta teoria, sob a forma de leitos secos de rios e outras indicações de anterior fertilidade. Não existe, porém, qualquer prova de que este processo de dessecação tenha ocorrido após o aparecimento de vida humana na península, nem mesmo que se tenha verificado a uma escala susceptível de influenciar directa mente o curso da vida humana. Existem também alguns teste munhos de carácter filológico em apoio desta tese, na medida em que a língua árabe, se bem que a mais recente das línguas semíticas no seu surgimento como instrumento hterário e cultural, é, não obstante, de diversas formas, a mais antiga de todas na sua estrutura gramatical e, por conseqüência, a que se encontra mais próxima da língua original proto-semítica. Uma hipótese alter nativa é a proposta pelo estudioso itahano Ignazio Guidi que considera o Sul da Mesopotâmia como a pátria dos semitas, e acentua que enquanto as línguas semíticas possueni vocábulos comuns para «rio» e «mar», não os têm para designar «montanha» ou «colina». Outros autores propõem a África e a Armênia. 29
A tradição nacional dos Árabes divide o povo árabe em dois ramos principáis, o do Norte e o do Sul. Essa distinção encontra eco no. capítulo X do Génesis, em que se referem duas linhas distintas de descendência de Shem para os povos do Sudoeste e do Centro e Norte da Arábia, sendo este último o que se encontra mais próximo dos Hebreus. O significado etnológico desta distin ção é, e provavelmente continuará á ser, completamente desco nhecido. Surge pela primeira vez na história em termos hnguísticos e culturais. A língua árabe do Sul é diferente da do Norte da Arábia, que veio a dar o árabe clássico. É escrita num alfabeto diferente, que chegou até nós através de inscrições, e é aparentada com o etíope que se desenvolveu efectivamente na Abissínia por influência dos colonos vindos do Sul da Arábia e que estabeleceram os primeiros centros da civilização etíope. Outra distinção impor•tante reside no facto de os Árabes do Sul serem um povo seden tário. A cronologia da história primitiva da Arábia do Sul é obscura. Um dos primeiros reinos referidos em registos é o de ^ab á, provavelmente o mesmo referido na Biblia com o nome de Sheba, cuja rainha estabeleceu relações com o rei Salomão. A exis tência de Sabá remonta possivelmente ao século X a.C. Existem referências ocasionais que datam do século VIII e testemunhos do seu florescimento no século VI. Por volta do ano 750 a.C. um dos reis Sabeus mandou construir o famoso dique de Marib, que durante muito tempo regulou a vida agrícola do reino. Eram mantidas ligações comerciais com o litoral africano e, provavel mente, com países mais afastados. Os Sabeus parecem ter levado a cabo uma vasta colonização no território africano e fimdado o reino da Abissínia, cujo nome provém de Habashat, povo do Sudoeste da Arábia. A partir do momento em que as conquistas de Alexandre puseram o mundo mediterrâneo em contacto com o Extremo Oriente, o crescente número de informações provenientes de fontes gregas atesta o interesse pela Arábia do Sul. Os Ptolomeus do Egipto enviaram frotas pelo Mar Vermelho para explorar as costas da Arábia e as rotas comerciais para a Índia. Os seus suces sores no Próximo Oriente mantiveram o mesmo interesse. Nos 30
finais do século V d.C. o reino de Sabá encontrava-se em avan çado estado de declínio. Fontes muçulmanas e cristãs sugerem ter sucumbido sob o domínio dos Himiaritas, outro povo do Sul da Arábia. O último rei himiarita, Dhu Nuwas, converteu-se ao judaísmo. Como represália contra as perseguições movidas por Bizâncio aos Judeus, adoptou medidas repressivas contra os colo nos cristãos estabelecidos no Sul da Arábia. Tais medidas vieram, por seu turno, a ter repercussões em Bizâncio e na Etiópia, nessa época um estado cristão, permitindo que esta última tivesse simul taneamente um incentivo e a oportunidade de vingar os cristãos perseguidos e apoderar-se da chave do comércio com a Índia. Uma invasão etíope bem sucedida, com o apoio de cristãos locais, pôs termo ao reino Sabeu. O domínio etíope no lémen não durou muito. No ano 575 d.C., uma expedição persa invadiu o país e reduziu-o a uma satrapia sem dificuldades de maior. Porém, o domínio persa também foi efêmero, e à data da conquista muçul mana poucos vestígios restavam dele. A base da sociedade no Sul da Arábia era a agricultura, e as inscrições com as suas freqüentes referências a diques, canais, problemas fronteiriços e propriedade rural sugerem um elevado grau de desenvolvimento. Além de cereais, os Árabes do Sul pro duziam mirra, incenso e outras especiarias e essências, que cons tituíam à sua principal fonte de exportação. Nos países do Medi terrâneo as especiarias do Sul da Arábia, frequentemente confun didas com as que chegavam através da Arábia do Sul provenientes de territórios mais distantes, levaram à sua reputação quase len dária de país de riquezas e de prosperidade — a Arabia Eudaemon ou a Arabia Félix do mundo clássico. As especiarias da Arábia encontram múltiplos ecos na literatura ocidental, desde o «thesauris arabicis» de Horácio até aos «perfumes da Arábia», de Shakespeare e às «spicy shores of Araby the blest» de Milton. A organização política da Arábia do Sul era monárquica e o seu regime parece assentar na sucessão de pais para filhos. Os reis não tinham carácter divino como nos restantes territórios do Oriente, e a sua autoridade, pelo menos em determinadas épocas, era limitada por conselhos de notáveis e, posteriormente, por um 31
certo tipo de feudalismo, em que os senhores locais governavam dos seus castelos os vassalos e camponeses. A religião da Arábia do Sul era politeísta e apresenta analo gias, mais de ordem geral do que de pormenor, com as de outros antigos povos semitas. Os templos constituíam centros importantes da vida pública e possuíam grandes riquezas, administradas pelo chefe dos sacerdotes. O produto das colheitas de especiarias era considerado sagrado e uma terça parte reservada aos deuses, isto é, aos sacerdotes. Muito embora a escrita fosse conhecida e te nham chegado até nós inúmeras inscrições, não existe qualquer indício de livros ou de literatura. Se nos voltarmos do Sul para o Centro e Norte da Arábia, de paramos com uma história completamente diferente, que assenta em informações muito mais escassas. Vimos que algumas fontes assírias, bíblicas e persas nos oferecem referências ocasionais a povos nómadas do Centro e do Norte. Do mesmo modo, os Árabes do Sul parecem ter estabelecido colônias do Norte, provavelmente para fins comerciais. A primeira informação detalhada que pos suímos data da época clássica, altura em que a penetração de influências helenísticas procedentes da Síria e a exploração perió dica da rota comercial da Arábia ocidental deram origem a uma série de estados fronteiriços, semicivilizados nos desertos limítro fes da Síria e do Norte da Arábia. Esses estados, ainda que de origem árabe, encontravam-se sob uma forte influência da cultura aramaiça,.heleuizada .e utili zavam, de um modo geral, a língua aramaica nas suas inscrições. A sua natureza árabe revela-se unicamente nos seus nomes pró prios. O primeiro e talvez o mais importante de todos foi o dos Nabateus que dominou, no período do seu maior poderio, uma área que se estendia desde o Golfo de Aqaba para norte até ao Mar Morto, abrangendo uma grande parte do Norte do Hijaz. O primeiro rei de que temos conhecimento através de inscrições é Aretas (Haritha, em árabe), mencionado em 169 d. C. A capital era em Petra, no actual reino da Jordânia. O reino nabateu estabeleceu os primeiros contactos com Roma no ano 65 d. C., quando Pompeu visitou Petra, ^ s jám anos estabeleceram rela ções amigáveis com o reino árabe, qué^Tuficíoilava cómo'"uma 32
espécie de estado-tampão entre as regiões colonizadas do oriente romano e o deserto selvagem. Em 25-24 d.C. o reino nabateu serviu de base à expedição de Élio Galo. Essa expedição enviada por Augusto para conquistar o lémen constituiu a única tenta tiva romana de penetração na Arábia, com o objectivo de con trolar o escoamento a sul da rota comercial para a India. Par tindo de um porto nabateu no Mar Vermelho, Élio Galo conseguiu desembarcar na costa ocidental da Arábia e penetrar até ao inte rior. Todavia, a expedição revelou-se um fracasso total e termi nou numa vergonhosa retirada romana. Ao longo do primeiro século da era cristã, as relações romano-nabateias foram-se deteriorando e em 105 d. C. o Imperador Trajano transformou a Nabateia do norte numa provincia romana.
O Próximo e Médio Oriente em vésperas da ascensão do Islão
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conhecida por Palaestina Tertia. Refira-se de passagem que os Árabes das províncias limítrofes romanas deram ao Império Ro mano pelo menos xun Imperador, Filipe, que governou de 244 a 249 d. C. No período que se seguiu à sua morte, assistiu-se à ascensão do segundo dos estados árabes aramaizados do Sudeste da Síria. Trata-se do famoso reino de Palmira, fundado no deserto siro-árabe, uma vez mais no ponto de partida da rota comercial do ocidente. O seu primeiro soberano foi Odenato (em árabe Udaina), reconhecido rei pelo Imperador Galiano em 265 d. C. como recompensa pelo auxího prestado na guerra con tra os Persas. Após a sua morte, sucedeu-lhe a viúva, a célebre Zenóbia (em árabe Zainab), que durante algum tempo se intitulou rainha da maior parte do Próximo Oriente e proclamou seu filho, Athenodorus segundo as fontes clássicas, provavelmente a tradu ção grega do árabe Wahballat, César Augusto. O Imperador Aureliano passou finalmente à acção e em 273 d. C. conquistou Palmira, subjugou o reino e enviou Zenóbia para Roma, fazen do-a desfilar numa marcha triunfal romana acorrentada com cor rentes de ouro. Esses dois estados, a despeito de um breve instante de glória nos anais romanos, foram incidentes transitórios, faltando-lhes a consistência e a firmeza dos reinos do Sul da Arábia, apoiados, de um modo geral, em povos nómadas e seminómadas, de carac terísticas flutuantes. A importância que tiveram advinha-lhes da sua posição nas rotas comerciais que partiam de Roma e atraves savam a Arábia Ocidental até ao Extremo Oriente, e da sua fun ção como estados-tampão ou principados tributários fronteiriços, que poupavam aos Romanos a tarefa árdua e dispendiosa de manutenção de defesas militares nas fronteiras junto ao deserto. Sabemos menos de dois estados árabes que floresceram na época helenística, no interior — os estados da Lihyan e de Thamud. São conhecidos essencialmente através de inscrições feitas na sua própria língua e, no caso do último, a partir de algumas referências no Alcorão. Supõe-se que ambos tenham estado du rante algum tempo sob a suserania dos Nabateus, tomando-se independentes mais tarde. 34
Num dado momento, no século IV, as rotas comerciais pa recem ter-se desviado do Oeste da Arábia para outros canais — através do Egipto e do Mar Vermelho e através do vale do Eufra tes e do Golfo Pérsico. O período que medeia entre os séculos IV e V foi de declínio e de depauperamento, No Sudoeste, como vi mos, as civilizações do lémen enfraqueceram e submeteram-se ao domínio estrangeiro. A perda de prosperidade e as migrações das tribos do sul para o norte são sintetizadas e simplificadas pela tradição nacional árabe no episódio único e dramático da rotura do dique de Marib e conseqüente devastação. A norte, os estados fronteiriços anteriormente florescentes ou ficaram sujeitos ao do mínio imperial, ou regressaram a um anarquismo nómada. As cidades existentes na maior parte da península foram perdendo importância ou desapareceram, e o nomadismo alastrou por toda a parte, à custa do comércio e da cultura. O traço dominante da população do Centro e do Norte da Arábia neste período crucial que precedeu imedialamente a as censão do Islão é o do tribalismo beduino.; Na sociedade beduína a unidade social é constituída pêlõ grupo e Sãõ indivíduo. Este só tem direitos e obrigações enquanto membro do respectivo grupo. O grupo mantém-se unido exteriormente pela necessidade de autodefesa contra as dificuldades e perigos da vida no deserto, e internamente pelos laços de sangue de descendência por liriha masculina, que constitui o vínculo social básico. A subsistência da tribo depende dos rebanhos e manadas e da pilhagem de aldeias vizinhas e de caravanas que se aventuram a atravessar a Arábia. É através de uma espécie de cadeia de pilhagens recíprocas que os produtos e géneros provenientes dos territórios colonizados penetram, por via das tribos mais próximas das fronteiras até às tribos do interior. Normalmente, a tribo não reconhece a pro priedade privada, se bem que exerça direitos colectivos sobre as pastagens, nascentes, etc. Encontramos testemunhos de que por vezes os próprios rebanhos constituíam propriedade colectiva da tribo e de que apenas os bens móveis eram considerados proprie dade individual. A organização política da tribo era rudimentar. O chefe era o Sayyid ou Sheikh, chefe eleito, o qual raramente representava 35
algo mais do que o primeiro entre os seus iguais. Mais do que ditar, ele seguía a opinião tribal., Não podia impor obrigações nem infligir penalidades. Os direitos e as obrigações cabiam às diversas famílias no seio da tribo, mas a nenhuma de fora. A fun ção do «governo» do Sheikh era mais de arbitragem do que de exercício de autoridade. Não detinha quaisquer poderes coercivos e os próprios conceitos de autoridade, soberania, penas públicas, etc. eram rejeitados pela sociedade nómada árabe. O Sheikh era eleito pelos velhos da tribo, normalmente de entre os membros de uma única família, funcionando como uma espécie de casa de Sheikhs, designada por Ahl al-bait, «as pessoas da casa». Era apoiado por um conselho de anciãos denominado Majlis, consti tuído pelos chefes das famílias e pelos representantes dos clãs existentes na tribo. O Majlis funcionava como porta-voz da opi nião pública. Parece ter sido reconhecida a distinção entre deter minados clãs considerados aristocráticos e os restantes. A vida da tribo era regulada pelo direito consuetudinário, a Sunna, ou prática dos antepassados, cuja autoridade advinha da veneração pelo passado, e encontrava a sua única sanção na opi nião pública. O Majlis tribal era o seu símbolo formal e único instrumento. A principal restrição social à anarquia dominante consistia na vingança pelo sangue, impondo à família de um ho mem assassinado o dever de exigir vingança do assassino ou de um dos membros da sua tribo. A religião dos nómadas era uma forma de pohdemonismo próxima do paganismo dos antigos semitas. As entidades por eles adoradas eram, na origem, os habitantes e seres tutelares de luga res específicos, que viviam nas árvorès, nas fontes e especialmente nas pedras sagradas. Havia alguns deuses no sentido real, que transcendiam na sua autoridade as fronteiras dos cultos pura mente tribais. Os três mais importantes eram Manat, ‘Uzza e Allat, este último mencionado por Heródoto. Os três estavam submetidos a uma divindade superior, normalmente designada por Allah. A religião tribal não possuía um verdadeiro clero; os nómadas errantes transportavam consigo os seus deuses numa tenda vermelha, espécie de arca da ahança, que os acompanhava durante os combates. A sua religião não era individual, mas comu36
nal. A fé tribal concentrava-se à volta do deus da tribo, geral mente simbolizado por urna pedra e, às vezes, por qualquer outro objecto. Ficava sob a custódia da casa do Sheikh, que desse modo conquistou um certo prestigio religioso. Deus e culto constituíam a divisa da identidade tribal e a única expressão ideológica do sen tido de unidade e de coesão da tribo. A submissão ao culto tribal era expressiva de lealdade política. A apostasia era equivalente a traição. O oásis era a única excepção a este modo de vida nómada. Aqui, pequenas comunidades sedentárias formavam uma orga nização política rudimentar, e a família mais importante do oásis estabelecia, em regra, uma espécie de regime de pequena realeza sobre cs seus habitantes. Por vezes, o soberano do oásis reivindi cava uma vaga suserania sobre as tribos vizinhas. Algumas vezes também, um dos oásis conseguia obter o controlo de um oásis vizinho, dando assim origem a um efêmero império no deserto. Só um deles, o de Kinda, merece que se lhe faça referência uma vez que a sua ascensão e expansão prefiguram, de muitos modos, a posterior expansão do Islão. O reino de Kinda floresceu no Norte da Arábia, nos finais do século V e inícios do século VI. Inicialmente poderoso, expandindo-se pelos territórios dos estados fronteiriços, soçobrou devido à falta de força níoral e de coesão interna, e ainda por não ter conseguido penetrar as barreiras eri gidas pelos impérios bizantino e persa, então muito mais poderosos do que algumas décadas mais tarde quando assistiram ao assalto avassalador do Islão. O reino de Kinda deixou uma marca inde lével na poesia árabe. No século VI as tribos árabes da península possuíam uma linguagem e uma técnica poéticas comuns, inde pendentemente dos dialectos tribais, que as unia numa única tra dição e numa única cultura de transmissão oral. Essa língua e literatura comuns ficou a dever muito da sua força e do seu impulso aos feitos e à memória de Kinda, a primeira grande aventura colectiva das tribos do Centro e do Norte. Ao longo do século VI atingiu toda a sua maturidade clássica. Os nómadas foram entretanto estabelecendo, aqui e ali, ci dades com um nível de sociedade muito mais avançado. Destas a mais importante foi Meca, no Hijaz. Na cidade cada clã conti 37
nuava a ter o seu Majlis e a sua pedra, mas a união dos clãs que constituíam a cidade manifestava-se exteriormente através de um conjunto de pedras reunidas num santuário central com um sím bolo de unidade em Meca, onde um conselho denominado M da, formado pelos Majlis dos clãs, veio substituir o simples Majlis tribal. O carácter condicional e consensual da autoridade do Sheikh foi enfraquecendo e, em certa medida, foi suplantado por um tipo de oligarquia das famílias dominantes. Apesar da regressão verificada neste período, a Arábia não se encontrava ainda totalmente isolada do mundo civilizado, man tendo-se numa zona de fronteira. Tanto a cultura persa como a cultura bizantina, nos seus aspectos material e moral, penetraram através de diferentes canais, muitos deles Ugados às rotas comer ciais transarábicas. O estabelecimento de colônias estrangeiras na própria península revestiu-se de certa importância. Numerosas colônias de Judeus e de Cristãos fixaram-se em diversos pontos da Arábia, divulgando a cultura aramaica e helenista. O principal centro cristão do Sul da Arábia situava-se em Najran, onde se desenvolveu uma vida poUtica relativamente avançada. Por toda a parte se encontravam judeus e árabes judaizados, designada mente em Yathrib, que mais tarde veio a chamar-se Medina. Eram essencialmente agricultores e artesãos. A sua origem é in certa, e muitas teorias diferentes têm sido avançadas. Outra via de penetração foi através dos estados fronteiriços. A mesma necessidade que levara os Romanos a incentivar a as censão dos reinos de Nabateia e de Palmira levou os Impérios Bizantino e Persa a permitir o desenvolvimento de estados árabes fronteiriços junto às fronteiras da Arábia com a Síria e o Iraque. Os estados de Ghassan e de Hira eram ambos cristãos, o primeiro monofisita, o segundo nestoriano. Ambos apresentavam traços da cultura aramaica e helenística, que se infiltrou em parte para o interior. Os primeiros tempos da história de Ghassan são obs curos, e o que chegou até nós foi exclusivamente através da tra dição árabe. Para alguns a sua história começa em 529 d. C. quando ao filarco Harith ibn Jabala (Aretas, em grego) foram concedidos novos títulos por Justiniano após a sua vitória sobre os vassalos árabes da Pérsia. Os Gassânidas habitavam nas ime 38
diações do rio Yarmuk e eram reconhecidos, mais do que nomea dos por Bizáncio. Em vésperas da ascensão do Islão, os subsidios até então pagos por Bizáncio aos Gassánidas foram suspensos por Herácho como medida económica após as desgastantes Guerras Pérsicas, razão pela qual os invasores muçulmanos foram encon trar Ghassan num estado de grande revolta contra Bizáncio. Ñas linhas fronteiriças da provincia do Iraque, sob o domínio persa, ficava o principado árabe de Hira, estado vassalo dos imperadores Sassánidas da Pérsia, dependentes enquanto tinham força e arro gantes quando enfraquecidos. A sua função no Império Sassânida foi idêntica à dos Gassánidas no Império Bizantino. Nas Guerras Pérsicas contra Bizâncio, os Árabes de Hira serviam normalmente como tropas auxiliares. O seu período de maior independência foi durante o reinado de Al-Mundhir III, contemporâneo e inimigo do gassânida Harith. Hira sempre foi considerada pela tradição árabe como parte essencial da comunidade árabe, em contacto directo com o resto da Arábia. Embora vassalo dos Persas, foi buscar a sua cultura essencialmente ao Ocidente, à civilização cristã e helenística da Síria. Inicialmente pagã, converteu-se ao cristianismo nestoriano trazido pelos cativos. A dinastia Lakhm foi exterminada após uma revolta dirigida pelo Imperador persa Chosroes II, que designou um governador persa que manobrava por trás de um governo fantoche árabe. Em 604 os Persas foram derrotados por tribos árabes recém-chegadas, que se fixaram na região pondo assim fim ao estado de Hira e à expansão persa no Nordeste da Arábia. O domínio estrangeiro directo constituiu uma outra fonte de influência estrangeira restrita. O breve domínio exercido pela Abissínia e pela Pérsia no lémen e nas províncias limítrofes, per sas e bizantinas, do Norte da Arábia, foi um dos canais através do qual os Árabes tomaram conhecimento das técnicas militares mais avançadas da época, para além da infiltração de outras in fluências de natureza material e cultural. A resposta árabe a esses estímulos externos pode ser analisada de diversos modos. Numa perspectiva material, os Árabes adqui riram armas, aprenderam a usá-las e conheceram os princípios da organização e da estratégia militar. Nas províncias fronteiriças 39
do Norte, as tropas auxiliares árabes eram subsidiadas e submeti das a urna preparação intensiva. Os têxteis, a alimentação, o vi nho e provavelmente também a arte da escrita chegaram até aos Árabes do mesmo modo. Intelectualmente, as religiões do Médio Oriente, com os seus principios monoteístas e concepções morais, trouxeram consigo alguns traços culturais e literários, preparando o caminho para o êxito que viria a ter a missão de Maomé. Essa resposta, de um modo geral, circunscreve-se a determinadas áreas, nomeadamente às populações sedentárias do Sul da Arábia e do Hijaz. A despeito da importância, em termos de extensão e de nú mero, dos nómadas, foram os elementos fixos e, particularmente, os que viviam e trabalhavam nas rotas comerciais transarábicas quem efectivamente moldou a história árabe. As sucessivas deslocações dessas rotas determinaram as alterações e as revoluções na história dos Árabes. Na segunda metade do século VI d. C. ocorreu uma modificação cujo alcance se veio a revelar da maior importância. A rota Eufrates-Golfo Pérsico, até então privilegiada pelo comércio entre o Mediterrâneo e o Extremo Oriente, come çou a deparar com dificuldades resultantes das lutas constantes entre os Impérios Bizantino e Persa, e com impedimentos rela cionados com rivalidades políticas, barreiras tarifárias e uma desorganização generahzada devida aos conflitos permanentes. O Egipto encontrava-se igualmente numa situação de desordem, não oferecendo já uma rota alternativa através do Vale do Nilo e do Mar Vermelho. Os mercadores voltaram-se uma vez mais para a rota difícil mas mais tranquila que partia da Síria, atraves sando a Arábia ocidental até ao lémen, a cujos portos aportavam os barcos vindos da índia. O próprio lémen havia sucumbido ao domínio estrangeiro. Os reinos de Palmira e de Nabateia, ao norte, cuja anterior prosperidade se ficara a dever a uma idêntica com binação de factores, haviam desaparecido há muito. A oportuni dade surgida foi aproveitada pela cidade de Meca. A história de Meca é obscura quanto aos primeiros tempos. Se, como foi sugerido, se identificar com a Macoraba do geó grafo grego Ptolomeu, foi fundada provavelmente como ponto de passagem na rota das especiarias do sul para o norte da Arábia. 40
Encontra-se situada no cruzamento das linhas de comunicação para sul para o lémen, para norte para o Mediterrâneo, para oriente para o Golfo Pérsico e para ocidente para o porto de Jeda no Mar Vermelho, via marítima para África. Durante algum tempo antes da ascensão do Islão, Meca esteve ocupada pela tribo de Quraish no Norte da Arábia, transformando-se rapida mente numa importante comunidade comercial. Os mercadores de Quraish tinham acordos comerciais com as autoridades fron teiriças de Bizâncio, da Abissínia e da Pérsia e desenvolviam um comércio intensivo. Duas vezes por ano enviavam grandes cara vanas para norte e para sul. Essas caravanas tinham a natureza de empreendimentos cooperativos, organizados por grupos de comerciantes associados de Meca. Noutras épocas do ano eram enviadas caravanas mais pequenas, e existem testemunhos da exis tência de comércio marítimo com África. Nos arredores de Meca realizavam-se diversas feiras, a mais importante das quais era a de ‘Ukaz. Integravam-se na vida económica de Meca, contri buindo para aumentar a influência e o prestígio da cidade entre os nómadas vizinhos. A população de Meca era diversificada. O elemento central e dominante, designado por «Quraish do Inte rior», era constituído por uma espécie de aristocracia mercantil de caravaneiros e homens de negócios, os empresários e verda deiros senhores do comércio transitário. Vinham a seguir os cha mados «Quraish do Exterior», uma população de pequenos comer ciantes estabelecidos mais recentemente e de condição mais humilde, e finalmente um proletariado de estrangeiros e de be duinos. No exterior de Meca encontravam-se os «Árabes de Quraish», as tribos beduínas dependentes. O governo da cidade de Meca foi descrito por Lammens como uma república mercantil dirigida por um sindicato de ho mens de negócios, ricos e prósperos. No entanto, esta afirmação não deve ser entendida no sentido de instituições republicanas organizadas segundo o modelo ocidental. Quraish acabava de emergir do nomadismo e o seu ideal continuava a ser o ideal nómada — o máximo de liberdade de acção e o mínimo de auto ridade pública. A autoridade era exercida pelo Mala, o corres pondente urbano do Majlis tribal, constituído por homens notáveis 41
e chefes de famíha eleitos em função da sua riqueza e posição social. A sua autoridade era meramente moral e persuasiva, assen tando na solidariedade de classe dos mercadores a verdadeira base de unidade. Essa solidariedade esteve bem patente na luta movida contra Maomé. A experiência comercial e a mentalidade da bur guesia de Meca criou-lhes capacidade de cooperação, de organi zação e de autocontrole, raros entre os Árabes e de importância primordial na administração do vasto império que viriam a subjugar. Foi neste contexto social que surgiu Maomé, o Profeta do Islão.
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II
M A O M É E A O RÍG EM DO ISLÂO
E foi assim que nós te revelámos um Alcorão árabe, para que advirtas Meca, a Mãe das Cida des, e os que estão à sua volta; para que os advir tas do Dia do Julgamento... (Alcorão, xlii, 5)
Num ensaio sobre Maomé e as origens do Islão, Ernest Renán observa que, diferentemente de outras religiões envoltas em mis tério nas suas origens, o Islão surgiu sob a luz crua da história. «As suas raízes não vão além da superfície, a vida do seu fundador é-nos tão familiar quanto a dos Reformadores do século XVI.» Ao fazer esta observação, Renan referia-se ao abundante mate rial biográfico fornecido pelo Sira, biografia muçulmana tradicio nal do Profeta. Quando os problemas decorrentes da govemação de um vasto império colocaram os Árabes perante toda a espécie de dificuldades que nunca se haviam posto durante a vida do Profeta, foi estabelecido o princípio de que todo o comportamento se deveria pautar não só pelo próprio Alcorão, a palavra de Deus, mas também pela prática e pela pregação do Profeta ao longo da sua vTdã. Essa prática e pregação foi preservada sob a forma de Tradições (em árabe, Hadith), em que cada Hadith é confirmado por uma série de pessoas do seguinte modo: «Eu ouvi de... que ouviu de... que ouviu de... que ouviu o Profeta dizer». No espaço de algumas gerações após a morte do Profeta, uma imensa colecção de Hadith foi tomando forma, abrangendo todos os aspectos da sua vida e pensamento. À primeira vista, o Hadith, pela sua cuidadosa enunciação de testemunhos autorizados, remetendo sempre para uma teste munha ocular, afigurar-se-ia uma fonte digna de todo o crédito. No entanto, surgem algumas dificuldades. A compilação e registo 43
dos Hadith só teve lugar muitas gerações após a morte do Pro feta. Durante todo esse período, as oportunidades bem como as razões justificativas de eventuais falsificações foram praticamente ilimitadas. Em primeiro lugar, o simples decurso de tempo e a falibilidade da memória humana são só por si suficientes para lan çar a dúvida quanto à autenticidade do testemunho transmitido oralmente ao longo de mais de um século. Mas houve também motivos para distorções deliberadas. O período que se seguiu à morte do Profeta foi de intenso desenvolvimento da comunidade islâmica. Houve toda uma série de questões e de conceitos novos, de ordem social, política, legal e religiosa, que penetraram no Islão trazidos pelos povos conquistados, e muitas das ideias e solu ções encontradas foram transpostas para o passado e postas na boca do Profeta através de Hadith forjados. Esse período foi tam bém de violentos conflitos internos entre indivíduos, famílias, fac ções e seitas no seio da comunidade islâmica. E todos eles não encontraram melhor forma para defender a respectiva causa senão produzindo Hadith atribuídos ao Profeta, em apoio do ponto de vista desejado. Vejamos apenas um exemplo: a posição e a importância relativas das famílias de Meca durante a vida do Profeta são distorcidas de modo quase irreconhecível na litera tura Hadith como conseqüência das rivalidades existentes entre os seus descendentes na época em que foi feito o registo dessa literatura. Os próprios Muçulmanos se aperceberam muito cedo de que muitos dos seus Hadith eram espúrios, o que os levou a incentivar a crítica científica no sentido de fazer a distinção entre os Hadith genuínos e os Hadith forjados, independentemente da sua motiva ção, piedosa ou não. A crítica tradicional assentava exclusiva mente no exame da cadeia de testemunhos — rejeitando alguns por alegado preconceito na exposição dos seus pontos de vista, outros porque nunca poderiam ter tido a oportunidade de acesso às informações transmitidas. Alguns críticos modernos detecta ram algumas falhas importantes neste tipo de abordagem. Em primeiro lugar, é fácil forjar a título de tradição uma cadeia de testemunhos autorizados. Em segundo lugar, a rejeição de deter minados testemunhos com base num critério opinativo representa 44
muito simplesmente a vitória de uma opinião individual e a sua aceitação como padrão de avaliação de outras. A crítica moderna prefere submeter o texto das tradições a um exame histórico-psicológico. A análise minuciosa e, por vezes, mesmo capciosa de Caetani e de Lammens veio mostrar que a literatura Hadith, na sua globalidade, de que faz parte a biografia do Profeta, deve ser tratada com cautela e com reservas, e cada um dos Hadiths exa minado e ponderado antes de ser aceite como autêntico. Mais recentemente, as investigações de Schacht demonstraram que um grande número de tradições dé conteúdo aparentemente histórico têm, efectivamente, um propósito legal ou doutrinai, sendo, por conseguinte, historicamente suspeitas. A fonte geralmente aceite no tocante à vida do Profeta é o próprio Alcorão, compilação da pregação feita por Maomé ao povo de Meca e de Medina, como revelação directa da palavra de Deus. Recorrendo ao Alcorão e aos poucos testemunhos obtidos de outras fontes, torna-se possível reconstituir a biografia de Maomé que, muito embora não seja de modo algum tão porme norizada quanto a da Tradição e dos primeiros autores europeus que a seguiram, é, não obstante, suficiente para revelar a impor tância fundamental de que se revestiu a sua carreira. Pouco se sabe dos antecedentes e dos primeiros anos de vida de Maomé, e mesmo esse pouco tem vindo a ser reduzido à me dida que a cultura ocidental, progressivamente, vai pondo em causa, um após outro, os dados da tradição muçulmana. Segundo parece, o Profeta terá nascido em Meca, entre 570 e 580 d. C., na família do Banu Hashim, uma família respeitável de Quraish, se bem que não pertencente à oligarquia dominante. Maomé, órfão, foi criado provavelmente pelo avô em circunstâncias difíceis, de pobreza. Adquiriu riqueza e posição social ao desposar Khadija, viúva de um rico comerciante, mais velha do que ele alguns anos. Estes acontecimentos são narrados no Alcorão: «Não te encon trou órfão e não te deu um lar, e encontrou-te errante e guiou-te, e encontrou-te necessitado e enriqueceu-te?» (xciii, 6-8). É pro vável que se tenha dedicado aos negócios, mas não é certo. Meca era uma cidade comercial, e o recurso freqüente a imagens e a 45
metáforas de cariz comercial no Alcorão sugere alguma experiên cia de negócios. As tradições que se referem a viagens de negó cios a territórios vizinhos exigem certas reservas. Na pregação de Maomé há poucos indícios do seu conhecimento desses países. O problema crucial do seu enquadramento espiritual suscita igual mente muitas dúvidas. É evidente que esteve sujeito a influências judaicas e cristãs. Atestam-no os próprios conceitos de mono teísmo e de revelação assim como os múltiplos elementos bíblicos contidos no Alcorão. No entanto, Maomé não leu a Bíblia. A tra dição muçulmana diz-nos que era iletrado. Pode ser ou não verdade, mas as suas versões de episódios bíblicos sugerem que os seus conhecimentos da Bíblia foram adquiridos por via indi recta, provavelmente através de comerciantes e de viajantes ju deus e cristãos, cujas informações sofreram influências um tanto ousadas e apócrifas. A tradição fala de um grupo denominado Hanifes, pagãos de Meca descontentes com a idolatria dominante do seu povo e que aspiravam a uma forma mais pura de religião, embora não estivessem ainda preparados para aceitar nem o Ju daísmo nem o Cristianismo. Talvez seja entre eles que se devam procurar as origens espirituais de Maomé. Maomé ouviu pela primeira vez o Chamamento quando es tava prestes a atingir os quarenta anos. Se foi o clímax de uma longa evolução ou uma súbita explosão, como o sugerem o Alco rão e a tradição, não se sabe ao certo, se bem que a última hipó tese se afigure mais provável. Os habitantes de Meca considera ram, de princípio, a sua pregação inofensiva e não lhe moveram qualquer oposição. Nessa fase, Maomé não tinha possivelmente a intenção de fundar uma nova religião, procurando tão somente dar a conhecer aos Árabes uma revelação em língua árabe, à semelhança do que acontecera antes com outros povos nas suas próprias línguas. Os capítulos do Alcorão relativos a Meca são essencialmente religiosos e ocupam-se fundamentalmente de ques tões tais como a unidade de Deus, a iniqüidade do espírito idólatra e a iminência do julgamento divino. Os apoios que obteve inicial mente foram escassos, e encontrou-os sobretudo entre as classes mais humildes. Entre os primeiros conversos encontravam-se sua mulher Khadija e seu primo Ali, que viria a ser o quarto Califa. 46
À medida que Maomé se foi tornando mais agressivo e começou a atacar abertamente a religião existente em Meca, a oposição movida contra si e os seus adeptos pelos elementos governantes foi endurecendo. Um autor do século XIX tentou apresentar a luta travada entre a comunidade muçulmana recém-surgida e a oligar quia de Meca como um conflito de classes em que Maomé repre sentava os mais desfavorecidos e a sua revolta contra a oligarquia burguesa instalada no poder. Muito embora esta perspectiva sobreleve um aspecto particular da pregação de Maomé em detri mento dos restantes, contém muito de verdade, na medida em que ele foi buscar o seu apoio inicial junto das classes^mais pobres e a oposição desencadeada por Meca teve na origem razões de ordem essencialmente económica. A sua motivação assenta em duas or dens de factores. A primeira e mais importante tem a ver com o receio de que a abolição da antiga religião e do estatuto de que gozava o santuário de Meca a privassem da sua situação única e privilegiada como centro não só de peregrinação, mas também de negócios. A segunda prende-se com a contestação das preten sões de alguém que não pertencia a uma das famílias dominantes. Ainda que económica nas suas motivações, a oposição manifes tou-se mais no campo político do que no religioso, acabando por conduzir Maomé à acção política. O último período da sua per manência em Meca foi assinalado pela perseguição movida aos Muçulmanos que, embora menos violenta do que a tradição su gere, foi, no entanto, suficientemente importante para dar origem à retirada de um grupo de conversos para a Abissínia. Mau grado as perseguições, o Islão, assim se designava a aceitação da fé de Maomé, continuou a atrair novos discípulos. Entre os mais notá veis destacam-se Abu Bakr, Umar, membro da família de Banu Adi, cuja rapidez de decisão e de acção foi de inestimável valor para a comunidade em luta, e Uthman, membro da casa dos Omíadas, uma das famílias mais proeminentes de Meca e o único con vertido importante de entre a classe dirigente. O facto de não conseguir um progresso significativo contra a oposição de Meca levou Maomé a tentar o êxito noutras para gens. Após uma tentativa abortada na cidade de Taif, aceitou o convite do povo de Medina e para aí se transferiu. 47
A cidade de Medina, a cerca de 280 milhas a norte de Meca, tinha sido fundada por tribos judaicas vindas do norte, nomeada mente a Banu Nadir e a Banu Quraiza. A relativa prosperidade da cidade atraiu alguns árabes pagaos, que começaram por ser clientes dos Judeus e acabaram por se Ibes sobrepor. Medina ou, como era designada antes do Islão, Yathrib não possuía uma forma de governo estável. A cidade encontrava-se dividida entre as lutas das tribos árabes rivais de Aus e de Khazraj, mantendo os Judeus um incômodo equilíbrio de poderes. Estes, ocupados principal mente na agricultura e nos ofícios manuais, eram econômica e culturalmente superiores aos Árabes, pelo que não eram vistos com bons olhos. Iremos ver que no preciso momento em que os Árabes conseguiram unidade devido à intervenção de Maomé, atacaram e acabaram por eliminar os Judeus. A migração de Maomé de Meca para Medina — a Hijra se gundo a designação árabe— constituiu um ponto de viragem e foi adoptada, correctamente, pelas gerações posteriores como ponto de partida do calendário muçulmano. Quraish não esboçou qualquer tentativa séria para o impedir, e Maomé partiu livre mente. Em vez de ordenar, convidou os seus adeptos a partirem e ele próprio permaneceu em Meca até ao fim, em parte certa mente para não chegar a Medina como um proscrito, só e per seguido, mas como chefe de um grupo bem definido, com um estatuto preciso. O povo de Medina tinha convidado Maomé não tanto por ser um homem de Deus, mas por se tratar de um ho mem possuidor de um espírito e de uma força invulgares, capaz de arbitrar e resolver as suas dissidências internas. O Islão foi-lhes útil, inicialmente, não tanto como uma nova religião mas como um sistema que lhes oferecia segurança e disciplina. Ao contrário da população de Meca, não tinham qualquer atracção pelo paga nismo e estavam prontos a aceitar, sob determinadas condições, o aspecto religioso do Islão, desde que este fosse ao encontro das suas necessidades políticas e sociais. A total conversão reli giosa de Medina só teve lugar muito mais tarde. Houve desde o início divergência de opiniões entre o povo de Medina sobre se se deveria recorrer ou não a esse árbitro «estrangeiro». Os que apoia ram Maomé são designados pela Tradição por Ansar, aqueles 48
qué ajudam, e aos que se lhe opunham foi dada a designação desdenhosa de Mimafiqun, os hipócritas. O carácter religioso desta divergência de opiniões não passa de uma projecção no passado feita por historiadores posteriores. A Hégira foi precedida de negociações demoradas e tevé lu gar, por fim, no ano 622 d. C. — a primeira data de que há a certeza na história islâmica. Ela marca viragem na carreira de Maomé e uma revolução no Islão. Em Meca, Maomé era um simples cidadão, em Medina, o magistrado supremo de uma comu nidade. Em Meca era forçado a submeter-se de forma mais ou menos passiva à ordem existente, em Medina era ele que gover nava. Em Meca pregava o Islão, em Medina podia pô-lo em prá tica. Essa mudança veio afectar, necessariamente, o carácter, as actividades e as doutrinas de Maomé e do próprio Islão; os registos existentes passam da lenda para a história. O governo de Maomé em Medina deparou, à partida, com graves dificuldades. Os seus adeptos realmente convictos eram pouco numerosos, constituídos pelos Muhajirun, que o haviam acompanhado desde Meca, e pelos Ansar de Medina, que tiveram de fazer face à oposição activa dos «hipócritas», a qual, ainda que essencialmente política, era, não obstante, de recear até à sua reconciliação com a nova fé, por força das vantagens tangíveis que veio a trazer-lhes mais tarde. Maomé esperava encontrar um acolhimento amistoso, entre os Judeus, cuja fé e escrituras, assim pensava, lhes permitiria receber as reivindicações do Profeta Árabe com maior simpatia e compreensão. No intuito de os tran quilizar, adoptou algumas práticas judaicas, incluindo o jejum de Kipur e a oração voltada para Jerusalém. Os Judeus, porém, rejeitaram, com desdém, as pretensões do Profeta Gentílico e opuseram-se-Ihe precisamente a nível rehgioso, aquele a que era mais sensível. Essa oposição falhou como conseqüência da sua divisão interna e impopularidade entre a população de Medina, de um modo geral. Maomé, ao compreender que não podia contar com qualquer espécie de apoio desse quadrante, abandonou mais tarde as práticas judaicas que adoptara, substituiu Jerusalém por Meca na orientação das suas preces e conferiu à sua doutrina um carácter estritamente árabe e nacional. 49
Desde a sua chegada a Medina que detinha poderes políticos suficientes para se proteger e proteger os seus discípulos contra qualquer tipo de oposição violenta, como a dos Quraish. Ao tomar consciência de que urna doutrina religiosa — seu verdadeiro objec tivo— necessitava do apoio de um corpo político, passou a agir politicamente e através de urna diplomacia hábil converteu a sua força política numa autoridade religiosa. Um historiador árabe fez com que chegasse até nós um documento, de autenticidade indiscutível na sua maior parte, que nos apresenta a constituição embrionária da comunidade de Medina, nos seu primeiros tempos. Segundo as palavras do cronista, «Maomé redigiu e divulgou entre os Muhajirun e os Ansar um documento em que firmava um acordo com os Judeus e celebrava um tratado confirmando o livre exercício da sua religião e a posse dos seus bens, impondo e reconhecendo determinadas condições». O documento não cons titui uma convenção no sentido europeu da palavra, mas antes uma proclamação unilateral. Os seus objectivos eram meramente práticos e administrativos, o que revela o carácter prudente e cauteloso do Profeta. Regulava as relações entre os imigrantes de Meca e as tribos de Medina, e entre estes e os Judeus. A comu nidade estabelecida, a Umma, constituiu uma evolução da cidade pré-islâmica, com algumas alterações vitais, e marcou o primeiro passo na via da posterior autocracia islâmica. Confirmava a orga nização e costumes tribais, mantendo para cada tribo as respec tivas obrigações e privilégios relativamente aos estrangeiros. Porém, no seio da Umma, todos esses direitos vieram a ser aban donados e todas as disputas submetidas à decisão de Maomé. O Quraish constituiu a única excepção. Nenhum dos sectores estava autorizado a celebrar a paz com um órgão do exterior, e os transgressores em relação à Umma eram proscritos. A Umma veio completar mais do que suplantar os costumes sociais da Arábia pré-islâmica; todos os seus conceitos se inse riam numa estrutura de tribahsmo. M ^teve as práticas pré-islâmicas em matéria de bens, de casamento e de relações entre membros da mesma tribo. Ê interessante assinalar que esta pri meira constituição do Profeta árabe contemplava quase exclu 50
sivamente as relações civis e políticas dos cidadãos entre si e com 0 exterior. Não obstante, ocorreram alterações importantes, a primeira das quais se traduziu na substituição da linhagem pela fé como vínculo social. Já nas tribos pré-islâmicas deus e o culto represen tavam a divisa da nacionalidade e a apostasia a manifestação exterior de traição. Essa mudança traduziu-se, efectivamente, na supressão, no seio da Umma, dos feudos de famílias e na consecução de uma maior unidade interna através de arbitragem. De importância comparável foi a nova concepção de autoridade. O Sheikh da Umma, ou seja, o próprio Maomé, exercia as suas funções, isto para os verdadeiros conversos, não por força de uma autoridade condicional e consensual, não espontaneamente reco nhecida pela tribo e sempre revogável, mas por uma absoluta prerrogativa religiosa. A fonte de autoridade foi transferida da opinião pública para Deus, que a conferiu a Maomé como Seu Apóstolo eleito. A Umma tinha, portanto, um duplo carácter. Por um lado, era um organismo político, uma espécie de tribo nova de que Maomé era o Sheikh e os Muçulmanos e os outros os seus mem bros. Todavia, possuía simultaneamente um significado essencial mente religioso. Constituía uma comunidade religiosa, uma teo cracia. Os objectivos políticos e rehgiosos nunca se apresentavam realmente dissociados, nem na mente de Maomé, nem da dos seus contemporâneos. Tal duahsmo é inerente à sociedade islâmica, de que a Umma de Maomé é o gérmen. Naquele momento e naquele lugar era inevitável que assim fosse. Na comunidade árabe primitiva, a religião tinha de ser expressa e organizada politica mente, já que nenhuma outra forma era viável. Só a religião podia cimentar o estado entre os Árabes, para quem o conceito de autoridade política era totalmente estranho. Os imigrantes, economicamente débeis e não desejando criar uma total dependência da população de Medina, voltaram-se para a única profissão que lhes restava, a das armas. Muitos autores europeus manifestaram a sua justificada indignação perante o espectáculo de um Apóstolo de Deus guiando os fiéis em incursões predatórias contra as caravanas de mercadores; porém, aten 51
dendo aos condicionalismos da época e aos conceitos morais dos Árabes, a pilhagem era uma ocupação natural e legítima, e a con fiança depositada no Profeta nunca foi posta em causa pelo facto de ter optado por ela. As expedições contra o comércio de Meca serviam um duplo propósito: por um lado, ajudavam a manter o bloqueio à cidade, única forma de a submeter à nova fé. Por outro lado, iam aumentando o poder, a riqueza e o prestígio da Umma, em Medina. Em Março de 624, trezentos Muçulmanos sob o comando de Maomé surpreenderam uma caravana de Meca em Badr. Os assaltantes fizeram uma imensa pilhagem e os seus feitos são celebrados no Alcorão como manifestação da indulgência divina. A batalha de Badr ajudou a estabilizar a comunidade e marcou o início de um novo tipo de revelação. A partir de então, as revelações de Medina são muito diferentes das de Meca, refe rindo-se aos problemas práticos do governo, à distribuição do pro duto das pilhagens e questões semelhantes. A vitória tomou pos sível uma reacção contra os Judeus e, por fim, também contra os Cristãos, agora acusados de falsificarem as suas escrituras de modo a ocultar as profecias relativas ao advento de Maomé. O pró prio Islão começou a transformar-se. Maomé pregava agora, claramente, uma rehgião nova, de que ele era o «Selo dos Pro fetas». Essa nova religião era mais estritamente árabe, e com a adopção da Caaba de Meca como local de peregrinação, a con quista da cidade tornou-se um dever religioso. Em Março de 625, os Quraish, reagindo ao perigo crescente das incursões de Medina, enviaram uma expedição contra Maomé e derrotaram os Muçulmanos nas encostas de Uhud. Não se sen tiram com forças para prosseguir até Medina e regressaram a Meca. A comunidade muçuhnana não havia sofrido nenhum revés grave e, tal como depois da batalha de Badr, Maomé atacou e expulsou mais outra tribo judaica. Os Quraish, porém, ainda não tinham abandonado a luta. Na Primavera de 627, um exér cito de cerca de dez mil homens avançou para Medina e cercou a cidade. O simples expediente de escavarem um fosso a toda a volta — sugestão de um convertido persa, de acordo com a tra dição— foi o suficiente para vencerem o cerco, e após quarenta 52
dias o exército de Quraish retirou-se. Esta vitória foi seguida pelo exterminio da tribo judaica de Quraiza. Nos começos da Primavera de 628, Maomé sentiu-se sufi cientemente forte para tentar um ataque a Meca. No caminho, porém, tomou-se claro que a tentativa era prematura e a expe dição transformou-se numa peregrinação pacífica. Os chefes mu çulmanos rexmiram-se com negociadores de Meca num local cha mado Hudaibiya, ñas fronteiras do território sagrado em redor de Meca, no qual, segundo o uso pré-islámico, não eram permitidas quaisquer hostilidades durante determinadas épocas do ano. As negociações terminaram com umas tréguas de dez anos, e os Muçulmanos foram autorizados a efectuar a peregrinação a Meca no ano seguinte e a permanecer ai durante três dias. Houve alguma resistência entre os Muçulmanos mais entu siastas perante este resultado aparentemente inconcludente, que se procurou superar com o ataque ao oásis judaico de Khaibar. A vitória muçulmana em Khaibar assinalou o primeiro contacto entre o Estado muçulmano e um povo não-muçulmano dominado, constituindo a base de ulteriores relações do mesmo tipo. Os Judeus conservaram as suas terras, mas pagavam um tributo de 50 por cento. No ano imediato, Maomé e duas centenas dos seus adeptos dirigiram-se em peregrinação a Meca, onde o pres tigio crescente e a força da nova doutrina lhes trouxe novos convertidos. Entre eles contava-se Amr ibn al-As e Khalid ibn al-Walid, que viriam a desempenhar um importantíssimo papel nas últimas vitórias islâmicas. Finalmente, em Janeiro de 630, o assassinato de um muçulmano por um cidadão de Meca, se gundo parece por uma divergência de opiniões estritamente pes soal, serviu de casus belli ao ataque decisivo e à conquista de Meca. Com a tomada de Meca e a submissão de Quraish à Umma do Islão, a missão do Profeta encontrava-se virtualmente con cluída, e durante o ano de vida que Ihé restou parece não se ter empenhado em nenhum grande empreendimentó. O traço mais significativo do último ano foi a reacção das tribos nómadas à nova comunidade de Medina. Nas suas relações com as diferentes tribos, Maomé deparou com situações que lhe eram totalmente desfavo 53
ráveis. O sistema que lhes propunha era-lhes estranho sob todos os pontos de vista, exigindo a renúncia ao seu imenso amor pela independência individual e a uma parte importante do seu código de virtudes e de tradições ancestrais. É um tributo que se deve à arte política do Profeta o facto de ter sabido compreender e supe rar, em grande medida, todas essas dificuldades. O seu verdadeiro e último propósito, o da conversão, nunca foi realmente alcan çado, e mesmo hoje o Islão dos Beduinos é olhado com algumas reservas pelos que estão autorizados a julgá-lo. O objectivo ime diato e aparente da sua diplomacia, após a Hégira, foi o da expan são da sua própria influência em detrimento da dos Quraish. Conseguiu-o evitando atritos com determinados preconceitos tri bais, concentrando-se nas questões militares e políticas nas suas negociações colectivas com as tribos, e remetendo a religião para a conversão individual. Os termos dos acordos de Maomé com as tribos eram sempre os mesmos — a tribo concordava em reconhe cer a suserania de Medina, abstinha-se de atacar os Muçulmanos e seus aliados e aceitava o pagamento do Zakat, tributo religioso muçulmano. Nalguns casos aceitavam mesmo receber emissários de Medina. Com as tribos mais afastadas, Maomé negociou numa base de igualdade, mantendo aquelas uma neutralidade benevo lente e expectante. Após a conquista de Meca, iniciou-se um movimento pró-muçulmano de natureza puramente política entre as tribos mais distantes. Constituiu uma demonstração da força e do prestígio da Umma e revestiu a forma de uma série de embaixadas espon tâneas enviadas a Medina, conhecidas na história muçulmana por Wufud. Essas embaixadas ofereciam submissão política, entendida como tal por Maomé, que aproveitava a oportunidade para fazer propaganda religiosa. O contrato que firmavam era um contrato político e pessoal com o governador de Medina, o qual, de acordo com o uso árabe, cessava automaticamente por sua morte. Entre as tribos ainda mais afastadas, sujeitas às influências culturais, da Síria e da Pérsia e demasiado distantes para sentirem a força da autoridade muçulmana, existiam minorias de influência reli giosa. Foi por iniciativa dessas minorias, mais do que por inicia tiva das tribos, que a Wufud teve lugar aqui. 54
A 8 de Junho de 632, o Profeta morreu após uma breve doença. Tinha reahzado uma vasta obra. Aos povos pagãos do ocidente da Arábia tinha trazido uma rehgião nova que, por força do seu monoteísmo e doutrinas éticas, se situava a um nível incomparavelmente superior ao do paganismo que viera substituir. Dotou essa religião de um livro de revelações que, nos séculos vindouros, se transformaria no guia do pensamento e do comportamento de muitos milhões de crentes. Fizera, porém, mais do que isso; havia criado uma comunidade e um Estado bem organizado e armado, cujo poder e prestígio o tomaram num factor dominante na Arábia. QuaJ é pois o significado último da carreira do Profeta arabe? Para o muçuhnano tradicional a questão praticamente não se põe. Maomé foi o derradeiro e o maior dos Apóstolos de Deus, enviado como Selo da Profecia para trazer à humanidade a revelação final da palavra de Deus. Tanto a sua carreira como o seu êxito estavam predestinados e eram inevitáveis, e não neces sitam de nenhuma outra explicação. Só a fantasia rehgiosa das gerações seguintes de fiéis veio envolver a figura vaga e esbatida do Profeta num manto rico e pohcromo de fábulas, de lendas e de milagres, não se apercebendo que, ao reduzir a sua humanidade histórica essencial, o despojava de uma das suas quahdades mais atraentes. Também o Ocidente criou um Maomé lendário, desde as inexactidões absurdas e grotescas e os insultos mesquinhos da polé mica e dos libelos difamatórios medievais até ao personagem-títere do «Maomé» de Voltaire. Tendo começado como uma espécie de demônio ou de falso deus adorado juntamente com Apollyon e Termagant numa trindade profana, o Maomé me dieval foi evoluindo no Ocidente transformando-se num heresiarca a quem Dante envia para o Inferno, onde ocupa um lugar emi nente como «Seminator di scandalo e di scisma», e por fim, depois da Reforma, converte-se num impostor habilidoso e, interesseiro. Uma das lendas divulgadas no Ocidente medievo descrevia Maomé como sendo um cardeal romano, ambicioso e frustrado, que, não tendo conseguido ser eleito papa, tentou uma carreira alternativa como falso profeta. Os últimos resquícios dos precon 55
ceitos teológicos ocidentais podem detectar-se ainda na obra de alguns autores modernos, refugiando-se à espreita por detrás de notas-de-rodapé mordentes do «aparelho» académico. O historiador moderno tem dificuldade em aceitar tão pron tamente que um movimento desta envergadura e alcance tenha sido desencadeado por um impostor interesseiro. Do mesmo modo que não o satisfará uma explicação em termos puramente de sobrenatural, quer tome como postulado uma intervenção de ori gem divina ou demoníaca; muito pelo contrário, tal como Gibbon, procurará «com a devida humildade, indagar quais foram não as causas primeiras, mas as causas secundárias do rápido desenvol vimento» da nova fé. Maomé, mais do que criar um movimento novo, despertou e fez ressurgir tendências já latentes entre os Árabes do seu tempo. O facto de a sua morte ter sido seguida de um recrudescimento de actividade e não de um colapso, vem demonstrar que a sua missão foi a resposta dada a uma grande insatisfação de ordem política, social e moral. O impulso no sen tido da unidade e da expansão havia já encontrado expressão, ainda que malograda, no breve Império de Kinda. A necessidade de uma forma de religião mais elevada conduzira à expansão do Judaísmo, do Cristianismo e também ao movimento mais signi ficativo dos Hanifes árabes. Mesmo durante a vida do Profeta, a sua carreira confrontou-se com uma longa série de falsos pro fetas de entre outras tribos árabes, noutros pontos da península, cujas actividades representavam, em parte, uma imitação, mas em parte também uma evolução paralela. Maomé havia despertado e reacendido as forças latentes do expansionismo e do ressurgimento nacionais dos Árabes. A sua total realização foi cometida a outros.
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III
A ÉPOCA DAS CONQUISTAS Viram... como a sua grandeza começou a despontar com a Chamada, a Chamada se pro pagou pela religião, a religião se fortaleceu pela profecia, a profecia foi conquistada pela Lei Divina, a Lei Divina foi apoiada pelo Califado. o Califado prosperou através de uma política religiosa e secular... (Abu Hayyan at-Tawhidi, Kitab al-Imta‘ wa'l-Mu’anasa)
Nos principios do século VII, o Próximo e Médio Oriente encontrava-se dividido entre os dois grandes impérios rivais, o Império Bizantino e o Império Persa. A história dos três séculos anteriores é o longo relato das suas lutas. O Império Bizantino, com a capital em Constantinopla, era grego e cristão pela sua cultura e religião, e em grande parte ainda romano na sua admi nistração. A base principal do seu poderio era o vasto planalto da Anatólia, nessa época predominantemente grego. A sul fica vam as provincias da Siria e do Egipto. A autoridade de Bizâncio estava aqui ameaçada de diversas formas. A população — aramaica, de um lado, e copta, do outro — era estranha aos Gregos não só pela raça como também, ainda que em menor grau, pela cultura, e a sua revolta contra o domínio bizantino e o ónus esma gador da tributação imposta manifestava-se nas igrejas heréticas monofisitas, confrontando-se com o credo ortodoxo do Império. Na Palestina, os Judeus, elemento ainda importante embora não constituindo já a maioria da população, haviam sofrido mais gra vemente do que os cristãos heréticos a repressão bizantina e vota vam pouco amor aos seus senhores. O Império Persa dos Sassânidas apresenta uma certa analogia, em termos gerais, com Bizân cio. Também aqui o núcleo do Império era constituído por um planalto — o Irão —, habitado por um povo que falava uma língua indo-europeia e que dominava, como dependência, a pro 57
víncia do Iraque, semita e religiosamente independente. Porém, a cultura da Pérsia sassânida era asiática e foi, efectivamente, uma manifestação da reacção anti-helenística que conduziu à queda dos Partos. O Zoroastrianismo era a religião do Estado. A estru tura interna do Império Sassânida era muito menos estável do que a dos Bizantinos. Enquanto que na Anatólia a organização das questões militares dera ao Império luna base económica e militar sólida, o Império Persa, nos finais do século VI, acabava de emergir de uma convulsão revolucionária, durante a qual a antiga estrutura feudal foi desmantelada e substituída por um despotismo militar com um exército mercenário. Todavia, a nova ordem estava longe de ser firme e segura, e o profundo descon tentamento da população deu origem a uma série de perigosas heresias religiosas que ameaçavam a unidade religiosa e, conse quentemente, política do Império. Entre 602 e 628 travou-se a última da série das guerras perso-bizantinas. Terminou com a vitória de Bizâncio, mas deixou ambas as partes esgotadas e enfraquecidas face ao perigo insuspeitado prestes a desabar sobre si vindo do Deserto da Arábia. A morte de Maomé confrontou a jovem comunidade muçul mana com algo semelhante a uma crise constitucional. O Pro feta não deixara quaisquer disposições quanto à sua sucessão, nem sequer tinha criado um conselho na linha do Majhs tribal, responsável pelo exercício do poder durante o período crucial da transição. O carácter exclusivo da autoridade que reivindicava como intérprete único da vontade de Deus não lhe permitia desig nar um companheiro ou um sucessor em vida. A ulterior tradição xiita, segundo a qual o Profeta designara seu primo Ah que havia desposado sua filha Fátima, é sem dúvida forjada. O conceito de sucessão legítima era estranho aos Árabes nessa altura, e é provável que, mesmo na hipótese de Maomé ter tido um filho, a seqüência dos acontecimentos não tivesse sido diferente. O destino de Moisés vem em apoio desta tese. A tra dição árabe, segundo a qual o Sheikh deveria ser eleito de entre uma única família parece não ter sido relevante, e de qualquer modo, as pretensões de um sogro, como Abu Bakr, ou de um 58
genro, como Ali, não terão tido grande peso numa sociedade polígama. Os Árabes dispunham unicamente de um precedente na orientação a seguir — a eleição de um novo chefe tribal. Me dina escolheu um no seio da tribo de Kharaj, manifestando desse modo as imperfeições existentes no Islão. A crise foi debelada mercê da acção determinada de três homens: Abu Bakr, Umar e Abu Ubaida, os quais, através de uma espécie de coup d ’état, impuseram Abu Bakr à comunidade como único sucessor do Profeta. No dia seguinte, tanto Meca como os Ansar foram postos perante um facto consumado, que aceitaram relutantemente. Abu Bakr recebeu o título de Khcdifa ou «Delegado» (do Profeta) que veio a dar «Califa» na escrita europeia, e a sua eleição marca a inauguração da grande ins tituição histórica do Califado. Os que o elegeram não devem ter tido a menor ideia de quais fossem as funções e a posterior evolução desse cargo. Na altura não esboçaram qualquer tenta tiva no sentido de delimitar os seus direitos e poderes. A única condição imposta para a sua designação consistia em manter intacta a herança do Profeta. A autoridade exercida por Abu Bakr divergiu desde o prin cípio, em muitos aspectos importantes, da do Sheikh tribal árabe. Ele era o chefe não apenas de uma comunidade mas de todo um território. Detinha poderes executivos e possuía um exército; e, uma vez que a situação que se seguiu à sua tomada do poder exigia uma acção política e militar concertada, assumiu poderes políticos e militares que, ao longo do tempo, se foram tomando parte integrante do cargo de Califa. Dois anos mais tàrde, por morte de Abu Bakr, Umar, já então eminência parda, sucedeu-Ihe sem qualquer oposição séria. A primeira tarefa que se impôs ao novo regime foi a de fazer face, através de acção militar, a um movimento surgido entre as tribos, tradicionalmente designado por Ridda. A palavra, que significa apostasia, representa de facto uma distorção do verda deiro significado dos acontecimentos, imputável a uma perspectiva de matiz teológico de historiadores posteriores. A recusa por parte 59
das tribos em reconhecer a sucessão de Abu Bakr não constituiu, efectivamente, uma regressão dos muçulmanos convertidos ao seu anterior paganismo, mas a cessação simples e automática de um acordo político por morte de urna das partes. As tribos situadas mais próximo de Medina tinham sido de facto convertidas e os seus interesses identificavam-se de tal modo com os da Umma que não existem registos da sua história individual. Quanto às outras, a morte de Maomé romp>eu automaticamente os vínculos que as ligavam a Medina, retomando a anterior hberdade de acção. Não se sentiam de modo algum vinculadas à eleição de Abu Bakr, na qual não tinham participado, suspendendo de imediato os tri butos e as relações acordadas. Com o propósito de restabelecer a hegemonia de Medina, Abu Bakr viu-se forçado a celebrar novos acordos. Enquanto algumas das tribos mais próximas aceitaram, as mais afastadas recusaram-nos e Abu Bakr foi compelido a empreender a subjugação mihtar dessas tribos como prelúdio da sua conversão. As guerras da Ridda, que haviam começado como uma guerra de reconversão, transformaram-se numa guerra de conquista que veio a expandir-se muito além das fronteiras da Arábia. Ambas as conquistas, por um lado da própria Arábia, c por outro das províncias vizinhas do Iraque, Síria e Egipto, foram simultâneas e interligadas. Possivelmente, as tribos árabes nunca teriam sido subjugadas se as conquistas obtidas no Norte não tivessem apresen tado uma solução atractiva para os problemas económicos inter nos da península. As primeiras expedições efectuadas no Norte não passavam de meras incursões tendo como fim a pilhagem, e não a conquista. Esta só surgiu quando a fraqueza do inimigo se tomou patente. Desde o início que o controlo de Medina se revelara fraco e confinado a uma orientação geral da política. Dadas as difíceis comunicações da época, todas as questões de pormenor assim como uma grande parte das iniciativas eram da responsabilidade dos chefes e governadores, no próprio local. Uma das figuras-chave das conquistas árabes é Khalid ibn al-Walid, general supremo de Abu Bakr. Depois de executar as ordens de restabelecimento do status quo, por morte do Profeta, 60
decidiu ele próprio quais as medidas a tomar, dando início a um programa de expansão militar. O verdadeiro começo das conquis tas árabes situa-se na Batalha de Aqraba, em 633, no Najd oriental. A vitória constituiu para os Árabes uma prova da capacidade do Governo de Medina e da conveniência em se submeterem a esse mesmo governo. A partir dessa data. uma série de expedições irradiou em múltiplas direcções. Entre Medina e a Síria viviam algumas tribos árabes semicristianizadas, formando uma barreira firme contra qualquer avanço vindo do deserto. Essas tribos não são referidas nas fontes, muito embora seja de supor que tenham desempenhado um papel importante. É de presumir que o corte, determinado por Heráclio, do subsídio anteriormente pago pelo governo de Bizâncio os tenha levado a tomar o partido dos invasores. Em 633, Abu Bakr pediu voluntários para uma expedição à Síria e enviou algumas forças militares independentes para a Palestina e Síria. Os Árabes ven ceram um reduzido exército bizantino no ano seguinte e levaram a efeito algiunas incursões pouco significativas no Sul da Palestina, retirando-se para o deserto a aguardar o auxíHo de Medina, en quanto Heráclio mobilizava um exército. Nesta altura, eis que Khalid chega subitamente do Iraque, depois de subir o Eufrates via Palmira, aparecendo diante de Damasco em Abril de Depois de saquear a cidade, retirou-se e foi juntar-se aos outros a sul. Entretanto os Bizantinos chegavam a Jerusalém, sendo porém derrotados por um exército árabe na batalha de Ajnadain. Após uma longa série de reveses sofridos pelos bizantinos e lun bloqueio que durou seis meses, o.S-Árabes tomaram Damasco. Debandaram logo de seguida e espalharam-sTpõTtõSã^ã^Palestina, enquanto Khalid se dirigia para norte./Entretanto, Herácho preparava um poderoso exército, constituído fundamentalmente por Armênios, auxiliados por uma força de cavalaria recrutada entre os Árabes. Surpreendidos por forças militares largamente superiores, os Árabes abandonaram Damasco e concentraram-se junto ao rio Yarmuk, bnde em Julho de 636 infligiram uma der rota esmagadora aos Bizantinos, pondo à sua mercê toda a Síria e Palestina, com excepção de duas fortalezas de Bizâncio, Cesateia e Jerusalém. Uma vez conquistada a Síria, Khalid foi afastado e
substituído por Abu Ubaida — o administrador tomava o lugar do general. Em 637, Umar visitou a Síria e traçou as linhas-mestras do governo. A proposta visando a invasão do Iraque partira inicialmente dos chefes das tribos árabes da zona fronteiriça, os quais, sentin do-se encurralados entre os Muçulmanos a sul e os Persas a norte, viam como única saída viável a aceitação do Islão e um ataque conjunto contra os territórios persas. Em 633, Khalid invadiu Hira com uma pequena força militar recrutada no local. O êxito ines perado da incursão animou-os a ulteriores tentativas e terminou com a derrota esmagadora dos Árabes, em 634, na «Batalha da Ponte», pelas forças persas comandadas pelo Imperador Yazdajird. Os Árabes organizaram rapidamente um novo ataque e, no Verão de 637, vinte mil persas eram derrotados definitivamente por um exército árabe muito menos numeroso, em Qadisiya. Os Árabes prosseguiram as suas vitórias capturando a capital persa de Ctesifonte, também conhecida como Madain, e ocuparam todo o Ira que. Uma força militar persa -mobilizada precipitadamente foi facilmente batida em Jalula, e as tropas árabes foram abrindo caminho para norte através da Síria e do Iraque, para se reunirem na Mesopotâmia e completarem a conquista do Crescente Fértil. De acordo com a tradição árabe, a invasão do Egipto foi desencadeada contra a vontade do Califa, como manifestação de ressentimento por parte de Amr ibn al-As por ter sido ignorado na Síria. No Egipto, tal como na Síria e no Iraque, a situação do país era favorável. Os Coptas estavam profundamente descon tentes com 0 domínio grego e prontos a colaborir com os inva sores. Em 12 de Dezembro de 649, Amr chegou a Al-Arisch, cidade egípcia fronteiriça, com uma força de cavalaria de três mil iemenitas. Tomou-a facilmente, o que o encorajou a passar da pilha gem à conquista. Depois de capturar Pelusium (actual Farama), avançou para a fortaleza bizantina de Babilônia, próxima do actual Cairo, e com mn reforço de cinco mil homens vindos de Medina derrotou facUmente os Bizantinos, em Julho de 640. No ano seguinte, a cidade rendeu-se e apenas Alexandria, no Egipto, con tinuou sob o domínio de Bizâncio. Após um cerco de um ano, foi celebrado um acordo entre Amr e o Patriarca copta, nos termos 62
do qual a cidade se rendia e a guarnição bizantina se retirava. Uma tentativa grega de reconquista por mar, em 645, obteve um éxito passageiro, sendo repelida no ano seguinte. São numerosas as obras que nos dizem que, após a ocupação árabe de Alexandria, o Califa ordenou a destruição da grande biblioteca da cidade, afirmando que os livros eram desnecessários se o que continham estava escrito no Alcorão, e se não continham eram ímpios. As investigações recentes vieram demonstrar ser essa v^são completamente destituida de fundamento. Nenhuma das crónicas antigas, incluindo as cristãs, fazem qualquer referên cia ao facto, referido pela primeira vez no século XIII, e de qualquer modo a grande biblioteca do Serapeum já havia sido destruída no decurso de dissensões internas anteriormente à che gada dos Árabes. O avanço dos Árabes no território montanhoso não-semita, a norte e a leste do Crescente Fértil, processou-se de forma muito mais lenta e difícil. No planalto persa a resistência manteve-se durante vários anos e o território de Khurasan, na Pérsia Oriental, só veio a ser ocupado definitivamente no reinado de Muawiia. Na Anatólia, as dificuldades revelaram-se insuperáveis, e até hoje os contrafortes da cordilheira de Tauro assinalam a fronteira mais a norte da língua árabe. A estratégia usada pelos Árabes nas grandes campanhas da conquista foi determinada pelo seu domínio do deserto, à seme lhança do que se passa com o domínio marítimo dos impérios actuais. O deserto era familiar e acessível aos Árabes, mas não aos seus inimigos. Podiam utilizá-lo como via de comunicação para efeitos de aprovisionamento e de reforços, e como refúgio em caso de emergência. Não foi por acaso que em todas as pro víncias conquistadas os Árabes estabeleceram as suas bases prin cipais em cidades na orla do deserto, utilizando as cidades já exis tentes, como Damasco, quando convenientemente situadas, e criando novas cidades, como Kufa e Basra no Iraque, Fustat no Egipto, Qairawan na Tunísia, quando necessário. Essas praças-fortes foram as Gibraltares e Singapuras do primitivo Império Árabe. Aí construíram os Árabes os seus aquartelamentos e guar nições, e ao longo de todo o período omíada continuaram a ser os 63
principais centros do governo árabe. Essas cidades — Amsar, como são designadas na história árabe — desempenharam um papel vital na organização e consolidação da influência árabe nos territórios conquistados. Representando, no seu conjunto, uma minoria nas províncias, os Árabes eram o elemento dominante de Amsar, onde a língua árabe se tornou a língua principal. Serviam de mercado para o escoamento da produção agrícola dos distritos vizinhos, e através delas a língua árabe foi penetrando nas regiões rurais circundantes. Em breve as praças-fortes dos Árabes foram evo luindo, dando origem a cidades fora das muralhas, de artesãos, lojistas, amanuenses e artífices procedentes das populações sub jugadas, que supriam as necessidades da classe dirigente árabe. O movimento da população das regiões rurais para as cidades foi favorecido por uma tributação discriminatória contra os agricul tores não-muçulmanos e também pela baixa de preços dos pro dutos agrícolas, possivelmente resultante da distribuição gratuita, em larga escala, de rendimentos em géneros entre os conquista dores árabes. Inicialmente, as grandes conquistas constituíram uma expan são não do Islão, mas da nação árabe, a braços com o problema de excesso de população na península nativa, e uma tentativa de encontrar uma saída dos países vizinhos. Foi uma dessas séries de migrações que levou os Semitas até e para além do Crescente Fértil. A expansão árabe não é tão repentina quanto possa pare cer à primeira vista. Nos períodos em que o dique que continha os Árabes na península era demasiado resistente para permitir a sua perfuração directa, a pressão exercida pelo superpovoamento encontrou um certo alívio na infiltração regular e constante de elementos árabes nos territórios limítrofes. São múltiplos os tes temunhos de infiltrações árabes importantes no decurso dos sé culos VI e VII, especialmente na bacia do Eufrates, na Palestina e no Sudeste da Síria. As cidades bizantinas de Bosra e de Gaza, para nomear apenas duas, tinham uma considerável população árabe mesmo antes das conquistas, e é quase certo terem os con quistadores encontrado muitos dos seus concidadãos já radicados nos países mais próximos por eles conquistados. 64
o papel da religião nas conquistas é sobrevalorizado pelos escritores antigos e tem sido, talvez, subestimado por algims auto res modernos. A sua importância reside na transformação psico lógica, passageira, que operou num povo naturalmente emotivo e temperamental, não habituado a nenhum tipo de disciplina, pronto a ser persuadido mas nunca a receber ordens. Durante algum tempo contribuiu para que se sentissem mais confiantes em si próprios e tornou-os mais submissos. Nas Guerras da Con quista foi o símbolo da unidade e da vitória árabes. Que a força impulsionadora das conquistas teve um carácter muito mais ma terialista e profano do que rehgioso está patente ñas suas figuras mais eminentes — homens do tipo de Khahd e de Amr, homens cujos interesses rehgiosos eram superficiais e interesseiros. Salvo algumas raras excepções, os verdadeiros conversos e os pietistas desempenharam um papel pouco relevante na criação do Império Árabe. Os historiadores árabes dos últimos séculos legaram-nos uma vasta documentação detalhada sobre a administração instituída por Umar no novo Império. No essencial, porém, a sua história tem-nos sido revelada pela crítica moderna e, muito particular mente, pelos inúmeros documentos administrativos contemporâ neos que chegaram até nós, datando do primeiro século do Islão, através de papiros egípcios, numa projecção no passado das con dições existentes numa época posterior. Os primeiros califas guia ram-se, neste respeito, por considerações de ordem prática; não sentiam a necessidade de definir expressões ou funções, nem de formular princípios, pelo que o estudo das medidas adoptadas deve assentar em factos simples. A sua política era determinada basicamente não pelos interesses dos súbditos das províncias conquistadas, mas da aristocracia muçulmano-árabe forjada pelas conquistas. Foi moldada, em grande parte, pelo comportamento de comandantes e de dirigentes. A princípio, os Árabes manti nham o aparelho do governo persa e bizantino, assim como a cunhagem da moeda, a cargo dos seus funcionários. Pouco depois de 640, Umar, sentindo a necessidade de tomar medidas novas, instituiu um sistema novo, de acordo com o qual «o Império, no seu conjunto, era confiado à comunidade muçulmana, tendo o 65
Califa como seu único mandatário». As diversas provincias con quistadas possuíam leis e costumes diferentes. Quando os Árabes tomaram conta dos antigos regimes não havia uma legislação unificada do Império. Na Síria e no Egipto, a capitulação tivera lugar através de um acordo e Umar viu-se compelido a respeitar os usos locais. No Iraque, que se rendera incondicionalmente, dispunha de maior liberdade de acção. Os Árabes apoderaram-se exclusivamente das terras perten centes ao Estado e aos inimigos do regime. Todos os proprietários rurais, desde que reconhecessem o novo governo, mantinham os seus direitos de propriedade mediante o pagamento de determi nados impostos. As terras confiscadas eram registadas e adminis tradas pelo Estado. Os Muçulmanos estavam autorizados a adquirir terrenos fora da Arábia, e a muitos deles foi feita uma concessão de terras pertencentes ao Estado, sob a forma de arrendamento designado Qatia (pl. Qatm). Essas concessões diziam respeito tanto a terras cultivadas como a terras incultas, e neste último caso eram, em regra, acompanhadas de um auxílio estatal sob a forma de reduções de impostos. Sob o regime de Umar, o número de concessões deste tipo foi reduzido, mas muitas tiveram lugar por iniciativa dos seus sucessores. Os proprietários rurais muçulmanos fora da Arábia não estavam sujeitos ao pagamento integral da contribuição predial; todavia, após alguma controvérsia, ficaram a pagar uma taxa muito mais reduzida, designada Ushr ou dízimo. À parte um pequeno tributo de carácter religioso pago pelos Muçulmanos, todos os restantes impostos eram pagos pelos povos vassalos não-muçulmanos. Estes impostos incluíam o Hzya e o Kharaj. Mais tarde, estas expressões passaram a significar o im posto individual pago pelos não-muçulmanos e a contribuição predial. Nos primeiros tempos do Califado, porém, enquanto o Jizya já havia adquirido, aparentemente, o sentido técnico de im posto individual, Kharaj era ainda um termo genérico aplicável a qualquer tipo de imposto, e utihzado sem grande exactidão para designar o tributo colectivo arrecadado pelos Árabes, cons tituindo uma importância fixa para cada região. Os funcionários bizantinos e outros continuaram a ser os responsáveis pela liqui dação e cobrança das receitas, tal como antigamente. 66
Os conquistadores não interferiam na administração interna, tanto civil como religiosa, dos povos conquistados, aos quais era concedido o estatuto de Dhimis, ou seja, membros das religiões toleradas autorizadas por lei. A passagem do dominio bizantino ao dominio árabe parece ter sido bem acolhida, de um modo geral, pelos povos vassalos, que consideram o novo jugo menos pesado do que o anterior, não só na tributação como noutros aspectos. As próprias populações cristãs da Síria e do Egipt^ preferiam o dominio do Islão ao dos Bizantinos ortodoxos. Um escrito apo calíptico judaico dos principios da era islámica apresenta um anjo que diz a um profeta rabi: «Nada receies, Ben Yohay; o Criador, louvado seja Ele, criou o reino de Ismael apenas para te salvar desta iniqüidade (i. e. Bizáncio)... O Santíssimo, louvado seja Ele, enviar-lhes-á um Profeta segundo a Sua vontade, con quistará a térra para eles, e eles virão e dar-lhe-ão nova vida...» Confrontemos com estas as palavras de um historiador cristão sírio, posterior: «E assim, o Deus da vingança libertou-nos do dominio dos Romanos por intermédio dos Árabes... E não foi pequeno o benefício de termos sido salvos da crueldade dos Roma nos e do seu ódio feroz contra nós.» Os povos das provincias con quistadas não se limitaram a aceitar o novo regime, tendo nalguns casos participado activamente no seu estabelecimento. Na Pales tina, os Samaritanos prestaram um auxilio de tal modo valioso aos invasores árabes que durante algum tempo ficaram isentos de determinados impostos. Encontram-se ainda muitas outras referências nas antigas crónicas à ajuda prestada por Judeus e Cristãos. A identificação do Islão com o Arabismo feita pelos próprios Árabes transparece claramente da sua atitude face aos novos convertidos que começavam a demandar o Islão em grande nú mero, oriundos de povos conquistados. A existência de muçul manos não-árabes era de tal modo inesperada que os recém-chegados só podiam compartilhar da fé desde que se tomassem Mawali, ou membros de uma das tribos árabes. Muito embora os Mawali gozassem, em teoria, dos mesmos direitos dos Árabes e estivessem isentos da maior parte dos impostos, os Árabes man tinham uma atitude de desdenhosa superioridade em relação a 67
eles e, durante muito tempo, procuraram excluí-los dos benefícios de ordem material do Islão. Destes, o mais importante era o direito a uma remuneração e pensão paga pelo Diwan, serviço criado por Umar e destinado à distribuição do produto das conquistas pelos guerreiros árabes. Os pressupostos deste regime assentavam na identidade árabe e muçulmana e na manutenção do prestígio religioso através do qual o Califa exercia a sua autoridade. O seu colapso tornou-se inevitável quando tais pressupostos deixaram de ser válidos. A 4 de Novembro de 644 o Califa Umar foi assassinado por um escravo persa. Compreendendo o risco de uma guerra civil que ameaçava o Islão, nomeou, já no leito de morte, um Shura ou colégio eleitoral, constituído pelos candidatos com mais pro babilidades na sucessão, responsáveis pela eleição de um novo Califa de entre eles. Os relatos respeitantes à actuação do Shura são contraditórios, mas o resultado traduziu-se na escolha, um tanto surpreendente, de Uthman ibn Affan. Uthman era conhe cido pela sua fraqueza e cobardia, faltas terríveis aos olhos dos Árabes. A sua eleição constitui uma vitória da classe dominante da velha oligarquia de Meca que, conquanto tenha aceite os bene fícios trazidos pela nova religião com maior abertura do que alguma vez aceitara o seu Profeta, continuava a desprezar aqueles estratos sociais que até então haviam dominado em Medina. A despeito dos esforços desenvolvidos por Abu Bakr e Umar no sentido de induzirem os cidadãos de Meca a aderirem à sua causa, nomeando-os para altos cargos — como por exemplo a designação de Muawiya por Umar para governador da Síria—, os oligarcas continuavam descontentes e tentavam recuperar o anterior pres tígio que consideravam seu de direito. Uthman, tal como Muawiya, era membro de uma das famílias dominantes de Meca, a de Umayya, e era, de facto, o único representante da nobreza de Meca entre os primeiros companheiros do Profeta com prestígio suficiente para se apresentar como candidato. A sua eleição foi simultaneamente a vitória e a oportunidade por que esperavam. E a oportunidade não foi desperdiçada. Uthman ficou desde logo sob a influência das famílias dominantes de Meca, e um após 68
outro todos os altos cargos do Império foram passando para os membros dessas famílias. A fraqueza e o nepotismo de Uthman trouxeram ao de cima os ressentimentos que de há muito fervilhavam reprimidos entre os guerreiros árabes. A tradição muçulmana imputa a crise ocor rida durante o seu reinado aos defeitos pessoais de Uthman. Na realidade, as causas são muito mais profundas e a responsabilidade de Uthman está na sua incapacidade de as reconhecer, de as con trolar e de as solucionar. As guerras da conquista que constituíram o ponto fulcral da história árabe até à morte de Umar sofreram um interregno após a sua morte. A migração do povo árabe chegara praticamente ao fim. Os Árabes tinham invadido em massa as províncias conquistadas, fixando-se aí, e de momento não se punha o problema do superpovoamento. Uma vez mais, os Árabes confrontavam-se com novos obstáculos, e mais árduos — o pla nalto e as populações hostis do Irão e da Anatólia a norte e a leste, o oceano a ocidente, e a guerra das conquistas transfor mou-se num objectivo mais duro e mais difícil. As tréguas haviam dado aos homens das tribos tempo para reflectirem sobre questões até então adormecidas, e não tardou que as forças do centrifugalismo nómada provocassem o colapso da administração e uma explosão generahzada. Os factores de oposição são já perceptíveis no reinado de Umar, e responsáveis talvez pela sua morte. Sob o governo mais débil de Uthman, vieram à superfície. A revolta contra Uthman não foi nem rehgiosa nem pessoal. Foi a revolta dos nómadas contra qualquer tipo de controlo centralizado, uma revolta dirigida não contra o governo de Umar, mas contra qual quer governo. Mantinham uma concepção nómada, isto é, con creta e pessoal, de autoridade, a qual considerava a obediência como uma dádiva voluntária feita a alguém. E uma vez que Uthman não inspirava essa autoridade, sentiam-se totalmente livres para lha retirarem. Muito embora o ataque armado contra Uthman viesse do Egipto, o verdadeiro centro da oposição situava-se em Medina. Aí, Talha e Zubair, cidadãos de Meca, ambos descontentes, Amr, ressentido com a sua substituição, no Egipto, por um candidato designado por Uthman, e Aisha, a viúva do Profeta, constituíram 69
centros de intriga e de conspiração contra o Califa e, muito pro vavelmente, tiveram a sua quota-parte de responsabilidade nos acontecimentos que levaram ao seu assassinato. Amr e Aisha, conscientes da evolução dos acontecimentos, tomaram a precau ção de arranjar um alibi, partindo no momento crucial, um para Beersheba, ela para Meca. O papel de Ali não é muito claro. Apesar de constituir um sério candidato, preterido já por três vezes, parece não ter tido qualquer responsabilidade directa no assassínio, ainda que a sua passividade e o facto de não se ter servido do seu prestígio e posição para o impedir tenham vindo a fornecer aos seus inimigos, mais tarde, uma arma eficaz. Em 17 de Junho de 656, um grupo de amotinados do exér cito árabe no Egipto, que se haviam dirigido a Medina para apre sentar as suas queixas, conseguiram penetrar nos aposentos do Califa, ferindo-o mortalmente. O assassínio marca uma viragem na história do Islão. A morte de um califa por rebeldes muçul manos criou um grave precedente e enfraqueceu seriamente o prestígio rehgioso e moral inerente ao cargo, garante de unidade do Islão. A partir daí, o único elo existente entre o govemo e as tribos foi político e financeiro. Ambos penosos. Em Medina, Ah foi eleito quase imediatamente seu sucessor, mas mesmo alguns dos que tinham sido inimigos de Uthman ma nifestaram escrúpulos em reconhecer como Califa alguém que, embora não culpado, devia a sua nomeação, em grande parte, aos regicidas. Outros, que não nutriam grande simpatia por Uthman, manifestavam ainda relutância em aceitar o novo Califa, e rapidamente se formou um grupo pró-Uthman exigindo a puni ção dos responsáveis. Ah mostrou-se incapaz de agir, aumentando o número dos seus delatores ao revogar muitas das nomeações efectuadas pelo Califa assassinado. A oposição partiu de Aisha, Talha e Zubair, os qxiais, com uma total indiferença pelo papel que eles próprios haviam desempenhado nos acontecimentos pre cedentes, se retiraram para Meca exigindo luta e clamando por vingança. O triimvirato reuniu forças para entrar em acção con tra Ah e transferiu-se para Basra, onde contavam com o apoio local. 70
Em Outubro de 656, Ali abandonou Medina à cabeça do seu exército. O facto foi duplamente significativo. Em primeiro lugar, assinalou o fim de Medina como capital do Império Islâ mico, pois nunca mais nenhum Cahfa voltou a residir na cidade. Em segundo lugar, era a primeira vez que um Califa conduzia um exército muçulmano para uma guerra civil contra irmãos muçul manos. Ah e o seu exército dirigiram-se para Kufa, onde, depois de negociarem com o governador «neutro» Abu Musa, entraram na cidade por entre as aclamações da populaça. Daí avançou para Basra e derrotou as forças militares do triunvirato num recontro conhecido como a «Batalha do Camelo», assim chamada por ter tido lugar à volta do camelo que Aisha, «A Mãe dos Fiéis», mon tava. A batalha terminou com a vitória de Ali. Talha e Zubair foram mortos e Aisha enviada de novo para Meca. Após uma breve ocupação de Basra, cuja população não conseguiu conquistar, Ah regressou a Kufa, que passou a ser a capital. Era agora senhor de todo o Império Islâmico com excep ção da Síria, mas a despeito da sua aparente força, a sua posição encontrava-se enfraquecida pelas dissidências tribais e pela insu bordinação dos seus apoiantes e pelos confhtos existentes entre os pietistas e teócratas, que constituíam uma grande parte dos seus adeptos e que constantemente contestavam e punham em causa a sua autoridade. Na Síria, Muawiya detinha uma posição forte. Estava à cabeça de um poder centrahzado — o único existente no Islão, nessa altura —, numa província unida e submissa, com um exército bem organizado, disciplinado e treinado nas guerras fronteiriças com os Bizantinos. Moralmente, a sua posição era igualmente forte. A sua autoridade era incontestada, pois tinha sido designado por Umar e confirmado por Uthman, o último Cahfa reconhecido universalmente. Ao exigir vingança pela morte de seu tio Uthman, agia de acordo com um antigo costume árabe, sancionado pelo próprio Alcorão. Nos primeiros confhtos surgidos entre Ali e os seus opositores soubera, sabiamente, manter-se neutro. E mesmo agora não manifestava quaisquer pretensões ao Califado, limitando-se a invocar justiça e, mercê de um subtil corolário, a pôr em dúvida o direito de Ah ao Cahfado, acusan 71
do-0 de responsabilidade morai pelo perdão concedido ao regicidio. Era apoiado por Amr, indivíduo cínico e cheio de expedientes, e pelas forças do exército da Síria. A sua primeira acção manifestamente contra Ali traduziu-se numa recusa enérgica em ceder o lugar ao Governador que Ali enviou para o substituir. Forçado a agir, Ah partiu com um exército e enfrentou as forças sírias próximo da cidade romana em ruínas de Siffin, junto ao Eufrates, em Maio de 657. O con fronto foi precedido, como tantas vezes sucedia, de negociações inconseqüentes, durante as quais Muawiya exigiu a extradição e castigo dos assassinos de Uthman e possivelmente também a abdicação de Ali e a convocação de um novo Shw a para eleger o Califa do Islão. Finalmente travou-se a batalha e em 26 de Julho as forças de Ali levavam a melhor. Os Sírios, perante a derrota, recorreram ao expediente de elevar o Alcorão na ponta das suas lanças, clamando «Que seja Deus a decidir». Este apelo a arbitragem só podia referir-se à questão dos regici dios, já que dificilmente poderiam esperar encontrar uma solução para o problema do Cahfado no Alcorão. Ali compreendeu perfei tamente o estratagema, mas foi forçado pela facção rehgiosa do seu próprio campo a aceitar tréguas. Foi acordado que ambas as partes designassem um árbitro e que os chefes em luta se com prometessem a respeitar o veredicto. Muawiya designou como seu representante Amr — um negociador hábil e leal à sua causa. Os partidários de Ah, interpretando as funções dos árbitros a uma luz diferente, forçaram-no a aceitar os préstimos de Abu Musa, neutro e independente. Através deste artifício, Muawiya já tinha obtido uma vitória moral ao remeter Ah da posição de Califa reinante para a de pretendente ao Cahfado. A arbitragem não tardou a acarretar novas dificuldades para Ah. Um grupo consi derável dos seus adeptos, descontente com esta actuação, rebe lou-se e teve de ser reprimido energicamente num confronto san grento. Ficaram conhecidos como os Kharijitas (Khawarij), «os que partem» e viriam a reaparecer muitas vezes ao longo da his tória do Islão. Em Janeiro de 659, os árbitros reimiram-se em Adhruh. Os relatos árabes dos debates são invariavelmente tendenciosos, mas 72
é evidente que as conclusões a que chegaram foram desfavoráveis a Ali, implicando provavelmente a sua abdicação. Ali rejeitou o veredicto e a situação voltava a ser, uma vez mais, muito semelhante à que se verificava antes de Siffin, com a diferença de que Ali se encontrava ainda mais enfraquecido depois da ques tão dos Khawarij e também devido à desmoralização existente entre os seus adeptos. Nos meses que se seguiram sofreu ainda mais perdas. Muawiya conseguiu apoderar-se da província do Egipto, privando Ali de uma importante fonte de riquezas e de provisões e, enquanto evitava um confronto, sucediam-se, impu nemente, as incursões e escaramuças no Iraque. Os acontecimentos relativos ao último ano de vida de Ali são obscuros. Talvez tenha firmado tréguas com Muawiya, ou talvez estivesse a preparar uma nova cámpanha, mas em Janeiro de 661 foi assassinado por um Kharijita, de nome Ibn Muljam. Seu filho Hasan abandonou a luta e transferiu os seus direitos para Muawiya, aclamado Califa na Síria e em breve reconhecido por todo o Império.
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IV
o REINO ÁRABE Umar perguntou a Salman: «Eu sou rei ou Califa?» e Salman respondeu: «Se tiveres retirado das terras dos Muçulmanos um dirham, ou mais, ou menos, e o tiveres usado ilegitimamente, és rei e não um Califa.» E Umar chorou. (At-Tabar¡, Tarikh ar-Rusul wal-Muluk)
Quando Muawiya subiu ao trono, a situação apresentava múltiplas dificuldades. A administração do Império encontrava-se descentralizada e desorganizada, e o ressurgimento do anarqmsmo e da indisciplina nómada, agora já não refreado por qualquer vínculo religioso ou moral, conduzira a urna instabilidade e falta de unidade generalizadas. O vínculo teocrático que mantivera coeso o primitivo Califado fora irreversivehnente quebrado com o assassinato de Uthman, a guerra civil que se Ihe seguiu e a trans ferência da capital de Medina. A oligarquia de Meca estava des membrada e desacreditada. A questão que se punha a Muawiya era a de encontrar urna nova base de coesão para o Império. A resposta que encontrou para a transformação que se impunha traduziu-se em dar inicio à conversão da teocracia teórica islámica numa monarquia árabe, assente na casta dominante árabe. Os historiadores árabes posteriores das dinastias que sucede ram aos Omíadas, empenhados em desacreditar a casa deposta, recusaram o título de Califado aos reinados de Muawiya e seus sucessores. Depois do Califado de Ah, referem-se ao título de realeza (Midk) de Muawiya e dos restantes Omíadas, com a única excepção do piedoso Umar II (717-720), o único a quem é con ferido o título de Cahfa. Quanto aos restantes, o Cahfado não volta a ser reposto senão com a ascensão da casa de Abbas em 750 d.C. Conquanto haja muito de verdade nesta acusação de secularização, não deve ser exagerada. Muawiya e os seus suces-
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sores deram, efectivamente, realce crescente aos aspectos polítiçp-económicos do governo, mas o factor religioso, embora relegado para segundo plano, assumia ainda uma importância considerável. _ E Muawiya explorou-o habilmente através das suas constan^s campanhas contra os Bfzanlmos, o que lhes permitiu encarnar o papel de defensor do Islão e de condutor da Guerra Santa, exigindo e recebendo a fidelidade religiosa da maior parte dos Árabes^ O processo de centralização que se afigurava necessário para que o Imp&iõ^Ainbe^obrevivesse impHcava a adopção de diversas medidas. A primeira era a transferência da capital para a Síria, que se manteve a província metropolitana do Império ao longo de todo o século omíada. A capital mudou frequentemente. Os Omíadas, chefes de um povo invasor cujo regime tinha por base o controlo do deserto, construíram os seus castelos na õúa do deserto e da segurança. As inúmeras construções que erigiram e foram abandonando constituem uma indicação preciosa quanto às suas linhas de conduta e de cultura. Muawiya estabeleceu-se em Damasco, cuja situação central e antigas tradições culturais e administrativas deixavam pressupor a possibilidade de criar um govemo capaz de controlar as províncias mais remotas. O novo vínculo moral que veio tomar o lugar do vínculo religioso desaparecido foi moldado na lealdade da nação árabe ao seu chefe reconhecido. A soberania exercida por Muawiya era essencialmente árabe. Já não religiosa, mas ainda não monár quica, representava o reatamento e o alargamento da autoridade do Sayyid pré-islâmico. O cronista bizantino Theophanes refere-se a Muawiya não como Rei ou Imperador, mas como Proíosymboulos, primeiro conselheiro. Trata-se de uma descrição exacta da natureza da autoridade por ele exercida. O principal instru mento do seu governo era o Shura, um conselho de Sheikhs, con vocado pelo Califa ou por xim governador provincial com funções consultivas e executivas. Em ligação com esses conselhos tribáis "havia ás TEu/uds, delegações das tribos, formando no conjunto uma estrutura flexíveí ám;^ámente assente no livre a c o rd o ^ n a lealdade dos Árabes. Muawiya raramente dava ordens, mas era extremamente hábil na sua actuação recorrendo aos métodos mais engenhosos de persuasão, e também em virtude da sua 76
competência e prestígio pessoais. Nas províncias, a sua autoridade era exercida por intermédio de governadores designados para o efeito, dos quais o mais importante foi o bastardo Ziyâd, deno minado «Ziyâd, o Filho de seu Pai», governador do Iraque, a mais agitada e difícil das províncias, e do Oriente. Na sua administração, o Califado Omíada não era tanto um Estado áfábé qüãnto um sucessor dos Estados persa e bizantino. A ahtfgã' máquina administrativa permaneceu intacta, no respeitante aos quadros de funcionários e respectivo funcionamento, e o prõ^iõ”Muawiya tinha como secretário principal um cristão sírio. Um dos problemas vitais para a estabilização do Império residiàrmarTeguíafflenlãçã
sito — reforçar o prestígio religioso de Muawiya e dotar o exér cito árabe da Siria de urna melhor preparação, disciplina e expe riência. Em 680, Yazid sucedeu no Califado sem quaisquer perturbações graves. Foi um governante hábil e competente, qué~h«rdou muitos dos dotes intelectuais de seu pai, e também ele foi grosseiramente caluniado pelos historiadores árabes posteriores. A sua desdita resultou do evoluir dos acontecimentos no Iraque. O regime rígido de Ziyád e ainda mais duro de seu filho Ubaidallah haviam contribuído para acentuar o descontentamento dos Árabes do Iraque em relação ao dominio sirio, levando a um movimenfo favorável a Hussein, filho de Ali. N o'ano 680, Hussein e um pequeno grupo de familiares e de partidários foram massacrados pelo exército omíada na bataUia de Karbala. O acontecimento não teve grande significado político imediato; mas as suas con seqüências futuras foram tremendas. O dramático martirio do pretendente Ah contribuiu para fomentar o rápido desenvolvi mento do partido opositor ao govemo omíada, centrado ñas reivfndicãç5es"da hnha de Ah. ^ Em 683 Yazid morre, sucedendo-lhe seu filho Muawiya II, ainda criança. Seguiu-se um período de crise e de instabilidade, que assistiu ao surgimento dos primeiros confhtos tribais, em grande escala, entre os Árabes. A morte de Muawiya II, após um reinado de apenas seis meses, fdfséguida de um interregno e da eclosão da segunda guerra civü no Islão. Na Arábia, Ibn az-Zubair, filho do Zubair que se opusera a Ah, apresentou-se como preten dente ao Cahfado, mas desperdiçou uma oportunidade provavel mente excelente devido à sua recusa obstinada em abandonar Meca e fixar-se na Síria. Na Síria eclodiu um conflito aberto entre tribos árabes hostis, que terminou com a vitória dos Omíadas sobre os seus adversários, na batalha de Marj Rahit em ' 684. "Marwan (684-685), membro de um outro ramo da Casa Omíada, fòi^èhtão proclamado Cahfa, com o controlo efectivo da Siria e do Egipto. Antes da sua morte,^ conseguiu providenciar nc^ sen tido da sucesso dé seu filholAbd al-M ali^(685-705), a quem cóübe â tarefa de restaurar a unidade dõ Império e a autoridade I — . -»7 ' 78 .....
do governo, e de criar im novo organismo de Estado ^ e suprisse a situado de” desagregação do govemo de Muawiya I. A s^ u n d a guerra civil foi mais complexa e envolveu riscos mais graves do que a primeira. As tendências desintegradoras manifestavam-se em maior escala e com maior intensidade, ao passo que algims factores novos iam surgindo acarretando consigo noyos problemas e novas dificuldades. Pouco se sabe da situação económica do período omíada. As foiifés dé óñgem árabe são recentes, e de um modo geral vêm lançar a confusão sobre esta questão ao transporem para o passado os acontecimentos de urna época posterior, e também em virtude de urna atitude preconcebida em relação à Casa Omíada e a toda a sua actuação. A formulação de urna descrição sistema tizada da vida económica omíada revela-se duplamente difícil, por força da orientação seguida pelos próprios Omíadas que agiam de forma arbitrária e muitas vezes inesperada, sem qualquer preo cupação em respeitar precedentes consagrados ou planos. A sociedade omíada tinha como base a ascendência exercMa pelos Árabes, os quais formavam não tanto uma nação mas uma çásta social hereditária à qual só se podia ascender por via do nascimento. Não pagavam impostos sobre as suas terras, ficán<íõ~sü]feitoS ã ^ n a s 'aó pigaimehtõ dè”üm~ díamó religioso. Só eles podiam selT'éCTÜfádós pãrá o Amsar cõnsíitüíãm nngrm maioria dos guerreiros inscritos nos registos do Diwan, com di reito a pensões mensais e anuais e a subsídios, em géneros e em espécie, provenientes do produto de pilhagens e das receitas obti das das províncias conquistadas. Ainda antes da ascensão ao trono dos Omíadas, os Árabes começaram a adquirir terrenos fora da Arábia. À partir do rei nado de Muawiya, o número de proprietários n ifáS "árabes foi aunféntando regularmente. Essas propriedades eram adquiridas de duas formas — através da compra a proprietários não-árabes, ou mediante doação feita pelo govemo árabe. O novo regime árabe herdara os vastos domínios dos governos bizantino e persa. A estes vieram juntar-se as terras abandonadas pelos grandes lati fundiários bizantinos, que se haviam posto em fuga com os exér 79
citos imperiais derrotados. Estas terras, juntamente com os ter renos baldios e não cultivados, constituíam os chamados Mawat ou «terrenos sem serventia» dos juristas muçulmanos. No sentido de assegurar o cultivo dessas terras e de garantir a cobrança de impostos sobre as mesmas, os Califas puseram em prática a con cessão de arrendamentos, denominados Qatai, aos membros das suas famílias e a outros Árabes ricos e considerados. Esses con tratos de arrendamento eram idênticos à Emphyteusis bizantina, em que se baseavam de facto. Implicavam a obrigação de cul tivar a terra dentro de um período de tempo estipulado e de cobrar os impostos e proceder à sua entrega ao govemo. Ao con trário dos proprietários rurais não-árabes e dos camponeses, que estavam sujeitos ao pagamento integral do imposto, herdado do antigo regime, os proprietários muçulmano-árabes limitavam-se a pagar o Ushr ou dízimo. O número de Qatai aumentou rapida mente, cobrindo vastas áreas das melhores terras. Podiam ser compradas e vendidas, convertendo-se efectivamente em verda deira propriedade privada. Os titulares de Qatai não residiam nor malmente nas suas propriedades, mas no Amsar ou na capital, entregando o cultivo das terras a um rendeiro nativo ou a mão-de-obra semi-servil. Não se sabe ao certo qual o número de árabes que se fixaram nas províncias conquistadas, mas deviam constituir uma pequena minoria entre as populações nativas. As estimativas respeítantes à Síria e à Palestina andam à roda dos duzentos e cinqüenta mil em finais do primeiro século islâmico. Na sua esmagadora maioria tratava-se de soldados, fimcionários e outros citadinos ou bedui nos. Apenas nos locais onde se verificara uma infiltração pré-islâmica de colonos árabes é possível encontrar alguns árabes nas zonas rurais. Segundo uma fonte egípcia, o número de campone ses árabes no Egipto em finais do período omíada era de três mil. Muitos dos príncipes OmJadas eram também grandes latifundiárfc®, tendo alguns deles dedicado grande interesse e atenção áo desenvolvimento das suas propriedades. Ibn Amir, proprietário famoso e próspero, atribui ao Profeta o seguinte Hadith: «Aquele que for morto a defender as suas terras é um mártir». A autenti cidade deste Hadith é extremamente duvidosa, mas ilustra perfei-
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lamente a visão da nova classe de ricos proprietários, que ocupava um lugar predominante no seio da própria classe dirigente árabe. As enormes fortunas obtidas por alguns dos conquistadores árabes parecem não ter tido origem nem em investimentos nem em negócios, e a própria classe mercantil de Meca, com algumas excepções, teria abandonado a sua anterior vocação em troca de uma aristocracia de guerreiros. Não obstante, os Califas Omíadas e muitos outros homens ricos viviam faustosamente nas cidades e, inclusivamente, no deserto, despendendo quantias fabulosas em edificações, mobiliário e têxteis. A economia da época era pre dominantemente, ainda que não exclusivamente, monetária. Os soldados e os funcionários eram pagos tanto em espécie como em géneros. Os impostos eram cobrados do mesmo modo. O número de moedas dos princípios do Califado que chegou até nós con firma os depoimentos deixados pelos historiadores de que a cunha gem herdada das administrações persa e bizantina continuou a produzir moeda de ouro e de prata em quantidades suficientes para tom ar isto possível. A circunstância de a casta dominante árabe poder dispor de enormes quantias contribuiu para o aparecimento de uma nova classe — os Mawali (sing. Mawla). Mawla era qualquer muçul mano que não pertencesse a uma tribo árabe por descendência. Incluía assim os Persas, Arameus, Egípcios, Berberes e outros não-árabes convertidos ao Islão, e ainda alguns de língua ou de origem árabe, que por qualquer motivo tivessem perdido ou não tivessem conseguido a quahdade de membros efectivos da casta dominante. A expressão não abrangia os não-muçulmanos, desig nados por Dhimis, ou seja, adeptos das rehgiões protegidas que gozavam da tolerância do Estado muçulmano em troca de uma tributação mais gravosa e de determinadas discriminações sociais. Os Mawali afluíram em grande número aos Amsar árabes, onde edificaram rapidamente grandes burgos exteriores de operá rios, artífices, lojistas, mercadores, etc., satisfazendo as necessi dades da aristocracia árabe. Como Muçulmanos gozavam, teori camente, dos mesmos direitos dos árabes e exigiam idêntico nível económico e social. Essa igualdade nunca foi totalmente reconhe 81
cida pela aristocracia árabe durante o período omíada. Con quanto alguns proprietários rurais Mawali tivessem conseguido que lhes fosse aplicada a taxa de tributação muçulmana em aten ção aos serviços por eles prestados ao novo regime, a grande maioria não o conseguiu, e no reinado de Abd al-Malik o governo muçulmano chegou inclusivamente a desencorajar toda e qualquer conversão e a empurrar os Mawali das cidades para os campos com o propósito de restabelecer as receitas decrescentes do Estado. Os Mawali lutaram efectivamente ao lado dos Árabes nos exér citos do Islão, especialmente nas províncias fronteiriças do Khurasan e do extremo ocidente. Combatiam, porém, integrados nas forças de infantaria, recebendo uma remuneração mais baixa e um quinhão inferior no produto das pilhagens do que a cavalaria árabe. A situação de inferioridade social dos Mawali transparece claramente na literatura árabe da época. Ò casamento entre uma mulher árabe de raça pura e um Mawali, por exemplo, era con siderado uma união condenável com uma pessoa de posição social inferior, e um escritor árabe interrogava-se sobre se tal união seria tolerada mesmo entre os Bem-Aventurados no Paraíso. O número de Mawali aumentou rapidamente, ultrapassando em breve q dos próprios Árabes. A sua fixação maciça nas cidades fortificadas viTôT dar origem a úniã ^ p u lação urbãinã, descoH^ tente e insatisfeita, cada vez mais consciente da sua crescente importância política, da sua superioridade cultural e da sua parti cipação cada vez maior mesmo nas operações militares. O seu descontentamento era sobretudo de carácter económico. Toda a estrutura do Estado árabe assentava no pressuposto de urna mino ria áfaBê~domm^ñte e de urna maioríá não-muçulmana de cónt l ^ uintesT 0~~ñivélamento económico dos Mawali significava, si multaneamente, uma redução de receitas e um aumento de des pesas, o que iria acarretar o colapso total. A linha divisória entre a casta dominante e os Mawali, se bem que coincidisse em grande parte com a fronteira racial existente entre Árabes e não-Árabes, era, não obstante, essencialmente económica e social, muito mais do que de cunho nacional. Os Árabes mais pobres do Iraque e do Bahrain, não inscritos no IXwanrmüST^fõfpSõs a ocupar üina posição idêntica à dos Mawali, compartilhando das suas razões 82
de queixa. Grande parte da velha nobreza rural persa adaptou-se à nova ordein.~~ jO descontentamento dos Mawali encontrou expressão religiosa no moviiñento conhecido por Shia (de Shiatu AH, o partido de Ali). O Xiísmo começou por ser urna facção puramente árabe e puramente políticáfréuhída à volta dá~s pretensões de Ali e dos seus descendentes ao Califado. A transferência’ da capTtaTpara Kufa, por determinação de Ali, e a suá sut^quente transfereiicia para a Siria pelos Omíadas veio trazer ao Xiísmo o apoio do pa triotismo local iraquiano. A verdadeira evolução do movimento iniciou-sê após a chacina de Karbala, quando, tendo falhado como partido árabe, tentou a vitória como seita islâmica. Os propagan distas xiitas apelaram, com grande êxito, para as massas descon tentes e, nomeadamente, para os Mawali, a quem a ideia de su cessão k g íto a na linha do Profeta atraía muito mais do que aos próprios Árabes. XJ XiTsmo tofnòü-se, essencialmente, a expressão, emTéimós religiosos, da oposição ao Estado e à ordem estabele cida, cuja aceitação significava submissão ao Sunní, ou doutrina ortodoxa islâmica. Esta oposição não se confinou, de modo algum, aos não-Árabes. Nas turbulentas cidades fortificadas, e especialmente em Kufa, berço do Xiísmo revolucionário, os Árabes tiveram um papel importante e, inicialmente, predominante. Foram os Árabes que levaram,o, Xiísmo para a Pérsia, onde a praçá-forte árabe de Qum, colônia de Kuf^, constituiu jim dos principais, redutos xiitas. À oposição expressa pelo Xi^rno, mais do que uma revolta nacional contra os Árabes, fm uma revolta sociaT contra a aristo cracia árabe, o seu credo, o seu estado ê ós sêus sequazes. Tão-pouco os apoiantes do' regímd eram exclusivamente ára bes. A aristocracia feudal persa sobrevivente, mantendo as suas funçõerT ês seus privflè^sTêconíómicòs e sociais, conformou-se com o eclipse temporário dos seus direitos políticos, e colaborou com o Estado árabe enquanto este reconheceu esses privilégios. No que respeita à conversão, trócòü_uma_ortodoxia zoroastriana por uma ortodoxia muçulmana. A população urbana e rural perso-islam zãdãTdefrontáhd(>se ainda contra o mesmo inimigo, trocou 83
as suas heresias zoroastrianas pelas heresias islâmicas, visando a aristocracia dominante, tanto a árabe como a persa. Como era de esperar, os Mawali — persas e outros — foram atraídos pelas formas mais extremistas e intransigentes do Xiísmo, em que introduziram muitas ideias religiosas novas com origem na sua anterior experiência cristã, judaica e persa. Talvez que de todas a mais importante seja o conceito de Mahdi, «aquele que é guiado com justiça». O Mahdi começou por ser um chefe meramente político, mas rapidamente foi investido num papel messiânico religioso. A primeira manifestação característica da doutrina foi a revolta de Mukhtar, que em 685-7 organizou uma revolta em Kufa, em nome de Muhammad ibn al-Hanafiya, filho de Ali e de outra mulher, e não de Fátima. Mukhtar apelou primei ramente para os Mawaü, e é interessante notar que, segimdo um cronista árabe, os Árabes increparam Mukhtar por ter sublevado «os nossos Mawali, reféns que Deus nos concedeu juntamente com todos estes territorios». Após a morte de Muhammad ibn al-Hanafiya, os seus adeptos anunciaram que não tinha morrido, mas que se retirara para um refúgio nas montanhas próximo de Meca e que, quando considerasse chegado o momento, voltaria e criaria um reino de justiça sobre a térra. A revolta de Mukhtar teve um desfecho sangrento, mas a ideia messiânica por ele lan çada criou raízes, e ao longo dos últimos anos do Cahfado Omíada, muitos pretendentes Alidas e pseudo-Alidas, tanto da linha de Muhammad ibn al-Hanafiya como da hnha de Fátima, reclama ram a submissão e a fidelidade dos Muçulmanos como soberanos únicos e legítimos do Islão. Um após outro, todos esses rebeldes messiânicos seguiram os seus predecessores em retiro escatológico, enriquecendo a lenda Mahdi, com os seus éxitos e insucessos, de novos pormenores. Em termos gerais, os candidatos da hnha de Fátima representavam a ala moderada dentro do Shia, contando com um apoio considerável entre os elementos mais descontentes dos próprios Árabes. A linha de Muhammad ibn al-Hanafiya es tava conotada com um extremismo tanto de credo como de com portamento, e representava mais de perto as reivindicaçõra pre mentes dos Mawah. 84
Os Omíadas, ante o crescente descontentamento dos seus súbditos, nao pK)diam dé modo algum contar com o apoio unánime dos Arabes. ^ sentido de independência tribal ainda muito forte entre os Árabes nómadas, e não tanto anti-Omíadas quanto anti-Estado, èncontrou expressão política e religípsa numa serie de mov^Tmentos. Em Me£a e Medina, os pietistas, que nunca haviam verdadeiramente aceite o compromisso de Muwaiya de Arabismo e de centralização, formaram uma oposição teocrática, acentuando os aspectos independente e rehgioso dq Cahfado pa triarcal, cujo idèal defendiam. tJs seus preconceitos anti-Omíadas perpassaih'por todàT a hteratura rehgiosa e histórica dos primeiros tempos do Islão, de que lançavam as bases naquela altura. ^ sua oposição ^os Omíadas raramente revestiu a forma de uma revolta armada, mas a sua constante propaganda contribuiu para o enfraqueciniênto gradual da autoridade do govemo central. ~0" ihovimento dos Khawarij (Caréjidas) constituiu uma ex pressão"mais grave desse desejo de rejeição do Estado centralizado e de retorno a uma ordem pré-islâmica com uma certa dose do aparato islâmico. Como já vimos,"' fràtava-se de um grupo de ade^òs de Àíi, que se haviam rebelado contra o acordo de arbi tragem de Siffin e exigido a resolução da questão pela intervenção de Deus, ou seja, pelas armas. Doze mil homens abandonaram os exércitos de Ah, que os persuadiu a juntarem-se-lhe de novo du rante um curto período de tempo. Porém, cerca de quatro mil entraram de novo em dissidência e Ah viu-se forçado a intervir, tendo como conseqüência a morte de muitos deles na batalha de Nahrawan, em 658. O movimento kharijita começou por ser de cariz estritamente religioso, "evoluindo progressivamente no sen tido de uma oposição anarquista agressiva, reconhecendo como única autoridade a do Califa, que eles próprios escolhiam e a quem podkm, como sucedeu frequentemente, repudiar em qual quer altura. No espaço de vinte anos que se seguiu à morte de Ah, lívérãm lugar no Iraque algumas insurreições kharijitas pouco significativas, culminando com a revolta em massa por morte de Yaad. Os Khawarij falharam devido ao carácter cissíparo do movimento e à sua tendência para confhtos e desordens internas. Durante o govemo de Abd al-Malik, os Khawarijs foram 85
esmagados no Iraque e empurrados, progressivamente, para a Pérria.^ Estavam praticamente aniquilados nos prmcípíD's' do sé~ culo VIII. Eles reprraentam a doutrina árabe pré-islâmica de governo por consenso e da supremacia da decisão i h ^ i d ü ^ levada ao extremo. Os seus dogmas foram definidos com muita precisão como «a natural insubordinação dos Árabes, racionali zada, sistematizada, exacerbada e fanatizada pela doutrina reli giosa». A principal fraqueza interna da ordem omíada, e que acabou p o ^ determinar ~á sua queda, estava nas repetidas e cOnstãhtês rixas enfie as tribos árabes. A tradição nacional árabe divide as tribos èm dois grupos principais, o grupo norte e o grupo suí, ^mbõs cõin umà elaborada árvore genealógica que ilustra a inter-relação existente entre as diversas tribos dentro do grupo e a sua descendência de um antepassado comum. Houve rixas intertribais na Arábia pré-islâmica, mas entre tribos vizinhas, muitas vezes aparentadas. O incremento dessas contendas entre grandes confederações tribais foi “uma conseqüência das conqixista^ No A nã^r os Árabes fixavam-se em bairros de acordo com as tribos respectivas. Esses sectores organizavam-se em ligas de facções rivais, sem qualquer base geográfica, formando como que um mosaico. As árvores tribais da tradição árabe são, muito prova velmente, fictícias, se bem que historicamente importantes na me dida em que dominaram a vida árabe na época omíada. O pri meiro indício vago de litígio entre as «ligas» norte e sul data da época de Muawiya, evoluindo depois rapidamente e explodindo com toda a violência sempre que a autoridade do govemo central enfraquecia. Foi o que aconteceu quando, por morte de Yazid, Qais, uma das principais tribos do Norte, se recusou a reconhecer o seu sucessor, optando por Ibn az-Zubair. Os Omíadas, com o apoio da tribo Kalb do sul, conseguiram a vitória em Marj Rahit, mas a Casa Omíada havia perdido a sua neutralidade e afunda va-se na mêlée(*). Depois de Abd al-Malik, os Califas passaram a depender do apoio de um dos lados^ e o próprio Cãlifadõdege-
(*) Em francês no original. (N. da T.)
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nerou para uma eleição de carácter partidário dentro do conflito tribal. FoFaventada a tese de que uma lutã de raízes tão profun das ê tã o persistente teria tido causas mais sérias do que as genea logias imaginárias da tradição árabe. Essas causas foram detecta das no conflito de interesses existente entre os Árabes que se haviam infiltrado nos territórios conquistados antes das conquis tas — na grande maioria oriundos do sul— e os Árabes vindos com os exércitos do Islão, procedentes do norte, na sua maior parte. Este diagnóstico é apoiado pelo facto de as tribos do Sul serem, de um modo geral, mais receptivas à propaganda xiita, o que sugere uma certa comunhão de interesses com os Mawali. A principal zona de conflito na segunda guerra civil foi o Iraque, onde estavam presentes e activos todos os factores. Kufa, uma cidade importante e em pleno florescimento, constituía o principal centro e assistiu a uma série de convulsões. Os primeiros anos do reinado de Abd al-Malik foram dedicados fundamental mente ao restabelecimento da ordem entre os Árabes, à resolução dos problemas da dinastia e ao estabelecimento da paz na fron teira norte, através de um acordo com o Imperador bizantino. Em 690, estava pronto a entrar em acção contra os rebeldes, e nos três anos imediatos obteve o reconhecimento unânime e geral. Punha-se-lhe agora o problema de'conceber uma hora organi zação. A resposta inevitável traduzia-se num maior grau de centra lização, concentrando a autoridade no soberano e tendo como base o poder militar do exército sírio. O Cahfado de Abd al-Malik não era ainda uma autocracia do velho tipo oriental, mas antes uma monarquia centralizada, com alterações introduzidas pela tradição árabe e pelos resquícios da concepção teocrática. Du rante o reinado de Abd al-Mahk deu-se início a um processo de signado pelos historiadores árabes de «organização e ajustamento». Os antigos sistemas administrativos bizantino e persa, até então vigentes nas diferentes províncias, foram dando lugar, gradual mente, a um novo sistema imperial árabe, em que a hngua árabe era a hngua oficiSTda administração e da contabihdade. Em 696, foi mstítiiída a cunhagem árabe em substituição das moedas de modelo bizantino e persa até então em circulação. Abd al-Malik e os seus conselheiros foram também responsáveis pelo início de 87
um processo de racionalização fiscal que, com os seus sucessores, se veio a cristalizar num novo sistema tributário especificamente islâmico. Legou ao seu sucessor um Império poderoso e pacifi cado, emiquecido pelos enormes esforços despendidos era obras públicas e de reconstrução. Todavia, os problemas principais ti nham sido adiados, e não estavam resolvidos. O reinado de Walid (705-715) foi, em muitos aspectos, o ponto culminante do poder omíada. O principal interesse desse período assenta no retomar das conquistas e da expansão, agora alargada a três novas áreas. Na Ásia Central, Qutaiba Tbh Muslim, enviado por Al-Hajjâj, governador do Iraque de Abd al-MaUk, foi o primeiro a estabelecer firmemente a autoridade árabe nos ter ritórios para além do Oxo, ocupando Bokhara e Samarcanda, e obtendo vitórias estrondosas. Mais para sul, um exército árabe ocupou a província de Sind da índia. Esse feito não teve segui mento e a conquista muçulmana da índia só veio a realizar-se muito mais tarde. J )e maior, significado io i,q . desembarque em Espanha em 710, rapidamente seguido da ocupação da maior partè~ da Península Ibérica. I^ ra n te o reinado de Sulaiman (715-717), foi empreendida uma grande expedição, malograda, contra Constantinopla, última arremetida árabe em grande estilo. O seu fracasso acarretou uma grave crise para o poder omíada. O esfõfçõnftnancêTro ligado à prepãraçãri“; manutenção da expedição provocou o-agravainento da situá^õ“fiscal^ên[mãncéira, que havia., suscitado já uma tremenda oposição. O total aniquilamento da frota e do exército da Síria junto às muralhas de Constantinopla privou o regime da sua principal base material de sustentação. Neste momento crítico, Sulaiman, no leito da morte, designou seu sucessor o piedoso Umar ibn Abd al-Aziz, que mais do que qualquer outro dos priñmpes'OnTíadas era a pessoa indicada para levar a cabo a tarefa de reconciliação, única via possível para a salvação do Estado Omíada. Cabia a Umar a tarefa de manter a unidade dos Árabes_e_do ImpérioÁrabe através^ã“conciliação dós Mawali. Procurou conseguflõ médíãnte um cohjurilo de medidas fiscais que, embora tenham acabado por se desmoronaiy lograram minorar a crise. 88
o principal problema com que se confrontou resultou da circuns tância de a conversão maciga dos Dhimis ao Islão e o aumento coñsTante dq númgro de proprietários rurais árabes se terem con jugado, dando origem a que um número cada vez maior de pes soas se recusassem a pagar mais do que a taxa mínima da tributaçãõ muçulmana. A solução encontrada pqqHajjâj, ao empurrar os Mawali de novo para as suas terras e ao exigir o pagamento total do imposto a todos os proprietários rurais muçulmanos, provocara urna onda de indignação e de revolta^ revelando-se manifestaniente impraticável. Umar íí tentou superar estas difi culdades através de um acordo segundo o qual os proprietários muçulmanos ficavam sujeitos apenas ao pagamento do Ushr, e não ao Kharaj, a tributação mais elevada, mas a partir de 100 a. H. (719 d. C.) deixariam de ser reconhecidas as transferências de ter ras sujeitas a tributação para os Muçulmanos. A partir daí, por força de um artifício legal, os Muçulmanos só podiam arrendar os referidos terrenos, ficando sujeitos ao Kharaj. Com o propósito de pacificar os Mawali, permitiu que se estabelecessem nas cidades fortificadas sem quaisquer impedimentos e isentou-os do Kharaj e do Jizya, que começava a designar especificamente o imposto individual pago pelos não-muçulmanos. No entanto, e à excepção de Khurasan, continuavam a receber uma remuneração inferior à dos guerreiros árabes. Relativamente aos próprios Árabes, con cedeu o nivelamento das remunerações segundo a taxa vigente, na Síria, até então mais elevadas, e ainda pensões para as viúvas e filhos dos soldados. Estas medidas foram acom panhadas de uma política mais austerã"^em relação aos Dhimis, prestes a serem ex cluídos da administração onde até à data haviam prestado serviço em grande número, ficando sujeitos de forma mais rigorosa às discriminações sociais e financeiras impostas por lei. ~Ãs reformas de Umar í í acarretaram, simultaneamente, o aumento das despesas e a redução das receitas. A sua recusa em manter os Dhimis na administração provocou uma certa con fusão e desordem, e nos reinados dos seus sucessores, Yazid II (720-724) e Hishâm (724-743), foi concebido um novo sistema que se manteve em vigor, apenas com aíguínãs alterações, põr'muito tempo após a queda dos Omíadas. Toda a tradição oriental é 89
unânime em considerar Hishâm um soberano mesquinho e ganan cioso,^ empenhado sobretudo em cobrar impostos. Os testemunhos de que dispomos não são de molde a fornecer uma perspectiva geral da política fiscal do Califado, no seu conjunto. Possuímos, no entanto, alguns dados referentes à política seguida pelos três principais governadores provinciais de Hishâm — Ubaidallah ibn al-Habhab no Egipto, Khalid al-Qasri no Iraque e Nasr ibn Sayyar no Khurasan —, e a partir destes é possível reconstituir o quadro geral da política do último período omíada. A base fundamental dajiUva ordem assentava na ficção legal de quê'~õ~pagãlfiénto dd Kharaj era devido pela terra e não pelo seu proprietário. A partir desse momento, todos os terrenos passíveis de Kharaj ficavam sujeitos à tributação integral, independentemente da religião ou da nacionalidade do respectivo proprietário. Os terrenos abrangi dos pelo regime do Ushr, durante os primeiros anos do Califado, continuaram a beneficiar de uma taxa de imposto reduzida, não podendo, porém, ser ampliados. Os Dhimis, por sua vez, pagavam também o Jizya ou imposto individual. O funcionamento deste novo sistema, que viria a constituir o sistema canónico da juris prudência islâmica, tomou-se mais eficaz após a nomeação de superintendentes finançeiros^tónom os, ao lado. dos governado res provinciais, a quem cabia a tarefá de levar a efeitoj) lev ^tãmento ê o censo que serviriam de base à nova tributação. 'Após a morte de Hishâm, o Reino Árabe foi declinando verti ginosamente até à sua queda. A intensificação violenta dos coiiflitoê tribais e^T^écrud^cimento de^mã" òjxsíção activa xiitá e kharijita processaram-se de tal modo que, por volta de 744, a legitimidade do gqyemo central foi posta em causa mesmo na SlniTV ignorada no resto do território. O últim ojlqs Omíadas, Marwan II (744-750), foi um soberano inteligente e competente, mas chegara demasiado tarde para salvar a dinastia. ~Otíml;hegou vmdo do partido que se intitulava a si próprio Hashimiy^ Abu Hashim, fíffiõ de Muhammad ibn aí-Haniafiya, estivera à cabeça de uma reita extremista xiita com o apoio Mawla. Por sua morte, em 716, sem deixar descendência masculina, a sucessão foi reclamada por Muhammad ibn Ali ibn al-Abbas, des cendente de um tio do Profeta. Muhammad foi aceite pela seita. 90
obtendo assim o controlo da sua máquina revolucionária e de propaganda. O seu principal centro de actividades situava-se em Khurasan, onde algumas colônias árabes, sobretudo de Basra, se haviam fixado por volta de 670. Trouxeram consigo os seus con flitos tribais que se desenvolveram e expandiram nos novos terri tórios. Os Árabes constituíam uma pequena minoria no seio da população persa, de temperamento belicoso e descontentes com a sua situação de inferioridade social e económica. A propaganda hashimita partiu de Kufa, cerca de 718, fa zendo apelo àqueles para quem a família do Profeta represen tava os chefes legítimos do Islão, e que acreditavam no advento de uma nova era de justiça. Dirigida inicialmente aos Árabes pelos Árabes, a missão hashimita em breve atraiu muitos Mawah. Um missionário de nome Khidash pregou doutrinas extremistas, obtendo algum êxito a princípio mas acabando por ser capturado e executado em 736. Muhammad ibn Ah ibn al-Abbas não o reco nheceu nem aos seus ensinamentos, e confiou a direcção da mis são no Khurasan a um árabe do sul, de nome Sulaiman ibn Kathir, coadjuvado por um conselho de doze membros. Seguiu-se lun período de inactividade, durante o qual morreu Muhammad, a quem sucedeu seu filho Ibrahim, cujas pretensões foram aceites pela organização no Oriente. Em 745, Ibrahim enviou Abu Muslim, um Mawla do Iraque, como seu agente de confiança para o Khurasan. Abu Mushm obteve um êxito considerável entre as po pulações árabe e persa, e mesmo entre a aristocracia rural. A des peito de uma certa desconfiança e descontentamento por parte da ala moderada Shia, a orientação de Abu Mushm foi aceite de um modo geral, e em 747 teve início o putsch hashimita e as bandeiras negras dos Abássidas foram içadas no Khurasan. O preto tem sido muitas vezes indicado como a cor da Casa dos Abbas. De facto, o uso de estandartes negros constituiu uma tentativa no sentido de ir ao encontro de um dos requisitos das profecias mes siânicas e escatológicas, muitas das quais circulavam entre as po pulações descontentes do Reino Árabe. Outros rebeldes, já antes dos Abássidas, tinham içado o estandarte negro. Só o êxito obtido por estes o converteu em símbolo da nova casa regente. No espaço de poucos anos, os Abássidas ficaram conhecidos tanto em Bi91
zâncio como na remota China por «aqueles que trajam de negro». O resto conta-se em poucas palavras. O conflito entre as tri bos árabes do Khurasan impediu-as de oferecerem uma resistência eficaz ao novo movimento até ser demasiado tarde. Urna vez esta belecidos a leste, os exércitos de Abu Muslim progrediram rapida mente para oeste e o que restava dos exércitos omíadas foi dizi mado na batalha do Grande Záb. A Casa Omíada e o Reino Árabe desapareciam. Em seu lugar, o Abássida Abul-Abbas, que suce dera a seu irmão Ibrahim na chefia do partido, foi proclamado Califa com o título de Saffáh.
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V
o IMPÉRIO ISLÂMICO A goodly place, a goodly time. Por it was in the golden prime of good Haroun Alraschid. (Tennyson, Recollections
of the A rabian Nights)
A substituição dos Osiiadas pelos Abássidas na chefia da comunidade islâmica constituiu algo mais do que urna simples mudança de dinastía. Foi urna revdução na história do Islão, uma viragem tão importante quanto as revoluções francesa e russa na história do Ocidente. Eclodiu não como rçsultado de uma conspiração palaciana ou de um coup d’état, mas por força de uma vasta e b§m_sucedida propaganda e de uma organização revolucionária, representando e expressando o descontentamento de elementos importantes das populações face ao regime anterior, o qual se foi intensificando ao longo do tempo. À semelhança da maior parte dos movimentos revolucionários, tratou-se de uma coligação de interesses diversos, coesos pelo desejo comum de derrubar a, ordem existente, mas condenados a fragmentarem-se em_grupos_antagónicos uma vez alcançada a vitória. Uma das primeiras medidas tomadas pelos Abássidas vitoriosos foi o ani quilamento da ala extremista do movimento, que os tinha levado ao poder. Abm Muslim, principal arquitecto da revolução, e mui tos dos seus companheiros, foram executados, e esmagado um amotinamento dos seus partidários. Mas qual a natureza desta revolução — quem eram os revo lucionários, e que procuravam eles conquistar? Alguns orienta listas eun^ieus- do século XIX^ iludidos pelas teorias raciais de Gobineau e outros, explicavam o conflito entre os Omíadas e 93
A*) ■ os Abássidas, assim como todo o cisma religioso do Islão em term os de üín conflito racial entre o semitismo da Arábia e o ariajínismo do Islão. Consideravam a vitória dos Abássidas como urna vitória dos Persas sobre os Árabes, estabelecendo sob a capa de um Islão persianizado um novo Império Iraniano em lugar do Reino Árabe arruinado. Esta tese encontra algum apoio em fontes árabes — «O império dos filhos de Abbas era persa e kurasaniano, o dos filhos de Marwan Omíada e árabe», afirma o ensaísta árabe do século IX Jahiz. Todavia, investigações efectuadas recentemente vieram demonstrar que, [muito qpibora os antagonismos raciais tenham desempenhado o seu papel na agitação que levou ao desmembramento dos Omíadas, não constituíram as principais forças motrizes da revolução, e os vencedores, conquanto incluís sem um grande número de Persas, não alcançaram a sua vitória como Persas, nem subjugaram os seus inimigos como Árabes^As forças revolucionárias contavam com numerosos Árabes, parti cularmente das tribos do sul, mesmo integrados na aristocracia dos conquistadores. Os Mawali, responsáveis pelo principal apoio ao movimento, não eram de modo algum exclusivamente de ori gem p>ersa, incluindo Iraquianos, Sírios, Egípcios e mesmo Árabes não pertencentes à aristocracia total. A nobreza rural persa dos Dihqans, à semelhança das classes oficiais ex-bizantinas nas pro víncias ocidentais, adaptara-se ao regime omíada e desempenhou um papel de relevo na sua actuação. Foram eles os responsáveis pelo levgptamento e e o te mça do conjunto de tributos exigidos pelos Árabes a cada uma das províncias, isentando-se evidente mente nesse processo. na insarisf^ão socioeconómica da população urbana menos favorecida, designadamente dos mercadores e artesãos mawali que proliferavam nas praças fortes fundadas pelos Árabes, que a força impulsionadora da revolução deve ser p ro c u ra d lo fim das guerras da conquista, única actividade produtora da aristocracia árabe, classe dominante do reino omíada, veio tornar essa classe historicamente redundante, abrindo caminho ao estabelecimento de uma nova ordem, social assente numa econcmia serena, agrí cola e comercial, com uma classe cosmopolita dominante de fun •
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cionários, comerciantes, banqueiros, proprietários rurais e os [ llama, classe de sábios, juristas, professores e dignitários religiosos, (|ue constituíam o correspondente islâmico mais próximo do clero. A missão foi facilitada pela inépcia política e pelas dissenções internas dos próprios Árabes e j>ela desertação de muitos deles do movimento revolucionário. ' A natureza do movimento transparece mais nitidamente das transformações que se seguiram à vitória. A primeira e a mais evidente foi a transferência do centro de gravidade da Síria para o Iraque, centro tradicional dos grandes Impérios cosmopolitas 110 Próximo e Médio Oriente. O primeiro Califa Abássida, Saffah (750-754), estabeleceu a sua capital na pequena cidade de Hashi111iya, que edificou na margem leste do Eufrates, próximo de Kufa, (xira alojar a sua família e a sua guarda. Mais tarde, transferiu a capital para Anbar. Foi Mansur (754-775), o segundo Califa Abássida e, em muitos sentidos, o fundador do novo regime, quem estabeleceu a base permanente da capital abássida numa cidade nova,Jna margem ocidental do Tigre, próximo das ruínas da antiga capital sassânida de Ctesifonde, cujas pedras foram utili zadas na edificação da nova cidade. A sua designação oficial era Madinat os-Salâm, a cidade da paz, mas é normalmente mais conhecida pelo nome da aldeia persa anteriormente aí existente — Bagdade. Mansur escolheu esse local por razões de ordem prática. Fundou a cidade próxima de um canal navegável que hgava o Tigre e o Eufrates e ocupando uma posição-chave no cruzamento de rotas em todos os sentidos e na rota da índia.jNuma passagem esclarecedora sobre a fundação da cidade, o geógrafo Yaqubi conta como Mansur se deteve na aldeia de Bagdade, durante uma viagem, e disse: «Esta üha entre o Tigre, a Oriente e o Eufrates, a Ocidente é um mercado para o mundo. Todos os barcos que sobem o Tigre vindos de Wasit, Basra, Ubulla, Ahwaz, Fars, Uman, Yamama, Bahrain, e mais além vi rão ancorar aqui; as mercadorias embarcadas em navios que descem o Tigre, vindos de Mossul, Diyar-Rabia, 95
Adharbaijan e Arménia, e o Eufrates, vindos de Diyar-Mudar, Raqqa, Siria e térras fronteiriças, do Egipto e do Norte de África serão descarregadas aqui. Será a rota do povo de Jabai, Lsfahan e dos distritos de Khurasan. Lou vado seja Deus que guardou este lugar para mim e fez com que todos aqueles que me precederam o tivessem desprezado. Juro por Deus que farei a sua reconstrução. E então habitarei aqui enquanto viver e os meus descen dentes habitarão aqui depois de mim. Será a cidade mais próspera do mundo.» O centro de Baedade era uma circunferência com cerca de duas milhas de diâmetro, formando uma espécie de cidadela onde se situam a residência do Califa e os aquartelamentos dos oficiais e da guarda khurasaniana que haviam acompanhado os Cahfas, vindos de leste. Para além da cidade, floresceu rapidamente uma enorme metrópole comercial. Os efeitos dessa sua transferência foram consideráveis. O cen tro de gravidade deslocara-se da província meditèrrânèa da Síria para a Mesopotâmia, um vale irrigado e rico, intersecção de muitas rotas comerciais. Simbolizar a passagem de um Estado de influência bizantina para um Império do Médio Oriente, de acordo com os padrões tradicionais, onde as ^ tig a s jnfluências orientais, e muito partjcularmente as da Pérsia, se fizeram sentir de forma sempre crescente. A mudança de dinastia conclui um processo de desenvolvi mento na organização do Estado, que havia sido iniciado já na época dos Omíadas. Do Sheikh tribal que governava com o acordo relutante da casta árabe dominante, passava-se ao Califa autocrata, gqclamando a origem divina da sua aptoridade, apoisyndo-se nas suaTTorçãs'armadas regul^es, e exercendo-a através de uma burocracia assalariada. A importância crescente da força como elemento de autoridade é evidenciada pela situação influente detida pelo executor na corte abássida, como sabem todos aqueles que leram A s Mil e Uma Noites. No novo regime, a linhagem deixou de ser um elemento^ de promoção, contanto apenas as boas graças do soberano, e a ãmtócraciã áraí>e^(^^ a uma 96
hierarquia de funcionários. A nova dignidade do Califa traduziu-se em novos títulos. Já era qrepresentante do Profeta de Deus, mas muito simplesmente o representante de Deus, de quem recebia directamente a sua autoridade. Essa mesma ideia está patente no título retumbante «Sombra de Deus na Terra». Enquanto que os primeiros Califas eram Árabes iguais a todos os outros, a quem qualquer pessoa se podia dirigir e tratar pelo nome, os rodearam-se de pompa e de um cerimonial de uma corte elabo rada e hierárquica e só podiam ser abordados através de toda urna série de camareiros. Em teoria, o Califa continuava sujeito aos preceitos do Sharia, a lei sagrada do Islão. Na prática, esse controlo de autoridade tinha efeitos escassos dado que não havia qualquer mecanismo, além da revolta que levasse ao seu cumpri mento e execução. O Califado Abássida foi, pois, urna autocracia assente.iia. força militar^ e reivindicando um direitoju a s e divino. Os Abágidas eram mais fortes do que os Omíadas na medida em que não dependiam do apoio dos Arabes, podendo governar sem recorrer à persuasão. Por outro lado, eram mais fracos do que os antigos despotismos orientais na medida em que lhes faltava o apoio dç uma classe feudal e do clero. A administração .abássida constituiu um desenvolvimento da dos últimos Omíadas, e o próprio Mansur reconheceu abertamente a sua grande dívida ao Cahfa Hishâm, relativamente à organiza ção do Estado. No entanto, a influência da antiga ordem pérsica dos Sassâuidas foi-se reforçando progressivamente e grande parte da prática -abássida é uma imitação deliberada dos costumes Sassânidas divulgados pelos funcionários persas e pela literatura sassânida sobrevivente. A administração abássida já não assen tava ha discriminação e no exclusivismo racial. A classe dos escribas era recrutada, num ritmo sempre crescente, de entre os Mawali e gozavam de elevado estatuto social. Foi ordenada numa série de Diwans ou ministérios, compreendendo os Diwans da Justiça, do Exército, da Chancela, das Finanças, dos Correios e da Informação, etc. O contigente de funcionários empregados por esses Diwans estava sob o controlo supremo do Wazir. Este cargo foi uma inovação abássida. possivelmente de origem persa. O Wazir era o chefe de toda a máquina administrativãTè na qua 97
lidade do poder executivo máximo depois do Califa, detinha v^tos poderes. Um dos primeiros Wazires, Khalid al-Barmaki, recen temente islamizado, era oriundo da Ásia Central. O lugar ficou nas mãos de diversos membros da família Barmécida, até ao seu derrube por Harun ar-Rashid em 803,. Nas províncias, a autoridade era exercida conjuntamente pelo Amir ou Governador, e o Amil ou superintendente financeiro, com os seus quadros^, forças próprias e com uma certa autono mia, sob a supeiyisãOL geral do correio-mor, cuja missão consistia em informar directamente o Diwan dos Correios e da Informação em Bagdade. No exército, a milícia árabe perdera a anterior importância e as pensões pagas aos Árabes foram sendo suspensas progressi vamente, com excepção dos soldados dos corpos regulares. O Exército era agora formado por forças militares pagas, quer se tratasse de tropas regulares, quer se tratasse de voluntários para uma única campanha. O núcleo era constituído pelos devo tados guardas khurasanianos, o principal esteio do novo regime. Durante algum tempo foi mantida uma força militar árabe, deno minada Arcò ad-Dawla, os Árabes da Dinastia, integrada por Árabes leais ao novo regime. Todavia, cedo perdeu o seu pres tígio, e nos últimos tempos o Exército era formado, numa escala sempre crescente, por escravos especialmente treinados, designados por Mamluks; a maior parte deles de origem turca e oriundos da Ásia Central. Os Abássidas chegaram ao poder na crista de uma vaga reli giosa, e tentaram conservar o apoio popular acentuando o aspecto reügioso da sua autoridade. Observa-se entre os primeiros Cíihfas Abássidas um aliçiâmento-persistente dos chefes religiosos e juris consultos e uma insistência, pelo menos em público, na obser vância do bom gosto religioso. Segundo as palavras de um histo riador árabe posterior; «Esta dinastia governou o mundo com uma política que era um misto de rehgião e de realeza, o me lhor e o mais religioso dos homens obedecia-lhes por força da rehgião e os outros por receio.» A organização religiosa preencheu o vazio deixado pelo desmenibramento da unidade racial árabe e cimentou os diferentes elementos étnicos e sociais da população. 98
A ênfase posta no carácter religioso da sociedade e no poder soberano levou a freqüentes acusações de hipocrisia e à obser vação de um poeta: «Prouvera que a tirania dos filhos de Marwan voltasse, prouvera que a equidade dos filhos de Abbas estivesse no inferno!» É na vida económica do Império Abássida que podemos detectar mais nitidamente a natureza das transformações que a revolução trouxe consigo. O Imperio dispunha de valiosos recur sos. O t ^ o , a cevada e o arroz, pela ordem indicada, eram os principais produtos dos grandes vales irrigados, enquanto que a támara e a azeitona constituíam importantes fontes secundárias lie alimentação. O Império era igualmente rico em metais. A prata vinda das provincias orientáis, e particularmente do Hindú Kush, onde, de acordo com urna fonte do século X, trabalhavam dez mil mineiros em linhas capitalistas. O ouro era trazido do oci dente, nomeadamente da Núbia e do SudaõTb cobre dos arredores de lsfahan, onde no século IX as minas de cobre pagavam um imposto de cinco mil dirhams; e ferro da Pérsia, da Ásia Central 0 da Sicilia. Encontravam-se pedras preciosas em diversos pontos do Império, e do Golfo Pérsico chegavam pérolas. ^ madeira escasseava nas províncias do ocidente; mas encontrava-se em certa quantidade no oriente, e um comércio de importação intenso 1razia fornecimento da India e de mais longe. Os Ábássidas levaram a cabo vastas obras de irrigação, cpm • a ampliação da área de terras cultivadas e drenagem de pântanos, e os historiadores referem colheitas elevadas. A revolução deu aos camponeses maiores direitos de propriedade e um sistema mais equitativo de tributação, tendo por base a percentagem da colheita, em lugar.de uma taxa fixa, como anteriormente. A si tuação do camponês continuava, porém, a ser precária, e com o correr dos tempos foi-se agravando por força das especulações de ricos comerciantes e proprietários rurais, e através da intro dução de mão-de-obra ..escrava nas grandes propriedades, que contribuiu para a degradação da situação económica e social da mão-de-obra livre. Uma enciclopédia muçuhnana medieval divide a indústria c os ofícios em dois grupos — grupo primário, isto é, que supre 99
as necessiddes básicas do homem; e grupo auxiliar ou sumptuário. O primeiro subdividia-se em alimentação, abrigos e vestuário. Foi este último o que de longe mais^se desenvolveu no Império Islâmico.í A indústria mais importante, tanto pelo número de pessoas que empregava como pelo volume de produção, era a dos têxteis, que se iniciara durante o regime omíada c se encontrava agora em rápida expansãoj Produzia-se todo o tipo de produtos, tanto para consumo local como para exportação — têxteis fabricados em tamanhos fixos, tecidos, tapetes, tapeçarias, estofos, almofa das, etc. O Jiaho- era fabricado sobretudo no JEgipto, onde os Coptas desempenhavam um papel importante nos três principais centros — Damieta, Tinnis e Alexandria. O jJgodão era, inicial mente, importado da índia, mas em breve começou a ser cultivado na Pérsia Oriental expandindo-se para ocidente até Espanha. O fabrico da seda foi herdado dos Impérios Bizantino e Sassânida, centrando-se nas províncias de Jurjan e Sistan. Os tapetes eram fabricados um pouco por toda a parte, sendo considerados os melhores os do Tabaristan e da Armênia. LA mdústria estava organizada em parte sob o controlo do Estado, e em parte sob iñiciatíva privadaj Desde os últmiQS .tempos do regime omíada, o governo mantinha oficinas e centros manufactores destinados ao fabrico de Tiraz., tecidos usados no vestuário dos governantes e para os trajós de cerimônia , concedidos como distintivo honorífico a altos funcionários e chefes do exército. O sistema normal de produção era doméstico. Os.artesãos só podiam vender a agentes estatais ou a um entrepreneur particular que os finan ciava. Nalguns casos, os artesãos recebiam um salário, e no Egipto do século IX fala-se de uma tabela de meio dirham por dia. De acordo com a tradição, o papel foi fabricado pela primeira vez na China, no ano 105 a. C. Em 751 d.C , os Árabes saíram vitoriosos sobre alguns contingentes de tropas chinesas a oriente dos Jaxartes. Entre os seus prisioneiros, contavam-se algunsjahricantes d ^ a p e l chineses, que introduziram a sua arte no mundo islâmico. [No reinado de Harun ar-Rashid, o papel foi introduzido no Iraque. Muito embora o uso do papel se divulgasse rapida mente por todo 0 mundo islâmico,i chegando ao Egipto em 800 e a Espanha em 900, o seu fabrico limitava-se, a princípio, às 100
províncias de leste, onde começou por ser introduzido. No en tanto, a partir do século X, existem provas concludentes de fabri cação de papel no Iraque, na Siria, no Egipto e mesmo na Arábia, e em breve se ouve falar de fábricas de papel no Norte de África e em Espanha. Alguns desses centros incluem Samarcanda, Bag dade, Damasco, Tiberias, Hama, Trípoli Sirio, Cairo, Fez em Marrocos e Valéncia em Espanha. Outras indústrias englobam cerâmica, trabalhos em metal, sabão e perfumes. Os recursos do Império, e também o tráfego comercial de vital importância entre a Europa e o Extreipo Oriente, tornaram possível um enorme desenvolvimento comercial, acompanhado do restabelecimento da ordem e da segurança internas e de relações pacíficas com os países vizinhos, em lugar das intermináveis guer ras de conquista dos Omíadas. O comércio do Império Islâmico era vastíssimo. Desde os portos no Golfo Pérsico de Siraf, Basra e Ubulla, e, em menor escala, de Ádem e dos portos do Mar Vermelho, os mercadores muçulmanos viajavam até à índia, ao Ceilão, às índias Orientais c à China, trazendo sedas, especiarias, essências, madeiras, esta nho e outros produtos destinados ao consumo interno e para reexportação. Por terra, rotas alternativas para a índia e para a China atravessavam a Ásia Central. Segundo uma fonte, os produtos trazidos da China incluíam essências, artigos de seda, faianças, papel, tinta, pavões, cavalos velozes, selins, feltro, canela, ruibardo; do Império Bizantino, utensílios de ouro e prata, moedas de ouro, drogas, brocados, escravas, bugigangas, fechaduras, engenheiros hidráulicos, agrônomos, marmoristas e eunucos; e da índia, tigres, panteras, elefantes, peles de pantera, rubis, sán dalo branco, ébano e coco. Dos manuais de navegação muçul manos que chegaram até nós, transparece que os navegadores muçulmanos estavam perfeitamente à vontade nos mares orien tais, onde negociantes árabes se estabeleceram na China ainda no século VIII. Na Escandinávia, e designadamente na Suécia, foram encon trados muitos milhares de moedas muçulmanas, com inscrições que datam de finais do século VII até princípios do século XI,
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assinalando o período de florescimento do comércio islâmico. Diversas descobertas de moedas ao longo do curso do Volga con firmam os depoimentos de algumas fontes literárias relativamente à existência de um comércio amplo entre o Império Islâmico e o Báltico por via do Mar Cáspio, Mar Negro e Rússia. Desses países, os Árabes obtinham principalmente peles de âmbar. Muqadasi, geógrafo de fins do século X, refere os artigos importados através do Volga e Khwarizm como incluindo «ZibeUna, esquilo, arminho, marta, raposa, peles de castor, lebre, peles de cabra, cera, setas, gorros de pele, goma de peixe, dentes de peixe, cas tores, âmbar, chagrem, mel, avelãs, falcões, espadas, armaduras, madeira Khalanj, escravos eslavos, carneiros e gado vacum». Não é provável que os Árabes tenham chegado à Escandinávia. Possi velmente encontraram os povos nórdicos na Rússia, servindo de intermediários os Khazars e os Búlgaros do Volga. A importância do comércio árabe com o Norte é também ilustrada pelo facío de a primeira cunhagem de moeda conhecida na Suécia ter por base o peso do dirham, e ainda pela presença de diversas expres sões árabes na antiga literatura islandesa. Os Árabes desenvolveram também com a África um comér cio intensivo por terra, constituindo o, ouro e os escravos o prin cipal produto de importação. O comércio com a Europa Ocidental foi inicialmente iijlerrompido píelas conquistas árabes, mas reto mado pelos Judeus que serviam de elo de hgação entre os dois mundos hostis. Numa passagem frequentemente citada Ibn Khurradadhbeh, geógrafo do princípio do século IX, refere-se aos mercadores judeus do Sul de França; «... que falam árabe, piersa, grego, língua dos fran cos, espianhol e eslavo. Viajam do oriente para o ocidente, e do ocidente para o oriente, pxir terra e px>r mar. Do ocidente trazem eimucos, escravos e escravas, brocados, peles de castor, de zibelina e outras, e espadas. Viajam de barco desde o piaís dos Francos no Mediterrâneo Ocidental e apxjrtam a Farama, donde levam as suas mercadorias em camelos até Qulzum, a uma distância 103
de vinte e cinco parassangas. Depois navegam pelo Mar (Vermelho) oriental desde Qulzum até Al-Jar e Jedra, e mais para diante até Sind, india e China. Da China trazem almíscar, alués, cánfora, canela e outros produtos dessas partes, e regressam a Qulzum. Em seguida transportam-nos para Parama -e voltam a partir para o mar do ocidente. Alguns navegam até Constantinopla, e ven dem os seus produtos aos Gregos, e outros levam-nos ao rei dos Francos e vendem-nos ali. Por vezes trazem as suas mercadorias da térra dos Francos, pelo mar ocidental e descarregam em Antioquia. Em seguida percorrem por térra urna distância de três dias de marcha até al-Jabiia, donde descem o Eufra tes até Bagdade, depois descem o Tigre até Ubulla e de Ubulla até Uman, Sind, india e China...» Se a industria recebeu alguns incentivos do Estado por razões fiscais essencialmente, o com ício não b>eneficiou de tratamento idêntico, e mesmo nalgims aspectos, como seja a conservação das estradas, o Estado parece ter feito muito pouco para promover o comércio. Os mercadores viam-se forçados a empreender uma luta constante contra uma burocracia usurpadora. A acção eco nómica do Estado limitou-se, a princípio, à proibição geral de especulação com géneros alimentares essenciais — proibição que não foi executada com grande eficácia — e à actuação do Muhtasib, funcionário urbano cuja tarefa consistia em fiscalizar os mCTcados e garantir a qualidade dos produtos e do trabalho, assim como o uso de pesos correntes. Numa fase posterior, o Estado passou a intervir de forma mais directa no comércio, numa ten tativa de negociar e de monopolizar determinados artigos. O increm ento dn com ércio e dos empreendimentos em larga escala deu origem, no decurso do século IX, ao desenvolvimento da actividade bancáriaJ A economia do Império Islâmico fora desde o princípio hunetalista, com o dirham de prata persa a circular nas províncias de íeste, e o denário de ouro bizantino (dinar, em árabe) no Ocidente. Estas emissões foram mantidas 104
pelo Califado, com o peso-padrão de 2,97 gramas para o dirham e de 4,25 gramas para o diñar. A despeito das várias tentativas esboçadas no sentido de estabilizar o valor relativo das duas moedas, estas flutuavam inevitavelmente com os preços dos me tais de que eram feitas, e o Sgrrqf^ ou cambista, passou a consti tuir urna das características essenciais de qualquer mercado mu çulmano. No século transformou-se-num banqueiro em grande escala, certamente com o apoio de ricos comerciantes com capital para investir. Ouvimos falar de bancos com sede em Bagdade e sucursais nas outras cidades do Império e de um elaborado sis tema de cheques, letras de crédito, etc. de tal forma desenvolvido que era possível passar um cheque em Bagdade e descontá-lo em Marrocos. Consta que em Basra, o principal centro do florescente comércio no Oriente, todos os comerciantes possuíam uma conta bancária própria e que no bazaar os pagamentos eram sempre efectuados por cheques e nunca em dinheiro. No século X, vamos encontrar bancos do governo na capital, designados por «Ban queiros da Presença», que adiantavam ao governo as vultosas quantias em dinheiro necessário para as despesas administrativas contra uma hipoteca sobre os impostos não cobrados. Devido à proibição muçulmana da usura, a maior parte dos banqueiros eram judeus e cristãos. A florescente vida comercial da época reflectiu-se no pensa mento e na literatura, onde encontramos o mercador íntegro erigido em modelo ético ideal. Tradições atribuídas ao Profeta contêm afirmações como; «No Dia do Julgamento, o honesto e fiel mercador muçulmano tomará lugar ao lado dos mártires da fé», «O fiel mercador sentar-se-á à sombra do trono de Deus no Dia do Julgamento», «Os mercadores são os mensageiros do xmiverso e os servos em quem Deus depositou confiança na terra». O Califa Umar I é citado como tendo afirmado, muito impro vavelmente: «Não há lugar algum para onde eu tivesse maior prazer que a morte me arrebatasse do que a praça do mercado, comprando e vendendo para a minha famíha.» O ensaísta Jahiz, num ensaio intitulado «Em louvor dos mercadores e condenando os funcionários», observa que a aprovação por Deus do comércio como forma de vida é comprovada pela Sua escolha da comuni 105
dade comercial de Quraish para o seu Profeta. A .hteratura da época inclui retratos do mercador honesto e leal, e grande número de conselhos quanto ao investimento de dinheiro no comércio, compreendendo algumas máximas, como a de não aplicar capital em coisas cuja procura seja escassa, tais como jóias, só procura das pelos ricos, livros eruditos, só procurados pelos sábios, que em qualquer dos casos são poucos e pobres. Esta máxima deve ter emanado de um autor com maior experiência teórica do que prática, pois é evidente que foram precisamente os negociadores em artigos de luxo e dispendiosos, jóias e cambraias por exemplo, os mais ricos e conceituados. Todas estas transformações económicas acarretaram altera ções sociais correspondentes e um novo jogo de relações entre os componentes étnicos e sociais da população. A casta de guer reiros árabes fora deposta. P ero ra os.beneficios concedidos pelo tesouro público e os anteriores privilégios. A partir de agora os cronistas árabes só muito raramente se referem aos feudos tribais dos Árabes. Isto não significa que a sua violência tenha diminuído, porquanto ainda no século XIX veremos os descendentes de Qais e de Kalb engalfinhados, na Síria. Significa antes que a ^ist(> cracia tribal árabe havia perdido o seu poder de intervenção e a sua influência nos negócios públicos, e que os seus feudos e disputas já não revestiam grande importância. A partir dessa altura, os membros das tribos árabes começaram a abandonar o Amsar, voltando alguns ao nomadismo que nunca haviam abandonado por completo, e outros estabelecendo-se no campo. A cidade islâniica converteu-se de praça-forte do exército ocupante nas províncias conquistadas num mercado e bojsa de câmbios, onde os mercadores e artesãos começaram a _organizar-se em guildas para auxílio e defesa comims. Os Árabes, todavia, não tinham perdido totalmente a sua supremacia. De início, o governo era ainda predominantemente árabe nos seus cargos mais elevados. A dinastia continuava a ser árabe e orgulhava-se do seu Arabium e a língua árabe era ainda a única língua governamental e cultural. A superioridade teórica dos Árabes mantinha-se e levou ao surgimento do movimento 106
Shuubiya nos círculos literários e intelectuais, apoiando as reivin dicações de uma situação de igualdade para os não-árabes. Mas estava-se a dar uma modificação importante na própria palavra «árabe»! De então para a frente os Árabes deixaram de ser uma fechada casta hereditária e passaram a ser um povo, prontos a aceitar como sendo um deles, por uma espécie de naturalização, qualquer muçulmano falando árabe. A enj^ncipação social dos Mawali consistia na sua plena aceitação como Árabes, e mesmo os pretorianos Khurasanianos dos califas tornaram-se completa mente arabizados. O processo de arabização nas províncias persas ocidentais foi apoiado pela dispersão dos Árabes desmobilizados, pela predominância da língua árabe nas cidades e, a partir delas, nos arredores. O seu desenvolvimento é comprovado pela primeira revolta conjunta árabe-copta no Egipto em 831. Até mesmo os cristãos e judeus do Iraque, Síria, Egipto e Norte de África come çam eventualmente a usar o árabe, e o termo «Árabe» na hngua árabe passou a restringir-se aos nómadas. Em su]?stituição da aristocracia árabe o Império tinha uma nova'úlásse dirigente, os ricos e ós'Tétrados, possuindo os primeiros èih muitos casos fortunas fabulos^ em dinheiro e propriedades. Estas fortunas eram construídas graças a empregos governamehteis, quqnão só eram muito bem pagos, como ofereciam oportu nidades ilimhadas para ganhos adicionais, através do^^m éfcib _e_da banca, da especulação e da .exploração da terra atrayés da pc^se da terra ou da cobrança de impostos,.JJrn exemplo referido numa das fontes de que dispomos diz como é que um jovem, pertencente a uma família de funcionários, investiu uma fortuna de 40 000 dinars que herdara. 1000 destinaram-se a reconstruir a falida casa do pai, 700 a mobiliário, roupa, escravos e outros bens, deu 2000 a um mercador de confiança para comerciar em seu interesse, guardou 10 000 para coisas urgentes e com os restantes 20000 comprou uma propriedade e viveu dos rendimentos dela. Cabe aqui dizer uma palavra sobre a posição dos Dhimis, os súbditos não-muçulmanos do Império. A situação de que goza vam foi muito idealizada por alguns escritores que exageraram a indiscutível tolerância dos governos muçulmanos considerando 107
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que gozavam de completa igualdade. Os^Dhimis eram cidadãos de segunda classe, pagando impostos a m na^axa mais elevada, so frendo algumãs'discriminações sociais, é sendo em raras ocasiões sujeitos a perseguições abertas. Mas na generalidade a sua posição era infinitamente superior à daquelas comunidades que divergiam da Igreja estabelecida na Europa Ocidental no mesmo período. Gozavam de livre exercício da sua religião, direitos de propriedade normais, e com frequência ao serviço do Estado, muitas vezes eram empregados nos postos mais altos. Erãm adiriitidõs nas gufldas dos artesãos, nalgumas das quais exerceram predomínio. Nunca tive ram de sofrer o martírio do exílio por causa das suas crenças. Os primeiros indícios de decadência nesta civilização domi nante ^ e f;^ -se na estrutura da~ünidade política. O Império construído por Mansur parecia suficientemente sólido, apesar de alguns rumores de rebelião, até ao reinado de Harun (786-809). que em muitos aspectos marca o apogeu do poder abássida. Os primeiros Abássidas mantiveram a aliança com a ala perra aris tocrática do movimento que os tinha levado ao ixider^e a nobre casa persa de Barmak, através de uma dinastia de Wazirs, desempenHoü"üni papel central ño governo do Império. Durante a vida de Hanm-ar-Rashid houve uma convulsão de origem e circuns tâncias obscuras que culminou com a degradação da casa de Barmak e da sua perda de poder, riqueza e até vida no que acabou por ser conhecido também noutros contextos por «festim» barmécida. Depois da morte de Harun, conflitos latentes explodiram em guerra civil aberta^entre o seu fiUio Amin e Mamun. A força de Amin assentava'principalmente na capital e no Iraque, a de Mamun na Pérsia, e a guerra civil tem sido interpretada, com base em depoimentos duvidosos, como um conflito nacional entre Árabes e Persas, com a vitória dos últimos. jFoi mais provavel mente n continuação das lutas sociais do período imediatamente precedente conjugado com um conflito mais regional do que na cional entre a Pérsia e o Iraque. Mamun, cujo apoio veio sobre tudo das províncias orientais, projectou por algum tempo trans ferir a capital de Bagdade para Merv em Khurasan. A ameaça à posição da sua cidade e aos seus meios de subsistência reuniu 109
o povo de Bagdade numa defesa frenética de Amin contra os invasores. Mamun venceu, mas sensatamente manteve Bagdade como capitál e ijentro das grandes rotas comerciáis^ ' Daí em diante as aspirações persas aristocráticas e regionais tiveram uma continuidade em dinastias locais. Em 820 um general persa ao serviço de Mamun, chamado Tahir, tomou-se indepen dente e estabeleceu um governo hereditário na sua própria família. Outras dinastias persas, como a dos Safáridas em 867 ou a dos Samânidas cerca de 892, cedo se estabeleceram noutras partes da Pérsia. Estes regimes locaigtinham carácter diferente uns dos ou tros. O reino Tahirid era obra de um general ambicioso que criou um principado para si próprio, mas manteve-se largamente dentro do modelo da civilização árabe islâmica._^Os Safáridas represen tavam o surgimento de um movimento popular persa, ehquanfò que com os Samânidas a velha aristocracia persa voltou ao poder político e ao pleno gozo dos seus antigos privilégios. _Dc3dènte o desm em br^ento poütico começou a i n ^ mais cedo. A mudança da capital para leste tinha provocado a perda de interesse e eventualmente do controlo das províncias ocidentais. A Espanha em 756, Marrocos em 788 e a Tunísia em 800 tornaram-se"virtualmente independentes sob dinastias locaisr O Egipto separou-se em 868 quando o governador Ahmad ibn Tulun, um escravo turco enviado de Bagdade, conseguiu tomar-se independente e estendeu rapidamente o seu domínio à Síria. À queda dos Tulúnidas sucedeu a ascensão de outra dinastia turca no Egipto de origem semelhante. O aparecimento de um centro independente no Egipto, domi nando muitas vezes também a Síria, criou uma nova terra de ninguém entre a Síria e o Iraque, e permitiu às tribos árabes do deserto sírio e suas franjas recuperar a independência que haviam perdido com a queda dos Omíadas. Por vezes conseguiam estender o seu poder até às terras povoadas da Síria e da Mesopo tâmia, apoderando-se e dominando cidades em períodos de fra queza militar ou desunião e estabelecendo dinastias beduínas de curta duração, mas brilhantes como a dos Hamdâiiidas de Mossul e Alepo no século X. Em breve o Califa retomou o controlo 110
directo apenas no Iraque, e em relação ao resto do Império teve de se contentar com tributos ocasionais e o reconhecimento nominal por parte de dinastias hereditárias locais sob a forma de uma menção na oração das sextas-feiras na Mesquita e de ins crições nas moedas. JEnquanto Bagdade manteve o controlo das rotas comerciais vitais que a atravessavam, o desmembramento polítfco não impédiüT^antes parece ter de certo modo ajudado à expansão da vida económica e cultural. Mas em breve verificaram-se ocorrências gfã^Te_a"autoridade do Califa estremeceu na própria capital. O excessivo luxo da Corte e o peso exagerado dà burocracia produziram a desordem financeira e a escassez de dinheiro, mais tarde qgravados pelo esgotamento ou perda para os invasores das fontes do metal precioso. ' Ós CaWas encontraram uma solução na cobrança das receitas do Estado, em gêfál cõm os governadores locais como cobradores de impostos. O seu dever consistia em enviar uma soma estabe lecida ao governo central e em manter as forças militares e os funcionária locais. Estes cobradores-govemadores tomaram-se em pouco tempo os senhores do Império e foram rapidamente iden tificados com os chefes militares. J)qsdé o tempo de Mutasim (833-842)^ e^ Wathiq (842-847), os Califas perderam gradualmente o controlo dos séüs'próprios chefes militares e guardas, que tinham muitas vezes capacidade para os eleger e depor a seu bel-prazer. Estes chefes e guardas eram constituídos na sua maioria por turcos mamelucos. Em 935 o lugar de Amir al-Umara, ou chefe dos chefes, foi criado com o objectivo de assinalar a primazia do chefe da capital sobre os restantes. Finalmente, em 945, a casa persa de Buwaih, que já se tinha estabélecido virtualmente como uma dinastia independente no Irão Ocidental, invadiu a capital e destruiu os últimos vestígios da independência do Califa. Desta altura em diante, com raros intervalos os Califas estavam à mercê de uma série de maitres du pedais (*), a maioria dos quais persas ou
(*) Em francês no original. (A(. da T.)
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turcos, governando por intermédio das forças armadas sob o seu próprio comando. Embora mantendo a situação e a dignidade de soberano supremo do Islão, cabeça da Igreja e do Estado, ou antes do organismo resultante da mistura dos dois, o poder real do Califa desaparecera, e a sua investidura de um chefe ou gover nador não era mais do que o reconhecimento formal post facto de urna situação já existente.
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VI
«A REVOLTA DO ISLÃO»
E t une heure, je suis descendu dans le mouvement d ’un boulevard de Bagdad oü des compagnies ont chanté la ¡ole du travail nouveau... (Rimbaud, Les llluminations)
O rápido desenvolvimento económico do Próximo e Médio Oriente nos séculos que se seguiram à subida ao trono dos Califas Abássidas submeteu ã estrütura social do Império a uma série depraves ténsões e pressões, gerando uma imensa vaga de descon tentamento e uma revolta aberta contra a ordem estabelecida. Esses movimentos eram sobretudo de origem econóÊõica e social, alguns de tonalidade nacionalista. Distintos nas suas causas e circunstancialismos e na composição~dòs seus adeptos, têm em comum q facto de terem encontrado uma expressão quase seinpre religiosa. Sempre que um conflito ou uma dissenção de inte resses dava origem a uma facção no Islão, a sua doutrina era uma teologia, o seu instrumento seita, o seu representante um missionário, o seu chefe normalmente um messias ou um seu representante. No entanto descrever essas heresias rehgiosas de motivação social como meras «capas» ou «máscaras», atrás das quais as maquinações dos homens escondiam os seus verdadeiros propósitos materiais com que iludiam os devotos, seria distorcer a história. O Estado islâmico, nascido da comunidade fundada em Medina por Maomé e fomentado pelas~ãnfigãs monarquias divinas do Oriente, era^ na teoria e na concepção jxipular uma teocracia, em que D eu^era a única fòhle de poder é d^e le r é ó s õ ^ o seu representante na T erra7^~K T m õ crèdõ"oficiaI "da ordem estabelecida, o cúlto, o símbolo exterior e visível da sua identidade 113
e coesão, o seu cumprimento, ainda que superficial, o testemunho e o penhor de lealdade. Por ortodoxia entendia-se a aceitação da ordem existente, e por heresia ou apostasia a sua contestação ou rejeição. Numa sociedade construída deste modo em que tanto na estru tura do Governo como na mente e nos sentimentos dos homens, a Igreja e o Estado se encontravam fundidos indestrinçavelmente, a religião e a controvérsia religiosa desempenhavam papel idêntico ao que a política desempenha no mundo moderno, e quase todos os movimentos, qualquer que fosse a sua motivação, procuravam na religião não uma máscara, mas a expressão orgânica necessária, em termos públicos e sociais, das ambições e do descontentamento que lhes dera origem. Houve, evidentemente, excepções — cóups d ’état palacianos e émeutes militares em épocas de crise polí tica, revoltas de camponeses e tumultos urbanos em períodos de pressão económica. Estes movimentos, porém, eram esporádi cos, e na sua maior parte, não-organizados, limitados no tempo, no espaço e nos condicionalismos da sua origem imediata, muitas vezes de significado meramente pessoal. Sempre que um grupo^de homens tentava lançar um desafío organizado e constante contfã a ordem’ sõcial, encontravam expressão numa seita religiosa, tão natural e inevitavelmente como os seus correspondentes actuais num partido político. O Cahfado Abássida teve de fazer face a ameaças deste ti^^ desde q início. Em 752, teve lugar na Síria um levantanusató em apoio das reivindicações da deposta dinastia omíada, à qual esta províncTã sé manteve fiel por muito tempo. Em breve também este movimento foi abafado seguindo as tendências gerais do evoluir dos tempos, e o grupo pró-omíada começou a falar de uma figura messiânica da Casa Omíada que voltaria ao mühdri para fxmdar um reino de justiça. Também os Xiitas manifestaram, em breve, o seu desapontamento face ao novo regime que haviam ajudado a construir. Um candidato da hnha de Ah conhecido por «Muhammad da Alma Pura», organizou uma conspiração e tentou proclamar-se Maüdi, em Jerusalém.' Tendo falhado na Palestina, fez novas tentativas em Mediná^ mas foi derrotado e morto em 762. ~ 114
De maior importância foi toda uma série de movimentos ocorridos na Pérsia» ligados na sua origem à seita de onde saírm os Abássidas. A revolução abássida foi desencadeada por uma alfánpTéé'eleméh^os adversos aos Omíadas, incluindo dissidentes muçulmanos, persas e árabes, e persas tanto de origem aristo crática como humilde. Após o êxito da revolução, a aliança quebróiTsé e os seus elementos componentes voltaram ao seu anterior estádõ^de conflito, agravado por uma certa frustração e des contentamento. Abu Muslim, o chefe popular que mais do que qualquer outro foi o arquitecto da vitória abássida, foi condenadcrá morte pelo segundo Califa Abássida, Al-Mansur. Outros chefes da seita receberam tratamento idêntico. Os Cahfas con tinuaram a contar com o apoio persa e, particularmente khurasaniano, mas em lugar de Abu Muslim e seus iguais, surgiu a casa aristocrática dos Barmécidas, que durante várias gerações desem penharam um papel dominante na vida da capital e asseguraram ao Governo o apoio dos antigos círculos persas dominantes. Os ressentimentos da população encontraram expressão mima série de inovimentos religiosos em diferentes pontos da Pérsia, com apoio predominantemente camponês. Esses movimentos eram em certa medida nacionari, na medida em que o regime que contestavam continuava a ser por eles considerado árabe e que o fundo religioso da sua ideologia era iraniano. As suas doutrinas,' porém, não eram zoroastfíánás." "Os adeptos ortodoxos da antiga rehgjão estatal do Irão, membros da casta aristocrática dominante, identificavam-se na altura com o regime, e só no remado de Mamun os príncipes da Pérsia vieram a criar os seus próprios movimentos no sentido da independência, estabelecendo principados autónomos nas províncias de Este. A inspiração reli giosa desses rebeldes era sobretudo resultante das antigas heresias iranianas, que nas épocas pré-islâmicas estavam hgadas com a revolta das classes média e baixa contra a monarqma sassânida. O mais importante foi Mazdak, revolucionário comunista que, no século VI, quase derrubou o Império Sassânida. Muito embora o movimento de Mazdak tivesse sido esmagado pelo Imperador Sassânida Chosroes Anushirvan, a sua recordação perdurou entre 115
a população camponesa e as suas doutrinas ocuparam um lugar vital na formação de movimentos religiosos iniciados nos últimos tempos da época omíada e que prosseguiram durante o domínio dos primeiros Abássidas. ^ m e m ó ria do próprio Abu Muslim foi igualmeiúe invocada muitas vez^T l^os rebeldes" persas que se reclamavam seus herdeiros e clamavam vingança contra os Cali fas que o haviam traído._Inicialmente, esses movimentos eram iranianos nos seus credos; mais tarde, tomaram-se Sincretistas, pregando a fusão das concepção mazdakista e xiita extremista. Os Zoroastrianos ortodoxos permaneceram ou à parte ou acti vamente hostis. O primeiro cujo nome chegou até nós foi Bihafarid, antigo Zoroastriano, que apareceu em Nishapur por volta do ano 749, proclamando-se Profeta. Pouco se conhece dos primeiros anos da sua vida, excepto que viveu algum tempo na China, possivel mente por razões de ordem comercial. A principal oposição que lhe foi movida não partiu dos Muçulmanos, que assistiram à sua actividade com indiferença, mas dos Zoroastrianos ortodoxos, e particularmente do clero, que apelaram para o auxílio dos Abás sidas, sendo responsáveis em larga escala pela sua derrota no espaço de dois anos. A morte de Abu Muslim acarretou uma transformação. Os seus discípulos mais extremistas prepararam uma série de revoltas de camponeses, anunciando que ele não tinha morrido de facto, e se havia retirado para regressar mais tarde ao seu povo. Ém 755, Sonpadh, antigo companheiro de Abu Muslim e possivelmente um Mazdakista, revoltou-se. Julga-se que era oriundo de uma aldeia próxima de Nishapur. Conquistou rapidamente um apoio consi derável entre o campesinato da Pérsia Ocidental, incluindo os heréticos zoroastrianos e muçulmanos. O seu movimento alastrou rapidamente e os seus adeptos conquistaram diversas cidades. Fontes árabes referem números entre 90 000 e 100000. Foram vencidos, dentro de pouco tempo, pelo exército enviado por Mansur. Dois anos mais tarde, uma revolta semelhante foi conduzida por outro antigo companheiro de Abu Muslim, deno minado Ishaq o Turco, por ter sido enviado para pregar a fé entre 116
os Turcos da Ásia Central. Também ele foi esmagado. Em 767, Ustadhsis chefiou uma revolta no Khurasan, que ameaçou seria mente, durante algum tempo, a segurança do Império. Mas mais grave do que qualquer outra foi a revolta de Muqanna (o Velado), que, por acaso, constitui o tema de um epi sódio do Lalla Rukh de Moore. Era assün denominado pelo seu costume de usar um véu a cobrir-lhe o rosto para ocultar, segundo os seus discípulos, o seu esplendor e segundo os seus opositores, as suas disformidades. Muqanna era um herético persa e lavou roupa como profissão. Iniciou a sua pregação em Merv e o seu movimento rapidamente se propagou por todo o Khurasan e pela Ásia Central, onde Bokhara foi durante algum tempo o seu reduto. Também aqui, se denotam indícios de uma certa conexão com Mazdak e com Abu Muslim, e as fontes ortodoxas não dei xam de o acusar de pregar e praticar o comunismo tanto da propriedade como da mulher. A sua acção perdurou durante mais tempo do que a dos seus predecessores, tendo sobrevivido de 776 a 789. O mais importantejlesses movimentos foi, incontestavelmente, o de Babak (816-837), que sobressaiu de imediato pela sua ampli tude, duração, qualidades de chefia e coesão. Babak era um herético e um homem de notáveis dotes militares e políticos. A sua seita, a Khurramiia, diz-se ter sido constituída essencial mente por aldeões; o seu contemporâneo Maziar, outro rebelde Khurrami, «ordenou aos camponeses... que atacassem os proprie tários rurais e saqueassem os seus domínios». Existem algumas provas de apoio também da parte dos Dihqans, nobreza rural persa, de que grande número degenerara em pouco mais do que vulgares camponeses, com recordação orgulhosa da nobreza. O centro do movimento situava-se em Adharbaijan, que o geó grafo Iaqut observa, com algum azedume, ter sido sempre um centro da sedição e de conflito. De Adharbaijan alastrou para o Sudoeste da Pérsia, onde elementos curdos e persas aderiram a ele, para as províncias do mar Cáspio ao norte, e para ocidente até à Armênia. Em dada altura, Babak parece ter celebrado um acordo prático com o Imperador bizantino contra o inimigo comum. A sua posição estratégica junto às rotas comerciais do 117
norte faziam dele um inimigo temível. Durante um período de sete anos, as suas forças saíram totalmente vitoriosas, derrotando quatro dos generais do Califa Mamun, mas após a subida ao trono de Mutasim em 833, os aperfeiçoamentos introduzidos no esquema de segurança do Império permitiram um esforço militar mais decisivo que restringiu os Babakis a Adharbaijan, acabando pelo seu desmembramento. De natureza completamente diferente foi a revolta dos escra vos negros, d^ignada por Zanj, entre 869 e 883. O TsKo era urna sociedade esclavagista e continua a sê-lo nalgiímas zoñasr. Os escravos, porém, não constituíam, como no Império Romano, a principal base de produção, a qual dependia sobretudo de camponeses é de artesãos livres ou semilivres. Os escravos eram mados, essencialmente, no serviço doméstico ou militar, sendo estes últimos denominados Mamelucos e constituindo, de facto»^ urna casta militar privilegiada, que ao longo do tempo veio a exercer uma influência dominante nos negócios do Estado. Houve, con tudo, excepções. Os escravos eram empregados no trabalho ma nual em numerosas empresas em grande escala: ñas minas, ñas frotas, na drenagem de pântanos, etc. O desenvolvimento de urna classe de grandes capitalistas e entrepreneurs (*), dispondo de um capital hquido considerável, levou à compra e emprego de escra vos, em grande número, na agricultura. Eram reunidos em insta lações próprias, e por vezes um único proprietário ou entreprenew (*) possuía milhares. Os escravos deste tipo eram sobretudo negros, oriundos fundamentalmente da África Oriental, captura dos, comprados ou recebidos como tributo de estados súbditos. É o caso dos escravos das terras baixas a este de Basra, onde números antes nxmca vistos eram empregados pelos homens abastados da cidade na drenagem das marinhas, para prepararem os terrenos para a agricultura e para extraírem o sal para venda. Trabalhavam em grupos de quinhentos a cinco mil homens; há referência a um grupo de quinze mil homens. A ^ u a s condições— eram extremamente deficientes. O trabalho era pesado e exaus-
(*) Em francés no original. (N. da T.) 118
tiyo, e recebiam em troca apenas urna subsistência escassa e insuficiente consistindo, de acordo com as fontes de õffgém árabe, em farinha, sémola e támaras. Muitos deles eram africanos recém-chegados com poucos ou nenhuns conhecimentos de árabe, e refere-se que o seu chefe teve que recorrer a intérpretes para se fazer entender.. Era [um persa de nome Ali Ibn Muhammad, que se reclamava descendente de Ali e provavelmente de ascen dência árabe. Após várias tentativas falhadas de sedição em diversos pontos, incluindo Basra, onde escapou por pouco de ser capturado e feito prisioneiro, dirigiu-se para a região dos nitratos de potássio em Setembro de 869, e começou a doutrinar os escravos. Alertou-os, diz o historiador árabe Tabari, para a situação mise rável em que viviam e proclamou que «Deus os salvaria por seu intermédio e que desejava melhorar a sua situação e os faria donos de escravos, de riquezas e de habitações». As últimas pala vras revelam o ponto fraco do movimento — não possuía um verdadeiro programa de reforma, não tinha como objectivo a abolição total da escravatura, constituindo uma revolta de alguns escravos com vista à melhoria da sua situação particular. Ah cumpriu a sua promessa quando as vitórias que obteve lhe per mitiram entregar aos seus adeptos os Muçulmanos cativos como escravos. Este movimento semibarbárico foi suficientemente afectado pela tendência preponderante na sociedade islâmica de busca de uma expressão religios^ Muito embora o chefe dos Zanj se recla masse descendente de íMí , não aderiu aos Xiitas mas à seita dos Khawarij, anarquistas de tendências igualitárias, que haviam pro clamado. antes, que seria Califa aquele que fo.s.se um homem bom ainda que escreva abissínio. Segundo as doutrinas kharijitas, os Zani consideravam todos os outros Muçulmanos como infiéis. condenados à escravatura ou à justiça pela espada quando captu rados. .O movimento alastrou rapidamente e a ele aderiram sucessivamente vário s^ ru p c ^ é“mã^tãfdêi"^rõvãvehnentè7^tambéin õs escravos desertores das cidades e dás’atdeias. 'As inihcms'í^ ñe^os dos exércitos imperiais éhviãdbs ' cohffáT eles juntavam-se-lhe, enriquecendo-os com as suas armas e homens treinados, enquanto 119
que as perspectivas de pilhagem lhes traziam o apoio das tribos beduínas vizinhas e dos Árabes das regiões pantanosas. Parece que alguns camponeses livres da região se aliaram ao chefe Zanj, ajudando-o com provisões. Não existem provas de apoio da parte dos elementos livres das cidade^ise bem que haja a indicação de que dois dós tenentes de Ali eram um moleiro e um vendedor de limonada. A folha militar dos Zanj foi brilhante. Os exércitos impe riais foram sofrendo derrotas um após outro, enriquecendo-os com escravos, o produto das pilhagens e, particularmente, armas. Em Outubro de 869, atacaram Basra, mas não conseguiram tomar a cidade. Uma contra-ofensiva de Basra saiu, porém, malograda, e pouco depois os Zanj edificaram urna nova capital a que deram o nome de Al-Mukhtara, «A Escolhida», numa zona seca das terras baixas^' Não possuímos, infelizmente, qualquer informação quanto ao seu sistema de governo. ^ 19 de Junho de 870, os Zanj tomaram e saquearam o florescente porto comercial de Ubulla, reforçando enormemente as suas forças militares com os escravos libertados. A seguir expandiram-se para o Sudoeste da Pérsia, tomando a cidade de Ahwaz. O movimento constituía uma ameaça considerável para o Império. Dominava áreas importantes do Sul do Iraque e do Sudoeste da Pérsia, tomara várias cidades, pressionava forte mente Basra, a segunda cidade das províncias centrais, e estehdia-se através das linhas de comunicação da capital com o Sudeste. A 7 de Setembro de 871, capturaram e saquearam Basra, mas sensatamente evacuaram-na logo após. Entretanto aniquilaram mais algumas forças imperiais, e em 878 tomaram a antiga praça-forte de Wasit. No ano seguinte, faziam incursões num raio de dezassete milhas de Bagdade. Isto assinala o ponto culminante da sua actuação.\o activo e enérgico regente Muwaffaq, irmão do Califa reinante, começava a organizar, com tremendas dificuldades, uma força expedicionária considerável. Em Fevereiro de 881, tinha expulsado os Zanj de todos os pontos conquistados, confinando-os à capital de Al-Mukhtara. O chefe recusou uma oferta tentadora de perdão e de uma pensão do Estado, e após 12Q
um longo cerco a cidade sucumbiu a 11 de Agosto de 883. A cabeça de Ali foi trazida empalada, para Bagdade, em Novembro. Estas vagas de revoltas de camponeses na Pérsia e a insur reição dos escravos do Sul do Iraque parecem não ter deixado uma marca definitiva na história islâmica e não forjaram qualquer transformação radical na estrutura da sociedade islâmica. Deixa ram atrás de si apenas uma corrente subterrânea de descontenta mento e de dissensões que encontrou expressão periodicamente numa série de movimentos abortivos; todavia, o descontentamento crescente da população comum do Império iria manifestar-se num outro movimento de maior significado e permanência nos seus efeitos. .Jlrata-se do movimento ismailita, uma ramificação do Shia. Já vimos como o Xiismo evoluiu, nos seus primeiroá tem~ DOS, de um grupo árabe para uma seita muçulmana, e obteve um primeiro êxito retumbante com a subida ao poder dos Abássidas. Essa vitória pôs termo à importância da linha dos pretendentes Xiitas, descendentes de Muhammad ibn al-Hanafiva. A partir dessa altura, [ps chefes dos Xiitas são da linha fatimida. descen dentes de Ali, por via de sua esposa Fátima, filha do Profeta. Os Imams, designação por que esses pretendentes Xiitas eram conhecidos pelos seus adeptos, eram aos seus olhos os únicos Califas legítimos. Os poderes que reclamavam eram, porém, muito mais vastos do que os dos Abássidas. O Imam Xiita era um pontífice religioso de inspiração divina, que proclamava a sua infalibilidade e exigia obediência incondiclonalT ~ Aquando da morte do Imam Jafar em 765, os seus seguidores dividiram-se em dois grupos, que apoiavam as pretensões de suces são de seus filhos Musa e Ismail. Os adeptos do primeiro reco nheceram os descendentes de Musa até ao décimo segundo Imam depois de Ali. Desapareceu em circunstâncias obscuras/ e o seu regresso é aguardado pelos chamados Twelver Shia até hoje. Os Twelver Shia eram, de um modo geral, moderados nas suas dou trinas, que não divergiam grandemente das do Islão Sunita. Um estudioso francês descreveu-os numa expressão mais feliz do que exacta como «A Oposição de Sua Majestade» aos Califas Abássidas. 121
Muito diferente foi a evolução do grupo ismailita, que her dou os aspectos extremistas e revolucionários do movimento precedente. O século VIII e os principios do século IX podem ser caracterizados como um período de incubação revolucionária, du rante o qual Ismail, seu filho Muhammad e alguns adeptos dedi cados organizaram a estrutura e propaganda da seita. As suas doutrinas diferem nitidamente das do Islão Ortodoxo, incluindo muitas concepções neoplatónicas e indianas. Estas foram intro duzidas pela doutrina da interpretação esotérica, segundo a qual todos os versículos do Alcorão tinham dois significados, um exotérico e literal, o outro esotérico e apenas apreendido pelos iniciados. As doutrinas secretas da seita eram disseminadas atra vés de uma espécie de hierarquia maçónica com graus de ini ciação, em cujo grau superior todo o sistema era revelado ao converso. Esse secretismo contribuiu para a sobrevivência e flo rescimento da seita a despeito da vigilância exercida pela polícia abássida. O chefe titular da seita era o Imam, chefe religioso infalível da linha de Ali por via de Ismail. Em determinadas circunstâncias, o Imam podia delegar os seus poderes noutra pes soa mediante uma espécie de filiação espiritual. Este convertia-se num mandatário ou delegado do Imam com muitos, mas não com todos, os poderes do seu mestre. No princípio do século X, a crjse social do Irnpério estava prestes~ã atingir" cTpõhtò dé rupturaJ^Os camponeses e ps e ^ a v o s derrotados continuavam a alimentar os seus ressentimentos en quanto que a concentração crescente do capital e da mão-de-obra criara um vasto proletariado urbano descontente. Em 920-921, as medidas financeiras do Wazir levaram a motins na capital e a um descontentamento fervilhante em todo o Império. A ati tude dos desfavorecidos perante a religião ortodoxa está bem expressa nos versos de um poeta da época: «.Eu não elevarei a minha prece a Deus enquanto durar a minha [riána, Que as preces do Shaikh al Jalil e Faiq subam até Ele... Porque havia eu de rezar — que é feito da minha riqueza, da [minha casa. 122
Onde os meus cavalos, ornamentos e cinturões dourados? Se a minha voz se erguesse em oração Agora que não possuo um palmo de térra seria um hipócrita.» Por força de todos estes componentes, as doutrinas dos pro pagandistas ismailitas exerciam uma atracção imediata. Os pró prios Ismailitas não lançam muita luz nos seus textos sobre as doutrinas sociais da seita, mas pelas refutações dos teólogos orto doxos é evidente que a ameaça que ofereciam à ordem existente era considerada essencialmente social e não religiosa. O teólogo Al-Baghdadi (traduzido por A. S. Halkin) cita um suposto do cumento ismailita, afirmando: «A verdade é que o seu mestre (Maomé) lhes proi bia simplesmente o prazer do bem e inspira nos seus corações o temor de um Ser oculto que não pode ser entendido. É esse o Deus em cuja existência acreditam. Falava-lhes de tradições relativas à existência daquilo que eles nunca poderão testemunhar, como seja a res surreição dos túmulos, a retribuição, o paraíso e o in ferno. E em breve os subjugou e os reduziu à escravi dão a si próprio durante a sua vida e aos seus descen dentes depois da sua morte. Deste modo arrogava-se o direito de usufruir da sua riqueza, e dizer: “Não vos peço nenhuma recompensa salvo dedicação aos meus paren tes” (Alcorão, Ixiii, 23). Os seus negócios com eles eram na base de dinheiro à vista, mas os negócios deles com ele eram a crédito. Exigia-lhes a troca imediata das suas vidas e bens por uma promessa futura que nunca se rea lizaria.» Muito embora o documento não seja provavelmente genuíno, não deixa de ser valioso por mostrar de que forma essa ameaça era entendida. Ghazaü, um dos maiores teólogos do Islão, as.«iinala repetidas vezes na sua refutação das «abominações dos Ismailitas» que o principal perigo da Seita residia na actuação que exercia sobre as pessoas vulgares. 123
Supõe-se que esras^sgitas de ju icio estavam activas sobretudo zonas rurais e tribais. Mas em breve adquiriram um considerávei número de adeptos entre as pqpuláçqés urbanas. É possívéF que os Ismáinras~téñliám criado” e, por certo, utilizado as guildas islámicas como instrumentos da sua organização, e muitos séculos depois os catecismos e a estrutura das guildas apresentam múlti plos traços da influência ismailita. Urna das acusações frequente mente feitas aos Ismailitas e seitas idênticas pelos seus adversários ortodoxos era a de que tinha urna prática comunista dos bens e das mulheres. Uma fonte de origem árabe apresenta um relato interessante sobre as actividades de um missionário nos arredores de Kufa por volta de meados do século IX. Depois de converter os habitantes de algumas aldeias à sua doutrina, dizem-nos, foi lançando sobre eles uma série infindável de impostos e de taxas • e, por fim «a obrigação da Ulfa (união). Esta obrigação consistia em reunir todos os bens num dado local e usufruir bens em comum sem que ninguém pudesse ficar com qualquer objecto pessoal susceptível de lhe dar alguma vantagem em relação aos outros... Ele garantia-lhe que não tinham necessidade de conservar o que quer que fosse, pois toda a terra lhes pertencia e a ninguém mais. “Esta”, dizia-Ihes, “é a prova a que sois submetidos para que saiba mos qual o vosso comportamento”. Pressionou-os a com prarem e a prepararem armas... Os missionários no meavam em cada uma das aldeias um homem digno de confiança encarregado de reunir tudo aquilo que a po pulação px)ssuía — gado, ovelhas, jóias, provisões, etc. Vestia os nus e satisfazia-lhes todas as necessidades, não deixando que houvesse um só pobre entre eles, nem nenhum necessitado ou enfermo. Todos trabalhavam di ligentemente, e com espririto de emulação de modo a merecerem uma posição elevada polos benefícios por si trazidos. A mulher contribuía com o que ganhava na tecelagem, as crianças com o dinheiro ganho a espiantar os piardais. Ninguém entre eles possuía algo mais além 124
da sua espada e das suas armas. Depois de ter estabele cido tudo isto e de obter a promessa de cumprimento da parte de todos, ordenava aos missionários que reunis sem todas as mulheres numa determinada noite para que se pudessem unir indiscriminadamente a todos os ho mens. Isto, dizia ele, era a verdadeira amizade recíproca e fraternidade.» Não existem testemunhos nas fontes ismailitas destas práticas, s afigura-se provável que a acusação de comunismo seja reflexo das aspirações sociais dos Ismailitas, e a de libertinagem fruto do elevado estatuto que concediam à mulher. O movimento viu a luz do dia nos primeiros anos do sé culo X. Entre 901 e 906, grupos armados de uma facção afim designada por Carmacianos saquearam a Síria, a Palestina e o Norte da Mesopotámia. Chegou até nós ó texto de um sermão pregado em Hims durante a sua ocupação; «Oh Deus, guia-nos com o auxílio do Califa, o Herdeiro, o Esperado, o Mahdi, o Mestre do Tempo, o Chefe dos Fiéis, o Mahdi. Oh Deus, enche a terra de justiça e de igualdade e destrói os seus inimigos. Oh Deus, destrói os seus inimigos.» De grande importância foi o movimento carmaciano na pro víncia de Bahrain (agora denominada Al-Hasa), na costa do golfo da Arábia. O terreno era fértil em acções revolucionárias. A pro víncia era isolada e de difícil acesso, com uma população mista e muitos sobreviventes da revolta Zanj. Algures em princípios do século X, missionários carmacianos tomaram-se o poder domi nante na província, expulsando os representantes do governo cen tral. Infehzmente, muito poucas informações chegaram até nós sobre o regime por eles fundado. Os nossos conhecimentos pro vêm essencialmente dos escritos de dois viajantes, ambos pró-Ismailitas que visitaram a região. O primeiro, que aí se deslocou na segunda metade do século X, descreve o Estado carmaciano como uma espécie de república oligárquica. O soberano não go zava de estatuto privilegiado, governando com o auxílio de um comité constituído pelos seus colaboradores mais próximos. Este relato é confirmado pelas narrativas de um Ismailita persa que 125
visitou Bahrain, no século XI. Encontrou a repúbhca carmaciana ainda florescente. Havia, diz ele, para cima de 20 000 habitantes, preparados para o uso das armas, na capital, Lahsa. Eram gover nados com equidade e justiça por um conselho de seis, que sempre davam audiências, empregavam um tom brando e modesto. Não observavam nem jejuns, nem orações e a única mesquita exis tente fora construída por iniciativa privada para os peregrinos ortodoxos. Não havia nem impostos nem dízimos (o primeiro viajante refere-se a um grande número). O Conselho possuía 30 000 escravos negros que faziam as tarefas agrícolas. Se alguém se encontrasse em situação de pobreza ou endividado era auxiliado pelos outros. Qualquer artesão estrangeiro chegadc a Lahsa rece bia à sua chegada o dinheiro suficiente para se estabelecer. As reparações nas casas de proprietários pobres eram efectuadas a expensas públicas e os cereais eram moídos sem quaisquer encar gos nos moinhos do Estado. As transacções 'comerciais eram leva das a efeito mediante o pagamento de uma moeda simbóhca que não podia ser exportada. A descrição do regime feito pelos dois viajantes é confirmada em parte pelas moedas carmacianas en contradas, cunhadas em nome do Comité. Outra das áreas onde os Ismailitas obtiverani êxito foi no lémen, onde e"m 901“xnn"TaTssionário se foi estabelecer, conquis tando poder rãpldãinente. Do lémen enviou emissários'pará~a Indja e para o Norte de África, e provavelmrate para outrás re giões. A missão do Norte de África consegmu grande sucesso na Tunísia, e em 908 pôde levar ao trono o Ínaam_Ubaidallah, o pri meiro Califa Fatimida. Os Fatimidas se^iram , em mmtos aspec tos, as tácticas dos próprios Atóssidas, na sua subida ao poder. Serviram-se da propaganda secreta de uma seita heterodoxa, e levaram a efeito a sua tentativa decisiva de conquista do poder numa dás rSais r ^ o t a s províncias do Império. Divergiam dos Abássidas em dois aspectos importantes, possivelmente inter-relacionados. Ao contrário dos Abássidas não conseguiram assumir o controlo universal do mundo do Islão. Ao contrário deles,^ tam bém, mantiveram-se na chefia da seita que os levara ao poder. Os três primeiros Califas Fatímidas remaram apenas no Norte de África, "õnde depararam com inúmeras dificuldades, À funda 126
ção de um Estado e de uma dinastia implicava a verificação de condições dlferéñtes das~ de úinã seita revolucionária de oposição. Logo de início, não faltaram os intransigentes que acusaram os novos Califas de traírem e retirarem a força aos dogmas do Ismailismq. Posteriormente, os Fatimidas viriam a entrar em con flito com os Carmacianos de Bahrain por razões idênticas. A ex pansão da nova dinastia para leste foi realizada ao cabo de três tentativas malogradas de Muizz, quarto Califa, que conquistou o Egipto em 969. A conquista há muito que estava a ser prepa rada por emissários e propagandistas secretos, que haviam minado a resistênck dos Egípcios. A conquista do Egipto foi seguida quase de imediafo de üm recontro com os Carmacianos que, nesse mo mento, constituíam um perigo real para o novo regime. Mais tarde parecem ter regressado à anterior obediência e submissão aos Fatimidas. Muizz contou com os serviços de dois homens notáveis. Um foi o seu general Jawhar, um Mameluco de origem europeia, o verdadeiro conquistador do Egipto. Foi ele quem construiu a nova cidade do Cairo como capital fatimida e a grande mesquita de Al-Azhar como centro da sua fé. Convertida à ortodoxia alguns séculos mais tarde, a mesquita de Azhar tem-se mantido até aos dias de hoje como um dos principais centros do pensamento islâ mico e de vida religiosa. O outro grande servidor de Muiz foi Yaqub ibn Killis, um judeu islamizado oriundo de Bagdade, que se jimtara a Muizz na Tunísia e o auxihou antes, durante e depois da conquista. Yaqub ibn Külis era um génio financeiro, e foi ele quem organizou o sistema tributário e o serviço civil que perdu rou praticamente ao longo de todo o período de dominação fa timida. Os Fatimidas rapidamente estenderam a sua influência até à Palestina, Síria e Arábia, e durante algum tempo foram muito além do poder e do domínio exercido pelos Cahfas ortodoxos em Bagdade. O auge da época fatimida no Egipto foi o remado do Cahfa Mustansir (1036-1094), sob cujo governo o Império Fatimida compreendia todo o Norte de África, a Sicíha, o Egipto, a Síria e o Oeste da Arábia. Em 1056-1057, um general pró-fatimida logrou conquistar Bagdade e proclamou a soberania do Cahfa Fati127
mida, dos pulpitos da capital abássida. Foi afastado, porém, no ano seguinte, e a partir daí o poder dos Fatimidas declinou. A crise tornou-se perceptível, antes do mais, na administração civil, e levou à ascensão de uma série de autocratas militares que exerceram a sua autoridade no Cairo à semelhança do que se verificara já em Bagdade durante algum tempo. Despojados dos seus imensos poderes e reduzidos à situação de fantoches impo tentes dos Amires, os Califas foram perdendo gradualmente o apoio das seitas e o seu regime acabou por ser abolido por Saladino que repôs a ortodoxia no Egipto. O regime dos Fatimidas no Egipto, no seu apogeu, difere em muitos aspectos dos que o haviam precedido. No ponto mais alto encontrava-se o Imam infalível, monarca absoluto, que gover nava por direito hereditário transmitido por vontade divina através de urna familia predestinada. O seu governo era centralizado e hierárquico e dividia-se em três ramos: religioso, militar e buro crático. Os dois últimos estavam a cargo do Wazir, um civil, su bordinado ao Cahfa. O ramo religioso era constituido por urna hierarquia de missionários de diferentes- categorias, subordinados a um missionário-chefe, personagem de extraordinária influência pohtica. Este departamento era responsável pelas escolas superio res de ensino e pela organização da propaganda da seita ismaihta e parece ter desempenhado papel idéntico ao do Partido ñas mo dernas ditaduras de partido único. O sector da propaganda dirigia \un vasto exército de agentes espalhados por todas as provincias de leste, ainda sob o controlo nominal do Cahfa Abássida, em Bag dade. A eficácia dessa propaganda pode ser comprovada de diver sos modos. Desde o Iraque até as fronteiras da india, insurrei ções repetidas atestavam a actividade dos agentes ismailitas, ao mesmo tempo que a vida intelectual de todo o Islão confirma, de múltiplas formas, a atracção da fidelidade ismaihta pela intelligentsia radical. Os poetas Mutanabbi (m. 965) e Abul-Ala al-Maarri (m. 1057), dois dos maiores expoentes da hteratura árabe, foram ambos fortemente influenciados pela ideologia ismaihta. No Iraque, um grupo conhecido por «Os Sinceros Irmãos de Basra» organizou um movimento enciclopedista. Publicaram uma série de cinqüenta e uma epístolas abrangendo todos os ramos do 128
conhecimento divulgados na época, e de forte tendência ismaihta. As Epístolas dos Sinceros Irmãos foram lidas desde a índia até Espanha e exerceram uma enorme influência nos autores poste riores. A sua divulgação foi promovida através da organização de grupos de estudo semi-secretos, sob a direcção de membros da Irmandade. A época fatimida foi também de grande florescimento comercial e industrial. Com excepção de alguns períodos de e ^ s sez devidos ã" cheias do Nilo ou a cliques militares, foi uma era de grande prosperidade. Desde o início que os governos fatimidas compreenderam a importância do comércio, quer para a prospe ridade do Império, quer para o alargamento da sua influência. Yaqub ibn KUlis imprimiu um certo impulso comercial, que os che fes posteriores prosseguiram. O comércio egípcio pré-fatimida fora escasso e restrito. Os Fatimidas desenvolveram as plantações e as indústrias no Egipto e encetaram um importante comércio de exportação de produtos nacionais. Ao mesmo tempo, desen v o lv e r^ uma ampla rede de relações comérciãis, especialmente com a Europa e a índia. No Ocidente, estabeleceram relações estreitas, remontando à antiga época tunisiana, com as cidades-estado italianas, designadamente Amalfi, Pisa e Veneza. Grande parte do comércio marítimo passava pelo Egipto e o Ocidente, e a navegação e os mercadores egípcios chegavam até Espanha. Os dois pontos principais durante o domínio fatimida foram Alexan dria e Trípoli, na Síria, ambos mercados de projecção mundial. As frotas fatimidas controlavam o Mediterrâneo Oriental. No Oriente, os Fatimidas desenvolveram importantes contac tos com a índia, alargando progressivamente a sua soberania para sul sobre as duas costas do Mar Vermelho. Conseguiram transferir o comércio indiano do Médio Oriente do Golfo Pérsico para o Mar Vermelho, e, particularmente, para o grande porto fatimida de Aidhab na costa sudanesa. Tiveram igualmente relações comer ciais com Bizâncio e com os Estados muçulmanos, mas de menor importância. Onde quer que o mercador egípcio chegasse o mis sionário ismaUita não se encontrava muito longe, e em breve assis timos ao mesmo fermentar de ideias entre os Muçulmanos, tanto de Espanha como da índia. 129
Com o declínio do Califado Fatimida, dentro do território, os laços entre a dinastia e a seita foram enfraquecendo, acabando por se romper. O Califado Fatimida subsistiu ainda algum tempo como dinastia-fantoche no Egipto, vindo a ser abolido, mas nos territórios de leste, agora sob o domínio dos Seljúcidas turcos, a organização revolucionária recebeu um novo impulso vital.
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VII
o s ÁRABES NA EUROPA
Que Castillos son aquellos? A ltos son y reluzianl — El Alhambra era, señor, y la otra la mezquita.
(Romance de Abenamar)
Ñas eras pré-islâmicas, os Árabes não estavam totalmente alheios aos problemas do mar. Durante séculos antes da ascensão do Islão, os povos do Sul da Arábia construíram barcos e levaram a efeito um importante tráfego marítimo no Mar Vermelho e no Oceano Indico. Todavia, os Árabes do Norte, e muito particular mente os do Hijaz e das terras fronteiriças da Síria e do Iraque, eram inicialmente um povo continental, com poucos conhecimen tos do mar ou da navegação. Um dos aspectos mais surpreendentes das grandes conquistas islámicas foi o da sua rápida adaptação a este novo tipo de actividade. No espaço de alguns anos após a ocupação da costa siria e egipcia, os povos dos desertos da Arábia construíram e equiparam grandes frotas de guerra capazes de fazer face e vencer as potentes e experimentadas esquadras bi zantinas e dar ao Califado esse pré-requisito vital para a sua segu rança e expansão — o controlo naval do Mediterráneo. A conquista da Siria e do Egipto pôs sob o domínio árabe uma longa faixa do litoral mediterránico, com um grande número de portos e urna população de marinheiros. Os Árabes, que até então só haviam defrontado os exércitos bizantinos, confrontavam-se agora também com as frotas de Bizáncio, e a breve reocupação bizantina de Alexandria, por mar, em 645, constituiu um primeiro aviso sobre a importância do poder marítimo. A reac ção foi imediata. O mérito da criação das esquadras muçulmanas cabe essencialmente a dois homens, ao Califa Muawiya e ao Go131
vernador do Egipto, Abdallah ibn Sad ibn Abi Sarh. Tanto em Alexandria, como nos portos do litoral da Siria, os Muçulmanos equiparam e tripularam frotas de guerra que em breve alcança vam vitórias tão estrondosas quanto as dos exétcitos muçulmanos. A primeira grande batalha naval ocorreu em 655, quando uma esquadra muçulmana de duzentos barcos infligiu uma derrota es magadora a uma esquadra bizantina superior, ao largo da Costa da Anatóha, Quando os Abássidas transferiram a sede do Califado da Síria para Bagdade, o interesse do govemo central pelo Mediterrâneo decresceu, conquanto os governadores muçulmanos, independen tes, do Egipto e do Norte de África mantivessem frotas que domi navam o Mediterrâneo de uma ponta à outra. Os Califas Fatimi das do Egipto, segundo parece, tinham em dada altura nada menos Óo que 5000 comandantes na marinha, sob as suas ordens. No decurso do século IX o número crescente da marinha mercante muçulmana ligava os portos das costas muçulmanas do Mediter râneo entre si e com os portos cristãos do Norte. As primeiras actividades béücas das esquadras muçulmanas recém-criadas foram dirigidas contra as ilhas bizantinas de Chi pre, Creta e Rodes, algumas das bases principais da armada de Bizâncio no Mediterrâneo Oriental. Os historiadores árabes di zem-nos que os primeiros Califas se mostravam relutantes em autorizar expedições marítimas, e Umar é citado como tendo proibido os seus generais de avançarem para onde quer que fosse «onde eu não possa chegar montado no meu camelo». Em 649, o Califa Uthman, um tanto relutantemente, autorizou Muawiya a empreender um primeiro ataque a Chipre. A este seguiu-se a breve ocupação de Rodes e de Creta, e durante o período omíada os Árabes conseguiram dominar por algum tempo a península de Cysicus no Mar de Mármara, utilizando-a como base naval num ataque conjunto por terra e por mar à cidade imperial de Constantinopla. A ocupação das ilhas orientais foi, quase sempre, breve e transitória. O ataque árabe à SicÜia revestiu-se de maior impor tância. As primeiras incursões levadas a efeito contra esta ilha partiram da iniciativa de Muawiya e procederam do Próximo 132
Oriente e da Libia. Ataques posteriores partiram da Tunísia mais do que do Oriente, com a ajuda da ilha de Pantelária, ocupada por volta de 700. As primeiras tentativas definidas de conquista só foram esboçadas em 740, quando Habib ibn Abi Ubaida cercou Siracusa e exigiu o pagamento de tributos, sendo porém forçado a abandonar o empreendimento e a regressar à j¿tria para fazer face a urna revolta berbere em África. Depois de novo ataque em 752-753, seguiu-se um período de paz incómodo, durante o qual foram assinadas tréguas por diversas vezes entre as autori dades bizantinas da ilha e os dirigentes muçulmanos da Tunísia, agora independentes. A verdadeira conquista começou em 825. Eufémio, o almi rante bizantino, sentindo-se ameaçado de castigo imperial por qualquer ofensa, cuja natureza não é clara, rebelou-se contra o Imperador e apoderou-se da ilha. Mais tarde, vencido pelo exér cito imperial, fugiu para a Tunísia com os seus barcos e pediuo auxilio de Ziyadatallah, o governador Aglábida da Tunísia, pressionando-o a atacar e a conquistar a ilha. Apesar de algumas hesi tações, o governador tunisino enviou uma frota de guerra entre setenta e urna centena de navios, que desembarcou em Mazara em 827. Após um rápido avanço inicial, os invasores sofreram al guns reveses, conseguindo desenvencilhar-se das suas dificuldades apenas com a chegada inesperada de um bando de aventuremos vindos de Espanha. O avanço prosseguiu a partir daí. Em 831, os Muçulmanos ocuparam Palermo, que passou a ser a capital da ilha, e assim se manteve ao longo de todo o período de govemo mu çulmano, servindo de base para a futura expansão. A guerra entre as forças bizantinas e muçulmanas continua, tanto por térra como por mar, na ilha e no continente italiano, até 895-896, altura em que Bizâncio assinou um tratado de paz, pelo qual renunciava efectivamente á Sicilia. Os Muçulmanos haviam tomado Messina cerca de 843, Castrogiovanni em 859 e Siracusa em 878. Entre tanto, haviam chegado também ao continente, estabelecendo praças-fortes em Bari e Tarento, durante algum tempo. Guerrilheiros muçulmanos ameaçavam Nápoles, Roma e, inclusivamente, o Norte de Itália, tendo compelido um dos Papas ao pagamento de tributo durante dois anos. Entre 882 e 915, a colónia militar mu133
çulmana no Garigliano semeou o terror na Campagna e no Sul do Lácio. Foi provavelmente enviada e apoiada pela Sicilia. A Sicilia, sob o domínio muçulmano, foi inicialmente uma dependência da Tunísia, ligada política e administrativamente a essa província. Com a queda dos Aglábidas e a sua substituição pelos Fatimidas, a soberania da ilha passou para os novos Califas. A princípio, os governadores da ilha eram nomeados directamente pelo governo suserano ou, em épocas de emergência, eleitos pe los notáveis de Palermo. Após a transferência dos Fatimidas para o Egipto em 972, o controlo do governo central enfraqueceu e o título de governador passou a ser tácitamente hereditário, na linha de Hasan ibn Ali al-Kalbi. O governo hereditário dos Kalbitas, que perdurou até 1040, constituiu o auge do poder e da influência muçulmana na ilha. O viajante do século X, Ibn Hawqal encon trou só em Palermo trezentas mesquitas — testemunho eloqüente da amplitude da penetração muçulmana. Escritores posteriores falam-nos do rico florescimento da cultura e das letras árabes, de que infelizmente muito pouco sobreviveu. A queda dos Kalbitas foi desencadeada por uma guerra civil entre muçulmanos da Sicília e de África, que veio pôr termo à unidade da ilha. Após um breve interregno, durante o qual Pa lermo foi governada por um conselho de notáveis e o resto da ilha por príncipes locais, os Normandos, que entretanto haviam ocupado o Sul da Itália, invadiram e capturaram a maior parte da ilha. Em 1061, Roger I tomou Messina e por volta de 1091 ocupava toda a Sicília, à excepção de pequenos postos avançados onde os Muçulmanos continuavam a resistir. Sob o domínio normando, que se manteve até 1194, uma parte significativa da classe urbana culta migrou para o Norte de África e Egipto. Os Árabes da Sicília aplicaram os mesmos princípios de go verno dos territórios conquistados de Este, e efectuaram uma importante alteração social na regulamentação do direito de posse e de distribuição das terras. A sobrevivência de grande número de topónimos árabes ilustra a intensidade da colonização árabe — os numerosos vocábulos árabes do dialecto siciliano testemunham do seu interesse pela agricultura. Os Árabes trouxeram para a Sicília laranjas, amoras, cana-de-açúcar, tamareiras e algodão. 134
Ampliaram as culturas através de uma irrigação cuidadosa, e ainda hoje muitas das fontes encontradas na Sicilia, e especial mente em Palermo, mantêm designações de origem árabe facil mente identificável. Os monumentos da época árabe desaparece ram na sua quase totalidade, e dos livros escritos pelos Árabes na Sicília sobreviveram apenas alguns fragmentos. O maior dos poe tas árabes da Sicíha, Ibn Hamdis (m. 1132), chegou até nós ape nas através de versões em espanhol e sírio dos seus escritos. As causas deste desaparecimento devem procurar-se, em parte, nos materiais deterioráveis utilizados, em parte na emigração das clas ses cultas que se seguiu à conquista normanda e sobretudo na actividade destruidora dos próprios conquistadores. No entanto, os Normandos não tardaram a adaptar-se à cul tura que foram encontrar na ilha. São muito numerosos os ele mentos árabes e muçulmanos encontrados na corte e na cultura da Sicília normanda. Roger II (1130-1154), denominado «O pagão» por ter protegido os Muçulmanos, usou tropas e estrategos árabes nas suas campanhas no Sul da Itália, e arquitectos árabes na cons trução, o que veio dar origem ao novo e inconfundível estilo sarracénico-normando. O seu magnífico manto da coroação, te cido na oficina real de Tiraz em Palermo, ostenta uma inscrição árabe em Kufic e o ano da Hégira 528 (=1133-4). Conservou também o costume árabe de manter poetas elogiadores na arte. Um antologista muçulmano posterior preservou alguns fragmen tos de poemas árabes escritos em louvor deste rei e condena os autores por se humilharem ao tecer o elogio dos infiéis: — «Que Deus os precipite rapidamente no fogo dos infernos.» Foi na corte de Roger que Idrisi, o maior geógrafo árabe, escre veu o seu monumental compêndio de geografia que dedicou ao rei normando e que é conhecido por Kitab Rujjar — O Livro de Roger. Em 1185, o viajante hispano-muçulmano Ibn Jubair visi tou a ilha. Refere que o Rei (Guilherme II, 1166-1189) sabia ler e escrever árabe. «O Rei confia enormemente nos Muçulma nos e confia-lhes os seus negócios, mesmo os mais importantes, de tal modo que o superintendente das suas cozinhas é um Muçul mano e... os seus Wazirs e camareiros». O viajante observa que mesmo os Cristãos de Palermo se vestiam e tinham o aspecto dos 135
Muçulmanos e falavam árabe. Os reis normandos continuaram a cunhar moedas com inscrições árabes e datas da Hégira, inicial mente até com fórmulas muçulmanas. Muitos dos documentos oficiais eram redigidos em língua árabe, incluindo os registos dos tribunais. Numa data posterior, sob a égide da dinastia suábia, que sucedeu aos Normandos, o latim foi substituindo gradualmente o árabe na sua utilização oficial, e o último documento árabe da Sicilia data de 1242. Todavia, a cultura árabe encontrava-se ainda florescente no reinado de Frederico II (1215-1250), reforçada pelas suas relações comerciais com o Oriente muçulmano. Durante o reinado de Manfred (m. 1266), são ainda visíveis alguns indícios de influência árabe, e no acampamento de Lucera, a colónia mu çulmana da Sicilia fundada no Continente por Frederico II con'tinuavam a ser cumpridas as cinco orações canónicas. Não obs tante, a velha cultura estava moribunda, e nos começos do século XIV a língua árabe encontrava-se extinta na ilha, en quanto que o Islão fora exterminado, quer pela emigração quer pela apostasia. O papel desempenhado pela Sicilia na transmissão da cultura muçulmana à Europa é, no conjunto, menos impor tante do que seria de esperar. O facto mais importante data do reinado de Frederico II, quando alguns tradutores, Cristãos e Judeus, traduziram para o latim uma série de obras árabes, tanto originais como baseadas em textos gregos. Entre eles, encontra va-se Teodoro, um astrólogo de origem oriental, que traduziu obras sobre higiene e falcoaria e o famoso Michael Scot, mago e astrólogo de origem escocesa ou írlándesa, que, depois de estudar o árabe e o hebraico em Espanha, entrou ao serviço de Frede^ rico II, na Sicilia, e aí ficou até à sua morte. O último dos tradu tores sicilianos foi o médico judeu Faraj ibn Salim, que traduziu para o latim uma imensa obra sobre medicina de Razi, o Rhases do Ocidente medieval, para o Rei Angevino Carlos I (m. 1285). Foi em Espanha que os Árabes levaram a cabo as suas maio res e mais duradouras conquistas na Europa. No ano 710, o chefe berbere Tarif, com a conivência de um dignitário visigodo rebelde de nome Julián, conduziu uma força invasora através do Estreito até Tarifa, que conserva ainda o seu nome. Encorajado por este 136
êxito, Tariq, um antigo escravo berbere liberto de Musa ibn Nusair, governador árabe no Noroeste de África, preparou uma ex pedição ainda menor, e na Primavera de 711 — com o auxílio da frota de Julián — desembarcou cerca de 7000 homens em Gibraltar (Jabal Tariq). Daí avançou para o interior, derrotando o exér cito visigodo e tomando Córdova e Toledo. Até então as forças muçulmanas eram constituídas quase exclusivamente por Berbe res, mas em 712 Musa chegou com um poderoso exército árabe de, aproximadamente, 10 000 homens e tomou as cidades de SeviIha e de Mérida. A partir daí o avanço árabe foi rápido e por volta de 718 tinha ocupado a maior parte da penínsida e atraves sado os Pirenéus até ao sul da França, onde a sua investida foi reprimida apenas pelos Francos, sob a direcção de Carlos Martel, na batalha de Poitiers em 732. Em vésperas das conquistas árabes, a Espanha encontra va-se debilitada e num estado deplorável. «De tudo o que possuíra antes apenas conservava o nome», diz um cronista antigo. Por um lado, havia um pequeno grupo de proprietários rurais com enormes latifúndios, por outro uma enorme massa de servos e escravos miseráveis e uma classe média arruinada e decadente. Os Clarissimi, ou classe privilegiada, estavam isentos da maioria dos impostos, eram faustosos e depravados; os restantes estavam fa mintos e descontentes. No campo proliferavam bandos de assal tantes constituídos por servos e escravos desertores. Em 616, ini ciou-se uma forte perseguição aos judeus na Península, o que veio acrescentar mais um elemento para aqueles muitos que não ti nham nada a perder e tinham tudo a ganhar com uma mudança, qualquer que esta fosse. O exército visigodo era formado sobre tudo por servos recrutados. A sua precaribilidade entende-se facil mente. As vitórias iniciais dos Árabes provocaram o colapso quase imediato da estrutura apodrecida do Estado visigótico. Os servos paralisaram; os judeus revoltaram-se e juntaram-se aos invasores, entregando-lhes a cidade de Toledo. O novo regime era liberal e tolerante, e mesmo os cronistas espanhóis descrevem-no como sendo preferível ao domínio franco no Norte. O maior benefício que trouxe para o país foi a supres são da antiga classe dominante da nobreza e do clero e a distri137
buição das suas terras, criando uma nova classe de pequenos pro prietários, grandemente responsáveis pela prosperidade agrícola da Espanha muçuhnana. Os servos viviam melhor, enquanto a burguesia encontrava um refúgio para as suas preocupações na conversão em grande escala ao Islamismo e na sua identificação com os Árabes. Após as conquistas, os soldados dos exércitos invasores per maneceram em Espanha, onde se fixaram e contraíram casamento entre si. Sucederam-se novas vagas de imigração do Norte de África e do Oriente durante o século VIII, trazendo grande nú mero de Árabes e de Africanos para a península. Em 741, os Berberes tinham a força necessária para preparar uma revolta geral contra os Árabes em Espanha. O Califa enviou um exér cito formado por Árabes e grande número de Sírios chegado em 742 após uma longa e aventurosa viagem, sob o comando de Balj ibn Bishr. Não tardou a vencer os Berberes recebendo como recompensa o litoral mediterrânico de Espanha, como feudo. Os novos colonos da Síria gozavam de estatuto idên tico ao que tinham na própria Síria, sendo atribuído um distrito espanhol aos homens de cada um dos Junds sírios (distritos mili tares)— Damasco em Elvira, Jordán em Málaga, Palestina em Sidonia, Hims em Sevilha, Qinasrin em Jaen. O exército do Egipto ficou com Beja e Múrcia. Estes senhores feudais árabes estavam sujeitos a serviço militar por convocação do Governo de Córdova, a capital árabe. Senão eram supostos viver das suas terras. Os Árabes, porém, ainda não se tinham habituado à vida agrícola, e os senhores feudais, na sua grande maioria, preferiam fixar-se nas principais cidades dos distritos onde se situavam as suas terras e viver dos rendimentos que retiravam do cultivo das suas pro priedades pelos servos espanhóis ou meeiros. Vieram formar uma nova população urbana, uma casta de guerreiros árabes que viviam dos seus rendimentos, designados por Shamis, ou Sírios, para se distinguirem dos antigos colonos chegados aquando da primeira invasão. A consolidação do elemento sírio em Espanha determinada por estas circunstâncias criou uma atmosfera favorável para Abd
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ar-Rahman, príncipe omíada que fugíra à ruina da sua casa no Oriente. Após trabalho preparatório entre o exército de Balj muitos dos quais haviam sido antigos clientes omíadas, desem barcou em Almuñecar em 755. Não tardou a derrotar o governador que havia reconhecido os Abássidas, e, ao tomar Córdova em 756, fundou a dinastía omíada independente em Espanha, que se man teria no poder até 1031. O primeiro século de domínio omíada em Espanha foi um período de perturbações, durante o qual os Amirs de Córdova se empenhavam na pacificação do país e em aniquilar as insur reições latentes e abertas dos diversos elementos da população. Os Árabes eram essencialmente homens da cidade, os grandes vassalos da aristocracia militar Jund. Detinham mais força no Sudeste e, durante algum tempo, constituíram uma grave ameaça para a autoridade do governo. O termo da imigração árabe no decurso do século IX e a progressiva fusão entre os Árabes e os Espanhóis arabizados convertidos ao Islão foi enfraquecendo pro gressivamente a influência das grandes familias árabes, que nos finais da época omíada deixaram de desempenhar qualquer papel de relevo nos negócios públicos. Os Berberes eram em muito maior número e constituíam uma mais séria ameaça aumentando as suas fileiras através de uma imigração constante até fins do século XI. Nas cidades constituíam uma minoria rapidamente assimilada. Na sua grande maioria montanheses oriundos de Marrocos, preferiram fixar-se nos distritos montanhosos, atraídos por um tipo de vida idêntico, tendo por base a agricultura e a pecuária, e pelas vantagens militares de um tipo de terreno fami liar. Por fim, havia os próprios Espanhóis, cristãos, judeus e con versos. As comunidades não-muçulmanas protegidas eram mais numerosas e estavam melhor organizadas em Espanha do que em qualquer outra parte no Islão. A política do Governo a seu respeito era, de um modo geral, liberal e tolerante, e as repressões que tive ram lugar deveram-se em grande parte a razões de ordem polí tica. Todavia, a conversão ao Islão, motivada mais por atracção do que por coacção, foi rápida e vasta. Em breve os Muçulmanos espMihóis de língua árabe, livres, os resgatados e os escravos, constituíam a maior parte da população. E mesmo aqueles que 139
se mantiveram fiéis às suas antigas religiões adoptaram a língua árabe de forma surpreendente. Em meados do século IX, Álvaro, um cristão de Córdova, observa com mágoa: «Muitos dos meus correligionários lêem a poesia e os contos dos Árabes, estudam os textos de teólogos e filósofos maometanos, não com o propósito de os con testarem, mas para aprenderem a exprimir-se na língua árabe com maior correcção e elegância. Onde podemos encontrar boje um laico que leia os comentários em latim às Sagradas Escrituras? Quem, de entre eles, estuda os Evangelhos, os Profetas, os Apósto los? Todos os jovens cristãos notados pelos seus dotes conhecem apenas a língua e a literatura dos Árabes, lêem e estudam com zelo os hvros árabes, construindo grandes bibliotecas, muito dispendiosas, e proclamando em voz alta por toda a parte que esta literatura é digna de admi ração. Entre milhares é difícil encontrar um que saiba redigir sofrivelmente urna carta em latim para um amigo, enquanto são inúmeros os que sabem exprimir-se em língua árabe e compor posia nessa língua com mais arte do que os próprios Árabes.» Por volta da mesma época, o arcebispo de Sevilha considerou necessário traduzir e anotar a Bíbha em árabe, não para fins mis sionários mas para a sua própria comunidade. Muitos cristãos estavam ao serviço do Estado e alguns bispos foram enviados pelos Amirs Omíadas em importantes missões diplomáticas. A expressão Moçárabe — do árabe Mustarib (arabizante) — era utilizada para designar os cristãos e judeus de língua árabe. Os conversos são designados na história de Espanha por renegados em língua árabe por Muwallad, adoptados. O remado de Abd ar-Rahman II (822-852) foi um período de paz relativamente longo. Abd ar-Rahman reorganizou o reino cordovês segundo os modelos abássidas, introduzindo uma admi nistração centralizada e burocrática e a estrutura abássida da corte. Sobressaiu como protector das letras, tendo trazido muitos 140
livros e estudiosos do Oriente, reforçando grandemente os laços culturais entre o Islão espanhol e os centros da civilização islâmica no Oriente. Uma das figuras mais notáveis foi Ziryab, músico persa afastado da corte de Hanm ar-Ráshid pela inveja do seu professor. Foi refugiar-se na corte de Córdova. Ziryab tomou-se o árbitro incontestado do gosto e da moda na capital espanhola, introduzindo muitos requintes novos e desconhecidos da civilização oriental, desde os estüos musicais do Oriente até ao uso de belas túnicas e aos espargos. Sob o regime dos sucessores de Abd ar-Rahman, a ameaça de dissensões internas diminuiu. Os Árabes, Berberes e Hispano-Muçulmanos foram-se fundindo gradualmente numa população muçulmana homogénea, orgulhosa da sua independência cultural e política, e com uma concepção de vida crescentemente ibérica. Esse movimento no sentido de uma unificação política e cultural beneficiou grandemente da reviravolta ocorrida nos princípios do século X. A ascensão das Fatimidas no Norte de África e o esta belecimento de um anticalifado cismático à cabeça de mn movi mento revolucionário, muito espalhado e sedicioso, levou Amir Abd ar-Rahman III (912-961) a investir-se do título e da dignidade de Cahfa, proclamando-se chefe religioso supremo dos Muçul manos de Espanha e cortando os últimos vínculos de submissão ao Oriente. O Cahfado de Abd ar-Rahman III deu início ao apo geu Umayyad. O seu reinado foi um período de estabilidade poh tica e de paz interna, durante o qual tanto os chefes feudais árabes como os montanheses berberes se encontravam submetidos firmemente ao governo central. As influências do Oriente enfra queceram e começou a emergir uma civihzação hispano-árabe característica, em que a tradição árabe clássica se submetia às subtis infíuências da ambiência local. Ao mesmo tempo, mantinham-se as relações comerciais com o Oriente e a abertura de relações diplomáticas com Bizâncio testemunha o poder e o pres tígio de que gozava o Estado omíada. Al-Hakam II (961-976), um mecenas famoso que mandou construir uma biblioteca com muitos milhares de volumes, e particularmente, o seu wazir Al Mansur — ou Almansor — o verdadeiro governador do país, pros 141
seguiram o trabalho de Abd ar-Rahman, centralizando o governo e unificando a população. À morte de Al-Mansur durante o reinado de Hishâm (976-1008) sucedeu-se um certo descontrolo. O afrouxamento do con trolo central libertou as rivalidades reprimidas entre os dois par tidos, os «Andaluzes», ou seja toda a população muçulmana de Espanha, e os Berberes imigrados recentemente de África. No interlúdio da guerra civil e das dissenssões que se seguiram, um terceiro grupo, conhecido por Eslavos, veio desempenhar iim papel fatídico. Esta expressão aplica-se, inicialmente, aos escravos oriundos da Europa oriental, e ocasionalmente a todos os escravos de origem europeia ao serviço real. Muitos deles eram Italianos ou provenientes dos baluartes da Cristandade independente do Norte, ainda não conquistados. Foram importados numa fase anterior e eram essencialmente muçulmanos e de língua árabe. Em meados do século IX haviam conquistado grande importância tanto no exército, como no paço, e no reinado de Abd ar-Rah man III parece que o seu número atingia os 13 750. Muitos foram libertados e adquiriram riqueza e posição social. Os príncipes omíadas serviram-se deles para neutralizar a influência dos chefes árabes, nomeando-os para cargos elevados no Governo e postos de comando no exército. A sua insubordinação e os seus conflitos com os Berberes contribuíram em grande parte para o derrubamento do Califado Omíada. A primeira metade do século XI foi um período de frag mentações políticas, durante o qual a Espanha muçulmana esteve dividida entre uma série de reis e príncipes insignificantes de ori gem berbere, eslava ou andaluza, designados por «reis partidários». Essa fragilidade política levou a uma dupla invasão da Espanha muçulmana pelos cristãos do Norte com o auxílio dos Francos e pelos Berberes do sul. Em 1085, a crescente vaga da reconqmsta cristã submergiu a cidade de Toledo, cuja perda constituiu um desastre irreparável para o Islão espanhol. No entanto, e a des peito da debihdade e da discórdia política do país, o interlúdio dos «reis partidários» foi um período de grande efervescência cultural. As diversas cortes foram centros de erudição, filosofia, ciência e literatura, enquanto que a queda do cahfado permitia 142
o reatamento de relações activas, tanto económicas como cultu rais, com o Oriente. Urna nova invasão berbere, vinda de África, pôs fim ao reinado dos «reis partidários». Yusuf ibn Tashfin, fundador da dinastía almorávida, entrou em Espanha a convite dos próprios Andaluzes para fazer face á ameaça cristã. Ao derrotar os cristãos em 1086, tratou de anexar as monarquias partidárias ao seu impé rio mourisco. Os Almorávidas, por seu tumo, abriram o caminho á nova dinastia africana dos Almóadas, seita fanática berbere. Entretanto, a reconquista cristã prosseguia. Em 1195, os Muçul manos obtiveram a sua última grande vitória em Alarcos. Em 1212, a derrota muçulmana de Las Navas de Tolosa iniciou toda urna série de avançadas cristãs, culminando com a tomada de Córdova, em 1236, e de Sevilha em 1248. O reino almorávida fragmentou-se numa nova série de monarquias partidárias de curta duração. Em fins do século XIII, os Cristãos haviam recon quistado toda a península, com a única excepção da cidade e provincia de Granada, onde durante cerca de mais de dois séculos continuou no trono luna dinastía muçulmana. Foi ai, á luz do ocaso do Islão espanhol, que se ergueu a fantasia magnífica e esplendorosa do Alhambra, a última e suprema expressão do seu génio criador. A 2 de Janeiro de 1492, os exércitos ahados de Castela e de Aragão tomaram a cidade de Granada, e pouco tempo depois um édito real decretou a expulsão de todos os não-católicos da Península. A língua árabe sobreviveu ainda algum tempo entre os convertidos forçados ao Cristianismo, mas mesmo esses foram deportados para África no principio do século XVII. O Islão espanhol, no seu apogeu, ofereceu um espectáculo soberbo. Os Árabes enriqueceram a vida da Península de muitas maneiras: na agricultura introduziram a irrigação científica e muitas novas culturas, incluindo citrinos, algodão, cana-de-açúcar e arroz. As alterações que operaram no regime da propriedade rural foram grandemente responsáveis pela situação próspera da agricultura espanhola sob o domínio árabe. Desenvolveram inú meras indústrias — têxteis, faiança, papel, seda e refinação de açúcar, e exploraram importantes minas de ouro, prata e outros metais. A lã e a sede eram fabricadas em Córdova, Málaga e 143
Almería, a faiança em Málaga e Valéncia, armas em Córdova e Toledo, trabalhos em couro em Córdova, tapetes em Beza e Calcena, papel — importação árabe do extremo Oriente — em Jativa e Valéncia. Tal como no Islão, os têxteis constituíram a prin cipal industria, e ouvimos falar de 13 000 tecelões só em Córdova. A Espanha muçulmana desenvolveu um vasto comércio com o Oriente, e as frotas mercantes dos portos andaluzes transportavam os produtos espanhóis por todo o Mediterráneo. Os principais mercados situam-se no Norte de África sobretudo no Egipto, e em Constantinopla, onde os mercadores bizantinos compravam os seus produtos para os venderem na India e Ásia Central. As inú meras expressões árabes que subsistem na agricultura e ñas artes e oficios ilustram a força da influência árabe. Mesmo na vida política, os múltiplos vocábulos árabes ainda em uso na língua espanhola, na administração local e no vocabulário militar, ates tam a persistência da tradição árabe. O rei cristão do século XIV que mandou restaurar o Alcácer de Sevilha, celebrou a sua obra com urna inscrição em árabe, «Glória ao nosso Soberano, o Sultão Dom Pedro». As moedas da reconquista- conservaram o padrão árabe durante muito tempo. O Islão espanhol trouxe contributos valiosos para todos os ramos de tradição árabe clássica, à qual, apesar da distância e das suas características locais, pertencia definitivamente. A própria herança grega chegou até aos Árabes espanhóis, vinda do Oriente, através de livros procedentes dos centros de tradução orientais, especialmente durante o reinado de Abd ar-Rahman II, mais do que de fontes locais. A influência local fez-se sentir essencialmente na poesia lírica, onde os Árabes espanhóis criaram novas formas desconhecidas do Oriente muçulmano, que veio a influenciar con sideravelmente a primeira poesia cristã de língua espanhola e, possivelmente, também as outras literaturas da Europa Ocidental. A criação mais notável do Islão espanhol é talvez a sua arte e arquitectura, tendo por base, inicialmente, os modelos árabes e bizantinos do Próximo Oriente e evoluindo, sob as influências locais, em algo de novo, de individual e de original. A famosa mesquita de Córdova, iniciada no reinado de Abd ar-Rahman I, constitui o ponto de partida do novo estilo hispano-mourisco, que 144
viria a criar obras de arte como a Torre da Giralda e o Alcácer de Sevilha e o Alhambra de Granada. Os historiadores espanhóis, como seria de esperar, não se manifestam muito entusiastas quanto à permanência dos efeitos provocados pela ocupação árabe na vida e nas instituições espa nholas. Num ensaio sério, o moderno estudioso espanhol Sánchez Albornoz enumera os que, segundo a sua perspectiva, considera resultados perniciosos e persistentes da longa vigília da Espanha cristã como sentinela do Ocidente contra o avanço do Islão e do esforço constante da reconquista. O primeiro é a fragmentação política do país. A conquista e a reconquista infirmaram a unifi cação política da Península, muito mais avançada sob o domínio romano, e através da reconquista fragmentária o antigo espírito individualista espanhol redespertou, deixando a Espanha muito para trás do resto da Europa no desenvolvimento e centralização política. No mesmo plano situa-se o retrocesso económico legado à Espanha cristã pela absorção de todas as energias disponíveis pela tarefa da reconquista deixando poucas ou nenhumas para o desenvolvimento do comércio e da indústria, em qualquer dos casos deslocados, ao transferir a Espanha da órbita africana e mediterrânica, a que pertenceu durante o período de domínio árabe, para á da Europa Ocidental, onde era uma recém-chegada, atrás dos restantes no trajecto evolutivo e colocada na periferia. Por fim, assinala que «a influência fatal do domínio sarraceno em Espanha não atrasou apenas a vida económica e a organização política. Mesmo nas fibras mais profundas da alma espanhola produziu reacções prenhes de corolários lamentáveis». O esforço constante da reconquista deu origem a uma mentalidade bélica e aventureira e a um empobrecimento do sentido político que levou os Espa nhóis a dissiparem as suas energias em campanhas inúteis e esté reis de expansão imperialista, enquanto que o carácter religioso da guerra provocou um aumento excessivo e doentio do clero e da influência clerical, que tem sido a desgraça da vida política espanhola. Um aspecto por vezes focado por estudiosos espanhóis é o de que enquanto a civilização do califado era indubitavelmente rica e diversificada — mais rica, de facto, do que qualquer outra da Europa Ocidental, nessa época — não trouxe qualquer compen 145
sação para todos estes danos e estragos, dado que grande parte dela foi banida do país juntamente com os próprios Árabes e só penetrou de forma muito restrita a vida cultural da Espanha cristã, que assentava muito mais nos Estados independentes, pobres e atrasados, do Norte não conquistado do que na cultura esplên dida do sul muçuhnano. É verdade que a influência permanente dos Árabes em Espa nha foi muito menor do que, por exemplo, na Pérsia. Na língua persa, quase toda a terminologia da vida cultural e espiritual é ainda árabe. Na língua espanhola é latina. Mas mesmo as muitas expressões sobreviventes relativas à vida material ilustram a dívida importante da Espanha para com os Árabes nas questões econó micas, sociais, e em certa medida, também, poUtica. Na cultura, também a herança árabe deve ser olhada como de fundamental importância não só para a Espanha, como ainda para toda a Europa Ocidental. Cristãos oriundos de diversos países vieram para Espanha estudar, juntamente com os nativos espanhóis, com pro fessores judeus e muçulmanos de língua árabe, e traduziram mui tas obras do árabe para o latim. Uma grande parte da herança da Grécia antiga foi conhecida no Ocidente através de traduções árabes encontradas em Espanha. O primeiro grande centro de transmissão de cultura do Islão para o Cristianismo, no Ocidente, foi a cidade de Toledo, reconquistada em 1085. Muitos muçulma nos eruditos permaneceram na cidade, sendo em breve reforçados por muitos refugiados judaicos vindos do sul muçulmano, agora sob o domínio dos intolerantes Almódoas, que introduziram na Espanha muçulmana uma violenta perseguição religiosa e levaram muitos judeus a procurarem refúgio provisório na atmosfera mais hberal de Toledo. Durante os séculos XII e XIII, e especialmente durante o reinado de Afonso o Sábio, de Castela e Leão (1252-1284), as escolas de tradutores de Toledo produziram um grande volume de obras, incluindo o Organon de Aristóteles e muitos dos escritos de Euclides, Ptolomeu, Galeno e Hipócrates enrique cidos pelos seus comentadores e sucessores árabes. Os tradutores trabalhavam normalmente com nativos bilingües, muitos deles judeus, e incluíram tanto estudiosos espanhóis como estrangeiros. Entre eles contavam-se Domingo Gundisalvi. Judeus convertidos 146
como João de Sevilha e Petrus Alphonsi e, oriundos de outros países, Gerardo de Cremona, de Itália, Hermán o Dalmácio da Alemanha, Adelardo de Bath, Daniel de Morlay e Michael Scot de Inglaterra. Os Árabes deixaram a sua marca em Espanha nas artes do camponês e do artífice espanhol e ñas palavras com que as des creve, na arte, na arquitectura, na música e na literatura da penín sula, e na ciência e filosofía do Ocidente medieval que enriquece ram ao transmitir o legado da Antiguidade fielmente preservado e aumentado. Entre os próprios Árabes, a memória da Espanha muçulmana subsistiu entre os exilados no Norte de África, muitos dos quais ainda usam nomes andaluzes e conservam as chaves de suas casas de Córdova e de Sevilha penduradas nas paredes de Marrakesh e de Casablanca. Numa época mais recente, visi tantes do Oriente idos a Espanha, como o poeta egipcio Ahmad Shawqi e o estudioso sirio Muhammad Kurd Ali, recordaram aos Árabes do Oriente os grandes feitos realizados pelos seus irmãos espanhóis e repuseram a memória do Islão espanhol no lugar que Ihe compete na consciência nacional dos Árabes.
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VIII
A CIVILIZAÇÃO ISLÂMICA
A s ciências de diferentes partes do mundo foram transmitidas na língua árabe; através dela foram embelezadas e penetraram nos corações dos homens, enquanto as belezas dessa língua fluíam nas suas veias e artérias. (Al-Biruni, Kitab as-Saidana)
Durante o período de esplendor dos Impérios Árabe e Islâ mico, no Próximo Oriente desenvolveu-se uma civilização flores cente, normalmente designada por civilização árabe. Essa civi lização não foi trazida já fabricada pelos invasores árabes do deserto, mas foi criada após as conquistas pela colaboração de muitos povos, Árabes, Persas, Egípcios e outros. Nem era pura mente muçulmana, porquanto entre os seus criadores se conta vam muitos Cristãos, Judeus e Zoroastrianos. No entanto, o seu j>rinçipal meio de expressão foi a língua árabe, e foi dominada pelo Islão e pela sua mundividência. Foram estes dois factores, a língua e o credo, que constituíram os grandes contributos dos invasores árabes para a nova e original civilização que veio a desènvõIVêf-se sob a sua égide. A língim árabe é jiima das línguas semíticas, e em muitos aspectos a mais rica delas. Os Árabes pré-islâmicos foram um povo primitivo com um tipo de vida difícil e rudimentar, pouca educação ou cultura formal, e ausência quase total de tradição escrita. Tinham, porém, desenvolvido uma linguagem poética e uma tradição de uma riqueza notável, uma poesia de um ritmo, de uma rima e de uma dicção elaboradas e complexas, uma pre cisão de forma clássica, que serviu de modelo à maior parte da poesia árabe posterior. Com a sua riqueza de paixões e de imagens e a sua limitação de temas, constitui a expressão autêntica da vida dos Beduinos, que cantaram o vinho, o amor, a guerra, a caça. 149
as terríveis paisagens da montanha e do deserto, o valor m a^ial dos homens das tribos, a torpeza dos seus inimigos. Não é logica mente uma literatura de abstracções ou de puro pensamento. ^As conquistas imprimiram à língua árabe um cunho imperialisfãTe em breve também a língua de ilmêculfürá Vasta e diver sificada. A língua árabe expandiu-se de modo a satisfazer ambas as necessidades, em parte indo buscar novas palavras e expressões, mas essencialmente desenvolvendo a partir de dentro, formando novas palavras a patir de raízes antigas, conferindo novos sentidos a palavras antigas. Como exemplo deste processo, vamos escolher a palavra árabe que significa «absoluto», uma noção totalmente desnecessária para os Árabes pré-islâmicos. Trata-se de mu jarrad, o participio passado de jarrada, despido ou desnudo, expressão normalmente usada para gafanhoto e ligada às palavras jorrada, gafanhoto e jarida, folha. A linguagem deste modo criada possuía um vocabulário vivo, concreto e pictórico, em que cada vocábulo tinha raízes profundas num passado e numa tradição puramente árabes. Brotava do impacto directo e imediato de ideias sobre o espírito, através de palavras concretas e familiares e da penetração sem restrições nas e das camadas mais profundas da consciência. ^AJíngua árabe, enriquecida deste modo, permaneceu o único instrumento de cultura durante muito tempo £^^u^á~"do reino puramente árabe. Com a língua dos Árahes vieram aTsua poesia, sem modelo clássico, e o mimdo de ideias aí implantadas — concretas, não-abstractas, ainda que frequentemente subtis e alu sivas; retórica e declamatória, e não íntima e pessoal; recitativa e espasmódica, e não épica e contida; numa literatura em que o impacto das palavras e da forma era mais importante do que a transmissão de ideias. Foi a arabização das províncias conquistadas, mais do que as suas’coñqüTstas militares, que constituiu o verdadeiro prodígio dá' expansão árabe. No século XI, a língua árabe tornara-se não só o principal idiómá usado no dia-a-dia, desde a Pérsia até aos Pírínéus, mas também o principal instrumento de cultura, suplan tando as línguas de antigas culturas como o copta, o aramaico, o grego e o latim. À medida que a língua árabe se expandia, a distinção entre conquistador árabe e conquistador arabizado 150
foi-se desvanecendo, e enquanto que todos aqueles que falavam a língua árabe e professavam o islamismo eram considerados como pertencendo a uma única comunidade, a expressão «árabe» foi-se restringindo, uma vez mais, aos nómadas que inicialmente a haviam usado, ou era utilizada como título de descendência aris tocrática sem grande significado económico ou social. Mesmo para além dos vastos territórios de arabização perma nente, a língua árabe exerceu uma tremenda influência sobre outras línguas muçulmanas. A língua persa e turca dos Muçul manos, e mais tarde também o urdu, o malaio e o swahili, são línguas novas que utilizam a escrita árabe e contêm um imenso vocabulário árabe, de amplitude idêntica à dos elementos gregos e latinos na língua inglesa, abrangendo a universalidade de con ceitos e de ideias. A sobrevivência e a expansão da língua árabe envolveram mais do que a própria hngua — mais, por exemplo, do que o uso con tinuado do latim no Ocidente medieval. Juntamente com a língua vieram o gosto e a tradição árabes na escolha e tratamento dos temas. É esclarecedor confrontar a poesia escrita em hngua árabe pelos Persas até ao século XI com a poesia escrita na língua persa, posteriormente, quando a Pérsia muçulmana desenvolveu uma cultura islâmica independente e própria. A poesia persa de ex pressão árabe difere, em muitos aspectos significativos, da poe sia primitiva dos Árabes, conquanto se subordine basicamente ao gosto árabe e seja ainda estimada pelos Árabes como fazendo parte do seu patrimônio. Falta-lhe o épico e o lirismo subjectivo da poesia persa posterior. O Islão — fruto da Arábia e do Profeta árabe— não foi apenas üín sistemia dè fé e de culto. Foi também um sistema de estado, de sociedade, de lei, de pensamento e de arte — uma civiviEzã^ ò em que a religião foi o seu factor unificador, e eventualmente dominante. A partir da Hégira, o Islão passou a significar sulanissão não só â nova fé, mas à Comunidade — na prática, à suserania de Medina e do Profeta, ~e mais tarde do Império e do Califa. O Islão foi inicialmente a cidadania Árabe, e depois a cidadania do primeiro estrato social do Império.._0 seu código era o Sharia, a lei sagrada retirada pelos juristas do Alcorãõ~ê~dãs' 151
tradições.Jq Profeta, o Sharia não era apenas um código legal normativo, mas também, nos seus aspectos sociopolíticos, um padrão de comportamento, um ideal pelo qual os homens e a sociedade se deviam pautar. O Islão não admitia qualquer poder legislativo, uma vez que a lei só “pòdía emanar de Deüs através dãTeVelaçãó. iõáas o direitó~cõhsuetudinário e a legislação civil, a vontade dp soberano, sobreviveram não oficialmente, ocasionalmente_cpm.o reconhecimento restrito dos juristas. O Sharia, de inspiração divina, regulava todos os aspectos da vida, não apenas a fé e o culto, mas também o direito público, constitucional e inter nacional, e o direito privado, criminal e civil. A sua natureza idealista é mais patente no seu aspecto constitucional. De acordo com o Sharia, o chefe da comunidade é o Califa, representante eleito de Deus, detentor de poder supremo enrifodãTãs qúèstõès hiilitares, civis e religiosas, e com a obrigação de manter Intacto o legado espiritual e material do Profeta. O Califa não tinha pode res espirituais. Não podia alterar a doutrina nem criar uma doutrina nova; não era apoiado por sacerdotes, mas unicamente pela classe semiclerical dos Ulama, os doutores da lei divina cujos poderes se limitavam à sua interpretação. Na prática, o Califa tomou-se um fantoche de chefes militares e de aventureiros políticos que, a partió do século IX, foram os verdadeiros governadores do Islão. ÍPor volta do século XI, ao lado do Califa surgiu o Sultão como chefe secular supremo, cujos poderes foram reconhecidos post facto e com relutância pelos juristas. Na administração da lei vemos o mesmo contraste. Ao lado do Qadi, que administrava a Lei Sagrada, havia tribunais seculares, cujo propósito era o de resolver as questões que não fossem da competência da jurisdição do Qadi e remediar as injustiças mediante recurso a poderes dis cricionários. Estes dois dons dos Árabes, a língua e a fé, estiveram, evidenmente, sujeitos desde sempre a influências do exterior. Encontra mos vocábulos estrangeiros mesmo na poesia pré-islâmica e no Alcorão, e em muito maior número no período das conquistas. Expressões de natureza administrativa do persa e do grego, ex pressões religiosas e teológicas do hebraico e do siríaco, expres sões científicas e filosóficas do grego, revelam a enorme influência 152
das civilizações mais antigas dessa área sobre a civilização cujo despertar se iniciava. A sociedade islâmica do período clásrico constituiu um'processo complexo, incorporando dentro de si mui tos ekmentqs de origens diversas: conceitos proféticos, religioso-legais, escat^qlógicos e místicos, cristãos, judaicos e zoroastrianos, práticas administrativas e imperialistas sassánidas e bizantinas. De todos o mais importante foi talvez o impacto do Helenismo, nomeadamente na ciência, na filosofía, na'arte e na arquitectura, e em menor grau na literatura. É tão grande a influência helenís tica, que o Islão tem sido considerado o terceiro herdeiro, junta mente com a Cristandade grega e latina, do patrimonio hele nístico. No entanto, o Helenismo do Islão foi o Helenismo tardio do Próximo Oriente, semiorientalizado por força das influências aramaicas e cristãs, o prosseguimento ininterrupto da Antiguidade mais recente, e não a redescoberta, como sucedeu no Ocidente, da clássica Atenas. A despeito da diversidade das suas origens, a civilização islâmiça_n|o_foi uma mera justaposição mecânica de culturas ante riores, mas antes uma criação nova, em que todos estes elementos se fundiram numa civilização nova e original pela transposição para formas árabes e islâmicas, identificáveis e características das diferéívfes fases da sua evolução. A'm ãlór realização dos Árabes, segundo eles próprios reco nhecem, e a primeira, em termos de cronologia, foi a poesia, juntamente com a arte da retórica. A poesia pré-islâmica havia desempenhado uma função pública e social, em que o poeta aparecia frequentemente como elogiador ou satírico, com um importante papel pohtico. Sob o domínio omíada, a poesia de transmissão oral da Arábia pré-islâmica foi codificada e serviu de modelo para novas formas. Na época dos Abássidas, a poesia de língua árabe foi enriquecida com a vinda de muitos não-árabes, especialmente Persas, dos quais o primeiro a atingir importância foi Bashshar ibn Burd (m. 784), cego e muito dotado. Durante algum tempo, estes obtiveram uma vitória, nos novos temas e formas, sobre os modelos pré-islâmicos, numa contenda amarga travada entre antigos e modernos. Mas mesmo esses inovadores tinham limitações ditadas pela necessidade de se acomodarem aos 153
gostos árabes dos governantes e da élite no poder, acabando,^ix)r ceder ante o triunfo do neoclassicismo, cujo expoente mais notá vel foi Mutanabbi (905-965), considerado pelos Árabes como o seu maior poeta. O Alcorão é o primeiro documento em prosa da literatura árabe, que nos primeiros séculos de domínio islâmico desenvolveu tanto a prosa como a prosa rimada e foi extraordinariamente rica nas belles lettres e no ensaio. O grande mestre do ensaio e, sem dúvida, da prosa árabe foi Amr ibn Bahr, denominado al-Jahiz, «o dos olhos esbugalhados» (m. 869). Oriundo de Basra e neto de um escravo negro, a sua versatilidade, originalidade e sortilégio conferem-lhe um lugar único nas letras árabes. A ciência e o saber tiveram uma origem rehgiosa. A gramática e a lexicografía nas ceram da necessidade de interpretar e de exphcar o Alcorão. E em Medina, os pietistas da velha escola concentravam-se nas ciências rehgiosas propriamente ditas — a interpretação do Alco- • rão, a formulação do dogma, e a codificação da tradição. Esta deu origem às escolas islâmicas de jurisprudência e de história, desenvolvidas a partir do material legal e biográfico da tradição. A primeira veio a transformar-se no elaborado Códice jurídico do Sharia. A História, entre os Árabes, começou com a biografia do Profeta, enriquecida pela codificação da tradição histórica oral pré-islâmica dos Árabes e, mais tarde, particularmente pelo exem plo dos cronistas persas da corte dos Sassânidas dados a conhecer aos Árabes por conversos persas. Os Árabes possuem um forte sen tido histórico, pelo que não tardaram a produzir volumosas obras de história de diversos tipos: histórias universais, histórias locais, histórias de famíhas, de tribos e de instituições. As primeiras obras de história árabe pouco mais são do que colectâneas de textos ou documentos históricos, escritos à maneira dos compêndios da Tradição, constituídos por relatos feitos por testemunhas oculares apresentadas por uma cadeia de pessoas legitimadas a fazer a sua transmissão. Foi a partir destes relatos narrativos e, ocasional mente, interpretativos, que se desenvolveu a história, culminando na obra de Ibn Khaldun (1332-1406), o maior historiador dos Árabes e, talvez, o maior pensador histórico da Idade Média. 154
A literatura religiosa esteve sujeita a uma forte influência cristã e judaica, particularmente numa primeira fase, e muito material apocalíptico e talmúdico foi incorporado na Tradição. A literatura teológica propriamente dita começou sob as influên cias da Cristandade siríaca, e mais tarde também do pensamento grego. A influência grega foi fundamental na filosofia e ñas ciên cias em geral: matemática, astronomia, geografía, química, física, história natural e medicina. O enorme esforço de tradução de obras gregas, quer directamente do original, quer de versões siríacas, provocou um novo incremento de erudição nos séculos IX e X. Em Alexandria, Antioquia e ainda noutros pontos, e também no colégio persa de Jundaishapur, fundado por refugiados nestorianos de Bizâncio na Pérsia sassânida, sobreviviam escolas gregas. A vaga de traduções teve inicio no período omíada, quando algumas obras gregas e coptas sobre química foram traduzidas. No reinado de Umar II, Masarjawaih, um judeu de Basra, traduziu para o árabe livros de medicina siríacos, lançando as bases da ciência médica árabe. Os tradutores eram normalmente cristãos e judeus, sobretudo sírios. Durante a época omíada a tradução tinhajim carácter esporádico ^individual; so b ^ ^rn ín ío dos Abássidas foi organizada e apoiada oficialmente. O período de maior importância foi o século IX e, especialmente, o reinado de Mamun (813-833), que criou urna escola para tradutores em Bagdade, com urna biblioteca pessoal regular. Um dos tradutores mais notáveis foi Hunain ibn Ishaq (ca. 809-877), médico cristão de Jundaishapur, que traduziu a colecção de escritos de Galen, os Aforismos de Hipócrates, e muitas outras obras. Outros tradu tores interessaram-se por astronomia, física, matemática e outras matérias, traduzindo do grego para o siríaco e, mais frequente mente, para o árabe. Os Califas enviaram eruditos para diferentes locais e, inclusivamente, para Bizâncio em busca de manuscritos. Alguns desses antigos tradutores produziram igualmente obfàs próprias, normalmente epítomes e interpretações de originais gr^os. Em breve, porém, surgia toda uma geração de autores muçulmanos originais, sobretudo persas, em que sobressaem figu ras como a do médico Razi (Rhases) (865-925), a do médico e filósofo Ibn Sina (Avicena) (980-1037) e, a maior de todas, AI155
-Biruni (973-1048), médico, astrónomo, matemático, físico, quí mico, geógrafo e historiador, um estudioso profundo e original, um dos maiores vultos intelectuais do Islão medieval. Na medicina, os Árabes não igualaram a teoria dos Gregos, mas enriqueceram-na com a sua observação prática e experiência clínica. Nas jmatemáticas, na física e na química, o seu contributo foi muito maior e mais original. O uso do zero, e dos algarismos ditos árabes, embora não seja uma invenção originariamente árabe, foram por eles integrados pela primeira vez no corpo principal da teoria matemática e transmitidos a partir da índia para a Europa. A álge bra e a geometria, e particularmente a trigonometría, foram em grande parte descobertas árabes. Na filosofia, a introdução de conceitos gregos foi de importâncfa“ transcendente. Foram divulgados no reinado de Mamun, altura em que as traduções de Aristóteles vieram afectar toda a filosofia e concepção teológica do Islão e influenciar a obra de uma imensa série de pensadores muçulmanos originais, entre os quais se podem nomear Kindi (m-ca. 850) — por acaso, o único árabe puro de entre eles — Farabi (m. 9fj0), Ibn Sina (m. 1037) e Ibn Rushd (Averroisjjm. 1198). Tem-se afirmado com frequência que, muito embora o Oriente tenha sido o único a preservar a herança científica e filosófica da Grécia antiga, ignorou a herança literária e estética, apenas co nhecida no Ocidente. Isto não é totalmente verdadeiro. Os Árabes continuaram a tradição da arte e da arquitectura greco-romana, que uma vez mais transmutaram em algo de rico e de singular. A tendência da arte bizantina para o abstracto e o formal foi acentuada no Islão, onde o preconceito contra a representação pictórica da forma humana conduziu, em última análise, a uma expressão artística estilizada e geométrica. As artes islâmicas devem também muito às influências e con tributos dos Persas e dos Chineses. Nas artes decorativas e indus triais, distinguimos nitidamente o eclectismo e a originalidade da civilização islâmica. Nas muralhas dos castelos omíadas da Síria, nos utensílios esculpidos e noutros objectos do Iraque e do Egipto, vemos o modo como os Árabes começaram por ir buscar as obras de arte — e até os artistas — de outras civilizações, como depois 156
os imitaram, e finalmente os fundiram em algo de novo, de original e auto-reprodutor. As descobertas de faianças do Iraque, do século IX, por exemplo, mostram lado a lado a produção contimuada de artificios bizantinos e sassânidas, artigos importados da China, imitações locais destes, e de novas formas resultantes de experiências efectuadas com modelos herdados e importados. Urna das expressões características da arte islámica é a sua famosa e bela faiança vidrada, que se espalhou durante o dominio muçul mano deste a Pérsia até Espanha. Do mesmo modo, os artesãos do Império Islâmico desenvolveram as artes do metal, da madeira, da pedra, do marfim, do vidro, e sobretudo dos têxteis e dos tape tes, desde a reprodução através de imitações e de experiências, até à criação de estilos novos, pessoais e característicos, típica e reconhecidamente islâmicos. Das civilizações mais antigas veio também a concepção do livro como entidade física, urna colecção de páginas encadernadas, com um título, um assunto, um principio e um fim, e mais tarde com ilustrações e encadernações ornamentadas. Urna obra hterária de língua árabe, inicialmente, só era publicada por transmissão e recitação oral, e durante muito tempo a palavra falada foi a única forma de publicação reconhecida. Com o aumento tanto da amplitude de conhecimentos como de volume das criações lite rárias tomaram-se necessários textos escritos, e não tardou que os autores tomassem apontamentos, fizessem cursos, ditassem, empregassem amanuenses e, eventualmente, escrevessem livros. O processo foi activado com a introdução, no século VIII, do papel, oriundo da China, via Ásia Central. Isto tornou possível uma produção mais barata e mais vasta de livros, e os seus efeitos na vida cultural são comparáveis, se bem que numa escala mais reduzida, ao da posterior divulgação da imprensa no Ocidente. A aceitação da herança grega pelo Islão deu origem a um con fronto entre as tendências científico-racionalistas do novo saber, por um lado, e as características atomistas e intuitivas do pensa mento islâmico, por outro. Durante esse período de confrontação, os Muçulmanos das duas escolas criaram uma cultura rica e diver sificada, grande parte da qual assume uma importância constante 157
na história da humanidade. A luta terminou com a vitória da perspectiva islâmica mais pura^ O Islão, uma sociedade condicio^ nada reügiosamente, rejeitava os valores que punham em causa os seus postulados fundamentais, embora aceitando as suas con seqüências, e desenvolvendo-as mesmo através da experimentação e da observação. O Islamismo — a révolution manquée do Islão — podia ter introduzido a total aceitação dos valores helenís ticos, anunciando um renascimento humanista do tipo ocidental, vencendo a resistência do Alcorão pelo expediente da interpretação esotérica, e do Sharia pela descrição sem limites do Imam infalível. Todavia, as forças que apoiavam a revolução ismailita não eram suficientemente sólidas, e ela falhou no preciso momento do seu maior êxito. Constitui um passatempo inútil, ainda que agradável, analisar o. carácter das nações — o que, geralmente, lança mais luz sobre o anahsta do que sobre o objecto anahsado. A nação é um orga nismo demasiado complexo e demasiado mutável para comportar um exame estatístico e detalhado, o único capaz de consubstanciar qualquer afirmação científica séria. A dificuldade é ainda maior quando se trata de analisar uma civilização remota, tanto no tempo como no espaço, e conhecida essencialmente através das suas ruínas literárias. A hteratura árabe medievd provém, na sua quase totalidade, dènãniã peqüéirá” ininoria dominante e privi legiada, cujos privilégios incluíam a arte da escrita e o exercício de «mecenato». _Os outros, o povo comum, está silenciado para sempre, com excepção de alguns poucos ecos das suas vozes que ainda conseguimos ouvir indistintamente. Tendo em mente esta reserva, é ainda possível, porém, isolar algumas características que são típicas, se não dos Árabes, pelo menos da civilização domi nante do Islão medieval, como transparece na arte e nas letras árabes. O primeiro traço que nos chama a atenção é o poder_assimilativq_da_cultura. árabe, muitas vezes indevidamente apresen tado como meramente imitativo. As conquistas árabes uniram, pela primeira yez na história, os va^õs territórios que se estendem ãesde as fronteiras da Índia e da China até às proximidades da 158
Grécia, Itália e França. Durante algtun tempo pelo seu poder militar e político, durante muito mais tempo pela sua língua e j » l a sua fé, os Árabes uniram numa única sociedade duas culturas inicialmente colidentes — a tradição mediterrânica milenar e diver sificada, da Grécia, Roma, Israel e do Próximo Oriente antigo, e a rica civilização da Pérsia, com padrões de vida e de pensa mento próprios e os seus férteis contactos com as grandes culturas Onente mais afastado. Da coabitação de muitos povos, fés e culturas no seio da sociedade islâmica nasceu uma civilização 'nova, diversa nas suás origens e nos seús criadores, e no entanto ^Imprimindo em todas as suas manifestações o cunho característico 3o Isíão árabe. besta diversidade da sociedade islâmica ressalta um segundo ' ^ ç o característico, particularmente surpreendente para o obser vador europeu — a sua relativa tolerância. Contrariamente aos seus contemporâneos do Ocidente, o muçulmano medieval rara mente sentiu necessidade de impor o seu credo pela força a todos aqueles que se encontravam subjugados à sua autoridade. Tal como eles, ele sabia perfeitamente que, na devida altura, aqueles que acreditavam em algo diferente sofreriam as penas do Inferno. Mas ao contrário deles, não via qualquer vantagem em se ante cipar ao julgamento divino neste mundo. A maior parte das vezes sentiu-se satisfeito por pertencer à fé dominante numa sociedade de muitas fés. Impôs aos restantes algumas discriminações sociais e legais, em sinal da sua supremacia, e a advertência não se fazia esperar se alguma vez parecessem dispostos a esquecê-lo. De outro modo, concedia-lhes a sua liberdade religiosa, económica e inte)^tu al, e dava-lhes a oportunidade de contribuírem de forma no tável para a própria civilização árabe. À semelhança de quase todas as outras civilizações, o Islão medieval estava extraordinariamente convicto da sua superiori dade e, no essencial, da sua auto-suficiência. A perspectiva his tórica da profecia islâmica, segundo a qual a missão de Maomé constituía o último elo de uma cadeia de revelações de que o judaísmo e o cristianismo são os elos anteriores, permitiu que o muçulmano olhasse os judeus e os cristãos como detentores de 159
versões imperfeitas de algo que só ele possuía em toda a sua perfeição. Ao contrário do Cristianismo, que durante séculos se propagou como a religião dos humildes e despojados, antes de se tornar a doutrina de Estado do Império Romano, o Islão tornou-se durante a vida do seu fundador o guia de uma comuni dade vitoriosa e em expansão. As vastas conquistas do Islão nas suas primeiras gerações imprimiram na mente dos crentes a convicção do favor divino, expresso no poder e no êxito, neste mundo, da única comunidade que se regia pela lei dada por Deus. Os Muçulmanos aprenderam com certeza muito com sábios infiéis de outros credos, mas a pedra-de-toque definitiva da eficiência da Hção foi o Sharia, consagrado pela revelação directa e confirmado pelo êxito dos seus adeptos. A expressão «atomista» é frequentemente usada para descre ver uma certa maneira de ser e de ver, identificável em muitos aspectos da civilização árabe e dominante nas fases mais recentes da sua história. Por ela se entende a tendência para ver a vida e o universo como uma série de entidades estáticas, concretas e dis sociadas, ligadas de uma maneira vaga, numa espécie de associação mecânica ou mesmo pelas circunstâncias ou pela mente de um indivíduo, mas não possuindo qualquer inter-relação orgânica própria. Conquanto não seja de forma alguma universal, esta tendência afecta a vida do Árabe de modos muito diversos. Ele concebe a sua sociedade não como um todo orgânico, composto por partes interligadas e agindo conjugadamente, mas como uma associação de grupos distintos — religiões, nações, classes —, man tidos coesos apenas pelo solo, em baixo, e pelo governo, em cima. A sua cidade é um aglomerado de bairros, guildas, clãs, casas, e só raramente possui uma identidade cívica colectiva própria.*Em contraste com os cientistas e filósofos, por um lado, e os místicos, por outro lado, o teólogo, o estudioso ou o littérateur ortodoxo normal apresenta esse mesmo traço na sua atitude perante o saber. As diferentes disciplinas não constituem caminhos diferentes para chegar ao mesmo âmago, canalizando os seus conhecimentos para um todo integrado, mas sim compartimentos distintos e autóno mos, contendo cada um um número finito de peças de conheci mento, cuja acumulação progressiva constitui o saber. A litera160
tura árabe, falha de epopeia ou de drama, alcança os seus fins através de urna série de observações ou caracterizações isoladas, minuciosas e vivas, mas fragmentárias, ligadas pelas associações subjectivas do autor e do leitor, e raramente por um plano de conjunto. O poema árabe é um conjunto de versos desligados e isolados, como as pérolas de um fio, perfeitas em si mesmas, e normalmente intermutáveis. A música árabe é modal e rítmica, motivada pela fantasia e pela variação, mas nunca pela harmonia. A arte árabe — essencialmente decorativa e aphcada — sobressai mais pela sua minuciosidade e perfeição de pormenor do que pela composição ou perspectiva. Os histomdores e os biógrafos, como os escritores de ficção, apresentam as suas narrativas como urna série de incidentes hgados de forma muito vaga. O próprio indi víduo é descrita como um conjunto de atributos, muitas vezes enumerados, segundo a observação de um escritor recente, como os dados constantes de um passaporte. Isto conduz-nos a um outro aspecto: a impersonalidade — ou mesmo colectivismo —, que é um traço permanente da literatura em prosa dos Árabes. O individualismo impetuoso dos primitivos árabes só sobreviveu em toda a sua pujança entre os Beduinos, dando origem, nos centros de civilização, a urna atitude passiva ou mesmo anónima. O livro é muitas vezes apresentado não como uma criação individual e pessoal do autor, mas como um elo na cadeia transmissora, e o autor esconde a sua personalidade por detrás do prestigio da autoridade e da posição ocupada por ante riores transmissores. A própria poesia, de expressão essencialmente individual, apresenta características mais de urna poesia pública e social do que pessoal e íntima. Essa abordagem colectiva, mais do que hunlá'nista, em todas as facetas do pensamento e das ins tituições islânaicas, talvez mais nitidamente no ideal muçulmano do Homem Perfeito e do Estado Perfeito, como padrões a que todos dévem, teoricamente, tentar submeter-se, mais pela imitação do que pelo desenvolvimento das suas próprias potencialidades individuais. A perspectiva atomista da vida encontrou a sua expressão completa nalguns sistemas de teologia dogmática, cuja aceitação geral marca, de urna forma ou de outra, a vitória final da reac161
ção contra o espírito curioso e especulativo mais livre, que pro duziu tantas obras extraordinárias. Essa teologia é determinista, ocasionista e autoritária, exigindo a aceitação incondicional da Lei e da Revelação Divinas bila km f — sem perguntar como. Nega todas as causas secundárias e prefere designar Deus por o Autor do que pela Causa Primeira. Não existem conseqüências neces sárias, nem leis ou causas naturais. A falta de alimentos não causa necessariamente fome, mas limita-se meramente a acompanhá-la. Tudo procede directamente da vontade de Deus, que estabeleceu determinados hábitos de sucessão ou concomitância. Cada evento em cada átomo de tempo é o resultado de um acto de criação, directo e individual. Esta rejeição definitiva e dehberada de toda a çausahdade, uma vez aceite, marcou o fim da livre especulação e investigação, tanto na filosofia como nas ciências naturais, e veio frustrar o promissor desenvolvimento da historiografia árabe.' Ajustou-se perfeitamente às necessidades de uma sociedade islâmica em que a vida social e económica da grande era comercial, mais^lme e independente, ia abrindo caminho a um feudalismo estático, que se manteria inalterado durante muitos séculos. O antigõ"êóhflito de concepções cotttmuou latente, mas esta nova versão do Islão não foi contestada seriamente durante um período de cerca de mil anos, até que o impacto do Ocidente, nos séculos XIX e XX, veio ameaçar toda a estrutura tradicional da sociedade islâmica e as formas de pensamento que constituíam a sua contrapartida intelectual.
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IX
o ECLIPSE DOS ÁRABES N ow Turks and Tartars shake their swords at thee, meaning to mangle all thy provinces. (Marlowe, Tamberlane the Great, Part II)
No século XI, o mundo do Islão encontrava-se numa situação de manifesto declínio. Os sinais da sua decadência vishimbram-se já antes, primeiro no desmembramento político que implicou a perda da autoridade do govemo central ñas provincias mais afas t a i s , depois em todo o território à excepção do Iraque, e^inalmente na degradação dos califa^até à situação de meros fantoches dos seus ministros e chefes mUitare^ Em 945, o declínio do Calir fado acentuou-se mais ainda. Ñesse ano os Buwaíhitas, dinastía persa TocáT, "avançaram até ao Iraque e tomaram a capital. No sécul(Tié"se seguiu, os príncipes Buwaihitas foram os verdadeiros governadores da capital, assumindo o título de rei como prqya de soberania secular. Xiitas embora, mantiveram os Califas Abás sidas como figuras de proa e fonte legítima de soberania do govemo central sobre as provincias. É significativo o facto de não muito antes de a primeira dinastia xiita moderada ter conquistado o peder, o décimo segundo pretendente Imam da seita ter desa parecido em retiro escatológico. Os Buwaihitas repuseram, por algum tempo, a ordem e restabeleceram a "prosperidade das províflcia^s centrais. Todavia, acentuavam-se os smms de decadência económica. O comércio lucrativo cqin a China fõí^!ècT«cendo e extinguiu-se, em parte por razões ditadas pelas condições internas desse país. O comércio com a Rússia e o Norte dimimtíu e desapa receu durante .0 . século XI, e n q u ^to jq u e a crescente escassez de metais preciosos contribuiu para sufocar a vida económica do que deixava dé ser úia império comercial. 163
Uma das principais causas do declínio económico foi, sem dúvida, a extravagância e a falta de organização no centro. Os gastos excessivos da corte e dé um a'^ ro cfacia exagerada — por vezes duplicados pelos séquitos dos que lutavam pelo poder — não foram acompanhados de progresso tecnológico sensível, nem de um maior desenvolvimento dos recursos. Em breve a falta de ca pital realizável forçou os governantes a pagarem aos funcionários superiores e generais, transferindo para eles receitas do Estado. Dentro em pouco, os governadores provinciais passaram a ser designados como cobradores de impostos nas áreas por eles adrnimshradas," cõm ã obrigação de manterem as forças militares e os funcionários locais e de enviarem uma quantia fixa jrira q t e s ^ central. Em breve, esses governadores tomaram-se chefes inde pendentes das suas províncias, rendendo homenagem meramente legal ao Califa, cuja função foi sendo reduzida até conceder auto rização formal, e em grande parte post facto, à sua detenção de autoridade. A necessidade de conferir o poder militar indispensá vel aos governadores e cobradores de impostos levou à prática da designaçto-de oficiais do exército para as regiões sob a jurisdição dos cobradores dê impostos, e isto, por sua vez, ao desmembra mento do govemo civil e burocrático e à sua substituição por autocratas mihtares que delegavam a sua autoridade^nos guardas. Por volta do século XI, a fraqueza do Império foi revelada por uma série de ataques quase simultâneos de Bárbaros do interior e do exterior em todos os pontos. Na Europa, as forças cristãs avançaram na Espanha e na Sicília, arrebatando ao domí nio muçuhnano uma enorme parte dos territórios, numa vaga de reconquista que culminou com a chegada dos Cruzados ao Próximo Oriente, nos fins do século. Em África, um novo movi mento religioso entre os Berberes do Sul de Marrocos e da região do Senegal-Nigéria levou à criação de um novo império berbere formado pela conquista da maior parte do Noroeste da África e dos territórios dé Espanha que haviam permanecido sob o domí nio muçulmano. Mais para oriente, as duas grandes tribos de beduinos árabes, a de Hilâl e a de Sulaim, irromperam das regiões do Alto Egipto a que até então se haviam circunscrito e avança ram pela Líbia e a Tunísia, arrasando e devastando tudo à sua 164
frente. Por volta de 1056-1057, saquearam a antiga capital tunisina de Qairawán. É sobretudo a estas invasões mais do que as pri meiras invasões árabes do século VII que devem imputar-se a devastação e o atraso do Norte de África. O historiador árabe do século XIV, Ibn Khaldün, ao contemplar a ruina da sua pátria por estas invasões nómadas, elaborou o que foi, provavelmente, a primeira filosofía da história em termos de acção combinada, cíchca, do deserto e da térra cultivada. Relativamente a estas invasões, observa: «Na Tunísia e no Oeste, desde que as tribos Hilál e Sulaim por ai passaram nos principios do século V (meados do século XI d.C.) e devastaram esses países, durante trezentos anos todas as planicies ficaram destruídas; todavia, anteriormente, desde a África negra até ao Mediterráneo tudo estava cultivado, como o provam os vestigios ai existentes de monumentos, edificios, quintas e aldeias.» Da Ásia Central veio outra onda de, invasores^ que, pela per- • manéncia dos seus efeitos, foi de todas a mais importante. Os Árabes haviam defrontado antes os Turcos na Ásia Central, e durante~aTgum tempo importaram-nos^ para o Próximo Oriente muçulmano como escravos, especialmente aqueles que haviam recebido desde a infância preparação miliFar^e administrativa, mais tarde conhecidos por Mamelucos (aqueles de quem selem a posse) para os distinguir dos escravos mais humildes utilizados no serviço doméstico e outros. Encontramos escravos turcos sob o dominio dos primeiros Abássidas e mesmo dos Omíadas, mas o primeiro a empregá-Ios dé forma considerável foi Mutasim (833-842), que reuniu uma enorme força de escravos militares turcos ainda antes da sua subida ao poder, e mais tarde conseguiu que Ihe fossem enviados anualmente, em grande número, como parte do tributo das provincias orientais. Os antigos guardas khurasanianos dos Califas Abássidas tinham sido arabizados e identificavam-se com a população local. A aristocracia persa encontrava agora a sua raída política ñas dinastias independentes do Frao, pelo que os Califas julgaram necessário procurar uma nova base de apoio. Foram encontrá-la nos Mamelucos turcos soh"õ"comando dos seus chefes turcos, expatriados sem quaisquer ligações locais, tribais, familiares, nacionais ou reÜgiósaê, e por 165
conseqüência os mais devotados ao goverao central. Logo de início, os Turcos foram notados pelas suas mperiores qualidades militares, que assentavam essencialmente na utilização de frechéíros montados e na velocidade, característica dos nômadas, da sua cavalaria. A partir desta época, os califas dependiam cada vez mais das tropas e dos generais turcos, em detrimento dõ&_povqs cultos mais antigos dp Islão, os Árabes e os Persas. A progressiva militarização do regime reforçou o seu poder. No século XI, os Turcos começavam a penetrar no mundo do Islão, não só como indivíduos recrutados ou por capturã"õu por compra, juas através da migração de tribos inteiras de turcos nómadas livres^ ainda organizados segundo a sua forma tradicio nal. A consolidação do regime Sung na China, após um interregno de desordem, pôs termo à expansão para a China e forçou os nómadas da Ásia Central a expandirem-se para ocidente. Estes invasores turcos do Islão pertencem às tribos Oghuz e são, habituaícuente, designados por Seljúcidas, segundo o nome da família militar que os chefiáva. Os Seljúcidas chegaram aos territórios do Califado por volta de 970, e não tardaram a aceitar o Islão. Num curto período de tempo, haviam conquistado"a maior parte da Pérsia, e em 1055 Tu^irul Bey entrou em Bagdade, derrotando ós BuwaihitaFe'ihcorporando o Iraque no reino seljúcida. No espaço de alguns anos, os Seljúcidas tinham arrebatado a Síria e a Palestina aos chef^ locais e aos Fatimidas em declínio e, sendo bem sucedidorõnde os Árabes haviam falhado antes, conquistaram aos Bizantinos uniã grande parte da Anatóüa, que passou a ser, e assim permãSecêü, território muçulmano e turco. Os Selfúcidas eram Muçulmanos Sunitas, e a sua tomada da cidade de Bagdade foi considerada por muitos como a libertação dos Buwaihitas heréticos. Os Califas continuaram a ser os chefes fiòminais,. mas os verdadeiros soberanos do Império, cuja mãiòr parte.se encontrava agora unida sob uma única autoridadé,""^là primeira vez desde o primitivo Califado, eram os Grão-Sultões Seljqcjdas que venceram os Bizantinos e os Fatimidas no Ocidente. Os novos dirigentes do Império, no aspecto da administraçãô; confiavam grandemente nos Persas e na burocracia persa. Uma 166
das figuras mais notáveis da época foi o grande ministro persa Nizám al-Mulk, que desenvolveu e sistematizou a tendência no sentido do feudalismo, já inerente às práticas de cobrança de impostos do período imediatamente precedente. Os abusos da era anterior transformaram-se ñas normas de urna nova ordem social e administrativa, assente na térra em vez do dinheiro. A térra era concedida ou tomada por oficiais. Em troca eles forneciam um determinado número de homens armados. Estas concessões englo bam alguns direitos, não só o direito a uma comissão sobre a cobrança de impostos, mas às próprias receitas. Ainda que oca sionalmente essas concessões se tornassem hereditárias, por usurpação, na teoria e também na prática usual eram efectuadas ape nas por um prazo de alguns anos, e eram sempre revogáveis. O historiador Imâd ad-Din, cuja obra data do período seljúcida, assinala que esta era a única forma de despertar nos turbulentos homens das tribos e na soldadesca turca o interesse pela prosperi dade da agricultura, e observa: «Era costume cobrar dinheiro da terra e pagar às tropas e nunca ninguém antes tivera um feudo. Nizâm al-Mulk verificou que o dinheiro não chegava da terra devido ao estado de desordem aí existente e que a receita era incerta devido às perturbações. Por conseguinte, distribuiu-as pelas tropas em feudos, atribuindo-lhes tanto a colheita como a receita. O interesse pelo seu desenvolvimento aumentou consideravelmente e passou a uma situação próspera.» Nestas simples palavras, des creveu 0 longo processo de transição de uma economia monetária para uma economia feudal. Num período de m i^ança como este erajnaJney convulsões sociais. Os proprietários rurais do antigo regime sofíeram um rude golpe com a ascensão de uma nova classe de senhores feudais não residentes. O comércio definhou e dechnou. Talvez que o indício mais nítido”^ ò “déclImõ'éõmCTciãT^ encontre nos tesouros de moedas encontrados na Escandinávia. Durante os séculos IX e X, as moedas árabes e persas são muito numerosas e predominam, efectivamente, nesses tesouros. Ao longo do sé culo XI, o seu número diminui consideravelmente; depois, desa parecem. O principal movimento de oposição neste período foi contra os Ismailitas, mas de uma forma nova e distinta. Em 1078, 167
Hasan-i Sabbâh, chefe ismailita persa, visitou a capital fatimida do Cairo. Aí, entrou em conflito com o autocrata militar, que era o verdadeiro dirigente dos domínios fatimidas, em nome dos Imâms decadentes. Após a morte do Califa fatimida Mustansir em 1094, Hasan-i Sabbâh e os seus adeptos persas recusaram-se a reconhecer o sucessor designado, pela sua submissão e docilidade, pelo governante militar, e cortaram relações com a organização enfraquecida do Cairo. Os Ismailitas de Leste proclamaram então a sua submissão a Nizâr, filho mais velho de Mustansir, que havia sido preterido na sucessão, e entraram num novo período de in tensa actividade, como movimento revolucionário ilegal, nos do mínios seljúcidas. Os adeptos da «Nova Pregação», como o Ismailismo reformista de Hasan-i Sabbâh é conhecido, são normalmente apodados de assassinos, do árabe hashishi, possivehnente como re ferência aos meios de que são acusados de se terem servido para provocar o êxtase nos fiéis. O significado europeu da palavra resulta das tácticas políticas da seita. Em 1090, Hasan-i Sabbâh obteve o controlo da inacessível praça-forte de Alamút, na montanha, ao norte da Pérsia. Daqui, e a partir de bases idênticas estabelecidas na Síria no século se guinte, o «Velho da Montanha», como os Grão-Mestres da seita eram designados, comandava bandos de discípulos devotados e fanáticos, empreendendo uma campanha de terror e de «assassí nio» contra os reis e príncipes do Islão, em nome de um miste rioso Imâm oculto. Os emissários dos Grão-Mestres levaram a cabo toda uma série de assassínios temerários de proeminentes estadistas e generais muçulmanos, incluindo o próprio Nizâm al-Mulk. em 1092. Os cronistas ocidentais das Cruzadas relatam com vivacidade o terror que eles inspiravam na Síria, tanto entre os Muçulmanos como entre os Cruzados, tornando o seu nome famoso e temido na Europa.^ 0 pavor dos assassinos só foi filial mente exorcizado com as invasões mongóis do século XIII, após o que o Jsmailismo estagnou como heresia menor. A reorganização económica dos inícios do período seljúcida encontrou a sua contrapartida na vida religiosa. Em Bagdade e noutros locais, foram fundados colégios religiosos, designados por 168
Madrasa, que se tornaram o modelo dos muitos que se Ihes segui ram no mundo islámico. A Nizámiya de Bagdade, assim chamada em honra do grande ministro que a criou, e as suas semelhantes constituíram centros de ortodoxia, mais especialmente do tradi cionalismo ressuscitado agora em franca generalização, e destinava-se, em grande parte, a reprimir a heterodoxia revolucionária dos Ismailitas e o radicalismo intelectual do período jgrgcedente. Al-Ghazáli (1059-1111), um dos maiores pensadores religiosos mu çulmanos, ensinou aí durante algum tempo. As suas obras incluem refutações tanto de filosofia como de heresia. Após a morte do Nizám al-Mulk, a fragmentação política do Prórimo_e Médio Oriente recoixieçou.~0 ImpéricT Seljúcida dividiu-se numa série de pequenos Estados sucessórios, dirigldòs por membros ou oficiais da Casa Seljúcida. Fofdurante este período de debilidade que, em 1096, os Cruzados chegarmíóãõ^Pfoximo Oriente. A despeito do aspecto idealistã~dèste grande móVinieirto, perfeitamente ilustrado pela malograda Cruzada das Crianças, ha perspectiva do Próximo Oriente as Cruzadas constituíam, essen cialmente, uma primeira experiência de imperialismo expãisionista, com motivações' dé~õrdem 'matèriàl. emP» que a rehgião funhlonava como catalisador psicológico. Comerciantes das cidades-estadq itali^as, que iarn alrás dó^tráfèqó coinercial estabelecidõ“com Bizâncio e os Fatimidas até às suas origens, barões ambiciosos e belicosos, filhos mais jovens em busca de principados e pecadores em Imsca de umà penitência lucrativa — estes, mais do que os que procuravam o Santo Sepulcro — eram as figuras representativas e característicaà^dã^mvasão vinda do Ocidente. ^ Durante qs primeirõs trintaranos, a desnnlãõ _3õ"muhdQrmuçulmano facilitou as cqisas aos invasores, que avançaram rapida mente ao longo da costa da Síria até X Talestina, estabelecendo uma cadeia de principados feudais latinos, com base em Antio quia, Edessa, Trípoli e Jerusalém. Este primeiro período foi de colonização e assimilação. Os conquistadores e os peregrinos esta beleceram-se ha Síria, adoptando o vestuário e os costumes locais, casando com os cristãos locais. Fulcher de Chartres, cronista da Primeira Cruzada, relata: 169
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«Nós, os que éramos do Ocidente passámos a ser do Oriente. O que era italiano ou francés tornou-se, nesta térra, galileu ou palestiniano. O que era cidadão de Rheims ou de Chartres é agora cidadão de Tiro ou de Antioquia. Esquecemos já os nossos países de ori gem. A maior parte de. nós não os conhece nem nunca ouviu falar deles. Uns há que possuem já casa e família como que por direito paterno e hereditário, outros to maram por esposa não uma compatriota, mas uma sí ria, uma armênia ou, até, uma sarracena baptizada... O que era um estrangeiro é agora um nativo, o que era um imigrante é agora um residente. Todos osdias os nossos amigos e companheiros nos seguem, abando nando de boa vontade tudo o que possuíam no Oci dente. Porque aqueles que eram pobres lá, Deus fê-los ricos aqui. Aqueles que tinham apenas algumas moe das lá, possuem aqui inúmeras moedas de ouro; aquele que não tinha sequer uma aldeia, possui aqui, pela graça de Deus, uma cidade inteira. Pocque voltar então para o Ocidente quando o Oriente nos satisfaz tão bem?» Comparemos com a observação de um sírio do século XII, Usâma ibn Munqidh: «Há alguns francos que se estabeleceram no nosso país e viveram entre os muçulmanos: são de melhores pécie do que os que chegaram recentemente...» No entanto, mesmo neste primeiro período de êxito, os Cru zados confinavam-se, de um modo geral, às planícies e encostas do litoral, sempre em estreito contacto com o Mediterrâneo e o mundo ocidental. No interior, olhando para leste para o deserto e para o Iraque, preparava-se a reacção. Em 1127, Zangi, um oficial seljúcida, tomou a cidade de Mossul, e nos anos seguintes edificou um estado muçulmano cada vez mais forte no Norte da Mesopotâmia e na Síria. O seu avanço .foi, inicialmente, travado pela rivalidade de outros estados muçulmanos e, designadamente. Damasco, cujo soberano não teve escrúpulos em se ahar ao Reino Latino de Jerusalém, contra o inimigo comum. Em 1147, os Cru zados quebraram a aliança, precipitadamente, e Nür ad-Din, filho 171
e sucessor de Zangi, conseguiu tomar Damasco em 1154, criando um único estado muçulmano na Síria e confrontando os cruza dos pela' primeira vez com um adversário realmente formidável. A questão que se punha agora a ambas as partes era o controlo do Egipto, onde o Califado Fatimida, na sua última fase de decrepitude, caminhava vacilante para o colapso final. O resultado não podia manter-se muito tempo na incerteza. Um oficial curdo de nome Salâh ad-Din, conhecido no Ocidente por Saladino, diri giu-se ao Egipto, onde serviu os Fatimidas como Wazir, enquanto representava os interesses de Núr ad-Din. Em 1171, Saladino de clarou que o Califado Fatimida chegara ao fim. Repôs a referên cia ao nome dos Califas Abássidas de Bagdade nos serviços das mesquitas e na cunhagem de moeda, e instalou-se como dirigente efectivo do Egipto, declarando fidelidade, pouco firme e vaga, a Nur ad-Din. Após a morte deste em 1174, deixando como herdeiro lun filho menor, Saladino absorveu os seus domínios sírios, criando assim um império muçulmano siro-egípcio. Em 1187, sentiu-se preparado para atacar os Cruzados. Aquando da sua morte em 1193, tinha reconquistado Jerusalém e .expulsado os Cruzados, à excepção de uma estreita faixa costeira que dominavam a partir das cidades de Acre, Tiro, Trípoli e Antioquia. O estado siro-egípcio unido criado por Saladino não sobrevi veu muito tempo. Sob o governo dos seus sucessores, os Ayyúbitas, a Síria voltou a desmembrar-se em diversos pequenos estados, mas o Egipto manteve-se uma forte monarquia, coesa, a principal potência muçulmana no Próximo Oriente e o principal baluarte do Islão contra o Ocidente, malogrando as repetidas tentativas dos últimos Cruzados para reconquistarem a Terra Santa. A principal conseqüência permanente das Cruzadas no Pró ximo Oriente verificou-se no comércio. Colônias de mercadores do Ocidente tinham florescido nos postos do Levante, sob o re gime dos Cruzados. Sobreviveram após a reconquista muçulmana e desenvolveram um comércio considerável de exportação e de importação. Em 1174, Saladino escreveu ao Califa de Bagdade, justificando as razões por que encorajava o comércio. Os merca dores de Veneza, de Gênova e de Pisa, dizia, traziam produtos de qualidade do Ocidente, especialmente armas e material bélico, o 172
que constituía unía vantagem para os muçulmanos e urna ofensa para os cnstabs. As ameaças da Igreja na Europa contra este tráfico e oís processos de excomunhão contra os que o praticavam foram ineficazes. Entretanto, surgia no Oriente urna nova e mais grave ameaça para o Islão. Lá longe, na Ásia Oriental, Gengis Khan, após urna dura guerra interna, tinha unido as tribos nómadas da Mongólia e tinha-as impelido para urna carreira de conquistas, que, pela sua amplidão, deve ocupar um dos lugares mais notáveis na história da humanidade. Por volta de 1220, os Mongóis tinham conquistadojoda a Transoxánia. Em 1221, Gengis atíavessou o rio Oxo e entrou na Pérsia. À sua morte em 1227 seguiu-se urna pausa, porém, em meados do século, foi planeado e posto em acção um novo avanço para ocidente, O príncipe mmígol Hülekü atravessou o rio Oxo, com jnstruções do Grande Khan da Mongólia para conquistar todos os territórios do Islão até ao Egipto. Os seus exércitos invadiram a Pérsia, vencendo todas as resistências e es magando ós~ próprios Ismailitas, que haviam resistido a t o ^ os anteriores àtãqurâ. Em 1258, Hülekü conquistou Bagdade, matou o Califá e aboEu o Califado Abássida. A destruição dessa impor tante instituição histórica, mesmo na decadência centro legítimo do Islão e símbolo da sua unidade, representou o fim de uma era na história islâmica. Todavia, de certíT forma, o embate não foi talvez tão grande como por vezes se sugere. Os Califas já há muito que haviam perdjdo a quase totalidade dos seus poderes efectivos, e ós“ mltões seculares, tanto na capital como ñas provincias, ti nham começado a arrogar-se a si próprios não só os poderes, mas tahíBém algumas das prerrogativas dos Califas. Os Mongóis pouco maisTiíeram do que afastar o fantasma de urna instituição já moribunda^ Contrariamente aos Abássidas, os invasores mongóis eram ainda pagãos e não demonstraram o mínimo interesse pelo Islão, pelas suas tradições e instituições. A destruição que levaram aos territórios conquistados tem sido muito exagerada. Na sua maior parte foi meramente estratégica e não intencional ou premeditada. Cessou logo após as campanhas da conquista de que fazia parte, e na Pérsia, sob o dominio mongol, um novo período de desen173
volvimento económico e culturaHeye início. No entanto, no Ira que as conseqüências imediatas das conquistas mongóis traduziram-se no desmoronamento do governo civil e na ruína das obras de irrigação de que o país dependia, agravados pelas incursões de tribos beduínas, uma vez afrouxado o controlo do poder se dentário. De efeitos ainda mais funestos para a prosperidade do Iraque, foi a sua inclusão, como província afastada, num império oriental cujo centro se situava na Pérsia. A partir de então, o vale do Tigre e do Eufrates, separado das províncias do Mediterrâneo a oeste por uma fronteira de areia e de aço, flanqueado a leste pela ascensão do centro persa a que se encontrava submetido, já não podia servir de canal para o comércio Oriente-Ocidente,^[ue fói desviado para norte e leste para a Turquia e Pérsia, para oeste para o Egipto é Mar Vermelho, abandonando o Iraque a ^ d a d e ■em ruínas dos Califas a séculos de estagnação e de olvido. A despeito de algumas incursões ocorridas na Síria, os efeitos directos da conquista mongol sobre o mundo árabe limitaram-se ao Iraque, agora ligado ao Estado mongol centralizado na Pérsia. A Síria e q Egipto foram salvos dos Mongóis pelo iiovo regime que se havia formado a partir da monarquia ayyúbita. Muitô~êmbora os Ayyubitas fossem de origem curda, o seu regime era do tipo seljúcida turco. A classe governante era uma autocracia militar de pretorianos turcos, muitas vezes capaz de controlar o próprio sultão Ayyúbita. Em meados do século X III os Mamelucos Turcos no Cairo detmham õ " ^ d e r supremo, dando origem a um novo regime, o Sultanato Mameluco, que governou ó Egipto e a Sírm até 1517. EmT 1260, após um periodo confuso que se seguiu à morte dõ último Ayyúbita, um turco qipchaq, de nome Baibars, tomou-se Sultão. A sua carreira estabelece, de vários modos, um paralelo interessante com a de Saladino. Unificou a Síria muçulmana e o Egipto num único estado, com maior permanência desta vez. Der rotou os inimigos do exterior, reprimindo os invasores mongóis do Oriente e esmagando até ao último Cruzado, na Síria. JJm a ideia de^ génio foi o ter convidado um membro da família Abássida a estabelècer-ise no Cairo com o título de califa. A linha dos Califas 174
Abá^idas no Cairo foi de meros funcionários da corte dos Suitões mamelucos. Õ historiador egipCTõ Máqrizi (m. 1442) observa: «Os Mamelucos turcos instalaram como Califa um homem a quem davam o nome e os títulos de Califa. Não possuía qualquer autori dade nem direito para manifestar a sua opinião. Passava o tempo com os chefes mihtares, os altos funcionários, os oficiais e os juizes, visitando-os e agradecendo os banquetes e festas para que o tinham convidado.» P s Califas do Cairo representam a fase final da decadência do Cahfado. ~ O sisteiha mameluco de Baibars e dos seus sucessores era feu dal, constituindo uma adaptação ao feudalismo seljúcida trazido para a Síria e Egipto pelos Ayyübitas. O oficial ou amir recebia uma concessão de terras em vez de pagamento, com a condição de manter um determinado número de soldados mamelucos, que variava entre cinco e uma centena de acordo com a sua posição social. Normalmente, destinava dois terços dos seus rendimentos à sua manutenção. As concessões não eram hereditárias, mau grado as muitas tentativas feitas nesse sentido. O regime assentava na permanente substituição dos descendentes arabizados dos oficiais mamelucos por mamelucos recém-importados, impedindo, assim, talvez, dehberadamente, a formação de uma aristocracia rural he reditária. O oficial mameluco recebia a concessão com carácter vitahcio ou por um período de tempo inferior. Habitualmente, não residia nas suas propriedades, mas sim no Cairo ou na principal cidade do distrito onde se situava o seu feudo. Interessavam-lhe mais os lucros do que o título de posse. Consequentemente, o sis tema não deu origem nem a châteaux (*), nem a casas senhoriais, nem a fortes autoridades locais do tipo ocidental. Não houve qual quer subenfeudação, e a própria divisão da terra em feudos, no Egipto, não teve carácter de continuidade, ficando sujeita a uma redifinição territorial periódica. Os próprios Mamelucos foram comprados como escravos, preparadõs“ê^edúcados nq Egipto. Inicialmente, eram sobretudo turcos qipchaq das margensónorte d õ 'M ar Negro, mais tarde
(*) Em francês no original (N. da T.)
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vieram a englobar desertores mongóis e homens de outras raças, especialmente Circassianos, e ocasionalmente. Gregos, Curdos e mesmo alguns Europeus. Porém, o turco ou o circassiáho perma neceu a língua da classe dominante, muitos dos quais, incluindo alguns Sultões, mal sabiam falar o árabe. O estado mameluco desenvolvido por Baibars e^ pelos seus sucessores tinha 'põFBãse uma administrado dualista, altamente elaborada, civil e militar/ sendo ambos os sectores controlados por oficiais mamelucos fun cionários civis. Até 1383, os Sultões mamelucos sucederam-se uns aos outros numa sucessão mais ou menos hereditária. A partir daqui, o Sultanato passou para as mãos do chefe militar mais forte. Por morte de um Sultão sucedia-lhe seu filho como chefe formal durante um breve interregno, enquanto se decidia a ver dadeira sucessão. Numa primeira fase, os Mamelucos foram ameaçados pelos Cristãos e Mongóis, e o séü feito máximo foi a defesa da civiliza ção islâmica do PróxinTó^Õriente contra esses inimigos. K õ de curso do século XV, surgiu uma nova potência — o Império Oto mano, qual fénix renascida das ruínas do_Sultanato SeIjuSída/dá AnatSia. As relações entre os dois Estados foram, inicialmente, amigáveis, mas os conflitos surgiram quando os Otomanos, fixa dos na Europa com segurança, voltaram a sua atenção para a Ásia. O comércio com a Europa, e especialmente o comércio entre a Europa e o Extremo Oriente, via Próximo Oriente, era de vital importância para o Egipto, tanto pelo comércio em si, como pelas receitas aduaneiras daí decorrentes. Durante períodos de poderio, os governos mamelucos protegeram e incentivaram este comér cio, que deu ao Egipto uma grande prosperidade e um novo flo rescimento das artes e das letras. Porém, a ameaça mongol, repri mida por Baibars, ainda não estava afastada por completo. Em 1400-1401 as forças turco-mongóis de Timúr (Tamerlão) assola ram â 5íria e saquearam Damasco. Pragas de gafanhotos e as de predações dos Beduinos à solta completaram a obra dos Mongóis, e o Sultanato mameluco sofreu um rude golpe no seu poderio económico e mihtar de que nunca mais se voltou a recompor. 176
As crises do século XV implicaram novas políticas fiscais vi sando extrair o máximo de lucros do tráfego comercial. Depois de ter começado por encorajar os mercadores da índia e da China a trazerem as suas mercadorias para os portos sob o domínio egípcio, o Sultão Barsbay (1422-1438) teve a ideia de que melhor ainda do que tributar o comércio era apossar-se dele. Começou por transformar o açúcar num monopólio real, a que se seguiram a pimenta e outros produtos. Estas medidas, prosseguidas pelos seus sucessores, conduziram a subidas de preços, exercício de re presálias por potências estrangeiras, e, por último, ao colapso económico geral, em que o govemo só poderia sobreviver atra vés da desvalorização da moeda e de uma tributação drástica e violenta. Os historiadores da época dão-nos um quadro muito vivo da corrupção crescente e da ineficácia do regime nos seus últimos tempos. Um desses historiadores, referindo-se aos Wazis, observa: «Eles eram patifes cruéis, inventores de injustiças sem fim, arro gantes e vaidosos. Não eram famosos nem pelos seus conhecimen tos nem pelo seu espírito religioso. Eram a escória da sua época, sempre com um insulto prestes a saltar-lhes da boca. A sua exis tência, empenhada exclusivamente na opressão do povo, foi uma desgraça para a humanidade.» Quando o Sultão Barsbay convo cou os quatro chefes Qâdis do Cairo e lhes pediu autorização para lançar e cobrar novos impostos sobre os estatuídos pela Lei Sa grada, conta-se que um deles teria replicado: «Como podemos nós autorizar que se vá buscar dinheiro aos Muçulmanos quando uma das esposas do Sultão iisou no dia da circuncisão do seu filho um vestido de 30 000 diñares; e foi apenas um vestido e apenas uma esposa». Em 1498, consumou-se a catástrofe. Em 17 de Maio desse ano, o navegador português Vasco da Gama desembarcava na índia, vindo por mar e depois de dobrar o Cabõda Boa Esperança. Em Agosto de_1499 regressava a Lisboa coni um carregamento de especiarias. /Rnhã aberto ju n a nova rota da Europa para o Extremo Oriente, menos dispendiosa e mais sêgúra^ó qúelT’an“t l p . Outras expedições ^ seguiram rapidamente. Os Portugueses estabeleceram bases na índia, e desenvolveram o comércio directo. 777
desferindo um golpe mortal na rota egípcia e despojando o Estado mameluco do seu próprio sangue vital. Os Mamelucos, reconhe cendo as conseqüências imédiãtásHèsTés factos, e pressionados a agir pelos seus companheiros de infortúnio venezianos, tentaram, primeiro recorrendo à diplomacia, e depois à guerra, afastar a ameaça portuguesa. Os seus esforços foram infrutíferos. As frotas portuguesas, concebidas para enfrentar as tempestades do Atlân tico, eram superiores na sua estrutura, armamento e arte de nave gar às dos Muçulmanos. E não tardaram a derrotar as esquadras egípcias, a destruir sistematicamente a marinha mercante árabe no Oceano Indico, e a penetrar no Golfo Pérsico e no Mar Vernielho. bfó século, XVI, após a conquista otomana e o desenvolvimenlo'do comércio europeu, o comércio do Levarité récüperõür permanecendo, porém, de importância secundária. O Próximo Oriente árabe havia sido flanqueado. Só no século XIX as prin cipais rotas do comércio mündial voltaram a passâr p o f lá. Ao longo do vasto período que temos estado a examinar, três alterações significativas se verificaram. A primeira foi a transi ção, no Próximo Oriente islâmico, de uma economia monetária e comercial para uma economia que, a despeito de um intenso e importante tráfego comercial com o estrangeiro, era internamente feudal, assente numa agricultura de subsistência. A segunda é o fim da independência política dos Árabes sedentários e dos povos de língua árabe e a sua substituição pelos Turcos. Nos desertos vastos mas de fraca densidade populacional, as tribos árabes pre servaram a independência que haviam reconquistado durante o declínio dos Abássidas, opondo-se a tentativas repetidas de con trolo sobre elas e, muitas vezes, provocando a erosão das terras cultivadas das fronteiras nas suas longas lutas com os Turcos. Nalguns postos avançados das montanhas, homens de língua árabe mantiveram, também, a sua independência, mas por toda a parte, nas cidades e nos vales e planícies cultivados do Iraque, da Síria e do Egipto, durante mil anos, povos de língua árabe iriam deixar de se governar a si próprios. O sentimento de que só os Turcos estavam preparados pela natureza para governar tinha criado raí zes de tal modo profundas, que no século XIV vamos encontrar um secretário mameluco, sírio de nascimento, dirigindo-se aos 178
Árabes em turco por intermédio de um intérprete, em vez de usar a sua língua-mãe, com receio de sofrer desprestígio por falar a lín gua desprezada do povo subjugado. Em princípios do século XIX, Napoleão, quando invadiu o Egipto, tentou, sem êxito, nomear egípcios de língua árabe para lugares de relevo, sendo forçado a recorrer aos Turcos, os únicos que conseguiam inspirar respeito. A_ terceira alteração diz respeito à transferência do centro de gravjdade-dflLmundõ'' de línj^a áráFe'do Iraque para o Egipto. A desorganização e debilidade do Iraque e o seu afastamento do Mediterrâneo, a via utilizada tanto pelos mercadores como pelos inimigos do último período, excluíram esse país como base possí vel. O Egipto era a única alternativa, a outra rota comercial, o vde irrigado de um único rio, que pela sua própria natureza exigia um governo centralizado — o único estado centralizado, poderoso, do Próximo Oriente árabe. Com o poder os Árabes perderam também a glória. Os diri gentes de línguas persa e turca que herdaram õs seus'tronos pro tegeram os poetas que os soubessem enaltecer nas suas próprias línguas, e de acordo com os seus gostos e tradições. .Prirneiro os Persas, e depois os Turcos, desenvolveram línguas independentes de cultura muçulmana e, jffiitamente com a chefia política, assu miram a chefia cultural do Islão. Sob o''donrinicrseljúcidà e mon gol, as'aTtes" islâmicas viveram úm novo período de florescimento. Tanto a literatura persa como a literatura turca, ainda que for temente marcadas pela tradição árabe islâmica, ramificaram-se em hnhas independentes e significativas. Após o período seljúcida o uso literário da língua árabe ficou confinado aos países de expres são árabe, à excepção de uma produção restrita de obras teoló gicas e científicas. A deslocação do centro de gravidade do mundo árabe para ocidente veio dar maior importância à Síria, e mais ainda ao Egipto, que passaram a ser os principais centros da cul tura árabe. desenvolvimento de uma sociedade ^tática e a predomi nancia de imiâjteoiogia ^ tática e formalista levaram ao enfraqueciiSénto da.esDecuÍãcão e da investigação indepêndénterA de pendência passiva da autoridade na vida pública encontroiT o seu paralelo na literatura, que sofreu uma perda de vitalidade e de 179
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autonomia. A característica mais impressionante dessa época é a ênfase crescente dada à forma pelos artistas, e à memória pelos estudiosos. No entanto, destacaram-se ainda alguns grandes vul to s— Ghazâli (1059-1111), um dos maiores pensadores do Islão, que tentou fazer a fusão do novo escolasticismo com a religião intuitiva e mística dos Súfis; Hariri (1054-1122), considerado ainda hoje pelos povos de língua árabe como o expoente máximo da forma e da elegância literárias; Yâqút (1179-1229), biógrafo, geó grafo e estudioso, e na época pós-mongol, toda uma série de his toriadores, ou antes de compiladores da história, entre os quais o tunisino Ibn Khaldún (1332-1406) sobressai como o maior génio dos historiadores do Islão e o primeiro a apresentar uma concep ção filosófica e sociológica da História. Em 1517, o Império memeluco, enfraquecido e decadente, desmoronou-se ante a investida otomana e durante quatrocentos anos a Síria e o Egipto fizeram parte do Império Otomano. Em breve os Estados berberes até às fronteiras de Marrocos aceitaram a suserania otomana, e após a conquista otomana do Iraque a partir da Pérsia, em 1639, quase todo o mündo de expressão árabe ficou sob o seu domínio. Só nalguns pontos, os povos de língua árabe conservaram al guma independência autêntica. Na Arábia, a província do lémen, a sudoeste, transformou-se numa paxalique otomana, em 1537, mas reconquistou a sua independência em 1635. Os chefes árabes de Meca e do Hijaz, os Sharifes, reconheceram a suserania oto mana, ficando na dependência do Cairo, e não de Constantinopla. Quanto aos outros, os Beduinos da Península conservaram a sua independência nos desertos inóspitos. Em meados do século XVIII, criaram um forte movimento espiritual, semelhante nalguns pon tos à ascensão do Islão/ Um jurista de Najd, de nome Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhâb (1703-1791) fundou uma nova seita, tendo por base um puritanismo rígido, antimístico. Em nome do puro, do primitivo Islão do primeiro século, denunciou todos os acrés cimos subsequentes de credo e de ritual como «inovação» supersti ciosa, estranha ao verdadeiro Islão. Proibiu o culto de homens santos e de lugares santos, a própria veneração exagerada de Maomé, e rejeitou todas as formas de mediação. Aplicou a mesma 180
austeridade puritana à vida religiosa e individual. A conversão à doutrina wahhâbi do Amir de Najd, Muhammad ibn Su‘úd, deu à seita um cariz militar e político. Não tardou que o Wahhabismo se espalhasse, através de conquistas levadas a cabo, pela maior parte da Arábia Central, arrebatando as cidades santas de Meca e de Medina aos Sharifes que as governavam em nome dos Otomanos e ameaçando as províncias otomanas da Síria e do Ira que. A reacção surgiu em 1818, quando um exército invasor turco-egípcio, enviado por Muhammad ‘Ali, o paxá do Egipto, destroçou o poderio do império wahhâbi e confinou o Wahhâbismo a Najd, seu berço. Aí a seita sobreviveu com vigor um tanto enfraquecido, para voltar a aparecer, como factor político, em meados do século XIX e de novo no século XX. No Líbano, nas regiões montanhosas, existia uma tradição de independência desde muito cedo, quando invasores cristãos provenientes de Anatólia converteram os cumes mais altos da montanha numa ilha cristã no meio do mar do Islão. Dinastias locais semi-independentes, umas cristãs, outras muçulmanas, ou tras drusas, continuaram a governar zonas da montanha sob su serania otomana, com um grau de autonomia que variava con soante a eficácia do Govemo otomano. Finalmente, no Extremo Ocidente, o Império misto árabe-berbere de Marrocos manteve a sua independência, vindo a desenvolver-se segundo linhas muito próprias. Quanto ao resto, a sujeição dos Árabes ao domínio turco, iniciada no reinado do Cahfa Mutasim, continuada pelos Seljúci das e Mamelucos foi mantida pelos Otomanos. Os movimentos de independência que eclodiram nas províncias árabes foram orga nizados mais frequentemente por Paxás Turcos rebeldes do que por chefes locais. No Egipto, os Otomanos mantiveram a ordem mameluca, sobrepondo-se-lhe um Paxá e uma guarnição militar otomana. O sistema feudal perdeu, todavia, o seu carácter militar, e assen tava mais numa base de receitas do que no serviço militar. A maior parte dos feudos foram convertidos em Iltizâm — cessão usufrutuária de terras pertencentes ao estado, a oficiais e outros, com direitos restritos de sucessão e de disposição. O cessionário cobrava 181
um pagamento anual dos camponeses não proprietários. Tanto o cessionário (Multazim) como o camponês pagavam impostos. Os herdeiros do Multazim podiam suceder-lhe no pagamento da tri butação. Com o enfraquecimento do controlo central, os Beis locais tomaram o poder e o Paxá transformou-se no observador passivo das suas rivalidades. Algumas vezes, conseguiram conquis tar o domínio total. A conquista otomana implicou alterações mais profundas na Síria. Nos princípios do século XVII, o país encontrava-se dividido em três paxaliques otomanos, o de Damasco, de Alepo e de Trí poli, a que foi aditado um quarto, o de Saida, em 1660. Cada um deles estava sob o poder de um Paxá, que comprava o lugar e gozava de uma ampla liberdade de acção a nível local, variável de acordo com as circunstâncias e a personalidade em causa. Os Paxaliques estavam organizados segundo as linhas feudais oto manas. A maior parte da terra estava dividida entre senhores feu dais, sobretudo turcos. Os feudos eram semi-hereditários e impu nham a obrigatoriedade do pagamento anual de direitos e da prestação de serviço militar pelos servidores. Os direitos do senhor feudal consistiam na cobrança de impostos e no exercício de determinados poderes senhoriais sobre os camponeses. Muitos IItizâms de terras da coroa estavam nas mãos de dignitários da corte de Constantinopla. Os Paxás detinham vastos poderes, tanto maio res quanto mais afastado se encontrasse da capital e mais fraco fosse o governo. Inicialmente, a conquista otomana constituiu uma vantagem, ao trazer consigo uma relativa segurança e prosperidade após o terrível pesadelo do último domínio mameluco. Mas por volta do século XVIII, o declínio do Império Otomano acarretou uma de sordem e corrupção generalizadas, anarquia e estagnação. Du rante este longo período de domínio estrangeiro, esta associação reciprocamente desvantajosa de duas culturas, cada uma delas for çosamente enredada no declínio da outra, o espírito de revolta é ainda discernível. movimento ismailita perdera a anterior im portância após as invasões mongóis, mas outros movimentos vie ram substituí-lo. Mesmo sob o domínio mameluco, verificaram-se revoltas esporádicas da população egípcia de expressão árabe. Os 182
movimentos ocasionais de independência, sob o domínio otomano, ficaram-se devendo, em regra, a indivíduos ambiciosos, muitas vezes governadores turcos. A oposição verdadeiramente popular, de acordo com a tradição islâmica, manifestou-se religiosamente, desta vez no sufismo. Começou por ser uma experiência mística puramente individual, depois um movimento social com ampla implantação entre as classes mais baixas, organizado em confra rias derviches, frequentemente associadas a corporações. Os Sú fis não eram formalmente heréticos como os Ismailitas, e politi camente eram quietistas. Na religião, contrapunham uma fé mís tica pessoal ao transcendentalismo ortodoxo dominante, que che garam, por vezes, a influenciar. Sempre que tiveram uma expres são política directa, esta foi hostil à ordem existente. Todavia, a revolta dos Súfis por infiltração falhou do mesmo modo que o ataque frontal dos Ismailitas havia falhado na sua época. Os ele mentos estáticos eram demasiado fortes. A verdadeira transfor mação vivia de um factor novo e exterior, mais poderoso e infi nitamente mais agressivo do que os impulsos helenísticos que haviam activado o fermento intelectual do Islão medieval.
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o IMPACTO DO OCIDENTE ¡cci, beatis nunc Arabum invides gazis, et acrem militiam paras non ante, devictis Sabaeae regibus, horribilique Medo nectis cátenos? (Horácio, Odes I, 29)
Os Árabes estavam em contacto com a Europa Ocidental desde a época das primeiras conquistas. Na Espanha e na Sicilia tinham subjugado as populações da Europa Ocidental e mantido relações militares, diplomáticas e comerciais com outros Estados da Europa Ocidental. Tinham recebido nas suas universidades estudantes da Eu ropa Ocidental. Os Cruzados haviam trazido um bocado da Eu ropa do Oeste até ao coração do Oriente árabe. Todavia, estes contactos, proveitosos para o Ocidente que aprendera muito com os Árabes, poucas conseqüências tiveram sobre estes. Para eles, as relações eram e permaneciam superficiais e exteriores e pouca influência tinham na vida e na cultura árabes. A literatura tanto geográfica como histórica dos Árabes medievais reflecte a sua total falta de interesse pela Europa Ocidental, que consideravam as trevas exteriores do barbarismo de que o mundo iluminado do Islão pouco tinha a recear e mesmo ainda a aprender. «Os povos do norte», diz o geógrafo do século X Masúdi, «são aque les para quem o sol está longe do Zénite... o frio e a névoa predo minam nessas regiões, e a neve e o gelo sucedem-se numa sucessão interminável. Os humores quentes não existem entre eles; os seus corpos são grandes, a sua natureza grosseira e vulgar, os seus modos duros e desagradáveis, a sua compreensão embotada e as suas línguas pesadas e monótonas... às suas crenças rehgiosas falta-lhes consistência... e aqueles que estão mais para o norte são os mais sujeitos à estupidez, vulgaridade e brutalidade». 185
No século XI, um Qâdi de Toledo, numa obra sobre as nações que têm cultivado o saber, enumera os Indianos, os Persas, os Caldeus, os Gregos, os Romanos (incluindo Bizantinos e Cristãos de Leste), os Egipcios, os Árabes e os Judeus. De entre os res tantes, destaca os Chineses e os Turcos como «povos nobres» que se distinguiram nóutros campos, e desdenhosamente omite os res tantes, considerando-os bárbaros do Norte e do Sul, observando em relação aos primeiros; «têm um ventre enorme, cor pálida, os cabelos compridos e escorridos. Falta-lhes agudeza de entendi mento e clareza de inteligência, e estão subjugados pela ignorância e insensatez, pela cegueira e estupidez». Ainda no século XIV, nada mais, nada menos que Ibn Khaldün observava com descon fiança: «Ouvimos contar recentemente que nas terras dos Fran cos, isto é, na nação de Roma e ñas suas dependências do litoral norte do Mediterráneo, as ciências filosóficas florescem., e os seus estudantes são em grande número. Mas Deus sabe meUior o que se passa nessas regiões». Esta atitude era, inicialmente, jus tificada, mas com o progresso da Europa Ocidental tornou-se pe rigosamente desactualizada. A partir dos começos do século XVI é já visível um novo tipo de relação entre o Islão e o Ocidente. O Ocidente fizera grandes progressos tecnológicos nas artes da guerra e da paz. Havia-se renovado através da Renascença e da Reforma. O des moronamento da ordem feudal viera libertar o comércio e soltar as rédeas da hvre iniciativa, a que a consolidação de estados nacio nais centralizados deu instnunentos políticos sólidos e seguros, e assim começou a grande expansão da Europa Ocidental que, no século XX, tinha atraído o mundo inteiro para a sua órbita econó mica, política e cultural. No Próximo Oriente, a grandiosa força exterior do Império Otomano escondia a profunda fragilidade de uhia autocracia mili tar com urna ordem social decadente. O vínculo moral da unidade religiosa diminuíra. A corrupção e a confusão a nivel do Governo e o declínio dos valores foram agravados pelo atraso económico. Nem a classe mihtar dominante nem a classe intelectual estavam interessadas numa transformação económica. 186
A expansão europeia dos princípios do século XVI foi de um tipo diferente. Começou com as negociações entre Franceses e Otomanos, com vista a urna aliança contra um inimigo comum. Uma diplomacia hábil transformou essa aliança num facto comer cial, conferindo determinados direitos e privilégios aos comercian tes franceses nos territorios otomanos. Esses direitos foram con sagrados pelas chamadas Capitulações de 1535, garantindo aos comerciantes franceses a segurança das suas pessoas e bens, liber dade de culto, etc. Tratou-se, efectivamente, de urna medida de extraterritorialidade. Inicialmente, não se tratou de urna concessão extorquida a urna potência oriental enflaquecida, mas da conces são, por um gesto de quase condescendência dos direitos dos Dhimis na sociedade muçulmana, alargados pela lógica interna do código muçulmano aos Cristãos estrangeiros. A penetração francesa desenvolveu-se rapidamente. Os comer ciantes franceses aproveitaram as oportunidades conseguidas para estabelecer entrepostos comerciais e missões consulares tanto na Siria como no Egipto. Outras capitulações seguiram-se-lhes, em favor dos Ingleses (1580), dos Holandeses (1612) e de outras na ções. No decurso dos séculos XVII e XVIII, o comércio europeu desenvolveu-se firmemente e foram fundadas numerosas colónias de comerciantes nos portos e outras cidades da Síria e do Egipto, sob a protecção dos respectivos cónsules. Até ao século XIX, o avanço militar, distinto do comercial, da Europa no mundo muçulmano do Próximo e Médio Oriente circunscreveu-se às fronteiras a norte, onde a Áustria e a Rússia avançavam com firmeza, à custa dos Otomanos, para os Balcãs e ao longo do litoral norte e leste do Mar Negro. Os territórios árabes só eram afectados comercialmente, sobretudo pelos comer ciantes ingleses, franceses e italianos, que vinham comprar e ven der. Urna alteração importante verificou-se com a ocupação do Egipto, em 1798, por Napoleão Bonaparte. Esta expedição, a primeira incursão armada da Europa no Próximo Oriente árabe desde as Cruzadas, deu inicio a urna nova era. A ordem mameluca otomana esboçou-se de imediato e os Franceses ocuparam o país seín dificuldades de maior. O seu dominio no Egipto foi de curta duração, mas de profundo alcance. Iniciou o período de interven187
ção directa do Ocidente no mundo árabe, com enormes conse qüências económicas e sociais. Pela sua fácü vitória, os Franceses destruíram as ilusões da incontestável superioridade do mundo islâmico face ao Ocidente infiel, criando assim um profundo pro blema de reajustamento a uma nova relação. As perturbações psicológicas desencadeadas não foram até agora resolvidas. O período de anarquia subsequente à retirada dos Franceses cessou com o aparecimento de Muhammad ‘Ali, soldado otomano de origem balcânica, que conseguiu tornar-se o soberano virtual mente independente do Egipto e, durante um curto período de tempo, também da Arábia e da Síria, até voltar a confinar-se ao Egipto uma vez mais, pressionado pelas potências ocidentais. Os esforços desenvolvidos por Muhammad ‘Ali no sentido da independência e da expansão foram frustrados pelas grandes potências. Conseguiu tão-só estabelecer um govemo hereditário de uma província otomana do Egipto, dando início a um vasto programa de reformas. Estas eram militares na sua origem, dita das pelo desejo de possuir um exército novo de tipo europeu. Para o conseguir, iniciou um programa ambicioso de medidas econó micas e pedagógicas. As primeiras foram particularmente bem sucedidas. O seu projecto de industrialização falhou, mas começou a fazer ruir a ordem feudal estabelecida do Egipto e da Síria, e racionalizou e promoveu a agricultura. Na área da educação, abriu novas escolas com professores do Ocidente, promoveu a tradução de obras ocidentais, que mandava imprimir numa im prensa montada para esse efeito no Cairo, e enviou missões de estudantes para a Europa, as primeiras de uma longa série. A ex tensão das plantações de algodão no Egipto, sob o Governo de Muhammad ‘Ali e dos seus sucessores, implicou o maior estreita mento dos laços económicos com a Europa Ocidental e, parti cularmente, com a Inglaterra, o principal mercado de algodão egípcio. A divulgação das línguas e das ideias europeias através da educação, tanto dentro do país, como pelas missões no estran geiro, submeteu as concepções tradicionais ao impacto das novas ideias. O próprio Muhammad ‘Ali era um otomano de língua turca e não árabe; não tinha a visão de um Império Árabe assente num 188
povo que, como a maioria dos turcos do seu tempo, desprezava. Porém, eram árabes os países que ele dirigia, aos quais deu urna certa independência política, e criou exércitos egípcios e sírios — e o seu filho (ou enteado) Ibrahim falava árabe e acreditava nmn Império Árabe. A Siria voltou para o Império Otomano após a retirada das forças de Muhammad ‘Ali, em 1840. Todavia, o desmoronamento da ordem feudal e a sua substituição por urna administração cen tralizada prosseguiram sob os auspicios otomanos. As reformas otomanas acentuaram a centrahzação. As provincias deixaram de constituir concessões feudais na posse de Paxás militares, e passa ram a formar distritos administrativos governados por funcioná rios assalariados do Govemo central. As classes de proprietários rurais, embora despojados dos seus privilégios feudais nos termos da lei, conservaram a sua supremacia social e económica e per maneceram a classe dominante na vida económica e adminis trativa. Entretanto, a actividade económica europeia entrava numa nova fase. Os Europeus estavam empenhados agora não essencial mente no comércio, mas em desenvolver e controlar, directamente através de concessões ou indirectamente mediante empréstimos efectuados aos governos locais, os recursos e serviços, e, designa damente, as comunicações. Desde os tempos de Vasco da Gama, que a via de acesso europeia da India, quer por razões de natureza comercial, quer de natureza bélica, se processara por mar, contor nando o Cabo da Boa Esperança, em vez do Médio Oriente. No entanto, ao longo deste período, houve quem pensasse em reto mar as antigas rotas por térra e o tivesse mesmo tentado, mas sem éxito. A expedição de Napoleão ao Egipto chamou a atenção para essa possibilidade. O advento da navegação a vapor, já não depen dente dos ventos periódicos dos mares orientais, tomou-a urna realidade. Durante séculos navios europeus, vindos essencialmente da India, penetravam ocasionalmente no Mar Vermelho e no Golfo Pérsico, trazendo os produtos das indias para os mercados de Basra, Jeda e, às vezes, do Suez. Desde os principios do século XIX que companhias britânicas no Sudão levavam a efeito uma nave189
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gação regular para Basra e Suez. No sentido de lhes dar protecção, unidades navais britânicas-indianas fizeram o levantamento carto gráfico dos mares da Arábia, suprimiram a pirataria árabe pela força das armas, e ao mesmo tempo adquiriram depósitos de carvão e pontos de observação estratégicos. Uma série de expedi ções provenientes de Bombaim contra as tribos predatórias das costas de este e sudeste da Arábia culminaram num tratado de paz, de 1820, com os Sheiks do Golfo, lançando as bases de supre macia política britânica nessa zona, que se foi fortalecendo gra dualmente ao longo do século. A pirataria do Sultão de Ádem provocou a sua captura e ocupação em 1839, assegurando do mesmo modo o acesso ao Mar Vermelho. No Mediterrâneo, uma companhia de navegação britânica iniciou serviços regulares para o Egipto e a Síria em 1836, rapidamente seguido pela França, Áustria, Itália e por outras linhas. Não tardou o correspondente desenvolvimento das ligações por terra entre os dois oceanos. Em 1800, no Oriente árabe só dificilmente se encontrava um veículo a circular nas estradas, sendo o transporte efectuado essencialmente por animais de carga ou por navegação interna. O capital e a engenharia europeia ope raram uma enorme transformação. Em 1834 um oficial britânico fez o levantamento das rotas imperiais e egípcias, e a partir de 1836 uma carreira regular foi inaugurada por uma companhia de navegação britânica, fazendo o percurso das vias do Iraque, hgando a Mesopotâmia a Basra e o Golfo Pérsico. No entanto, foi no Egipto e não no Iraque que recaiu a escolha definitiva. A Com panhia das índias Orientais e, a partir de 1840, a Companhia de Navegação Peninsular e Oriental foram as primeiras a entrar em acção, com uma ligação por terra entre Alexandria e Suez para mercadorias e passageiros, utilizando vapores no Nilo e nos canais interiores e carroças nas estradas recentemente construídas. Em 1851, o Paxá do Egipto fez contactos com George Stephenson para a construção da primeira linha de caminho-de-ferro egípcia. A hnha Cairo-Alexandria estava concluída em 1856, e a ligação do Cairo com Suez no ano seguinte. O desenvolvimento dos caminhos-de-ferro no Egipto foi rápido. Em 1863, estavam montadas 245 milhas de vias, em 1882 para cima de mil milhas, em 1914 191
mais de três mil. A abertura do Canal do Suez, após obras que se estenderam por um período de dez anos, em 17 de Novembro de 1869, veio confirmar definitivamente o restabelecimento da rota Egipto-Mar Vermelho e a posição-chave do Egipto nessa rota. Na Ásia árabe, afastada da via principal, o desenvolvimento das comunicações foi mais lento e posterior. Ficou-se devendo sobretudo a companhias francesas, que construíram algumas estra das na Siria Central, e entre 1892 e 1911, cerca de quinhentas milhas de vias férreas na Siria e na Palestina, ligando algumas das principais cidades. Os Turcos deram o seu contributo com o caminho-de-ferro de Hijaz, na rota dos peregrinos de Damasco para Medina, enquanto que a famosa via férrea de Bagdade, de construção alemã, via Alepo e Mossul se encontrava quase con cluida em 1914. Paralelamente foram sendo desenvolvidos portos, pontes, canais, o telégrafo e outros serviços, ao mesmo tempo que, a partir da década de 60, algumas firmas europeias começaram a instalar água, gás, transportes municipais e outros serviços nal guns dos principais portos e cidades do interior. No entanto, todo este vastíssimo desenvolvimento visava so bretudo o tráfego, com efeitos muito restritos sobre as economias dos países em causa. A transferência da principal ligação por terra dos caminhos-de-ferro egípcios para o Canal do Suez, em 1869, veio durante algum tempo reduzir os efeitos directos sobre a eco nomia egípcia. Consequentemente, houve um menor progresso na exploração dos recursos dos territórios árabes. A mais signifi cativa foi a incrementação das plantações de algodão e de cana-de-açúcar no Egipto, graças ao progresso muito rápido da irri gação, com equipamento novo e moderno, e às novas redes de caminho-de-ferro, rodovias e pontes, possibilitando um mais rápido acesso a mercados mais vastos. As transformações introduzidas pelo século XV foram muito mais radicais. O advento do motor de combustão interna veio acrescentar o aeroplano, o automóvel e o camião aos meios de locomoção. O primeiro revolucionou as rotas dé transporte tanto nos seus aspectos económicos, como estratégicos, enquanto que o automóvel e o camião vieram cobrir todo o Médio Oriente com uma rede de novas comunicações internas, tomando possível o 192
rápido intercâmbio de homens, de mercadorias e de ideias a urna escala até então nunca sonhada. A substituição do cavalo, do burro e do camelo pelo automóvel, pelo autocarro e pelo camião está a modificar mais do que qualquer outro factor considerada isoladamente toda a face do mundo árabe. Paralelamente, deu-se a intensificação da exploração do petróleo, agora o mais impor tante recurso natural do Médio Oriente para o mundo exterior. Após alguns anos de prospecção na Pérsia e na Anatólia, as com panhias petrolíferas começavam a alargar as suas actividades ao Iraque, quando eclodiu a guerra de 1914. A exploração dos recur sos petrohferos do Iraque foi adiada até à celebração da paz, altura em que diversas companhias, com predominio inicial dos interesses britânicos, começaram os trabalhos de exploração em diferentes pontos do país. Mais recente ainda é a exploração dos recursos petrolíferos da Arábia Saudita, onde os interesses ameri canos são os principais. As companhias petrolíferas, dadas as suas vastíssimas instalações e emprego em grande escala de mão-de-obra árabe, os oleodutos e refinarias, estão uma vez mais a alterar, tornando-a quase irreconhecível, a conjuntura económica e estra tégica. No Egipto, o progresso sofrido pela industrialização, ainda na sua primeira fase, desencadeou, não obstante, um processo de alteração social de longo alcance. A penetração cultural europeia foi, inicialmente, sobretudo religiosa, e partiu das minorias cristãs. O Vaticano matinha con tactos com catóUcos maronitas libaneses desde o século XVI. Monges capuchinhos e jesuítas, italianos e franceses, operavam na Siria, e padres maronitas vieram para Roma e Paris. Os Sui tões otomanos proibiram durante muito tempo a imprensa árabe ou turca. As primeiras imprensas do Próximo Oriente foram he braicas, gregas e sirias, utilizadas pelos judeus e cristãos locais. No entanto, foram impressas obras árabes em Itália e noutros pontos do Ocidente e postas a circular no Próximo Oriente. Os Turcos introduziram a imprensa em Constantinopla em 1729. Napoleão trouxe uma impressora em língua árabe para o Cairo para imprimir jornais e éditos em árabe e turco. A primeira má quina impressora muçulmana no mundo árabe foi a de Muham mad Ali, no Egipto. Entre 1822, quando foi montada, e 1842 193
imprimiram-se 243 livros, a maior parte dos quais compêndios destinados às escolas e escolas preparatórias criadas por Muham mad Ali. É significativo o facto de os livros em língua turca serem superiores em número aos livros em árabe, e as obras sobre assun tos militares e navais, assim como sobre matemática e mecânica, serem quase todos em turco. A rivalidade religiosa existente entre as grandes potências, relativamente à protecção lucrativa dos lugares santos, e entre minorias cristãs foi intensificada no século XIX. Os missionários mais activos no mundo árabe foram os jesuítas franceses e a Missão Protestante Americana, que mantinha escolas e colégios na Síria. Criaram imprensas em língua árabe e imprimiram muitas obras, devolvendo aos Árabes os seus clássicos semiesquecidos e traduzindo algumas das fontes do saber ocidental. Prepararam uma nova geração de árabes, simultaneamente mais consciente da sua herança árabe e mais permeável às influências europeias. Os efeitos sociais de todas estas transformações foram mais reduzidos do que seria de esperar. A nova classe média nativa de comerciantes e de intelectuais procedia largamente das mino rias e, dada a insegurança da sua situação, e o isolamento da população em geral, não foi capaz de levar até ao fim a sua missão. No entanto, esta nova classe falava e escrevia em árabe. Cristãos sírios educados em missões fundaram jornais e revistas, tanto no Egipto como na Síria, que atingiram um púbHco cada vez mais vasto à medida que a população ia sendo mais sensível à transformação socioeconómica. Foi neste período que o naciona lismo árabe nasceu. A sua origem era mista. À antiga, antipatia árabe pelos Turcos e insistente desconfiança contra o Ocidente estranho e usurpador, veio acrescentar-se a noção europeia de nacionalidade e o renascer da língua e da cultura arábicas. O na cionalismo revelou-se mais forte entre os cristãos, menos sensíveis ao ideal muçulmano de unidade, e mais permeáveis à transforma ção económica e às influências culturais do Ocidente. O cristão nã.o podia aceitar a ideia pan-islâmica, que era agora a moderna expressão política da antiga comunidade do Islão. Em vez disso, procurou dar uma expressão nova, mais em termos nacionais do que em termos religiosos, à solidariedade e aos ressentimentos do 194
Oriente contra o Ocidente invasor. Para os Muçulmanos as duas formas de expressão mmca estiveram realmente dissociadas. O sen timento de identidade básico era religioso e social, a sociedade do Islão expressa por vezes em termos nacionais, por vezes em termos religiosos, formando um conjunto de palavras sinónimas e intermutáveis denotando a mesma realidade essencial. O avanço de um movimento nacionalista foi acelerado com o advento do controlo europeu directo, primeiro na periferia do mundo árabe — os Franceses na Argélia em 1830, os Ingleses em Ádem em 1839—, depois já no seu interior. Em 1882, os Ingleses ocuparam o Egipto, mesmo no centro do mundo árabe. A ocupa ção levou ao desenvolvimento intensivo do movimento naciona lista no Egipto, desta vez de carácter mais localizado dadas as ofensas e os objectivos infinitamente mais concretos. Desta vez, o movimento nacionalista expressou-se politica mente em associações políticas e, depois, em partidos. Isto marca outra alteração importante. As antigas formas religiosas de expressão social não estavam mortas. Na Arábia, o movimento wahabi voltou a ressurgir no principio do século XX, quando Abd al-Aziz ibn Suud iniciou um processo de expansão, no decurso do qual os delicados guerreiros wahabitas acrescentaram a maior parte da Arábia ao patrimônio Najd. Anexou Hasa em 1913, labal Shammar em 1921, o Hijaz em 1924-1924, e em 1932 pro clamou o novo reino de Arábia Saudita, com o Wahabismo como seu credo oficial. Todavia, na maior parte dos países árabes, a* principal expressão organizada foi política à maneira ocidental — até que, após a Segunda Guerra Mundial, a súbita eclosão de con frarias religiosas militantes pareceu indicar um retomo a um mais antigo padrão de lealdade e de associação. Esta ocidentalização da vida pública foi, em grande medida, exterior. A base real da sociedade ainda não tinha sido alterada fundamentalmente. A abolição legal dos direitos feudais pouco veio alterar a relação feudal efectiva entre proprietário rural e camponês, em que o primeiro detinha ainda o monopólio de direc ção efectiva. As classes mercantis não eram muçulmanas — sobre tudo fora dos conflitos. A classe dominante continuava a ser a mesma, com as mesmas ideias e interesses. O aparelho político da 195
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Europa Ocidental — parlamento e eleições, partidos e programas, jomáis e apelos à «opinião pública» funcionando como fonte de autoridade— foi importado já pronto e sobreposto aos alicerces de urna realidade social a que não correspondia ainda. Daí o forte carácter religioso de alguns movimentos que ultrapassavam os pequenos grupelhos. Mesmo a jovem revolução turca de 1908 teve efeitos muito restritos entre os Árabes ainda sujeitos ao dominio otomano. A substituição do Islão pelo turquismo como base do Império Otomano e o programa de turquificação suscitaram algumas reacções na Síria, mas praticamente nenhuma no Iraque e na Arábia. A guerra de 1914 veio encontrar a sensibilidade muçulmana ainda predominante. A grande maioria dos Árabes muçulmanos continuavam a apoiar os Turcos, que contavam também com a simpatia do Egipto ocupado pelos Ingleses. No entanto, as pres sões exercidas durante os anos de guerra e as actividades dos Aliados conduziram a um rápido desenvolvimento do nacionalismo árabe. Em 1916, os Ingleses foram bem sucedidos ao organizar uma revolta árabe no Hijaz, e em troca de auxílio material ime diato e da promessa da independência árabe após a guerra, tropas auxiliares beduínas ajudaram as forças britânicas na conquista da Síria. O acordo de paz ficou muito aquém das expectativas árabes, mas mesmo assim deu-lhes muito. Foram criados novos Estados no Iraque, na Síria, no Líbano, na Transjordânia e na Palestina, onde os exércitos aliados puseram fim ao domínio turco. No entanto, a almejada independência foi protelada e estabelecidos mandatos britânico e francês. O desapontamento árabe, a que o rápido desenvolvimento económico-cultural dos anos entre as duas guerras veio dar voz, encontrou expressão numa série de movi mentos nacionalistas vigorosos, ainda de coloração religiosa, ainda condicionados na sua orientação e em grande parte das medidas adoptadas pela antiga ordem social. Mas apesar de tudo isto, ou talvez por força de tudo isto, foram na sua época autên ticos movimentos populares, afectando todas as áreas da socie dade árabe-muçulmana, desde os minorias cultivadas e politica mente conscientes que lhes imprimiram a sua orientação e 197
ideologia até ao camponês iletrado e miserável a que serviam de porta-voz, no seu misto de ressentimentos e de receios inarticula dos, em presença de forças estranhas e incompreensíveis que alte ravam todo o seu modo de vida. A luta foi dura e renhida. No prosseguimento dos seus objec tivos políticos, os nacionahstas foram, de um modo geral, bem sucedidos. O Egipto e ó Iraque em breve obtiveram a indepen dência formal, e a principal luta anti-imperiaUsta centrou-se na Síria-Líbano e na Palestina. Neste último país, a situação complicou-se mercê do desenvolvimento da Pátria Judaica. A Segunda Guerra Mundial veio acrescentar a Síria e o Líbano ao número de Estados árabes independentes e, em Março de 1945, após uma longa preparação, foi constituída a Liga Árabe, formada pelo Egipto, o Iraque, a Síria, o Líbano, a Arábia Saudita, o lémen e a Transjordânia. Em Março de 1946, esta última tornou-se também Estado soberano. Em 1948, o fim do mandato britânico na Palestina foi acompanhado de uma guerra entre Árabes e ' Judeus, tendo como resultado a incorporação da maior parte da Palestina no novo Estado judaico de Israel, e anexação ao reino da Jordânia do restante território com excepção de uma pequena parcela. Durante os anos 50 e 60, mais uma série de Estados árabes independentes viram a luz do dia; o Líbano em 1951, o Sudão, a Tunísia e Marrocos em 1956, a Mauritânia em 1960, o Kuwait em 1961, a Argélia em 1962, o lémen do Sul em 1967, Qatar, Bahrain, Oman e a União dos Emirados Árabes em 1971. Todos estes Estados aderiram à Liga Árabe, elevando o número de mem bros para dezanove. A Somália, que aderiu em Fevereiro de 1974, foi o vigésimo. A Segunda Guerra Mundial acarretou outras transformações. Muito embora os Estados árabes não tivessem tomado parte nela efectivamente, foram profundamente afectados. Os propagandis tas dos Aliados e do Eixo aliciavam-nos usando todos os meios à sua disposição; os exércitos dos Aliados e do Eixo viveram e luta ram sobre o seu solo, empregando milhares de Árabes nos ser viços de aprovisionamento, manutenção e outros, enriquecendo uns e alterando a vida de outros. As pressões económicas e sociais 198
resultantes dos condicionalismos da guerra forçaram uma parte cada vez mais significativa da população a considerar os problemas da sua vida pública em termos que nunca até então lhe haviam ocorrido. A transformação económica devida á industrialização e à guerra e as conseqüências intelectuais do alargamento da edu cação trouxeram o aparecimento de novos interesses, novas ideias e novos líderes, insatisfeitos com uma libertação puramente poUtica que muitos deles sentiam como um logro, opondo-se ao domínio ainda intacto dos antigos governantes e chefes. A influência da Alemanha nazi, outrora tão perigosa, terminou com a sua derrota militar; mas um novo alinhamento de grandes potências rivais veio uma vez mais invadir o Oriente com o estrépito de interesses e de ideologias antagónicas, oferecendo novas e tentadoras opor tunidades de êxitos políticos a curto prazo, desviando a atenção dos problemas reais de uma sociedade em transição. Uma vez mais, tal como nos dias em que o avanço dos guer reiros árabes pôs a sua fé em contacto com o Helenismo e criou algo de novo e profícuo, o Islão de hoje ergue-se face a face ante uma civilização estranha que põe em- questão muitos dos seus valores fundamentais e faz apelo de forma sedutora a muitos dos seus adeptos. Desta vez, as forças de resistência são muito mais sólidas. O Islão já não é uma fé nova, ainda quente e maleável saída do cadinho árabe, mas uma religião antiga e institucionali zada, moldada por séculos de hábito e de tradição em padrões rígidos de conduta e de fé. Mas se o metal é mais resistente, tam bém o martelo o é — porquanto o desafio de hoje é incomparavel mente mais radical, mais agressivo, mais invasivo— e vem não de um mundo conquistado, mas de um mundo conquistador. O im pacto do Ocidente, com os seus caminhos-de-ferro e máquinas impressoras e cinema, fábricas e universidades, prospectores de petróleo e arqueologistás, metralhadoras e ideias, abalou, sem hipóteses de recuperação, a estrutura tradicional da vida econó mica, afectando o Árabe no seu dia-a-dia e no seu lazer, na sua vida pública e privada, exigindo um reagrupamento das formas herdadas, nos seus aspectos sociais, políticos e culturais. Nesta problemática de reajustamento, abrem-se aos povos árabes diversos caminhos; podem submeter-se a uma qualquer 199
das versões opostas que a civilização moderna lhe oferece, dei xando que a sua própria cultura e identidade seja absorvida por um todo mais vasto e dominante; pode tentar voltar as costas ao Ocidente e às suas realizações, perseguindo a miragem de um regresso ao ideal teocrático perdido, e chegando, em vez disso, a um despotismo renovado que foi buscar ao Ocidente a sua má quina de exploração e de repressão e a sua verbosidade de into lerância, ou, por último — e para tal constitui condição prévia a remoção do que há de perturbador na interferência do estran geiro—, podem conseguir renovar a sua sociedade a partir de dentro, enfrentando o Ocidente em termos de cooperação igual, absorvendo algo da sua ciência e humanismo, não só aparente mas na essência, num equilíbrio harmónico com a sua própria tradição herdada.
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U F H G S B ib lio te c a S e to ria l de C iêní
Jsrví'íaÍQ p. í-íiiTníant/-1oz4ia
QUADRO CRONOLÓGICO
a .C 853 65 25-24
Primeira referência aos Árabes, numa inscrição de Shalmaneser III. Pompeu visita Petra — primeiro contacto romano com o reino nabateu. Expedição de Élio Galo ao sul da Arábia.
"^d:b) 105-106
Queda do reino nabateu, parte do qual se converte numa província romana. ca. 250 Ascenção do «Reino» de Palmira. 273 Aureliano subjuga Palmira. 525 Queda de Himyar — os Etíopes ocupam o Sul da Arábia. 575 Ocupação persa do Sul da Arábia, que durante alguns anos se transforma numa satrapía. 602 Fim do principado árabe de Hira, na fronteira árabe-iraquiana. 622 Hégira de M aom é de M eca para Medina — início da era islâmica. 630 Maomé conquista Meca. 632 Morte de Maomé. A bu Bakr é o primeiro Califa. 633-637 Os Árabes conquistam a Síria e o Iraque. 639-642 Conquista do Egipto. 656 Assassinato de Uthman — inicio da primeira guerra civil no Islão 657-659 Batalha de Siffin. 661 Assassinato de A li — inicio da dinastia omíada. 680 Massacre de Hussein e dos Alidas em Karbala. 683-690 Segunda guerra civil. 685-687 Revolta de Mukhtar no Iroque — início do Shi‘a extremista.
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696 710 750 751
„756 762-763 788 799-800 803 809-813 813-833 825 , 833-842 836 868 869-883 871 877 890 901-906 910 925 929 932 935 945 969
ca. 970 1030 1037 1048 1055 \
Abd al-Malik intruduz a cunhagem árabe com o parte da reor ganização da administração imperial. Os Muçulmanos desembarcam em Espanha. Queda dos Omíadas, subida ao trono dos Abássidas. Os Árabes capturam fabricantes de papel chineses na Ásia Central; a utilização do papel com eça a ser divulgada no Oci dente através do Império Islâmico. O príncipe omíada Abd ar-Rahman torna-se Am ir indepen dente de Córdova. Fundação de Bagdade por Mansur. Dinastia Idrisita independente em Marrocos. Dinastia Aglábida independente na Tunísia. Harun ar-Rashid depõe os Barmécidas. Guerra civil de Amin e Mamun. R eino de M amun — desenvolvimento das letras e das ciências árabes. Os Aglábidas da Tunísia iniciam a conquista da Sicilia. R eino de Mutasim — início do domínio turco. Fundação de Samarra. Ahmad b. Tulun, general turco, funda uma dinastia no Egipto e, mais tarde, na Síria. R evolta de escravos negros no Sul do Iraque. A scensão dos Safáridas na Pérsia. Morte de Hunain b. Ishaq, tradutor de obras científicas gregas para a língua árabe. Aparecim ento dos primeiros Carmacianos no Iraque. Bandos carmacianos actuam na Síria, na Palestina e na M eso potâmia. Estabelecimento do Califado Fatimida no N orte de África. Morte do m édico Razi (Rhases). Abd ar-Rahman III de Córdova adopta o título de Califa. Estabelecimento da dinastia persa dos Buvaítas na Pérsia Ocidental. Criação do posto de A m ir al-ümara, com andante-chefe da guarda turca na capital, e dirigente efectivo Os Buvaítas ocupam Bagdade. Os Fatimidas conquistam o Egipto — fundação do Cairo. Os Turcos Seljúcidas penetram nos territórios do Califado vindos de Leste. O Califado Omíada de Espanha fragmenta-se em «Reinos Par tidários». M orte de Ibn Sina (Avicena). M orte de Biruni. Os Seljúcidas tomam Bagdade.
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1056-1057
Invasores árabes da tribo de H ilal saqueiam Qairawan (Cairuão). 1061 Os Normandos tomam M essina— inicio da conquista da Si cilia. 1070-1080 Os Seljúcidas ocupam a Siria e a Palestina. 1085 Os Cristãos tomam Toledo. 1086 Vitória almorávida em Sagrajas. 1090 Hasan-i Sabah captura Alam ut. 1094 Morte do Califa Fatimida Mustansir — cisão no m ovimento ismailita — Hasan-i Sabah chefia a ala extremista (Assassinos). 10^ "y Os Cruzados chegam ao Próximo Oriente. 10^ Os Cruzados tomam Jerusalém. 1111 M orte de Ghazali. 1127 Zangi, oficial seljúcida, captura M ossul — inicio da reacção muçulm ana contra os Cruzados. 1171 Saladino anuncia o fim do Califado Fatimida — funda a di nastia Aiubita na Siria e no Egipto. 1187 Batalha de Hatin. Saladino vence os Cruzados e toma Jeru salém. 1220 Os M ongóis conquistam os territórios levantinos do Califado. 1236 Os Cristãos tomam Córdova. 1250-1260 A parecim ento do Sultanato m am eluco no Egipto e na Siria, com o conseqüência do declinio dos reinos Ayyubitas. 1254 A fon so X cria urna escola de estudos árabes e latinos em Sevilha. 1258 Os M ongóis sob o comando de H uleku Khan tomam Bagdade e põem termo ao Califado. 1260 Os M am elucos vencem os M ongóis em A in Jalut, na Pales tina. 1348 Construção da Porta da Justiça na Alhambra de Granada. 1400-1401 Timur arrasa a Siria. 1406 M orte de Ibn Khaldun. 1492 Os Cristãos tomam Granada. 1498 V asco da Gama atinge a India pelo Cabo da Boa Esperança. 1517 Os Otomanos conquistam a Siria e o Egipto — destroem o Sultanato mameluco. 1535 Primeiras Capitulações concedidas pelo Sultão otomano á França. 1639 O s Otomanos libertam finalmente o Iraque do dominio persa. 1792 M orte de Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab, fundador da seita wahhabita na Arábia. 1798-1801 Ocupação francesa do Egipto. 1805 M uhamm ad A li torna-se chefe efectivo do Egipto.
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1809 1820 1822 1830 1831-1840 1836 1836 1839 1851-1857 1861 1869 1881 1882 1901 1W8 1911-1912 1916 1918 1920 1924-1925 1932 1932 1934 1936 1941 1945 1946 1948 1951 1952 1953 1954
Inicio de um serviço regular de transportes marítimos da India para o Suez. Pacto británico com os Sheikhs árabes no litoral do Golfo Pérsico — inicio da supremacia britânica nessa zona. Muhammad A li introduz a imprensa no Egipto. Os Franceses invadem a Argélia. O Egipto ocupa a Siria. Estabelecimento de um serviço britânico de barcos a vapor na navegação interna do Iraque. Inicio de um serviço regular británico de navios a vapor para o Egipto e a Siria. Ocupação britânica de Ádem. Construção do caminho-de-ferro Alexandria-Cairo-Suez. Criação do Líbano autónomo. Abertura do Canal do Suez. Ocupação francesa da Tunísia. Ocupação británica do Egipto. Ibn Saud inicia a restauração do emirato saudita de Najd. R evolução dos Jovens Turcos. Ocupação da Libia pela Itália. Revolta árabe no Hijaz. O Sharif Hussein assume o título de Rei. Fim do dominio otom ano no território árabe. Criação de Mandatos na Siria e Líbano (França), na Pales tina, Transjordânia e Iraque (Grã-Bretanha). Ibn Saud conquista Hijaz. Fim do Mandato no Iraque. Ibn Saud proclama o R eino da Arábia Saudita. Ibn Saud vence o lémen numa breve luta. Tratado de paz de Taif. Tratado Anglo-Egipcio reconhecendo a independência do Egipto. Derrota de Rashid Ali no Iraque — fim dos Mandatos para a Siria e o Líbano, que se tornam repúblicas independentes. Criação da Liga dos Estados Arabes. A Grã-Bretanha reconhece a independência da Transjordânia, que se torna urna monarquia. Fim do Mandato para a Palestina — fundação do Estado de Israel — guerra israelo-árabe. A Libia torna-se um reino independente. Golpe militar no Cairo; o R ei Faruk abdica — o R ei Talal da Jordânia abdica; Hussein é proclamado rei. O Egipto torna-se urna república — morte de Ibn Saud. O Coronel Jamal Abd al-Nasir torna-se presidente do Egipto.
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1955
Evacuação britânica da zona do Canal do Suez — assinatura do Pacto de Bagdade; acordo de armamento entre o Egipto e a Checoslováquia. 1956 O Sudão, a Tunísia e Marrocos tornam-se independentes — O Egipto nacionaliza o Canal do Suez — campanha israelita no Sinai — expedição anglo-francesa ao Suez. 1957 A Tunísia torna-se uma república. Os Israelitas retiram-se do Sinai e de Gaza. 1958 Criação da República Árabe U nida — guerra civil no Lí b an o— revolução no Iraque, que se torna uma república. 1960 A Mauritânia torna-se independente. 1961 O Kuwait torna-se independente — a Síria abandona a Repú blica Árabe Unida — O Egipto adopta o «socialismo árabe». 1962 A Argélia tom a-se independente — revolução republicana no lém en. 1963 Revoluções na Síria e no Iraque. 1964 Criação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). 1965 R evolução na Argélia. 1967 Guerra israelo-árabe — o lém en do Sul torna-se indepen-. dente 1968 R evolução no Iraque. 1969 R evoluções rto Sudão e na Líbia, que se torna uma república. 1970 Morte de Nasser. 1971 Os Estados do G olfo tornam-se independentes — criação da União dos Emiratos Árabes. 1973 Guerra israelo-árabe. 1975 Morte do R ei Faisal. 1975-1977 Guerra Civil no Líbano. 1976 A Espanha retira-se do Saará Ocidental
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ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
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ÍNDICE ANALÍTICO
Abássidas, 19, 75, 91, 93, 94, 97 ss., 133 ss., 126, 132, 139, 155, 165, 173, 175, 178, ‘Abdallãh ibn Sa‘d ibn A bl Sarh, 132. ‘Abd al-‘Azrz ibn Su‘üd, 195. ‘Abd al-Malik, 78, 81, 85, 86, 87. ‘Abd ar-Rahmán I, 139, 144. ‘Abd ar-Rahmán II, 140, 144. ‘Abd ar-Rahmán III, 141, 142. Abü Bakr, 47, 58, 59, 60, 61, 68. Abü Háshim, 90. A bu’l-‘Abbás, 92. Abu’l-‘Alá al-M a‘arri, 128. Abü Müsá, 71, 72. Abü Muslim, 91, 92, 93, 115, 116, 117. Abü ‘Ubaida, 59, 62. Acre, 172. Adelardo de Bath, 147. Adem, 22, 101, 191. Adharbaijan (Azerbaijão), 95, 117, 118. Adhrujj, 72. A fonso X, o Sábio, 146. África, 23, 29, 41, 96, 101, 103, 107, 133, 134, 142, 143, 164. Aglábidas, 134.
217
Ahmad ibn Tülün, 110. Ahmad ibn Shawql, 147. Ahwáz, 95, 120. ‘Aidháb, 129. ‘Á ’isha, 69, 70, 71. Alamüt, 168. Alarcos, 143. Albornoz, Sánchez, 145. Alcorão (Qur’án), 34, 43, 45 ss., 52, 63, 71, 72, 123, 151 ss, 158. Alepo, 110, 182. Alexandria, 100, 129, 131. ‘A ll, 46, 58, 59, 70. 71, 72, 73, 75, 78, 82, 84, 85. Alida (’Alid), 84. ‘A ll ibn Muhammad, 119. Allãt, 36. Almorávidas, 143. Almuñecar, 139. Álvaro, 140. ‘Àmil, 98. Amín, 109, 110. AmIr, 98. Amlr al-Umará, 111. ‘Amr ibn al-‘Ãs, 53, 62, 64, 69, 70. 72. Amsãr, 64, 79, 80, 81, 86, 106. Anatólia, 58, 63, 69.
Anbãr, 95. Ançãr, 48, 49. Antioquia, 155. Aqaba, G olfo de, 32. ‘Arab ad-Dawla, 98. Árabe, Império, 14. Árabe, Língua e literatura, 14, 30, 64, 150, 151, 152, 153, 157, 161. Arábia, 15, 16, 17, 21, 24, 94, 188, 197. Arábia do Sul, Religião da, 32. Arábia Saudita, 22, 193, 195. Arameus, 29, 81. Aretas, 32, 38. al-‘ArIsh, 62. Armênia, 96, 100. Argélia, 23. Ásia, 23, 99, 117.
«Batalha do Camelo», 71. Batalha do Grande Zãb, 92. «Batalha dos Mastros, 77. Batalha de Poitiers, 137. «Batalha da Ponte», 62. Beduinos, 14, 16, 19, 21, 35, 41, 80, 164. Berberes, 24, 81, 137 ss., 164. Bihãfarld, 116. al-BTrünT, 149, 155. Bizantinos, 39, 40, 41, 57 ss., 62, 76, 77, 78, 79, 100, 102, 135. Boa Esperança, Cabo da, 177, 189. Bokhara, 77, 88, 117. Bosra, 64. Búlgaros, 103. Buwaihitas, 163, 166. Cabul, 77. Caetani, L., 45. Cairo, 101, 127, 128, 168, 174, 177, 180. Califado, 17, 18, 25. Campagna, 133. Caréjidas — ver Kharijitas. Carmaciano, Movimento, 125, 127. Castrogiovanni, 133.
Assassinos, 168. Athenodorus, 34. Aureliano, 34. Averrois — ver Ibn Rushad Avicena — ver Ibn Sina. Ayyübitas, 172 ss. Bâbak, 117. Babilônia, 62. Badr, 52.
Bagdade, 95 ss., 120 ss., 166, 168, 173. al-Baghdãdi, 23. Bahrain (Barém), 82, 95, 125. Baihars, 174, 175, 176. Balj ibn Bishr, 138, 139. Báltico, 101. Bari, 133. Barmécidas, 98, 109, 115. Barsbai (Barsbay), 177. Bushshãr ibn Burd, 153. Basra (Bassorá), 63, 70, 71, 91, 95, 101, 119, 120. Batalha de Ajnãdain, 61. Batalha de ‘Aqrabã’, 61.
218
Cesareia, 61. China, 92, 100 ss., 104, 156 s s , 159, 166. Chipre, 132. Chosroes Anushirvan, 116. Companhia das Índias Orientais, 191. Companhia de Navegação Penin sular e Oriental, 191. Constantinopla, 77, 132, 180, 182, 193. Coptas, 24, 62, 100. Corão — ver Alcorão. Córdova, 137, 139, 140, 143. Creta, 132. Cristãos, 13, 19, 30 s., 38 s., 46, 52, 56 s., 61, 67, 105, 107, 135 s..
139, 145 c., 149, 153, 159, 169, 176, 181, 187, 194. Cruzada.s, 9, 169, 185. Ctesifonte, 62, 95. Curdos, 24 Cyzicus (Cízico), 132. Damasco, 63, 76, 176, 182.
101, 171, 172,
Damieta, 100. Dhimíns, 67, 81, 89, 90, 107, 109, 187. Dhü Nuwãs, 31. Díwãn, 68, 79, 82, 97, 98. Diyãr-Mudar, 96. Diyãr-Rabi‘a, 95. Domingo Gundisalvi, 146. Drusos, 24. Egipto, 13, 16, 22-24, 28, 35, 40, 60, 81, 96, 100, 107, 110, 131, 134, 172-176, 178, 179, 180, 187, 188, 198. Élio Galo (Aelius Gallus), 33. Emir — ver Amir. Enfiteuse, 80.
Frederico II, 136. Fulcher de Chartres, 169. Fustãt, 63. Galiano, 34. Gama, Vasco da, 177, 189. Garigliano, 133. Gaza, 64. Gengis Khan (Jenghiz Khan), 173. Gerardo de Cremona, 147. Ghassán, 38, 39 GhazãlT, 123, 169, 180. Gibb, H. A. R., 14. Gibraltar, 137. Gindibu o Árabe, 15. Gobineau, J. A. de, 94. Granada, 143 Grande Záb, Batalha do, 92. Guidi, Ignazio, 29. Guilherme II, 135. HabTb ibn Abi ‘Ubaida, 133. HadTth, 43, 44, 45, 80. al-Hajjãj, 88, 89. al-Hakam II, 141. Halkin, A. S., 123. Hamã, 101 Hamãd, 27. yam dãnidas, 110. HanTfes, 46, 56.
Escandinávia, 101, 167. Espanha, 110, 136 ss., 185. Esquilo, 16. Etíopes, 31. Eufémio, 132. Eufrates, Rio, 15, 35, 40, 61, 64, 72, 95, 96, 174.
HarIrT, 180. Hãritha, 32. Hãrith ibn Jabala, 38, 39. HârOn ar-RashTd, 98, 100, 109, 141. Hasã, 125. Hasan ibn ‘Ali al-KalbT, 134. Hasan-i Sabbâh, 168. Hâshimiya, 90. Hãshimitas, 91. Hégira (Hijra), 48, 49, 54. Helenismo, 153, 199. Heráclio, 39, 61. Herat, 77.
Fãrãbi, 156. Faraj ibn Sálim, 136. Fárs, 95. Fátima, 58, 84, 121. Fatimidas (Fátimidas), 121, 126 ss., 134, 166, 168. Fez, 101. Filipe, 34. Francos, 103 ,137, 142.
219
Hermán o Dalmácio, 147. Heródoto, 16. Hijüz, 28, 32, 37, 40, 131, 180, 195, ’ 197. Hilãl, Tribo, 164, 165. Himiaritas, 31. Hims, 125. Hindú Kush, 99. Hira, 38, 39, 62. Hishâm, 89, 90, 97, 142. HudaibTya, 53. Hülekü, 173. Hunain ibn Ishãq, 155. Hussein (Husain), 78. Ibn A bl Sarh — ver ‘Abdalláh. Ibn az-Zubair, 78, 86. Ibn Çamdls, 135. Tbn Hawqal, 134. Ibn Jubair, 135. Ibn Khaldún, 20, 154, 165, 180, 186. Ibn Khurradadhbeh, 103. Ibn Muljam, 73. Ibn Rushd, 156. Ibn SInã, 155, 156. Ibrãhlm (Abássida), 91, 92. Ibráhlm Pasha, 189. IdrIsI, 135. lém en, 22, 24, 27, 28, 33, 35, 39, 40, 126, 180. lltizãm, 181, 182. Tmãd ad-DIn, 167. Imam, 121, 122. Imru’l-Qais, 17. india, 33, 88, 129, 177, 189. índico. Oceano, 27, 131, 178. Irão, 57, 69, 165. Iraque, 13, 22, 24, 27, 38, 39, 62, 63, 77, 95, 100, 107, 173, 191, 193, 197, 198. Isfãhãn, 96, 99. Ishãq, o Turco, 116.
220
Islâmica, Arte, 156. Islão, 16-19, 24, 35, 80 ss., 136 ss., 151 .ss., 163. Ismá'il, Imam, 121, 122. Ismailita, Movimento, 24, 123 ss., 167, 168 ss., 173. Israel, 22, 159, 198. Jabal, 96. Jabal Shammar, 195. Ja‘far, Irnãm, 121. Jâhiz, ‘Amr ibn Bahr, 94, 105, 154. Jãlüla, 62. Jawhar, 127. Jaxartes, 100. Jeda (Jedda), 189. Jerusalém, 61. Jizya, 66, 89, 90. João de Sevilha, 147. Jordânia, 22, 32, 198. Judeus, 13, 19, 30, 38, 48 ss., 52 ss., 57, 67, 103, 136, 146, 159, 186, 198. Jundaishapur, 155. Jurjãn, 100. K a‘ba, 52. Kalb, 86, 106. Kalbitas, 134. Karbalã’, 78, 83. Khadija, 45, 46. Khaibar, 53. Khãlid al-Barmakl, 98. Khãlid al-Qasrl, 90. Khãlid ibn al-WalId, 53, 60, 61, 62, 64. Kharãj, 66, 89, 90. Kharijitas (Caréjidas), 72, 73, 85. Khazars, 103. Khidãsh, 91. Khurãsãn, 63, 82, 89, 91, 92, 96, 109, 117. Kinda, 37, 56. KindI, 156.
KippCir, Jejum de, 49. Küfa, 6J, 71, 83, 87, 91, 95, 124. Lahsã, 125. Lammens, H., 41, 45. Líbano, 14, 22, 24, 181, 197, 198. Líbia, 132, 164. Liga Árabe, 198. Lihyãn, 34. Madá’in — ver Ctesifonte. Madinat as-Salãm, 95. Mahdl, 84. Majlis, 36, 38, 41, 58. M amelucos, 98, 111, 118, 165, 175, 181. M a’mün (Califa Abássida), 109, 110, 115, 155, 156.
Medina. 17. 38. 45. 47 ss.. 70. 180. 181. Mediterrâneo, Mar. 40. Mérida. 137 . Merv, 109. 117. Mesopotâmia, 28. 62, 96. 110, 125. 171. Messina. 133. 134. Mongóis. 173, 174, 176. Mossul, 95. 110, 171. M u‘ãwiya (Califa Omíada). 68, 71-79, 85, 131, 132. Muhãjirún, 49, .50. Muhammad ‘AlT. 181. 188, 189. 193. Muhammad «da Alma Pura», 114. Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhãb. 180. Muhammad ibn al-Hanafiya, 84, 90, 121, 122. Muhammad ibn ‘A li ibn al-‘Abbãs, 90, 91. Muhammad ibn Sú‘üd, 181. Muhammad Kurd ‘Alí, 147. Muhtasib, 104. M u‘izz, 127. Mukhtãr, 84. al-Mukhtãra, 120. Multazim, 182. Munãfiqün, 49. al-Mundhir III, 39. Muqaddasl, 103. Muqanna‘, 117. MOsá ibn Nusair, 137. Müsã, Imãm, 121. Mustansir (Califa Fatimida), 127, 168. Mutanabbl, 128, 154. M u‘tasim (Califa Abássida), 111, 118, 165, 181. Muwaffaq, 120. Nabateus, 32, 34. Nadir, 48.
Manãt, 36. Manfred, 136. al-Mansür, 141, 142. Mansür (Califa Abássida), 95, 97, 109, 116. Maomé, 14, 17, 40 ss., 90, 91, 180. Maqrizl, 175. M a’rib, Dique de, 30, 35, Marj Rãhit, 78, 86. Maronitas, 24. Marrocos, 23, 101, 105, 110, 139, 180. Martel, Carlos, 137. Marwãn I (Califa Omíada), 78. Marwãn II (Califa Omíada), 90, 94, 99. Mãsarjawaih, 155. M as‘üdT, 185. Mawâll, 67, 81-84, 87, 88, 89, 90, 91, 94, 97, 107. Mazara, 133. Mazdak, 115, 117. Mazyar, 117. M eca, 17, 38, 42 ss., 54, 70, 180, 181.
221
Najd, 28. 180, 181. Najrãn, 38. Namãra, Epitáfio de, 17. Napoleão, 179, 187, 189, 193. Nápoles, 133. Nasr ibn Sayyãr, 90. Navas de Tolosa, 143. Nilo, Rio, 16, 40, 129, 191. NTshãpür, 116. Nizâm al-Mulk, 167 ss. Nizãr, 168. Normandos, 134, 135. «Nova Pregação», 168. Núbia, 99. Nufüd, 28. Nür ad-Dín, 171.
Qatai (Qatã’i‘), 66, 80. Quraish, Tribo, 41, 45, 48, 50, 52, 53, 54, 106. Quraiza, 48, 53. Qutaiba ibn Muslim, 88. Raqqa, 96. RãzT, 136, 155. República Árabe Unida, 23. Ridda, 59, 60. Rodes, 132. Rotas comerciais, 28, 40, 41, 191-193. Roger I, 134. Roger 11, 135. Roma, 32, 34, 133. Romano, Império, 25, 32-34.
Odenato, 34. Omíadas (Umayyads), 75, 76, 78, 79, 83, 85, 86, 89, 90, 93, 94, 96, 101, 110, 115. Otomano, Império, 176, 180, 182, 186, 189. Oxo, Rio, 88, 173. Palaestina Tertia, 34. Palermo, 133, 134, 135. Palestina, 28, 57, 61, 64, 197, 198. Palmira, 34, 40, 61. Pantelária, 133. Pelusium, 62. Pérsia, 23, 38, 39, 41, 58 ss., 99, 109, 173. Pérsico, G olfo, 27, 35, 40, 41, 99, 178. Petra, 32. Petrus Alphonsi, 147. Pompeu, 32. Portugueses, 177. Qãdi, 152. Qãdisiya, 62. Qairawan (Qairawãn), 63, 165. Qais, 86, 106.
222
Sabá, Reino de, 30, 31. Saffãh. 92. 95. Saffãridas, 110. Saida, 182. Sayyia, 35, 76. SaladinOi 128, 172 ss. Sãmãnidas, 110. Samarcanda, 88, 101. Sarracenos, 16. Sarrãf, 105. Sassânidas, 97, 100, 115. Schacht, J., 45. Seljúcidas, 166 ss., 181. Serapeum, 63. Sevilha, 137, 143. Sevilha, Arcebispo de, 140. Shalmaneser III, 15. Shãmís, 137. SharPa, 97, 151, 152, 154, 158, 160. SharTfs (xarifes), 180, 181. ShPa, 24, 83, 84, 91, 119, 121. Shürã, 68, 72, 76, 77. Shu‘übiya, 107. Sicília, 99, 127, 132, 133, 134, 135, 136, 185.
Siffin, 72, 73. «Sinceros Irmãos de Basra», Smd, 88. Sira, 43. Siracusa, 133. Slráf, 101. Siria, 22, 23, 24, 27, 32, 38, 73, 95, 96, 106, 107, 131, 169, 171, 172, 174, 175, 179, 187, 197, 198. Sirios, 29, 72.
128.
61, 168, 182,
Toledo, 137, 142. Trajano, 33. Transjordânia, 197, 198. Trípoli, 101, 129, 169, 182. Tughrul Bey, 166. Tunísia, 13, 23, 110, 126, 127, 198. Turcos, 19, 165, 166, 178, 179. Turquia, 123, 174. ‘Ubaidallah, 78. ‘Ubaidallah, Imam, 126. ‘Ubaidallah ibn al-Habhãb, 90. U bulla, 95, 101, 120. ‘Ukáz, Mercado de, 41. ‘Ulm á’, 95, 152. Ulfa, 124. ‘Umãn, 95. ‘Umar, Califa, 47, 59, 65, 66, 68, 69, 71, 72, 105, 132. ‘Umar ibn ‘Abd al-Az7z, 72, 88, 89, 155. Umma, 50, 51, 52, 53, 54, 60. Usãma ibn Munqidh, 171. ‘Ushr, 66, 80, 89, 90. Ustãdhsis, 117. ■Uthmân, Califa, 47, 68, 69, 70, 71, 75, 132. ‘Uzza, 36.
Sistan, 100. Sonpádh, 116. Suábia, Dinastia, 136 Sudão, 99, 189. Suécia, 101. Süfis, 180, 183. Sulaim, Tribo, 164, 165. Sulaimãn (Califa Omíada), 88. Sulaimãn ibn Kathir, 91. Sunna, 36. Sunnl, 83. TabarI, 119. Tabaristán, 100. Tahlr, 110. Ta’if, 47. Talha, 69, 71. Tamerião — ver Timur. Tarento, 133. Tarlf, 136. Tarifa, 136. Tãriq, 137. Tasso, 19. Tauro, 63. Thamüd, 34. Tibérias, 101. Tigre, R io, 95, 174. Tiháma, 28. TImQr. 176. TinnTs, 100. Tiráz, 100. Tiro, 172.
Valéncia, 101. «Velho da Montanha», 168. Vermelho, Mar, 27, 28, 35, 129, 169, 178. Visigodos, 137. Vizir — ver Wazir. Wahballát, 34. Wahhábismo, 181, 195. WalTd (Califa Omíada), 88. Wãsit, Cidade, 95, 120. Wãthiq (Califa Abássida), 111. Wazir, 97, 109, 122, 177. Winckler-Caetani, Teoria, 29. Wufüd, 54, 76, 77.
223
Xerxes, 16. Xiitas — ver Shl‘a.
Yaziditas, 24. Yüsuf ibn Tashfln, 143.
Yamãma, 95. Y a‘qQbI, 95.
Zaiditas, 24. Zakãt, 54. ZangT, 171, 172. Zanj, 118, 119, 120, 125. Zenóbia, 34. Ziryãb, 141. Ziyãd, 77, 78. Ziyãdataliah, 133. Zoroastrianos, 116, 149. Zubair, 69, 71.
Ya‘qüb ibn Killis, 127, 129. YãqOt, 117, 180. Yarmuk, R io, 39, 61. Yathrib, 38, 48. Yazdajird, 62. YazTd (Califa Omíada), 77, 78, 85, 86, 89.
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