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M a n i f e s t o d o S u r r e a l i s m o S e g u n d o M a n i f e s t o d o S u r r e a l i s m o P e i x e S o l ú v e l C a r t a à s V i d e n t e s P o s i ç ã o P o l í t i c a d o S u r r e a l i s m o (e x c e r t o s ) P r o l e g ô m e n o s a u m T e r c e i r o M a n i f e s t o d o
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Rio de Ja Janei neiro ro 2001 20 01
« MA NIFESTES D U SURREALISME » de André BRE TO N World Copyright © S.N.E. Pauvert, 1962, ©Pauvert:, département de la Librairie Arthème Fayard, 2000. C et ouvrage, pub lié dans le cadre cadre du program me d’aid d’aidee à la la publication, béné bé néfic ficie ie d u sou so u tien tie n d u M inis in istè tère re françai fran çaiss des Affaires Affai res Etran Et rangè gères res.. Este livr livro, o, publicado no âmbito âm bito do d o programa de participação participação à publicação, publicação, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores Coleçã oleçãoo Fontes da M od odernid ernidade ade Coordenação: Guilherm e Castelo Branco Capa DU OTOM OMDE DESIG SIGN N Clarice Soter e Diana Dia na Acselrad Acselrad * DUOT
Catalogação Catalogação na fonte do D epartam ento Nacional do Livr Livro. o. B844m Breton, André, 1896-1966. Manifestos do Surrealismo / André Breton ; tradução: Sergio Pachá. - Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001 .
396p.; l4X21cm. - (Fontes da Modernidade) ISBN 85-85936-43-6 (broch.) Tradução de: Manifestes du Surréalisme 1. Surrealismo. I. Pachá, Sergio. II. Título. III. Série: (Fontes da Modernidade) CDD-848
N A U E D I T O R A
Ed itora Trarepa Ltda Editora Av. Nossa Senhora de Fátima, 155 Eng° Paulo Paulo de Frontin — RJ — CE P 26 650-000 Telef Telefax ax:: (21) (21) 254 2 5422 4272 42 72 — email: email:
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índice
Prefáci Prefácioo à reim reim pressão pressão do M an ifesto .......................
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M a n ife if e s to d o S u r re a lis li s m o ..... .............................. ...................... ..........................
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P e ix ixee S o l ú v e l ...... ......... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...
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A dv ertência para a reedi reedição ção do S e g u n d o M a n i f e s t o .... .............................................................................................. 141 Segundo Manifesto do Surrealismo....................... 147 C a r ta às V i d e n t e s .... .................................................................................................................2 .2 2 7 Posição Política do Surrealismo (excertos) Prefácio ........................................................................... 237 Posição política da arte de hoje .................................. 2 4 $ Discurso no congresso dos escritores ......................... 2 7 5 N o tem te m p o em q u e os surrealistas surreal istastinham tinham razão .......... 2 8 7 Situação surrealista do objeto ......................................303 Prolegôm enos a um T ercei er ceiro ro M anifesto anifesto do S u r r e a lis li s m o o u N ã o ..... ........ ..... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... 3 3 5 D o Surreal Surr ealis ism m o em suas suas O bras V iv a s ..................... 3 5 3
N o t a s ........................................... ................................................................. ....................................... ................. 3 6 5
Pref
á c io à r e i m p r e s s ã o d o
( 1929 )
M a n
if e s t o
Era de prever que este livro mudasse e, na medida em que punha em jogo a existência terrestre, responsabilizando-a, embora, por tudo o que ela comporta aquém e além dos limites que se lhe costuma atribuir, que sua sorte dependesse intimamente de minha própria sorte, que con siste, por exemplo, em ter e nao ter escrito livros. Os que se me atribuem nao parecem exercer sobre mim qualquer influência mais decisiva que muitos outros e, provavel mente, deles nao tenho o entendimento perfeito que ou tras pessoas podem ter. A despeito de quaisquer contro vérsias porventura suscitadas pelo Manifesto do Surrealismo entre 1924 e 1929, e sem discutir a validade das posições pró e contra, não padece dúvida que, alheia a esse debate, a aventura humana continuava a se desenrolar com um mínimo de riscos, de quase todos os lados ao mesmo tem po, segundo os caprichos da imaginação, que, sozinha, torna as coisas reais. Deixar reeditar uma obra própria, como se fosse uma obra alheia mais ou menos lida, eqüi vale a “reconhecer” já nem digo um filho de feições com provadamente amáveis e compleição robusta, mas algo que, não importa quão denodadamente tenha existido, já não
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pode existir. Nada posso fazer, salvo condenar-me por, em tudo e por tudo, não ter sido profeta. Não deixa de ser atual a famosa pergunta que, “com voz muito velha e can sada”, Arthur Cravan fez a André Gide: “Senhor Gide, a quantas andamos em relação ao tempo?” E Gide, sem se dar conta de qualquer malícia: “Quinze para as seis”. Ah, não se pode negar que vamos mal, vamos muito mal em relação ao tempo. Nesta, como em outras coisas, o reconhecimento e a negação se interpenetram. Não entendo nem por que nem como, sobretudo como, ainda estou vivo, nem, com dobradas razões, aquilo que vivo. Embora de um sistema em que creio e ao qual pouco a pouco me adapto, como o surrealismo, reste e deva a restar sempre muito em que me absorver, ainda assim jamais poderá ele fazer de mim aquele que eu gostaria de ser, a despeito de toda a condescendên cia com que me trato. Condescendência relativa, se com parada com a que outros tiveram para comigo (ou para com alguém que não sou eu, não sei). Nada obstante, es tou vivo e descobri até que tenho apego à vida. Quanto mais me sucedeu atinar com razões para dar cabo dela, tanto mais me surpreendi a admirar algum taco do assoalho: um taco em tudo como a seda, e uma seda tão bela como a água. E eu amava essa lúcida dor, como se o seu drama universal tivesse, então, passado através de mim e, de repente, eu fosse digno dele. Mas eu a amava à luz, como direi, de coisas novas que jamais vira brilhar assim. Foi graças a isso que eu compreendi que, apesar de tudo, a vida era dada, que uma força independente da força de exprimir-se e fazer-se compreender espiritualmente presi
dia, no que diz respeito ao homem vivo, a reações de inte resse inestimável cujo segredo morrerá com ele. Tal segre do não me desvendou a mim mesmo e o fato de reconhecer-lhe a existência em nada diminui minha declarada inaptidão para a meditação religiosa. Creio apenas que entre meu pensamento, tal como se patenteia nos textos que se lêem sob a minha assinatura, e minha pessoa, a quem a natureza verdadeira de meu pensamento obriga ainda não sei bem a que, há um irrevisível mundo de fan tasmas, de realizações de hipóteses, de apostas perdidas e de mentiras, que, ao cabo de uma rápida exploração, re solvi não corrigir, por pouco que fosse, nesta obra. Para tanto seria necessária toda a vaidade do espírito científico, toda a puerilidade dessa necessidade de distância de que resultam as ásperas circunspecções da História. Uma vez mais, fiel a minha disposição de superar qualquer obstá culo sentimental, não me deterei a julgar os companhei ros da primeira hora que se intimidaram e arrepiaram ca minho, não me entregarei à vã substituição de nomes que poderia dar a este livro um ar de atualizado. Arriscandome a lembrar apenas que os mais preciosos dons do espíri to não resistem à perda de uma partícula de honra, mais não farei que afirmar minha confiança inabalável no prin cípio de uma atividade que nunca me decepcionou, que me parece merecer uma dedicação mais generosa, absolu ta e louca do que nunca, pela simples razão de que som en te ela é capaz de outorgar, ainda que de longe em longe, os raios transfiguradores de uma graça que, em tudo e por tudo, insisto em opor à graça divina.
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M a n i f e s t o d o S u r r e a l is m o
( 1924 )
Tão forte é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, vale dizer, na vida real, que, no fim de con tas, essa crença se perde. O homem, esse sonhador defini tivo, cada dia mais descontente com seu destino, passa penosamente em revista os objetos que foi levado a utili zar, objetos que lhe vieram ter às mãos por obra de sua indolência ou de seu esforço, quase sempre de seu esforço, visto que ele consentiu em trabalhar ou, quando menos, não lhe repugnou tentar a sorte (aquilo que ele chama de sorte!) Seu quinhão atual é uma grande modéstia: ele sabe que mulheres possuiu, em que aventuras ridículas se me teu; pouco se lhe dá de sua riqueza ou pobreza, no que a elas diz respeito, ele é como um recém-nascido; e, pelo que toca à aprovação de sua consciência moral, estou pron to a adm itir que ele a dispensa sem qualquer problema. Se alguma lucidez lhe resta, a única coisa que ele pode fazer é voltar-se para a própria infância, que, embora trucidada pelo zelo de seus domesticadores, nem por isso lhe parece menos rica em sortilégios. Aí a ausência de todo rigor co nhecido faculta-lhe a perspectiva de várias vidas vividas simultaneamente; ele se enraíza nessa ilusão; e não quer
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conhecer senão a facilidade momentânea, extrema, de to das as coisas. Todas as manhãs as crianças partem sem qualquer inquietação. Tudo está perto, as piores condi ções materiais são excelentes. Os bosques são brancos ou negros, nunca se dormirá. Mas a verdade é que não seria possível ir tão longe, não se trata apenas de distância. As ameaças se acumulam, é preciso ceder e dar de mão parte do terreno por conquis tar. Aquela imaginação que não reconhecia limites, agora só se lhe permite funcionar de acordo com as leis de uma utilidade arbitrária; e ela, incapaz de sujeitar-se por muito tempo a esse papel subalterno, por volta dos vinte anos prefere, em geral, abandonar o homem a seu destino opa co. Ainda que mais tarde ele tente remediar esse estado de coisas, por sentir que, pouco a pouco, vieram a faltarlhe todas as razoes de viver, uma vez que se tornou inca paz de estar à altura de uma situação excepcional como o amor, magros serão os resultados desse esforço. E a causa disto é que, já agora, ele pertence de corpo e alma a uma imperiosa necessidade prática, que não admite ser esque cida. A todos os seus gestos faltará amplidão; a todas as idéias envergadura. De quanto lhe acontece ou pode acon tecer ele só perceberá o que relaciona aquele acontecimento a uma multidão de acontecimentos semelhantes, aconte cimentos de que ele não participou, acontecimentos ma logrados. Que digo, num destes acontecimentos mais tranqüilizadores em suas conseqüências do que os outros é que se baseará seu julgamento. Em hipótese alguma ele verá nisso a própria salvação.
Querida imaginação, aquilo que mais amo em ti é o fato de não perdoares. A palavra liberdade é a única que ainda me exalta. Considero-a apta a sustentar, indefinidamente, o velho fa natismo humano. Ela responde, sem dúvida alguma, a minha única aspiração legítima. No meio de todas as des graças que herdamos, cumpre reconhecer que nos foi dei xada a maior liberdade de espírito. Cabe-nos a nós não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à condição de escra va, ainda quando disso dependesse o que é grosseiramen te chamado de felicidade, seria atraiçoar o supremo imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada um. Somente a imaginação é capaz de mostrar-me aquilo que pode ser e isto só já é razão bastante para que se levante um pouco a terrível interdição; e é também razão bastante para que eu me abandone a ela sem medo de enganar-me (como se fosse possível enganarmo-nos ainda mais). Em que ponto começa ela a ser nociva e deixa de existir a se gurança do espírito? Para o espírito a possibilidade de er rar nao decorrerá, antes, da contingência do bem? Resta a loucura, “a loucura que se trancafia”, como já houve quem dissesse tão acertadamente. Esta ou a ou tra... Sabem todos, com efeito, que a única razão pela qual os loucos estão internados é um pequeno núm ero de atos legalmente repreensíveis e que, na ausência de tais atos, a liberdade deles (aquilo que se vê da liberdade deles) não estaria ameaçada. Que eles, em maior ou menor grau, sejam vítimas de sua imaginação, estou pronto a admitilo, no sentido em que ela os induz a não observar deter minadas regras cuja inobservância faz com que nossa
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espécie se sinta ameaçada, como todos têm o desprazer de saber. Mas a profunda indiferença que eles demonstram em relação às críticas que lhes fazemos e até mesmo às diversas punições que lhes são infligidas leva a crer que eles haurem um grande conforto na própria imaginação, que eles saboreiam o próprio delírio a ponto de suporta rem que ele não tenha validade para os outros. E a verda de é que as alucinações, as ilusões, etc., constituem uma fonte considerável de prazer. Também a sensualidade per feitamente ordenada tem aí um papel a desempenhar, e estou certo de que muitas noites me agradaria domesticar aquela linda mão que, nas últimas páginas de A Inteligên c i a deTaine, se entrega a curiosas transgressões. As con fidências dos loucos são algo que eu passaria toda minha vida a suscitar. Eles são criaturas de uma honestidade es crupulosa cuja inocência só se pode comparar à minha. Foi preciso que Colombo embarcasse na companhia de loucos para descobrir a América. E é de ver como essa loucura tomou corpo e tem durado.
Não é o temor da loucura que nos obrigará a deixar a bandeira da imaginação a meio pau. É preciso instruir o processo da atitude realista, de pois do processo da atitude materialista. Esta, mais poéti ca, aliás, que a precedente, pressupõe no homem um orgulho decerto monstruoso, mas não uma nova e com pleta decadência. Cabe ver nela, antes de mais nada, uma feliz reação contra certas tendências ridículas do espiritu-
alismo. Enfim, ela não é incompatível com certa elevação do pensamento. A atitude realista, pelo contrário, inspirada, de San to Tomás de Aquino a Anatole France, no positivismo, se me afigura hostil a qualquer arrancada intelectual e mo ral. Tenho-lhe horror, pois ela é fruto da mediocridade, do ódio e de presunção rasteira. É dela que nascem, hoje em dia, todos esses livros ridículos que insultam a inteli gência. C ontinuam ente vemo-la fortalecer-se nos jornais, pondo a perder os esforços da ciência e da arte, ao mesmo tempo que se empenha em adular os gostos mais reles do público: a clareza que tende a confundir-se com a toleima, uma vida digna de cães. C om tudo isso vem a sofrer a atividade dos melhores espíritos: a lei do menor esforço acaba por se impor a eles, como aos demais. Uma conse qüência divertida desse estado de coisas na literatura, por exemplo, é a abundância de romances. Cada qual contri bui com sua pequena “observação”. Sentindo a necessida de de uma depuração, propôs Paul Valéry, recentemente, reunir numa antologia o maior número possível de frases de abertura de romances, na insanidade das quais ele de positava grandes esperanças. Buscar-se-iam exemplos nos autores mais famosos. Tal idéia ainda honra a Paul Valéry, que, não faz muito tempo, falando de romances, me asse verava que jamais se prestaria a escrever A marquesa saiu às cinco horas. Mas terá ele mantido sua palavra? Se o estilo de informação pura e simples, de que a frase mencionada oferece um exemplo, é praticamente o único que se encontra nos romances, tal fato, queiramos ou não, se deve a que a ambição dos autores tem pernas
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curtas. O caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada uma de suas anotações dá a impressão de que eles estão se divertindo às minhas custas. Não me dispensam de saber as menores hesitações da personagem: será louro? Como se chamará? Encontrá-lo-emos pela primeira vez no verão? Perguntas a que se responde como o acaso man da e de uma vez por todas. O único poder discricionário que me resta é o de fechar o livro, coisa que nunca deixo de fazer nas imediações da primeira página. E as descri ções! Nada há que se compare à insignificância delas: mais não são que imagens de catálogo sobrepostas, e o autor, que se sente autorizado a amontoar tantas quantas lhe der na telha, vale-se da oportunidade para me mostrar furti vamente seus cartões postais e se esforça por obter m inha anuência em matéria de lugares-comuns: O pequeno cômodo onde o rapazfo i introduzido tinha paredes forradas de papel amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente lançava uma luz crua sobre as coisas... O aposento não tinha nada de especial, Os móveis, de madeira amarela, eram todos muito velhos. Um sofá, com um grande encosto reclinado, uma mesa oval de fronte do sofá, um toucador e espelho encostados ao tremô, cadeiras ao longo das paredes, duas ou três gravuras sem valor que representavam jovens alemãs com pássaros nas mãos — eis a que se reduzia o mobiliário}
Que o espírito se proponha, ainda que de passagem, ocupar-se com semelhantes assuntos é coisa que não estou disposto a admitir. Haverá quem sustente que essa descri
ção de nível escolar está situada no lugar certo e que, a esta altura do livro, o autor tem suas razões para me can sar com ela. Nem por isso ele deixa de perder seu tempo, visto que me recuso a entrar nesse aposento. A preguiça ou o cansaço dos outros não me farão mudar de idéia. Tenho uma noção demasiado instável da continuidade da vida para permitir-me nivelar meus melhores momentos com os momentos de depressão e de fraqueza. Entendo que é melhor calar-se quem nada está sentindo. E que fique bem claro que eu não condeno a falta de originali dade enquanto falta de originalidade. Digo apenas que nao tenho por hábito alardear os momentos nulos de minha vida, que pode ser indigno de qualquer homem cristalizar os momentos que lhe pareçam tais. Seja-me permitido nao tomar conhecimento dessa descrição de interior: dessa e de muitas outras. Mas vamos devagar, que estou entrando no domí nio da psicologia, assunto sobre o qual não tenho a menor intenção de fazer chistes. O autor define o caráter de uma personagem e, uma vez feito isto, põe seu herói a peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, esse herói, cujas ações e reações estão admi ravelmente previstas, não deve frustrar —ainda quando pareça fazê-lo - os cálculos de que é objeto. Os vagalhões da vida podem dar a impressão de arrebatá-lo, de enrolálo, de fazê-lo descer, mas ele nunca vai deixar de ser um desses seres humanos formados. Simples partida de xadrez que me desinteressa intensamente, visto que considero o homem, seja ele quem for, um adversário medíocre, O que eu não consigo tolerar são essas discussões chinfrins
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sobre tal ou qual peripécia, uma vez que não se trata, aqui, nem de ganhar nem de perder. E se nada disso vale a pena, se a razão objetiva presta, neste caso, um terrível desserviço aos que a ela recorrem, não seria melhor esquecer essas categorias? “A diversidade é tão ampla que todos os tons de voz, todos os modos de andar, tossir, assoar-se, espir rar. .. ”3 Se num cacho de uvas não há duas iguais, por que tenho eu de descrever uma uva baseando-me em outra, em todas as outras, ou supor que ela se presta a ser comi da? A mania incurável que consiste em reduzir o desco nhecido ao conhecido, ao classificável, só serve de entorpecer os cérebros. O desejo de analisar prevalece so bre os sentimentos.4 Daí resultam longas exposições cuja força de persuasão provém apenas de sua própria estra nheza e que só impressionam ao leitor por recorrerem a um vocabulário abstrato, de resto muito mal definido. Se as idéias gerais que a filosofia se propôs debater indicas sem por este modo sua incursão definitiva num domínio mais amplo, eu seria o primeiro em me alegrar. Mas isto ainda não passou de afetação: até aqui, as tiradas espiritu osas e as outras maneiras de salão estão apostadas em nos escamotear o verdadeiro pensamento, mais interessado em se descobrir a si mesmo do que em lograr triunfos duvido sos. Julgo que todo ato traz em si sua justificação, quando menos para aquele que foi capaz de cometê-lo, e que ele é dotado de um poder irradiante que a mais pequena glosa pode enfraquecer. Por obra dessa glosa ele deixa até, em certo sentido, de se produzir. E nada ganha em ser assim distinguido. Os heróis de Stendhal estão sujeitos às apre ciações deste autor, apreciações mais ou menos felizes que
nada acrescentam à glória deles. Para os descobrirmos em sua pura verdade temos de buscá-los onde Stendhal os perdeu. Vivemos, ainda, sob o reinado da Lógica: este é, na turalmente, o ponto aonde eu queria chegar. Mas, hoje em dia, os métodos da Lógica só servem para resolver pro blemas de interesse secundário. O racionalismo absoluto, ainda em moda, não nos permite considerar senão fatos estreitamente relacionados com a nossa experiência. Por outro lado, os fins lógicos nos escapam. A própria experi ência, escusa acrescentar, passou a ter seus limites estabe lecidos. Ela se move para lá e para cá dentro de uma jaula, de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Também ela se funda na utilidade imediata e é guardada pelo senso co mum, Socolor de civilização, a pretexto de progresso, che gou-se a banir do espírito tudo que, com razão ou sem ela, pode ser tachado de superstição ou de quimera; a proscre ver qualquer modo de busca da verdade que não se con forme ao uso geral. Foi, ao que parece, por obra do maior acaso que recentemente se expôs à luz uma parte do uni verso mental - de longe a mais importante, segundo en tendo - pela qual já afetávamos desinteresse. Cumpre sermos gratos às descobertas de Freud. Baseada nelas deli neia-se, enfim, uma corrente de opinião graças à qual o explorador humano poderá ir mais longe em suas investi gações, uma vez que estará autorizado a não levar em con ta tão-somente as realidades sumárias. É possível que a imaginação esteja prestes a recobrar seus direitos. Se as profundezas de nossa mente albergam estranhas forças,
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capazes de aumentar as forças da superfície ou de lutar vitoriosamente contra elas, é do maior interesse capturálas: capturá-las para em seguida, se for o caso, submetê-las ao controle da razão. Os próprios analistas nisto só têm a ganhar. Mas é preciso notar que não há nenhum meio designado a priori para levar a cabo este empreendimen to; que, até segunda ordem, ele pode ser considerado tan to da alçada dos poetas quanto da dos homens de ciência; e que o seu bom êxito não depende dos métodos mais ou menos arbitrários que serão seguidos.
Foi com inteira razão que Freud fez dos sonhos ob jeto de seu estudo crítico. Com efeito, é inadmissível que parte tão considerável da atividade psíquica (já que, pelo menos do nascimento do homem até à morte, o pensa mento não apresenta qualquer solução de continuidade, a somatória dos momentos em que sonhamos, do ponto de vista temporal, ainda que não consideremos senão os so nhos em estado puro, que ocorrem durante o sono, não é inferior à somatória dos momentos de realidade, ou, mais precisamente, dos momentos de vigília) tenha, até aqui, atraído tão pouca atenção. A extrema diferença de impor tância, de gravidade, que aos olhos do observador ordiná rio têm os acontecimentos da vigília e os do sono sempre me encheu de espanto. É que, ao cessar de dormir, o ho mem é, acima de tudo, um joguete da memória, a qual, em circunstâncias ordinárias, se compraz em retraçar-lhe debilmente as circunstâncias do sonho, em privar este úl timo de quaisquer conseqüências atuais e em fazer com
que o único determinante parta do ponto em que ele ima gina tê-lo deixado algumas horas antes: esta firme espe rança, aquela preocupação. Ele tem a ilusão de estar dando prosseguimento a algo que vale a pena. E assim fica o so nho reduzido a um parêntese, como a noite. E, do mesmo modo que ela, em geral eles nada elucidam. Esse estranho estado de coisas dá ensejo a algumas reflexões: Io Dentrò dos limites em que ele atua (permita-seme dizer atuar), o sonho, ao que tudo indica, é contínuo e aparenta ser organizado. Somente a memória se arroga o direito de nele introduzir cortes, de não levar em conta as transições e de nos apresentar uma série de sonhos de pre ferência ao sonho. Da mesma forma, não temos, em qual quer momento que seja, senão uma noção distinta das realidades, cuja coordenação só pode ser efetuada com a intervenção da vontade.5 O que importa notar é que nada nos autoriza a pressupor uma dissipação maior dos ele mentos constitutivos do sonho. Lamento tratar disto usan do de uma fórmula que, em princípio, exclui o sonho. Quando teremos lógicos e filósofos dormentes? Eu gosta ria de dormir, para poder entregar-me aos que dormem, do mesmo modo como me entrego aos que me lêem, com os olhos bem abertos: para pôr cobro à prevalência, nesta matéria, do ritmo consciente de meu pensamento. Talvez que o meu sonho da noite passada tenha dado prossegui mento ao da noite anterior e continue, na próxima noite, com um rigor meritório. E bem possível, como se costuma dizer. E, uma vez que está longe de provado que, ao fazer isso, a “realidade” que me ocupa subsiste no estado de so
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nho, que ela não soçobra no imemoriável, por que não hei de conceder ao sonho aquilo que, por vezes, recuso à realidade, vale dizer, esse valor de certeza em si mesma que, num momento futuro, não estará exposta ao meu repúdio? Por que não hei de esperar das pistas que o so nho me fornece mais do que espero de um grau de consci ência cada vez mais elevado? Porventura também o sonho não pode ser usado na resolução das questões mais funda mentais da vida? São essas questões as mesmas, num e noutro caso e, porventura, já existem no sonho? Por acaso está o sonho menos sobrecarregado de sanções do que tudo o mais? Estou envelhecendo; e é possível que, mais do que esta realidade a que suponho ater-me, seja o sonho, a in diferença que lhe voto, que me faz envelhecer. 2o Volto, uma vez mais, ao estado de vigília. Vejome obrigado a considerá-lo um fenômeno de interferên cia. A mente, nessas condições, não apenas revela uma estranha tendência à desorientação (de que são indícios os lapsos e enganos de toda sorte cujos segredos estamos co meçando a penetrar), mas também não parece, em seu funcionamento normal, obedecer a algo diferente das su gestões que lhe vêm dessa noite profunda, cujo testemu nho invoco. Por mais condicionada que esteja, seu equilíbrio é relativo. Ela mal ousa exprimir-se e, se o faz, limita-se a constatar que esta idéia ou aquela mulher produz-lhe uma impressão. Quanto a dizer que espécie de im pressão, isto já seria pedir demasiado: trata-se de uma impressão subjetiva e nada mais. Esta idéia ou aquela mulher perturba-a, indu-la a ser menos severa. Por um segundo consegue isolá-la de seu dissolvente e depositá-la
no céu, sob a forma do belo precipitado que ela pode ser, que ela é. Em desespero de causa, ela invoca o Acaso, essa divindade mais obscura que as demais, ao qual atribui to dos os seus extravios. Quem me assegura que o ângulo sob o qual se apresenta esta idéia que a sensibiliza, que aquilo de que ela gosta no olhar daquela mulher não é, exatamente, o que a vincula a seu sonho, o que a acorrenta a dados que por culpa sua se perderam? E se tudo fosse diferente, de que não seria ela capaz? Eu gostaria de lhe dar a chave deste corredor. 3o O espírito do homem que sonha se satisfaz ple namente com o que lhe sucede. Já não se coloca a angus tiante questão da possibilidade. Mata, voa mais depressa, ama tanto quanto desejares. E, se morreres, não estás cer to de que te hás de despertar de entre os mortos? Deixa-te conduzir, os acontecimentos não consentem que os retar des. Tu não tens nome. A facilidade de tudo é inestimável. Que razão, pergunto eu, que razão tão mais vasta que a outra faz com que os sonhos pareçam tão naturais e faz com que eu acolha uma quantidade de episódios cuja es tranheza me desconcertaria no momento mesmo.em que escrevo estas palavras? Nada obstante, posso crer nos meus olhos e orelhas: este belo dia raiou, aquele animal falou. Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra o encantamento demasiado rápido, tal acontece porque o homem foi levado a fazer uma idéia insuficiente da expiação. 4o A partir do momento em que o sonho for sub metido a um exame metódico, em que, mediante um pro cesso ainda por descobrir, formos capazes de descrever o
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sonho em sua inteireza (e isto pressupõe uma disciplina da memória que abranja várias gerações; mas, ainda as sim, comecemos a registrar os fatos mais salientes), em que sua curva se traçar com regularidade e amplidão inau ditas, será lícito esperar que os mistérios que não são mis térios cedam o passo ao grande Mistério. Eu creio que, de futuro, será possível reduzir esses dois estados aparente mente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de sobre-realidadef se é lícito chamá-la assim. Foi para conquistá-la que me pus a caminho, certo de não chegar a alcançá-la mas, ao mes mo tempo, dando tão pouca importância a minha morte que não me privo de calcular antecipadamente algo do prazer inerente à sua posse. Conta-se que, em época não distante, o poeta SaintPol-Roux diariamente, antes de adormecer, mandava afi xar um aviso à porta de seu solar de Camaret: O p o e t a ESTÁ TRABALHANDO.
Ainda haveria muito que dizer, mas eu não quis se não tocar de leve e de passagem num assunto que, por si mesmo, pediria uma exposição muito mais longa e gran de rigor; mais tarde voltarei a ele. De momento, minha intenção era denunciar o ódio ao maravilhoso que grassa no espírito de certos indivíduos e o ridículo de que que rem cobri-lo. Digamo-lo claramente e de uma vez por to das: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de mara vilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo.
No âmbito da literatura, só o maravilhoso é capaz de fecundar as obras pertencentes a um gênero inferior, como o romance e, de modo geral, tudo o que participa do gênero narrativo. O Monge, de Lewis, prova-o admira velmente. O sopro do maravilhoso penetra-o de todo em todo. Muito antes que o autor libere suas personagens de quaisquer peias temporais, já se sente que elas estão pron tas a se com portar com uma altivez sem precedentes. Essa paixão da eternidade que os agita incessantemente confe re acentos inesquecíveis ao seu e ao meu tormento. Se gundo entendo, este livro exalta apenas, do começo ao fim e da maneira mais pura que se possa conceber, aquela parte do espírito que aspira a desprender-se da terra; e julgo que, uma vez desembaraçado de uma parte mínim a do enredo romanesco, tributário da moda de seu tempo, converter-se-á num modelo de precisão e inocente gran deza.7 Parece-me que nunca se fez náda melhor e que a personagem Matilda, em particular, é a criação mais comovente que se possa creditar a esse tipo figurativo de literatura. Ela não é tanto uma personagem quanto uma tentação contínua. E, se uma personagem não é uma ten tação, que coisa será? Tentação extrema é o que ela é. O ditado “A quem ousa nada é impossível” obtém, em O Monge , demonstração cabal. Nele as aparições desempe nham um papel lógico, uma vez que o espírito crítico não se apropria delas para contestá-las. Da mesma forma o castigo de Ambrósio é tratado como algo legítimo, por quanto o espírito crítico finalmente o aceita como desfe cho natural.
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Pode parecer arbitrário que eu proponha este mo delo, ao discorrer sobre o maravilhoso, de que tanto se ocupam as literaturas nórdicas e as literaturas orientais, para não dizer nada da literatura religiosa de todos os pa íses. A razão por que o faço é que a maioria dos exemplos que essas literaturas poderiam fornecer-me estão eivados de puerilidades, já que se destinam às crianças. Desde cedo são estas apartadas do maravilhoso e, quando crescem, já não retêm uma virgindade de espírito que lhes permita sentir extremo prazer na leitura de Pele de Burro? Por mais encantadores que sejam, o adulto julgaria rebaixar-se caso se nutrisse de contos de fadas, e eu concedo que nem to dos são adequados à idade dele. A trama de inverossimilhanças tem de ser cada vez mais tênue, à medida que nos tornamos mais velhos, e o fato é que até hoje estamos à espera de aranhas capazes de tecê-la... Mas as faculdades não mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito, os acasos, o gosto pelo luxo são recursos para os quais nunca se apelará em vão. Há contos por escrever para os adultos, contos ainda quase fabulosos. O maravilhoso varia de época para época; ele parti cipa, misteriosamente, de uma espécie de revelação geral de que só nos chegam pormenores: as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo apto a mexer com a sensibilidade humana por algum tempo. Nesses quadros que nos fazem sorrir pinta-se sempre, não obstante, a irremediável inquietação humana, e esta é a razão pela qual os tomo em consideração e os julgo inse paráveis de certas produções geniais que, mais do que ou
tras, são por ela dolorosamente afetadas. São as forcas de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Eles coincidem com um eclipse do bom gosto que me sinto talhado para suportar, já que, para mim, o bom gosto se confunde com um a grande nódoa. No mau gosto do meu tempo esforço-me por ir mais longe que todos os demais. Tivesse eu vivido em 1820, a “Freira Sangrenta” seria coi sa minha, como meu seria o uso exagerado daquele “Dis simulemos” sonso e trivial de que fala o paródico Cuisin, e meu ainda, uma e muitas vezes, o percorrer em metáfo ras gigantescas, como lá diz ele, todas as fases do “Disco Prateado”. Por hoje estou pensando num castelo cuja me tade não está, necessariamente em ruínas; este castelo me pertence, visualizo-o num recanto agreste, não muito lon ge de Paris. Suas dependências são inumeráveis e, no que respeita ao interior, ele foi terrivelmente restaurado, de sorte que nada ficasse a desejar em matéria de conforto. H á carros estacionados junto à porta, escondida pela som bra das árvores. Alguns dos meus amigos vivem aqui em caráter permanente: ali vai Louis Aragon, que está saindo e mal tem tempo de saudar-vos. Philippe Soupault levan ta-se com as estrelas e Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Lá estão Robert Desnos e Roger Vitrac que tentam decifrar no parque um velho edito sobre os duelos; Georges Auric, Jean Paulhan; Max Morise, que rema tão bem, e Benjamin Péret, enfronhado em suas equa ções de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour e Georges Limbour (há uma sebe inteira de Georges Limbours); e Mareei Noll; lá estáT. Fraenkel ace nando-nos de seu balão cativo, e lá estão Georges Malkine,
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Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J.-A. Boiffard, e mais Jacques Baron e o irmão, ambos belos e cordiais, e ainda tantos outros, além de mulheres simples mente deslumbrantes. Nada é bom demais para esses jo vens; para a riqueza seus desejos são outras tantas ordens. Francis Picabia vem-nos visitar e, na semana passada, re cebemos um certo Mareei Duchamp, que ainda não co nhecíamos. Picasso está caçando nos arredores. O espírito de desmoralização fixou residência no castelo e é com ele que temos de lidar cada vez que vêm à baila as relações com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre aber tas e, se bem me explico, não começamos, aqui, por “agra decer’ aos outros. De resto, a soledade é vasta e não nos encontramos toda a hora. Ao fim e ao cabo, o essencial não consistirá em sermos senhores de nós mesmos, se nhores das mulheres, e também senhores do amor? Condenar-me-ão por mentira poética: entrarão to dos a repetir que eu moro na Rua Fontaine e que desta água não beberão. Ora que dúvida! Mas o castelo de que lhes faço as honras, estarão eles tão certos de que não pas sa de uma imagem? E se, no fim de contas, meu palácio realmente existisse? Meus hóspedes lá estão para prová-lo; seus caprichos são a estrada luminosa a ele conducente. Quando lá estamos, vivemos, realmente, de nossas fantasi as. E como poderia o que um de nós faz incomodar a outro, lá, ao abrigo das perseguições sentimentais e no ponto de encontro das oportunidades?
O hom em propõe e dispõe. Somente dele depende o pertencer a si próprio inteiramente, isto é, o manter em estado anárquico o bando cada vez mais temível de seus desejos. A poesia lho ensina. Nela se encontra a perfeita compensação das misérias que sofremos. Ela também pode ser uma organizadora, por pouco que, afligido por uma decepção menos íntima, alguém se lembre de levá-la a sé rio. Oxalá chegue o dia em que ela decrete o fim do di nheiro e rompa sozinha o pão do céu na terra! Ainda haverá assembléias nas praças públicas e movimentos nos quais nunca esperastes participar. Adeus, escolhas absurdas, vi sões do abismo, rivalidades, aturadas paciências, fuga das estações, ordem artificial das idéias, rampa do perigo, tem po para tudo! Basta que alguém se dê ao trabalho de pra ticar a poesia. Não caberá a nós, que dela já vivemos, trabalhar por fazer prevalecer o que consideramos nosso mais amplo informe? Pouco importa a desproporção que porventura haja entre esta defesa e a ilustração que se lhe seguirá. Tratavase de remontar às fontes da imaginação poética e, o que é mais, ali permanecer. E isto é algo que não pretendo ter feito. Quem quer que deseje estabelecer-se nessas regiões distantes, onde tudo, a princípio, parece ir tão mal, preci sa assumir uma grande responsabilidade; e ainda mais se quer levar consigo companhia. Ainda assim, nunca se pode ter a certeza de estar realmente lá. Já que o aborrecimento é inevitável, sempre se pode fazer alto em outro lugar. Mas a verdade é que, hoje em dia, uma seta indica o rumo dessas regiões e, para atingir-se o termo da jornada, mais não é preciso que a resistência do viajor.
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Conhece-se, com bastante segurança, o caminho a seguir. Num estudo sobre o caso de Robert Desnos, inti tulado “Entrada dos Médiuns”,9 tive o cuidado de contar como eu fora levado a “prestar atenção às frases mais ou menos fragmentárias que, quando estamos inteiramente sozinhos e prestes a adormecer, afloram à superfície da mente sem que possamos determinar aquilo que as moti vou”. Eu acabava de tentar a aventura poética expondome ao menor número possível de riscos, ou seja, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu ainda acredi tava na lentidão da elaboração para preservar-me de con tatos inúteis, contatos que eu grandemente condenava. Tratava-se de um pudor do pensamento, de que ainda guardo vestígios. No fim da vida, provavelmente a duras penas, chegarei a falar como toda a gente fala, a descul par-me por minha voz e o reduzido número de meus ges tos. A virtude da palavra (e, mais ainda, da escrita) parecia-me consistir na faculdade de abreviar de maneira surpreendente a narração (visto que havia narração) de um pequeno número de fatos, poéticos ou não, cuja subs tância se identificava comigo. Eu chegara à conclusão que Rimbaud fazia o mesmo. Era no tempo em que eu estava compondo, com um empenho por variedade que merecia melhor emprego, os últimos poemas de Montepio™ isto é, em que eu conseguia tirar um partido incrível das linhas brancas desse livro. Essas linhas eram o olho fechado a certas operações mentais que eu julgava dever ocultar ao leitor. Não era trapaça de minha parte, mas vontade de chocar. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possí vel, que me era cada vez mais difícil dispensar. Pusera-me
a mimar desmedidamente as palavras pelo espaço que elas adm itiam ao seu redor, por seus inúmeros pontos de con tato com outras palavras que eu não pronunciava. O poe ma “Floresta Negra’11 deriva exatamente deste estado de espírito. Seis meses passei a escrevê-lo e, em verdade, não descansei um dia só que fosse, Mas isso tinha a ver com o juízo que eu fazia, então, de mim mesmo; enfim, essas coisas. Adoro estas confissões idiotas. Naquele tempo a pseudopoesia cubista estava tentando implantar-se, mas ela saíra desarmada do cérebro de Picasso e eu, de minha parte, tinha a fama (e ainda a tenho) de mais enfadonho que dia de chuva. Além do mais, eu começara a desconfiar que, do ponto de vista poético, estava no caminho errado, mas evitava comprometer-me como podia, desafiando o lirismo por meio de definições e de receitas (os fenôme nos do dadaísmo estavam prestes a manifestar-se) e afe tando buscar na publicidade um uso para a poesia (eu sustentava que o mundo acabaria não com um belo livro, mas com um belo anúncio do inferno ou do céu). Nessa mesma época, um homem pelo menos tão enfadonho quanto eu, Pierre Reverdy, escrevia; A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da apro ximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades aproxi madas forem longínquas e justas, mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá. .. etc.12
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Estas palavras, embora sibilinas para os profanos, eram poderosamente reveladoras e nelas meditei por mui to tempo. Mas a imagem me escapava. A estética de Reverdy, uma estética toda aposteriori , levava-me a tomar os efeitos pelas causas. Foi a esta altura dos acontecimen tos que resolvi renunciar definitivamente ao meu ponto de vista.
Uma noite, portanto, antes de adormecer, eu ouvi, tão claramente articulada que era impossível mudar-lhe uma só palavra, mas distante do som de qualquer voz, uma frase estranha que chegava a mim sem qualquer ves tígio dos acontecimentos em que, de acordo com o teste munho de minha consciência, eu andava envolvido, uma frase que me pareceu insistente, uma frase - como direi? que se chocava contra a vidraça. Registrei o fato rapida mente e dispunha-me a pensar em outra coisa quando seu caráter orgânico me chamou a atenção. Em verdade, era uma frase surpreendente; infelizmente até hoje não consi go recordá-la, mas era qualquer coisa como “Há um ho mem cortado em dois pela janela”, e não pode haver dúvida quanto a isto, uma vez que a acompanhava uma débil re presentação visual13 de um homem que andava mas que fora truncado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Tratava-se, sem sombra de dúvida, do simples reerguimento no espaço de um hom em debru çado à janela. Mas, visto que a janela havia acompanhado o reerguimento do homem, capacitei-me de estar lidando com uma imagem de tipo bastante raro e fui logo acome
tido pela idéia de incorporá-ia aos meus materiais de cons trução poética. Mal lhe tinha eu dadò este crédito, ela ce deu o lugar a uma sucessão de frases separadas por curtas pausas, as quais me surpreenderam quase tanto quanto aquilo que as precedera e me causaram tamanha impres são de gratuidade que o domínio que eu até então exerce ra sobre mim mesmo pareceu-me ilusório e eu só me dediquei a pôr termo à interminável querela dentro em mim. 14
Como, naquela época, eu ainda andava muito inte ressado em Freud e familiarizado com seus métodos de exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que se tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunci ado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito críti co de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se atrapalha com nenhuma inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao pensamento falado. Parecia-me, e ainda me parece —o modo como me viera a frase sobre o homem cortado é prova disso —que a velocidade do pen samento não é superior à da palavra e que ela não desafia a língua, nem mesmo a pena que se move rápido.. Foi a partir destes pressupostos que Philippe Soupault, a quem eu pusera a par destas primeiras conclusões, e eu resolve mos começar a escrever com um louvável desprezo por quaisquer resultados literários. No fim do primeiro dia tínhamos coisa de cinqüenta páginas assim obtidas para mutuamente nos lermos, comparando os resultados. Vis
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tos em conjunto, os resultados de Soupault e os meus eram notavelmente parecidos: os mesmos defeitos de constru ção, falhas da mesma natureza, mas também, de parte a parte, a ilusão de uma verve extraordinária, muita em o ção, um conjunto considerável de imagens de tal qualida de que teríamos sido incapazes de produzir uma só delas de antemão, um gênero de pitoresco muito especial e, aqui e acolá, alguma facécia penetrante. As únicas diferenças entre os nossos textos pareceram-me dever-se aos respecti vos temperamentos de um e outro, sendo o de Soupault menos estático que o meu e, se me é lícito criticá-lo leve mente, por ter ele cometido o erro de encimar certas pági nas com palavras à guisa de títulos, muito provavelmente no intuito de ludibriar. Mas, por outro lado, é de justiça reconhecer que ele sempre se opôs, com extrema energia, à menor mudança, à menor correção de qualquer passa gem desta espécie que nao me parecesse particularmente feliz. E ..nisto, sem dúvida alguma, ele estava coberto de razão.15 Na verdade é muito difícil apreciar devidamente os vários elementos ali presentes; pode-se até dizer que é impossível apreciá-los à primeira leitura. A quem escreve, esses elementos, aparentemente, são tão estranhos quanto a qualquer outro e suscitam uma desconfiança natural. Poeticamente falando, eles se recomendam sobretudo por um altíssimo grau de absurdez imediata, sendo próprio desta absurdez, quando examinada de mais perto, ceder o passo a tudo que há de há de admissível e legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os demais.
Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que aca bara de morrer e que, em várias ocasiões, parecia-nos ter obedecido a um impulso desta ordem, sem contudo sacrificar-lhe recursos literários medíocres, Soupault e eu demos o nom e de S u r r e a li s m o ao novo modo de expres são pura que tínhamos à nossa disposição e que estávamos impacientes por pôr ao alcance de nossos amigos. Creio que já não vem ao caso, hoje em dia, voltar a discutir esta palavra; creio também que a acepção em que a emprega mos prevaleceu, de modo geral, sobre a acepção apollinairiana. Ainda com mais razão teríamos podido apropriar-nos da palavra S u p e r n a t u r a l is m o , empregada por Gérard de Nerval na dedicatória de As Filhas do Fogo.16 Com efeito, parece que Nerval possuiu em grau eminente o espírito que reivindicamos como nosso, ao passo que Apollinaire só possuiu a letra, ainda imperfeita, do surrea lismo e não foi capaz de traçar um bosquejo teórico de seus princípios capaz de merecer nossa atenção. Eis aqui duas frases de Nerval que, a este respeito, me parecem muito significativas: Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, ofenômeno de que você falava há pouco. Como você sabe, há certos narradores que nada conseguem inventar sem se identificarem com as personagens que imaginam. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier contava como tivera a infelicidade de ser guilhotinado na época da Revolução; e tão convincente era ele que seus ouvintes acabavam porperguntar-se por que meios conseguira ter a própria cabeça recolada,
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...Ejá que você teve a imprudência de citar um dos sonetos compostos nesse estado de devaneio S u p e r n a t u r a l i s t a , como diriam os alemães, é necessário que você os ouça a to dos. Eles são pouco mais obscuros que a metafísica de Hegel ou os Memoriais de Swedenborg, eperderiam sua mágica se explicados, caso isto fosse possível; reconheça-lhes ao menos o mérito da expressão. ..17 Somente de muito má fé negar-se-nos-ia o direito de usar a palavra SURREALISMO no sentido muito particu lar em que a entendemos, pois é sabido que, antes de nós, esta palavra não estava em circulação. Defino-a, a seguir, de uma vez por todas:
s.m. Automatismo psíquico em esta do puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmen te, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral. Enciclopédia, Filosofia. O surrealismo baseia-se na crença na realidade superior de certas formas de associa ção até aqui negligenciadas, na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a substituí-los na resolução dos principais problemas da exis tência. Fizeram ato de Surrealismo Absoluto os Senho res Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gérard, Limbour, Malkine, Morise» Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac. S u r r e a lis m o ,
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Até o presente estes parecem ser os únicos, e nao poderia haver qualquer dúvida quanto a isto, nao fora o caso fascinante de Isidore Ducasse, sobre o qüal careço de informações. E, sem dúvida alguma, a não considerarmos senão superficialmente os resultados por elês obtidos, nu merosos poetas poderiam passar por surrealistas, a come çar por Dante e, em seus melhores momentos, Shakespeare. Ao longo das diversas tentativas de redução, a que me dedi quei, daquilo que, por abuso de confiança, costuma-se cha mar gênio, nada descobri que, em fim de contas, pudesse se atribuído a algum outro processo. As Noites de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, um mau padre, sem dúvida, mas um padre.
Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo, Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista no amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista em séu modo de vida e em outras coisas. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo.
Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em casa. Saint-John Perse é surrealista à distância. Roussel é surrealista na ánedota. Etc. Insisto em que nem sempre eles são surrealistas, vis to que é possível discernir em cada um deles certo núme ro de idéias preconcebidas das quais - com grande ingenuidade! - eles não abriam mão. E não abriam mão porque não tinham ouvido a voz surrealista, aquela mesma que continua a pregar na véspera da morte e acima das tempestades, porque não queriam servir apenas de orquestradores da maravilhosa partitura. Eles eram ins trumentos demasiado altivos e, por esta razão, nem sem pre produziram um som harm onioso.18 Mas nós, que não nos entregamos a nenhum esfor ço de filtragem, que em nossas obras nos convertemos em receptáculos surdos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se deixam hipnotizar pelos desenhos que produzem, é possível que estejamos servindo a uma causa ainda mais nobre. Devolvemos, assim, com probi dade o “talento” que se nos atribui. Falem, se lhes apraz, do talento dèste espelho, desta régua de platina, desta porta, do céu. N ós não temos talento, perguntem a Philippe Soupault: “A s manufaturas anatômicas e as moradias a preços baixos destruirão as mais altas cidades. ”
A Roger Vitrac: “M al invocara eu o mármore-almirante , este girou nos calcanhares qual cavalo que empina diante da estrela polar e me mostrou no plano de seu bicorne uma região onde eu de veria passar a vida. "
A Paul Eluard: “É bem conhecida a história que conto, célebre o poe ma que releio: estou apoiado a uma parede, com orelhas verdejantes e lábios calcinados. ”
A Max Morise: “O urso das cavernas e seu companheiro, o alcaravão, o vol-au-vent 19 e o vento, seu criado de quarto, o grão Chan celer com sua chancelière,20 o espantalho de pardais e o par dal seu compadre, o tubo de ensaio e a agulha, sua filha, o carnívoro e o carnaval, seu irmão, o varredor e seu monóculo, o Mississípi e seu cãozinho, o coral e sua leiteira, o Milagre e seu bom Deus, mais não lhes resta que desaparecer da super fície do mar.lx A Joseph Delteil: “Que lástima! Eu creio na virtude dos pássaros. E bas ta uma pena para me matar de rir. ”
A Louis Aragon: “Durante uma interrupção da partida, enquanto os jogadores se reuniam em torno de uma tigela de ponche fla mejante, perguntei à árvore se ela ainda tinha sua fita ver melha. ”
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E a mim mesmo, que não pude impedir-me de es crever as linhas serpentinas, desvairantes, deste prefácio. Pergunte a Robert Desnos, que, de todos nós, é pro vavelmente aquele que mais se aproximou da verdade sur realista, aquele que, em obras ainda inéditas22 e ao longo das múltiplas experiências a que se entregou, justificou plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me intima a que ainda espere muito dele. Atualmente Desnos fala surrealista à vontade. A prodigiosa agilidade de que dá provas ao seguir oralmente o próprio pensa mento nos vale um núm ero ilimitado de discursos esplên didos que se perdem, uma vez que Desnos tem coisas melhores que fazer do que fixá-los por escrito. Ele é capaz de ler em si mesmo como num livro aberto e nada faz para salvar as páginas que se evolam ao vento de sua vida. 5ÍC3ICJlCilCJICJlCJjC ílC JIC JlCílCJlCJiC
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S E G R E D O SD AA Á G IC A RTE M S U R R E A L IS T A
Composição surrealista escrita, ou primeiro e último esboço
Instale-se confortavelmente no lugar mais favorável à concentração de sua mente e faça com que lhe tragam material de escrita. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo possível. Abstraia de seu gênio, de seu talento, e também do gênio e do talento dos outros. Diga a si mes mo que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva rápido, sem qualquer assunto pre concebido, rápido bastante para não reter na memória o
que está escrevendo e para não se reler. A primeira frase surgirá por si mesma, a tal ponto é verdade que, a cada segundo, ocorre uma frase estranha ao nosso pensamento consciente, que mais não quer do que se exteriorizar. E muito difícil pronunciar-se sobre o caso da frase seguinte; ao que tudo indica, ela participa, ao mesmo tempo, de nossa atividade consciente e da outra, se admitirmos que o fato de ter escrito a primeira implica um mínimo de percepção. Isto, aliás, deve importar-lhe pouco: é nessas coisas que reside a maior parte do interesse suscitado pelo jogo surrealista. É sempre verdade que a pontuação certa mente se opõe à continuidade absoluta do fluxo de que nos ocupamos, embora ela pareça tão necessária quanto a distribuição de nós numa corda em vibração. Prossiga en quanto sentir vontade de fazê-lo. Confie no caráter ines gotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça estabelecer-se em virtude de um erro seu, minúsculo que seja —um erro, por exemplo, de desatenção - interrompa, sem hesitar, uma linha demasiado clara. Logo depois da palavra cuja origem lhe pareça suspeita escreva uma letra qualquer, a letra L, por exemplo, sempre a letra 4 e traga de volta o arbitrário impondo esta letra como inicial à palavra se guinte. Como nunca mais se entediar em companhia de terceiros
É muito difícil. Nunca estejais em casa para quem quer que seja e, vez por outra, quando ninguém tiver apa recido sem ter sido convidado, interrompendo-vos em plena atividade surrealista e fazendo-vos cruzar os braços, dizei: “Não importa, sem dúvida há melhores coisas a fa
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zer ou não fazer. O interesse da vida não se mantém. Sim plicidade, o que se passa em mim ainda é bastante para me aborrecer!”, ou qualquer outra banalidade revoltante. Como fazer discursos
Inscrever-se como candidato, pouco antes das elei ções, no primeiro país que houver por bem proceder a este tipo de consulta. Cada um de nós tem em si uma vocação de orador: tangas coloridas e vidrilhos de pala vras. Por meio do surrealismo ele cairá de improviso sobre o desespero e sua pobreza. Uma noite, num palanque, re talhará sozinho o céu eterno, essa Pele do Urso.23 Fará tantas promessas que o cumprimento de uma mínim a fra ção delas seria causa de consternação. As reivindicações de todo um povo dará um cunho parcial e derrisório. Fará com que os mais irredutíveis adversários comunguem num desejo secreto, que será causa de as pátrias irem pelos ares. E a tudo isto ele chegará simplesmente deixando-se levar pela palavra imensa, que se derrama em compaixão e rola em ódio. Incapaz de errar, jogará sobre o veludo de todos os erros. Será verdadeiramente eleito e as mais doces mu lheres o amarão com violência. Como escreverfabos romances
Isto vale para qualquer um: se é este o desejo mani festo de vosso coração, queimai algumas folhas de lourei ro e, sem querer alimentar esse fogo ralo, por-vos-eis a escrever um romance. O surrealismo vo-lo permitirá; bas tar-vos-á pôr a agulha de “Tempo Bom” sobre “Ação”, e pronto. Aqui estão algumas personagens que procedem de maneiras assaz discordantes; os nomes delas, em vosso
manuscrito, são uma questão de maiúsculas e elas se com portarão em relação aos verbos ativos com o mesmo de sembaraço com que o pronome impessoal Use comporta em relação a palavras como pleut , y a, faut , etc.24 Elas os controlarão, por assim dizer, e quando a observação, a re flexão e as faculdades de generalização não servirem de nada, estai certo de que elas farão com que lhes atribuais mil intenções que não tivestes. Deste modo, dotadas de um pequeno número de características físicas e morais, essas criaturas que, na verdade, vos devem tão pouco, não se afastarão mais de uma linha de comportamento com a qual não tendes de ocupar-vos. Daí resultará um enredo mais ou menos hábil na aparência, justificando ponto por ponto aquele desfecho comovente ou tranqüilizador que não vos importa a mínima. Vosso falso romance simulará às mil maravilhas um romance verdadeiro; ficareis rico e todos estarão de acordo em reconhecer que tendes “gar ra”, visto que é dela que pende o vosso talento.25 Não é preciso acrescentar que, lançando mão de mé todo semelhante e com a condição de desconhecer aquilo de que vierdes a falar, ser-vos-á possível, também, devo-' tar-vos com sucesso à falsa crítica literária. -Como fazer-se perfeitamente visível a uma mulher que passa na rua
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Contra a morte
O surrealismo introduzir-vos-á na morte, que é uma sociedade secreta. Ele enluvará vossa mão, ali sepultando o M profundo com o qual começa a palavra Memória. Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas dis posições testamentárias: eu, por exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão de mudanças. E que os meus amigos destruam, até ao último exemplar, a edição do Discurso sobre a Escassa Realidade ,26
A linguagem foi dada ao homem para que dela use surrealisticamente. Na medida em que lhe é indispensável fazer-se entender, ele consegue, bem ou mal, exprimir-se e, deste modo, assegurar a execução de algumas das fun ções mais grosseiras. Falar, escrever uma carta não envol vem, para ele, nenhuma dificuldade real, desde que, ao fazê-lo, ele não vise a algum alvo acima da média, isto é, desde que se limite a conversar (pelo prazer de conversar) com alguém. Ele não está preocupado com as palavras que lhe ocorrerão, nem com a frase que se seguirá à que está acabando. A uma pergunta muito simples ele será capaz de responder à queima-roupa. Se for isento de cacoetes contraídos no comércio com outras pessoas, poderá pro nunciar-se espontaneamente sobre um determinado nú mero de assuntos; para isso não lhe é necessário “dar sete voltas à língua” ou formular de antemão o que quer que seja. Agora, quem o terá convencido de que esta faculda de de exprimir-se de improviso lhe prestará maus serviços
quando ele desejar estabelecer relações mais delicadas? Não há assunto algum sobre o qual ele deva recusar-se a falar ou escrever de improviso. O único efeito de escutar-se ou ler-se é fazer cessar aquele socorro oculto, admirável. Não me dou pressa em compreender-me (que importa! eu sem pre me compreenderei). Se esta ou aquela frase m inha me causa uma leve decepção no momento exato em que a formulo, fio-me na frase seguinte para reparar-lhe os de feitos e abstenho-me de recomeçá-la ou aperfeiçoá-la. So mente a menor perda de ímpeto poderia ser-me fatal As palavras, os grupos de palavras que se sucedem dão prova da maior solidariedade entre si. Não me cabe a mim favo recer a uns em detrimento de outros. É a uma espécie de compensação miraculosa que cabe intervir —e ela inter vém. Não somente esta linguagem sem reservas que eu tento tornar sempre válida, que me parece adaptar-se a todas as circunstâncias da vida, não somente esta lingua gem não me priva de nenhum dos meus recursos, senao também põe-me à disposição um a extraordinária lucidez, e isto naquele âmbito onde eu menos esperaria sua ajuda. Irei mesmo ao ponto de dizer que ela me instrui e, com efeito, já me sucedeu empregar surrealisticamente pala vras cujo significado eu esquecera. Posteriormente vim a verificar que as empregara estritamente de acordo com sua definição. Isto nos levaria a crer que não “aprendemos”, que o que sempre fazemos é “reaprender”. Foi assim que tornei familiares certos giros de frase bem achados. E já nem falo da consciência poética dos objetos, que só vim a
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adquirir mediante um contato espiritual com eles, uma e muitas vezes repetido. É, ainda, ao diálogo que as formas da linguagem surrealista melhor se adaptam. Ali dois pensamentos se confrontam; enquanto um se manifesta, o outro se ocupa dele, mas de que maneira o faz? Supor que ele o incorpora implicaria adm itir que, durante algum tempo, é-lhe intei ramente possível viver do outro pensamento, o que é im provável. E, na verdade, a atenção que ele lhe presta é toda exterior; ele só tem tempo de aprovar ou desaprovar, ge ralm ente de desaprovar, com toda a consideração de que o homem é capaz. Além disso, este tipo de linguagem não perm ite ir ao fundo da questão. Minha atenção, em poder de uma solicitação que não lhe é lícito repelir, trata o pen samento adverso como inimigo; na conversação trivial ela o “repreende” quase sempre pelo que diz respeito às pala vras e às figuras que emprega; e habilita-me a delas tirar partido na réplica, desfigurando-as. Tanto assim é que, em certos estados mentais patológicos, nos quais os dis túrbios sensoriais absorvem toda a atenção do enfermo, este, que continua a responder às perguntas, limita-se a apropriar-se da última palavra proferida à sua frente ou do último membro de frase surrealista de que ele encontra vestígio ém sua mente: “Quantos anos você tem? —Tem.” (Ecolalia.) “Como é o seu nome? —Quarenta casas.” (Sintoma de Ganse, ou respostas desconexas.)
Não há conversação alguma em que não ocorra algo desta desordem. O esforço para sermos sociáveis, que em tal circunstância predomina, e o fato de já estarmos fami liarizados com a coisa conseguem, sozinhos, no-la dissi mular por algum tempo. É também a grande fraqueza do livro o entrar constantemente em conflito com o espírito de seus melhores leitores, vale dizer, dos mais exigentes. No breve diálogo entre médico e alienado, que alinhavei mais acima, é o alienado, aliás, que leva a melhor. Pois é ele que, com suas respostas, força a atenção do médico e, além disso, não é ele quem faz as perguntas. Isto significa que, naquele momento, o pensamento dele é o mais for te? Talvez. Ele tem a liberdade de já não levar em conta seu nome e sua idade.
O surrealismo poético, ao qual está consagrado este estudo, empenhou-se, até aqui, em restabelecer o diálogo em sua verdade absoluta, liberando os dois interlocutores das normas da boa educação. Cada um deles mais não faz que dar seguimento ao próprio solilóquio, sem dele tentar auferir um prazer dialético particular e sem tentar imporse no que quer que seja a seu vizinho. As observações for muladas não têm por objetivo, como sói acontecer, o desenvolvimento de uma tese, por mais insignificante que seja; elas são, tanto quanto possível, desprovidas de finali dade. Quanto à resposta que requerem, ela é, em princí pio, totalmente indiferente ao amor próprio de quem falou. As palavras, as imagens não pretendem ser mais do que trampolins para o espírito de quem ouve. É assim que, em
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Os Campos Magnéticos ,27a primeira obra puramente sur realista, devem apresentar-se as páginas reunidas sob o tí tulo Barreiras,28 nas quais Soupault e eu mostramos esses interlocutores imparciais.
O surrealismo nao permite aos que a ele se consa gram abandoná-lo quando lhes apetece fazê-lo. Tudo leva a crer que ele atua sobre a mente à maneira dos entorpe centes; como eles, cia uma dependência e pode induzir o homem a terríveis revoltas. Será, também, um paraíso dos mais artificiais e o prazer que dele deriva é da mesma na tureza que o descrito por Baudelaire ao discorrer sobre os outros.29Assim, a análise dos efeitos misteriosos e dos prazeres particulares que ele pode gerar - por mais de um lado o surrealismo se apresenta como um vício novo, que nao parece dever restringir-se a uns poucos homens; como o haxixe, ele pode satisfazer a todos os gostos —tal análise não pode faltar a este estudo. I o Passa-se com as imagens surrealistas o mesmo que com as imagens do ópio, que o homem já não evoca, mas que “a ele se oferecem espontânea, despoticamente. Ele já não consegue livrar-se delas; pois a vontade já não tem força e não governa mais as faculdades.”30 Resta saber se as imagens fòram alguma vez “evocadas”. Aos que se atêm, como eu, à definição de Reverdy, não parece possível apro ximar voluntariamente aquilo que ele chama de “duas re alidades distantes”. Numa palavra, a aproximação ou se faz, ou não se faz. Quanto a mim, nego categoricamente que, em Reverdy, imagens como
Há no regato uma canção que flu i
ou O dia se abriu como uma toalha branca
ou O mundo entra num saco
apresentem o mais pequeno grau de premeditação. É fal so, na minha opinião, pretender que a mente ‘captou as relações” das duas realidades confrontadas. Para começo de conversa, nada foi por ela captado conscientemente. Foi da aproximação, de certo modo fortuita, dos dois ter mos que jorrou uma luz particular, a luz da imagem, à qual nos mostramos infinitamente sensíveis. O valor da imagem depende da beleza da centelha obtida; ela é, por conseguinte, função da diferença de potencial dos dois condutores. Quando esta diferença mal existe, como na comparação,31 a centelha não se produz. Ora, o homem não pode, segundo entendo, efetuar a aproximação de duas realidades tão distantes. O princípio da associação de idéias, tal como se nos apresenta, a isto se opõe. A alternativa seria retornarmos a uma arte elíptica, que Reverdy conde na tanto quanto eu. Cumpre, pois, admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do outro pela mente tendo em vista a centelha a produzir: eles são pro dutos simultâneos da atividade que chamo de surrealista, limitando-se a razão a constatar e apreciar o fenômeno luminoso. E, assim como o comprimento da centelha aumen ta quando ela se produz num ambiente de gases rarefeitos, assim também a atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica, que tentei pôr ao alcance de todos, presta-se à 53
produção das mais belas imagens. Pode-se mesmo dizer que, nessa corrida vertiginosa, as imagens aparecem como as únicas balizas da mente. Pouco a pouco ela se convence da realidade suprema de tais imagens. Recebendo-as, a princípio, passivamente, logo percebe que elas lisonjeiam a razão e alargam, outro tanto, seu conhecimento. Enfim, ela toma conhecimento das extensões ilimitadas onde se manifestam seus desejos, onde os prós e os contras se re duzem sem cessar, onde sua escuridade não a trai. Ela vai, transportada por essas imagens que a arrebatam, que mal lhe dão tempo de assoprar o fogo de seus dedos. É esta a mais bela das noites, a noite dos relâmpagos: comparado com ela, o dia é como a noite. Os inúmeros tipos de imagens surrealistas requere riam uma classificação que, neste momento, nao me pro ponho tentar. Agrupá-las consoante suas afinidades particulares levar-me-ia muito longe; o que eu quero to mar em consideração, essencialmente, são suas virtudes comuns. Para mim, não o nego, a mais forte é a que apre senta o mais alto grau de arbitrariedade; a que requer mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por conter uma enorme dose de contradição aparente, seja por um de seus termos estar curiosamente oculto, seja por, tendo-se apresentado como sensacional, parecer que ter mina fracamente (que fecha, bruscamente, o ângulo de seu compasso), seja por tirar de si mesma uma justificati va ^o???Wderrisória, seja por ser de natureza alucinatória, seja por, muito naturalmente, conferir ao abstrato a más cara do concreto ou vice-versa, seja por implicar a nega
ção de alguma propriedade física elementar, seja por pro vocar o riso. Eis aqui, nesta ordem, alguns exemplos: O rubi do champanha. Lautréamont. Beio como a lei da suspensão do desenvolvimento do peito nos adultos cuja propensão ao crescimento não tem rela ção com a quantidade de moléculas que seu organismo assi mila. Lautréamont. Uma igreja se erguia resplendente como um sino. Philippe Soupault. No sono de Rrose Sélavy há um anão saído de um poço que vem de noite comer seu pão. Robert Desnos. O orvalho com cabeça de gata ninava-se na ponte. An dré Breton. Um pouco à esquerda, em meu firmamento adivinha do, percebo — mas, sem dúvida, é apenas um vapor de sangue e de assassínio —o brilhante despolido das perturbações da liberdade. Louis Aragon. Na floresta incendiada Os leões estavam frescos. Roger Vitrac. A cor das meias de uma mulher não é, necessariamen te, à imagem de seus olhos, o que levou um filósofo, cujo nome não vem ao caso, a dizer: “Os cefalópodes têm mais razões para odiar o progresso que os quadrúpedes. ”Max Morise.
Io Queiramos ou não, temos aqui com que satisfa zer a várias exigências da mente. Todas estas imagens pa recem dar testemunho de que a mente está amadurecida
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para outras coisas, além dos prazeres benignos a que, em geral, se entrega. E este o único modo de que dispõe para usar vantajosamente da quantidade ideal de acontecimen tos que carrega.32 Estas imagens dão-lhe a medida de sua dissipação habitual e das inconveniências que ela acarreta. Em última análise não é mau que elas a desconcertem, pois desconcertar a mente é o mesmo que torná-la consci ente de seu erro. As frases que eu cito concorrem grande mente para isto. Mas a mente que as saboreia tira desse fato a certeza de estar no caminho certo\ por si mesma ela não pode tornar-se ré de cavilação; e nada tem a temer, pois, além disso, empenha-se em abranger tudo. 2o A mente que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte da própria infância. É um pouco como a certeza de alguém que se está afogando e repassa, em menos de um minuto, todos os momentos insuperá veis de sua vida. Dir-me-ão que isto não é muito alentador. Mas eu não estou empenhado em alentar os que me disserem tal coisa. Das lembranças da infância e de algu mas outras provém uma sensação de despertencimento e, em seguida, de transviamento que eu considero a mais fe cunda possível. É a infância, provavelmente, o que mais se aproxima da “verdadeira vida”; a infância além da qual o homem só dispõe, afora o seu salvo-conduto, de alguns bilhetes de entrada grátis; a infância na qual, entretanto, tudo concorria para a posse eficaz e sem riscos de si mes mo. Graças ao surrealismo parece que estas oportunida des estão de volta. É como se ainda corrêssemos para a nossa salvação ou perdição. Revivemos na sombra um ter
ror precioso. Graças a Deus, por enquanto é apenas o Pur gatório, Atravessamos sobressaltados o que.òs ocuitistas chamam de paisagens perigosas. Atraio com minha passa gem monstros entocaiados; ainda não estão demasiado mal-intencionados em relação a mim, e eu, porque os temo, não me sinto perdido. Eis “os elefantes com cabeça de mulher e os leões voadores” que, há tempos, Soupault e eu tanto temíamos encontrar, eis o “peixe solúvel” que ainda me apavora um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel, eu nasci sob o signo de Peixes e o homem é solúvel em seu pensamento! A flora e a fauna do surrea lismo são inconfessáveis. 3o Não creio no próximo estabelecimento de este reótipos surrealistas. Os caracteres comuns a todos os tex tos do gênero, entre os quais figuram os que acabo de apontar e muitos outros que somente uma análise lógica e uma análise gramatical rigorosas poderiam revelar-nos, não se opõem a uma evolução da prosa surrealista com o de correr do tempo. Vindas depois de uma quantidade de ensaios desta espécie que escrevi nos últimos cinco anos, a maioria dos quais me comprazo em julgar extremamente desordenados, as historietas que se seguem, neste volume, disto me dão prova flagrante. Não as considero, por essa razão, nem mais dignas nem menos indignas de represen tar, aos olhos do leitor, os ganhos que a contribuição sur realista é capaz de proporcionar à sua consciência. Por outro lado, os meios surrealistas precisariam ser estendidos. Tudo é válido quando se trata de obter de cer tas associações a subitaneidade desejável. Os papéis cola
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dos de Braque e de Picasso têm o mesmo valor que a in trodução de um lugar-comum num segmento literário redigido no estilo mais castigado. É até lícito intitular de POEMA o resultado da reunião mais gratuita possível (ob servada, caso assim o desejardes, a sintaxe) de títulos e fragmentos de títulos recortados dos jornais:
POEMA
Uma gargalhada
De safira na ilha de Ceilão As mais belas palhas
TÊM A TEZ ESTIOLADA SOB OS FERROLHOS
numa fazenda isolada WIAA VD1A
agrava-se
o agradável
uma estrada de carruagens l ev a -o à f í m b r i a d o d e s c o n h e c i d o
o café p u x a a brasa p a ra a sua sard in h a A A R T E S Ã D I Á R I A D E S UA B E L E Z A
jyjIN H A SENHORA, u m p ar
de meias de seda nao é
Um salto no abismo UM CERVO 0 Am or em primeiro lugar
Tudo poderia se conciliar tão bem PARIS É UMA GRANDE ALDEIA
Vigie
O fogo que se oculta no borralho A ORAÇÃO
D o tempo b o m 59
Sabei que Os raios ultravioleta terminaram sua tarefa Curta e boa
0 PRIMEIRO JORNAL BRANCO DO A CA SO Será o vermelho
O cantor errante O ND E E S TA R Á? na memória
na casa dele NO BAILE DOS ARDENTES33
Eu faço Dançando
0 que se fez, o que se vai fazer
Poder-se-iam multiplicar os exemplos. O teatro, a filosofia, a ciência, a crítica ainda teriam muito a ganhar. Dou-me pressa em acrescentar que as futuras técnicas sutreaiistas não me interessam.
Muito mais sérias me parecem,34 e já o dei a enten der vezes bastantes, as aplicações do surrealismo à ação. Não creio, é certo, na virtude profética da palavra surrea lista. “Oráculo é aquilo que eu digo”:35 Sim, tanto quanto eu quiser ; mas que é o oráculo, em si mesmo?36 A piedade dos hom ens não me engana. A voz surrealista que sacudia Cumas, Dodona e Delfos é exatamente a mesma que me dita os menos iracundos dos discursos que profiro. Meu tempo e o dela não devem ser os mesmos, por que me ajudaria ela a resolver o problema infantil do meu desti no? Infelizmente, eu finjo agir num mundo em que, para levar-lhe em conta as sugestões, eu teria de recorrer a dois tipos de intérpretes: uns para me traduzirem suas frases, e outros, impossíveis de achar, para imporem aos meus se melhantes a minha compreensão das mesmas. Este mun do, em que eu suporto tudo o que suporto (não tente descobri-lo), este mundo moderno, enfim, que diabo que rem que eu faça nele? Talvez a voz surrealista venha a ca lar-se, já não consigo contar meus desaparecimentos. Já não darei, por pouco que isto seja, o maravilhoso descon to de meus anos e meus dias. Serei como Nijinski, que, levado o ano passado aos Balés Russos, não compreendeu a que espetáculo assistia. Quedar-me-ei sozinho, perfeita
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mente sozinho comigo mesmo, indiferente a todos os ba lés do mundo. O que fiz, o que não fiz, eu vo-lo dou.
E, desde então, tenho sentido uma vontade grande de encarar com indulgência as fantasias científicas, tão im próprias, ao fim e ao cabo, quando consideradas de quais quer pontos de vista. Os receptores de telegrafia sem fio? Perfeito. A sífilis? Se vos agrada. A fotografia? Nada tenho contra ela. O cinema? Aplausos para as salas escuras. A guerra? Nós ríamos um bocado. O telefone? Alô, quem fala? A juventude? Encantadores cabelos brancos. Tentai fazer com que eu diga obrigado: “Obrigado.” Obrigado... Se o vulgo tem em alta conta o que, propriamente falan do, são pesquisas de laboratório, isto se deve a que tais pesquisas resultaram na invenção de um a máquina, na descoberta de um soro, coisas que o vulgo crê interessarlhe diretamente. Ele não tem a menor dúvida de que qui seram melhorar-lhe a sorte. Eu não sei, ao certo, a porcentagem de propósitos humanitários que governam as atividades dos homens de ciência, mas não me parece que, por detrás de tudo isso, haja um grau considerável de bondade. Estou-me referindo, claro está, aos verdadeiros homens de ciência, e não aos divulgadores de toda casta interessados em registrar patentes. Neste, como nos ou tros domínios, eu creio no puro regozijo surrealista do homem que, consciente dos fracassos sucessivos de todos os demais, não se dá por vencido, parte de onde quer e, tomando qualquer caminho que não seja tido por razoá vel, chega aonde pode. Esta ou aquela imagem com que
ele julgue oportuno sinalizar sua jornada e que, porventura, lhe valha público reconhecimento, confesso que, por si mesma, me deixa indiferente. Tampouco me impressiona o material com que ele precisará preocupar-se: seus tubos de vidro ou minhas penas metálicas... Quanto a seu mé todo, digo que vale tanto quanto o meu. Eu vi o inventor do reflexo plantar cutâneo em ação: manipulava seus pa cientes sem lhes dar trégua; o que fazia nada tinha que ver com um exame, era óbvio que ele já não se pautava por plano algum. Aqui e acolá formulava uma observação lon gínqua, sem contudo largar a agulha, e seu martelo nunca repousava. O tratamento dos enfermos tinha-o por tarefa fútil, que confiava a terceiros. De sua parte, ele se deixava consumir por uma febre sagrada.
Tal como o concebo, o surrealismo declara tão cla ramente nosso anticonformismo absoluto que não seria pos sível ocorrer a alguém citá-lo, no processo contra o m undo real, como testemunha da defesa. Pelo contrário, ele só serviria para justificar o estado de completa distração que almejamos alcançar neste mundo. A distração de Kant no que respeita a mulheres, a distração de Pasteur em relação “às uvas”, a distração de Pierre Curie, quando se tratava de veículos, são, neste particular, profundamente sinto máticas. Somente de um modo muito relativo está este mundo proporcionado ao pensamento, e os incidentes desta espécie são apenas os episódios mais significativos de uma guerra de independência na qual me glorio de participar. O surrealismo é o “raio invisível” que nos per
mitirá, um dia, vencer nossos adversários. “Já nao tremes, carcaça”. Este verão as rosas são azuis; o bosque é de vidro. Envolvida em sua verdura, a terra me impressiona tão pouco quanto uma alma do outro mundo. Viver e deixar de viver é que sao soluções imaginárias. A existência está em outra parte.
A d
v e r t ê n c ia
PARA A REEDIÇÃO DO S e g u n d o M a n ife s to
( 1946 )
Persuado-meao deixar que reapareça hoje o Segundo Manifesto do Surrealismo, de que o tempo se encarregou de atenuar para mim seus ângulos polêmicos. Espero que ele te nha por si mesmo corrigido, ainda que até certo ponto às minhas custas, os julgamentos demasiado apressados que emiti} por vezes, sobre diversos comportamentos individuais tais como os via esboçarem-se então. Este aspecto do texto, aliás , só se justifica diante daqueles que se derem ao trabalho de situar o Segundo Manifesto no clima intelectual do ano em que ele veio à luz. Foi precisamente por volta de 1930 que os espíri tos perspicazes advertiram no retorno próximo e inelutável da catástrofe mundial À difusa desorientação daí resultante não negarei que se sobrepunha., no meu caso, uma ansiedade adicional: como fazer escapar da correnteza cada vez mais imperiosa o esquife que alguns de nós havíamos construído com próprias mãos para arrostar aquela mesma correnteza? Em minha maneira de ver, as páginas que se seguem contêm lamentáveis vestígios de nervosismo. Nelas se encontram recriminações de importância desigual: é claro que certas de fecçõesforam duramente ressentidas e, de saída e sem mais, a
atitude — de importância inteiramente secundária — to mada a respeito de Rimbaud e Baudelaire levará a pensar que os mais maltratados poderiam ser aqueles nos quais se depositou a ma maio iorr f é inicial, do doss quais se esp esperar eraraa mais. mais. Vis tas as as co cois isas as a certa distância distân cia,, aliás aliás,, a mai m aior or par p arte te deles deles veio a compreendê-lo tão bem quanto eu, de sorte que algumas reaproximaçõespuderam ocorrer entre nós, ao mesmo tempo quee certo qu certoss aco acordo rdoss que se se revelavam mais duradou d uradouros ros vieram, po p o r sua vez, a ser denunciados. Uma asso associ ciaaçã çãoo hu h u m an anaa da ordem da que permitiu ao surrealismo edificar-se — tão ambiciosa e apaixonada apaixonad a como como nenh ne nhum umaa outra, outra, de desd sdee os os tem te m pos po s do saint-sim sain t-simonis onismo mo — não deixa de obedecer a certas leis de flutuação a respeito das quais ê certamente demasiado humano, para alguém que está de dentro, não saber que pa p a rtid rt idoo tomar. tomar. Os acontecimentos rece recenntes, tes, que vieram a en contrar lado a lado todos aqueles de que trata o Segundo demonstram que sua formação comum fo i sadia sadia Manifesto, demonstram e estabelecem limites razoáveis para seus desentendimentos. N a m ed edid idaa em qu quee alguns de dele less vieram a ser vitim vi timas as desses acontecimentos ou, falando de modo mais genérico, golpea dos pela vida — estou pensando em Desnos e Artaud — — , apress ap resso-m o-mee em dize di zerr que as sem-ra sem-razõe zõess que me sucede sucedeuu imp im p u tar-lhe desaparecem por si mesmas, da mesma maneira que, no que qu e di d i z respe respeito ito a Politz Politzer, er, cuja ativid ativ idad adee se se defini def iniu, u, co cons ns tantemente, fora do surrealismo e que, por isso mesmo, não tinha de dar nenhuma satisfação dessa atividade ao surrea lismo lismo,, não sinto qualq q ualquer uer constrangim constrangimento ento em declarar declarar que me enganei inteiramente a respeito de seu caráter.
Aqu A quilo ilo que, a um umaa distância distâ ncia de q u inze in ze an anos os,, acusa acusa o aspecto falível de algumas das minhas minha s opiniõ opiniões es emitidas con tra uns u ns e out outro ros, s, nao me deixa deix a menos livre pa para ra elevar-me contra contra a afirmação afirmação recentem recentemente entefeit fe itaa ] de que, no interior inter ior do surrealismo, as “divergência dive rgênciaspolític spolíticas”teriam as”teriam sido totalm tota lmen en te determinadas deter minadas por po r "questõe tões p e s s o a i s A s qu ques estõ tões es pe pess ssoa oais is pos te rio ri e sófora sófora fo ram m po p o r nó nóss agitadas agitadas a poste fo ram m levadas levadas ao conhecimento público nos casos em que os princípios funda ment me ntai aiss sobre sobre os os quais fora fo ra estabele estabelecido cido o nosso osso acordo p o d i am con conside siderar-s rar-see violados de modo modoflagr fla gran ante te e digno de regi registr stroo na história his tória de nos nosso movim mo viment entoo. Tratava-se, e ainda se trata, da manutenção de uma plataforma suficientemente móvel para pa ra enfrentar enfren tar os aspe aspect ctos os mutá m utáveis veis do proble pro blema ma da vida vid a e, uo mesmo tempo, bastante estável pa para ra demonstrar demonstr ar a naoruptura de certo número de compromissos mútuos — e p ú blicos — assumidos na ép époc ocaa de noss nossaajuve ju vent ntuu de de.. Ospan panfle fletos tos quee os surrealistas, qu surrealistas, como se disse então, “fu l m i n a r a m ” uns contra os outros em numerosas ocasiões demonstram, antes de mais nada, a impossibilidade em que se viram de situar o debate em termos menos elevados. Se a veemência da expres são parece neles, por vezes, desproporcionada ao desvio, ao erro ou à fa f“a lh a ” que eles les visam a profligar, profligar, eu crei creioo que que,, além do jogo de cert certaa ambivalên am bivalência cia de sentim sentimentos, entos, a que j á aludi, ca cabe be incrim inc rimina inarr o mal-estargeral daquele tempo e tam ta m bém a influência for fo r m a l de boa pa parte rte da literatura literatura revoluci onária onár ia na qu quaa l a express ressãão de idéias de grande gra nde generalidade gener alidade e rigor tolera, a seu lado, uma abundância de chistes agressi vos, de alcance medíocre, endereçados a tais ou quais dos con temporâneos}
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S e g u n d o M a n i f e s to to d o S u r r e a li lis m o
( 1930 1930 )
ANAIS MÉDICO-PSICOLÓGICOS REVISTA DA
A L IE N A Ç Ã O M E N T A L E DA
M EDICINA LEG AL DOS ALIENA DO S3 Crônica
LEGÍTIMA DEFESA N o último número dos Anais Médico-Psicológicos o Doutor A . Rodiet, em interessante matéri a, falova dos ri scos profi ssi onais do médi co de estabelecimentos psiquiátricos. Citava atentados recentes, de que foram vítimas vários de nossos confrades e buscava meios de nos proteg er efi cazmente do peri g o que representa o contato do psiquiatra com o alienado e sua família. Mas o alienado e sua família constituem um peri g o que eu classifi caria como " endóg eno" : ele está associ ado a nossa missão e é dela um corolário obrigatório. Aceitamolo, sim plesmente. Mas o mesmo não sucede com um peri g o que, desta vez, chamarei de " exóg eno" e que merece muito parti cularmente a nossa atenção. Tudo indica que ele deveria motivar reações mais visíveis de nossa parte. Eis aqui um exemplo particularmente significativo: um de nossos doentes, maníaco reivindicador, vítima de delírio persecutórío e singularmente perig oso, propunhame, com uma branda ironia, a leitura de um livro que tinha livre curso entre
outros ali enados. Este livro, recentemente publi cado pelas edi ções da Nouvelle Revue Française recomendavase por sua pr ocedênci a e pela apresentação correta e inofensiva. Era Nadja, de A ndré Breton. O surrealismo nele florescia com sua voluntária incoerência, seus capítulos habilmente descosidos, toda essa arte deli cada de fazer troça do leitor. N o meio de desenhos estranhamente simbóli cos, encontravase a fotogra fi a do Professor Claude. N a verdade, um capítulo inteiro fora nos especialmente consagrado. N ele os pobres psiquiatras eram copiosamente injuriados e uma passagem (assinalada com um risco de lápis azul pelo doente que tão amavelmente nos oferecera o livro} atraiu mais particularmente a nossa atenção, por conter estas frases: "Sei que, se eu fosse louco e internado há poucos dias, aproveitarmeia de uma remissão de meu delírio para assassinar friamente um dos que me caíssem nas mãos, de preferência o médico. Disso, pelo menos, me adviria a vantagem de ser alojado, como os ag itados, num comparti mento indivi dual. Pode ser que, pelo menos, me dei xassem em paz." N ão se pode encontrar excitação homi cida mais bem caracterizada. Ela não provocará mais que a soberba do nosso desdém ou, talvez, tocará de leve, apenas, nossa indiferença descuidosa. Recorrer, em tais casos, às autori dades superi ores parecer nosia dar provas de uma turbulência tão deslocada que não ousarí amos sequer pensar em semelhante coi sa. E, no entanto, fatos dessa espéci e multiplicamse em nossos dias. Julg o que nosso torpor é em g rande parte culpávei N osso silêncio pode suscitar dúvidas quanto à nossa boa fé e encora ja todas as audácias. Por que nossas sociedades e nossa associação profissional não haveriam de reag i r a incidentes semelhantes, quer se trate de um fato coletivo, quer de um fato individual? Por que não fazer cheg ar uma expressão de protesto ao editor de uma obra
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como Nadja e não abrir um processo contra um autor que ultrapassou em relação a nós todos os limites do decoro? Creio que haveria interesse (e este seria nosso único rm\o de defesa) em considerar ; no âmbito de nossa associação pr o fissional, por exemplo, a constituição de uma comissão especialmente encar reg ada destas questões. O Doutor Rodiet fechou sua matéria com a seguinte conclu são: " O médico de estabelecimentos psiquiátricos pode reivindicar, com toda justiça, o direito de ser protegido sem restri ções pela sociedade que ele próprio defende..." Mas essa sociedade às vezes par ece esquecer a reciprocidade de seus deveres. Cabe a nós recordarlhos.
Paul Abély.
SOCIEDADE MÉDICO-PSICOLÓGICA Sessão de 28 de outubro de 1929 Tendo o Sr. A bély feito uma comuni cação sobre as tendências dos autores que se intitulam surrealistas e sobre os ataques por eles dirigidos contra os médicos alienistas/ daí se ensejou a seguinte discussão:
DISCUSSÃO Dr. DE CLÊRAMBAULT: Peço ao Professor Janet que exponha a relação que ele estabelece entre o estado mental dos sujeitos e os caracteres da produção deles. PROF. JANET: O manifesto dos surrealistas contém uma introdução filosófica interessante. Os surrealistas sustentam que a realidade ê feia por definição; a beleza só existe naquilo que não é o mundo real. Foi o homem que introduziu a beleza
no mundo. Para produzi r o belo é preciso que alguém se afaste o mais possível da reali dade. A s obras dos surrealistas são, sobretudo, confi ssões de indivíduos obsessivos e de cépticos . Dr. DE CLERAMBAULT: Os or/istas excessivistas que lançam modas impertinentes, recorrendo às vezes a manifestos que condenam todas as tradições, me parecem, do ponto de vista técni co, independentemente dos nomes que eles tenham dado a si mesmos (e também da arte e da época considerada), aptos a serem qualificados como " procedimentistas" .4 Consiste o procedimenti smo em di spensar o trabalho do pensamento e, parti cularmente, da observação, confiando a um determinado processo ou fórmula a produção de um efeito que seja único, esquemático e convencional: daí resulta uma produção rápida, com as aparências de um estilo, e evitamse as críticas que seriam facilitadas por quai squer semelhanças com a vida. Esta deg radação do trabalho é fácil de perceber no âmbito das artes plásticas; mas também no domínio verbal ela pode ser demonstrada facilmente. O g ênero de preg ui ça org ulhosa que g era ou favorece o procedi menti smo não é exclusivo de nosso tempo. Os concep tistas, gongoristas e eufuístas do século XVI e os preciosos do século XV II foram todos procedimentistas. Vadius e Trissotín5 eram procedimentistas, só que procedimentistas muito mais moderados e trabalhadores que os de nossos dias, talvez por escreverem para um público mais seleto e erudito. N o domínio das artes plásticas, o ímpeto do procedimenti s mo parece datar somente do século passado . Prof. JANET; Em apoio da opinião do Sr.fsic] De Claram bault, g ostari a de recordar certos processos empreg ados pelos surrealistas. Eles tiram de um chapéu, por exemplo, cinco palavràs ao acaso e fazem séries de associações com essas palavras. N a Introdução ao Surrealismo6 lêse uma históri a inteira construída com estas duas palavras: peru e cartola.
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Sr. [sic] DE CLARAMBAULT: Em certo ponto da exposição que fez, o Sr. A bély vos pôs a par de uma campanha de difamação. Este ponto merece ser comentado. A difamação é parte essencial dos riscos profissi onais do aiienista; ela nos ataca, quando se oferece a ocasião, em virtude de nossas funções administrativas ou de nosso mandato de peritos: justo seria que a autori dade que nos credenci a também nos protegesse. Contra todos os riscos profissionais, de qualquer natureza que sejam, seria necessári o que o técnico g ozasse da g aranti a de disposições precisas que lhe assegurassem socorros imediatos e permanentes. Estes riscos não são apenas de ordem material, mas também de ordem moral. A proteção contra tais riscos compreenderi a socorros, subsídios, apoio jurídico e judicial, indenizações, pensão, enfim, por vezes permanente e total. N a fase de urgência, as despesas de assistência podem ser cobertas por uma Cai xa de Seg uros Mútuos; mas, em último caso, elas devem recair sobre a própria autoridade a cujo servi ço estava a vítima dos danos. A sessão foi suspensa às 18 horas. Um dos secretários, Guiraud.
Apesar dos esforços particulares de cada um daque les que se declararam ou declaram adeptos do surrealis mo, as pessoas acabarão por concordar em que este movimento pretendeu, sobretudo, provocar, do ponto de vista intelectual e moral, uma crise de consciência da mo dalidade mais geral e mais grave e somente a obtenção ou nao-obtenção deste resultado pode servir de critério para •determinar seu sucesso ou seu fracasso histórico. Do ponto de vista intelectual, tratava-se, e ainda se trata, de pôr à prova, por todos os meios possíveis, e fazer reconhecer a todo preço o caráter artificial das velhas anti nomias hipocritamente destinadas a prevenir qualquer agitação insólita por parte do homem, ainda que esta ape nas lhe desse uma idéia indigente de seus meios, desafian do-o a escapar numa medida válida à coerção universal. O espantalho da morte, os cafés-cantantes da outra vida, o naufrágio da mais bela razão no sono, a esmagadora corti na do futuro, as torres de Babel, os espelhos de inconsis tência, o intransponível muro de prata salpicado de mio los,7todas essas imagens talvez demasiado impressionantes da catástrofe humana talvez não passem de imagens .Tudo 153
leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futu ro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como coisas contraditórias. Ora, seria falso atribuir à atividade surrealista qualquer motiva ção que não fosse a esperança de determinar esse ponto. Isto demonstra quão absurdo seria atribuir-lhe um senti do unicamente destrutivo ou construtivo: o ponto de que se trata é, a fortiori, aquele em que a construção e a des truição perdem o poder de serem brandidas uma contra a outra. Está claro, também, que o surrealismo não está in teressado em atribuir grande importância ao que se pro duz a seu lado sob o pretexto de arte e mesmo de antiarte, de filosofia ou antifilosofia, numa palavra, de tudo que não tenha por finalidade a aniquilação do ser num dia mante interior e cego, que não seja mais alma do gelo que alma do fogo. Que poderiam esperar da experiência surre alista os que de algum modo se preocupam com o lugar que ocuparão no mundo ? Neste lugar mental a partir do qual um homem já não pode empreender senão para si mesmo uma perigosa mas, em nossa opinião, suprema exploração, não seria o caso, tampouco, de atribuir qual quer importância aos passos dos que chegam ou aos pas sos dos que saem, uma vez que esses passos são dados numa região onde^ por definição, o surrealismo não tem ouvi dos. Não se queria que ele ficasse à mercê do humor des tes ou daqueles; se ele declara poder, valendo-se de seus próprios métodos, arrancar o pensamento a uma servidão cada vez mais dura, repô-lo no caminho da compreensão
total, restituir-lhe a pureza original, isto será razão bastan te para que o julguem com base no que ele fez e no que lhe resta fazer para cumprir sua promessa.
Mas antes de proceder à verificação destas contas, é importante saber exatamente a que tipo de virtudes mo rais o surrealismo apela, visto que, ao fim e ao cabo, ele deita raízes na vida, e, certamente que não por acaso, na vida deste tempo, a partir do momento que recarrego esta vida com anedotas como o céu, o ruído de um relógio, o frio, um mal-estar, enfim, desde que recomeço a falar de las de maneira ordinária. Pensar nestas coisas, agarrar-se a um degrau qualquer dessa escada de mão degradada é algo de que ninguém está livre, a menos que tenha ultrapassa do o último grau do ascetismo. Na verdade, é do fervilhar nauseante dessas representações destituídas de sentido que nasce e se mantém o desejo de não levar em conta a insu ficiente, a absurda distinção entre belo e feio, verdadeiro e falso, bem e mal. E, como o vôo mais ou menos seguro do espírito na direção de um mundo finalmente habitável depende do grau da resistência oposta a esta idéia de escol, não é difícil de compreender que o surrealismo não tenha hesitado em adotar o dogma da revolta absoluta, da insubmissão total, da sabotagem consoante as regras, e que ele não espere nada de coisa alguma que não seja a violên cia. O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for possível, contra a multidão. Quem jamais teve ganas de
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assim liquidar com o sistemazinho de aviltamento e cretinizaçao em vigor tem um lugar marcado no meio dessa multidão, com o ventre à altura de um cano de revólver.8 A legitimação de tal ato não é, no meu entender, de forma alguma incompatível com a crença nesse clarão que o sur realismo tenta descobrir no fundo de nós. Eu quis apenas reintroduzir aqui o desespero humano, aquém do qual nada poderia justificar esta crença. É impossível darmos o nosso assentimento a uma sem que também o demos ao outro. Quem quer que fingisse adotar esta crença sem ver dadeiramente comungar neste desespero não tardaria em fazer figura de inimigo aos olhos dos que sabem. Esta dis posição do espírito que chamamos de surrealista e que pode ser vista assim ocupada dela mesma, parece cada vez me nos necessário buscar-lhe os antecedentes e, pelo que me diz respeito, não me oponho a que os cronistas, judiciári os ou não, a tenham por especificamente moderna. Te nho mais confiança neste momento, atual, de meu pensamento do que em tudo que tentarão fazer significar uma obra acabada, uma vida humana chegada a seu termo. Definitivamente, nada é mais estéril que essa perpétua interrogação dos mortos: converteu-se Rimbaud em seu leito de morte, podem-se encontrar no testamento de Lênin os elementos de uma condenação da atual política da IIIa Internacional, porventura uma desgraça física in suportável e inteiramente pessoal teria sido a grande mola do pessimismo de Alphonse Rabbe, professou Sade, em plena Convenção, convicções contra-revolucionárias? Basta formularem-se estas perguntas para que se perceba a fragi
lidade do testemunho daqueles que já não vivem. Dema siados patifes estão interessados no sucesso deste esbulho espiritual para que eu os siga neste terreno. Em matéria de revolta, nenhum de nós deve ter necessidade de antepas sados. Faço questão de deixar claro que, no meu entender, é mister desconfiarmos do culto dos homens, por muito grandes que eles pareçam ser. Excetuado tão-somente Lautréamont, não conheço nenhum que não tenha deixa do algum vestígio equívoco da própria passagem. É ocio so co ntin ua r a discutir sobre R imbaud: Rim baud, se enganou, Rimbaud quis enganar-nos. Em nosso enten der, ele é culpado de ter permitido, de não ter tornado inteiramente impossíveis certas interpretações que deson ram seu pensamento, do gênero da de Claudel. Tanto pior, também, para Baudelaire (“Ó Satã.. .”)9 e esta “regra eter na” de sua vida: “dirigir todas as manhãs minha oração a Deus, reservatório de toda força e toda justiça, a meu pai , a Mariette e a Poe, como intercessores”.10 Sim, eu sei que todos temos o direito de nos contradizermos, mas ainda assim... A Deus, a Poe? A Poe que, nas revistas consagra das à polícia é apontado hoje em dia, com inteira justiça, como mestre dos policiais científicos (de Sherlock Holmes, com efeito, a Paul Valéry...) Não é uma vergonha apre sentar sob um aspecto intelectualmente sedutor um tipo de policial, em tudo e por tudo um policial, ou o fato de dotar o mundo de um método policial? Cuspamos, de pas sagem, ém Edgar Poe.11 Se, pelo surrealismo, rejeitamos sem hesitar a idéia de que são possíveis apenas as coisas qúe “existem” e se, de nossa parte, declaramos que por um
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caminho que “existe”, o qual podemos mostrar e ajudar a seguir, chega-se àquilo que supostamente “não existia”; se não temos palavras bastantes para profligar a baixeza do pensamento ocidental; se nao tememos insurgir-nos con tra a lógica; se não juramos que um ato por nós executado em sonhos tem menos sentido que um ato executado em estado de vigília; se nem sequer estamos certos de que um dia não se dará cabo do tempo, velha força sinistra, trem a descarrilhar perpetuamente, louca pulsação, montão inextricável de animais moribundos e já mortos: como lá podem querer que nós manifestemos qualquer espécie de carinho ou, quando menos, de tolerância, em relação a algum aparelho de conservação social, seja ele qual for? Isto seria, de nossa parte, o único delírio verdadeiramente inaceitável. Está tudo por fazer e todos os meios devem servir para arruinar as idéias de família , de pátria , de reli gião. Não basta que a posição surrealista a este respeito seja bem conhecida, é necessário que se saiba, também, que ela não comporta quaisquer compromissos. Aqueles que se esforçam por mantê-la persistem em proclamar esta negação, a não ligar a mínima a qualquer outro critério de valor. Eles estão decididos a desfrutar plenamente da cons ternação tão bem encenada com que o publico burguês, sempre ignobilmente disposto a perdoar-lhes alguns erros “da juventude”, acolhe a necessidade, que jamais os aban dona, de chacotear como selvagens diante da bandeira fran cesa, de vomitar de nojo na cara de cada padre e de assestar sobre a corja dos “deveres fundamentais” a arma de longo alcance do cinismo sexual. Nós combatemos, sob todas as
formas, a indiferença poética, a distração artística, a pes quisa erudita, a especulação pura, e não queremos ter nada em comum nem com os pequenos nem com os grandes economizadores do espírito. Todas as deserções, todas as abdicações, todas as traições possíveis não nos impedirão de liquidar com essas nonadas. Muito de notar, aliás, é o fato de que, entregues a si próprias e a mais ninguém, as pessoas que nos puseram um dia na necessidade de dispensá-las logo perderam pé, logo precisaram recorrer aos expedientes mais miseráveis para novamente angariar o favor dos defensores da ordem, todos eles grandes parti dários do nivelamento por cima. Isto se dá porque a fide lidade não desmentida aos compromissos do surrealismo pressupõe um desinteresse, um desprezo do perigo, uma recusa de compromissos, tudo coisas de que, a longo pra zo, muito poucos se revelam capazes. Ainda que não res tasse nenhum daqueles que, antes de todos mais, mediram suas possibilidades de significação e sua fome de verdade tomando-o por bitola, o surrealismo haveria de viver. Seja como for, é tarde demais para que a semente dele não ger mine ao infinito no campo humano, juntamente com o medo e o mato, que deverão prevalecer sobre tudo o mais. Aliás, foi esta a razao por que eu prometera a mim mes mo, como comprova o prefácio à reedição do Manifesto do Surrealismo (1929), abandonar silenciosamente à sua triste sorte certo número de indivíduos que me pareciam já ter reconhecido suficientemente seus próprios méritos: tal era o caso dos senhores Artaud, Carrive, Delteil, Gérard, Limbour, Masson, Soupault e Vitrac, nomeados no M a
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nifesto (1924) e mais alguns, a partir de então. Tendo o primeiro desses senhores cometido a imprudência de queixar-se, parece-me bem reconsiderar minhas intenções nesta matéria: “H á ” escreve o sr. Arta ud a O Intransigente,12 em 10 de setembro de 1929, “há na resenha crítica do Manifes to do Surrealismo publicada no Intran de 2 4 de agosto p.p., uma frase que reaviva demasiadas coisas: ‘O sr. Breton não julgou que devesse introduzir correções nesta segunda edição de seu livro — sobretudo de nomes — > e isto honra-o muito; mas as retificações fazem-se por si mesmas. *O fato de o sr. Breton invocar a honra para passar julgamento sobre certas pessoas a que se aplicam as retificações acima mencionadas tem a ver com uma moral sectária que até aqui só infectara uma minoria de homens de letras. Mas épreciso deixar estes jogos internos de panelinhas exclusivamente aos surrealistas. Além do mais>quem quer que se tenha acumpliciado com o caso do “Sonho”, há um ano, não tem o direito de vir falar de honra. ” Não tenho a mínim a intenção de debater com o signatário desta carta o sentido muito preciso que dou à palavra honra. Que um ator, visando ao lucro e à gloríola, se dedique a encenar luxuosamente uma peça do nebulo so Strindberg, peça à qual ele próprio não atribui a menor importância, eu não veria nisso nenhum inconveniente particular, caso esse ator não se tivesse, vez por outra, apre sentado como um homem capaz de pensar, de indignarse, de agir com bravura, se não fosse o mesmo que em páginas de A Revolução Surrealista13 ardia no desejo, se
gundo dizia, de tudo incendiar e pretendia depositar sua esperança tão-somente “nesse grito do espírito que se vol ta sobre si mesmo bem decidido a triturar desesperada mente suas travas”. Lamentavelmente, para ele isso não passava de um “papel” como outro qualquer; ele “monta va” O Sonho, de Strindberg, por ter ouvido dizer que a embaixada da Suécia pagaria (o sr. Artaud sabe que estou em condições de prová-lo), e não lhe escapava o fato de que isto condenava o valor moral de seu empreendimento: mas, e daí? Pois bem: é o sr. Artaud, a quem sempre volta rei a ver ladeado por dois policiais, à porta do Teatro Alfred Jarry, e lançando outros vinte contra os únicos amigos que, um dia antes, ele declarava ter, não sem haver previamen te negociado no comissariado de polícia a detenção dos mesmos, naturalmente é o sr. Artaud quem me julga sem credenciais para falar de honra. Aragon e eu pudemos verificar, pelo modo como foi recebida nossa colaboração crítica no número especial de Variedades,14 “O Surrealismo em 1929”, que o pouco constrangimento que sentimos ao apreciar, no dia a dia, o grau de qualificação moral das pessoas, que a facilidade com que o surrealismo se orgulha de despedir cordialmente este ou aquele indivíduo, ao primeiro sinal de transigên cia, é, menos do que nunca, do agrado de certos patifes da imprensa, para os quais a dignidade humana é, quando muito, matéria de zombarias. Pode-se lá imaginar que ve nha alguém com tantas exigências no domínio até aqui menos vigiado, excetuados uns tantos românticos que se suicidaram ou não?! Por que continuaríamos a bancar os
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enojados? Um policial,.uns tantos pândegos, dois ou crês, jornalistas de aluguer, vários desequilibrados, um débil mental, aos quais, ninguém objetaria a que viessem jun tar-se uns poucos seres sensatos, duros e probos que seri am qualificados de energúmenos: não será isto bastante para constituir uma equipe divertida, inofensiva, feita to talmente à imagem da vida, uma equipe de homens pagos por peças, remunerados por pontos? MERDA. A confiança do surrealismo não pode ser bem ou mal depositada, pela simples razão que ela não é deposita da em parte alguma. Nem no mundo sensível, nem sensi velmente fora deste mundo, nem na perenidade das associações mentais que com uma exigência natural ou um capricho superior tornam a nossa existência digna de apreço, nem no interesse que pode ter o “espírito” em poupar nossa clientela de passagem. Nem, muito menos, escusa acrescentar, nos recursos mudáveis daqueles que, a princípio, dele se fiaram. Não será um homem cuja revol ta se canalize e se esgote quem impedirá esta revolta de atroar, não serão tantos homens quantos lá quiserem — e a história mal se faz com a ascensão deles de joelhos — que poderão fazer com que esta revolta não subjugue, nos grandes momentos obscuros, a fera sempre renascente do “é melhor”. Ainda há, neste momento, espalhados pelo mundo, nas escolas secundárias, até mesmo nas oficinas,15 na rua, nos seminários e nos quartéis, indivíduos jovens e puros, que rejeitam o rotineiramente aceito. É somente a
eles que me dirijo, é somente para eles que tento ilibar o surrealismo da acusação de, ao fim e ao cabo, não ser mais que um passatempo intelectual como outro qualquer. Que eles busquem, sem qualquer opinião preconcebida, des cobrir aquilo que foi nosso desejo realizar, que eles nos ajudem e, se necessário, que eles tomem, um por um, nossos lugares. É quase inútil que nos defendamos da acu sação de alguma vez termos desejado constituir um círcu lo fechado: só ganham com propagar este rumor aqueles cuja curta associação a nós foi denunciada por nós como vício redibitório. E o sr. Artaud, como já o vimos, e tam bém tal como poderia ter sido visto, ao ser esbofeteado por Pierre Unik num corredor de hotel e, ato contínuo, pedir socorro a sua mãe\ É o sr. Carrive, incapaz de enca rar o problema político ou sexual, a não ser do ponto de vista do terrorismo gascão, pobre apologista, no fim das contas do Garine do sr. Malraux,16 E o sr. Delteil, ver sua ignóbil matéria sobre o amor no número 2 de A Revolução Surrealista (direção de Naville), e, a partir de sua exclu são do surrealismo, “Les Poilus”, “Jeanne d’Arc”: é ocioso insistir. É o sr. Gérard, único em seu gênero, verdadeira mente expulso por estupidez congênita: uma evolução diferente da anterior; desempenha agora funções modes tas em A Luta de Classes18e A Verdade,19 nada de grave. É o sr. Limbour, que, praticamente, desapareceu também: cepticismo, coquetismo literário, no pior sentido da pala vra. É o sr. Masson, cujas convicções surrealistas, embora muito apregoadas, não resistiram à leitura de um livro in titulado O Surrealismo e a Pintura ,20 cujo autor, pouco
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ligando, aliás, para essas hierarquias, não julgara dever ou poder dar a ele a primazia sobre Picasso, a quem o sr. Masson considera um crápula, e sobre Max Ernst, a quem acusa tão-somente de pintar menos bem do que ele pró prio: é uma explicação que me deu pessoalmente. É o sr. Soupault, e, com ele, a infâmia total — não falemos se quer das coisas que ele assina, falemos das que não assina, dos pequenos rumores deste gênero que ele, ao mesmo tempo que o nega, com sua agitação de rato que. faz a volta completa do ratódromo, “passa” aos jornais especi alizados em chantagear, como o A Escuta.:21 O sr. André Breton, chefe do grupo surrealista, desapareceu do reduto do bando>na Rua Jacques-Callot, (trata-se da antiga Galeria Surrealista). Informa-nos um amigo surrealista que com ele desapareceram alguns dos livros de contabilidade da estranha sociedade do Bairro Latino votada à supressão de tudo. Ou vimos dizer, entretanto, que o exílio do sr. Breton tem sido minorado pela deliciosa companhia de uma loura surrealista. René Crevel e Tristan Tzara também sabem quem é o res ponsável por certas revelações espantosas sobre a vida de les e outras tantas imputações caluniosas. Quanto a mim, confesso que aufiro algum prazer do fato de que o sr. Artaud tente, tão gratuitamente, fazer-me passar por desonesto e também de que o sr. Soupault tenha a audácia de pintarme como ladrão. É, enfim, o sr. Vitrac, verdadeiro esfregão das idéias — abandonemos a “poesia pura” a ele e àquela outra barata, o Abade Bremond — , pobre diabo cuja in genuidade a toda prova levou-o ao ponto de confessar que seu ideai, como homem de teatro, ideal este que é, natu
ralmente, compartilhado pelo sr. Artaud, era organizar es petáculos que pudessem rivalizar em beleza com as prisões em massa realizadas pela polícia (declaração do Teatro Alfred Jarry, publicada na Nova Revista Francesa21). Tudo muito divertido, como se vê. Outros, vários outros, aliás, que não mereceram figurar nesta enumeração, seja por que sua atividade pública é por demais desimportante, seja porque suas velhacarias foram praticadas num âmbito menos gerai, seja, ainda, porque tentaram escapar por meio do humorismo, encarregaram-se de provar-nos que mui to poucos homens, entre os que se apresentam, acham-se à altura dos propósitos do surrealismo, e também de con vencer-nos de que tudo aquilo que, ao primeiro sinal de fraqueza, os julga e precipita, irremediavelmente, em sua perdição, milita de todo em todo a favor destes propósi tos, ainda que os que permanecem sejam menos numero sos que os que se despenham. Que eu continuasse a abster-me de fazer este co mentário seria pedir demais. Na medida dos meios de que disponho, não me creio autorizado a deixar que poltrões e simuladores, arrivistas, testemunhas falsas e informantes da polícia andem por aí impunemente. O tempo perdido à espera de poder confundi-los ainda pode ser recupera do; mas não pode ser recuperado a não ser que se vá con tra eles. Penso que esta discriminação muito precisa é a única perfeitamente digna da meta que buscamos, que haveria certa cegueira mística em subestimar o poder dis solvente da permanência desses traidores entre nós, assim como haveria a mais lamentável ilusão de caráter positi
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vista em supor que esses traidores, ainda pouco mais do que aprendizes, podem permanecer insensíveis a semelhan te sanção.23 E que o diabo guarde, uma vez mais, a idéia surrea lista assim como qualquer outra idéia que vise a assumir forma concreta, a submeter tudo quanto se possa imagi nar de melhor na ordem dos fatos, da mesma maneira que a idéia de amor visa a criar um ser, que a idéia de Revolu ção visa a fazer chegar o dia dessa Revolução, sem o que tais idéias deixariam de ter qualquer sentido — lembremonos de que a idéia surrealista visa, simplesmente, à recu peração totaí de nossa força psíquica por um meio que mais não é do que a descida vertiginosa ao interior de nós mesmos, a iluminação sistemática dos lugares ocultos e o obscurecimento progressivo dos outros lugares, o passeio perpétuo em plena zona proibida; lembremo-nos ainda de que sua atividade não corre qualquer sério risco de ces sar enquanto o homem for capaz de distinguir um animal de uma chama ou de uma pedra — , que o diabo guarde a idéia surrealista, dizia eu, de entrar a progredir sem con tratempos. E absolutamente necessário que ajamos como se de fato estivéssemos “no mundo”, antes que ousemos formular algumas reservas. Por conseguinte, a despeito dos que se desesperam por ver-nos abandonar freqüentemen te as alturas onde nos confinaram, dedicar-me-ei a falar aqui da atitude política, “artística”, polêmica, que pode ser adotada por nós no fim de 1929, e mostrar, fora dela, exatamente o que a ela opõem certos comportamentos
individuais escolhidos entre os mais típicos e particulares de hoje em dia.^ Não sei se cabe responder aqui às objeçoes pueris dos que, avaliando as conquistas possíveis do surrealismo no domínio poético, por onde ele começou, preocupamse por vê-lo tomar partido na questão social e pretendem que com isso sairá perdendo em toda a linha. Trata-se, incontestavelmente, de preguiça da parte deles ou da ex pressão indireta de seu desejo de diminuir-nos. Na esfera da moralidade, disse Hegel de uma vez por todas, segundo pensamos, na esfera da moralidade, enquanto distinta da esfera socialnão se tem mais que uma convicção formal, e se mencionamos a verdadeira convicção, fazemo-lo para mos trar em que se distingue e para evitar a confusão na qual alguém poderia incidir caso considerasse a convicção tal como se apresenta aqui, vale dizer, a convicção formal, como se ela fosse a convicção verdadeira, ao passo que esta não seproduz, em primeiro lugar, senão na vida social. (Filosofia do Direi to). Já não é necessário fazer a crítica da suficiência desta convicção formal: o querer que, a todo transe, nos limite mos a ela não honra nem a inteligência nem a boa fé de nossos contemporâneos. Não há sistema ideológico que, sem arruinar-se de pronto, possa, a partir de Hegel, deixar de preencher o vazio que deixaria no próprio pensamento o princípio de uma vontade que não agisse senão por con ta própria e inteiramente inclinada a refletir-se sobre si mesma. Q uando eu tiver lembrado que a lealdade, no sen tido hegeliano da palavra, não pode ser senão função da penetrabilidade da vida subjetiva pela vida “substancial5’ e
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que, sejam sejam quais forem suas suas divergênc divergências ias em outras m até rias, esta idéia não foi objeto de impugnação fundamental po p o r p arte ar te de espí es pírit ritos os tão diversos q u anto an to Feue Fe uerba rbach, ch, que qu e acaba por negar a consciência enquanto faculdade parti cular; quanto Marx, inteiramente possuído da necessida de de modificar de alto a baixo as condições exteriores da vida social; quanto Hartmann, que faz derivar de uma teoria do inconsciente de base ultrapessimista uma nova e otimista afirmação de nossa vontade de viver; quanto Freud, insistindo in sistindo cada vez vez mais mais na autoridade au toridade própria próp ria do superego, penso que ninguém se surpreenderá em ver o surrealismo dedicar-se, de passagem, a algo diverso da re solução de um problema problem a psicoló psicológic gico, o, por p or mais mais interessan interessan te que este este se seja. ja. É em nom n omee do prem ente reconhecim reco nhecimento ento desta necessidade que eu julgo não podermos evitar a co locação apaixona apaixo nada da da questão ques tão do regime reg ime soci social al sob o qual vivemos, vale dizer, da aceitação, ou não, deste regime. E é também em nome desse reconhecimento que é mais do que tolerável que, de passagem, eu incrimine os trânsfugas do surrealismo, para os quais o que aqui sustento é demasiado difícil ou demasiado alto. Façam o que fize rem, saúdem com os brados de falsa alegria que bem en tenderem a própria retirada, prognostiquem-nos a decepção grosseira que lhes aprouver — e, com eles os que dizem d izem que q ue todos tod os os regi regimes mes se eqüivalem, eqüivalem, porqu po rque, e, no final, final, o hom h omem em sempre acabará acabará por ser ser vencido — , não não farão com que eu me esqueça de que não caberá a eles, mas a mim, desfrutar essa “ironia” suprema que se aplica a tudo, inclu inc lusiv sivee aos aos regimes regimes, e que qu e lhes lhes será negada po p o r estar
além mas supor, previamente, todo o ato voluntário que consiste consis te em descrever o ciclo da hipocrisia, doprobabilismo, da vontade que quer o bem e da convicção (Hegel: Fenomenologia do Espírito). O surrealismo, visto que, muito especificamente, faz par p arte te de seu prog pr ogra ram m a proc pr oced eder er à críti cr ítica ca das noçõ no ções es de realidade e de irrealidade, de razão e desrazão, de reflexão e de impulso, de saber e de ignorância “invencível”, de utilidade e de inutilidade, etc., tem, analogamente ao materialismo histórico, ao menos esta tendência a partir do “aborto colossal” do sistema hegeliano, Parece-me im possível esti es tipu pula larr limit li mites, es, com co m o os do quad qu adro ro econ ec onôm ômic ico, o, po p o r exem e xempl plo, o, para pa ra o exercício de d e um u m pen pe n sam sa m ento en to d e fin fi n iti it i vamente maleabilizado pela negação e pela negação da negação. Como admitir que o método dialético só possa aplicar-se validamente à solução de problemas sociais? A ambição maior do surrealismo é fornecer-lhe possibilida des de aplicação de modo algum concorrentes no domí nio consciente mais imediato. Em que pese a certos revolucionários revolucionários de de espírito acanhado, não compreend comp reendoo por po r que nos absteríamos de colocar, desde que os abordásse mos do mesmo ponto de vista a partir do qual eles — e també tam bém m nós — o fazem, fazem, que é o da Revolução, os os proble prob le mas do d o amor, am or, do sonho, son ho, da loucura, louc ura, da arte e da religião.24 religião.24 Ora, Ora , nao me m e temo de dize dizerr que, antes do surrealismo, surrealismo, nada n ada sistemático fora feito nessa direção e que, no ponto em que cíencontramos, também para nós o método dialético, sob sob sua form fo rm a beg begelian eliana, a, era era inaplicável. inaplicável. Também para nós nós o que estava em jogo era a necessidade de liquidar com o
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idealismo propri pro priam amen ente te dito, e somente a criaç criação ão da pala vra “surrealismo” nos serviria de garantia quanto a isso; e, para pa ra reto re tom m a r o exem ex empl ploo de Engels, Enge ls, estava em jo jogo go,, igual igu al mente, a necessidade de não nos atermos ao desenvolvi m ento en to infantil: infan til: “A rosa é uma rosa rosa.. A rosa rosa não é uma um a rosa. rosa. E, no entanto, a rosa é uma rosa”, mas (permita-se-me este parêntese) de introduzirmos “a rosa” num movimen to proveitoso de contradições menos anódinas, no qual ela fos fosse se,, sucessivamente, a que vem do jardim, jardim , a que ocu oc u pa p a n u m son so n h o u m a posiç po sição ão singula sin gular, r, a q ue não p ode od e ser destacada de um “ramalhete óptico”, a que pode adquirir pro p ropp rie ri e d a d e s in inte teir iraa m e n te nova no vass ao passa pa ssarr pela pe la escr es crita ita autom auto m ática, ática , a que já não retém de rosa rosa senão senão aquilo que qu e o pi p i n t o r quis q uis que qu e ela retivesse nu n u m quad qu adro ro surrealista surre alista,, a que, enfim, diversa totalmente de si mesma, retorna ao jardim de onde saiu. Vai uma grande distância disto a qualquer modo de ver idealista, e nem sequer nos daríamos ao tra bal b alho ho de defe de fenn d er-n er -nos os se pudé pu désse ssemo moss deixa de ixarr de ser alvo dos ataques do materialismo primário, ataques estes que prov pr ovêm êm,, ao m esm es m o tem te m p o , daquel daq ueles es que, qu e, em v irtu ir tudd e de seu baixo conservadorismo, não têm desejo algum de elu cidar as relações do pensamento com a matéria, e daque les'que, por obra de um sectarismo revolucionário mal compreendido, confundem, sem levar em conta o que se lhes pede, este materialismo mate rialismo com o que Engels Engels dele dele di distin stin gue essencialmente, definindo-o como uma intuição do mundo chamada a pôr-se à prova e a realizar-se: Ao A o long longoo do desenvolvimento da filosofia o idealismo tornou-se insus tentável e foi negado pelo materialismo moderno. Este últi
mo, que é a negação da negação, não é a simples restauração do antigo materialismo: aos duráveis fundamentos deste acres centa todo o pensamento da filosofia e das ciências da nature za, ao longo de uma evolução de dois mil anos, e o produto mesmo dessa longa história. Queremos também situar-nos num ponto de partida tal que, para nós, a filosofia esteja ultrapassada. É o destino, creio eu, de todos aqueles para os quais a realidade não tem apenas uma importância teó rica, mas se constitui em questão de vida ou de morte para quantos a ela apaixonadamente fazem apelo, como quis Feuerbach: o nosso25 é aderir, totalmente e sem reser vas, como o fazemos, ao princípio do materialismo histó rico; o dele26 é lançar à cara do embasbacado mundo intelectual a idéia de que “o homem é aquilo que ele come” e que uma revolução futura teria maiores probabilidades de sucesso se o povo se alimentasse melhor: no caso, se comesse ervilhas ao invés de batatas.27
Nossa adesão ao princípio do materialismo históri co... não há meio de jogar com estas palavras. Caso isto só dependa de nós — quero dizer, desde que o comunis mo não nos trate como a bichos estranhos destinados a desempenhar em suas fileiras o papel de papalvos desafia dores — , mostrar-nos-emos capazes, do ponto de vista revolucionário, de cumprir com todas as nossas obriga ções. Infelizmente, este é um compromisso que só inte ressa a nós: quanto mim, não consegui, há dois anos, cruzar livre e anonimamente a soleira daquela casa do Partido francês, onde tantos indivíduos pouco recomendáveis,
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policiais e outros, têm permissão para se divertir à grande. No decorrer de três interrogatórios que se estenderam por muitas horas, tive de defender o surrealismo da acusação pueril de ser, essencialmente, um movimento político de orientação anticomunista e contra-revolucionária. Exame aprofundado de minhas idéias, escusa dizer, era coisa que eu não podia esperar daqueles que me julgavam. “Se sois marxista”, vociferava nessa época Michel Marty, dirigindo-se a um de nós, “não precisais ser surrealista.” Surrea listas, fique bem claro, não fôramos nós que nos havíamos prevalecido de ser, naquela circunstância: tal classificação nos havia precedido, a despeito de nós mesmos, da mes ma maneira como a de “relativistas” poderia ter sido apli cada aos einsteinianos, a de psicanalistas aos freudianos. Como não nos preocuparmos terrivelmente com tama nho rebaixamento do nível ideológico de um partido que, não faz muito tempo, saíra tão brilhantemente armado de duas das melhores cabeças do século XIX?! Os fatos são demasiado conhecidos, e o pouco que, a este respeito, posso retirar de minha experiência pessoal condiz de todo em todo com o resto. Pediam-me que fizesse na célula “do gás” um relatório sobre a situação italiana, especificando que eu não deveria apoiar-me senão em fatos estatísticos (produção de aço, etc.) e, sobretudo, nada de ideologia. Foime impossível fazê-lo. Aceito, contudo, que, em conseqüência de um en gano, nada mais, me tenham tido, no partido comunista, por um dos intelectuais mais indesejáveis. M inha simpa
tia, aliás, está demasiadamente consagrada à massa dos que farão a Revolução social para poder ressentir-se dos efei tos passageiros desta desventura. O que eu não aceito é que, em virtude de possibilidades particulares de movi mento, certos intelectuais que eu conheço cujos móveis morais estão sujeitos a caução, depois de tentarem sem êxito, a poesia ou a filosofia, tenham aderido subitamen te, à agitação revolucionária, graças à confusão ali reinan te consigam iludir em maior ou menor grau e, para maior comodidade, se dêem grande pressa em renegar estrepitosamente aquilo que, como o surrealismo, lhes deu a pen sar as coisas mais claras que eles pensam, mas, ao mesmo tempo, forçava-os a prestar contas da própria posição e a justificá-la humanam ente. O espírito não é uma ventoinha, ou, pelo menos, não é apenas uma ventoinha. Não basta alguém achar, de repente, que tem a obrigação de devotar-se a uma determinada atividade; e a coisa não tem valor algum se, por isso mesmo, alguém não pode mostrar objetivamente de que modo chegou àquela conclusão e em que ponto exato era mister que estivesse para chegar a ela. E não me venham com essas conversões revolucioná rias do tipo religioso, que alguns se limitam a nos partici par, acrescentando que se folgam de nada terem a dizer a respeito delas. Nesse plano não deveria ocorrer qualquer ruptura ou solução de continuidade no pensamento. Caso contrário, seria preciso recorrer aos velhos subterfúgios da graça. ; . Estou pilheriando. Mas é óbvio que desconfio em sumo grau. Vamos dizer que eu conheço um homem: ou seja, sou capaz de afigurar-me de onde ele vem e conjetu-
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rar, até certo ponto, para onde vai; e, de repente, querem fazer-me crer que o meu sistema de referências era falso e que esse homem chegou a uma destinação que nao era a sua?! A ser assim, esse homem, a quem não teríamos co nhecido senão no amável estado de crisálida, precisaria abandonar o casulo de suas idéias a fim de voar com as próprias asas? Novamente, não acredito uma palavra de tudo isso. Julgo que teria sido absolutamente necessário, não somente por razões de ordem prática, senão também morais, que cada um dos que assim se desligaram do sur realismo viesse a questionar-lhe a ideologia e nos desse a conhecer, de seu próprio ponto de vista, suas partes mais condenáveis. Ora, nada disso jamais aconteceu. A verda de é que essas bruscas mudanças de atitude parecem ter sido quase sempre determinadas por sentimentos medío cres, e eu penso que é preciso buscar-lhes uma explicação, assim como para a mobilidade da maior parte dos ho mens, antes numa perda progressiva da consciência do que na explosão de uma razão subitânea, tão diferente da an terior quanto a fé do ceticismo. Com grande satisfação daqueles a quem repele o controle das idéias, tal como se exerce no surrealismo, esse controle não pode ter lugar nos meios políticos, sendo-lhes, pois, permitido dar largas à própria ambição, a essa ambição que preexistia — e é isto que é grave — à descoberta de sua pretendida voca ção revolucionária. É preciso vê-los pregar com grande autoridade aos velhos militantes; é preciso vê-los saltar por sobre os vários estágios do pensamento crítico, cuja seve ridade, aqui, é maior do que em qualquer outra parte, em
menos tempo do que precisariam para queimar a própria pena:28 é preciso vê-los, um tomando por testemunha a um pequeno busto de Lênin de três francos e noventa e cinco centavos; outro dando palmadinhas na barriga de Trotski. O que eu tampouco aceito é que pessoas com quem .estivemos em contato e das quais, por tê-lo experi mentado na própria carne, vimos denunciando há três anos, em todas as ocasiões possíveis, a má fé, o arrivismo e os fins contra-revolucionários, os Morhange, os Politzer e os Lefèvre, encontrem meio de captar a confiança dos di rigentes dq'partido comunista a ponto de poderem publi car, dom a aparência, ao^ menos, de apíovação deles, dois números 'de uma Revista de Psicologia Concreta29 e sete números da Revista Marxista?Qfeito o que, eles próprios se encarregam de nos edificar definitivamente com o es petáculo de sua baixeza e, para tanto, o segundo, ao cabo de um ano de “trabalho” em comum e de cumplicidade, decide-se (uma vez que se fala em suprimir a psicologia concreta, que não “vende” bem) a denunciar ao Partido o primeiro, culpado de dissipar, num único dia, em Monte Cario, a quantia de duzentos mil francos que lhe fora con fiada para ser usada em propaganda revolucionária; e este, furioso‘tão-somente com esta última iniciativa, procurame bruscamente pára dar curso a sua indignação, «mbora reconhecendo, sem qualquer dificuldade, a exatidão da denúncia. Hoje em dia, por conseguinte, com a ajuda do Sr. Rappoport, é permitido abusar do nome de Marx em França sem que ninguém veja nisto mal algum. Em seme-
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íhantes condições, peço que me digam a quantas anda a moralidade revolucionária. Pode-se facilmente imaginar que a facilidade com que estes senhores tão cabalmente iludiram, ontem, aos que os acolheram no partido comunista, e iludirão, ama nhã, aos que fizerem o mesmo nas fileiras da oposição ao mesmo partido, tenha sido e ainda seja tentadora para certos intelectuais pouco escrupulosos, recebidos igualmente no surrealismo, que, ao diante, nunca teve mais declarados adversários.31 Uns, à maneira do sr. Baron, autor de poe mas mui habilmente decalcados em Apollinaire, mas tam bém um irresponsável amigo do prazer e, na ausência absoluta de idéias gerais, modesto pôr de sol sobre um charco na floresta imensa do surrealismo, trazem ao m un do “revolucionário” o tributo de uma exaltação de colegi al, de uma ignorância “crassa”, adornadas com visões de Catorze de Julho.32 (Em estilo impagável, comunicou-me o sr. Baron, há alguns meses, sua conversão ao leninismo integral. Sua carta, na qual as proposições mais estapafúr dias rivalizam com pavorosos lugares-comuns tomados de empréstimo ao linguajar de A Humanidade 33 e com comovedores protestos de amizade, encontra-se à disposição dos interessados. Dela não voltarei a falar, salvo se por ele forçado a fazê-lo.) Os outros, à maneira do sr. Naville, que esperaremos pacientemente seja devorado por sua implacável sede de notoriedade — num lapso de tempo insignificante foi ele diretor de O Ovo Duro,ÒA diretor de A Revolução Surrealista,35 primeiro em comando em O Estudante de Vanguarda.,36 diretor de Claridade,37 de A Luta
de Classes?* por pouco não foi diretor do Camarada39 e agora desempenha um papel de primeira plana em A Ver dade40 — os outros se censurariam por dever a qualquer causa algo mais que uma pequena saudação feita com ares protetores, como a dirigida aos desfavorecidos pelas se nhoras das obras de caridade que, logo a seguir, lhes di zem brevemente o que devem fazer. Só de ver passar o sr. Naville, o partido comunista francês, o partido russo, a maioria dos opositores marxistas de todos os países, entre os quais, em primeiro lugar, se encontram homens como Boris Souvarine e Mareei Fourrier, para com os quais ele poderia ter uma dívida, o surrealismo e eu mesmo, todos fazemos figura de indigentes. O sr. Baron que escreveu A Andadura PoéticaAl está para essa andadura como o sr. Neville para a andadura revolucionária. Um estágio de três meses no partido comunista, pensou o sr. Naville, é mais que suficiente, visto que, para mim, o interesse consiste em alardear o fato de dele ter-me desligado. O sr. Naville, ou, quando menos, o pai do sr. Naville, é muito rico. (Para os meus leitores que não se desagradam de detalhes pito rescos, acrescentarei que o escritório da direção de A Luta de Classes está situado à Rua de Grenelle, 15, numa pro priedade da família do sr. Naville, que vem a ser o antigo palácio dos duques de La Rochefoucauld.) Estas conside rações me parecem menos indiferentes do que nunca. Noto, com efeito, que, no momento em que ele se dispu nha a fundar a Revista Marxista, o sr. Morhange recebeu em comandita cinco milhões de francos do sr. Friedmann, a fim de financiá-la. Apesar de, pouco tempo depois, seus
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infortúnios na roleta terem-no obrigado a repor a maior parte desta quantia, não deixa de ser verdade que foi gra ças a esta exorbitante ajuda financeira que ele conseguiu usurpar a posição que se sabe e fazer-se perdoar por sua notória incompetência. Foi também por adquirir um de terminado número de ações de fundador da empresa “As Revistas”,42 responsável pela Revista Marxista , que o sr. Baron, que acabava de entrar na posse de uma herança, pôde crer que mais vastos horizontes se abriam à sua fren te. Ora bem: quando, há alguns meses, o sr. Naville nos comunicou sua intenção de dar à estampa O Camarada, um jornal que, segundo ele, viria atender à necessidade de revigorar a crítica de oposição marxistâ, mas que, na reali dade, deveria sobretudo permitir-lhe, segundo o seu cos tume, desligar-se em silêncio do perspicacíssimo Fourrier, senti-me curioso de saber dele próprio quem estaria ar cando com as despesas da nova publicação, uma publica ção, conforme já disse, da qual ele deveria ser diretor, o único diretor, escusa acrescentar. Seriam esses misteriosos “amigos” com os quais se entabulam longas e divertidíssi mas conversas na última página de cada jornal e a quem se pretende interessar tão vivamente no preço do papei? Não. Eram pura e simplesmente o sr.'Piérre Naville e seu ir mão, que haviam entrado com a-quantia de quinze mil francos, num total de vinte mil. O resto era fornecido-pelos assim chamados “cumpinchas” de Souvarine, dos quais o sr. Naville teve de confessar que nem sequer sabia os no mes. Como se vê, para que alguém faça predominar seu ponto de vista nos meios que, neste particular, deveriam
ser os mais rigorosos, não importa tanto que esse ponto de vista seja, de si mesmo, apto a impor-se, senão que esse alguém seja filho de banqueiro. O sr. Naville, que, tendo em vista o resultado clássico, pratica com arte o método de divisão das pessoas, não hesitará em recorrer a qual quer meio, claro está, para conseguir governar a opinião revolucionária. Mas, como nessa mesma floresta alegóri ca, onde, não faz muito tempo, eu via o sr. Baron exibir as graças de um girino, já tem havido alguns dias nefastos para essa jibóia de má catadura, em muito boa hora não se diz que domadores da estatura de um Trotski ou até mes mo de Souvarine não acabarão por levar a melhor sobre o eminente réptil. De momento sabemos apenas que ele está voltando de Constantinopla em companhia da avezinha chamada Francis Gérard. As viagens, que formam a ju ventude, não deformam a bolsa do pai do sr. Naville. Im porta muito, também, ir indispor Leão Trotski contra seus únicos amigos. E agora uma última pergunta, totalmente platônica, que faço ao sr. Naville: QUEM sustenta A Ver dadey órgão da oposição comunista no qual vosso nome engorda a cada semana e já se exibe ostentosamente na primeira págína? Obrigado. Julguei oportuno alargar-me nestes assuntos, antes de mais nada para deixar claro que, contrariamente ao que desejariam fazer crer, todos os nossos antigos colaborado res que-hoje se dizem totalmente recobrados do surrealis mo, foram, sem exceção, por nós excluídos: e, dito isto, não pareceu ocioso que se soubesse por que tipo de ra
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zões. Fi-lo, em segundo lugar, para mostrar que, se o sur realismo se considera indissoluvelmente ligado, em con seqüência das afinidades que já assinalei, à marcha do pensamento marxista e unicamente a essa marcha, ele se abstém, e certamente se absterá por muito tempo ainda, de tom ar partido entre as duas correntes muito gerais que opõem, neste momento, homens que, pelo fato de não compartilharem a mesma concepção tática, nem por isso, em suas diferentes posições, se revelaram menos franca mente revolucionários. Não será no momento em que Trotski, em carta datada de 25 de setembro de 1929, ad mite que, na Internacional, épatente ofato de que a direção oficial se deslocou para a esquerda, e, praticamente, apóia com toda sua autoridade o pedido de reintegração de Racovsky, de Cassior e de Okoudjava, susceptível de acar retar a sua própria, que nos tornaremos mais irredutíveis do que ele mesmo. Não será no momento em que a mera consideração do mais penosos dos conflitos faz com que tais homens, abstração feita, ao menos publicamente, de suas mais categóricas reservas, dêem um novo passo no sentido da união, que nós iremos, ainda que de muito longe, tentar envenenar a chaga emocional da repressão, como o fazem os senhores PanaTt Istrati è Naville, que o felicita, ao mesmo tempo que lhe puxa a orelha branda mente: Istrati , seria melhor se não tivessespublicado um frag mento de teu livro num órgão como a Nova Revista Francesa,43 etc. Nossa intervenção, em semelhante assun to, não tende senão a pôr os espíritos sérios em guarda contra um pequeno número de indivíduos que, por expe
riência própria, sabemos serem parvos, miscificadores ou intrigantes, e, em qualquer das hipóteses, seres revolucionariamente mal-intencionados. E isto é, praticamente, tudo o que nesse particular nos é dado fazer. Somos os primeiros em lamentar que seja tão pouco.
Para que tais desvios, tais reviravoltas, tais abusos de confiança de toda espécie sejam possíveis no próprio terreno em que acabo de situar-me, é necessário, com toda a certeza, que tudo se converta em zombaria e que mal haja qualquer possibilidade de contar com a atividade de sinteressada de mais que uns poucos homens de cada vez. Se a própria empreitada revolucionária, com todos os ri gores que sua execução pressupõe, não está aparelhada para separar, de imediato, os maus dos bons e os falsos dos sinceros; se, para seu maior dano, ela é forçada a aguardar que uma série de acontecimentos externos se encarregue de desmascarar a uns e a adornar o semblante nu de ou tros com um reflexo de imortalidade; como quererá al guém que as coisas não sejam ainda mais precárias quan do não se trata, já, daquela empreitada propriam ente dita, mas de uma empreitada, como no caso do surrealismo, que nem sequer se confunde com aquela? É norm al que o surrealismo se manifeste no meio e, talvez, pagando o pre ço de uma sucessão ininterrupta de fraquezas, de ziguezagues e de defecções que exigem, a cada instante, sejam novamente ponderados seus dados originais, ou seja, que
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se evoque o princípio inicial de sua atividade unido à in terrogação do amanhã aleatório que faz com que os cora ções se prendam e se desprendam uns dos outros. Nem tudo já foi tentado, é preciso que se diga, para levar a bom termo este empreendimento: quando mais não fosse, ape nas no tirar partido, em toda a linha, dos meios definidos como nossos e no pôr à prova em profundidade os modos de investigação preconizados na origem do movimento de que nos ocupamos. O problema da ação social não é (faço questão de voltar a este ponto e de nele insistir) se não uma das formas de um problema mais geral, que o surrealismo tomou a si suscitar e que vem a ser o problema da expressão humana em todas as suas formas. Quem diz expressão diz linguagem, para começar. Ninguém haverá, pois, de se admirar com ver o surrealismo situar-se, antes de tudo, quase unicamente no plano da linguagem; nem tampouco, de que na volta de qualquer incursão, a ele retorne como que pelo prazer de ali sentir-se em terra con quistada. Já nada pode impedir, com efeito, que em gran de parte esta seja terra conquistada. As hordas de palavras literalmente desencadeadas para as quais dadá e o surrea lismo fizeram questão de abrir as portas, por mais que nos desagradem, não são das que se retiram a troco de nada. Pouco a pouco elas penetrarão nas cidadezinhas idiotas da literatura qué ainda se ensina e, misturando, sem dificul dade, os altos e baixos distritos, calmamente procederão a uma bela derrocada de torrinhas. A pretexto de que, por obra nossa, é somente a poesia que, nos dias que correm, 1se acha seriamente abalada, a população não se preocupa
demasiado e vai construindo, aqui e acolá, barreiras sem importância. As pessoas pretendem não perceber que o mecanismo lógico da frase, por si mesmo, mostra-se cada vez mais incapaz de provocar no homem o abalo emocio nal que dá, realmente, algum valor a sua vida. Em com pensação, os produtos desta atividade espontânea ou mais espontânea, direta ou mais direta, como aqueles que, cada vez mais numerosos, lhe oferece o surrealismo, em forma de livros, de quadros e de filmes, e que ele começou a contemplar com estupor, atualmente ele se rodeia deles e, mais ou menos timidamente, delega-lhes o cuidado de révolucionar seu modo de sentir. Eu sei: este homem -aindà não é todo o homem, e é preciso dar-lhe “tempo” para "que se torne tal. Mas vede de que admirável e perversa infiltração já se mostrou capaz um pequeno número de obras inteiramente modernas, das quais o mínimo que se pode dizer é que nelas reina uma atmosfera particular mente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (apesar das reser vas que lhe fiz), Huysmans, Lautréamont, para restringirme à poesia. Desta insalubridade não temamos fazer norma que nos governe. Que de futuro não se possa dizer que não fizemos tudo quanto pudemos para aniquilar a estú pida ilusão de felicidade e concórdia, qíie o século XIX terá a glória de haver denunciado. Sem dúvida, não deixar mos de amar fanaticamente esses raios de sol cheios de miasmas. Mas, no momento em que os poderes constitu ídos em França grotescamente se preparam para celebrar com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual esta
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mos prontos a passar, hoje em dia, por cauda, desde que cauda em alto grau preênsil, por sua própria essência, em 1930, reside inteiramente na negação desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existência eqüiva lem à juventude; que a sua chamada época heróica já não pode ser honestamente considerada mais que o vagido de um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que tudo o que antes dele foi pensado — “classicamente” — era o bem, quer, sem sombra de dúvida, todo o mal. Qualquer que tenha sido a evolução do surrealismo no domínio político, por mais premente que dali nos te nha vindo a ordem de nao contar, para a libertação do homem, primeira condição do espírito, senão com a Revo lução proletária, posso afirmar que nao descobrimos qual quer razão válida para reconsiderar os meios de expressão que nos são próprios e cuja utilidade pudemos comprovar na prática. Condene quem quiser determinada imagem especificamente surrealista que eu, sem refletir, tenha em pregado num prefácio. “Esta família é uma ninhada de cães” (Rimbaud). Quando, ao citar fora de contexto um dito como este, alguém provocar uma boa dose de chaco ta, mais não terá conseguido do que reunir um bando de ignorantes. Não logrará acreditar, às custas dos nossos, procedimentos neonaturalistas, vale dizer, descartar como coisa de pouca importância tudo o que, a partir do natu ralismo, veio a constituir as mais importantes conquistas ' do espírito. Lembro aqui a resposta que dei, em setembro
de 1928, a duas perguntas que me haviam sido feitas: Ia Credes que a produção artística e literária seja um fenômeno puramente individual? Não pensais que ela possa ou deva refletir as grandes correntes que determinam a evolução eco nômica e social da humanidade? 2a Credes na existência de uma literatura e uma arte que exprimem as aspirações da classe operária? Quais são, em vossa opinião, seus maiores representantes? 1. Sem dúvida alguma, passa-se com a produção artística e literária o mesmo que com todo o fenômeno intelectual, no sentido em que não cabe, a este respeito, colocar outro problema que não seja o da soberania do pensamento. O que significa que é impossível responder a vossa primeira pergunta com uma afirmação ou uma ne gação e que a única atitude filosófica a ser observada num caso desses consiste em valorizar “a contradição (que exis te) entre o caráter do pensamento humano, que represen tamos como absoluto, e a realidade desse pensamento numa multidão de seres humanos individuais cujo pensa mento é limitado: é esta uma contradição que só pode ser resolvida no progresso infinito, na série ao menos pratica mente infinita das sucessivas gerações humanas. Neste sen tido o pensamento humano possui a soberania e, ao mesmo tempo, não a possui; sua capacidade cognitiva é tão ilimi tada quanto limitada. Soberana e ilimitada por sua natu reza, sua vocação, em potência, e quanto a seu objetivo final ríà história; mas sem soberania e limitada em cada uma de suas realizações e em qualquer de seus estados.” (Engels: A Moral e o Direito. Verdades Eternas.) Este pen-
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sarnento, no domínio em que me pedis que considere uma determinada expressão sua, não pode senão oscilar entre-a consciência dê sua perfeita autonomia e a de sua. estreita dependência. Em nosso tempo, a produção artística e lite rária me parece inteiramente sacrificada à necessidade que este drama tem de chegar ao desenlace, ao cabo de um século de filosofia e poesia verdadeiramente dilacerantes (Hegel, Feuerbach, Marx, Lautréamont, Rimbaud, Jarry, Freud, Chaplin, Trotski). Nessas condições, dizer que tal produção pode ou deve refletir as grandes correntes que determinam a evolução econômica e social da humanida de seria emitir um julgamento bastante vulgar, que impli caria o reconhecimento puramente circunstancial do pensamento e não daria maior importância a sua natureza fundamental: a um tempo incondicionada e condiciona da, utópica e realista, achando seu fim em si mesma e não aspirando senão a servir, etc. 2. Não creio na possibilidade de atualmente existir uma literatura ou uma arte que exprima as aspirações da classe operária. A razão por que me recuso a crer nela é o fato de que, em período pré-revolucionário, o escritor ou o artista, de formação necessariamente burguesa, é, por definição, incapaz de exprimi-las. Não nego que ele possa fazer idéia delas e que, em condições morais de todo em todo excepcionais, seja capaz de compreender a relativi dade de todas as causas em função da causa proletária. Julgo que, para ele, isto é uma questão de sensibilidade e honestidade. Mas nem por isso ele escapará à dúvida dig na de nota, inerente a seus próprios meios de expressão,
que o força a considerar, em si mesmo e somente para si, sob um ângulo muito especial, a obra que ele se propôs realizar. Para que esta obra seja possível, cumpre situá-la em relação a certas obras já existentes; e, por sua vez, ela deve abrir novos caminhos. Guardadas as proporções, se ria tão inútil erguer-se alguém contra a afirmação de um determinismo poético, cujas leis não são impromulgáveis, quanto contra a do materialismo dialético. De minha parte, continuo convencido de que as duas ordens de evolução são rigorosamente semelhantes e que, além do mais, elas têm em comum ofato de que não perdoam . Assim como as previsões de Marx, no que diz respeito a quase todos os acontecimentos exteriores ocorridos entre sua morte e os dias de hoje, mostraram-se corretas, não vejo nada que pudesse infirmar uma única palavra de Lautréamont, a respeito de acontecimentos que só interessam ao espírito. Em compensação, tão falso quanto qualquer tentativa de explicação social, excetuada a de Marx, é, para mim, qual quer ensaio de defesa e ilustração de uma literatura e uma arte ditas “proletárias”, numa época em que ninguém pode invocar a cultura proletária, pela simples razão de que esta cultura ainda não existe nem mesmo em regime proletá rio. “As vagas teorias sobre a cultura proletária, concebi das por analogia e por antítese à cultura burguesa, resul tam de comparações entre o proletariado e a burguesia às quais o espírito crítico é inteiramente estranho... É certo que chegará um momento, no desenvolvimento da socie dade nova, em que a economia, a cultura, a arte terão a mais ampla liberdade de movimento — de progresso. Mas,
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a este respeito, não podemos senão entregar-nos a conjec turas fantasistas. Num a sociedade que se tiver desembara çado da pesada preocupação com o pão cotidiano, em que as lavanderias comunitárias lavarem bem a boa roupa bran ca de toda a gente, em que as crianças — todas as crianças — bem alimentadas, alegres e saudáveis, absorverem os rudimentos das ciências e das artes como o ar e a luz do sol, em que já não houver “bocas inúteis” e o egoísmo humano libertado — formidável poder — não tender se não ao conhecimento, à transformação e à melhoria do universo, nesta sociedade o dinamismo da cultura não será comparável a nada conhecido no passado. Mas lá não che garemos antes de uma longa e penosa transição que ainda está quase inteira à nossa frente.” (Trotski, “Revolução e Cultura”, Claridade,A4 Io de novembro de 1923.) Estas admiráveis palavras parecem-me refutar, de uma vez por todas, a pretensão de certos mistificadores e outros tantos espertalhões que, hoje em dia, sob a ditadura de Poincaré, se apresentam em França como escritores e artistas prole tários, a pretexto de que tudo, nas obras que produzem, é apenas fealdade e miséria; daqueles que nada concebem além da reportagem sórdida, do monumento fúnebre e do bosquejo de estabelecimentos penais; que mais não sabem do que agitar-nos diante dos olhos o espectro de Zola, do Zolà que eles revolvem sem que consigam sub trair-lhe o que quer que seja e que, abusando sem escrú pulos de quanto vive, sofre, murmura e espera, opõem-se a qualquer pesquisa séria, esforçam-se por impossibilitar qualquer descoberta, e, socolor de darem o que sabem ser
impossível de receber — o entendimento imediato e ge neralizado daquilo que se cria — são, ao mesmo tempo, os piores contemptores do espírito e os mais certos dos contra-revolucionários. É lamentável, começava eu a dizer acima, que esfor ços mais sistemáticos e mais constantes, tais como nunca deixou de exigir o surrealismo, não tenham sido feitos no que se relaciona com a escrita automática, por exemplo, e as narrativas de sonhos. Apesar da nossa insistência em introduzir textos desta natureza nas publicações surrealis tas e do lugar de destaque que eles ocupam em certas obras, cumpre admitir que o interesse que apresentam mal se sustém, por vezes, ou que se assemelham, um pouco de masiado, talvez, a “trechos de bravura”.45 O aparecimento de algum clichê indiscutível na trama desses textos é tam bém de todo ponto prejudicial à espécie de conversão que com eles desejávamos operar. Culpa é da enorme negli gência da maioria de seus autores, que, de modo geral, se contentaram com deixar correr a pena sobre o papel sem minimamente observarem o que então se passava neles — muito embora esse desdobramento seja mais fácil de apre ender e mais interessante de considerar do que o da escrita refletida — , ou com reunir, de modo mais ou menos arbi trário, elementos oníricos destinados antes a brilhar pelo pitoresco do que a permitir a compreensão útil de suas funções. Tal confusão, escusa dizer, priva-nos naturalmente de qualquer benefício que poderíamos tirar de atividades desse tipo. Com efeito, o grande valor que elas têm para o
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surrealismo prende-se ao fato de serem capazes de pôr-nos ao alcance extensões particulares: aquelas, precisa mente, em que a faculdade lógica, até aqui exercida, em tudo e por tudo, âmbito do consciente, não se exerce. Que digo?! Não somente estas extensões lógicas permane cem inexploradas, mas nós também permanecemos tão pouco informados como sempre sobre a origem dessa voz que cada um de nós está apto a ouvir, desde que o queira, e que nos fala do modo mais singular a respeito de coisas diferentes das que cremos pensar, que às vezes assume um tom grave quando sentimos o ânimo mais leve do que nunca, ou nos conta frivolidades nos tempos de infortú nio. Por outro lado, ela não obedece a uma simples neces sidade de contradição... Q uando estou sentado diante de minha mesa ela me fala de um homem que sai de um vaiado, sem dizer-me, naturalmente, quem seja ele; insis to, e ela mo representa com grande precisão: não, não o conheço de modo algum. E no curto espaço de tempo em que registro este fato já o perdi de vista para sempre. Eu ouço, estou longe do “Segundo Manifesto do Surrealis mo”... Não é preciso multiplicar os exemplos: é ela que fala assim... Porque os exemplos bebem... Perdão, eu tam bém não compreendo. O importante seria saber até que ponto esta voz tem autoridade para me repreender, por exemplo: nãò é preciso multiplicar os exemplos (e sabe-se, desde que apareceram Os Cantos de Maldoror,46 quão pe netrantes podem ser suas intervenções críticas). Quando ela me responde que os exemplos bebem (?), quer isto di zer que a faculdade que dela se serve está-se esquivando? 110
E, a ser assim, por quê? Estava ela para explicar-se no ins tante mesmo em. que me dei pressa em surpreendê-la sem que dela lograsse assenhorear-me? Um problema desses não interessa apenas ao surrealismo- Ao exprimir-se, ho mem algum faz mais do que aceitar uma possibilidade de conciliação muito obscura daquilo que ele sabia que tinha para dizer com aquilo que, sobre o mesmo assunto, ele não sabia que tinha para dizer e que, não obstante, ele disse. O mais rigoroso pensamento não pode prescindir deste adjutório, conquanto indesejável do ponto de vista do rigor. Ocorre, de fato, um torpedeamento da idéia no interior da frase que a enuncia, até mesmo quando essa frase está isenta de quaisquer encantadoras liberdades to madas com seu sentido. O dadaísmo quis, acima de tudo, chamar a atenção para esse torpedeamento. Quanto ao surrealismo, sabe-se que, mediante o recurso ao automatismo, ele se empenhou em livrar de tal torpedeamento um navio qualquer: algo como um navio-fantasma (esta imagem, da qual quiseram servir-se contra mim, pareceme boa, por mais gasta que esteja, e por isso a retomo aqui). Cabe-nos, pois, dizia eu, tentar perceber com clare za cada vez maior o que se trama, sem que o homem o saiba, nas profundezas de sua mente, ainda quando ele começasse por nos incriminar de seu próprio turbilhão. Bem longe estamos, em tudo isto, de querer reduzir a par te do discernível, e nada poderia ser menos recomendável do que encaminhar-nos ao estudo científico dos comple xos. É certo que o surrealismo, que vimos adotar social
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mente, de caso pensado, a fórmula marxista, não preten de dar d ar como co mo algo algo de somenos somen os valia valia a crítica crítica freudiana das idéias: muito pelo contrário, considera tal crítica a pri meira em importância e a única assentada em bases fir mes. Se lhe é impossível assistir assistir ind indifere iferente nte ao debate deb ate que, diante de seus olhos, opõe uns aos outros os representan tes autorizados das diversas tendências psicanalíticas — do mesmo mesm o m odo od o que é levad levado, o, dia a dia, dia, a considerar apai xonadamente a luta que se trava na mais alta instância da Internacio Intern acional nal — , não lhe cabe cabe intervir num a controvérsia controvérsia que, segundo lhe parece, por muito tempo ainda só pros seguirá seguirá de maneira m aneira útil se se permanecer perman ecer circunscrita ao ao âm âm bit b itoo dos do s que qu e prat pr atic icam am a psicanáli psica nálise. se. Tal não nã o é o d o m ín ínio io o nde nd e prete pr etend ndaa pôr pô r em rel relev evoo o resultado de sua suass experiên cias pessoais. Mas, como àqueles a quem congrega lhes é dado, por sua própria natureza, considerar muito especi almente o conceito freudiano sob cujo efeito recai a maior pa p a rte rt e de sua su a agita a gitação ção e n q u anto an to hom ho m ens en s — a preoc pre ocup upaç ação ão com criar e destruir artisticamente (refiro-me à definição do fenômeno de “sublimação”),47 — o surrealismo pede a estes, essencialmente, que tragam ao desempenho de sua missão uma consciência nova, de tal sorte que possam su ple p lem m enta en tar, r, m edia ed iann te u m a auto au to-o -obs bserv ervaçã açãoo que, qu e, no caso deles, tem valor excepcional, tudo aquilo que deixa a de sejar a penetração dos estados de alma ditos “artísticos” po p o r h omen om enss que qu e não nã o são artistas artis tas mas, mas , quase qua se sempr sem pre, e, m é dicos. Por outro lado ele exige que, tomando caminho oposto op osto ao que até aqui os vimos seguir seguir,, aqueles aqueles que possu am, no sentido freudiano, a “preciosa faculdade” de que
ora falamos falamos se dediqu ded iquem em a estudar a esta esta luz o mecanismo mecanism o entre todos complexo da inspiração e, e, a partir do mom m om en to em que qu e esta deixa deixa de ser ser considerada consider ada coisa sagrada, sem embargo da confiança confiança que depositam em sua extraordiná ria virtude, só pensem em fazer com que caiam seus últi mos vínculos e até mesmo — coisa que jamais alguém ousara imaginar — em submetê-la. A propósito disto, é ocioso enredarm enred armo-no o-noss em sutil sutileza ezas: s: todos sabem suficien temente o que se entende por inspiração. Não há como equivocar-se: foi ela que veio em socorro das supremas necessidades de expressão em todos os tempos e lugares. z sk á presente\ e, Diz-se, de ordinário, que ela está ou não zsk e, se ela ela não está presente, nada nad a do que sugerem, comp c omparados arados a ela, a habilidade humana, que obliteram o interesse e a inteligência discursiva, e o talento que se adquire pelo tra balh ba lho, o, n a d a disso pod po d e remed rem ediar iar-lh -lhee a ausên au sência cia.4 .488 RecoRec onhecemo nhec emo-Ia -Ia sem dificuldade por po r ess essaa tomada tom ada de posse total do nosso espírito que, de longe em longe, impede que, par p araa cada cad a p rob ro b lem le m a coloc co locad ado, o, estejamo esteja moss à mercê mer cê de u m a solução racional de preferência a outra solução racional; po p o r essa espécie de curt cu rtoo -cir -c ircu cuititoo que qu e ela prov pr ovoc ocaa entr en tree uma idéia dada e a manifestação que lhe corresponde (es crita, por exemplo). Assim como no mundo físico, o curto-circuito ocorre quando os dois “pólos” da máquina são reunidos por um condutor de resistência nula ou demasi ado fraca. Na poesia, na pintura, o surrealismo fez o im possível possíve l para pa ra m ul ultitipp lica li carr esse essess curto cu rtoss-ci circ rcui uito tos. s. Para Par a ele nada será jamais tão importante quanto reproduzir artifi cialmente cialmente o momento mom ento id idea eall em que que o homem, hom em, tomado tom ado de
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uma emoção particular, é repentinamente possuído por algo “mais forte do que ele” que o arremessa, contra a pró pri p riaa vont vo ntaa d e, n a imor im orta talilida dade de.. Estivesse ele lú lúci cido do e des pe p e rto rt o , sairia sai ria ater at erro roriz rizad adoo daqu da quel elee lance lan ce crític cr ítico. o. O mais impo im porta rtante nte é que ele ele não tenha te nha a liberdade de faz fazêê-lo lo,, que continue a falar enquanto dura esse misterioso repicar de sinos: pois é exatamente no deixar de pertencer-se que ele passa a pert pe rten ence cerr-no nos. s. Esses Esses pro p rodd u to toss d a ativi at ivida dade de p síq sí q u i ca, tão distantes quanto possível da vontade de significar, tão desembaraçados quanto possível das idéias de respon sabilidade sempre prontas pronta s para pa ra agir agir como frei freios os,, tão inde inde pe p e n d e n tes te s q u a n to possível de tu tudd o o que qu e n ão é a vida passiva passiv a da inteligência, esses produtos que são a escrita au tomática e as narrativas de sonhos,49 apresentam ao mes mo tempo a vantagem de serem os únicos a fornecer elementos elem entos de apreciação de grande gran de estilo estilo a uma crítica que, no domínio artístico, se mostra estranhamente desampa rada; de permitirem uma reclassificação geral dos valores líricos; e de proporem uma chave que, capaz de abrir ili m itadam itad am ente ent e essa caix caixaa de de muitos mu itos fundos que é o homem home m , o dissuade de dar meia-volta, por razões de simples auto prese pre serva rvaçã ção, o, ao choca ch ocar-se r-se n a som so m bra br a com co m as p orta or tass a pa pa rentem ren tem ente en te fechadas do “além”, “além”, da realidade, realidade, da razão, razão, do gênio e do amor. Chegará o dia em que as pessoas não se pe p e rmit rm itir irão ão tra tr a tar ta r com co m insolê ins olênci ncia, a, com co m o até at é aqui aq ui se tem te m feito, estas provas palpáveis de uma existência diferente da que julgamos levar. E hão de espantar-se, então, de que, tendo chegado tão perto da verdade, como chega mos, tenhamos tido o cuidado de coletivamente adotar
um álibi literário ou de outra natureza, ao invés de nos lançarmos à água sem saber nadar, ou de entrarmos no fogo sem crer na fênix, a fim de atingirmos esta verdade. A culpa, repito, não nos pode ser atribuída indiscri minadamente. Ao tratar da falta de rigor e de pureza em que, até certo ponto, soçobraram estes esforços elementa res, espero verdadeiramente mostrar o que está contami nado, no mom ento atual, naquilo que passa, em já dema siadas obras, por expressão genuína do surrealismo. Nego, em grande parte, a adequação daquela expressão e desta idéia. A inocência e à cólera de alguns homens ainda por vir é que caberá resgatar aquilo que não puder deixar de ainda estar vivo no surrealismo, e restituí-lo, às custas de um a vasta depuração, a seus fins autênticos. Até lá bastarnos-á, a meus amigos e a mim, reerguer com um empur rão dos ombros a silhueta inutilmente sobrecarregada de flores, mas sempre imperiosa. A débil medida em que, desde agora, o surrealismo nos escapa não é bastante para fazer-nos temer que ele venha a servir a outros contra nós. É sem dúvida lamentável que Vigny tenha sido um indi víduo tão pretensioso e obtuso, que Gautier tenha sofrido de diminuição das faculdades na velhice, mas não é la mentável para o romantism o. Contrista pensar que Mallarmé tenha sido um rematado pequeno burguês ou que tenha havido quem acreditasse no valor de Moréas, mas, se o simbolismo fosse uma coisa, ninguém se entris teceria pelo simbolismo, etc. Do mesmo modo, não creio que haja grave inconveniência para o surrealismo em re-
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gisrrar a perda de tal ou qual individualidade, ainda que brilhante, sobretudo nos casos em que ela (que, por isso mesmo, já não é inteiriça) indica por todo seu comporta mento que deseja retornar à norma. Assim é que, depois de lhe dar um tempo inacreditável para se recuperar da quilo que esperávamos fosse apenas um abuso passageiro de suas faculdades críticas, vemo-nos na obrigação de dar a entender a Desnos que, dele já não esperando o que quer que seja, mais não podemos fazer que liberá-lo de quaisquer compromissos por ele assumidos para conosco. Não há dúvida de que cumpro este dever com certa triste za. Ao contrário de nossos primeiros companheiros de caminhada que jamais nos esforçamos por reter, Desnos desempenhou um papel necessário e inesquecível no sur realismo e este momento seria pessimamente escolhido para negá-lo. (Mas Chirico também, não é verdade, e, no entanto...) Livros como Luto por Luto , A Liberdade ou o Amor, Esta Frase, "Vejo-me ” São as Botas de Sete Léguas?0 e tudo aquilo que a lenda, menos bela que a realidade, con cederá a Desnos em prêmio de uma atividade despendida não apenas em escrever livros por muito tempo militarão a favor do que ele, atualmente, se dedica a combater. Bas ta saber que tudo isto se passava há quatro ou cinco anos. Desde então, Desnos, grandemente desservido neste do mínio pelos poderes que durante algum tempo o haviam sublevado e que ele ainda parece ignorar que eram pode res das trevas, decidiu, infelizmente, agir no plano real, no qual ele não era senão um homem mais pobre e mais só que outro qualquer, como são aqueles que viram, isto é,
que viram as coisas que os outros se temem de ver e que estão condenados a viver não tanto aquilo que é, quanto o que “foi” e o que “será”. “Por falta de cultura filosófica”, como ele, ironicamente, declara hoje em dia, não; mas, talvez por falta de espíritofilosófico, e também, a seguir, por não saber preferir sua personagem interior a esta ou àque la personagem exterior da história — mas, ainda assim, que idéia infantil querer ser Hugo ou Robespierre! Todos os que o conhecem sabem que foi isto que impediu Desnos de ser Desnos — ele supôs que poderia entrègar-se im pu nemente a uma das atividades mais perigosas que há, a atividade jornalística, e, por causa dela, deixar de respon der, pelo que lhe dizia respeito, a um pequeno número de intimações brutais com as quais o surrealismo se viu con frontado ao longo de seu caminho: marxismo ou antimarxismo, por exemplo. Agora que esse método indi vidualista mostrou o que vale, que essa atividade de Desnos devorou a outra por completo, é-nos dolorosamente im possível deixar de declarar nossas conclusões a respeito disto. O que tenho a dizer é que, um a vez que essa ativida de ultrapassa, nos tempos que correm, os quadros em que já nao era muito tolerável que ela se exercesse (Paris-Soir, leSoir, leMerle), cabe denunciá-la, em primeiro lugar, como semeadora de confusão. O artigo intitulado “Os Merce nários da Opinião” e atirado, como se fora o dom de um potentado que chega ao poder, à insigne lata de lixo que é a revista Bifur ; é bastante eloqüente por si mesmo: nele Desnos pronuncia a própria condenação, e em que estilo! “São múltiplos os costumes do redator. Em geral, ele é um
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empregado relativamente pontual, passavelmente preguiço so \ etc., etc. Encontram-se ali homenagens ao sr. Merle, a Clémenceau, e esta confissão ainda mais aflitiva do que o resto: “o jornal é um ogro que mata aqueles que o fazem viver”. Depois disto, quem se admirará de ler, num jornal qualquer, este estúpido suelto: “ Robert Desnos, poeta surre alista a quem o sr. Man Ray encomendou o roteiro de seu film e Estrela do Mar,51 fez comigo, ano passado, uma via gem a Cuba. E sabeis o que ele, Robert Desnos, me recitava sob as estrelas tropicais? Alexandrinos, a-le-xan-dri-nos. E (mas, por favor, não o repitais por aí, que isso deitaria a perder a reputação desse poeta encantador), quando esses alexandrinos não eram de Jean Racine, eram dele mesmoP Na verdade eu penso que esses alexandrinos se empare lham com a prosa aparecida em Bifur. Esta facécia, que acabou por nem sequer ser duvidosa, começou no dia em que Desnos, rivalizando neste pasticho com o sr. Ernest Raynaud, sentiu-se autorizado a forjar de cabo a rabo um poema de Rimbaud que nos faltava: “Os Veladores, de Arthur Rimbaud”, abrindo A Liberdade ou o Amor . Não creio que, assim como os do mesmo gênero que se lhe seguiram, ele acrescente algo à glória de Desnos. Cumpre não somente conceder aos especialistas que esses versos são maus (falsos, farfalhentos e ocos), mas também decla rar que, do ponto de vista surrealista, eles atestam uma ambição ridícula e uma incompreensão imperdoável dos objetivos da poesia de nosso tempo.
Esta incompreensão, por parte de Desnos e de al guns outros, aliás, está tomando uma feição tão ativa que me sinto dispensado de estender-me longamente a respei to dela. A guisa de prova decisiva, deter-me-ei apenas na idéia inqualificável, que lhes ocorreu, de dar a uma boate de Montparnasse, teatro habitual de suas lamentáveis pro ezas noturnas, o único nome lançado através dos séculos que veio a constituir um puro desafio a tudo quanto há de estúpido, de baixo e de nojento neste mundo: Maldoror. “Parece que as coisas não vao lá muito bem entre os surrealistas. Consta que os senhores Breton e Aragon tor naram-se insuportáveis, assumindo ares de alto comando. Disseram-me até que alguém juraria tratar-se de dois sargentos-ajudantes reengajados. Sabe como são essas coisas. Há quem não goste da idéia. Resumindo, parece que al gumas pessoas concordaram em batizar de Maldoror um novo cabaret-dancing de Montparnasse. Eles dizem que Maldoror , para um surrealista, é o mesmo que Jesus Cristo para um cristão, e que ver semelhante nome numa tabule ta vai certamente escandalizar esses dois cavalheiros, Breton e Aragon.” ( Candide, 9 de janeiro de 1930). O autor das linhas precedentes, que esteve no local em questão, co munica-nos, sem qualquer malícia e no estilo displicente que quadra bem a suas observações: “.. .Naquele m om en to chegou um surrealista, o que fez dele um freqüentador a mais. E que freqüentador! O sr. Robert Desnos. Causou grande desapontamento o fato de ele pedir somente um suco de limão. Diante do pasmo geral, ele explicou com
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uma voz pastosa: ‘É a única coisa que consigo tomar. Es tou bêbado há dois dias!’” Que lástima! Ser-me-ia, naturalmente, demasiado fácil aprovei tar-me da circunstância de que, hoje em dia, ninguém crê que m e pode atacar sem, ao mesmo tempo, “atacar” Lautréamont, vale dizer, o inatacável. Desnos e seus amigos permitirão que, com toda a serenidade, eu reproduza aqui as frases essenciais de mi nha resposta a um questionário já antigo do Disco Verde?2 frases em que nada tenho a mudar e que eles não poderão negar terem aprovado cabalmente naquela ocasião: “Por mais que tenteis, sao muito poucos os que hoje em dia se guiam por esse clarão inesquecível, uma vez fe chados Maldoror e as Poesias, esse clarão que não seria ne cessário ter sido conhecido para que ele ousasse verdadei ramente produzir-se e ser. A opinião dos outros pouco importa. Lautréamont, um homem, um poeta, até mes mo um profeta? Tende paciência! A suposta necessidade literária que invocais não conseguirá desviar o Espírito dessa intimação, a mais dram ática que jamais existiu, nem do que permanece e para sempre permanecerá como a negação de toda sociabilidade, de toda coerção humana, fazer um valor de troca precioso e um elemento de pro gresso qualquer. Em vão se esforçam a literatura e a filoso fia contemporâneas para não levarem em conta um a reve lação que as condena. As conseqüências disto é o mundo inteiro que as sofrerá sem o saber, e não é por outra razão que os mais clarividentes e os mais puros dentre nós não
se podem furtar à necessidade de morrer na liça. A liber dade, cavalheiro...” Em negação tão grosseira quanto a associação da palavra Maldoror à existência de um bar imundo, há mo tivos suficientes para que, doravante, eu me coíba de for mular o menor julgamento sobre o que quer que Desnos escreva. Limitemo-nos, poeticamente, a essa orgia de qua dras.53 É a isso que leva o uso imoderado do dom verbal, quando ele se destina a mascarar uma ausência radical de pensamento e a renovar a tradição imbecil do poeta “nas nuvens”: na hora mesma em que se rompeu com essa tra dição, e se rompeu bem, a despeito do que possam pensar certos versejadores retardatários; em que ela cedeu aos es forços conjugados desses homens a quem damos a prima zia porque eles realmente quiseram dizer algo — Borel, o Nerval de Aurélia , Baudelaire, Lautréamont, o Rimbaud de 1874-1875, o Huysmans da primeira fase, o Apollinaire dos “poemas-conversas” e das “ Quelconqueries”?Aé peno so que um dos que supúnhamos ser um dos nossos se de dique a dar-nos, exteriormente, o golpe do “Barco ébrio”,55 ou a readormecer-nos ao som das “Estâncias”.56 Verdade é que a questão poética, nestes últimos anos, deixou de colocar-se no ângulo estritamente formal e, certamente, interessa-nos mais julgar do valor subversivo de uma obra como a de Aragon, de Crevel, de Éluard, de Péret, tendo em vista a luz que lhe é própria e aquilo que, a essa luz, o impossível confere ao possível, o permitido rouba ao proi bido, do que saber por que este ou aquele escritor julga melhor, aqui ou acolá, começar uma nova linha.57 Razão
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a menos para que insistam em falar-nos da cesura: por que nao poderia haver, também entre nós, partidários de uma técnica particular do “verso livre” e nao se desenter raria o cadáver de Robert de Souza? A Desnos lhe apetece rir; quanto a nós, não estamos prontos para tranqüilizar o mundo tão facilmente, Cada dia nos traz, na ordem da confiança e da espe rança que, com raras exceções, depositamos com excessiva generosidade nas pessoas, uma nova decepção que é preci so ter a coragem de confessar, quando por mais não seja, por medida de higiene mental, a fim de consigná-la na coluna do saldo horrivelmente devedor da vida. Direito não tinha Duchamp de abandonar a partida que ele joga va, nas imediações da guerra, por uma interminável parti da de xadrez, que dá, talvez, uma idéia curiosa de uma inteligência a que repugna servir*, mas que também — sem pre esse execrável Harrar — parece pesadamente afligida pelo cepticismo, na medida em que ela se recusa a dizer por quê. Ainda menos convém tolerarmos ao sr. RibemontDessaignes que dê por seqüência de O Imperador da Chi na 58 uma série de odiosos romancezinhos policiais, mes mo assinados Dessaignes, nas mais baixas folhas cinema tográficas. Inquieto-me, enfim, com pensar que Picabia poderia estar prestes a renunciar a uma atitude de provo cação e de raiva quase puras, que às vezes nós mesmos achávamos difícil conciliar com a nossa, mas que, ao me nos em poesia e pintura sempre nos pareceu defender-se a seu trabalho, a ele trazer a admiravelmente: Aplicar-se ‘‘
técnica sublime, aristocrática, que jamais impediu a inspira ção poética e que, sozinha, permite a uma obra atravessar os séculos e permanecer jovem ... É preciso prestar atenção... é preciso que, entre os “conscienciosos” nos mantenhamos pró ximos uns dos outros e não tentemos pregar partidas desleais aos companheiros... Épreciso favorecer o desabrochar do ide ar, etc. Ainda que movido por sentir pena de Bifur ; onde estas linhas apareceram, será o Picabia que conhecemos quem fala assim?
Dito isto, sentimos, em contraste, o desejo de fazer a um homem de quem estivemos separados durante lon gos anos a justiça de reconhecer que a expressão de seu pensamento continua a interessar-nos; que, a julgar pelo que podemos ainda ler dele, suas preocupações nao se tor naram estranhas a nós; e que, nessas condições, cabe tal vez pensar que nosso desentendimento com ele não assentava em nada tão grave quanto criamos. É certamen te possível que Tzara que, no começo de 1922, época da liquidação de “Dadá” enquanto movimento, já nao estava de acordo conosco sobre os meios de levar por diante a atividade comum, tenha sido vítima de prevenções exces sivas que, por essa razão, tínhamos contra ele — ele tam bém as tinha em excesso contra nós — e que, por ocasião da demasiadamente famosa representação do Coração com B a rb a i para que a nossa ruptura tenha tomado a feição que se sabe tenha bastado um gesto desastrado de sua par te, sobre cuja significação ele declara — vim a sabê-lo há pouco — que nós nos enganamos. (É preciso reconhecer
que a maior confusão foi sempre o objetivo principal dos espetáculos “D ad a’, que no espírito dos organizadores o mais im portante de tudo era, entre a cena e a sala, levar ao ápice o mal-entendido. Ora bem, naquela noite nem to dos nos encontrávamos do mesmo lado.) Quanto a mim, aceito essa versão de muito bom grado e, desde já, não vejo qualquer outra razão que impeça de insistir, junto a quantos deles participaram, para que tais incidentes cai am no esquecimento. Desde o tempo em que eles ocorre ram a atitude intelectual de Tzara não deixou de ser inequívoca; e julgo que seria dar provas de estreiteza de espírito não lho reconhecer publicamente. Pelo que nos diz respeito, meus amigos e eu gostaríamos de mostrar, através desta reaproximação, que o que em todas as cir cunstâncias norteia nosso comportamento não é, de modo algum, o desejo sectário de fazer prevalecer, a todo transe, um ponto de vista que nem sequer pediríamos que Tzara partilhasse conosco integralmente, mas, isto sim, a preo cupação de reconhecer o valor — aquilo que entendemos por valor — onde quer que se encontre. Nós cremos na eficácia da poesia de Tzara, e isto eqüivale a dizer que, fora do surrealismo, consideramo-la a única verdadeiramente situada. Quando falo de sua eficácia quero dizer que ela é operante no mais vasto dos âmbitos e que, hoje em dia, ela representa uma passada no sentido da libertação hu mana. Quando eu digo que ela é situada, compreenderse-á que a oponho a quantas poderiam ser tanto de ontem como de anteontem; na primeira linha das coisas que Lautréam ont não tornou completamente impossíveis en
contra-se a poesia de Tzara. Tendo De Nossos Pássaros60 acabado de aparecer, nao é, muito afortunadamente, o si lêncio da imprensa que tão cedo porá cobro a seus malfei tos. Sem ter, portanto, necessidade de pedir a Tzara que recupere o controle de sua situação, gostaríamos simples mente de exortá-lo a tornar suas atividades mais visíveis do que têm sido nestes últimos anos. Sabendo que ele pró prio deseja, como no passado, unir seus esforços aos nos sos, recordemos-lhe que, em suas mesmas palavras, ele escrevia “para ir em busca de homens e nada mais\ Neste ponto, como ele há de lembrar-se, éramos iguais. Não permitamos, pois, que venham a crer que assim nos en contramos para, em seguida, nos perdermos. Busco alguém, à minha volta, com quem trocar ain da, se possível, um gesto de entendimento, mas em vão: não há ninguém. Caberá talvez, se tanto, fazer ver a Daumal, que dá início, em O Tarôfxa uma interessante inves tigação sobre o Diabo, que nada nos impediria de aprovar grande parte das declarações que ele assina sozinho ou com Lecomte, não fosse a impressão passavelmente desastrosa de sua fraqueza em dada circunstância?62 Por outro lado, é lamentável que Daumal tenha evitado, até aqui, precisar sua posição pessoal e, pela parte de responsabilidade que lhe toca, a posição de Le GrandJeu a respeito do surrealis mo. É difícil de compreender que aquilo que, subitamen te, granjeia a Rimbaud um excesso de honras nao granjeie a Lautréamont a deificação pura e simples. “ A incessante
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contemplação de uma Evidência negra, goela absoluta ’, es tamos todos de acordo, é a coisa a que nos vemos conde nados. A favor de que objetivos mesquinhos, já agora, se há de opor um grupo ao outro grupo? Por que, a não ser por tentar em vão se distinguir, fazer como se jamais tives se sido proferido o nome de Lautréamont? aMas os gran des anti-sóis negros, poços de verdade na trama essencial, no véu gris do céu curvo, vão e vem e aspiram um ao outro, e os homens os chamam Ausências.” (Daumal: “Fogos à vonta de”,63 Le GrandJeu> primavera de 1929.) Aquele que as sim fala, tendo a coragem de dizer que já não se possui, não tem razão alguma, como não poderá deixar de em breve perceber, para preferir-se apartado de nós.
Alquimia do verbo: estas palavras que se vão repe tindo um pouco ao acaso, hoje em dia têm de ser entendi das ao pé da letra. Se o capítulo de Uma Estação no InfernoGA por elas designado não lhes justifica, talvez, toda a ambição, nem por isso é menos verdade que ele pode ser considerado o mais autêntico ponto de partida da difícil atividade que, hoje em dia, somente o surrealismo leva adiante. Poderíamos ser tachados de infantilismo literário se pretendêssemos não dever tanto a esse ilustre texto. Porventura o admirável século XIV é menos grande no que respeita à esperança humana (e, bem entendido, ao desespero), porque um homem de gênio como Flamel65 recebeu de um poder misterioso o manuscrito, que já exis tia, do livro de Abraão Judeu, ou porque os segredos de Hermes não haviam sido inteiramente perdidos? Ando
longe de o crer, e julgo que as pesquisas de Flamel, com tudo o que apresentam, aparentemente, de concreto bom êxito, nada perdem por terem sido assim ajudadas e ante cipadas. Tudo se passa da mesma maneira em nosso tem po, como se, por meios sobrenaturais, a certos homens tivesse sido dada a posse de uma compilação de textos singular, devida à colaboração de Rimbaud, de Lautréamont e mais alguns, e que uma voz lhes tivesse dito, como o anjo a Flamel: “Olhai bem este livro, não compreendereis nada do que ele contém, mas nele vereis um dia o que ninguém será capaz de ver.66 Já não depende deles o se rem arrebatados por essa contemplação. C ham o a atenção para o fato de que os esforços dos surrealistas apresentam uma notável analogia, quanco ao fim a alcançar, com as pesquisas alquímicas: a pedra filosofal nada mais é que aquilo que deveria permitir à imaginação humana tomar de todas as coisas uma vingança fulgurante, e eis-nos de novo, depois de séculos de domesticação do espírito e louca resignação, tentando novamente libertar essa imaginação pelo “ longo, imenso, racional desregramento de todos os sentidos ’67e o que se segue. Talvez não façamos mais que ador nar modestamente as paredes de nossos aposentos com figuras que, à primeira vista, nos parecem belas, ainda nisto imitando a Flamel antes de encontrar seu primeiro agente, sua “matéria”, seu “forno”. Assim é que ele gostava de mostrar “ um Rei com um grande cutelo, que fazia com que os soldados matassem., em sua presença., uma grande multi dão de criancinhas, cujas mães choravam aospês dos impie dosos gendarmes, sendo o sangue destas criancinhas recolhido
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depois por outros soldados e posto numa grande vasilha, a que vinham banhar-se o Sol e a Lua do cêu \ e bem perto dali havia “ um moço com asas nos calcanhares e um caduceu na mão, com o qual batia numa celada que lhe cobria a cabeça. Na direção dele vinha correndo e voando com asas abertas um grande velho, o qual trazia um relógio preso a c a b e ç a Nao se poderia dizer que este é o quadro surrealista por excelência? E quem sabe se3mais adiante, graças a uma evidência nova, ou nao, não nos encontraremos confron tados com a necessidade de nos servirmos de objetos in teiramente novos ou considerados abolidos para sempre? Não creio que se recomece, necessariamente, a engolir corações de toupeiras ou a escutar como as batidas do pró prio coração o ruído da água a ferver numa caldeira. Ou, por outra, eu nada sei, aguardo. Sei apenas que o homem não está prestes a ver-se livre de seus sofrimentos e o que eu realmente saúdo é a volta daquele furor 68 do qual Agri pa>69 com razão ou sem ela, distinguia quatro espécies. No âmbito do surrealismo é unicamente com este fu ror que lidamos. E fique bem claro que não se trata apenas de um simples reagrupamento das palavras ou de uma redistri buição caprichosa das imagens visuais, mas da recriação de um estado que já não tenha nada que invejar à aliena ção mental: os autores modernos que eu cito explicaramse suficientemente a este respeito. Que Rimbaud tenha havido por bem desculpar-se daquilo que chama de seus “sofismas” é problema dele; que a coisa, em palavras suas, tenha passado não tem o menor interesse para nós. Nisso i mais não vemos que uma pequena pusilanimidade que
em nada predetermina o destino que certas idéias podem ter. “ Hoje sei saudar a beleza'\ R imbaud é imperdoável por ter-nos querido fazer crer numa segunda fuga sua, no momento mesmo em que retornava à prisão. — “Alqui mia do verbo”: pode-se também lamentar que a palavra “verbo” seja tomada, aqui, numa acepção um pouco res tritiva e Rimbaud parece reconhecer, aliás, que a “velharia poética” ocupa demasiado lugar nessa alquimia. O verbo é mais do que isso e, para os cabalistas, por exemplo, não é nada menos que o modelo a partir do qual foi criada a imagem da alma humana; sabe-se que o guindaram a pri meiro exemplar da causa das causas; por essa razão está ele presente tanto no que tememos quanto no que escreve mos e no que amamos. Digo que o surrealismo ainda se encontra no perío do dos preparativos e apresso-me em acrescentar que tal vez este período dure tanto quanto eu (quanto eu na modestíssima medida em que ainda não me encontro pre parado para admitir que um certo Paul Lucas tenha reen contrado Flamel em Bursa, no começo do século XVII, que o mesmo Flamel, acompanhado da mulher e de um filho tenha sido visto na Ópera, em 1761, e que ele tenha aparecido brevemente em Paris, no mês de maio de 1819, (época na qual, segundo se conta, ele alugou uma loja em Paris, na Rua de Cléry, 22). O fato é que, para falarmos grosseiramente, esses preparativos são de ordem “artísti ca”. Prevejo, contudo, que eles terão fim e que, então, as idéias perturbadoras que o surrealismo acolhe aparecerão
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por entre o ruído de um vasto dilaceramento e circularão à larga. Deve-se esperar tudo da orientação moderna de certas vontades futuras: ao se afirmarem depois das nos sas, elas se mostrarão mais implacáveis do que as nossas. Como quer que seja, dar-nos-emos por satisfeitos de ter mos contribuído para estabelecer a inanidade escandalosa daquilo que, ao chegarmos, ainda se pensava e de haver mos sustentado — quando mais não fosse, apenas susten tado — ser necessário que o pensamento sucumbisse enfim sob o pensável. Pode-se perguntar a quem , exatamente, desejava Rimbaud desencorajar, quando ameaçou com estupor e loucura os que se dispusessem a seguir estas pegadas. Lautréamont começa por prevenir o leitor de que “a não ser que ele se disponha a lê-lo com uma lógica rigorosa e uma tensão anímica quando menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro — Os Cantos de Maldoror — penetrar-lhe-ão a alma, como a água penetra o açúcar\ mas tem o cuidado de acrescentar que “ somente alguns sa borearão este fruto amargo sem p e r ig o Esta questão da mal dição, que até o presente praticamente só deu ensejo a comentários irônicos ou irrefletidos, é, mais do que nun ca, atual. O surrealismo só tem a perder se quiser afastar de si tal maldição. Cabe restaurar e manter aqui o “Maranatha” dos alquimistas, colocado no limiar da obra para deter os profanos. Direi mesmo que é isto o que julgo ser mais urgente fazer compreender a alguns de nossos ami gos, que me parecem mais preocupados, por exemplo, com a venda de seus quadros e com a aplicação do dinheiro
dela resultante. “ Eu gostaria muito ”, escrevia Nougé re centemente, “que aqueles dentre nós cujo nome está come çando a aparecer obscurecessem-no Embora sem saber ao certo a quem ele tinha em mente, julgo não ser demasiado pedir a uns e outros que parem de exibir-se complacentemente e de apresentar-se em espetáculos de feira. Acima de tudo há de evitar-se a aprovação do público. Se é a confusão que se deseja evitar cumpre impedir a todo o custo que o público entre. Digo mais: é preciso mantê-lo exasperado à porta, mediante um sistema de desafios e provocações. Eu
PEÇO A OCULTAÇÃO PROFUNDA, VERDADEIRA, DO
SURREALISMO .70
Proclamo, nesta matéria, o direito à severidade ab soluta. Nada de concessões às pessoas, nenhuma indul gência. A terrível alternativa de pegar ou largar. Abaixo os que estariam prontos a distribuir entre os pássaros o pão maldito. “ Todo homem que, desejoso de atingir o fim supremo da alma, parte para solicitar O rá c u lo s lê-se no Terceiro Livro da Magia, “deve, para lá chegar , desprender inteira mente seu espírito das coisas vulgares , purificá-lo de toda do ença, fraqueza do espírito, malícia ou semelhantes defeitos, e de toda. condição contrária à razão que a segue assim como a ferrugem segue oferro'; e o Quarto Livro declara enérgica e precisamente que a revelação esperada exige ainda que a
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pessoa esteja “num lugar puro e claro, com as paredes todas cobertas de tapeçarias brancas\ e que ela não afronte nem os maus Espíritos nem os bons, a não ser na medida da “dignificação” a que chegou. Ele insiste no fato de que o livro dos maus Espíritos é feito “ de um papel muito puro quejamais serviu a qualquer outro uso ’ e que é comumente chamado de pergaminho virgem. Não há qualquer exemplo de que os magos tenham feito pouco do estado de limpeza resplendente de suas vestes e de sua alma, e eu não compreenderia que, espe rando o que esperamos de certas práticas de alquimia mental, aceitássemos mostrar-nos, neste particular, me nos exigentes do que eles. Eis aí, no entanto, o que mais asperamente nos reprovam e que o sr. Georges Bataille, atualmente empenhado, na revista Documentos,71 numa agradável campanha contra o que ele chama de “a sede sórdida de todas as integridades”, parece menos do que todos disposto a perdoar-nos. O sr. Bataille me interessa unicam ente na medida em que ele se gaba de opor à dura disciplina do espírito a que verdadeiramente desejamos tudo submeter — e nós não vemos inconveniente em que a Hegel se atribua a maior responsabilidade por este fato — uma disciplina que nem sequer chega a parecer mais frouxa, visto que ela tende a ser a do não-espírito (e é lá, por sinal, que Hegel o aguarda).72 O sr. Bataille faz profis são de não querer considerar senão o que de mais vil, de mais desalentador e corrompido há neste mundo, e con vida o homem , a fim de que este evite tornar-se útil ao que quer que haja de determinado, “a correr absurdamente com
ele — com a vista subitamente turva e marejada de lágrimas inconfessáveis — na direção de algumas provincianas casas mal-assombradas, mais desagradáveis do que moscas, mais depravadas, mais rançosas que salões de cabeleireiros Se me sucede referir tais observações, isto se deve a que elas nao me parecem empenhar somente o sr. Bataille, senão tam bém aqueles antigos surrealistas que quiseram ter plena liberdade de ação a fim de se comprometerem aqui e aco lá. Pode ser que o sr Bataille tenha a capacidade de agrupálos; e que ele o consiga, será, segundo entendo, um fato interessante. Tomando a partida pela corrida que, como acabamos de ver, o sr. Bataille está organizando, já lá se vêem os senhores Desnos, Leiris, Limbour, Masson e Vitrac; é inexplicável que o sr. Ribemont-Dessaignes, por exemplo, ainda lá não esteja. Digo que é extremamente significativo ver reunirem-se de novo todos aqueles que uma tara qualquer afastou de uma primeira atividade de finida, porque é muito provável que eles mais não tenham que seus descontentamentos para pôr em comum. Divir to-me, por outro lado, ao pensar que não é possível a al guém sair do surrealismo sem dar de caras com o sr. Bataille, tanto é verdade que o horror ao rigor só consegue tradu zir-se numa nova submissão ao rigor. Com o sr. Bataille, fato por demais conhecido, as sistimos a uma volta agressiva do antigo materialismo antidialético, que tenta, desta vez, abrir caminho gratui tamente através de Freud, “ Materialismo diz ele, “ inter pretação direta excludente de todo idealismo, dos fenômenos brutos, materialismo que, a fim de não ser encarado como
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um idealismo decrépito, deverá basear-se de imediato nos fe nômenos econômicos esociais." Como nao se especifica aqui o “materialismo histórico” (e, de resto, como seria possí vel fazê-lo?), vemo-nos obrigados a declarar que, do pon to de vista filosófico da expressão, ele é vago e, do ponto de vista poético da novidade, é nulo. O que é menos vago é o valor que o sr. Bataille pre tende conferir a um pequeno número de idéias particula res que ele tem e que, dado o caráter delas, será preciso determinar se são do âmbito da medicina ou do exorcis mo, visto que, pelo que respeita h aparição da mosca no nariz do orador , (Georges Bataille: “Figura Humana” [“Fi gure Humaine”], Documentos [Documents] n°4), argumen to supremo contra o eu, conhecemos todos a antífona pascaliana e imbecil; há muito tempo que Lautréamont a refutou: “O espírito do maior grande homem (sublinhemos três vezes: maior grande homem) não ê tão dependente que esteja sujeito a serperturbado pelo menor ruído da Algazarra que se fa z ao seu redor. Não é necessário o silêncio de um canhão para impedir-lhe os pensamentos. Não êpreciso o ruído de um cata-vento, de uma roldana. A mosca não raciocina bem neste momento. Um homem zumbe em suas orelhas.” O homem que pensa pode deter-se no nariz de uma mosca, da mesma forma que no alto de uma montanha. A única razão por que estamos a tratar de moscas tão longamente é o fato de o sr. Bataille amar as moscas. Nós não: nós amamos a mitra dos antigos evocadores, a mitra de linho puro a cuja parte anterior estava presa uma lâmina de ouro e na qual as moscas não pousavam, porque haviam sido
feitas abluções que as afastassem. A infelicidade do sr. Ba taille é que ele raciocina como alguém que tem “uma mosca no nariz”, o que o aproxima mais dos mortos que dos vivos; mas ele raciocina. Valendo-se do pequeno mecanis mo que, nele, ainda não está inteiramente desarranjado, esforça-se por compartilhar suas obsessões: e é até mesmo por isso que, diga o que disser, não pode pretender oporse a todo e qualquer sistema como um grosseirão. O caso do sr. Bataille tem este aspecto paradoxal e, para ele, cons trangedor: a partir do momento em que ele se esforça por comunicá-la, sua fobia da “idéia” toma, necessariamente, uma feição ideológica. Um estado de déficit consciente em forma generalizadora, como diriam os médicos. Aqui temos, com efeito, alguém que postula o princípio de que o “horror não implica nenhuma complacência patológica e desempenha apenas o papel do estrume no crescimento vege tal, um estrume de odor asfixiante, sem dúvida, mas salubre à planta ”. Esta idéia, sob uma aparência infinitamente banal, é, por si mesma, desonesta ou patológica (seria pre ciso provar que Lúlio, e Berkeley, e Hegel, e Rabbe, e Baudelaire, e Rimbaud, e Marx, e Lênin viveram conspicuamente como porcos). Cabe notar que o sr. Bataille abusa dos adjetivos de modo delirante: conspurcado, senil, râncido, sórdido, licencioso, decrépito; e que essas pala vras, longe de servirem para denegrir uma situação insu portável, são as de que usa para exprimir o mais lírico dos deleites. Tendo a “vassoura inominável” de que fala Jarry caído no seu prato, o sr. Bataille declara-se encantado.73 Ele, que durante as horas do dia, passa seus dedos pruden-
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tes de bibliotecário sobre velhos e, por vezes, encantado res manuscritos (sabe-se que ele exerce esta profissão na Biblioteca Nacional), repasta-se de noite nas imundícias de que, à sua própria imagem, gostaria de vê-los carrega dos: sirva de exemplo o Apocalipse de Saint-Sever, ao qual ele consagrou um artigo no n° 2 de Documentos ,74 artigo este que é o protótipo perfeito do falso testemunho. Examinai, por exemplo, a prancha do “Dilúvio” e dizeime se, objetivamente, “um sentimento jovial e inesperado aparece com a cabra que figura na parte inferior da página e com o corvo cujo bico está mergulhado na vianda (aqui o sr. Bataille se exalta) de uma cabeça humana\ Atribuir apa rência humana a elementos arquiteturais, como ele faz ao longo deste estudo e em outros lugares, é também, e nada mais, um sintoma clássico de psicastenia. Na verdade o sr. Bataille está somente muito cansado e, ao render-se à cons tatação, para ele espantosa, de que “ o interior de uma rosa não corresponde de modo algum a sua beleza exterior; arran cadas as pétalas da corola} resta apenas um tufo de aspecto sórdido”, tudo o que ele consegue é fazer-me sorrir à lem brança de um conto de Alphonse Aliais, no qual um sul tão esgotou tao completamente todos modos de distração que seu grão-vizir, desesperado por vê-lo imerso em tédio, não descobre nada melhor do que trazer-lhe uma jovem belíssima, coberta de véus, que se poe a dançar somente para ele. Ela é tao bela que o sultão ordena que, cada vez que ela pare, façam cair um de seus véus. Nem bem aca bou ela de ser totalmente despida e o sultão ainda acena, preguiçosamente, para que a desnudem: ao que, rapida
mente, a esfoJam viva. Nem por isso é menos verdade que a rosa, depois de privada de suas pétalas, continua a ser a rosa, e, demais a mais, na história precedente a dançarina continua a dançar. E se depois disto me contestarem com “ o gesto per turbador do Marquês de Sade trancafiado com os loucos, que mandou que lhe trouxessem as mais belas rosas a fim de desfolhá-las sobre o excremento líquido no interior de uma latrind\ responderei que, para que este ato de protesto perdesse seu extraordinário alcance bastaria que ele fosse perpetrado, nao por um hom em que passou vinte e sete anos preso por suas idéias, mas por um refestelado funcio nário de biblioteca. Tudo leva a crer, com efeito, que Sade, cujo desejo de alforria moral e social, ao contrário do de sejo do sr. Bataille, está acima de qualquer discussão, a fim de obrigar o espírito humano a sacudir seus grilhões, quis somente com aquilo atacar o ídolo poético, a “virtu de” de convenção que, bem ou mal, faz de uma flor, na medida mesma em que todos podem oferecê-la, o brilhante veículo dos sentimentos mais nobres e também dos mais baixos. Convém, de resto, deixar em suspenso a aprecia ção de semelhante gesto que, ainda quando não seja pura mente lendário, em nada poderia infirmar a perfeita integridade do pensamento e da vida de Sade e a necessi dade heróica que ele teve de criar uma ordem de coisas que não dependesse, por assim dizer, de tudo o que ocor rera antes dele.
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O surrealismo está menos disposto do que nunca a abrir mão desta integridade, a contentar-se com o que uns e outros, entre duas pequenas traições que eles julgam autorizadas pelo obscuro, odioso pretexto de que é preci so viver bem, lhe abandonam. Nada temos a fazer com essa esmola de “talentos”. O que nós pedimos, assim o cremos, é de tal natureza que requer um consentimento ou uma recusa total, não se contenta com palavras ou re cusas veleidosas. Queremos, ou não, arriscar tudo pelo único prazer de perceber ao longe, no fundo mesmo do cadinho em que propomos lançar nossas pobres comodi dades, o que nos resta de boa reputação e nossas dúvidas, de cambulhada com a bonita vidraria “sensível”, a idéia radical de impotência e a tolice de nossos supostos deveres, a luz que cessará de ser bruxuleantel Dizemos que a operação surrealista só poderá ser levada a bom termo se ela se efetuar em condições de assepsia moral das quais ainda há muito poucos homens que querem ouvir falar. Em falta delas, no entanto, será impossível deter esse câncer do espírito que consiste em pensar demasiado dolorosamente que certas coisas “são”, ao passo que outras, que poderiam tão bem ser, “não são”. Nós afirmamos que elas devem confundir-se, ou inter ceptar-se singularmente, no limite. Trata-se, não de per manecer alguém onde está, mas de tender necessária e desesperadamente a esse limite. O homem, que erroneamente se intimida com cer tos reveses históricos monstruosos, tem ainda a liberdade de crerem sua liberdade. Ele é senhor de si mesmo, a des
peito das velhas nuvens que passam e do embate suas for ças cegas. Não terá ele o senso da curta beleza oculta e da acessível e longa beleza ocultável? A chave do amor, que o poeta dizia ter achado,75 busque-a, também ele, com afin co: ele a tem. Somente dele depende o elevar-se acima do sentimento passageiro de viver perigosamente e de mor rer. Que ele use, desprezando todas as proibições, da arma perigosa da idéia contra a bestialidade de todos os seres e de todas as coisas, e que um dia, vencido — mas vencido apenas se o mundo for mundo — ele acolha a descarga de seus tristes fuzis como uma salva.
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A n
t e s ,
D
e p o is
P re o c u p a d oc o m am o ra l,is toé ,c o m os e n tid od av id a , en ã oc o m ao b s e rv â n c iad a sle ish u m a n a s ,A n d réB re to n , p o rs e u a m o rd av id ae x a taed aa v e n tu ra ,n o v a m e n tec o n fe reàp a la v ra“ re lig iã o ”os e n tid oq u elh eép ró p rio . R O B E R T D E S N O S . Intenções [Intentions]
C a roa m ig o ,m in h aa d m ira ç ã op o rv ó sn ã od e p e n d ed a p e rp é tu ae x a lta ç ã od ev o s s a s“ v irtu d e s ”ev o s s o se rro s . G E O R G E SR IB E M O N T D E S S A IG N E S Variedades [Variétés]
M e u c a r oB re to n ,p o d es e rq u en u n c am a ise u v o ltep a ra aF ra n ç a .In s u lte i,e s tan o ite ,tu d ooq u es ep o d ein s u lta r. E s to u m o rto .O s a n g u ec o rre m ep e lo so lh o s ,a sn a rin a sea b o c a .N ã om ea b a n d o n e is .D e fe n d e im e . G E O R G E SL IM B O U R 2 1d eju lh od e1 9 2 4 . C h e g oP a r isO b rig a d o . L IM B O U R 2 3d eju lh od e1 9 2 4 . ...S e ie x a ta m e n teoq u eted e v oes e ita m b é m q u es a oa s p o u c a sn o ç õ e sq u em ee n s in a s ted u ra n ten o s s a sc o n v e rs a s q u em ep e rm itira m c h e g a rae s ta sc o n s ta ta ç õ e s .N o s s o sc a m in h o ss ã o b e m p a ra le lo s .G o s ta r iaq u ec re s s e ss in c e ra m e n te q u eaa m iz a d eq u eted e v o ton ã oéu m aq u e s tã od es o rris o . JA C Q U E SB A R O N . 1 9 2 9 E n c o n tro m ee n treo sa m ig o sd eA n d réB re to ne m fu n ç ã od ac o n fia n ç aq u elh em e re ç o .M a sis ton ã oéu m ac o n fia n ç a .N in g u é m ate m .Éu m ag ra ç a .E u v o lad e s e jo .Éa g ra ç aq u ee u v o sd e s e jo . R O G E R V IT R A C . 0 Jornal do Povo [Le Jounal du Peuple]
E aú ltim av a id a d ed e s tefa n ta s m as e r áfe d e re te rn a m e n te e n treo sfe d o re sd op a ra ís op ro m e tid oàp ró x im aec e rta c o n v e r s ã od ofa is ã o 7 6B re to n . ROBERT DESNOS Um Cadáver [Un Cadavre], 1930.
O s e g u n d om a n ife s tod os u rre a lis m on ã oéu m are v e la ç ã om a séu m ê x ito . N a os efa zn a d am e lh o rn og ê n e roh ip ó c rita ,fa ls oirm ã o ,lis o n je iro ,s a c ris tã o ,n u m ap a la v ra ,e n fim :m e g a n h ae GEORGES RIBEMONT-DESSAIGNES Um Cadáver.
T e r e ig ra n d ep ra z e re m v e r tes a n g ra rp e lon a riz . GEORGES LIMBOUR.
D e z e m b rod e1 9 2 9 . E raoín te g roB re to n ,oin tra n s ig e n tere v o lu c io n á rio ,o s e v e rom o ra lis ta . P o isé ,u m h o m e m d etru z ! E s te tad eg a lin h e iro ,e s tea n im a ld es a n g u efrioja m a is c o n trib u iup a raoq u eq u e rq u efo s s es e n ã oc o m am a is n e g rac o n fu s ã o . JACQUES BARON Um Cadáver.
Q u a n toas u a sid é ia s ,n a oc re ioq u en in g u é m a lg u m a v e za ste n h ale v a d oas é rio ,an ã os e rc e rto sc rític o sc o m p la c e n te s ^ aq u e m e leb a ju la v a ,c e r to sc o le g ia isa v e lh e n ta d o se c e rta sm u lh e re se m v iad ep a rirm o n s tro s . ROGER VITRAC. Um Cadáver
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Decididos a usar, senão mesmo a abusar, em toda e qualquer circunstância, da autoridade que confere a prática consciente e sistemática da expressão escrita ou de outra natu reza, solidários em todos os pontos com André Breton e resol vidos a pôr em prática as conclusões que se impõem a quem lê o SEGUNDO MANIFESTO DO SURREALISMO, os abaixo-assinados, que não nutrem quaisquer ilusões sobre o alcance das revistas 'artísticas literárias ” decidiram colabo rar numa publicação periódica que, sob o título
O SURREALISMO A SERVIÇO DA REVOLUÇÃO não somente lhes permitirá responder imediatamente à ca nalha que têm por profissão pensar, mas também preparará o desvio definitivo dasforças intelectuais hoje vivas em benefi cio da fatalidade revolucionária .
M A X IM E A L E X A N D R E , A R A G O N , JO EB O U S Q U E T , L U ISB U ftU E L , R E N ÉC H A R , R E N ÉC R E V E L , S A L V A D O R D A L I, P A U L E L U A R D , M A X E R N S T , M A R C E LF O U R R IE R , C A M IL L EG O E M A N S , P A U L N O U G É , B E N JA M IN P É R E T ,