CALVINO E SUA INFLUÊNCIA NO MUNDO OCIDENTAL
Organizado por W. Stanford Reid
Revisão Arlinda Madalena Torres
EDITORA CULTURA CRISTÃ Rua Miguel Telles Jr., 394 Cambuci - CEP 01540040 - São Paulo — SP
Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental © 1990, Editora Cultura Cristã. Publicado originalmente com o título Calvin and His Influence in the Western World, © Zondervan Publishing House Grand Rapids, Michigan 45406 — USA. Traduzido com permissão. Todos os direitos são reservados.
FICHA CATALOGRÁFICA C168
CALVINO e sua influência no mundo ocidental/Organizado por W. Stanford Reid. — São Paulo: Editora Cultura Cristã 1990. 496 pp. Título original: Calvin and his influence in the western world. 1. Calvinismo no ocidente. 2. Calvinismo e Sociedade. 1. Reid, W. Stanford, org.
CDU 284.2(215) CDD(19) 284.209
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO CALVINISMO NO OCIDENTE 284.2(215) CALVINISMO E SOCIEDADE 284.2:304 HISTÓRIA DO CALVINISMO 284.2(093)
Primeira edição em português — 1990 2ª edição — 2003
Sumário
Apresentação Prefácio Apreciação 1. Capítulo 1
—
O Calvinismo como uma Força Cultural Por Robert D. Knudsen Tradução de Sabatini Lalli
2. Capítulo 2
—
A Propagação do Calvinismo no Século 16 Por W. Stanford Reid Tradução de Júlia Pereira Lalli
3. Capítulo 3
—
Suíça: Triunfo e Declínio Por Richard C. Gamble Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
4. Capítulo 4
—
A Idade de Ouro do Calvinismo na França: 1533-1633 Por Pierre Courthial Tradução de Sabatini Lalli
5. Capítulo 5
—
Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos Por W. Robert Godfrey Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
6. Capítulo 6
—
A Igreja Reformada da Alemanha: Calvinistas, uma influente minoria Por D. Clair Davis Tradução de Sabatini Lalli
7. Capítulo 7
—
A Reforma Helvética na Hungria Por Kálmán O. Tóth Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
8. Capítulo 8
—
Calvino e a Igreja Anglicana Por Philip Edgcumbe Hughes Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
9. Capítulo 9
—
A Modificação Puritana da Teologia de Calvino Por R. T. Kendall Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
10. Capítulo 10 —
A Contribuição do Calvinismo na Escócia Por J. D. Douglas Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
11. Capítulo 11 —
Origens “Cristãs” da América: A Nova Inglaterra Puritana como um Caso de
Estudo Por George M. Marsden Tradução de Luiz Alberto Teixeira Sayão 12. Capítulo 12 —
Os Irlandeses-Escoceses na América Por C. Gregg Singer Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
13. Capítulo 13 —
O Calvinismo Holandês na América Por John H. Bratt Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
14. Capítulo 14 —
A Influência de Calvino no Canadá
Por W. Stanford Reid Tradução de Júlia Pereira LalIi 15. Capítulo 15 —
O Impacto do Calvinismo na Australásia Por Alexander Barkley Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
16. Capítulo 16 —
O Calvinismo na África do Sul Por Gideon Thom Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
Epílogo Notas
APRESENTAÇÃO O objetivo desta obra de dezesseis capítulos, escritos por diferentes autores tidos por especialistas em suas respectivas áreas, é mostrar a natureza e a importância do Calvinismo como força moldadora da cultura ocidental, força que atuou fortemente nos dois primeiros séculos depois da Reforma e que, nos séculos 18 e 19, grosso modo, entrou em declínio, sofrendo distorções provocadas pelo advento do Racionalismo — que o confrontou como força externa —, e pelo surgimento de formas de dissidências internas, entre as quais se destacam o Arminianismo e o Puritanismo. O Puritanismo, não obstante constituir, em alguns aspectos, uma distorção do Calvinismo — particularmente no ascetismo da vida cotidiana e na concepção da economia que veio a desenvolver-se posteriormente —, foi uma força extraordinária que atuou singularmente na formação da grande nação do Norte. Eis como Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América, se refere aos Puritanos: ...os imigrantes da Nova Inglaterra levavam consigo admiráveis elementos de ordem e de moralidade; entravam pelo deserto acompanhados de suas esposas e de seus filhos. Mas o que os distinguia, sobretudo, de todos os outros [colonizadores] era a própria finalidade de sua empreitada. Não tinham abandonado o seu país forçados pela necessidade; deixavam para trás uma posição social cuja perda seria lamentável e meios de vida garantidos; tampouco passaram ao Novo Mundo a fim de ali melhorar a sua situação ou de fazer aumentar as suas riquezas; arrancavamse às doçuras da pátria para obedecer a uma necessidade puramente intelectual; expondo-se às misérias inevitáveis do exílio, desejavam fazer triunfar uma idéia.
...os imigrantes pertenciam àquela seita inglesa que, por causa da austeridade de seus princípios, tinha recebido o nome de puritana. O Puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa: confundia-se ainda, em vários aspectos, com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas. Por causa dessa tendência tinha ganho os seus mais perigosos adversários. Perseguidos pelo governo da mãe-pátria, ofendidos no rigor de seus princípios pela marcha cotidiana da sociedade em cujo seio viviam, os puritanos procuravam uma terra tão bárbara e tão abandonada pelo mundo que nela pudessem ainda viver à sua maneira e rezar a Deus em liberdade. Alexis de Tocqueville, in A Democracia na América, Editora Itatiaia Limitada e Editora da Universidade de São Paulo, 1977, p.33. Grifos nossos". Assim, na opinião abalisada de Alexis de Tocqueville, a contribuição dos puritanos para a formação cultural e política da Nova Inglaterra foi de singular importância e marcou funda e indelevelmente a tradição de liberdade — e da conseqüente responsabilidade —, que ainda hoje, não obstante as vicissitudes advenientes nos últimos tempos, caracterizam a democracia americana. As colônias inglesas, e foi essa uma das principais causas da sua prosperidade, sempre gozaram de maior liberdade interior e de maior independência política que as de outras nações; em nenhuma parte, porém, foi esse princípio de liberdade mais completamente aplicado que nos Estados da Nova Inglaterra. Idem, ibidem, p. 36. Parece haver, sem dúvida, uma relação de causa e efeito entre o tipo de colonizadores da Nova Inglaterra — primeiro os puritanos da Inglaterra e, mais tarde, os Calvinistas da Escócia, da Irlanda e da Holanda —, e a grandeza reconhecida de suas instituições culturais, jurídicas, sociais e econômicas, grandeza
que prevalece até o dia de hoje. Os capítulos deste livro que falam da influência do Calvinismo na Escócia, na Irlanda e na Holanda, permitirão ao leitor entender de que modo os Colonizadores Calvinistas que saíram desses países, desempenharam seu papel na construção da grande democracia dos Estados Unidos da América do Norte, papel que ficou claro não só na organização política dessa nação, mas, também sobretudo, no que se refere ao valor e à solidez de seus sistemas de educação. Em seu livro A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna (Editora Polis e Editora Universidade de São Paulo, 1988), R. Hooykaas fala da participação dos protestantes na pesquisa científica e diz que “As pesquisas sociológicas têm demonstrado que, até bem recentemente, os protestantes foram relativamente mais numerosos entre os cientistas do que seria de se esperar, em função do seu número global”. Segundo Hooykaas, ainda, A. de Candolle “Constatou que, entre os membros estrangeiros da Académie des Sciences de Paris, de 1666 a 1883, os protestantes foram bem mais numerosos do que os católicos romanos. Na população da Europa Ocidental, fora da França, a proporção de católicos romanos para protestantes era de seis (católicos) para quatro (protestantes), enquanto, entre os membros estrangeiros da Académie des Sciences, a proporção era de seis (católicos) para vinte e sete (protestantes). Na Suíça, a proporção de católicos romanos para protestantes era de dois (católicos) para três (protestantes). No entanto, para o período mencionado, houve quatorze protestantes suíços membros da Académie e nenhum católico romano” (Op. cit. pp.127-128). Hooykaas cita ainda R.K.Merton, para quem, em 1938, entre os grupos de dez cientistas que, durante a Commonwealth, constituíram o núcleo que daria origem à Royal Society, sete eram acentuadamente puritanos” (Op. cit. p.128). A explicação para esse fenômeno não está na importância dada à doutrina da predestinação, como sugeriu Merton, que ampliou essa tese, “demonstrando que a atitude de auto-
repressão, simplicidade e diligência também fomentou o interesse e a aptidão pela pesquisa científica e tecnológica” (Op. cit. p. 132). Na verdade, a explicação mais consentânea está na natureza das Confissões de Fé amplamente aceitas pelas comunidades reformadas, pois, segundo Hooykaas, essas Confissões “são provavelmente os documentos mais representativos da opinião dominante entre os genuínos calvinistas do século 16”. Segundo essas Confissões, na observação de Hooykaas, para a fé protestante, as boas obras são consideradas como frutos da gratidão pela salvação recebida e não uma confirmação por havêla recebido. Isso é claro tanto da Confissão de Heidelberg quanto da Confissão Belga (os chamados 37 Artigos). O que é mais impressionante acerca dos primeiros cientistas protestantes é o seu amor pela natureza, na qual reconhecem a obra das mãos de Deus, e o prazer que revelam em investigar os fenômenos naturais. Um dos Pais da Anatomia Comparada, o holandês Volcker Coiter (1534-76), jamais se cansava de exaltar a providência do Criador, evidenciada na maravilhosa adaptação da estrutura animal; o botânico Clusius declarou que as descobertas botânicas causavam-lhe tanta alegria como se ele tivesse descoberto um prodigioso tesouro; o oleiro huguenote Bernard Palíssy, (1510-90), amava apaixonadamente as plantas, “mesmo as mais desprezadas”. Em uma ocasião, ele manifestou sua ira contra alguns trabalhadores por estarem maltratando plantas; em seu profundo sentimento por essas criaturas irmãs, ele dizia que não sabia por que as plantas não clamavam contra as torturas que sofriam nas mãos dos homens (Op. cit. pp.136-1 37). Do ponto de vista de sua influência política, o Calvinismo “tem favorecido governos representativos e tem lutado contra as várias formas de absolutismo”, como diz John T. MacNeill, em sua obra The History and Character of Calvinism. Na verdade, foi com o Calvinismo que a forma representativa de governo
(democrático-republicano) se desenvolveu e se consolidou nos tempos modernos. Samuel Rutherford, um dos mais capazes defensores do Calvinismo político britânico, sustenta que a salus (salvação, bem-estar) descansa sobre a soberania do povo. Ele diz que o poder não vem diretamente do céu àqueles que o exercem, mas é dado ao povo por Deus como direito hereditário, e é tomado emprestado do povo pelos que governam, e pode ser retomado pelo povo, quando quem o exerce se torna embriagado por ele! Assim, ao ler esse livro, o leitor poderá avaliar o testemunho dos autores de cada capítulo a respeito do impacto do Calvinismo sobre a cultura em geral e sobre o sistema de educação e de governo — com seus reflexos na economia e na vida social das respectivas comunidades —, sistemas estabelecidos e desenvolvidos nos países em que prevaleceu, como força dominante, a influência do Calvinismo.
Sabatini Lalli Editor da 1ª edição
PREFÁCIO 1979 foi um ano de celebrações no Seminário Teológico de Westminster, em Filadélfia. Foi um período de comemorações para celebrar tanto a fundação do Seminário, em 1929, quanto os setenta e cinco anos de nascimento de Paul Woolley que, por mais de cinqüenta anos, foi Arquivista e Professor de História da Igreja. Os membros do Departamento de História da Igreja pediram-me a mim1 — como primeiro aluno do Professor Woolley a especializar-se neste campo — que empreendesse a tarefa de preparar este Festschrift,2 trabalho que assumi com grande prazer. O fundamento lógico desta obra está no fato de ela ajudar a comunidade cristã a compreender a influência do Calvinismo no mundo Ocidental, desde os dias de João Calvino. De início, esperava-se que essa pesquisa cobrisse todo o mundo, mas logo me dei conta de que, dadas as limitações de espaço, teria de focalizar apenas o mundo Ocidental. De fato, mesmo para atingir a esse objetivo limitado, tive de persuadir apreciável número de autores para que escrevessem os capítulos que constituem esse livro. Pelo fato de alguns que concordaram a colaborar terem outras obrigações, tiveram eles de dispor de uma considerável extensão de tempo para poderem completar seus respectivos capítulos. Contudo, finalmente, estamos apresentando esse livro ao público, na esperança de que muitos que não puderam conhecer algo a respeito de Calvino ou de sua influência, venham a conhecer o impacto que ele produziu sobre a história da origem da cultura e civilização ocidentais. Gostaria de acrescentar, no entanto, que ainda que eu figure como organizador desta obra, não concordo, necessariamente, com tudo o que nela está escrito. Porém, 1 2
W. Stanford Reid – University of Guelph, Guelph, Ontário Trabalho literário em homenagem a personagem acadêmica de destaque (N. do E.).
defendendo o princípio de liberdade de pensamento e de expressão nas lides acadêmicas, sinto-me feliz por ter parte nesta publicação. Os autores desejam dedicar essa obra ao Professor Woolley, como penhor de sua estima e apreciação pela assistência fiel que deu ao Seminário de Westminster e pelo estímulo com que os levou a interessar-se pela História da Igreja Cristã, particularmente pela História do Calvinismo.
APRECIAÇÃO A reputação de Paul Woolley, bem como a maior parte de suas convicções, escapa aos padrões comuns. Ele é mais estimado por aqueles que o conheceram melhor! Gerações de estudantes têm sentido um crescente respeito, admirando a soma de conhecimentos deste fabuloso Professor, que andava de um lado para outro, com uma mão no bolso, recriando, com pormenores fascinantes, a biografia de Pelágio ou resumindo a Summa Theologica, de Tomás de Aquino, ou, ainda, descrevendo as campanhas de Finney no lado oeste de Nova York. Os que freqüentaram seus cursos nos dias que precederam a invenção do computador, não se surpreendiam ao verificar que os dados que ele armazenava incluíam tanto a tabela de horários das maiores ferrovias dos Estados Unidos, bem como informação acessível quanto ao trem local e ao horário de ônibus. Somente a sua dignidade e sua aguda consciência quanto à mordomia do tempo impediam, praticamente, a qualquer um de fazer-lhe perguntas a respeito de quase tudo, e impediam que negligenciasse recorrer à impressionante coleção de referências que ele havia acumulado na Biblioteca, sempre a disposição dos interessados. Contudo, os estudantes que batalhavam por assimilar milhares de fatos, com vistas a seus exames, surpreendiam-se ao constatar que ele esperava muito mais: Ele não queria apenas informação, mas também interpretação. Eis adiante uma questão formulada, num exame final, para ser respondida por escrito em uma hora: Admitindo-se que a obra da Igreja é a pregação do Evangelho e a nutrição (espiritual) de seus membros na vida cristã, em quê a ênfase da Ortodoxia, do Racionalismo, do Pietismo e do Modernismo contribuiu para essa tarefa? Discuta a contribuição de cada uma destas correntes e ilustre com copiosos exemplos.
Uma outra questão desafiava os estudantes a elaborarem uma crítica ao Concílio Mundial de Igrejas, propondo mudanças ou substituições que julgassem necessárias. Pode-se apenas lamentar que sua dedicação ao ensino e à tarefa administrativa tenham tornado impossível ao Professor Woolley preparar, para a publicação, os muitos volumes do digesto histórico e das reflexões que, por mais de meio século, ele fez em classe, durante as aulas. Além da acurada erudição com que ele coligiu esse material e da largueza de vistas com que o interpretou, ali estava patente — para os que usufruíam uma atitude que era o mais raro dom de Woolley — sua habilidade em combinar cordial compreensão no que diz respeito a homens e movimentos da história da Igreja de Cristo, com o firme compromisso em relação aos padrões mediante os quais os avaliava. Sua integridade, como historiador, resulta apenas da aplicação — ao seu campo de especialista — dos princípios de seu estilo de vida cristã. Nas decisões administrativas ou em suas relações pessoais, Paul Woolley observa, escrupulosa e imparcialmente, as regras, primeiramente da Palavra de Deus e, depois, da aplicação dessa Palavra aos padrões de cortesia cristã e de justiça. Paul Woolley, contudo, é um homem que, sentado atrás de sua mesa, seria o primeiro a informar ao estudante que as regras de ajuda a bolsas de estudo tornavam-lhe impossível receber ajuda adicional e que ele não podia sacar sua carteira e oferecer ao estudante soma generosa para fazer frente às suas emergências. A integridade do Professor Woolley deixara marca permanente no Seminário Westminster. Ele respeita aqueles de quem discorda e presume que onde discorda de seus colegas, seus pontos de vista também serão respeitados. Se o Seminário Westminster alcançou algum sucesso na unidade de sua liberdade acadêmica, em seu compromisso doutrinal reformado, esse fato se deve ao exemplo do Professor Woolley, que exerceu ali a mais decisiva influência.
Os que participaram da convivência do lar de Woolley, conhecem algo da amplitude de interesse cultural de que Paul Woolley, sua esposa e seus filhos partilhavam. As reminiscências históricas de Helen Wooley, que se estendem até à vida na Corte Russa sob o Czar, trazem sempre, como acréscimo, profundas experiências pessoais e devoção à ampla gama de discussões que ocorrem ali. Na conversação particular, como no ministério público, Paul Woolley revela aquele amor por Cristo e pelo Evangelho, que o levou a ser um voluntário no serviço missionário na China e que, quando aquela porta se fechou, o sustentou por meio século no ministério de preparação de jovens líderes, para servir a Cristo. Edmund P. Clowney Presidente do Westminster Theological Seminary
O Calvinismo como uma Força Cultural Robert D. Knudsen — Tradução: Sabatini Lalli Robert D. Knudsen é Professor Associado de Apologética no Westminster Theological Seminary, Pa. Filadélfia. É graduado pela University of California, Berkeley (A.B.), pelo Westminster Theological Seminary (Th.B., Th.M.), pelo Union Theological Seminary, New York (S.T.M.) e pela Free University of Amsterdam (Ph.D.). Estudou também na Universidade de Basiléia, na Suíça, e na Alemanha Ocidental, no Tillich Archive (Gottingen) e no Hegel Archive (Bochum). O Dr. Knudsen é ministro da Igreja Presbiteriana Ortodoxa. É membro da Vereeniging voor Calvinistische Wijsbegeert [Associação para a filosofia calvinista] e também Adjunto da American Scientific Affiliation, ocupando a posição de editor do Staff de seus periódicos eruditos. E, também, membro da Evangelical Theological Society e autor de vários livros, e constante colaborador de simpósios e revistas eruditas. Atualmente, ele é o editor do The Collected Works of Kerman Dooyeweerd.
CAPÍTULO 1 O CALVINISMO COMO UMA FORÇA CULTURAL
Calvino foi um patrono dos modernos direitos humanos. Em seu pensamento ele antecipou a moderna forma republicana de governo. Contribuiu para a moderna compreensão da relação entre lei natural e lei positiva. Ao lado dos movimentos sociais e políticos de seu tempo, compreendeu plenamente que a origem do Estado nacional moderno, o surgimento do comércio burguês internacional, o desenvolvimento da classe burguesa e a vasta expansão do mercado monetário exigiam uma nova avaliação da proibição de empréstimo de dinheiro a juro. Além disso, Calvino levantou-se contra os abusos do poder, em seu tempo, e debateu o problema do direito à revolta. O impacto de Calvino e do Calvinismo sobre a moderna cultura ocidental está bem documentado. Reconhece-se que essa influência foi grande. Calvino e o Calvinismo ocuparam seu lugar entre as maiores forças que moldaram nossa moderna sociedade ocidental. É importante descrever essas influências do ponto de vista histórico. Qual foi a influência do Calvinismo? Até onde, precisamente, se estendeu essa influência? Contudo, para avaliar o Calvinismo como uma força cultural, propriamente, é preciso descer a um nível mais profundo de questionamento. Que é que, no Calvinismo, determina a forma peculiar pela qual ele se relaciona com a cultura? Qual é o caráter distintivo que ele imprime à cultura? Nestes aspectos, em que difere ele de outros movimentos protestantes? Sem levantar questões como essas, dificilmente alguém tem condições de inquirir significativamente em que extensão ocorreu sua influência.1 1
Escrevendo nos anos de 1930, o destacado erudito calvinista austríaco Josef Bohatec relata que o mais recente estudo calvinista tem tentado determinar o que caracteriza o mundo calvinista de
Torna-se claro que a mais significativa maneira de alguém aproximarse do Calvinismo é ter em mente que qualquer movimento que alcançou importância histórica, terá uma correspondente influência cultural. Isso é um fato em relação ao Calvinismo. Contudo, é também verdade quanto ao Luteranismo, ao Anabatismo, ao Metodismo, ao Puritanismo e a outros movimentos. É verdade de qualquer movimento, independentemente da atitude que ele tenha para com a cultura. Mesmo a postura anti-secular de um segmento de Igrejas que se confessam cristãs, tem um tipo especial de influência cultural, ainda que seja uma influência negativa. O retraimento de cristãos em relação àquilo que é chamado de “envolvimento cultural” tem, em si mesmo, um impacto cultural. Mais importante do que o problema da extensão da influência do Calvinismo será o problema da qualidade dessa influência. Ao tratar o Calvinismo como uma força cultural, portanto — por mais importante que essa força possa parecer — não temos em mente uma descrição desacompanhada da influência que ele exerceu sobre a nossa cultura ocidental. Ao invés disto, indagamos o que é que, no Calvinismo, determinou o caráter desta influência. Por que o Calvinismo teve uma atitude positiva para com a cultura e foi capaz de fazer contribuições culturais construtivas? Porque, em verdade, essa atitude positiva pertence ao verdadeiro gênio do Calvinismo, tanto que o Calvinismo teve em mira não só a reforma na doutrina, na vida individual e na vida da Igreja, mas também a transformação de toda a cultura, em nome de Cristo. Ao responder a essas indagações, podemos, por conveniência, organizar nossos pensamentos em torno de quatro pontos principais: 1. No Calvinismo não há dicotomia entre Cristianismo e Cultura; pensamento enquanto relacionado à Igreja, ao Estado e à Sociedade: “Geht das Interesse der neueren Forschung darauf aus, die Eigenart der calvinischen, auf die kirchliche, staatliche und soziale Wirklichkeit sich beziehenden Gerankenwelt zu bestimmen.” Josef Bohatec, Calvins Lebre von Staat und Kirche: mit besonderen Berüchtsichtigung des Organismusgedankens (Breslau: Marcus, 1937), p. xiii.
2. Por causa de sua maneira penetrante de entender a doutrina da criação, a universalidade da revelação divina e o lugar da lei, é impossível ao Calvinismo — e observe-se a importância de manter-se intacta a doutrina bíblica da relação Criador-criatura — pensar em termos de uma simples e incondicional distinção entre as esferas de atividade divina e humana; 3. Toda a vida, inclusive a cultura, é teonômica, isso é, tem sentido somente quando está sujeita a Deus e à sua lei; 4. O poder do Deus-criador-soberano abrange também o curso da História, de modo que se pode discernir a revelação de Deus também naquilo que pertence mais imediatamente à cultura ou, seja, à atividade formadora do homem.
Atitude Positiva do Calvinismo para com a Cultura Calvino expressou sua gratidão a Deus, porque Deus, ao mesmo tempo em que trouxe à luz o Evangelho em sua pureza, trouxe à existência também o renascimento das humanidades.1 Foi Guilherme Budê que, ao tempo de Calvino, procurou introduzir na França um panorama da cultura humanística surgida na Renascença Italiana. Promoveu o gosto pelas artes liberais (bonae litterae) em contraposição aos estudos que preparavam o indivíduo para ganhar a vida (Teologia, Lei: Direito, Medicina2). Calvino concordou resolutamente com Budé em que as artes liberais eram essenciais à formação do homem, ao desenvolvimento de sua humanidade. De fato, encontramos em Calvino acentuado gosto pelas artes liberais e interesse em instruir-se nelas, de modo que nada fica ele a dever aos humanistas seus contemporâneos. Não são necessárias muitas palavras, 1
Org. Baum et al... Corpos Reformatorum: Ioannis Calvini Opera quae Supersunt Omnia. 7,516 (A partir daqui mencionado como Calvino, Opera). 2 Josef Bohatec explorou detalhadamente o relacionamento de Calvino com o humanismo francês de sua época, mais especialmente com o do reconhecido líder da Renascença francesa, Guillaume Budé. Josef Bohatec, Budé und Calvin; Studien zur Gedankenwelt des Franzõsischen Frühhumanismus (Graz: Hermann Böhlaus, 1950). (A partir daqui mencionado como Budé und Calvin).
disse ele, para expressar quão cara nos é a aquisição das artes liberais.1 Também para com a retórica e as ciências naturais, Calvino teve uma atitude positiva. A influência dos princípios da retórica, sobre seu método teológico, pode ser constatada. Na introdução de seu Comentário às Cartas aos Tessalonicenses, Calvino reconhece que deve sua cultura humanística e seu método de ensino (discendi rationem) ao bem conhecido humanista Maturin Cordier. Como a retórica, as ciências naturais são dons de Deus, criados por ele para o uso da humanidade.2 A fonte última da verdadeira ciência da natureza não é outra senão o Espírito Santo.3 Contudo, Calvino foi inflexível oponente da pseudociência da astrologia, que gozava de grande prestígio em seu tempo, tanto quanto goza em nossos dias.4 O clima espiritual no qual Lutero se desenvolveu, foi o do misticismo do final da Idade Média. Diferentemente de Calvino e Melanchthon, Lutero permaneceu muito tempo incólume às influências do Renascimento da Cultura humanística de seu tempo. Em contrapartida, Calvino cedo se dedicou aos estudos humanísticos. Como teste de sua competência, de sua erudição humanística, ele escreveu seu famoso comentário sobre o De Clementia, de Sêneca.5 Educado pelos humanistas e autorizados eruditos de seu tempo — Pierre de l’Etoile e Andrea Alciati —, bem versado na filosofia da cultura clássica, e ele mesmo reconhecido como um erudito humanista, Calvino revelou, através de toda a sua vida, domínio da cultura contemporânea e profundo interesse no seu desenvolvimento. Ele continuou a demonstrar empenho em relação à humanidade do homem e em relação àquelas boas dádivas de Deus — que incluíam a arte e a música — e que eram capazes de contribuir para o seu desenvolvimento.6
1
Calvino, Opera, 7,516. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p.121. Ibid., 34, 304; 31, 94. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p.264. 3 Ibid., 33, 577. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p.264. 4 Ibid., 40, 554. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, pp. 270-280. 5 Ford Lewis Battles e André Malan Hugo, Calvin’s Commentary on Seneca's De Clementia: With Introduction, Translation and Notes (Leiden: Brill, 1969). 6 Bohatec, Budé und Calvin, pp. 467, 470. 2
É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos humanísticos e pelo desenvolvimento cultural do homem fosse um simples remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé evangélica. Sua preocupação para com os estudos humanísticos e para com aquilo que diz respeito ao que é humano está muito inseparavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir uma tal interpretação. De fato, num sentido que precisa ser bem definido e cuidadosamente preservado de má compreensão, Calvino pode ser chamado de “humanista".1 Através de toda a sua vida, ele teve um profundo compromisso para com aquilo que é humano. De fato, Calvino criticou mordazmente aqueles cujo humanismo fazia supor que eles se tinham firmado contra a soberania de Deus, contra a Palavra de Deus, contra a depravação do homem e contra as doutrinas da graça. Aos 27 anos, na famosa carta que serve de introdução à sua Institutio Religionis Christianae [Instituição da Religião Cristã], ele fala abertamente contra o humanismo que não leva em conta a doutrina evangélica.2 Mais do que contra um humanista cristão como Budé, Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser humano3 e pensam que a realização daquilo que é humano pode ser alcançada somente na presumida independência de Deus e de sua revelação. Ele mesmo, como um humanista, rejeitou aquilo que era o coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que o homem é a fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no fundo, incapaz de pecar.4 Se os estudos humanísticos eram caros a Calvino pelo fato de favorecerem o desenvolvimento das virtudes humanas, se as ciências devessem ser cultivadas como dons de Deus, os humanistas deviam opor-se àqueles que 1
Bohatec surge corajosamente com a afirmação: “Calvino era um humanista”. Ibid., p. 472. Entretanto, ele se dá ao trabalho de definir cuidadosamente o que quer dizer com “humanismo”, e para distinguir o humanismo de Calvino tanto do da Renascença quanto do da cultura antiga. Cp., especialmente, Ibid., pp. 472-483. 2 Cp. Ibid., pp. 127-141. 3 Ibid., p. 479. 4 Ibid., p. 265.
pensavam que as artes e as ciências podiam ser empregadas como se fossem suficientes em si mesmas. Era estranho à mente de Calvino o pensamento de que as artes e as ciências podiam estar livres da religião (non debere distrahi a religione scientia).1 Ninguém deve supor que a atitude de Calvino para com aquilo que é humano e para com aquilo que pertence à realização humana não tem necessidade de correção. No entanto, sua atitude positiva para com esses valores é inerente ao seu pensamento e têm profundas implicações para aqueles que se consideram calvinistas. Isso contribui para a compreensão do modo pelo qual o Calvinismo atua como uma força cultural. Para Calvino, diferentemente do que ocorria com outros líderes da Reforma, não existe dicotomia básica entre o Evangelho e o mundo, entre o Evangelho e a cultura. Ao mesmo tempo, ele não aceitava simplesmente, sem crítica, as realizações do gênio humano. Sua atitude exigia que tais realizações fossem analisadas quanto às razões que as inspiravam, pois deviam estar sujeitas aos preceitos de Cristo. O Divino e o Humano no Calvinismo Calvino cria na absoluta soberania de Deus. Como os outros Reformadores, ele cria também que o crente, em seu coração, é imediatamente ligado ao Deus soberano, como ele se revelou em sua Palavra. Como já mostramos (em outro lugar), isso não significa que a atividade soberana de Deus, para Calvino, se mantenha numa relação de indiferença ou, possivelmente, de antítese para com aquilo que é humano e para com aquilo que pertence ao campo das realizações culturais humanas. Calvino entendia de tal modo a atividade de Deus, que não deixava lugar a um tal dualismo. O Deus que opera soberanamente no coração do homem é o mesmo Deus que se revelou como o Criador do homem e dos valores de sua cultura.
1
Calvino, Opera. 39, 251. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p. 254.
Aquele que tem um profundo domínio da revelação que Deus fez de si mesmo, como Criador, compreenderá que o divino e o humano não devem ser concebidos como se fossem extremos contrários de um espectro, de modo que exaltar a um, seria, de per se, rebaixar o outro. Deus não é honrado quando se envilece a sua criação, nem a criação é exaltada quando se envilece a Deus. A criação é expressão da vontade de Deus como Criador. A criação, em seu estado incólume, Deus chamou boa. Ele se revelou como estando ativamente interessado nela. Para glorificar a Deus não é preciso denegrir a criação: É apenas necessário pôr em prática, em relação à natureza, aquilo que responde à vontade criadora de Deus para ela. Aquele que tem profunda compreensão da revelação bíblica no que diz respeito à criação, compreenderá que o que está em discussão não é a mera ênfase sobre o que é divino ou o que é humano, mas se — quer seja... humano ou pertença à esfera da atividade humana —, tem sido levado a moldar-se à vontade de Deus, como está expressa em sua lei. Ou seja, verá que o que está em discussão é se tais atividades respondem àquilo que Deus desejava para elas desde o começo. É claro que a doutrina reformada da imediata operação da graça de Deus no coração humano, através de sua Palavra, levantou-se em oposição ao ponto de vista de que o humano é uma esfera semi-autônoma que antecede o divino e que, realizando obras pelos próprios poderes do indivíduo, serve como um preâmbulo necessário à operação da graça. Quando Lutero começou a expor sua doutrina da justificação só pela fé, o nominalista Guilherme de Occam, em cuja lógica ele tinha sido instruído por Trutvetter e Usingen — e a quem Lutero chamou seu professor (magister meus)1 —, já tinha criado um clima de pensamento incompatível com a idéia de que a natureza é o preâmbulo da graça. Occam rejeitou a idéia de que qualquer coisa fora do Evangelho pudesse servir para julgá-lo 1
Wilhelm Risse, Die Logik der Neuzeit. 1: 1500-1640. (Stuttgart-Bad Cannstadt: Friedrich Fromann, 1964), p.81.
ou agir como uma plataforma adaptada à misericordiosa provisão de Deus e para a resposta de fé por parte do homem. Lutero orgulhava-se de pertencer à escola de Occam, a quem considerava o principal e o mais talentoso dos doutores escolásticos. A posição nominalista pareceu ajustar-se, além disso, às suas doutrinas a respeito da graça. Os nominalistas ensinavam que Deus age diretamente, dirigindo-se ao homem com absoluta e soberana exigência, sem dar lugar ao exercício de poderes humanos naturais de juízo, discriminação ou escolha. Ensinavam que a graça divina não é concomitante com as obras humanas, mesmo quando entendida como perfeição divina. Ensinavam que a graça divina opera imediatamente no coração do homem, indiferentemente ou, mesmo, em oposição à capacidade humana. Não estou sugerindo que a compreensão de Lutero a respeito das doutrinas da graça tenha surgido ou, mesmo, tenha dependido deste ensino dos nominalistas. Sustento que o seu entendimento é fruto de sua leitura das Escrituras. A tradição occamista, contudo, forneceu-lhe base para a sua crítica contra o ponto de vista de que a natureza é o preâmbulo da graça. Depois de descobertas essas doutrinas, no entanto, os ensinos nominalistas contribuíram para influenciar seu desenvolvimento teológico e para determinar sua concepção a respeito de como o Evangelho se relaciona com a cultura. É reconhecido que o ponto de vista de Lutero a respeito do que é chamado “dois remos” é profundamente influenciado pelo nominalismo. Para a esfera da natureza, ensinava ele, o conceito aristotélico do conhecimento, amplamente aceito, é suficiente. Para a religião, contudo, só a revelação é autoridade. Nesta área, a razão humana tem de submeter-se inteiramente à Palavra de Deus. A inteligência natural e sua lógica, limitadas ao finito como são, são prejudiciais à teologia porque não conduzem à fé, mas afastam dela.
A maneira pela qual essa tradição nominalista fazia distinção entre o divino e o humano tem, na verdade, um ponto de contato com o emprego verbal concreto nas Escrituras, pois elas falam, freqüentemente, da atividade de Deus e da atividade do homem de tal maneira que os coloca em posição diametralmente oposta um contra o outro. E possível, por isso, adotar essa maneira de as Escrituras colocarem a questão, sem penetrar a verdade que está por trás dela. Isso, ao que parece, era o que ocorria com o modo como os nominalistas entendiam o ensino bíblico a respeito de Deus e do homem, pois pensavam neles em termos de confronto entre graça e natureza. Era inevitável que essa tradição (nominalista) influenciasse a maneira pela qual Lutero desenvolveu sua teologia e concebeu a relação entre Cristianismo e cultura. Lutero, corretamente, afirma a doutrina evangélica da imediata operação da graça soberana de Deus, através da Palavra. No pensamento de Lutero, contudo, há uma marcante distinção entre a esfera íntima do divino, atividade espiritual, e a esfera exterior das práticas seculares. Na linha da posição nominalista, essa esfera exterior, em contraste com a esfera íntima, é considerada como formal e convencional. Pelo menos em relação ao campo espiritual, ela é colocada em posição de indiferença. A atividade cultural humana, que pertence a essa esfera externa, é aceitável, contanto que seus padrões não sejam aplicados à esfera espiritual. Não há, porém, nenhuma conexão íntima entre ela e esse campo espiritual. A atividade espiritual influencia a cultural, para empregar uma metáfora, somente quando se agita e se derrama dentro dela. Em comparação com a atividade espiritual, a atividade cultural humana deve ser tolerada. Dentro deste contexto, não causa surpresa o fato de Melanchthon — ao descobrir que na posição de Lutero não havia nenhum ponto íntimo de ligação no contato com a cultura e voltado para os fundamentos da teologia, em seu programa prático da reforma universitária —, inclinar-se mais e mais para uma posição não crítica de aceitação daquilo que vinha a ele a partir do meio secular. Acomodou sua posição mais e mais à posição
de Aristóteles que, segundo dizia, tinha desenvolvido a única filosofia científica.1 Certo, com relação às reformas da doutrina da graça, em sua convicção pessoal, Melanchthon, não obstante, acomodou-se à cultura secular, de um modo que era impossível a Calvino. No pensamento de Calvino, não encontramos um tal dualismo. Para ele, na verdade, não há esfera de atividade humana relativamente autônoma, que preceda a operação da graça de Deus. Além do mais, não há limite para a soberania divina, quando ela opera no coração humano. No pensamento de Calvino, contudo, essas posturas combinam com a profunda compreensão da doutrina bíblica da criação. Deus é o Criador soberano absoluto e sustentador de todas as coisas. Nada existe que ele não tenha criado e que não esteja sujeito à sua vontade criadora. Todas as coisas, inclusive as que parecem mais triviais, são reveladoras da sua soberania. Além do mais, sua vontade criadora soberana abrange aquilo que é humano e aquilo que pertence à esfera das realizações humanas, naturalmente as da História e do desenvolvimento cultural. Tudo está sujeito à sua vontade como vem expresso na sua lei. Em Calvino, portanto, não encontramos uma simples e global distinção entre Deus e homem, entre aquilo que é divino e aquilo que é atividade humana, noções que equivalem a cálculo matemático. Na verdade, pode-se respeitar a plenitude da distinção bíblica entre o Criador e sua criatura. No entanto, é um profundo discernimento desta verdadeira doutrina bíblica que leva o indivíduo a evitar o uso dos termos “Deus” e “homem”, em sentido global (em bloco), modo simples e absoluto contra o qual estamos fazendo advertência. Essa cilada pode ser evitada se, com Calvino, pensarmos dentro da criação, sob o horizonte da revelação de Deus, em termos da expressão da vontade do Deus Criador, em sua lei. Calvino compreendeu que tudo o que se conforma com a vontade de Deus, como está expresso na criação, tem a aprovação de Deus. Quando 1
Ibid., pp. 82, 106, 120.
responde ao propósito criador de Deus, o homem responde àquilo que está de acordo com a sua natureza, àquilo que Deus, na criação, declarou bom. Por isso, Calvino pôde aceitar com entusiasmo o programa da ciência natural, de pôr às claras os segredos do universo de Deus. Deste modo, também pôde ele aceitar livremente as realizações do gênio humano, que contribuíam para a humanização do homem. Admitia que essas coisas não tinham sentido separadas da religião; porém, na verdade, eram plenas de sentido com ela. Eram preciosos dons de Deus concedidos (ao ser humano) pelo Espírito Santo. Para dizer a verdade, a humanidade está depravada em seu coração por causa do pecado e a cultura não se desenvolveu sem severas distorções. A depravação, contudo, é contrária à natureza, não é natural. Aquilo que não responde à vontade criadora de Deus, que não está verdadeiramente de acordo com sua lei, é uma expressão da antinaturalidade que entrou no mundo por causa do pecado. Essa deformação, contudo, não obstante ser grande, não é tal que tenha separado o mundo e sua cultura do propósito e plano de Deus. Nem é tal que o mundo não manifeste mais a glória de Deus. As boas dádivas de Deus são largamente distribuídas, sem qualquer favor especial, aos da família da fé. A verdade, que está presente pela influência do Espírito Santo, deve ser abraçada, portanto, onde quer que seja encontrada. A despeito da depravação do coração do homem, Deus tem, por sua graça comum, conservado resíduos candentes daquilo que responde à sua vontade criadora.1 Por isso, é possível entender que haja mesmo brilhantes realizações do espírito humano entre os que têm, em seus corações, pouco ou nenhum lugar para os ensinos da Palavra de Deus.
1
O conceito de Calvino sobre a lei da natureza, diferentemente do dos estóicos, não se baseia na concepção de uma razão cósmica universal, mas está inseparavelmente ligado à doutrina bíblica da criação e a ordem criada das coisas. Dessa forma, Calvino tem um lugar para a doutrina da graça “comum” ou “preservadora” de Deus. Bohatec discute extensivamente a posição de Calvino acerca da lei da natureza, relacionando-a com a doutrina da criação e demonstrando o uso que Calvino fez da doutrina da graça universal. Cp. Josef Bohatec, Calvin und das Recht (Graz: Hermann Böhlaus, 1934), pp. 22-24, e passim).
O ponto de vista de Calvino a respeito da relação entre Deus e o homem parece estar compendiado em sua famosa afirmação, feita no começo de sua Instituição, de que há uma correlação entre o conhecimento que o homem tem de Deus e o conhecimento que tem de si mesmo (Dei notitiam et nostri res esse coniunctas).1 Isso significa que o homem só se conhece verdadeiramente, quando se conhece à luz de Deus e de sua revelação, com o corolário implícito de que, se se conhece verdadeiramente, conhece verdadeiramente também a Deus. Não é muito extrair desta correlação o pensamento de que o ser humano, estando verdadeiramente relacionado com Deus pela piedade, estará verdadeiramente relacionado consigo mesmo, e estando relacionado consigo mesmo pela piedade, estará verdadeiramente relacionado com Deus. Segundo meu modo de entender a questão, a idéia de Calvino a respeito da correlação entre o nosso conhecimento de Deus e o nosso conhecimento de nós mesmos abriu o caminho para ele se deparar com aquilo que, para ele, deve ter sido o maior problema, isso é, o problema da relação entre a educação humanística que ele recebeu, e pela qual continuava tendo grande respeito, e as verdades do Evangelho, que ele abraçou em sua conversão. Essa relação expressava um ponto de vista no qual o perigo de tomar “Deus” e “homem”, o “divino” e o “humano”, em bloco, já tinha sido superado. Seu ponto de vista permitia-lhe, de uma forma verdadeiramente compatível como ensino das Escrituras, assegurar um lugar pleno à humanidade do homem e às realizações culturais, sem detrair um mínimo da honra e da glória de Deus. Calvino considerou a humanidade do homem em sua profundidade. De fato, esse modo profundo de compreender o homem não se inspirou na idéia de humanidade universal, tal como a do Renascimento, onde se pensava que o homem fosse uma personalidade autônoma, a fonte criadora de seus próprios valores; ao invés disso, resultou da Revelação de Deus no 1
Calvino, Institutas, I.1.1. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p. 243.
que se refere ao seu propósito na criação, aos efeitos deformadores do pecado e à provisão de Deus para a redenção do ser humano e de seu mundo. Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade à antítese religiosa retratada na Escritura. O caminho foi aberto pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com Deus. O ser humano, em si mesmo, é verdadeiramente humano quando responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo para o que foi criado.1 Desse modo é possível constatar que o humanum é realizado não no isolamento autônomo do ser humano em relação a Deus, mas na sua relação com ele. A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a auto-realização humana é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano. Contra essa posição, é claro que o que está em discussão não é uma ênfase simples, relativa ou a ausência de ênfase a respeito do homem e dos produtos da atividade humana. O ponto em questão é se naquilo que o homem faz e no modo como se concebe a si mesmo está de acordo com o que Deus planejou para ele desde o começo, em sua soberana vontade criadora. Segue-se, deste fato, que qualquer idéia de homem ou de atividade humana, ou dos produtos dessa atividade, deve ser examinada quanto às suas raízes religiosas. Procura o homem expressar sua humanidade segundo a lei de Deus? Está ele pronto a reconhecer a inaturalidade ligada a tudo o que é humano e a toda realização humana, por causa do pecado? Está ele preparado para depender — em tudo o que se relaciona com ele mesmo e com suas atividades —, da graça redentora de Cristo e de seu poder restaurador? A partir desta perspectiva, percebemos agora que podemos trazer à luz, de forma mais efetiva, quão humanístico é o pensamento de Calvino. Sua posição, no que se refere aos interesses da glória de Deus e do Evangelho de Jesus Cristo, não exige que ninguém negue ou, mesmo, deprecie aquilo 1
Segundo Calvino, escreve Bohatec, o homem em seu estado natural voluntariamente sujeitou-se às normas racionais. Bohatec, Budé und Calvin, p. 352.
que é humano. Na realidade, a humanidade do homem pode ser exaltada sem que se avilte a honra de Deus. O interesse naquilo que é humanum e naquilo que a ele se refere só se torna humanismo no sentido pejorativo, quando defende o ponto de vista de que o centro de gravidade do ser humano, como se existisse, reside nele mesmo, numa presumida autonomia vis-à-vis com o seu Criador. Essa espécie de humanismo, como fizemos notar, surgiu durante a Renascença e floresceu no tempo do Iluminismo. Contra essa espécie de humanismo Calvino reagiu vigorosamente, visto que seus expoentes estavam tentando, por todos os meios à sua disposição, fazer abortar a causa da Reforma. O Calvinismo e o governo de Deus através da lei Até aqui verificamos que, para Calvino, a vontade soberana do Deus Criador não tem limites. Está presente em todas as coisas, mesmo naquelas que, aparentemente, são as mais insignificantes. Tudo revela Deus e expressa, de um modo ou de outro, sua majestade e glória. Observamos, além disso, que essa vontade soberana de Deus não pode ser entendida se a separarmos da revelação que ele faz de si mesmo e da expressão de sua vontade, na sua lei, à qual o homem e toda a criação, na verdade, estão sujeitos. Corresponde ao pensamento de Calvino dizer que o ser humano se realiza como pessoa quando, em sua resposta a Deus, compartilha com ele em sua revelação. O próprio homem responde livremente à chamada de Deus, obedecendo à vontade soberana de Deus que, certamente, não o deixa encurralado, mas lhe serve de meio dentro do qual ele se realiza como ser humano.1 Entendendo desta maneira, volto à minha terceira proposição: Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que é chamado livremente “cultura”, é teônoma, isso é, tem a sua razão de ser enquanto sujeita a Deus e à sua 1
O conceito de Calvino do Humanum, contrastando com uma idéia de autonomia humana, é manifesto em sua concepção de que a liberdade humana não é licenciosa, mas sim uma liberdade em obediência à lei de Deus. “Die wahre Freiheit ist nicht Ungebundenheit, sondem Freiheit im Gehorsam, Freiheit unter dem Gesetz.” Ibid., pp. 473-474.
lei. O que vem particularmente à luz aqui é o que Calvino pensa da lei. Se Deus, como Criador, está acima da lei (deus Iegibus solutus), sem que coisa alguma fora do seu próprio Ser possa limitá-lo, o ser humano e todo o cosmos com ele estão sob a Lei, sujeitos a ela. Pois tudo aquilo que se refere à natureza da criação, em sua totalidade, está ligado pela lei de Deus: Separada destes laços a existência da criação não tem sentido. Assim, a imagem que nos vem à mente, quando consideramos o ponto de vista de Calvino a respeito da soberania divina, não é a de um tirano despótico, porém a de um grande arquiteto, termo com que Calvino designa a Deus freqüentemente.1 Quando falava da criação, Calvino podia referir-se facilmente ao seu aspecto arquitetônico, à sua arquitetura, como revelação da grandeza e da bondade de Deus. Para Calvino, a idéia da criação traz consigo a idéia de ordem, ordem em que tudo é construído com uma estrutura magnificente, uma expressão de beleza.2 Entendendo desta maneira, é impossível ver, na idéia calvinista da soberania de Deus, sanção para qualquer espécie de soberania humana ilimitada. Mesmo que o homem possa ter sua autoridade sancionada por Deus, essa autoridade é limitada. A soberania humana é sempre restrita aos limites estabelecidos para ela. Estes dois fatos, que integram totalmente o caráter do Deus soberano criador, como ele se revela na sua Palavra e na existência imensurável de toda a sua criação, aparecem na idéia reformada da vocação. A Lutero é atribuído o fato de ter provocado uma revolução de tipo 1
Léon Wencelius, L’esthétique de Calvin (Paris: Societé d’Edition Les Belles Lettres’, s.d.), p. 30. Wencelius associa intimamente a idéia de beleza de Calvino com ordem. Em cada descrição de beleza encontra-se a noção de ordem. “La notion d’ordre se retrouve à chaque description de beauté. Tout chose belle est ordonnée en ellemême.” lbid., p.46. “La création révéle Dieu...grãce à sa beauté, c’est-à-dire grâce à son ordre merveilleux”. Ibid., p.40; cp. p.34. 2
copernicana na idéia de vocação, em relação ao que se pensava dela na Idade Média. Esse conceito tinha sido aplicado apenas a algumas áreas especiais, chamadas de “ordens santas”, para as quais era necessária uma consagração especial. Na verdade, a idéia corrente era de que só o monasticismo constituía verdadeira vocação. Do mesmo modo, a vida de contemplação espiritual era mais valorizada do que a vida ativa.1 Ao reconhecer que toda a vida é santa quando reflete o propósito de Deus, Lutero faz a idéia de vocação estender-se para abranger toda atividade humana legítima. O pleno impacto da revolucionária concepção de Lutero só pode ser sentido, contudo, se se escapa da espécie de dualismo em que ele mesmo caiu, ao distinguir entre um campo espiritual, íntimo, e uma esfera de ordenanças externas. Calvino, como já afirmei, nunca participou de um tal ponto de vista dualístico. Na verdade, como Lutero também fez, Calvino rejeitou a idéia de que a natureza é o preâmbulo da graça, sustentando que Deus opera imediatamente no coração humano, através da sua Palavra. Calvino, porém, não foi atingido pelas influências nominalistas que afetaram o sistema de pensamento de Lutero. O ponto de vista de Calvino, como demonstrei na seção precedente, não envolve de modo algum qualquer depreciação da atividade cultural, nem das instituições humanas. Na Reforma calvinista, a idéia de vocação podia assumir a mais pura expressão de sua significação universal. Para Calvino, a vida do homem, em sua totalidade, é compreendida como uma resposta à chamada de Deus. O homem é um ser do pacto. Como Lutero bem disse, o homem tem uma lei certa segundo a qual ele deve viver e morrer (certa regula tum vivendi tum moriendi). Em todos os aspectos de sua vida, o indivíduo é confrontado com o Deus soberano, perante o qual ele deve prestar conta de si mesmo. Na verdade, a vocação ou chamada de Deus tem sentido universal. A 1
Bohatec, Calvins Lehre von Staat und Kirche, pp. 638-639.
idéia reformada da vocação, contudo, não atinge sua expressão plena, separada da idéia de que há vocações particulares. A Reforma recuperou a idéia da santidade de todas as atividades humanas legítimas. O que está em jogo, portanto, não é se alguém é objeto de uma vocação particular, mas se na esfera em que exerce sua atividade, ele realiza o seu trabalho à luz da vocação divina e ali serve a Deus de todo o seu coração. Um dos aspectos principais do ponto de vista de Calvino a respeito da vocação estava no fato de ele entender que a grande diversidade de dons tinha sido dada aos indivíduos, de acordo com a soberana vontade do Espírito de Deus. Assim como não é apenas um raio de sol que ilumina o mundo, mas todos os raios se combinam num conjunto para realizar a tarefa dele, do mesmo modo Deus distribui amplamente os seus dons, com o fim de manter a humanidade em mútua interdependência.1 Entre os homens há uma diversidade de dons que possibilitam uma diversidade de funções. Aquele que tem um lugar particular e uma tarefa pressupõe que tem uma vocação para ela. Ao assumir esse lugar e suas obrigações, o indivíduo tem uma vocação definida (certa vocatio).2 A vocação que alguém tem é uma resposta obediente à divina vocação.3 Em conexão com isso, Calvino empregou outra figura, a do corpo. Estendeu essa figura à Igreja, à família e ao Estado.4 As vocações seculares pertencem ao Estado.5 Os membros do Estado bem como os da Igreja, com seus diversos dons, estão unidos num corpo com funções mutuamente dependentes. Assim, Calvino desenvolveu aquilo que tem sido chamado um conceito “orgânico” da Igreja, do Estado e da família, etc.6 1
Calvino, Opera, 2, 252. Bohatec, Calvins Lehre p.640. Bohatec, Calvins Lehre, p. 636. 3 “Der Beruf ist gehorsame Antwort auf den göttlichen Ruf.” Ibid., p.644. 4 Ibid., p. 647.. 5 Ibid. 6 Bohatec interessa-se especialmente em mostrar que o conceito de Calvino sobre chamado está intimamente ligado com essa visão orgânica. “Die Eigenart des calvinischen Berufgedankens wurzelt inseiner Einordnung in das Organismussystem.” Ibid., p.646. 2
A idéia reformada da vocação, especialmente como ela foi desenvolvida por Calvino, conduz à idéia de que a santidade prende-se àquilo que é chamado de "atividades culturais” do homem. Essa atividade cultural do homem é considerada como sendo uma resposta à chamada divina, que envolve uma tarefa cultural divinamente determinada. Portanto, a atividade cultural do homem é teônoma e só tem sentido como uma resposta a Deus e à sua Lei que, por sua vez, estabelece os seus laços e determina o seu significado. Esse passo, na verdade, foi anteriormente dado por Calvino. Calvino vislumbrava uma tal esfera orgânica na família. A família é uma ordenança da criação fundada por Deus.1 E uma eterna e indestrutível instituição divina.2 Ao chefe da família, no sentido restrito da palavra, o marido, foram concedidos dons especiais do Espírito. Em virtude de tais dons ele foi dotado de autoridade, autoridade que foi chamado a exercer na esfera particular em que foi colocado. Dentro da família há uma relação especial de superordenação e subordinação. De acordo com a disposição divina, o marido é o cabeça da esposa, mas o é de tal modo, porém, que ele deve cuidar dela como cuida do seu próprio corpo. Na verdade, ele deve amá-la como Cristo amou a sua Igreja e se entregou a si mesmo por ela. Por seu lado, a esposa deve ser submissa ao marido, no Senhor, oferecendo-lhe o amor e a obediência a que ele tem direito como seu cabeça. Acima dos dois — marido e mulher —, no entanto, está o Cabeça de todas as coisas, Jesus Cristo. Ambos, marido e mulher são limitados em sua autoridade e atividade. Suas vidas, como casados, alcançam sua realização em sua obediência à Lei de Deus, naquilo que diz respeito à esfera para a qual foram chamados. O ponto de vista de estrutura orgânica, de Calvino, está presente também em sua maneira de conceber o Estado, no qual ele viu uma
1 2
Calvino, Opera, 28,148. Ibid., 52, 276. Cp. Bohatec, Calvins Lehre, p.652.
analogia com a família.1 Ele relacionou com o Estado, também, sua idéia de diversidade do gênero humano, quanto aos dons e esferas de atividade. O Estado também é análogo a um corpo, no qual os vários membros têm seu próprio lugar e função. No Estado, os indivíduos são reunidos uns aos outros numa unidade orgânica, com diferentes posições na vida e diferentes funções. Acima do Estado está o governo. A autoridade deste, ensinou Calvino, não se deriva, antes de tudo, da vontade do povo; antes de tudo, ela é dada por Deus.2 A fonte divina da autoridade do magistrado está no fato de ter ele recebido dons peculiares do Espírito para governar.3 Dentro da esfera do Estado, portanto, há uma autoridade, há um centro de poder divinamente legitimado. Calvino partilhou da antiga idéia de que o governo está acima da Lei, porque ele é a sua fonte (princeps legibus solutus). De fato, ele admitiu que o governador é a fonte da Lei Positiva, que obriga nos limites do seu território. Neste sentido, Calvino falou do governador como a lei personificada (lex animata).4 Na verdade, em sua concepção geral, contudo, Calvino sustentou que a autoridade de um governador é limitada. Um governador deve, ele mesmo, submeter-se à Lei Positiva, que vige nos limites do seu território.5 Lei Positiva, além do mais, é apenas uma expressão da Lei, pois, além dela, há a Lei Natural, a Lei da Natureza,6 que Calvino associou estreitamente com a probidade. Cada Lei Positiva deve expressar o princípio da probidade. Se não for assim, será inútil.7 Que significa para Calvino a Lei Natural? A resposta a essa questão 1
Bohatec, Calvins Lehre, p.653. Ibid., pp.169, 171. 3 Ibid., p.12. 4 Ibid., p.37. 5 Ibid., p.38. 6 Bohatec, Calvin und das Recht, p.126. 7 Ibid., pp.97, 101, 106, 122, 127. 2
não é simples. Como Lutero e Melanchthon, Calvino tinha viva apreciação pela Lei Romana largamente aceita, e interpretava os sistemas legais correntes. Ele compartilhou da distinção que o jurista romano Quintiliano fez entre as leis dadas a cada um, pela natureza — isso é, o direito natural (iustum natura), e as leis que pertencem ao folk ou ao povo, em cujo contexto as leis recebem sua formal expressão judicial (iustum constitutione).1 A abertura de Calvino para com a Lei Romana neste ponto, envolvendo, como envolve, um acordo formal com a idéia de que há uma Lei Natural, está em consonância com a sua atitude, em geral, para com as realizações culturais humanas e, mais particularmente, está de acordo com a sua atitude para com o sistema de Lei Romana, no qual ele introduziu muito poucas correções. O fato de aceitar a Lei Natural não significa, contudo, que ele não a colocasse numa perspectiva que, naturalmente, pudesse mudar o seu significado. Sustentar um ponto de vista a respeito da Lei da Natureza, como Calvino fez, não significava entrar no campo dos Estóicos, com sua concepção de razão universal, ou num acordo substancial com a Lei Romana, em seu ponto de vista a respeito da origem e do sentido da Lei Natural. Que Calvino pudesse aceitar a Lei Romana, de modo algum dependia de como ele interpretava seu lugar no plano providencial de Deus, ou envolvesse a necessidade de ele reinterpretá-la, fazendo suas distinções dentro do contexto de seu modo de entender a doutrina cristã. Aceitá-la era agradável à sua idéia de que Deus não tinha permitido ao mundo ir à ruína por causa do pecado, mas que o tinha preservado por meio de sua graça comum. A aceitação, por parte de Calvino, de alguma espécie de doutrina de Lei Natural reflete, também, sua interpretação do ensino da Escritura, no que se refere àquilo que entendem por natureza (physcei) os que estão fora do âmbito da revelação especial de Deus e que, diferentemente dos judeus, não receberam os oráculos (ta logia) de Deus. O fato de estes, não obstante, fazerem por natureza as coisas que estão escritas na Lei de Deus, deve ser, segundo Calvino, atribuído às sensibilidades humanas 1
Ibid., pp.98ss.
distribuídas a todos os homens (sensus communis), fato que reflete a vontade divina e que tem sido preservado do aniquilamento pela graça comum de Deus. Segue-se, deste fato, que Calvino não podia pensar na Lei da Natureza como um direito inerente à razão universal, entendida como separada da mensagem bíblica. A Lei da Natureza tinha de ser relacionada com a ordem da criação, através da qual, a despeito das devastações provocadas pelo pecado, Deus continua a revelar-se em toda parte e em todos os tempos. Um governador, então — que na verdade, para Calvino, é a fonte das Leis Positivas inscritas nos códigos de seu território —, está sujeito à Lei da Natureza. Segundo Calvino, essa Lei da Natureza é o princípio e o objetivo de todas as Leis Positivas, e é a Lei que estabelece o seus limites.1 Um governador, portanto, está sujeito a uma Lei (da Natureza) cuja autoridade excede, em muito, à de quaisquer leis que ele mesmo possa gerar. Em última análise, ele está sujeito a Deus, que é a fonte final de toda lei e de toda autoridade. De fato, o respeito que Calvino tinha para com o magistrado e para com os dons de governar, era enorme. O homem é obrigado a aproximar-se de um governador como de alguém dotado, pelo Espírito do próprio Deus, de extraordinários dons que o qualificam para governar. Contudo, essa autoridade humana, conquanto seja sancionada pela autoridade divina, é sempre restrita, sendo demarcada pelos limites próprios do ofício de governador. O ponto de vista de Calvino a respeito da vocação, tanto da atividade na esfera do lar, do Estado, do magistério ou da Igreja, exibe sempre essas duas faces. Há, de um lado, a idéia de que tudo na vida é resposta à vocação universal de Deus, cuja vontade soberana abrange todas as coisas 1
Para Calvino, diz Bohatec, o direito natural, que é virtualmente idêntico ao direito moral, serve como ratio de todas as leis escritas. Ibid., p. 97. “... das Natturrecht Regel, Ziel und Grenze der positiven Gesetze ist.” lbid., p.101; Cp. p.106.
e cuja providência se estende a cada pormenor da existência humana. De outro lado, há a idéia paralela de que a resposta humana é canalizada por vocações específicas, de modo que cada um tem o seu lugar e desempenha suas funções dentro do corpo. Caberia ao grande estadista e teólogo holandês, Abraham Kuyper, unir as linhas do ensino reformado e desenvolver a idéia da “esfera soberana” ou, como ela tem sido chamada, “soberania nas esferas individuais da vida”, pois Deus, cuja soberania se estende sobre a totalidade da vida, tem ordenado várias esferas na sociedade, cada uma das quais dispõe de uma soberania dentro de sua própria órbita.1 Calvino já tinha compreendido, contudo, que há uma diversidade de dons e vocações, e que cada um desses dons ou vocações tem de ser compreendido em relação com Deus e com sua soberana vontade. Segundo Calvino, bem como segundo Kuyper, cada um pode servir de acordo com seus dons peculiares, suas capacidades especiais e em seu próprio lugar, e ser agraciado com o conhecimento de que foi incumbido de realizar uma particular vocação de Deus. O ponto de vista de Calvino a respeito da diversidade de vocações, estabelecidas por Deus, torna imperativo reconstruir a difundida noção dos tempos modernos, concernente à natureza da cultura e da sociedade. Até aqui tenho empregado a palavra cultura em sentido mais amplo e indiscriminado, sem levar em conta a questão do uso comum do termo. Segundo esse uso, cultura é o termo geral que denota a ordem trazida à existência pela agência humana. Tem-se como cultura tudo aquilo que não surge pronto, como parte integrante da natureza. Assim, ela inclui toda linguagem, todas as leis, todas as convenções sociais, etc. Na maior parte das vezes, quando um contemporâneo discute um tópico tal como “Cristianismo e Cultura”, ele tem em mente o termo 1
“Soberania de esfera” (Souvereiniteit in eigen kring) é o titulo da famosa mensagem entregue por Abraham Kuyper na solenidade de abertura de 20 de outubro de 1880 da Universidade Livre de Amsterdã, 3ª ed. (Kampen: Kok, 1930). Cp. Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism, (Grand Rapids, Eerdmans, 1931.
cultura interpretado deste modo. A cultura abrangendo todo engenho humano e seus produtos é posta em contraste com aquilo que pertence à esfera do divino. Introduz-se, deste modo, uma discussão de relação do Cristianismo — como sendo de origem divina — com aquilo que é produto da engenhosidade humana, no mais amplo sentido da palavra. O ponto de vista de Calvino a respeito da Natureza e da Lei Natural sugere que essa maneira de ver precisa ser reconstruída. Seu ponto de vista não admite que toda lei e toda estrutura (que não é parte da natureza) sejam compreendidas como produtos do engenho humano. O próprio engenho humano (para Calvino), ao contrário, adquire sentido dentro da estrutura estabelecida pelas ordenações divinas, que a prerrogativa humana está longe de poder mudar. Outra vez Calvino não admite que se considere o divino e o humano em bloco. A atividade humana é plena de sentido só dentro dos limites estabelecidos pela vontade soberana de Deus, expressa em sua Lei. A Lei de Deus constitui uma permanente estrutura para a atividade humana, fora da qual essa atividade perde o significado. A atividade cultural humana, na verdade a totalidade da cultura, é teônoma e só tem sentido em sua relação com Deus e sua Lei. O Calvinismo e a Atividade Cultural do Homem. Calvino viveu num tempo de fermentação e mudanças, numa época que ele mesmo descreveu em termos os mais elogiosos. Foi um tempo de renovação do pensamento, de profundos transtornos sociais e de conflitos religiosos. Tanto em relação ao Renascimento quanto à Reforma havia não apenas uma vívida consciência de retorno àquilo que, durante longo tempo, tinha ficado obscurecido — um retorno às fontes (ad fontes) —, mas também havia a consciência de que esse retorno era o marco de um novo começo, a emergência de uma nova idade que seria diferente, em grau marcante, daquela que a precedia imediatamente.
No meio de uma tal fermentação, não surpreende o fato de ter surgido, também, um sentido de transformação histórica. Essa consciência dominou também a Calvino. Seu ponto de vista a respeito da Lei Natural não o impediu de ser flexível com respeito às mudanças que tinham lugar por toda parte, ao redor dele. Ele sabia que era impossível associar a vontade de Deus com a ordem existente, pois fazer isso significaria sancionar as forças do conservantismo e da reação. A investida característica do seu tempo contra as idéias e costumes bem estabelecidos não era simplesmente destrutiva e destituída de sentido. Contudo, é claro que Calvino não abandonou tudo às forças da História, como já nos mostrou a discussão a respeito da Lei. Quando ele abraçou a doutrina da Lei Natural, ela mesma estava num tal abandono. Ele não repudiou seu ponto de vista de mudança — de Deus ou de sua Lei — de forma a ser conduzido derrotado à trilha da revolução. Ainda que fosse mais controlado do que Lutero, em sua atitude para com essas forças, Calvino desprezou aqueles que, à margem da Reforma, combatiam com fervor revolucionário aquilo que estava estabelecido. Não obstante, é verdade que Calvino tinha uma visão aguçada para (compreender) o papel da História. Além do mais, ele foi um homem moderno no sentido de não considerar a História simplesmente como um movimento de imagem da eternidade. Sua recusa em limitar a vontade soberana do Deus criador não poderia obstruir a História. Para Calvino, o sentido da História reside nela mesma.1 A História e as mudanças históricas estão incluídas na esfera da atividade soberana de Deus e realizam os propósitos de sua vontade.2 Possuiria então, Calvino, um princípio bem elaborado de mudanças históricas, princípio que favorecia a proeminência que ele dava à História sem cair, por um lado, no conservadorismo e, por outro, sem cair numa 1 2
Bohatec, Budé und Calvin, p.284. Calvino, Opera, 39. 588. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p.282.
posição revolucionária? Teria ele uma clara noção daquilo que constitui a cultura, de modo a poder ver com clareza como a História e a formação da cultura histórica têm seu lugar dentro da ordem do cosmos, como Deus o criou? Na verdade, ele estava plenamente ciente do que tinha sido feito no passado para a construção de um ponto de vista cristão a respeito da História, pois lera os Pais da Igreja, inclusive Agostinho, que foi o primeiro a desenvolver aquilo que poderia ser chamado uma filosofia cristã da História. De fato, ele mesmo desenvolveu um ponto de vista a respeito da História. Contudo, a resposta às questões acima deve ser negativa. Calvino não desenvolveu uma filosofia da História, no sentido técnico desta palavra. É melhor dizer que Calvino possuía um sentido sumamente afinado da atitude que o cristão deve ter com respeito à mudança histórica, um sentido que foi desenvolvido por seu estudo da História, na sua instrução e, especialmente, na sua profunda compreensão do ensino bíblico. É significativo a esse respeito que, antes de sua conversão à fé evangélica, Calvino já estava plenamente envolvido naquilo que foi uma das mais poderosas forças modernizantes de seu tempo: o Renascimento humanístico. Isso já tinha produzido poderoso impacto nos círculos católico-romanos. Dá testemunho disto o fato de o líder do humanismo francês, Budé, ser um católico romano e ter influenciado alguns dos mais chegados companheiros de Calvino. Calvino firma-se primeiro como um humanista. Só depois alcançou ele o desenvolvimento que o transformou no maior sistematizador da Reforma. Tendo já colocado seus pés no mundo moderno, o problema de Calvino não seria o de como entrar na modernidade, mas o de como se relacionar, ele mesmo e a nova cultura, com as velhas verdades do Evangelho, verdades que tinham sido outra vez trazidas à luz pela Reforma, e de como interpretar o mundo moderno à luz dessas verdades. Não se deve também esquecer que Calvino, no interesse de aplicar as
verdades do Evangelho à vida, foi levado à arena da vida prática. Seus princípios não tiveram, a respeito dessas verdades, aquele ar de irrealismo que caracteriza os esquemas ideais que têm pouco ou nenhum contato com a vida real. Há em Calvino um saudável realismo. Tem sido sugerido que seus princípios tiveram efeito porque ele estava em contato com as situações reais da vida e estava em condições de mudar essas situações.1 Vemos Calvino, por exemplo, tentando, tanto quanto possível, repor as Leis Canônicas em Genebra, juntamente com os princípios da Lei Romana.2 Vemo-lo em cooperação com Marot, elevando o nível de apreciação pela música no culto.3 Vemo-lo entrando no campo da educação, com a fundação da Academia de Genebra, e tentando desenvolver uma verdadeira concepção cristã da cultura.4 Encontramo-lo, através de sua intensa atividade literária, elevando a alturas inabituais, o nível da língua francesa.5 Na introdução de sua Instituição da Religião Cristã, ele se dirige ao rei de uma forma que lembra os antigos apologistas, pleiteando o bem-estar dos verdadeiros seguidores do Evangelho, mas afirmando, também, de uma forma que evidencia o mais profundo interesse pela situação política corrente, que os verdadeiros interesses do Estado só alcançam o progresso quando há verdadeira obediência a Cristo e às verdades de sua Palavra.6 Na verdade, para Calvino, a Palavra de Deus não devia permanecer enclausurada no coração humano. Suas energias deviam irradiar-se por todo o mundo, em toda vida, incluindo o domínio da cultura. No fundo, contudo, foi pelo fato de Calvino ter penetrado tão profundamente na concepção do mundo, que ele foi capaz de desenvolver 1
Ibid., p.298. Bohatec, Calvin un das Recht, p.121; cp. pp. 211ss. 3 Cp. Wencelius, L’esthétique de Calvin, pp.225ss. 4 Cp. Bohatec, Budé und Calvin, pp.300 ss. 5 Ibid., p. 263. 6 Calvino, Opera, 39. 588. Cp. Bohatec, Budé und Calvin, p. 282. Cp. André Biéler, La Pensée Économique et Sociale de Calvin (Genebra: Georg, 1961), pp. 74 ss, e passim. 2
um sentido próprio da História e de sua dinâmica. Foi por ter entendido, como Agostinho antes dele, o significado reprodutivo da doutrina bíblica da criação, que ele reconheceu a soberania e a providência de Deus sobre todas as coisas, de modo que coisa alguma escapa à vontade criadora de Deus. Isso tornou possível, para ele, ver que essa vontade se estende a toda História e àquilo que é central à História ou, seja, à atividade formadora do homem, que é o coração do desenvolvimento cultural. Quem se coloca na posição de Calvino não tem necessidade de conceber a atividade cultural humana como contrastada com a presumida esfera da atividade divina. A cultura pode ser concebida como um aspecto da atividade humana, distinta da natureza, mas não como independente da Lei divina, do plano divino e da divina vocação. A atividade cultural humana pode ser concebida como uma resposta à chamada de Deus, do mesmo modo como o é toda a vida, e pode ser julgada quanto a se é ou não levada a efeito de acordo com a vontade do Deus criador. O que se exige é uma reconstrução da idéia de cultura, idéia concebida dentro do contexto da revelação divina, contexto dentro do qual a cultura se torna plena de sentido. A atividade cultural humana, levada a efeito em obediência à Lei de Deus, é uma expressão de sua vontade. Está na linha do pensamento de Calvino dizer que aquilo que flui da cultura, tem um lugar no plano de Deus, enquanto se relaciona com o fim desta era e com a vida de um novo céu e de uma nova terra.
A Propagação do Calvinismo no Século 16 W. Stanford Reid (Tradução: Júlia Pereira Lalli)
W. Stanford Reid é professor emérito de História na Universidade de Guelph em Guelph, Ontário. Tem títulos obtidos na McGill University de Montreal (B.A.,M.A.), no Westminster Theological Seminary, de Filadélfia (Ph.D.), no Wheaton College, de Wheaton, Illinois (L.H.D.Hon.), e no Presbyterian College of Montreal, Quebec (D.D.Hon.). Trabalhou no ministério pastoral em Montreal e, como membro da Arts Faculty, na MacGill University, em Montreal, Dr. Reid tem contribuído com muitos artigos para o Church History, Fides et Historia, The Scottish Historical Review, The Canadian Review, Speculum, Christianity Today, The Presbyterian Record, e muitos outros periódicos. Escreveu e organizou cerca de dez livros sobre a Reforma Protestante e sobre a história do Canadá. É membro da American Society of Church History, da Conference on Faith and History, da Scottish Church History e da Royal Historical Society.
CAPITULO 2
A PROPAGAÇÃO DO CALVINISMO NO SÉCULO 16
A comunicação é sempre uma questão de grande importância em qualquer civilização ou cultura, mas tem se tornado mais importante do que o comum em nossa própria sociedade. A imprensa, o rádio e a televisão desempenham grande papel em nossas decisões e, de uma forma geral, em nossa maneira de pensar. Com as facilidades de comunicação que temos hoje, e que o homem jamais teve em tempos passados, temos a tendência de achar que o tempo em que vivemos é o único período em que a comunicação, a propaganda — ou como quer que a chamemos — é valorizada de fato. Contudo, quando nos voltamos para o século 16, não temos como evitar a surpresa ante a maneira como informações e idéias de todos os tipos circulavam pela Europa. Um dos exemplos mais marcantes desta difusão de idéias torna-se visível na forma como o Calvinismo se espalhou a partir da pequena cidade suíça, Genebra, por grande parte da Europa, indo dos braços mais baixos do Danúbio até as regiões nórdicas da Escócia. O Luteranismo também se espalhou bastante rapidamente nos primeiros tempos da Reforma, mas logo começou a recuar como maré vazante, com exceção feita apenas às regiões mais teutônicas como a Alemanha e Escandinávia. As idéias de Calvino, por outro lado, penetravam e, freqüentemente, suplantavam as de Lutero em regiões tão diversas quanto as da França, Escócia, Holanda e Hungria. Apesar das dificuldades da geografia física, dos obstáculos causados por oposição política e pela perseguição instigada por autoridades católicas, o Calvinismo conseguiu expandir sua influência e ampliar suas fronteiras a ponto de vir a ser considerado o inimigo número um da Igreja Católica
Romana e dos governos absolutistas. Embora haja inúmeras razões que demonstram esse fato, um fator muito importante é constituído pela forma e pelos meios utilizados na propagação do Calvinismo por toda a Europa do século 16. Ao tentarmos compreender essa questão da comunicação, devemos reconhecer que a transmissão de idéias depende muito da sociedade em que essas idéias são expressas. Temos tido muito bons exemplos deste fato nos jargões criados por estudantes universitários e pela geração hippie dos anos 60. Além disto, a questão da tecnologia da comunicação e da transmissão de idéias na sociedade hoje é de importância crucial. Haja vista que hoje o computador está assumindo uma função completamente revolucionária neste mesmo campo. No entanto, dada a técnica desta maneira de comunicar, ela é compreendida por muito poucos, ou seja, apenas por aqueles que foram tecnicamente treinados para usá-la. Desta forma, para compreender o sucesso da transmissão das idéias de Calvino e para explicar parcialmente o sucesso obtido em divulgá-las, é necessário que olhemos primeiro os antecedentes sociais da Reforma e o desenvolvimento dos meios de comunicação.
Desenvolvimentos no Final do Período Medieval e no Início dos Tempos Modernos Os dois séculos que se passaram entre 1300 e 1500 foram séculos de mudanças rápidas, e mesmo revolucionárias, na sociedade da Europa Ocidental. Se Petrarca ou Dante pudesse voltar para conversar com Erasmo, teriam se encontrado em um mundo completamente diferente daquele que haviam conhecido. De um lado, a Europa havia sofrido o ataque devastador da Peste Negra ou peste bubônica que matara um terço da população de alguns países. Essa tragédia produzira efeitos e implicações de longo alcance. Precisamos nos lembrar também de que foi durante estes séculos que eclodiu a Renascença, que o Grande Cisma e o
Movimento Conciliatório na Igreja seguiam seu curso e, finalmente, que descobertas geográficas modificaram muitas das perspectivas dos europeus ocidentais — inclusive a descoberta da América e a circunavegação do Cabo da Boa Esperança, e a abertura posterior de um caminho direto para o distante Oriente. Por volta de 1500 a Europa era um continente diferente, com uma sociedade fundamentalmente modificada. Um dos efeitos da Peste Negra foi o declínio da economia na Europa Ocidental, quando diminuiu a demanda de bens, assim como a mão-deobra que os produzia. Contudo, por volta da metade do século 15, na medida em que as pessoas se tornavam mais resistentes à doença, as populações começaram a crescer e, mesmo que seu número não tenha chegado aos níveis anteriores à praga — senão quando o século 16 já ia bem adiantado —, a indústria e o comércio começaram a se recuperar. Novas técnicas criadas nas indústrias de manufatura de tecidos de lã, nas de mineração do carvão e nas de produção de armamentos, tudo contribuía para estimular a economia; especialmente nos países do noroeste, como a Inglaterra e Holanda. Em função disto, aumentou a necessidade de um fluxo maior de dinheiro, resultando no aperfeiçoamento dos métodos de financiamento, e no surgimento de importantes empresas de operações bancárias, como a dos Médici, de Florença e a dos Fuggers, de Augsburgo. Todos estes fatores contribuíram para a expansão geral do comércio depois de 1450, o que levou, por sua vez, à formação de uma rede de comunicações que viria a desempenhar papel muito importante na transmissão de idéias durante o século 16.1 Essa rede surgiu também em função das mudanças de classe que estavam ocorrendo em algumas regiões da Europa, em conseqüência dos desenvolvimentos econômicos. Apesar de sempre ter havido mercadores e artesãos aos quais podemos chamar de classe média, por estarem entre a 1
Cp. W.B. Bowsky, The Black Death: A Turning Point to History? (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1971), e passim; P. Burke, org.. Economy and Society in Early Modern Europe (Londres: Routledge, 1972), pp. 43ss; F. Mauro, Le XVI Siécle Européen, Aspects Économiques (Paris: Presses Universitaire de France, 1966), parte 2.
nobreza e a classe dos servos, não foi senão na última parte do século 15 que a verdadeira classe média começou a surgir. Ao invés de alguns poucos comerciantes e banqueiros, um número muito maior de homens interessados em comércio, mesmo que em escala bastante pequena, começou a desempenhar essa função na sociedade. Ao noroeste da Europa, em países como a Inglaterra, Holanda e Alemanha Ocidental, a nova classe de homens começava a desalojar a nobreza de sua posição de comando da sociedade.1 Enquanto a nobreza sofria por causa da inflação que grassava, a nova classe comercial vicejava em decorrência da expansão econômica e se tornava o suporte de reis que tinham uma necessidade cada vez maior de dinheiro vivo. Politicamente, os séculos 14 e 15 viram o rápido crescimento de um sentimento de nacionalismo em muitas regiões. Foi o período do esforço de expansão dos ingleses, tanto nas ilhas Britânicas como na França, do outro lado do Canal, esforços que resultaram no desenvolvimento e na consolidação do sentimento nacionalista não apenas dos ingleses, mas, também, dos franceses e escoceses. Já no final do período, o nacionalismo espanhol fortaleceu-se na luta contra os mouros. Esse nacionalismo popular, por sua vez, auxiliou o surgimento do que veio a ser conhecido como as “novas monarquias”. Os monarcas das nações em desenvolvimento, com o objetivo de consolidarem seu poder, tanto dentro de seus próprios países como na oposição a inimigos externos, precisavam de uma administração e de exércitos que só podiam ser mantidos com o apoio financeiro da nova classe média.2 Desta forma, o equilíbrio político do poder estava começando a se modificar em alguns países. Uma outra mudança, que ocorreu entre 1300 e 1500 teve lugar na 1
Ibid., pp. 326 ss; C. M. Cipolla, Before the Industrial Revolution (Londres: Methuen, 1976), pp. 139 ss; P. Smith, The Social Background of the Reformation (Nova York: Collier, 1962), pp. 15 ss. 2 A.J. Slavin, The "New Monarchies” and Representative Assemblies (Lexington, Mass: Heath, 1964), e passim; H. Pirenne et al., La Fin du Moyenne Age (Paris: Presses Universitaire de France, 1931), pp. 3O ss; M.P. Gilmore, The World of Humanism (Nova York: Harper & Row, 1952), pp. 100ss.
orientação do pensamento ocidental. A teologia de Thomas de Aquino, com sua aceitação da realidade dos universais, nos quais participavam os particulares, perdeu a primazia com o surgimento de idéias “modernas” anunciadas por homens como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. O individual ou o particular passou então a ser considerado como a única entidade real, ao passo que os universais passaram a ser considerados apenas como classificações nominais. Esse novo modo de pensar foi ainda mais enfatizado com o interesse demonstrado pelo pensamento clássico expresso nas então recém-descobertas ou recém-estudadas obras de autores gregos e latinos. O humanismo renascentista, com sua ênfase sobre o indivíduo, particularmente sobre homem de “virtu”, deu uma força adicional a ponto de vista de que o indivíduo é a figura central de qualquer conceito a respeito do homem e de suas atividades, visão essa concretamente demonstrada por Pico de la Mirandolla em seu Discurso sobre a glória do homem.1 Todas essas mudanças tiveram sua influência sobre o padrão de comunicação. Certamente, a Idade Média tinha seu próprio método de transmitir idéias, mas esse método alcançava um número relativamente pequeno de pessoas e, por isso, o movimento de idéias era bastante limitado. Considerando que a grande maioria das pessoas era analfabeta, a sociedade medieval era uma sociedade basicamente oral e visual. A Igreja transmitia seus ensinamentos às pessoas através de quadros, imagens e cerimônias. Mesmo a pregação não era comum. Normalmente, quando os governos precisavam registrar muitos atos, privilégios e eventos usavam os serviços do clero, a única classe letrada. As novas idéias, desenvolvidas nas escolas daqueles dias por pensadores revolucionários, como Pedro Abelardo, eram geralmente transmitidas por alunos que haviam estudado com estes homens. Os livros e documentos daquele tempo, produzidos em pergaminho até 1300, eram normalmente escritos em latim. Desta forma, 1
Ibid., pp. 182ss; J.R. Hale, Renaissance Europe 1480-1520 (Londres: Fontana, 1971), pp. 275ss; D. Hay, The Italian Renaissance in its Historical Background (Cambridge: Cambridge University Press, 1968), pp. 102ss.
sua leitura era limitada àqueles que tinham educação universitária e dinheiro suficiente para comprar artigos extremamente caros. O século 15 assistiu a uma mudança radical de mentalidade. De um lado, a redescoberta da literatura clássica despertou um novo interesse pela educação e pela cultura, interesse fortalecido pelo uso do papel na produção de livros, fato que reduziu consideravelmente seu preço. Além disso, apesar dos conflitos internacionais constantes, o surgimento de Estados nacionais facilitou um pouco a circulação pela Europa, resultando no aumento do número de estudantes que se deslocavam de uma universidade para outra. O fato de Copérnico, depois de estudar na Polônia, poder ir estudar Ciência na Universidade de Pádua, na Itália, demonstra o quanto a situação estava se modificando. A medida em que a classe média crescia, era indispensável que os que a integravam tivessem ao menos uma educação elementar para poderem comerciar e negociar. Um novo grupo de leitores começou a surgir; contudo, um público capaz de ler no vernáculo e não no latim das universidades.1 Tudo isso fornecia as bases para o mais revolucionário desenvolvimento do século 15: a invenção da imprensa. No início do século havia sido divulgado o uso de blocos de madeira entalhada para a reprodução de ilustrações e de textos relativamente curtos. Apesar de os livros poderem ser reproduzidos desta maneira, sua publicação era lenta e bastante dispendiosa. Foi por volta de 1450, no entanto, que Johannes Gutenberg, um alemão de Mainz, desenvolveu uma liga de metal que podia ser usada para fazer tipos móveis. O resultado foi uma verdadeira revolução em todo o processo de transmissão e comunicação de idéias. Trabalhando primeiro em Mainz e depois em Estrasburgo, Gutenberg 1
J.Bonneret, “Ésquisse de la vie des routes au XVle siêcle”, Revue des Questions Historiques (1931), CXV, 1ss. Esse livro nos fornece um bom retrato da crescente facilidade de se viajar na Europa no final do século 15 e início do século 16. Ver também Hale, Renaissance Europa, pp. 283ss; G.R. Potter, org, New Cambridge Modern History (Cambridge: Cambridge University Press, 1957), pp. 95ss.
conseguiu uma reputação bastante rápida para suas publicações e, conseqüentemente, outros indivíduos destas duas cidades passaram a se dedicar também ao ofício de impressor. A partir da Alemanha, as técnicas do novo processo logo se espalharam para a Itália, e Veneza se tornou o principal centro de obras impressas. Pouco tempo depois, outras cidades, como Basiléia, na Suíça, seguiram seu exemplo, de forma que por volta de 1500 a imprensa se tornara relativamente comum. Estima-se que entre 1450 e 1500 tenham sido produzidos entre dez mil a quinze mil textos diferentes, atingindo um total de quinze a vinte milhões de cópias. O uso do papel e do tipo móvel deu, à produção de livros, um caráter completamente diferente do que tivera antes de 1450. Além de tornar possível a produção de livros baratos e em grande quantidade, a imprensa contribuiu para o surgimento de uma revolução intelectual em muitos outros aspectos também. Embora seja verdade que, até 1500, a maioria dos livros impressos eram antigas obras de autores latinos, obras novas começaram a surgir com freqüência cada vez maior, nas línguas vernáculas. Isso significa que os novos métodos de produção de livros visavam aos novos leitores. Essas obras não eram mais produzidas só para as pessoas que tinham formação universitária, mas também para aqueles que só podiam ler em sua língua materna. Talvez, de igual importância, como apontado por Marshall McLuhan, uma nova disposição de espírito foi gerada pela revolução da imprensa. Conquanto seja um pouco difícil pensar segundo o padrão linear de pensamento de McLuhan, resta pouca dúvida de que a ênfase passou a ser dada muito mais à palavra escrita e à sua compreensão intelectual. A comunicação visual tornou-se menos importante do que a capacidade de compreender o raciocínio intelectual ou mesmo abstrato.1 A nova classe de leitores, tendo recebido um tipo de treinamento diferente daquele que era dado um século antes, começava agora a pensar 1
P. Chaunu, Les Temps des Réformes (Paris: Fayard, 1975), pp. 314ss; Gilmore, World of Humanism, pp. 186ss.
em diferentes termos, podendo avaliar e absorver novas idéias. Além disto, com a possibilidade de produzir livros mais rápida e economicamente, as novas idéias podiam ser espalhadas mais facilmente, alcançando classes sociais que, até aquele momento, haviam estado à margem de tais questões. Mesmo que muitas pessoas não pudessem ler, outros liam para elas, dandolhes condições para aceitar e avaliar não apenas a necessidade de instrução, mas, também, as idéias contidas nos livros. Essa foi a base sobre a qual se deu a transmissão dos ensinamentos dos Reformadores protestantes e, particularmente, dos de João Calvino. Desenvolvimento do Século 16 O século 16 viu o clímax do desenvolvimento dos dois séculos precedentes, nos quais o novo padrão cultural se tornara completamente declarado, preparando o advento da Idade Moderna. Assim, para entendermos o que aconteceu no século 16, precisamos ter em mente o que aconteceu antes e reconhecer que novas forças e elementos estavam influenciando a cultura e a civilização da Europa Ocidental. Uma das características do século 16 foi a aceleração do processo que tivera início cerca de cinqüenta ou cem anos antes. A inflação, por exemplo, parece ter sido acelerada, em parte devido à afluência do ouro vindo do Novo Mundo, aliada à reabertura das minas de prata do Tirol, de onde os Fuggers de Augsburgo retiraram muito de sua riqueza. O resultado desta espiral inflacionária, aliada ao aumento da população e a outros fatores, foi a aceleração do desenvolvimento do comércio com seu conseqüente estímulo ao crédito, operações bancárias e investimentos. Consta, ainda, que com a economia européia dirigida para o Oeste mais do que para o Oriente Próximo, e devido ao rápido desenvolvimento econômico de regiões como a Holanda, o Vale do Reno e partes das Ilhas Britânicas, o peso da economia européia voltou-se mais rapidamente do que antes para o Noroeste.1 1
H.G. Koenigsberger e G.L. Mosse, Europe in the Sixteenth Century (Londres: Longman, 1968), pp.
Essas mudanças econômicas produziram mudanças correspondentes nas relações das classes sociais assim como em sua distribuição geográfica. No decorrer do século 16 a nobreza começou a sentir que sua posição econômica se tornava mais difícil a cada dia, pois, apesar de serem ricos em terras, tinham pouco dinheiro vivo. Por essa razão, com freqüência, estavam, direta ou indiretamente, na dependência financeira dos elementos da população que se dedicavam ao comércio. Diretamente, eles podiam obter empréstimos dos comerciantes ou banqueiros e, indiretamente, eles podiam se alistar em exércitos mercenários ou no serviço dos monarcas cujas rendas tinham uma proporção cada vez maior das taxas cobradas à classe média. Isso significa que “quem paga a conta, dá o tom”. As classes mercantis, aliadas a grupos de profissionais liberais, como os advogados, estavam desta forma ganhando cada vez maior influência sobre o governo, fenômeno particularmente visível nas regiões do Noroeste.1 As mudanças sociais se refletiam na arena política, mesmo nos países onde o absolutismo da Nova Monarquia se tornara mais óbvio. A dependência que o Imperador Carlos V tinha do apoio financeiro dos Fuggers, para a guerra contra os turcos ou contra os luteranos, e a dependência que Francisco I tinha dos comerciantes de Paris tanto para manter seu poder, dentro de seu próprio país, quanto para a guerra contra o imperador, demonstram a importância que a classe dos comerciantes e banqueiros havia assumido para os monarcas, que já não podiam mais depender de serviços feudais ou de seus vassalos, quer na qualidade de soldados, quer na qualidade de conselheiros. Na verdade, foi a recusa dos banqueiros em fornecer mais fundos para o rei francês, de um lado, e para o imperador, de outro, que pôs fim à guerra franco-espanhola por volta de 1559, com o tratado de Chateau-Cambresis. Outros monarcas, como Henrique VIII da Inglaterra, e os Stewarts, da Escócia, todos enfrentavam 21ss: Mauro, Aspect Économiques. 1 Cp. P. Jeannin, Les Marchands au XVIe Siècle (Paris: de Sevil, 1957), e passim; Smith, Social Background, pp. 69ss.
os mesmos problemas.1 Quase se poderia afirmar que foram os constantes conflitos do século 16 que tornaram possível, à classe média, adquirir tanto poder. Até 1559, França e Espanha, e depois o Império, estavam quase que constantemente lutando um contra o outro, estando a Inglaterra, a Escócia e a Dinamarca sempre envolvidas, ora de um lado, ora de outro. O envolvimento do papado nestes conflitos acabou por minar sua influência espiritual. A partir de 1560 o tipo de conflito começou a mudar, pois essa era a idade de guerras religiosas. De fato, tinha havido lutas na Alemanha entre os luteranos e as forças imperiais nas décadas de 1530 e 1540, mas estes conflitos eram bastante intermitentes, ao passo que as guerras religiosas na França e Holanda, com a participação adicional da Inglaterra e Escócia, ocuparam a maior parte dos últimos quarenta anos do século 16.2 Por trás destes conflitos, em todo o decorrer da última parte do século, havia diferenças e conflitos ideológicos. Novas idéias estavam sendo disseminadas à medida que a Renascença alcançava seu apogeu no pensamento literário, artístico, político e social. Não é por acaso que grandes trabalhos como os de Michelangelo, na Capela Cistina, a conclusão da Basílica de São Pedro, a obra O Príncipe, de Maquiavel, e The Courtier, de Castiglione, todos pertencem ao século 16. Na década de 1540 surgiu a obra de Copérnico sobre a revolução dos astros e o livro de Vesalius sobre o tecido do corpo humano. Estes foram dois tratados científicos revolucionários que causaram, à Igreja Católica Romana e também a algumas igrejas protestantes, sérias dificuldades intelectuais. Com o surgimento da imprensa, essa nova mentalidade estava se espalhando velozmente, particularmente entre a crescente classe média, 1
H.J. Cohn, org., Government in Reformation Europe, 1520-1560 (Nova York: Harper & Row, 1970), e passim; M.L. Bush, Renaissance. Reformation and the Outer World (Londres: Copp Clark, 1967), pp. 26ss; H. Lapeyre, Les Monarchies Européenes du XVIe Siêcle (Paris: Presses Universitaire de France, 1967), pp. 59ss; G.R. Elton, org., New Cambridge Modern History (Cambridge: Cambridge University Press, 1958), 2:438ss. 2 Ibid., 1:334ss; Lapeyre. Les Monarchies Européenes, pp. 130ss.
agora um público leitor que acolhia, de bom grado, a visão humanista do indivíduo como sendo o responsável por seu próprio progresso por meio do uso de sua razão.1 No entanto, a maior das mudanças intelectuais veio com a Reforma. No dia 31 de outubro, segundo a tradição, Lutero pregou suas Noventa e Cinco Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg. Apesar de ele ter feito isso inicialmente apenas como um exercício acadêmico, desafiando, em latim, a todos os que viessem para um debate sobre aqueles pontos, logo se tornou claro que esse gesto havia gerado um conflito, na verdade, uma revolução muito maior do que ele jamais poderia ter imaginado. Sua declaração de que a Igreja Católica e suas doutrinas estavam em conflito com os ensinamentos das Escrituras causaram tal furor, na Alemanha e além de suas fronteiras, que tanto ele quanto a Igreja foram tomados de surpresa. A pergunta que surge então, é: Como e por quê o fato de Lutero ter divulgado suas teses — um estratagema acadêmico comum para provocar debates — causou tamanho tumulto? Provavelmente, a razão fundamental foi o fato de Lutero ter sido primeiramente, e antes de mais nada, um pregador que proclamava suas idéias, em primeiro lugar, dentro da Igreja, para as pessoas do povo. Ele sustentava que apenas pela pregação as Escrituras se tornavam a palavra viva. Além disso, ele tinha dois grupos de aliados na disseminação de suas idéias: estudantes de Wittenberg e os pregadores treinados e enviados de sua universidade para viajar pelo país pregando as doutrinas que haviam aprendido nas aulas de Lutero. Tão importante quanto os pregadores e professores das doutrinas de Lutero, foi a palavra impressa. Uma das razões para a rápida disseminação das Noventa e Cinco Teses por toda a Saxônia foi o fato de um arrojado 1
Smith, Social Background, pp. 109ss; M. Spinka, Christian Thought from Erasmus to Berdyaev (Englewood Cliffs, NJ.: Prentice-Hall, 1962), pp. 1ss; N. E. Fehl, Science and Culture (Hong Kong: Chinese University, 1965) pp. 273ss.
impressor local ter conseguido que o documento fosse traduzido para o alemão. Em seguida, imprimiu-o em grande quantidade e vendeu-o por todo o país. Comerciantes, soldados e outros viajantes que passavam pela Saxônia, obtinham cópias que levavam para suas próprias terras. Quer porque concordassem com Lutero ou comprassem as cópias só por curiosidade, o fato é que as idéias de Lutero foram divulgadas ampla e rapidamente. Contudo, Lutero não parou nessas teses pois tornou-se um prolífero panfletário para o resto de sua vida, soltando panfletos como balas de canhão a cada duas semanas, para o desconforto do inimigo e auxílio dos amigos e de seus defensores. Lutero, no entanto, não era um pensador ou escritor sistemático. Ele resolvia os problemas à medida que surgiam, mas nunca elaborou uma afirmação sistemática de sua posição teológica que, por essa razão, precisa ser montada a partir de seus panfletos, de seus comentários e de suas “conversas ao redor da mesa”. A sistematização da Reforma luterana foi feita por Philip Melanchthon, que tentou estabelecer, com seu Loci Communes (1521), a primeira teologia sistemática luterana. Contudo, apesar de ter sido um trabalho muito importante no sentido de apresentar uma visão sistemática da fé evangélica, parece nunca ter tido grande popularidade fora da Alemanha. Escrita originalmente em latim, nunca foi traduzida para muitas línguas vernáculas como foram muitas das produções de Lutero. Os escritos de Lutero e de Melanchthon, no entanto, divulgaram as novas doutrinas amplamente apesar de serem freqüentemente atacados e reprimidos por autoridades políticas e eclesiásticas antagônicas.1 Enquanto isso, a Reforma tomava corpo na Suíça, onde Zwínglio liderava um movimento pró-Reforma em Zurique, obtendo relativo sucesso, pois conseguiu, inclusive, persuadir algumas das outras cidades da 1
W. S. Raid, org. The Reformation: Revival or Revolution? (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1968) pp. 18ss; J. Atkinson, Martin Luther and the Birth of Protestantism (Gretna, La.: Pelican, 1968), pp. 182ss; C. L. Manschreck, Melanchthon. the Quiet Reformer (Nova York: Abingdon, 1958), pp. 82ss.
região germano suíça, como Basiléia e Berna — cidades de língua francesa — a livrarem-se do jugo da Igreja de Roma. Ele também entrou em conflito com Lutero sobre a doutrina da presença de Cristo no Sacramento da Ceia do Senhor. Como outros homens envolvidos no movimento reformado, escreveu alguns trabalhos curtos que não parecem ter gozado de grande popularidade em seus próprios dias. Envolvendo-se nos conflitos políticos com o Cantão Suíço, Zwínglio morreu na Batalha de Kappel em 1532.1 Henry Bullinger, o homem que substituiu Zwínglio, teve uma vida bem mais longa e uma influência bem maior do que a de seu predecessor. Oferecendo proteção a protestantes perseguidos em outros países, foi capaz de influenciar muitos que tinham vindo em busca de segurança e de instrução em sua cidade. Quando estes refugiados voltavam para seus lares, Henry Bullinger mantinha com eles constante correspondência, tendo escrito mais cartas que todos os outros reformadores reunidos. Para aumentar a extensão da influência do Protestantismo, Bullinger também escreveu extensivamente e, apesar de nunca ter produzido uma teologia sistemática completa, sua Decades, que consistia de estudos bíblicos, e seus muitos panfletos, exerceram influência sobre protestantes tão distantes quanto os Reformadores ingleses e os húngaros. Desta forma, Bullinger, como os outros Reformadores, produziu seu impacto sobre as consciências religiosas da Europa Ocidental.2 Enquanto isso, na pequena cidade de Genebra, situada junto ao Lago Leman e na verdade parte do ducado de Sabóia, os acontecimentos vinham se dirigindo para a Reforma, não obstante ter surgido primeiro como uma revolta dos cidadãos contra a autoridade do bispo. Quanto de interesse 1
J.Rihhiet, Zwingle la Troisème Homme de la Réforme (Paris: Fayard, 1959); G. R. Potter, Zwingli (Cambridge: Cambridge University Press, 1976); a Introdução Geral de G. W. Bromiley ao volume Zwingli and Bullinger da Biblioteca de Clássicos Cristãos (Filadélfia: Westminster, 1953). Todas essas obras fornecem um retrato acurado da obra de Zwinglio. 2 Andre Bouvier, Henri Bullinger, le successeur de Zwingli (Neuchâtel-Delachaux & Nièstlè, 1940). Esse livro fornece uma discussão detalhada da influência de Buhlinger na Reforma. Cp. também U. Gabler e E. Zsindeley, org., Bullinger-Tagung 1975 (Zurique: lnstitute für Schweizerische Reformationsgeschichte, 1977).
religioso os cristãos tinham, realmente, é difícil de avaliar. Mas o fato é que expulsaram seu bispo e, ao mesmo tempo, com a ajuda dos habitantes de Berna, seus vizinhos de língua francesa, forçaram o Duque de Sabóia a fugir para o norte. Em 1535, um certo Guillaume Farel, pregador protestante refugiado que veio de Paris, chegou a Genebra onde, imediatamente, tomou providências no sentido de implantar uma reforma religiosa que teve resultados que ele, provavelmente, nunca previra.1 A Disseminação das Idéias de Calvino Caso algum leitor deste capítulo venha a pensar que gastamos um tempo muito longo para chegar ao tema aqui apresentado, é necessário levar em conta dois fatos. Primeiro não é possível compreender a disseminação das idéias teológicas de Calvino ou mesmo suas outras idéias, a menos que tenhamos alguma noção do clima social e intelectual no qual ela ocorreu. Foi o ambiente radicalmente transformado que possibilitou a difusão rápida e ampla de suas idéias. E só na medida em que conhecemos a forma como as idéias de outros reformadores foram transmitidas é que podemos compreender como num espaço de tempo menor do que vinte anos, as idéias de Calvino se propagaram mais largamente do que as de muitos, senão de todos os outros reformadores. Para que possamos compreender as bases da influência de Calvino, precisamos nos reportar à sua educação inicial. Em primeiro lugar, estudando na universidade de Paris, provavelmente sob a orientação de homens como John Major, o escolástico escocês, ele se interessou pelas disciplinas humanistas à medida que se preparava para ingressar no clero. No entanto, em função de uma controvérsia que seu pai teve com o bispo de Noyon, para quem vinha trabalhando como tabelião, Calvino, de repente, recebeu ordens para deixar o sacerdócio e mudar para Orleans, onde poderia receber treinamento como advogado. Em Orleans e Bourges 1
Henri Naef, Les Origines de la Réforme à Genève (Genebra: Julien, 1968), II, 161ss; W. Monter, Calvin’s Geneva (Nova York: Wiley, 1967), pp. 29ss.
Calvino recebeu instrução sobre Direito do professor tradicionalista, Pierre de L’Estoile e do humanista italiano, Andrea Alciat. Igualmente importante é o fato de Calvino poder ter-se convertido ao protestantismo enquanto estudava em Orleans ou Bourges, de forma que, após a morte de seu pai, Calvino retornou a Paris para continuar ali seus estudos humanistas. Sua perspectiva agora era bastante diferente da que tivera ao sair. Nos primeiros tempos de sua vida cristã, Calvino recebeu a incumbência de escrever o prefácio de uma Bíblia francesa traduzida do latim por um primo seu, Pierre Robert Olivétan, e isso deve ter ocorrido aproximadamente na mesma época em que ele publicava seu primeiro trabalho importante, o seu comentário sobre o De Clementia, do filósofo romano Sêneca. Pouco depois disto, Calvino iniciou sua participação na disputa teológica ao escrever um ataque à doutrina que ensinava a “morte da alma”, anunciada por um dos grupos anabatistas. O mais importante neste momento, no entanto, foi seu pequeno livro de sete capítulos, escrito para auxiliar grupos de estudo, livro no qual divulgava doutrinas bíblicas visando a defendê-las de interpretações errôneas. Esse livro era a sua Instituição da Religião Cristã, publicado em Basiléia, em 1536. Era o início de uma longa série de sete edições revistas e aumentadas até 1559. A intenção original de Calvino era passar sua vida estudando e escrevendo sobre Teologia e Filosofia; contudo, não seria assim. Quando de passagem por Genebra foi, na verdade, detido por Guillaume Farel, que insistiu com ele para que o ajudasse a implantar a Reforma naquela cidade. Apesar de relutante, Calvino, afinal, consentiu. Ele e Farel, no entanto, buscavam uma Reforma tão absolutamente completa, não só em questões de fé como também nas de moral, ou seja, nas de comportamentos e costumes. Por isso, em 1538, foram obrigados a se retirar. Calvino, sem dúvida, recebeu sua expulsão com grande prazer, esperando encontrar em Estrasburgo a paz e o sossego para estudar. Isso, no entanto, não aconteceria, pois Martin Bucer constrangeu-o a assumir o pastorado da congregação de refugiados franceses naquela cidade, fazendo-o também
participar de alguns encontros entre protestantes e católicos que ocorriam naquela época. Para completar, quando o cardeal Sadoleto escreveu ao povo de Genebra, induzindo a população a retornar ao aprisco romano, mandaram sua carta para Calvino, pedindo-lhe que a respondesse. Ele o fez e com grande eficiência. Em parte, como conseqüência da resposta de Calvino a Sadoleto, em 1540, momento em que Genebra se encontrava em estado de virtual anarquia, o Conselho da cidade decidiu chamar Calvino de volta para ser seu orientador e guia. Quando Calvino respondeu que não desejava retornar, as autoridades de Genebra escreveram a Farel, que havia partido para Lausanne, e ele, finalmente, persuadiu Calvino a retornar a Genebra em 1541. Depois do seu retorno, Calvino permaneceu em Genebra até sua morte, em 1564. Foi desta pequena cidade — na cabeceira do rio Ródano, cidade de pouco prestígio econômico, político e intelectual, que Calvino exerceu grande influência sobre a Reforma religiosa da Europa Ocidental, sentindo-se, ainda hoje, os efeitos deste movimento. Em seus cinqüenta e cinco anos de vida, Calvino provocou impacto em sua própria geração e, nas gerações posteriores, foi um impacto igualado por muito poucos na História. A questão que se levanta é: como e por quê foi ele capaz de provocar tal impacto? Os calvinistas, obviamente, responderiam, como o fez John Knox, que ele era um “notável servo do Senhor”. Contudo, houve também alguns fatores circunstanciais de seu trabalho e uma situação que, pela providência de Deus, lhe deram condições para exercer sua influência tão ampla e efetivamente.1 É provável que o fator mais importante na divulgação das idéias de Calvino tenha sido o próprio caráter dele. Calvino era um pensador e escritor sistemático. Quando se lê, mesmo a primeira edição das Institutas, escrita quando ele tinha 25 anos, fica-se impressionado com o 1
Tem havido várias obras a respeito da vida de Calvino, variando desde a de E. Doumergue, Jean Calvin. Les Hommes et les Choses do son Temps (Lausanne: BrideI, 1899-1927), 7 vols., até a mais recente biografia de um só volume por T. H. L. Parker, John Calvin (Londres: Dent, 1975).
estabelecimento cuidadoso de sua posição e de suas afirmações. Mesmo que alguns acusem a Calvino de ser um racionalista, a verdade é que ele era lógico em seu raciocínio, procurando evitar deduções e analogias falsas. Contudo, ao mesmo tempo, ele estava totalmente preparado para reconhecer que não tinha todas as respostas, uma vez que lidava com o mistério do próprio Deus. Agindo assim, estava sempre disposto a traçar uma linha e dizer: “Até esse ponto, e não além”. Nisso demonstrava um misto de lógica sistemática e um senso de mistério que respeitaria e não investigaria. Suas Institutas, seus comentários bíblicos, suas cartas e seus panfletos, todo o seu trabalho traz essas características que podem não ter agradado a alguns, mas que falaram ao coração de muitos. Talvez, possamos compreender a estrutura de pensamento de Calvino se observarmos os princípios que regiam o seu pensamento teológico. O seu princípio formal era a autoridade das Escrituras, do Antigo e do Novo Testamento. Ele acreditava que a Bíblia era a Palavra de Deus escrita. Não obstante o esforço de alguns, em anos recentes, em incluir o apoio de Calvino a várias formulações doutrinárias sobre inspiração verbal, inerrância das Escrituras ou coisas semelhantes, Calvino não faz qualquer declaração explícita sobre esse assunto. Sua opinião era que a Bíblia é reconhecida como a Palavra de Deus, não por deduções lógicas ou por observações e testes experimentais, mas porque o Espírito Santo testifica ao crente que ela é a Palavra de Deus. E, por ser a Palavra de Deus, deve ter autoridade final sobre todas as outras formas de conhecimento no que se refere à natureza do homem e à sua relação com Deus, seu Criador e Senhor.1 Quanto ao conhecimento e compreensão humana da natureza, o homem faz descobertas através de investigações experimentais, tendo sempre em mente, é claro, que a Bíblia estabelece a interpretação final para 1
J. Murray, Calvin on Scripture and Divine Sovereignty (Grand Rapids: Baker, 1960), pp. 11ss; A. D. R. Polman, “Calvin on the Inspiration of Scripture”, in John Calvin, Contemporary Prophet, org. por J. T. Hoogstra (Grand Rapids: Baker, 1959); João Calvino, Institutes of the Christian Religion, org. por J. T. McNeill e F. L. Battles (Filadélfia: Westminster, 1960), 1:6-10.
todas as coisas (cf. seus comentários sobre astronomia em Gênesis 1.161). O princípio material do pensamento de Calvino era a soberania de Deus. Como Criador, Sustentador, Redentor e Rei, Deus é soberano sobre todas as suas criaturas, bem como sobre as ações destas. Essa doutrina estabelece a base e o fundamento para todas as demais. Caso alguma formulação doutrinária tendesse a transgredir a soberania de Deus, precisaria ser ou reformulada, ou rejeitada completamente. Desta forma, sua declaração sistemática da fé cristã partiu, naturalmente, da doutrina da soberania de Deus. No entanto, todas as declarações de fé devem, necessariamente, ser orientadas e delimitadas pelos ensinamentos das Escrituras. Ao formular uma doutrina como a da eleição, por exemplo — não obstante estar ela baseada na soberania de Deus — seria possível ceder à tentação de incluir muitas implicações lógicas, e Calvino considerou impróprio, na verdade pecaminoso, ir além daquilo que a Bíblia diz sobre a questão. Ainda que essa limitação deixe, mesmo assim, certos paradoxos na fé cristã, esses paradoxos devem ser aceitos, disse ele, pois idéias que parecem inconciliáveis devem ser mantidas em tensão, uma vez que o Deus soberano falara por intermédio de seus profetas e apóstolos. Mesmo que essa postura não satisfaça aos racionalistas, Calvino, seguindo seus dois princípios fundamentais, não poderia pensar de outra forma.2 Calvino, no entanto, não era apenas um teórico desvinculado de qualquer interesse prático. Como advogado — função pela qual de certa maneira, se tornara a força motriz da reforma legislativa de Genebra e, como polemista, lutando constantemente para manter e fortalecer o Movimento Reformado —, ele precisava ser prático na utilização de seus princípios teológicos. Quando se lêem suas cartas, suas Institutas, seus 1
Ibid., 1:5; A. Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931), pp. 110ss; A.Lecerf, Etudes Calvinistes (Neuchâtel: Delachaux et Nièstlè, 1949), pp. IIss. 2 Ibid., pp.115; H.H. Meeter, Calvinism, 2ª ed. (Grand Rapids: Zondervan. s.d.), pp. 27ss.
comentários e seus panfletos, tem-se a impressão de estar diante de um homem muito ligado aos fatos que ocorriam em seu mundo. Seus panfletos sobre astrologia e sua carta sobre a questão da usura, refletem pensamentos práticos, da mesma forma as alusões que fazia de seus textos em seus sermões. Não é de surpreender, portanto, que não só os estudiosos mas, também, o obstinado negociante de seus dias respondessem com considerável entusiasmo às suas idéias. Para entender a ampla influência de Calvino, devemos observar não apenas o seu modo de expressar-se e sua maneira de pensar, mas, também, os meios de que se utilizou para comunicar suas idéias. Pregações e cursos foram os meios básicos de propagação de seus pensamentos; de igual importância foram seus contatos pessoais e, mais importante que tudo, foram seus escritos. Será necessário examinarmos todos estes meios de comunicação se quisermos compreender como ele teve, e por isso ainda tem, uma força tão abrangente sobre o pensamento ocidental. Mais do que isso, precisamos adquirir alguns conhecimentos a respeito daqueles a quem ele influenciou; daqueles que aceitaram sua teoria e a colocaram em prática no século 16. Como já foi mencionado, a pregação era fundamental na exposição e na comunicação das idéias de Calvino. Neste aspecto, Calvino estava de pleno acordo com Lutero, Bullinger, Bucer, e com a maioria dos outros Reformadores. Poder-se-ia quase dizer que a Reforma trouxe o renascimento da pregação. Calvino, aparentemente, começara a pregar logo depois de sua conversão, pois, segundo a tradição afirma, ele costumava pregar em algumas igrejas em Bourges ou perto de Bourges, quando era estudante. Ao voltar para Genebra, em 1541, a pregação se tornou sua principal ocupação, uma vez que assumira o púlpito da Igreja de Saint Pierre não apenas aos domingos, mas, inclusive, por mais três vezes durante a semana. Esse fato deu a ele grande oportunidade de apresentar sua interpretação das Escrituras para os cidadãos de Genebra bem como para os estrangeiros, tanto os que viviam na cidade, como para os que ali se
encontravam apenas de passagem. Provavelmente, devido ao fato de pregar com tanta freqüência, Calvino, ao que parece, não tinha o hábito de escrever seus sermões, senão esporadicamente, pois sabemos que, em certa ocasião, redigiu alguns sermões que havia pregado, mandando-os para Elizabeth, rainha da Inglaterra. Seu procedimento normal parece ter sido o de gastar um tempo considerável pensando no significado de seu texto. Depois disto, subia ao púlpito preparado para fazer uma homilia sobre uma passagem de cinco a quinze ou vinte versículos. Isso consistia num rápido comentário sobre o texto, com uma aplicação de seu ensino essencial à vida cotidiana do cristão, mas especialmente voltada para o crescimento espiritual e para uma avaliação de sua relação com Deus. De acordo com sua maneira sistemática de trabalhar, Calvino normalmente seguia o esquema de pregar sobre um determinado livro da Bíblia, do começo ao fim, capítulo por capítulo, domingo após domingo. Isso significa que havia continuidade nos seus ensinamentos, tanto em relação à explanação do texto como na aplicação das Escrituras. Calvino tinha o cuidado de manter suas explanações, bem como suas aplicações, dentro do contexto do livro como um todo e, também, dentro do contexto de sua situação histórica. Não interpretava as Escrituras alegoricamente. Sempre trazia os ouvintes de volta ao fato de que o centro da vida cristã é o próprio Cristo. Os ouvintes de Calvino, freqüentemente, expressavam o desejo de ter cópias impressas de seus sermões, para sua própria leitura ou para dá-las a outros, mas Calvino não cedia, em parte por redigir apenas alguns de seus sermões. Em conseqüência disto, e apesar de sua oposição, alguns dos membros de sua Congregação contrataram um certo Raguenier de Bar-surSeine, um refugiado francês, para anotar os sermões de Calvino em uma espécie de taquigrafia. Alguns impressores de Genebra quiseram, então, imprimir estes sermões, ao que Calvino foi firmemente contrário, a
princípio. Afinal, em 1557, deu a Conrad Badius, cunhado do editor Robert Estienne, permissão para imprimir sua série de sermões sobre os dez mandamentos. No ano seguinte, outra vez, depois de muita pressão e discussão, permitiu a publicação de seus sermões sobre a vida e a obra de Cristo. Muitos destes sermões nunca foram publicados, tendo sido descobertos apenas recentemente. Contudo, os sermões publicados foram logo traduzidos para muitas outras línguas vernáculas e se tornaram um importante meio para a divulgação ampla dos ensinamentos do Reformador de Genebra. Foi assim que os sermões de Calvino passaram a cumprir uma dupla função. Naturalmente, influenciavam aqueles que os ouviam, pois sabemos que, depois das pregações, as pessoas se aglomeravam ao redor de Calvino para conversar com ele sobre o que ele havia dito e, em geral, formavam uma procissão para acompanhá-lo até sua casa. Mas os sermões influenciavam também os que os liam em outros países, quer no original francês, quer em suas próprias línguas. Com relação a esse fato, é interessante notar o que relata Richar Bannatyne, secretário de John Knox. Diz ele que enquanto Knox estava em seu leito de morte, alguns sermões do “Messire João Calvino” eram lidos para ele em francês, língua que ele compreendia muito bem. Eram, provavelmente, os sermões sobre “La Passion de Notre Seigneur”. Os sermões eram, portanto, o principal meio de transmissão das idéias de Calvino.1 Profundamente relacionada com seu trabalho de pregador era sua atuação como professor. Em Estrasburgo ele esteve em íntimo contato com Jean Sturm e Martin Bucer, ambos muito interessados em desenvolver um sistema educacional que proporcionasse instrução a todas as crianças da cidade. Ao voltar para Genebra ele trabalhou por algum tempo com base nesta idéia, até que, finalmente, em 1559, ele estabeleceu um completo 1
T.H.L. Parker, The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin (Londres Lutterworth, 1947), pp. 22ss; J. Calvino, Sermons, org. por A-M. Schmidt e J. de Saussure. (Paris: Edits. “Je Sers”, 1936). Esse último contém um prefácio muito esclarecedor sobre esse assunto. Cp. também W. Mulhaupt, Die Predigt Calvins (Berlim: De Gruyter, 1931), e passim.
sistema de educação. A partir de seus esforços surgiu a Academia de Genebra, instituição que mais tarde se tornaria a Universidade da cidade. Calvino não apenas desempenhou proeminente papel no estabelecimento da Universidade, mas foi também um dos seus professores de Teologia, ensinando aqueles que planejavam entrar para o ministério. Durante muitos anos ele fez conferências, fazendo exposições sobre vários livros da Bíblia. O responsável pela Academia era Theodore Beza, que viera de Lausanne.1 O trabalho de Calvino, tanto como pregador quanto como professor, foi extremamente eficaz em Genebra, pois, estudando-se a história da cidade durante esse período, pode-se ver que muito da mudança ocorrida ali foi provocada por suas atividades. E verdade que até 1555 ele enfrentou forte oposição às suas idéias, especialmente às que se referiam à disciplina da Igreja, oposição por parte daqueles que discordavam tanto de suas doutrinas quanto de seus conceitos a respeito de moralidade. Contudo, a partir do momento em que assumiu o principal púlpito da cidade, do qual pregava cerca de cinco vezes por semana, além das preleções bíblicas que fazia, Calvino passou a dispor do meio mais eficiente para instilar suas idéias. Como resultado, por volta de 1555, ele ganhou a batalha e, deste ano em diante, até sua morte, em 1564, sua influência teológica e moral dominava Genebra.2 Contudo, havia algo mais do que a influência geral que ele exercia sobre Genebra e além dela. A população da cidade, cerca de nove mil habitantes, quase se duplicara pelo número de refugiados que para ali afluíam a fim de descansarem das perseguições que sofriam em seus próprios países. A Congregação francesa era a maior e, em alguns aspectos, a mais impopular, mas havia também Congregações espanholas e italianas às quais foi acrescentada a Congregação inglesa sob orientação de John Knox, durante o reinado de Mary Tudor. Havia ainda aqueles que vinham 1
Cp. W.S. Reid, “Calvin and the Founding of the Academy of Geneva”, Westminster Theological Journal 18(1955): lss; Parker, Calvin, pp. 126ss. 2 Ibid., pp. 117ss; Monter, Calvin’s Geneva, pp. 93ss; R.W. Collins, Calvin and the Libertines of Geneva, org. por F.D. Blackley (Toronto: Clark, Irwin, 1968), pp. 153ss.
estudar com Calvino e com seus colegas de magistério. Vinham de muitos países diferentes, mas, particularmente, da França, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Itália. Muitos deles voltaram para seus próprios países mais tarde, continuando ali o trabalho da Reforma. Depois da fundação da Academia, a afluência de estudantes se tornou ainda maior, na medida em que vinham estudar não apenas Teologia, mas também Direito, bem como para adquirir uma educação geral. Quando estes estudantes retornavam para seus lares, levavam consigo as idéias de Calvino, as quais buscavam proclamar. Não era raro que terminassem suas carreiras na fogueira.1 Não obstante, a maioria dos historiadores de Calvino enfatiza o valor de sua pregação e de seu magistério e poucos parecem achar que sua relação com as pessoas fosse de alguma importância. Calvino é normalmente descrito como um homem muito austero, triste e mesmo mal humorado. No entanto, o testemunho daqueles que visitaram Genebra e tiveram contato com Calvino nos oferece uma imagem muito diferente: Ele, ao que tudo indica, possuía um senso de humor que tinha um quê de satírico, como se pode ver através de alguns de seus escritos como, por exemplo, seu panfleto sobre a necessidade de se fazer um inventário de todas as relíquias religiosas da Europa. Apesar de sofrer de uma série de doenças crônicas, inclusive de úlcera, Calvino parece ter sido muito hospitaleiro. Um relato conta que ele era saudável o suficiente para gostar de jogar boliche.2 Acima e além de tudo isso, no entanto, o fato de ele ter conquistado a lealdade quase feroz de uma ampla variedade de tipos de personalidade, indica que era capaz de comunicar suas idéias de forma efetiva e dinâmica em seus relacionamentos pessoais.
1
Monter, Calvin’s Geneva, pp. 165ss; C.H. Martin, Les Protestants Refugiés à Genéve au Temps de Calvin. 1555-1560 (Genebra: Jullien, 1915); H. de Vries de Heeklingen, Genève, Pépinière de Calvinisme Hollandais (Friburgo: Fragniére, 1918), 1:44ss; J.Pannier, “Les rèsidences sucessives das étudiants écossais à Paris”, Association François—Écossaise, Bulletin (1929):33-34; A.A. van Schoelven, Het Calvinisme Gedurende Zijn Bloeitijd, 2 volumes (Amsterdã: ten Have, 1943). 2 Parker, Calvin, pp. 101ss; R. Stauffer, L’humanité do Calvin (Nauchâtel: Delachaux et Nièstlè, 1964), e passim; Collins, Calvin and the Libertines, pp. 201ss.
Calvino recebia muitos visitantes que vinham das mais diversas regiões e passavam pouco tempo em Genebra, muito freqüentemente apenas para encontrar-se com ele. John Foxe, o martirologista inglês, e o bispo Coverdale são dois bons exemplos. Calvino estava também em constante contato com outros Reformadores, especialmente com Bucer, Bullinger e Melanchthon, com os quais sempre trocava idéias. Foi em conseqüência de seu relacionamento com Bullinger que ambos assinaram o Consensus Tigurinus de 1549, no qual fazem a declaração de que a “presença real” de Cristo, na Ceia do Senhor, é efetivada pelo Espírito Santo no momento em que o crente recebe os elementos. Desta maneira, foi definida uma posição intermediária entre a “consubstanciação”, defendida por Lutero, e a interpretação puramente simbólica, de Zwínglio.1 Além de seus contatos com estudantes e com outros Reformadores, Calvino mantinha volumosa correspondência com homens e mulheres de toda a Europa, desde reis e seus conselheiros, até pessoas de classes baixas que lhe escreviam pedindo auxílio ou conselho. Talvez, essas suas cartas sejam o melhor retrato do “verdadeiro” Calvino. Essas cartas eram sempre práticas e muito diretas. Ele escreveu uma carta para confortar John Knox quando Marjorie, sua esposa, morreu; escreveu uma convicta carta de repreensão para Louis du Tillet, um velho amigo que desertara da causa reformada, retornando à Igreja de Roma; escreveu também cartas de incentivo para os que enfrentavam perseguições e conflitos por causa da fé, como foi o caso de cinco estudantes de Lausanne que iam ser mortos na fogueira de Lyon; escreveu cartas, dando conselhos a protestantes que planejavam fundar uma congregação e mandou também uma carta a um ministro que lhe escrevera pedindo conselho sobre problemas particulares. Em todas essas cartas, pode-se ver suas muitas facetas: sua ternura, sua compaixão, sua raiva ocasional para com aqueles que se provavam indignos de confiança e, também, sua 1
Bouvier, Henri Bullinger, pp. 110ss: W. Nijenhius, Calvinus Oecumenicus (The Hague: Nijhoff, 1959), pp. 92ss.
integridade e força intelectual. Quase não há dúvida de que essas cartas tenham sido muito importantes, não apenas no sentido de manifestar sua personalidade como também no sentido de divulgar suas idéias por toda a extensão do território europeu.1 Não obstante falarmos das pregações e do magistério de Calvino, de seu relacionamento pessoal e de sua correspondência, sem dúvida sabemos que o meio mais eficaz de que se valeu para difundir suas idéias foram seus escritos formais. Pode-se dizer que os outros meios de comunicação eram a fonte de onde brotavam seus escritos formais, pois em mais de uma ocasião foi como resultado de suas próprias experiências como pregador, professor ou em conseqüência de seus contatos pessoais que ele sentiu a necessidade de escrever. E foram seus escritos que tiveram a maior circulação e o efeito mais duradouro, como se pode observar no fato de muitos deles estarem sendo republicados em diferentes países e em muitas línguas diferentes ainda no século 20. Sem dúvida que, dentre todos os seus escritos, a Instituição da Religião Cristã2 foi, e ainda é, a mais importante. Publicado originalmente em 1536, foi revisada e republicada sete vezes tanto em latim como em francês, partindo de uma pequena monografia de sete capítulos que ele mesmo escreveu, para se tornar uma obra de setenta e nove capítulos na edição de 1559. No início, Calvino procurou seguir a ordem do Credo dos Apóstolos. Mais tarde, no entanto, achando isso insatisfatório, mudou a estrutura da obra, expandindo e ajustando seu pensamento mais completamente a cada nova edição. Quando se lê o trabalho da última edição em inglês, editada por J.T. McNeil e Ford Lewis Battles, na Biblioteca de Clássicos Cristãos, atento para as referências às diferentes edições, pode-se observar facilmente que Calvino, o estudante incansável, acrescentava a cada nova edição os conhecimentos exegéticos e teológicos 1
Ibid., pp. 6ss; J.D. Benoit, “Calvin, the Letter-writer”, in John Calvin, org. por G.E. Duffield (Nashville: Abingdon, 1966), pp. 67ss. 2 Obra que se tornou famosa com o nome de Institutas. Publicada em português pela Editora Cultura Cristã.
que acumulara desde a edição anterior. Estudando constantemente, tanto a Bíblia quanto escritores como Bernard de Clairvaux e muitos dos diferentes Pais da Igreja, Calvino acrescentava um número cada vez maior de referências a eles, edição após edição.1 Da maior importância neste processo de divulgação foi o fato de que, a partir de 1541, Calvino estava preparando comentários sobre vários livros da Bíblia, em função de suas pregações e suas aulas. Rejeitando o método alegórico quádruplo dos comentaristas medievais, e evitando as “admoestações” do Comentário de Lutero sobre Gálatas, Calvino seguiu a técnica tipicamente humanista da exegese histórico-gramatical, apegandose firmemente ao contexto histórico dos livros e procurando entender exatamente o que eles estavam querendo dizer. Seu método era verdadeiramente empírico. Na medida em que acumulava mais conhecimentos com estes estudos, Calvino foi capaz de utilizá-los nas revisões de suas Institutas. No decorrer de toda sua vida, escreveu comentários sobre a maior parte dos livros da Bíblia, tendo evitado alguns dos textos mais difíceis, como o de Cântico dos Cânticos de Salomão e o Livro do Apocalipse. Calvino parece ter evitado fazer afirmações claras sobre o que estes livros verdadeiramente significavam. O conjunto de seus Comentários foi finalmente editado em Genebra, no final da década de 1570 e no início da década de 1580, sendo amplamente disseminados.2 Calvino era também um panfletário. Uma das primeiras edições de sua coleção de panfletos, de posse do autor deste artigo, forma um volume, infólio, de mais de mil páginas. Seus panfletos eram não só numerosos, mas muito variados também em temas e objetivos. Um dos principais motivos que levavam Calvino a divulgar, em formato pequeno, o significado de algumas das doutrinas e práticas cristãs, era seu desejo de esclarecer o povo. Um de seus panfletos, “Forme des Prières" [Forma de Orações], era, 1
B.B. Warfield, Calvin and Calvinism (Nova York: Oxford University Press, 1931), pp. 373ss; Calvino, Institutes, org. por J.T. Mc NeiIl e F.L. Battles, Introdução. 2 T.H.L. Parker, Calvin’s New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans. 1971), pp. 49ss; T.H.L. Parker, “Calvin the Biblical Expositor”, Calvin, org. por Duffield, p. 176.
na verdade, um guia de culto para a Igreja de Genebra, mas teve considerável influência sobre a prática litúrgica das Igrejas Reformadas em Genebra, na França bem como na Escócia, Holanda e em outros países, onde suas idéias haviam sido aceitas. Talvez o mais panfletário de todos os seus panfletos tenha sido sua explanação sobre o significado da Ceia do Senhor. Esse panfleto foi parcialmente responsável pela assinatura do “Consensus Tigurinus”; Lutero afirmou que esse teria evitado seu conflito com Zwínglio. O motivo essencial de Calvino, para escrever panfletos, no entanto, parece ter sido a polêmica. Naturalmente que um de seus alvos principais era a Igreja Católica Romana. Foi em 1541 que ele escreveu sua carta ao cardeal Sadoleto, o qual instara com os genebrinos para que retornassem à Igreja Romana. Nesta carta, Calvino mostra que Roma desertara do Cristianismo bíblico. Dois anos mais tarde, publicou seu artigo satírico sobre as relíquias e outro artigo constrangendo o Imperador Carlos V a parar de perseguir os protestantes. Depois das primeiras sessões do Concílio de Trento, Calvino escreveu um panfleto atacando suas decisões. Não podemos nos esquecer também, de que as Institutas, com sua carta dedicada a Francisco I da França, rogando tolerância para com os protestantes, era, em si mesma, um panfleto, ainda que bastante volumoso. Calvino não se limitou a controvérsias com os católicos romanos. Um dos seus primeiros panfletos, intitulado "Psychopannichia", atacava a doutrina da “morte da alma” defendida por alguns anabatistas. Em um panfleto posterior lançou alguns dardos sobre um grupo de anarquistas espirituais conhecidos como os Libertinos. Em outro escreveu uma crítica devastadora à astrologia, que era tão popular naqueles dias quanto o é hoje e, em grande parte, pelo mesmo motivo: o declínio na fé cristã. Assim, mesmo imerso em questões de pregação e magistério, mesmo enquanto escrevia Comentários e revisava suas Institutas, Calvino encontrava tempo para abordar os problemas contemporâneos enfrentados pelo movimento protestante. E de se perguntar como ele conseguia fazer tudo isso? Não
surpreende que Calvino tenha morrido aos 55 anos! A maior parte de seus panfletos aparecia primeiro em latim, pois eram endereçados à classe mais instruída; aos acadêmicos. Contudo, pouco tempo depois surgia também em francês, traduzidos, às vezes, pelo próprio Calvino, às vezes por algum dos editores de Genebra. Normalmente, depois de um panfleto surgir em francês era logo publicado também em língua vernácula. Uma das primeiras traduções foi a de seu panfleto contra o papa Paulo III, que surgiu em alemão em 1541. Em 1545, seu Catecismo foi publicado em latim, francês e italiano, quase que simultaneamente. Em 1546, houve uma versão tcheca de um folheto, e a partir de 1548 seus panfletos começaram a surgir em inglês, espanhol, holandês e mesmo em grego. Desta maneira, tiveram um efeito bem amplo sobre o movimento da Reforma.1 Os escritos de Calvino tinham uma grande gama de leitores porque eram publicados tanto em latim como em várias outras línguas vernáculas. Era natural que, sendo o latim a língua dos eruditos, acadêmicos e teólogos pudessem ler seus artigos logo que surgiam em latim. Isso, no entanto, teria tido relativamente pequeno efeito sobre o povo comum. O importante é que havia então uma classe média letrada, que podia ler em sua própria língua, mesmo que fossem incapazes de fazê-lo em latim. Foi a essa classe que Calvino fez seu maior apelo. Tendo vindo da classe média, possuindo vivência profissional, ele sabia falar àquelas pessoas tão bem quanto aos acadêmicos, ganhando sua atenção desde o início. Um dos fatores importantes, no sucesso de Calvino em propagar suas idéias, foram seu estilo e método de apresentação. Ele não estava interessado em fazer um nome para si mesmo ou em tornar-se uma figura literária proeminente. Sua primeira preocupação era o ser capaz de fazer com que suas idéias chegassem até o leitor. Ele queria ser claro como 1
Tracts Relating to the Reformation by John Calvin, org. por Henry Beveridge; D.A. Erichson, Bibliographia Calviniana (Nieuwkoopo: de Graaf, 1960), pp. 6ss.
cristal naquilo que tinha a dizer. Acreditava que a característica mais importante de um bom estilo era a clareza, e praticava aquilo que pregava. Como resultado, era muito bem compreendido tanto por aqueles que o ouviam como por aqueles que liam seus trabalhos. Mesmo hoje, seu estilo, quando comparado com o de muitos de nossos contemporâneos, é mais claro e mais direto. Sua clareza e precisão, sem dúvida, desempenharam um importante papel na difusão de seu pensamento.1 Contudo, Calvino não deve sua influência apenas a seu estilo. Conforme destacou Pierre Chaunu, os movimentos de reforma, na Igreja, passam por dois estágios. O primeiro é evangelístico e o segundo sistemático. Lutero foi o evangelista da Reforma. Além do mais, ele era obviamente teutônico em sua abordagem e conservador quase a ponto de ser arcaico, seguindo o princípio de que só deveria ser mudado, na Igreja, aquilo que conflitasse com a Palavra de Deus. Calvino, por outro lado, educado como humanista e advogado, foi o sistematizador Par Excellence. Mais do que isso, sua insistência em que, no campo da Teologia e da Liturgia da Igreja, nada que não fosse ordenado pelas Escrituras deveria permanecer, era muito mais radical do que qualquer posição defendida por Lutero. Além do mais, Lutero permitia que as autoridades civis tivessem sobre a Igreja uma influência muito maior do que a que Calvino jamais lhes permitiu.2 Foi assim que todo o enfoque e posicionamento de Calvino se adaptaram muito mais rapidamente à estrutura de pensamento dos elementos mais radicais do cenário da Europa Ocidental.
1
F.M. Higman, The Style of John Calvin in His French Polemical Treatises (Oxford: Oxford University Press, 1967), e passim; A. Veerman, De Stijl van Calvijn in de Institutio Christianae Religionis (Utrecht: Kemink & Zoon, 1943), e passim; Warfield, Calvin and Calvinism, pp. 373ss; P.E. Hughes, “The Pen of the Prophet” in Hoogstra, John Calvin, pp. 71ss. 2 Chaunu, Les Temps des Réformes, pp.523ss; Collins, Calvin and the Libertines, pp.32ss.; Calvin’s Commentary on Seneca's de Clementia, org. por F.L. Battles e A.M. Hugo (Leiden: Brill, 1969), pp. 63ss; J. Bohatac, Budé und Calvino (Graz: H. Böhlaus, 1950), pp.119ss.
Como Lutero, Calvino também estava interessado primeiramente nos aspectos religiosos e teológicos da Reforma e, na maior parte dos pontos, Calvino se sentia de acordo com seu precursor alemão. Há, em seus trabalhos, freqüentes referências de apreciação às realizações de Lutero e Calvino constantemente reiterava as doutrinas fundamentais pregadas pelo Reformador alemão sobre a autoridade exclusiva das Escrituras e sobre a justificação só pela fé. No entanto, em função de seu enfoque mais sistemático, pode-se mesmo dizer, do seu enfoque científico, Calvino não apenas tornou mais claro o ponto de vista de Lutero, como também desenvolveu outros aspectos da fé cristã que haviam sido completamente descuidados por Lutero. Nesse sentido, foi além do reformador alemão, criando uma estrutura teológica mais ampla, estrutura que satisfazia a muitos, inclusive a alguns dos mais veementes defensores de Lutero, como Phillip Melanchthon.1 Essa foi uma das razões pelas quais o Calvinismo suplantou o Luteranismo em muitos países, como por exemplo, na França, Inglaterra, Escócia e Holanda. Foi também por causa de seu enfoque teológico mais amplo e sistemático que Calvino exerceu uma considerável influência sobre o desenvolvimento do pensamento ocidental, de forma geral, sobre sua própria geração e sobre as gerações subseqüentes. Ele acreditava que a Teologia, de tal forma, envolve todo o pensamento humano, que todo o pensamento pode estar sujeito ou submisso a Jesus Cristo. Desta maneira, observa-se o poderoso impacto que ele teve nas universidades, não apenas de uma maneira geral, mas muito concretamente no trabalho de homens como Pierre de Ia Rameé, Jerome Zanchius, Andrew Melville, e de muitos outros. Estes homens procuraram aplicar a teoria calvinista de Vida-eMundo a todas as áreas do pensamento, esforçando-se por apresentar suas interpretações das várias áreas do pensamento, como vistas sob dois 1
W.S. Reid, “Calvin’s Interpretation of the Reformation”, 29 (1957): 4ss.; cp. também Atkinson, Martin Luther, pp. 275ss.; B.B. Warfield, Calvin as a Theologian and Calvinism Today (Londres: Sovereign Grace Union, 1951), pp. 5ss.; J.l. Packer, “Calvin the Theologian”, in Calvin, org. por Duffield, pp. 149ss.
aspectos: sub specie seternitatis e soli Deo G1oria.1 Calvino, como declarei anteriormente, não escrevia apenas para os acadêmicos, nem seu trabalho era mero exercício teórico. Ele era um homem prático que acreditava que o pensamento precisa produzir ação. Em Genebra, lutou pela organização de uma cidade que manifestasse, em sua forma de vida, uma cultura que confessasse o Senhorio de Jesus Cristo em todas as suas atividades. Esse princípio tornou-se o ponto predominante no pensamento de seus seguidores em outros países. O resultado disto foi que calvinistas da Inglaterra, Escócia, França, Holanda e América, passaram a ser considerados políticos radicais, pressionando constantemente para o estabelecimento de uma forma democrática de governo. Alguns chegavam ao extremo de afirmar que os magistrados subordinados, que constituíam os Estados Gerais ou o Parlamento, poderiam mesmo destronar um rei — e, em algumas ocasiões chegaram a fazê-lo.2 Por outro lado, foram os calvinistas que, na França, Inglaterra e na Holanda, se mostraram dispostos a tomar a iniciativa de aventuras comerciais fora do continente europeu, mostrando-se prontos a arriscar até mesmo suas próprias vidas na colonização de novos países. Eles é que estavam sempre prontos a enfrentar o trabalho árduo para atender ao chamado para o qual Deus os vocacionara, não importando o que fosse. Qualquer que tenha sido o erro cometido pelo sociólogo Max Weber em sua teoria sobre a relação entre o Calvinismo e o surgimento do Capitalismo, esse erro certamente não foi sua ênfase sobre a importância que a doutrina da vocação tem no pensamento calvinista, uma doutrina cujos efeitos temos podido observar de país para país, até o momento presente.3 1
Cp. W.S. Reid, “The Impact of Calvinism on Sixteenth Century Culture”, Bulletin of the International Association for Reformed Faith and Action 10 (1967): 3ss.; J.T. McNeil, The History and Character of Calvinism (Nova York: Oxford University Press, 1954), pp. 226ss. 2 J.T. McNeil, org., John Calvin on God and Political Duty (Nova York: Liberal Arts, 1950), pp. viiss. Cp. também L. Maimbourg, Histoire du Calvinisme. 2ª ed., (Paris: Mabre-Camoisv, 1682), “Épitre au Roy”. 3 M. Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, org. por T. Parsons e R. H. Tawney (Nova York: Scribner, 1958), pp. 1ss., 98ss.
Precisamos reconhecer também que, em função deste sentimento de vocação, a influência de Calvino não foi originalmente gerada por organização ou propaganda de massa. Sua influência foi espalhada através de indivíduos devotos que haviam sido embuídos da visão de Calvino a respeito da soberania de Deus e de seu chamado para o trabalho de Deus, tendo respondido a esse chamado em fé e em obediência. Acadêmicos como Zanchius, Ramée e Melville; cientistas como Ambroise Paré, Bernard Palissay e Francis Bacon; artistas como os mestres holandeses do final do século 16, e muitos outros, todos desempenharam seu papel. Algumas vezes, a influência calvinista levou à organização de grupos como o exército huguenote de Coligny e Henrique de Navarra e o exército dos Lordes escoceses da Congregação de Jesus Cristo, mas, em última instância, o impacto de Calvino surgiu da convicção de indivíduos crentes que confessavam a fundamentação de suas idéias na autoridade suprema da Bíblia, a Palavra de Deus. O impacto de Calvino não ficou limitado a seus próprios dias, mas continuou nos séculos subseqüentes, em diversas regiões do mundo, à medida que a Europa se expandia, quer por comércio, quer por conquista. Na última metade do século 19 e início do século 20, essa influência tendeu a desaparecer em face da modificação dos padrões de pensamento provocada pelo humanismo ateu e pelo materialismo. Em anos recentes, no entanto, o Calvinismo vem passando por um reavivamento de proporções consideráveis. Está começando, uma vez mais, a exercer influência no cenário mundial. Esse livro traz, de alguma forma, o testemunho deste ressurgimento.
Suíça: Triunfo e Declínio Richard C. Gamble — Tradução: Vera Lúcia L. Kepler
Richard C. Gamble é Professor Assistente de História da Igreja no Westminster Theological Seminary, em Filadélfia. É graduado pelo Westminster College (B.A.), pelo Pittsburgh Theological Seminary (M.A.) e pela Universidade de Basel, na Suíça (Th.M.). Serviu como preletor de História da Igreja no Freie Evangelisch Theologische Akademie, in Basel. Tem escrito artigos e críticas para o Westminster Theological Journal e para o Theologische Zeitschrift. É membro da Amerícan Society for Church History e da American Society for Reformation Research e da North American Patristic Society.
CAPÍTULO 3
SUÍÇA: TRIUNFO E DECLÍNIO
Tentar descrever a influência de Calvino e do Calvinismo em qualquer país específico é uma tarefa complexa, que se torna ainda mais difícil por causa da necessária brevidade com que cada autor de uma obra como essa tem de abordar sua respectiva área. A Suíça apresenta alguns problemas peculiares de interpretação, pois a Suíça gerou o movimento que estamos descrevendo: Começaremos com o trabalho de Calvino na cidade de Genebra, porém dedicaremos a maior parte deste capítulo a uma discussão sobre sua influência na Suíça no século 16: seus contatos com Bullinger em Zurique (o Consensus Tigurinus); a Segunda Confissão Helvética; e a continuação de seu pensamento através de Beza, seu sucessor em Genebra, que morreu em 1605. Faremos uma rápida revisão da Suíça do século 17 ao examinarmos a teologia de Wollebius e dos autores da Fórmula Consensual Helvética (1675). Um fecho natural de nossa discussão sobre o Calvinismo, na Suíça, é a ascensão de J.A. Turretin, em Genebra, e a vitória do Racionalismo francês sobre o Calvinismo naquela universidade. Na Suíça, a Reforma teve seu começo em Zurique, com Ulrich Zwínglio (1484-1531), cuja morte precedeu inclusive a primeira edição das Institutas de Calvino. Mais especificamente, a Reforma em Genebra foi iniciada por Guillaume Farel (1489-1565). Farel visitou Genebra pela primeira vez em 1532, e em 1533 celebrou ali o primeiro culto protestante, num jardim, na Sexta-feira Santa. A disseminação do Evangelho em Genebra trouxe alguns frutos violentos: em maio de 1533 irrompeu uma revolta na qual um cônego foi morto. O bispo de Genebra tinha prendido os líderes da revolta, mas os magistrados da cidade alegaram que a corte episcopal não tinha jurisdição em caso de assassinato. Vendo que
não seria capaz de julgar os assassinos, o bispo deixou Genebra e nunca mais retornou. Mais tarde, os criminosos foram executados. Genebra estava em aliança com as cidades de Friburgo e Berna. Friburgo, uma cidade fortemente católica, tinha protestado contra a presença de Farel em Genebra, mas Farel tinha a aprovação da cidade de Berna. Após várias disputas e tumultos, foi descoberto que um tabelião episcopal tinha documentos assinados pelo bispo; esses documentos autorizariam a indicação de um governante militar de Friburgo para a cidade. Enfurecida com isso, Genebra recusou-se a manter a aliança com Friburgo, ficando Berna como a única protetora da cidade. Entretanto, em luta, o bispo não abriu mão de seu poder na cidade. Juntamente com Carlos III de Sabóia, ele reuniu tropas e atacou a cidade. Esse ataque fracassou. Vários outros ataques foram desferidos e todos sem sucesso. Os magistrados escreveram para Roma, protestando contra as ações de seu bispo, relatando sua ausência e declarando vacante o cargo de bispo; contudo, Roma preferiu ignorar a carta. Os magistrados fundaram sua própria casa-da-moeda em 1535, proclamando dessa forma sua independência da hierarquia romana. Carlos III, da Sabóia, não estava disposto a perder Genebra; ele formou uma tropa de quinhentos mercenários e cercou a cidade no fim de 1535. Genebra apelou para Berna, pedindo ajuda; porém ao não recebê-la voltou-se para Francisco 1 da França. Foi enviada (da parte de Francisco I) uma pequena força de cavalaria, mas depois de tentarem atravessar os Alpes durante o inverno e de serem atacados pelas tropas da Sabóia, somente sete homens e seu comandante conseguiram alcançar Genebra. A oferta (de Francisco I) de dar proteção a Genebra sob o governo francês, foi votada e rejeitada pela cidade. Essa tentativa vã da França levou Berna à ação. Reunindo uma força de seis mil homens, ela libertou Genebra das tropas da
Sabóia, em fevereiro de 1536. Como resultado da pregação e das disputas de Farel, os cidadãos da cidade recém-libertada votaram, no mês de maio, por viver “segundo o evangelho”. Embora Genebra fosse agora legalmente uma cidade protestante, ela só o era nominalmente, segundo testemunho de Calvino. Ao se despedir do Conselho de Pastores, ele declarou: Quando cheguei a essa igreja, não havia praticamente nada. Eles estavam pregando e isso é tudo. Eles eram bons em procurar ídolos e queimá-los, mas não havia outra Reforma. Tudo estava em alvoroço.1 Certamente, por ocasião da morte de Calvino, a cidade de Genebra não mais podia ser descrita nesses mesmos termos. Quais foram alguns dos efeitos da estada de Calvino nessa cidade protestante? Em seus esforços para reformar a Igreja de Genebra, Calvino estabeleceu quatro ofícios: o de pastores, de mestres (doutores), de anciãos e de diáconos. O pastor deveria pregar a Palavra de Deus, admoestar e exortar, bem como administrar os sacramentos. O mestre deveria “ensinar doutrina sólida aos fiéis” e “preparar os jovens para o ministério e para o governo civil”. As obrigações dos anciãos eram a de “vigiar a vida de cada homem, admoestar amavelmente aqueles a quem vissem levando uma vida desordeira e, quando necessário, levá-los à Assembléia, a qual estaria encarregada de aplicar a disciplina fraternal”. Os diáconos deveriam cuidar dos pobres e doentes, e pôr um fim à mendicância.2 1
Corpus Reformatorum, org. por G. Baum, E. Cunitz, E. Reuss (Baunsvigae: Schwetschke, 1870). Calvini Opera Omnia (C.O.), IX, col. 891-892: “Quand ir vins premierement an ceste eglise il n’y avoit quasi comme rien. On preschoit et puis c’est tout. On cerchoit bien les idoles eI les brusloit-on, main il n’y avoit acune reformation. Tout estoit en tumulte”. 2 Amadée Roget, Histoire du Peuple de Genève (Nieuwkoop: B. DeGraaf, reimpr. 1976), vols. 2-7; E. William Monter, Calvin’s Geneva (Nova York: Wiley, 1967), pp. 137-139; Robert Henderson, The Teaching Office in the Reformed Tradition (Filadélfia:
A Igreja de Genebra era constituída pelo “Venerável Conselho dos Pastores” e pelo Consistório. O Conselho de Pastores tinha funções estritamente eclesiásticas, especialmente a educação e exame de candidatos à ordenação. O Consistório, ou Presbitério, não era restrito a pastores, mas também possuía membros leigos que, na verdade, eram a maioria no Consistório. A obrigação do Consistório era manter a disciplina eclesiástica dentro da cidade; seu tribunal era o poder controlador na Igreja. Entretanto, o tribunal do Consistório não tinha o direito de punição civil.1 Ao reformar dessa forma a Igreja, Calvino estava também induzindo uma mudança na sociedade de Genebra. Seu método de reformar a cidade era pelo uso da disciplina eclesiástica. O objetivo da disciplina de Calvino era proteger a Igreja como corpo de crentes, proteger o cristão individualmente dentro da Igreja, e também levar os transgressores ao arrependimento. A maneira de aplicar a disciplina consistia, primeiramente, em admoestar particularmente o transgressor, procedimento seguido pela admoestação perante testemunhas e, finalmente, caso a admoestação falhasse, aplicava-se a excomunhão. A grave condenação à excomunhão somente era aplicada para as faltas mais sérias. É importante lembrar que, como um dos objetivos da disciplina era levar o transgressor ao arrependimento, era necessário que a comunidade tivesse cuidado em sua maneira de agir com os punidos. A Igreja também era protegida pelo fato de os próprios pastores não estarem isentos da disciplina. Calvino queria que eles também fossem sujeitos à jurisdição civil, pois eles deveriam ser os melhores exemplos para o povo. Não se devia levar em conta o quão importante fosse o Westminster, 1962), pp. 56-71. 1 Philip Schaff, History of the Christian Church, vol. 8, (1960; ed. reimpr., Grand Rapids: Eerdmans, 1979), pp. 481-482; James Mackinnon, Calvin and the Reformation (Londres: Longmans. Green, 1936), pp. 77-81.
cidadão, pois as leis de Genebra deveriam ser honradas por todos e eram rigorosamente aplicadas.1 Quanto a essas leis de moralidade, Calvino não era inovador, pois quase todas as cidades da Idade Média tinham em seus livros leis acerca de diversas extravagâncias. Em várias cidades suíças as leis não foram formais ou estruturalmente alteradas, mas antes certas leis passaram a serem “ignoradas” e outras leis foram acrescentadas.2 O que se tornou novo foi a imposição dessas leis. O propósito de Calvino, de manter a disciplina dentro da cidade, era assegurar uma ajuda para a regeneração moral. Não havia separação em sua mente entre Cristianismo e moralidade; uma cidade cristã não podia tolerar pecados tais como, por exemplo, a prostituição escancarada. Como o próprio Calvino observou, ao chegar em Genebra, os pastores pregavam a doutrina evangélica, mas nenhuma reforma de vida tinha acontecido. As duas coisas devem andar juntas. A posição de Calvino sobre o governo e a relação entre a Igreja e o Estado eram novas e radicais. Philip Hughes expressa resumidamente o pensamento de Calvino: Na verdade, toda a estrutura da sociedade, conforme concebida na mente de Calvino, estava baseada na distinção entre Igreja e Estado como dois poderes separados e cujas esferas de autoridade estavam claramente definidas: a primeira brandindo a espada do Espírito na fiel proclamação da Palavra de Deus, e o segundo brandindo a espada secular na manutenção de um governo bom e justo e na punição de transgressores das leis estatutárias; e ambos estão sujeitos à autoridade
1
Schaff, History of the Christian Church, p. 491. Thomas M. Lindsay, History of the Reformation, vol. 2, (Edimburgo: T & T Clark, reimpr. 1964), pp. 108-109. Essas leis existiam em toda a Europa até o final do século 17. Cp. Schaff, pp. 493 ss.; Gottfried W. Locher, Die Zwinglische Reformation im Rahmen dor europäischen Kirchengeschichte (Gdttingan: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979), p. 193. 2
suprema do Deus Onipotente.1 Conforme já vimos, “brandir a espada do Espírito” incluía, entre outras coisas, o poder da excomunhão. Esse poder, nas mãos dos pastores, conforme Calvino o via, era uma volta a uma das marcas distintivas da Igreja dos três primeiros séculos. Essa volta, entretanto, não estava absolutamente alinhada com as estruturas existentes na sociedade, e era realmente estranha ao conceito que os magistrados tinham acerca de si próprios e de suas obrigações. E fácil imaginar que seguir corajosamente esse plano, nas relações Igreja/Estado, implicaria numa dura caminhada para Calvino; e assim foi. Qualquer idéia de que Calvino ou a Igreja de Genebra controlava o governo civil não é correta. Em setembro de 1548, o Conselho da cidade determinou que os pastores podiam apenas exortar o povo, mas não excomungá-lo.2 Em dezembro, o Conselho prosseguiu em suas tentativas de usurpar o poder dando a Guichard Roux a permissão de receber a Ceia do Senhor, após ter sido proibido de fazê-lo pelo Consistório. O próprio Calvino foi admoestado pelo Conselho no dia 24 de setembro de 1548 por causa de uma carta que tinha escrito, criticando os magistrados de Genebra.3 Após vários protestos e esforços dos pastores, o Conselho finalmente concordou, em 24 de janeiro de 1555, em conceder ao Consistório os direitos que lhe cabiam conforme o estabelecido pelas Ordenanças Eclesiásticas de 1541. Basicamente, as Ordenanças Eclesiásticas estabeleciam o padrão pelo qual a Igreja funcionaria. Foram estabelecidos o horário e o número de cultos na cidade, bem como a freqüência dos pastores aos encontros e outras regulamentações, tais como a excomunhão. Conforme mencionado acima, o conceito de Calvino sobre as relações Igreja/Estado era novo e, inclusive, diferia das estruturas 1
Philip E. Hughes, “The Geneva of John Calvin” The Churchman 78 (1964): 257. Cp. Mackinnon, Calvin and the Reformation, p. 81 ss. 2 Hughes. “Geneva”, p. 261. 3 Ibid., pp. 261-265.
estabelecidas na Suíça de fala alemã. Por exemplo, Zwínglio e Bullinger negavam que a Igreja tivesse o direito de excomunhão.1 Para Bullinger, a excomunhão era um julgamento temporal e, como tal, aplicá-la era um direito inerente do magistrado.2 Em Zurique, a Igreja era governada da seguinte forma: dentro do cantão havia primeiramente oito e depois nove capítulos, cada um era liderado por um diácono (deão). Duas vezes por ano os pastores se encontrariam em um Sínodo, o que foi primeiramente sugerido por Zwínglio em 1528 e, finalmente, aprovado em outubro de 1532. O poder do Sínodo era estritamente limitado a assuntos de doutrina e à moralidade do clero; oito membros do pequeno Conselho dos Pais da Cidade também estavam presentes. Foi também estabelecido um comitê de examinadores, que incluía dois membros do pequeno Conselho, dois pastores e dois leitores do Carolino, a escola de Teologia; o propósito do comitê era examinar candidatos ao pastorado. Caso fosse aprovado pelo comitê, o candidato seria inspecionado pelo Conselho e faria um juramento de submissão aos magistrados. Então, o candidato seria apresentado à congregação da Igreja, depois de ter sido recomendado pelo governo cristão. Perguntar-se-ia à congregação da Igreja se havia qualquer objeção ao candidato, e então ela ficaria incumbida de ajudar o pastor na realização de suas obrigações. Zwínglio e Bullinger não podiam concordar com a idéia de Calvino de que deveria haver uma separação entre Governo Civil e Governo da Igreja.3 Farel, que concordava com Calvino, não 1
William Cunningham, The Reformers and the Theology at the Reformation (Edimburgo e Carlisle: Banner of Truth Trust, reimpr. 1967), pp. 224 ss.; Lindsay, History of the Reformation, p. 111; George P. Fischer, The Reformation (Nova York: Scribner, 1888), p. 435; James I. Good, History of the Swiss Reformed Church Since the Reformation (Filadélfia: Board of the Reformed Church in the U. S., 1913), pp. 16 ss.; R. Staehelin, Huldreich Zwingli, sein Leben und Wirken II (Basel, 1897), p. 144. 2 Robert C. Walton “The lnstitutionalization of the Reformation at Zurich”, Zwingliana vol. 13, nº 8 (1972), p. 505. 3 Bullinger inclusive declara sua discordância de Calvino. A. — I. Herminjard, Correspondance des Reformateurs dans les pays de langue française. vol. 9 (Genebra: George & Cie., 1897), pp. 116-121; Calvino diz: “A igreja não assume o que é próprio do magistrado; nem pode o magistrado executar o que é desenvolvido pela igreja”. Institutes
teve sucesso em introduzir as novas idéias no Governo de Neuchâtel. Infelizmente, mesmo durante o período de vida de Calvino, os dois poderes separados de Genebra não eram tão separados de fato como o eram em teoria.1 Um dos frutos do ministério de Calvino, em Genebra, foi a atividade missionária que ali se originou, e o cuidado pelos necessitados que chegavam a Genebra. Pelos registros daquela época está claro que Genebra tornou-se o mais famoso abrigo para refugiados religiosos.2 Estamos informados também de que Genebra enviou um contingente de missionários bem treinados, especialmente para a França, mas, também, para lugares tão distantes quanto o Brasil. Estamos de posse, ainda, dos registros desses missionários, que foram martirizados pela sua fé. Novamente o Professor Hughes sumariza muito bem ao dizer: Aqui temos uma prova irrefutável da falsidade da conclusão tão comum de que o Calvinismo seja incompatível com o Evangelho e condena à morte qualquer esforço missionário.3 O Consensus Tigurinos Ao considerarmos a influência de Calvino e do Calvinismo na Suíça, o Consensus Tigurinos — ou Consenso de Zurique — não apenas nos fornece um ponto de partida adequado como, também, elucida o contexto teológico da Suíça neste período crítico. Na Suíça de fala alemã, desenvolveu-se uma doutrina amadurecida acerca dos sacramentos, especialmente o da Ceia do Senhor, que é abordada no Consensus. Zwínglio considerou muito e, IV. 11, 3. Cp. R. Ley, Kirchenzucht bei Zwingli (Zurique: Zwingli Verlag, 1948), pp. 99105. 1 As idéias de Calvino somente foram implementadas na igreja francesa e, em certa medida, na igreja de Knox. Cp. Schaff, History of the Christian Church, p. 473; Lindsay, History of the Reformation, p. 113. 2 Hughes, “Geneva”, p. 271. “Genebra de fato tornou-se o mais famoso abrigo para fugitivos evangélicos da época”. 3 Ibid.
freqüentemente, debateu acerca da natureza dos elementos da Ceia do Senhor; tanto ele quanto Lutero rejeitaram a idéia católicoromana da transubstanciação que afirma que o pão e o vinho se tornam, de fato, o corpo e sangue de Cristo de modo tal que ocorre um milagre e, então, Cristo é sacrificado no altar. Calvino diz: “Mas a questão é a seguinte: Qual é a natureza dessa comunicação?1” — essa é uma questão que necessita ser investigada se quisermos entender a interpretação das palavras de Cristo: “Isso é meu corpo”. Zwínglio e Lutero não puderam concordar entre si quanto a esse assunto. Em 1529, eles tiveram uma discussão em Marburgo, e concordaram sobre quatorze pontos principais de Teologia, mas não puderam adotar uma posição idêntica nesse assunto. A posição de Lutero era a de que o pão e o vinho eram o corpo e sangue de Cristo; não uma transubstanciação dos elementos, porém antes uma consubstanciação. Consubstanciação era a posição de que o corpo e o sangue de Cristo estão “em, com e sob” o pão e o vinho. A posição de Zwínglio, por outro lado, era de que o pão e o vinho não são naturalmente unidos com o corpo e o sangue de Cristo; o corpo e o sangue de Cristo não estão nem incluídos localmente nos elementos, nem sensivelmente presentes, mas são símbolos através dos quais nós temos comunhão no corpo e sangue de Cristo.2 Zwínglio e Lutero, efetivamente, nunca resolveram essa dificuldade. Mais tarde, outra complicação surgiu por causa das posições de Calvino sobre a Ceia do Senhor, posições que não eram idênticas nem à compreensão de Lutero, nem à de Zwínglio. Calvino estava esperançoso de poder alcançar um acordo entre os 1
C. O., IX, 31-32. “Nenhum de nós nega que o corpo e o sangue de Cristo nos são comunicados. Porém a questão é ..." Cp. Joseph N. Tylenda, “Calvin’s Understanding of the Communication of Properties”, Westminster Theological Journal, 38: 63-66. 2 Zwinglio, Expositio Christianae Fidei, H. A. Niemeyer, Collectio Confessianem in Ecclesiis Reformatis Publicatarum (Lipsiae: Klinkhardti, 1840), pp. 44-50. Cp. "On the Lord’s Supper”, Library of Christian Classics, Zwinglio e Bullinger, org. por G. W. Bromiley (Filadélfia: Westminster, 1953), pp. 189, 193, 199, 218, 225, 228; First Helvetic Confession, Artigo 23, Niemeyer, Collectio, pp. 120 ss.
protestantes, pelo menos entre os protestantes da Suíça. O Consensus Tigurinos teve sucesso em unir a Suíça com relação à doutrina da Ceia do Senhor. Antes de começarmos a examinar o pensamento de Bullinger e de Calvino, em relação à Ceia do Senhor, investigaremos as circunstâncias históricas em torno do Consensus. Em 1544/45, Lutero atacou a concepção zwingliana da Ceia do Senhor com sua obra Kurzes Bekenntnis der Diener der Kirche zu Zürich... insbesondere über das Nachtmahl... [A Verdadeira Confissão dos Pastores de Zurique... em Relação à Ceia do Senhor...]. Conforme mencionado anteriormente, a posição de Calvino não concordava nem com Lutero nem com Bullinger, que seguiu de perto o seu predecessor. Entretanto, Calvino conseguiu entrar em discussão com Bullinger acerca de suas respectivas posições sobre a Ceia. Bullinger lhe ofereceu uma cópia de sua obra De Sacramentis, escrita em 1546, quando Calvino estava em Zurique no início de 1547. Conforme veremos, Calvino não concordava completamente com a concepção de Bullinger e lhe apresentou um esboço de sua posição em vinte e quatro proposições, o qual foi enviado a Zurique em junho de 1548. Bullinger fez certas anotações a esse texto e então o enviou de volta a Calvino, que o revisou em janeiro de 1549. Calvino então considerou o projeto importante o bastante para viajar com Farel a Zurique, em maio de 1549, quando se chegou a um consenso entre Calvino e Bullinger em poucas horas.1 Esse acordo resultou no Consensus Tigurinos. Para nos ajudar a entender a importância desse documento, esboçaremos brevemente as convicções de Bullinger e de Calvino a respeito da Ceia do Senhor. Bullinger, assim como Zwínglio, rejeitou a idéia luterana da 1
C. O., XIII, 457; Calvinus Myconio 1549. Cp. W. Kolfhaus, “Der Verkehr Calvins mit Bullinger”, Calvinstudien, org. por J. Bohatec (Leipzig: Rudolf Haupt, 1909), p. 47; E. Bizer, Studjen zur Geschichte des Abendmahisstreits im 16 Jahrhundert, reimpr. (Darmstadt, 1962), p. 285; Ustari, “Vertiefung der Zwinglischen Sakraments — und Tauflehra bei Bullinger”, TheoIogische Studien und Kritiken, 1883 4: 730 ss.; O. E. Strasser, “Der Consensus Tigurinus”, Zwingliana 9 (1949-1953):5.
consubstanciação. Além de rejeitar a idéia de que o sacramento possa ser um meio direto de graça, Bullinger considerou o princípio fundamental da Ceia do Senhor como sendo uma ilustração religiosa e um estímulo à fé; o conteúdo inteiro do sacramento consiste na relembrança de Cristo.1 Para o crente, a presença real de Cristo está na Ceia, mas o incrédulo recebe somente pão e vinho.2 É pelo Espírito Santo que se torna possível aos crentes serem participantes de Cristo.3 Observando as formulações de Calvino a respeito da Ceia do Senhor, lembramos que a sua posição está em algum lugar entre as de Lutero e Zwínglio. Ela não satisfaz aos extremistas de nenhum dos lados. Calvino foi primeiramente influenciado por Lutero, talvez mais fortemente do que por Zwínglio, por essa razão as perspectivas de um acordo com os Reformadores de Zurique não eram muito grandes.4 Mesmo assim, está claro, pelos escritos de Calvino, que ele rejeitou a idéia luterana da consubstanciação.5 Entretanto, embora rejeitando essa idéia, ele concordava com os luteranos em que o corpo de Cristo é dado na Ceia do Senhor.6 Cristo está presente no sacramento.7 Como isso pode acontecer? Calvino também afirmou muito claramente que o corpo de Cristo permanece no céu e retém suas propriedades humanas.8 A resposta a essa questão é encontrada na 1
Kolfhaus, “Verkehr”, p. 47. Cf. The Decades at Henry Bullinger, Parker Society 4: 465 conforma citado em Pruett, “A Protestant Doctrine of the Eucharistic Presence”, Calvin Theological Journal 10 (1975):144. Bizer concorda, “Studien”, p. 285. 3 Pruett, “Eucharistic Presence”, pp. 144-145. 4 Kolfhaus, “Verkehr”, pp. 47-48, 51; Schaff, History of the Christian Church, p. 471; Strasser, “Consensus Tigurinus”, p. 4-5. Em Berna, Calvino foi denominado luterano. 5 C. O., IX, 514; “Literalem sensum in his verbis; hoc est corpus meum, negamus fidei analogon esse: at simul asserimus a communi scripturae usu remotum, quotidies de sacramentis agitur”. 6 Ibid., 70; Christi carne et Sanguine vere nos in sacra coene pasci... 7 Institutes, IV, 17, 5:IV, 17, 11. 8 Institutes, IV, 17, 26; C. O., IX, 72, 221. 2
ação do Espírito Santo em relação à Ceia; Cristo não vem a nós do céu, mas o poder do Espírito nos eleva a ele nos céus.1 Então, nós tomamos parte de Cristo na Ceia de um modo espiritual e celestial.2 Há uma presença real de Cristo na Ceia do Senhor, mas é um modo celestial de presença. Calvino, rapidamente, salienta que essa presença de Cristo não é recebida por um incrédulo.3 Não é porque não são oferecidos ao incrédulo o corpo e o sangue de Cristo, pois ele é oferecido a bons e a maus,4 mas o verdadeiro recebimento é possível unicamente pela fé, sendo o próprio recebedor o obstáculo que o impede de desfrutar do dom.5 A participação do incrédulo não significa que ele o receba para seu próprio prejuízo, conforme alguns luteranos afirmam. Que é que se pode concluir de uma análise do conteúdo do Consensus Tigurinos? Somos nós capazes de determinar se a compreensão de Calvino, a respeito do sacramento da Ceia do Senhor se tornou normativa em toda a Suíça? Têm sido tiradas duas conclusões com relação ao Consensus: ou ele foi um triunfo para a doutrina de Calvino, ou houve um genuíno dar e receber entre Bullinger e Calvino, no acordo de ambos. Não é correto dizer que não houve influência bullingeriana no Consensus, embora também esteja claro que é a compreensão de Calvino a respeito da Ceia do Senhor que é apresentada no Consensus Tigurinos. O Consensus afirma que há, no sacramento, uma verdadeira união de vida com Cristo e que os elementos não são “vazios”. Eles são meios da graça e transmitem os benefícios da redenção. Após a redação do Consensus Tigurinos, o Calvinismo começou a crescer em força na Suíça: na cidade de Zurique, onde 1
C. O., IX, 33. Comentário de 1Co 11.34, C. 0., XLIX, 488. 3 C. O., IX, 27. 4 Ibid., 157. 5 Ibid., 90. 2
Bullinger ainda era o antistes ou pastor principal, o Calvinismo de certa forma substituiu o Zwinglianismo como corrente teológica dominante. O primeiro reformador da cidade de St. Gallen, Vadian (Joachim von Watt, 1484-1551), foi influenciado pessoalmente por Zwínglio e, já em 1536, tinha ouvido acerca de Calvino. Vadian considerara importante para Calvino estar unido com os teólogos de Zurique em relação à natureza da Ceia do Senhor, e Calvino percebeu nele um discernimento aguçado ao desejar essa união. Calvino o tinha em alta consideração e dedicou a Vadian sua obra De scandalis. Conforme indicam as cartas de Calvino daquela época, ele foi profundamente tocado pela morte de Vadian. Outro Reformador de St. Callen, Johan Kessler (150274), tinha um espírito humilde e desejava sinceramente uma visita de Calvino. Embora até onde saibamos esse encontro nunca tenha ocorrido, Kessler foi um defensor fiel de Calvino por toda a sua vida. Basiléia, entretanto, estava sob a liderança eclesiástica de Simon Sulzer, que tinha tendências luteranas; por essa razão, a cidade de Basiléia não foi muito receptiva a Calvino e à sua teologia até o próximo antistes.1 Na Suíça, após a atenção ter sido concentrada por alguns anos na natureza da Ceia do Senhor, embora não tivesse desaparecido totalmente esse assunto passou a ter uma importância secundária devido ao surgimento de uma nova questão controvertida, ou, seja, a doutrina da predestinação. Beza levantou a questão dessa doutrina como ponto importante de discussão, ao afirmar que Deus primeiramente decretou que algumas pessoas seriam salvas por sua misericórdia, e que outras seriam entregues à desgraça e, após esse decreto, bem como em subordinação a ele, Deus criou o homem. Essa doutrina tornou-se conhecida como supralapsarianismo. Especialmente em Zurique, o assunto da predestinação e suas implicações tornaram-se matéria de conflitos 1
O útil livro de Uwe Plath, Calvin und Basel in den Jahren 1552-1556 (Basler Beitrãge zur Geschichteswissenschaft, Band 133 [Basel-Stuttgart: Helbring und Lichtenhahn, 1974]), esclarece muito o relacionamento entre Calvino e a cidade junto ao Reno. Especialmente após a execução de Servetus, Basiléia tornou-se um tanto hostil para com Calvino. Cp. a crítica em Renaissance Quarterly 29 (1976), por W. Stanford Reid.
agudos. Theodore Bibliander (1504-62), professor de Antigo Testamento naquela universidade, ensinava que havia uma diferença entre a predestinação e a presciência de Deus, e tentava enfatizar acima de tudo a universalidade do amor. Peter Martyr Vermigli (1500-62), que havia sido chamado há pouco de Estrasburgo para Zurique, indignou-se com essa doutrina. Ele propôs uma predestinação dupla, uma eleição tanto para a perdição como para a felicidade eterna e, por essa razão, criticou ferrenhamente a Bibliander. Mesmo que Bullinger, geralmente, só queria enfatizar a eleição para a salvação, a faculdade teológica de Zurique acabou concordando com Vermigli e demitiu Bibliander em 8 de fevereiro de 1560.1 Enquanto em Zurique se armava o conflito sobre a predestinação, Berna e Genebra disputavam acerca de outra questão. A discordância agora não era nem sobre o sacramento da Ceia do Senhor nem sobre a predestinação; nessas frentes havia uma relativa paz. A área de conflito centrava-se na disputa acerca da natureza das relações Igreja /Estado, que eram interpretadas diferentemente pelos principais teólogos de ambas as cidades. Wolfgang Musculus (1497-1563), professor de Grego e de Teologia em Berna, desde 1549, liderava o partido de Berna, que estava convencido de ser correto unir o Estado e a Igreja, com a Igreja subordinada ao governo e os servidores da Igreja como empregados do governo. Em suas lutas por um governo cristão, ele considerava ser sua obrigação lutar contra qualquer separação entre Igreja e Estado, quer isso implicasse em lutar contra Roma ou contra Genebra.2 O conceito de ius reformandi era uma das 1
Rudolf Pfister, Kirchengeschichte der Schweiz, Vol. II (Zurique: Theologischer Verlag), p. 299 Schaff, History of the Christian Church, coloca que Bibliander foi “um distinto orientalista, ‘o pai da teologia exegética na Suiça’, e um precursor do Arminianismo”, p. 477. 2 Pfister, Kirchengeschichte, p. 301, nº 301; Helmut Kressner, Schweizer Ursprünge dos anglikanischen Staatkirchentums, Schriften des Vereins für Reformationsgeschichte, nº 170 (Gutarsloh: C. Bertelsmann, 1953), pp. 46ss. Kressner também observou que a Inglaterra recebeu, pelo menos em parte, suas idéias do governo eclesiástico da Suíça, pp. 73ss. Cp. Kurt Guggisberg, Bernische Kirchengeschichte (Berna: Paul Haupt, 1958), p. 173.
partes mais importantes do pensamento de Musculus; ius reformandi era o direito de reformar e renovar o caráter e a organização da Igreja. Esse direito pertencia aos magistrados, e colocava a autoridade dos magistrados no centro de seu sistema. A posição de Calvino não concordava com essas conclusões. Calvino via os direitos da Igreja como pertencendo inerentemente à Igreja. A Igreja, e só ela, é responsável pela Igreja.1 Ao continuarmos nossa análise sobre a Suíça, perceberemos alguns resultados do conflito ideológico nas relações Igreja/Estado. Conforme o Calvinismo se fortalecia na Suíça, também estava se propagando em outras partes da Europa, como outros capítulos deste livro o demonstram. É importante, para a história suíça, a disseminação do Calvinismo para o Norte, na Alemanha, especialmente na área ao redor da cidade de Heidelberg. A crise que se desenvolveu quando o Calvinismo encontrou o Luteranismo em solo alemão, forneceu a base para a Confissão suíça conhecida como a Segunda Confissão Helvética.
A Segunda Confissão Helvética Em 1562, Bullinger tinha composto, em latim, uma confissão pessoal de fé que, pelo menos naquela época, pretendia ser para seu uso particular. Em 1564, ele a aperfeiçoou e lhe acrescentou seu testamento, esperando morrer vítima da peste que já tinha levado sua esposa e ainda estava avassalando Zurique. Entretanto, ele sobreviveu à peste e, em dezembro de 1565, recebeu uma solicitação de Frederico III do Palatinado, pedindo ajuda de Zurique e de Genebra sob a forma de uma Confissão que testificasse de sua ortodoxia. Devido à sua teologia reformada suíça, ele estava sendo ameaçado de exclusão, pelos luteranos, dos 1
Comentário da João 9: 22, C. O., XLVII, 227; C. 0., VII, 33-34; Comentário de 1Co 5:11, C. O. XLIX, 386. Cp. F. W. Kampschulte, Johann Calvin, seine Kirche und sein Staat (Leipzig: Dunker & Humblot, 1869), p. 475; William A. Mueller, Church and State in Luther and Calvin (Garden City: Anchor Books, 1965), pp. 106-126; Benjamim C. Milnar, Jr., Calvin’s Doctrine of the Church (Leiden — BrilI, 1970), pp. 175-179.
negócios políticos. Bullinger estava ansioso por responder, mas pediu o auxilio de Beza, então principal teólogo de Genebra, para revisar esse testamento pessoal de fé antes de mandá-lo para Heidelberg como uma Confissão da Igreja suíça. Beza concordou e veio a Zurique; entretanto, foram feitas poucas alterações e a declaração foi enviada a Frederico III. Essa Confissão de fé veio a ser chamada de Segunda Confissão Helvética. Aparentemente, ela se prestou ao propósito desejado por Frederico III, pois ele não foi censurado. Sua piedade pessoal foi reconhecida por todos e o Calvinismo estava seguro na Alemanha, pelo menos por algum tempo. É difícil superestimar a importância da Segunda Confissão Helvética.1 Todas as igrejas da Suíça, incluindo as de Basiléia e Genebra, concordaram com ela. Esse não foi um feito desprezível, se considerarmos a diversidade da teologia reformada que era evidente na Suíça, até essa época. Essa unanimidade capacitou as igrejas suíças a terem uma norma comum para instrução, uma doutrina que foi extensivamente utilizada por séculos, e colaborou para a unidade na pregação e na educação teológica. A Confissão é o maior credo da Reforma no continente europeu e, à exceção do Catecismo de Heidelberg, foi um dos símbolos da Reforma mais largamente adotados, sendo aprovado na Hungria em 1567, na França e na Polônia em 1571, e na Escócia em 1578, tendo sido também bem recebido na Holanda e na Inglaterra. Quanto a seu mérito teológico, é de primeira qualidade.2 A Segunda Confissão Helvética pretende demonstrar a unidade de seu ensino com o da Bíblia bem como com o da Igreja 1
O texto pode ser encontrado em Niemeyer, Collectio, pp. 462ss.; a versão inglesa de Schaff é encontrada em The Creeds of Christendom (Grand Rapids: Baker, 1966), 3: 831ss. 2 Cf. Ernst Koch, Die Theologie der Confession Helvetica Posterior, Bei träge zur Geschichte und Lehre der Reformierten Kirche, vol. 27 (Neukirchan: Neukirchen Verlag, 1968); Charles Hodge, Systematic Theology (Londres: James Clarke, 1960), 3:634ss.; Schaff, Creeds of Christendom, 1:390-420; Pfister, Kirchengeschichte, pp. 308-312; Philip Hugues, org., The Encyclopedia of Christianity, (Marshallton: The National Foundation for Christian Education, 1972), 3:102ss.
primitiva. No que tange à teologia, em geral, a Confissão trata das doutrinas das Escrituras (caps. 1-2), Deus e a eleição (caps. 3-10). Eclesiologia (caps. 17-23), e Vida da Igreja (caps. 24-28), a Família e o Governo (caps. 29,31), bem como dos Sacramentos (caps. 19), ela ensina que (1) eles são ritos santos, tendo Deus por seu autor e Cristo como o grande propósito representado por eles. (2) havia Sacramentos tanto sob a antiga economia como sob a nova; e (3) no que toca à substância, os Sacramentos, sob ambas as dispensações, são equivalentes. O Batismo, então, substitui a circuncisão, e a Ceia do Senhor substitui os Sacrifícios do Antigo Testamento. Também é importante observar que essa é a primeira Confissão protestante que exclui os apócrifos do texto das Escrituras (cap. 1). A Confissão reconhece a existência de causas secundárias que atuam sob a providência de Deus (cap. 6), eliminando assim a acusação de fatalismo que, freqüentemente, é lançada contra o Calvinismo. Beza contribuiu para a edição da Segunda Confissão Helvética, como principal teólogo de Genebra. Após a morte de Calvino, em 17 de maio de 1564, Beza foi rapidamente convocado para suceder seu querido amigo. Pelo fato de a morte de Calvino ter fechado uma era na história de Genebra, somos capazes de observar as mudanças naquela cidade após 1564.
Genebra depois de Calvino Parece-nos que houve várias mudanças que se seguiram à morte de Calvino. Essas mudanças não foram apenas eclesiásticas, mas também políticas. Por algum tempo, após a morte de Calvino, Genebra estava à procura de segurança política. O principal fator desagregador que irrompeu foi o cerco da cidade pelo Duque de Sabóia. Em 1567 essa ocupação dos distritos adjacentes desempenhou um papel importante nas atividades políticas de Genebra, por cerca de vinte anos.
As tensões eram grandes em Genebra, mas, felizmente para seu futuro, foi negociado um mode de vivre com o Duque de Sabóia, Emmanuel-Philibert. Esse acordo deveria durar vinte e três anos. Em 1579, um tratado feito com a França, Berna e o cantão de Soleure, também ajudou a assegurar a Genebra seus direitos como cidade soberana, apesar de sua fraqueza. Isso foi muito bom para Genebra, pois Emmanuel-Philibert morreu pouco depois, e Charles-Emmanuel, o próximo duque, não tinha muita disposição para permitir que Genebra tivesse seu status de soberania. Em 1584, foi firmado um outro tratado entre Berna, Zurique e Genebra, e esse tratado também ajudou a manter a segurança de Genebra. Charles-Emmanuel respondeu, alguns meses depois, com um embargo de grãos destinados a Genebra, embargo que durou quase dois anos e forçou a submissão de Genebra; entretanto, após ter recebido pequena ajuda dos cantões de língua alemã, a cidade declarou guerra à Sabóia, em 1589. Após quatro anos de luta, eles fizeram as pazes com a Sabóia, contudo, nada significativo foi resolvido, exceto que Genebra manteria sua independência. Em 1602, a Sabóia empreendeu mais uma vã tentativa de escalar os muros de Genebra e, finalmente, em 1603, Genebra conseguiu obter uma trégua permanente, passando a ter sua soberania e independência relativamente asseguradas.1 Dentro da cidade também houve mudanças. O afluxo de refugiados continuou após a época de Calvino, o que se configura uma situação difícil para qualquer cidade; mesmo assim, Genebra, como algumas outras cidades, conseguiu integrar, com sucesso, os seus refugiados. Como ocorria em várias outras cidades européias daquela época, havia um forte movimento em direção à oligarquia; os magistrados começaram a usar uniformes dos anos de 1570 e, nos anos 1580, receberam o título de “Excelência” e outros. Entretanto, esse desenvolvimento do governo “pouco ou
1
E. William Montar, Calvin’s Geneva (Nova York: Wiley, 1967), p. 201.
nada devia ao entrincheiramento do Calvinismo.1” Após a morte de Calvino, o governo começou a ter mais controle sobre a Igreja de Genebra. Até então, a Igreja tinha conservado considerável independência em relação ao Estado, diferentemente de outras igrejas na Suíça. Foi realmente após a morte de Calvino que os ministros da cidade demonstraram maior atividade. Eles mantiveram sua vigilância fiel sobre o povo e viam-se a si mesmos como “a rocha da ortodoxia”. A moralidade da comunidade era observada e os ministros pediam, constantemente, uma nova legislação nessa área. A codificação, em lei, dos pensamentos de Calvino acerca da moralidade foi efetuada principalmente após a sua morte; em 1576, as famosas Ordenanças Eclesiásticas foram revisadas, estabelecendo-se uma regra e ordem escrita para a vida. Houve também revisão na Academia de Genebra, que foi fundada durante o período de vida de Calvino.2 Em 1565, foi instituída uma cadeira de Direito, ainda que essa medida fosse contrária ao desejo dos pastores,3 e a Academia teve de ser fechada por um curto período durante o embargo imposto pela Sabóia contra Genebra. Entretanto, a mudança mais importante na Academia de Genebra foi seu desenvolvimento sob a liderança de Beza, tornando-se ela o mais famoso centro de ensino protestante da Europa.4 Ao analisarmos os diversos aspectos da situação em Genebra após Calvino é imperativo investigar mais detalhadamente a vida e o pensamento de Theodore Beza, o amigo e sucessor de Calvino. Beza tentou seguir a Calvino e de várias formas ele realmente seguiu suas diretrizes e exemplo como moderador do Conselho de Pastores. Dentro dos limites da própria cidade a atividade política 1
Ibid., p. 209. W. Stanford Reid, “Calvin and the Founding of the Academy of Geneva”, Westminster Theological Journal 18 (1955): 1-33. 3 Pfister, Kirchengeschichte, p. 227. 4 Montar, Calvin’s Geneva, p.212. 2
de Beza era mais modesta que a de Calvino. Para seu crédito, Beza seguiu o exemplo de Calvino ao evitar que um pastor tivesse o controle do Conselho de Pastores: ele estabeleceu que deveria haver um novo moderador eleito a cada ano. Beza aposentou-se parcialmente em 1580 e isso determinou o fim de uma época distinta da história de Genebra, embora ele não se tivesse afastado totalmente da vida pública até sua morte, ocorrida em 1605. Hoje em dia se afirma que houve o alvorecer de uma nova era teológica com Beza. Ele é acusado de transformar o Calvinismo em um Escolasticismo reformado.1 Esse Escolasticismo reformado é considerado como um abandono de Calvino e de sua teologia, não apenas de uma ou de algumas doutrinas; tem sido dito que “todo o programa teológico de Beza mostra uma dissidência séria do de Calvino.2” É indubitavelmente verdadeiro que Beza não seguiu a Calvino em todos os pontos doutrinários, como é bem exemplificado em sua proposta a respeito do supralapsarianismo. Mesmo assim, de forma alguma pode ser provada a tese de que havia uma diferença radical nas doutrinas básicas dos dois teólogos. O escopo e propósito deste capítulo não permitirão uma defesa extensa da unidade de pensamento entre Calvino e Beza; devemos nos contentar aqui com o fato de que a hábil defesa dessa questão apresentada por William Cunningham em 1800, ainda permanece inabalável,3 Até agora a defesa de Cunningham foi totalmente ignorada pelos proponentes da teoria da desunidade entre os dois teólogos.
1
Essa teoria é proposta por Pfister, Kírkengeschichte, p.228; Brian G. Armstrong. Calvinism and the Amyraut Heresy (Madison: University of Wisconsin Press, 1969), pp. 37-42; Walter Kickel, Vernumft und Offenbarung bei Theodor Beza, Beiträge zur Geschichte und Lehre der Reformierten Kirche, vol.25 (Neukirchen: Neukirchen Verlag, 1967), pp. 159-169; Basil HalI, “Calvin against the Calvinists”, in G. E. Duffield, org., John Calvin, The Courtenay Studies in Reformation Theology, 1:25-28; B. Rogers e Donald Mckim, The Authority and Inlerpretation of the Bible: An Historical Approach (São Francisco:Harper and Row, 1979), pp. 162-165. 2 Armstrong, Amyraut Heresy, p. 39. 3 Cunningham, Reformers, pp. 349-412.
Relações Entre Igreja e Estado na Suíça Tendo examinado a Genebra pós-calvinista, verificaremos agora os efeitos de Calvino e do Calvinismo nas diversas cidades da Suíça, notando primeiramente o desenvolvimento das relações entre Igreja e Estado. No princípio dos anos 1600, surgiram duas noções similares, porém distintas sobre as relações Igreja/Estado. Na área suíça de fala francesa (Genebra, Neuchâtel, Lausanne) havia uma forma de governo eclesiástico definida e claramente presbiteriana. As áreas de fala alemã (Basiléia, Berna, Zurique), embora mantendo basicamente a mesma doutrina calvinista, continuaram na tradição zwingliana de governo eclesiástico submetido ao controle do Estado. Já examinamos suficientemente o de Genebra; lá observamos uma gradual usurpação dos direitos da Igreja pelo governo. Em Neuchâtel, onde Guillaume Farel era o Reformador, surgiu uma situação peculiar a respeito das relações entre a Igreja e o Estado. O povo daquela região foi conquistado para a Reforma, mas o governo não o foi. Essa situação não era normal e resultou numa Igreja que agia independentemente do Estado. Por essa razão, a Igreja de Neuchâtel era governada unicamente por um Conselho de Pastores, capitaneada por Farel.
A Influência da Teologia de Calvino É difícil negar o domínio da teologia de Calvino sobre a Suíça no final do século 16 e no começo do século 17. Calvino tinha representantes de sua teologia nas universidades de todas as principais cidades. Johann Jakob Grynäus (1540-1607) tornou-se professor de Teologia na Universidade de Basiléia em 1575. Anteriormente, ele tivera tendências luteranas por causa da influência de Simon Sulzer (1508-1 585), pastor titular de Basiléia, e por causa de seu
próprio estudo em Tübingen. Mesmo assim, quando assumiu o professorado, ele era totalmente calvinista em seus ensinos e foi um firme defensor da Segunda Confissão Helvética. Dessa forma, ele mudou a tendência da liderança em Basiléia, rompendo com a influência luterana. Seu genro, Amandus Polanus Polansdorf (1561-1610), que também era um calvinista estrito, mantendo a idéia de uma expiação especial, estudou com Beza em Genebra, recebeu seu doutorado em Basiléia e, em 1596, tornou-se professor de Antigo Testamento nesse local.1 Talvez um dos teólogos mais importantes desse período tenha sido Johannes Wolleb (Wollebius, 1586-1629) de Basiléia. Ele aceitou a cadeira de Antigo Testamento em Basiléia, bem como, sendo o antistes, escreveu seu Compendium Theologiae Christianae em 1626. Bromiley avalia a importância do Compendium, dele dizendo: “Como uma clara e concisa afirmação da ortodoxia da Reforma, no início do século 17, ele dificilmente poderia ser superado.2” O Compendium foi extensivamente utilizado no século 17 e bem cedo foi traduzido para o inglês e holandês. Theodore Zwinger (1597-1654) sucedeu a Wollebius como antistes de Basiléia. Dividido entre seguir a carreira de Medicina ou a de Teologia, ele ingressou no ministério após uma doença que o levou às portas da morte. Como decidido seguidor de Calvino, ele debateu em Heidelberg a respeito da eleição incondicional. Foi durante seu mandato como antistes que Basiléia, finalmente, aceitou a Segunda Confissão Helvética e implementou o uso de pão ao invés de hóstias na Ceia do Senhor. Em Berna o Calvinismo se fortalecia cada vez mais. Surgiu 1
Pfister, Kirchengeschichte p.411. Cp. Heiner Faulenbach, Die Struktur der Theologie des Amandus Polanus von Polansdorf, Basler Studien zur Historischen und Systematischen Theologie (Zurique: EVZ Verlag, 1967). 2 Geoffrey W. Bromiley, Historical Theology An Introduction (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 306. Bromiley também observa erroneamante que Wollebius tenha tomado a cadeira do Novo Testamento em Basiléia; na verdade era a cadeira de Antigo Testamento.
uma disputa entre Samuel Huber (1545-1624) e Abraham Musculus (Müslin, m. 1591), o filho de Wolfgang, disputa que culminou num debate em abril de 1588. Huber ensinava a universalidade da graça, isso é, todas as pessoas são predestinadas à bem-aventurança. Aqueles que se perdem, rejeitam sua salvação por sua própria culpa. Ele também sustentava a concepção luterana da Ceia do Senhor. Musculus afirmava que cada cristão é absolutamente predestinado para crer, pela graça de Deus. Ele conquistou uma vitória completa na cidade e Huber foi expulso de Berna. Deixando a Suíça para viver na Alemanha, Huber, mais tarde, tornou-se luterano. O triunfo de Musculus sobre Huber pode ser marcado como o triunfo do Calvinismo em Berna, especialmente porque Musculus tinha assinado um papel reafirmando o ensino de Beza sobre a predestinação. Mais tarde, Hermann Dürrholz (Lignaridus), professor de Teologia em Berna a partir de 1598, proporia um Calvinismo estrito durante os trinta anos em que lecionou.1 Genebra entristeceu-se em 13 de outubro de 1605, quando, ali, Theodore Beza descansou de seus labores. O sucessor de Beza, Giovanni Diodati (1576-1649), já tinha sido instrutor de hebraico na Academia e seguiu a tradição teológica de Calvino e de Beza. Em 1607, ele fez uma tradução da Bíblia na língua italiana. Quando Diodati assumiu a reitoria, em 1618, Theodore Tronchin (m. 1657), genro de Beza, assumiu seu lugar no ensino da Teologia. Tronchin sucedera a Diodati no ensino de hebraico e línguas orientais, quando Diodati primeiramente assumiu a cadeira de Teologia. Em 1644, Diodati igualmente fez uma tradução francesa da Bíblia com notas, que alcançou uma grande circulação naquela época. Zurique sempre permaneceu aberta ao pensamento de Zwínglio, embora, conforme mencionado anteriormente, o Calvinismo tenha se tornado a teologia dominante na cidade. Em 1575, Rudolph Gwalther (1519-85) sucedeu a Bullinger como 1
Pfister, Kirchengeschmchte pp. 413—414.
antistes. Aparentemente, seus pais eram muito pobres e ele fora elevado ao cargo pelo próprio Bullinger. Em 1541, ele casou-se com Regula Zwingli, a filha de Ulrich. Vários sermões seus foram publicados e ele foi responsável pela impressão de várias obras de seu sogro. Pouco depois de sua morte, Johann Rudolph Stumph (1550-92) veio a ser o antistes de Zurique. Embora o mandato de Stumph tenha sido breve, ele foi de importância especial para a disseminação do Calvinismo na Suíça. Sob sua liderança houve uma mudança na direção teológica de Zurique; apegou-se ele enfaticamente à expiação limitada. Antes dessa época, somente Peter Martyr tinha sustentado a posição de uma expiação limitada. Durante a controvérsia de Huber em Berna, Stumph tomara uma posição fortemente contrária à de Huber em favor do Calvinismo mais avançado. Johann Wilhelm Stucki (1542-1609) tornou-se o professor de Antigo Testamento em 1571. Stucki tinha aprendido o caldeu e o siríaco com um rabino em Pádua e era um ardente defensor do ensino de Beza sobre a predestinação. Markus Bäumler (1555-1611) veio a ser o professor de Teologia da universidade em 1607, e continuou a tradição de Zurique em disputar com os luteranos, conforme é exemplificado por sua contenda com Jakob Andreae a respeito da Ceia do Senhor. Após 1613, o antistes de Zurique era Johann Jakob Breitinger (15751645); que liderou a delegação suíça no Sínodo de Dort. Em 1618-19 aconteceu, na cidade de Dordrecht, o importante Sínodo, do qual os teólogos da Suíça participaram.1 À exceção dos países baixos, os decretos do Sínodo foram uma expressão obrigatória de fé para os membros de Igrejas na França huguenote e na Suíça somente. Isso é importante para a história da Suíça por causa da posição que a Suíça tomou com relação à teologia proposta na escola de Saumer, na França. Em 1647, Zurique proibiu seus estudantes de ingressarem na academia de Saumer e, em 1666, Berna a seguiu.
1
Além de Breitinger de Zurique, os seguintes tomaram parte: Beck e Meyer de Basiléia, Diodati e Tronchin de Genebra, Rutimayer de Berna a Koch de Schaffhausan. Cp. Good, History of the Swiss Reformed Church, pp. 18-31.
Zurique e Berna proibiram a freqüência às aulas lá porque os teólogos daquela escola não estavam em concordância com o Sínodo de Dort, embora afirmassem, ao mesmo tempo, que eram calvinistas. O problema de encontrar uma solução acerca da teologia de Saumer foi confrontado em parte por Johann Heinrich Heidegger (1633-98), de Zurique, Lukas Gernler (1625-75) de Basiléia, e por Francis Turretin (1623-87) de Genebra, que compuseram a Formula Consensus Helvetica [Fórmula Consensual Helvética], em 1675, como uma resposta para e contra a teologia de Saumer.
A Fórmula Consensual Helvética A Fórmula Consensual Helvética1 é o último credo da Suíça calvinista. Foi escrita cerca de 111 anos após a morte de Calvino. Sua autoridade era limitada à Suíça e cessou de ter autoridade ali em 1722 — menos de meio século depois. Seu valor, entretanto, foi visto especialmente na América no século 19; A.A. Hodge a denominou “a mais científica e completa de todas as confissões da Reforma. Sua eminente autoria e o fato de ela representar, distintivamente, a escola mais completamente consistente dos antigos calvinistas lhe confere uma importância clássica.2” Conforme mencionado anteriormente, essa Confissão foi escrita em resposta à teologia proposta na Academia de Saumer, que foi fundada por Du Plessis Mornay, em 1604. Para nosso estudo, são importantes os professores Josue de La Place (Placeus, 1596-1655), Louis Cappel (Capellus, 1585-1658), e Moyse Amyraut (Moïse Amyraldus, 1596-1664). Eles se afastaram dos ensinos de Dort sobre a inspiração verbal do Antigo Testamento, predestinação particular e a imputação do pecado de Adão. A escola deixou de existir em 1685, quando Luís XVI revogou o 1
Texto em Niemeyer, Collectio, pp. 218-310; Inglês em Archibald Alexander Hodge, Outlines of Theology (Grand Rapids: Zondervan, reimpr. 1972), pp. 656ss. 2 A.A.Hodge, Outline of Theology, p. 128.
Edito de Nantes. Louis Cappel afirmava que a vocalização do texto hebraico tinha acontecido após ter-se completado o Talmude Babilônico, e também criticou a integridade literária do Texto Massorético do Antigo Testamento.1 Amyraut desenvolveu a doutrina do universalismus hypotheticus (universalismo hipotético ou condicional). Essa doutrina, embora contrária ao Arminianismo, parecia-se com a do Luteranismo que, semelhantemente, ensinava uma expiação universal e uma eleição limitada.2 Amyraut também distinguia entre a necessidade física e a moral, uma idéia que ‘reapareceria um século mais tarde na América.3 Placeus propunha a doutrina da imputação mediata ou, seja, que a base para a condenação da humanidade é a natureza corrompida herdada de Adão, e não o pecado de Adão. Tendo esboçado esse contexto do Consensus, podemos investigar o seu conteúdo. Em vinte e seis artigos, a Fórmula Consensual Helvética ensinava que as consoantes e as vogais do texto hebraico, do Antigo Testamento, e o grego do Novo Testamento são inspirados por Deus (caps. 1-2); que o amyraldismo está em conflito com as Escrituras (caps. 4-6); que há um pacto de obras entre Deus e Adão (caps. 7-9); que o pecado de Adão é passado à sua posteridade por imputação imediata (caps. 10-12); que a chamada externa de Deus é eficaz no eleito (caps. 17-20); que o homem é incapaz de crer no Evangelho por si só (caps. 21-22); e que assim como há um pacto de obras entre Deus e Adão, assim também há um pacto de graça entre Deus e o eleito (caps. 23-25). O artigo vigésimo sexto proíbe o ensino de novas doutrinas. O autor de Genebra, Turretin, foi um calvinista importante na época do fim do século 17. Ele merece um 1
Schaff, Creeds of Christendom, 1:478-479; John Bowman, “A Forgotten Controversy”, The Evangelical Quartely 20 (1948): 52-55. 2 Schaff, Creeds of Christendom, 1:481; Armstrong, Amyraut Heresy, sua teologia em seu contexto histórico, pp. 120-157, seu ensino da predestinação, pp. 169-221, et al; C. Hodge, Systematic Theology, 2:332. 3 Reapareceu na teologia da Jonathan Edwards.
tratamento mais completo do que o que pode ser oferecido no espaço deste capítulo,1 mas temos de abordar aqui uma crítica recente de sua teologia. Francis Turretin tornou-se professor em Genebra em 1648; seu pai, Benedict Turretin, foi pastor e professor antes dele. Um ano após a morte do jovem Turretin, foi publicada sua obra de três volumes, Institutio Theologiae Elencticae e, em 1702, foi publicada sua obra Opera, de quatro volumes.2 Turretin seguiu a teologia de Calvino e deveria ser classificado como um calvinista de primeira linha. Assim como há uma acusação contra Beza, a de iniciador do Escolasticismo Reformado, da mesma forma Francis Turretin é acusado de ensinar um desvio ainda mais radical de Calvino. Alguns autores afirmaram, por exemplo, que na doutrina das Escrituras Calvino e Turretin sustentam posições que são opostas entre si.3 Esse dificilmente é o caso, pois esses homens defendem doutrinas semelhantes sobre as Escrituras e implementaram, basicamente, os mesmos argumentos para demonstrar sua convicção. Assim como Calvino, Turretin argumentou que a inerrância da Bíblia é resultado de sua origem divina e de sua autoridade, e que os cristãos são convencidos de que a Bíblia é a Palavra de Deus pela ação do Espírito Santo, bem como por seus sinais internos e externos.4 Embora seja necessário desenvolver-se mais trabalho nessa área, deveria ser enfatizada a continuidade teológica entre Calvino e Turretin através de uma mudança cultural e de clima teológico. De várias maneiras, a morte de Francis Turretin e a posse de 1
Cp. Guillaume Eugène Theodore de Budé, Vie de François Turretini, Theologien genevois 1623-1687 (Lausanne: Georges Bridal Editeur, 1871). 2 A obra de Turretin também foi republicada em 1847, e conforme Beardslee corretamente informa, isso foi importante à luz da influência de Turretin na teologia da Charles Hodge, Reformed Dogmatics (Grand Rapids: Baker, reimpr. 1977). p. 14. 3 Rogers and McKim, Authority and Interpretation, pp. 174-175. 4 Cp. Institutes de Calvino, I, 7, 4; I, 8, 1, 3, 5, 12, 13. Cp. também Turretin, Institutio Theologiae Elencticae, Genebra, 1688, II, 4, 1, II, 4, 7; II, 4, 8; II, 6, 5.
seu filho, Jean-Alfonse Turretin (1671-1737), na primeira cadeira de História Eclesiástica de Genebra, em 1697, e de Teologia, em 1705, caracterizou o fim de uma época na história da Igreja da Suíça. O jovem Turretin não concordava com o ensino de seu pai e não continuou na tradição calvinista. Na verdade, ele é conhecido como “o libertador da Igreja de Calvino da tirania do Escolasticismo calvinista.1” Assim como Genebra era o lugar de residência de Calvino, pois recebeu sua direção e cuidado, assim Genebra testemunhou o sepultamento de sua teologia naquela cidade, ao vê-la substituída pela teologia e pelo espírito caracteristicamente racionalistas do Iluminismo. A Suíça foi a terra natal do Calvinismo. O próprio Calvino é um de seus filhos e ela também pode reivindicar ser a pátria dos grandes teólogos Beza, Bullinger, Wollebius, Heidegger e Turretin. O Calvinismo provocou grande impacto tanto na vida social como na vida religiosa da Suíça, durante os séculos 16 e 17, e é da Suíça que provêm alguns dos mais importantes credos da Reforma. Foi em solo suíço que aconteceram muitos dos grandes debates acerca da Ceia do Senhor e de outras doutrinas fundamentais do Cristianismo reformado. Certamente, pois, a história do Calvinismo na Suíça é um capítulo importante para uma compreensão adequada da influência de Calvino na Europa e na América.
1
D. Paul Wernle, Der Schweizerische Protestantismus im 18 Jahrhundert, vol. 1 (Tübingen: Mohr, 1923), p. 494.
A Idade de Ouro do Calvinismo na França: 1533-1633 Pierre Courthial (Tradução de Sabatini Lalli) Pierre Courthial é professor de Ética e Teologia Prática e atua como Deão na Faculté de Thélogie Réformée d’Ain-en-Provence (França). Obteve graduação na Faculté de Theólogie Protestante de Paris e no Westminster Theological Seminary (D.D.). Serviu no ministério pastoral durante 23 anos em Paris. Escreveu muitos artigos e também o livro Fondements Pour I’Avenir [Fundamentos para o futuro], é co-editor de duas revistas francesas: Ichthus e La Revue Réformée [A Revista Reformada]. Pierre Courthial é membro da Comissão Teológica da WEF.
CAPÍTULO 4
A IDADE DE OURO DO CALVINISMO NA FRANÇA: 15331633
Por que os anos de 1533 e 1633 foram escolhidos para marcar o início e o fim da Idade de Ouro do Calvinismo na França? O ano de 1533 marca a repentina conversão de João Calvino à fé evangélica. Esse foi o ano em que, durante uma curta temporada com seu amigo Louis du Tillet, pároco de Claix, Calvino colocou no papel as suas primeiras anotações para a futura Instituição da Religião Cristã. Em 4 de maio de 1534, ele renunciou aos seus “benefícios eclesiásticos”, sustentados pelos cânones da Catedral de Noyon, cidade onde nasceu. Naquele mesmo ano, pregou o “evangelho puro” em Poitiers, estabelecendo assim os fundamentos da futura Igreja Reformada daquela cidade. No ano de 1633, foi publicada, por Paul Testard, a obra Eirenicon seu Synopsis Doctrine de Natura et Gratia. Foi a primeira obra de um teólogo das Igrejas Reformadas na França, obra que minou, ainda que de forma encoberta, a fé dessas Igrejas, conforme estava declarada em sua Confissão de 1559 e nos Cânones de Dordrecht, aceitos e ratificados em Alis, em 1620, pelo Sínodo Nacional que as jurisdicionava. A obra de Testard tratava da questão central da divina predestinação. No ano seguinte, em 1634, Moïse Amyraut (Amiraldus) publicou seu Breve Tratado sobre a Predestinação e as Principais Coisas que dela Dependem —, obra que se inclinava ainda mais distintamente para o Arminianismo. Apesar das esplêndidas advertências de Pierre du Moulin (Molinaeus) e de André Rivet, contra os ensinos de Testard e Amyraut, o Sínodo Nacional de Alençon, que se reuniu em 1637, não aplicou nenhuma sanção
contra eles.1 O período anterior a 1533 foi o período pré-calvinista do Protestantismo na França. Naquela época, o Protestantismo francês era formado por duas correntes de pensamento. A primeira era nacional, iniciada e defendida por católicos romanos que eram mais ou menos “evangélicos” e “reformados” de espírito, tais como Jacques Lefèvre d’Étaples (1450-1537) e Guillaume Briçonnet (1472-1534). A segunda corrente veio de Lutero e, especialmente, do reformador francês Guillaume Farel (14891565) e de reformadores suíços tais como Zwínglio. Já, em 1523, Farel estabelecera uma pequena Igreja Evangélica secreta em Paris. Nesse período pré-calvinista, a fé evangélica já tinha muitos mártires, tais como Jean Valliéres (morto em 1523), Jacques Pavan ou Pouent (morto em 1524), Jean Leclerc (morto em 1524), Louis de Berquin (morto em 1529) e Jean de Cartuce (morto em 1532). O período posterior a 1633 foi o período do declínio do Calvinismo na França. Como diz um provérbio provençal: “O apodrecimento do peixe começa pela cabeça”. Assim, sob as influências lamentáveis dos teólogos da Academia de Saumur, tais como Moïse Amyraut (1596-1664), Louis Cappel (1585-1658) e Josué de La Place (1596-1655), a fé de um número crescente de pastores e de igrejas tornou-se impregnada de influências arminianas. Pessoas de Fé Reformada tornaram-se uma raridade. Com isso, a Idade de Ouro do Calvinismo na França terminou. Apesar disso, permanecem a expectativa e a esperança que têm sido sempre aguardadas por alguns, expectativa de um renascimento, cuja aurora estamos finalmente começando a ver.
1
Cp. Eirenicon seu Synopsis Doctrinae de natura et gratia (Blois, 1633); Pierre Du Moulin, Lettres au Synode d’Alençon en 1637 touchant les livres d’Amyraut et Testard ou Examen de leur doctrine (Amsterdã, 1638); Lucien Rimbault, Pierre Du Moulin (Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1966), pp. 124ss,; Charles Delo, Actes ecclésiastiques et civils de tous les Synodes nationaux dos Eglises réformées de France (La Have, 1710), 2:571-576.
No primeiro período heróico (1533-62), quando houve cruel perseguição, nos dias terríveis da guerra civil e religiosa dos trinta anos (1562-93), e em um período de relativa paz nos reinados de Henrique IV e Luiz XIII (1593-1633), a Fé Reformada, semeada inicialmente pelo testemunho e martírio de muitos, espalhou-se e, então, transbordou dos corações de multidão de crentes. Ela se manifestou em cada área da existência humana — na Teologia e na Filosofia, nas Ciências e nas Artes, na cidade e no campo, na vida familiar e profissional e até mesmo na política. Essa mesma fé se fez presente em todas as classes sociais — camponeses e nobres, burgueses e artistas. Os huguenotes ganhos para Jesus Cristo colocaram em prática as exortações do admirável tratado sobre a vida cristã que compõem os capítulos de 6 a 10 das Institutas: Se nós não somos de nós mesmos, mas do Senhor, fica claro de qual erro devemos fugir e em que direção devemos orientar todos os atos de nossa vida. Não somos de nós mesmos: não permitamos que nossa razão ou vontade façam oscilar nossos planos e ações. Não somos de nós mesmos: assim, não estabeleçamos como nosso alvo a busca do que é conveniente à nossa carne. Não somos de nós mesmos: de modo que, tanto quanto pudermos, esqueçamonos de nós mesmos e de tudo que é nosso. Pelo contrário, nós somos de Deus: que sua sabedoria e vontade dirijam todas as nossas ações. Somos de Deus: que nos esforcemos para andar em sua direção como nosso único alvo legítimo, em todos os momentos de nossa vida. Oh, quanto tem lucrado o homem que, tendo sido ensinado que não pertence a si mesmo, rejeita o domínio e o governo de sua própria razão podendo rendê-la 1 a Deus.
O primeiro período heróico, o período de terrível perseguição que durou até 1562, divide-se em duas partes: a primeira e maior vai até 1555, foi uma época de semeadura. Não havia Igrejas Reformadas estabelecidas ou organizadas. Quando o crescente número de crentes se reunia, isso acontecia em assembléias clandestinas. A congregação de Paris, por exemplo, não foi 1
John T. McNaill, org., Calvin: Institutes of the Christian Religion, 2 vols., trad. por F. L. Battles (vols. 20 e 21 da Library of Christian Classics (Filadélfia: Westminster, 1960), 3.7.1.
organizada como uma Igreja e dirigida regularmente por pastores e anciãos até setembro de 1555. O período muito breve de grande crescimento e de estabelecimento de igrejas durou sete anos: de 1555 a 1562. Os fatos falam por si mesmos: havia somente cinco igrejas organizadas em 1555 (em Paris, Meaux, Angers, Poitiers e Loudun) perto de quatro anos depois, quando se reuniu o Primeiro Sínodo Nacional em Paris, em 1559, havia cerca de cem igrejas; no ano de 1562, que marca o início das guerras religiosas, o número de igrejas chegou a 2150. Samuel Mours escreve: “Não há dúvida de que se o flagelo das guerras religiosas não tivesse atingido o país, a França teria se tornado predominantemente protestante".1 Até 1555, época em que as Igrejas Reformadas foram “estabelecidas”, Calvino, que estava em Genebra, não cessava de orar por sua pátria e por seus compatriotas para que eles pudessem render-se ao Senhor e à sua Palavra, para que verdadeiras igrejas pudessem ser estabelecidas na França e para que os crentes franceses pudessem ser fortalecidos a fim de permanecerem firmes e, se necessário, tornarem-se mártires. Já no ano de 1535, conforme testifica a Epístola ao Rei Francisco I (destinada a ser inserida no prefácio das Institutas), o Reformador procurava ajudar e consolar la pauvrette Eglise (“a pobrezinha igreja”) da França. Foi com ela em mente, e desejando “servir ao nosso povo francês”, e através de seus labores, que ele traduziu a edição latina de 1536 (um sumário da qual ele publicara em francês já no ano de 1537 sob o título Instrução e Confissão de Fé2). No prefácio da primeira edição francesa de suas Institutas (1541), ele escreveu a respeito de sua obra principal, que continuou a desenvolver e a enriquecer no decorrer dos anos:
1
Cp. Samuel Mours, Le Protestantisme en France au Seizième Siècle (Paris: Librairie Protestante, 1959), p. 183. 2 Pierre Courthial, org., Instruction et Confession de Foi, edição francesa moderna, Coleção “Les Berges atlas Magas” (Paris, 1955), 79 páginas.
Em primeiro lugar, a fim de servir a todos os homens de ciência, seja qual for a nação a que pertençam, eu a escrevi em latim; em seguida, desejando comunicar aquilo que pudesse render fruto ao nosso povo (francês), traduzi-a para a nossa língua.
Apesar das perseguições que se intensificaram depois de um edito proclamado por Francisco 1, em 24 de junho de 1539, perseguições que se tornaram ainda mais severas com a criação de uma “camara ardente”, por Henrique II, em Paris, em 1547, e com a criação de tribunais semelhantes nas outras províncias, as conversões ao Evangelho puro e as congregações evangélicas continuaram a multiplicar-se. Essas congregações designavam líderes por toda parte. Isso, por exemplo, aconteceu com a Igreja em Paris que, em 1540, escolheu como seu pregador um ourives viajante, chamado Claude Le Peintre, que passara apenas três anos em Genebra (Após ter sido denunciado, Le Peintre foi queimado em uma estaca.). A Igreja de Meaux também escolheu, em 1546, um simples cardador, Pierre Le Clerc, como seu “ministro responsável pela proclamação da Palavra de Deus e pela administração dos sacramentos.1 Muitos huguenotes naqueles dias, quer estivessem visitando quer estivessem de viagem, levavam no bolso de seu grande casaco uma Bíblia em francês ou uma cópia das Institutas, pessoalmente anotadas e com as passagens chaves sublinhadas, ou levavam, ainda, algum folheto reformado de Genebra ou Basiléia. Quantos deles foram lançados nas chamas das estacas simplesmente porque tais obras foram descobertas com eles ou em suas casas, na gaveta de uma mesa, num armário ou em outro esconderijo, ou mesmo, em lugar de trabalho ou ainda em sua fazenda! Poucos sacerdotes e monges haviam se tornado reformados, tais como Ponthus de Saint Georges, um abade de perto de Couhé, 1
Claude Le Peintre e Pierre Le Clerc tornaram-se ambos mártires no ano de sua indicação; Cp. Histoire ecclésiastique dos Eglises réformés au Royaume de France (Anvers: Imprimerie da Jean Remy, 1580), 1:42, 67.
em Poitou; Jérôme Vindocin, da Gasconha; Jean Michel de Bourges; Secenat e Ramondy, de Cévennes. Ainda mais importante foi o fato de que um número muito maior de homens de praticamente todas as atividades exercerem “ministérios secretos”, naqueles dias. Nas igrejas clandestinas, os novos crentes reformados encontravam-se para ler as Sagradas Escrituras, orar e cantar salmos, utilizando-se de qualquer pregador que estivesse passando ou estivesse por ali. Editores, tais como Simon Dubois, em Lyon, já em 1528, e Robert Estienne, em Paris, de 1523 a 1551, publicaram folhetos proibidos. Colportores, tais como Macé Moreau e Jean Joerry, que foram posteriormente queimados em estacas, o primeiro em Troyes e o segundo em Toulouse, espalharam a Bíblia em língua francesa, folhetos reformados como o folheto, Sobre a Ceia do Senhor, (de Calvino) e livros de cânticos espirituais. As chamas das estacas subiram bem alto, mas a chama da fé reformada subiu ainda mais alto! Jean Crespin (1500-72), em seu Martiriologia ou Livro de Mártires, de 1554, completado com acréscimos em 1619 pelo Pastor Simon Goulart, conta a história de 789 mártires e menciona os nomes de 2120 outros protestantes sentenciados à morte ou assassinados. Apesar disso, essa é também a época em que “as correntes do Evangelho, das puras fontes de pregação de Genebra, escorrem vagarosamente e irrigam a terra da França”. Os crentes franceses, em meio a teste tão severo, entenderam que tinham recebido uma missão e uma responsabilidade como evangelistas e testemunhas. Assim, Calvino podia regozijar-se de que o Evangelho, apesar de toda oposição, progredia em seu país de origem. Em 10 de junho de 1549, ele escreveu a Madame de la Roche-Ponçay:
Quão alegres devemos estar quando o reino do Filho de Deus, nosso Salvador, multiplica-se e quando a boa semente de sua doutrina se espalha... chamando-nos para si mesmo. Ele nos consagra para que toda nossa vida possa servir para honrálo... Que, vós, porém, possais estar conscientes de que aonde quer que formos, a cruz de Jesus Cristo nos seguirá.1
E em uma carta de 3 de setembro de 1554, ele exortou os crentes em Poitou, onde Igrejas Reformadas estavam se desenvolvendo: Que cada um de vós procure atrair e ganhar para Jesus Cristo aqueles que puder e, em seguida, que os que considerardes capazes, depois de acurado exame, sejam recebidos (na igreja) mediante a aceitação de todos... Mostrai que o Evangelho de nosso Senhor Jesus vos ilumina para mostrar-vos o caminho 2 certo, a fim de que não erreis como filhos das trevas.
O Reformador também se preocupou com a perseverança final dos que estavam presos por causa de sua fé. Em 12 de março de 1553, ele escreveu aos cinco prisioneiros de Lyon: Estou plenamente seguro de que nada pode abalar a força que Deus colocou em vós. Já por um longo tempo, tendes estado meditando na batalha final que tereis que suportar, se é da boa vontade dele levar-vos até esse ponto. Confiai em que Aquele a quem servis reinará em vossos corações por meio de seu Santo Espírito, de tal modo que sua graça triunfará sobre toda tentação. Aquele que habita em vós é mais forte do que o mundo. Aqui cumpriremos o nosso dever de orar para que ele seja crescentemente glorificado na vossa constância e que, pela consolação de seu Espírito, ele suavize e amenize tudo o que é doloroso para o vosso corpo, e assim dirija para si, todas as vossas emoções para que, ao olhardes para a coroa celestial, possais estar prontos para deixar 3 tudo o que é do mundo, sem arrependimento.
Cerca de dois meses mais tarde, ele escreveu novamente para os mesmos prisioneiros de Lyon que estavam para morrer como mártires, em 16 de maio de 1553, dizendo um ao outro: “Coragem, meu irmão, coragem!”.
1
Lettres de Jean Calvin (Paris: Librairie Ch. Meyreuis, 1854), 1: 301. Ibid., p. 431. 3 Ibid., p. 371. 2
Uma vez que parece que Deus deseja usar vosso sangue para confirmar sua verdade, não há nada melhor do que se preparar a si mesmo para esse fim, orando para que ele vos faça submissos à sua boa vontade, de tal modo que 1 nada vos impeça de ir para onde ele vos chama.
De 26 a 28 de maio de 1559, ainda em meio a perseguições, o primeiro Sínodo Nacional das Igrejas Reformadas, na França, reuniu-se secretamente em Paris. A idéia de tal Sínodo cristalizara-se vagarosamente. “Deus inspirou todas as Igrejas Cristãs (reformadas) estabelecidas na França para reunirem-se a fim de estabelecerem um acordo na doutrina e na disciplina, em conformidade com a Palavra de Deus”, escreveu Theodore Beza, em sua História da Igreja (1580).2 Foi uma reunião de “ministros” e fiéis, ocorrida em Poitiers, no natal de 1557, na época da visita do pastor parisiense Antoine de Chandieu, que definiu o projeto do Sínodo. Um outro pastor parisiense, François de Morei, presidiu esse Sínodo que reuniu representantes de mais de sessenta das cem igrejas que existiam na França. Esse Primeiro Sínodo Nacional das Igrejas Reformadas, na França, adotou uma Confissão de Fé e uma Norma de Disciplina. A Confissão de Fé veio de um esboço dos trinta e cinco artigos preparados por Calvino. Quanto à Norma de Disciplina, foi inspirada igualmente pelo que o Reformador escrevera em suas Institutas e pelos exemplos das igrejas de Estrasburgo e Genebra. Quatro dos quarenta artigos da Confissão de Fé sustentavam o seguinte, claramente na linha de Calvino:
Artigo 5 (Sobre a Autoridade dos Livros das Escrituras): Cremos que a Palavra contida nestes livros procede de Deus e a autoridade que possui não vem dos homens, mas apenas de Deus. Essa Palavra é a norma de toda 1 2
Ibid., p. 382. Histoire ecclésiastique, 1:198.
verdade e contém tudo que é necessário para o serviço de Deus e para nossa salvação; logo, não é permitido aos homens, e nem mesmo aos anjos, fazer acréscimos a ela, excluir dela ou alterá-la em alguma coisa. Artigo 8 (Sobre a Providência Divina): Cremos, não apenas que Deus criou todas as coisas, mas que ele as governa e as dirige, ordenando tudo que acontece no mundo e controlando todas as coisas conforme a sua vontade. No entanto, certamente não cremos que Deus seja o autor do mal ou que a culpa desse mal possa ser imputada a ele, uma vez que, ao contrário, sua vontade é a norma soberana e infalível de toda retidão e justiça verdadeira... (Mas Deus tem maneiras maravilhosas de tratar com os demônios e com os maus, transformando em bem o mal que eles cometem e do qual são culpados). Assim, ao confessar que nada acontece sem a providência divina, nós nos maravilhamos humildemente diante dos segredos que nos são ocultos, sem questionar as coisas que estão além do alcance de nossa compreensão. Pelo contrário, para estarmos em paz e segurança, aplicamos às nossas vidas o que nos ensina a Bíblia Sagrada; porque Deus, a quem tudo está sujeito, olha por nós com tal cuidado paternal, que nem um cabelo da nossa cabeça cai sem que seja de sua vontade. Agindo desta forma, ele mantém um firme domínio sobre os demônios e sobre todos os inimigos, de modo que eles não podem causar o menor dano sem sua permissão.
Artigo 12 (Sobre a Eleição em Jesus Cristo): Do estado geral de corrupção e condenação no qual estão incluídos todos os homens, cremos que Deus livra aqueles que, em sua vontade eterna e imutável, e através de sua bondade e misericórdia somente, ele elegeu em nosso Senhor Jesus Cristo, sem qualquer consideração para com as suas obras. Cremos que ele deixa o restante em sua corrupção e condenação para neles mostrar a sua justiça, assim como revela as riquezas de sua misericórdia nos eleitos. Porque eles não são melhores do que os restantes, até que Deus os separe de acordo com o seu imutável propósito, que ele estabeleceu em Jesus Cristo antes da fundação do mundo. Além disso, não há ninguém capaz de obter tal benefício através de seus próprios méritos, visto que somos, por natureza, incapazes de qualquer desejo bom, qualquer boa disposição de nossas vontades, ou de qualquer bom pensamento, até que Deus tome a iniciativa e nos dê a disposição correta para gerá-los.
Artigo 36 (Sobre a Ceia do Senhor): Confessamos que cada Ceia do Senhor testifica da nossa união com Jesus Cristo. Na verdade, Cristo não só morreu e ressuscitou por nós de uma vez para sempre, mas também nos sustenta e alimenta de modo real através de sua carne e de seu
sangue, para que sejamos um com ele a fim de que sua vida nos seja comunicada. Embora ele esteja no céu até que retorne de lá para julgar o mundo, nós cremos que ele nos alimenta e vivifica — através da atividade secreta e incompreensível de seu Santo Espírito — com a substância de seu corpo e sangue. Declaramos, firmemente, que isso acontece espiritualmente, não para substituir a imaginação ou a especulação para o benefício e a verdadeira realidade da Ceia do Senhor, mas porque esse mistério, por sua grandeza, está além de nossas capacidades humanas de compreensão de toda a ordem natural das coisas; em suma, porque isso é celestial, cremos que só pode ser entendido pela fé.
A norma da Fé, apresentada e desenvolvida nas Institutas e resumida de forma condensada na Confissão de Fé de 1559 (adotada em 1571 pelo 7º Sínodo Nacional realizado em La Rochelle), nunca falhou em encorajar e fortalecer todos os membros de igreja, pastores, anciãos e mestres das Igrejas Reformadas na França até 1633. No sentido exato da palavra, todos eram “teólogos” naquele tempo, homens e mulheres da Palavra de Deus, preparados para responder a todo aquele que lhes pedisse a razão da esperança que estava neles (ver 1 Pedro 3.15). Durante o período de perseguições, Calvino implorou aos huguenotes para que suportassem e permanecessem firmes nas lutas e tribulações e para que não se levantassem em revolta: Suplicamo-vos a colocardes em prática a lição que o Grande Mestre nos ensinou, isso é, a vivermos nossas vidas em paciência. Sabemos quão difícil é isso para nossa carne, mas lembrai-vos também de que esse é o tempo de lutar contra nós mesmos e nossas paixões, quando somos assaltados por nossos inimigos... Somente estejais certos de que não estais realizando nada que não seja permitido por sua Palavra... Seria melhor que todos nós fôssemos aniquilados do que o Evangelho de Deus ser exposto à acusação de que faz os homens pegarem em armas para revoltas e motins, porque Deus sempre fará que as cinzas de seus servos dêem fruto (Á Igreja de Paris, em 16 de setembro de 1557).1
E novamente: Se vós tendes de ser sacrificados para selar e ratificar vosso testemunho, que possais ter coragem para vencer todas as tentações que podem desviar-vos deste sacrifício... Já foi dito de São Pedro, que ele seria levado para um lugar aonde não queria ir... assim, seguindo seu exemplo, lutai valentemente contra 1
Lettres de Jean Calvin, 2:139.
vossas fraquezas, a fim de permanecerdes vitoriosos contra Satanás e todos os vossos inimigos... Quanto mais o maligno tenta apagar a memória de seu Nome (O Nome de Deus) da terra, mais ele fará nosso sangue florescer pela força que ele nos dá... Guardai-vos para que não abandoneis o rebanho de Nosso Senhor Jesus assim como para não fugirdes da cruz... (Aos crentes em França, junho de 1 1559).
E outra vez: As perseguições são as verdadeiras batalhas dos cristãos, para testar a constância e a firmeza de sua fé... Considerai em alta estima o sangue dos mártires derramados para testemunho da verdade, e dedicado e consagrado para a glória de nosso Deus... aplicai isso para vossa edificação, para que isso 2 vos incite a segui-lo (Aos mesmos, em novembro de 1559).
Mas chegou o tempo quando uma parte da nobreza protestante (alguns, tais como o Príncipe de Condé, levado possivelmente, por um elemento de ambição pessoal; outros, tais como o Almirante Gaspard de Coligny, depois de longa hesitação, dadas suas qualidades espirituais) lançou mão de armas. Agrippa d’Aubigné escreveu: Enquanto os protestantes eram enviados para a morte sob a forma de justiça, não importando quão iníquo e cruel isso possa ter sido, eles ofereceram suas gargantas ao punhal e não manifestaram resistência. Mas, quando as autoridades públicas, os magistrados, cansados do fogo (das estacas), lançaram seu punhal contra o povo, e através de motins e grandes massacres na França, removeram a face respeitada da justiça, e cada homem enviava para a morte o seu vizinho ao som de trombetas e tambores, quem poderia impedir que o povo desafortunado (refiro-me aos que sob a ameaça de massacre, desamparados de toda estrutura de justiça) recorresse à força bruta para confrontar a força bruta, a ferro contra o ferro, e recebesse a condenação de 3 uma ira justa contra uma fúria sem justiça?
Depois de muitos massacres, o massacre de 1 de março de 1562 em Vassy, massacre de uma “assembléia” reunida em seu culto de adoração, levou Condé a apelar para os protestantes, em 12 de abril, para lançarem mão das armas. Não discutiremos os 1
Ibid., p. 274. Ibid., p. 297. 3 Agrippa d’Aubigné, Histoire Universeile (Paris: Librairie Ranouard, 1897), 9:285. 2
altos e baixos da guerra civil e religiosa dos trinta anos, interrompida por momentos de paz, rapidamente rompidos por novos massacres e insurreições, incluindo o hediondo Massacre de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, que ceifou entre sete a nove mil vítimas, entre elas Coligny, e que terminou com a renúncia do rei protestante Henrique IV (“Paris é digna de uma missa!”) em 1593. Durante essa guerra dos trinta anos entre franceses, alguns dentre os protestantes lutaram mais por motivos políticos e egoístas do que por convicção, outros apostataram de medo, e outros, ainda, condescenderam em execuções e motins assim como alguns de seus adversários; mas, felizmente, pela graça de Deus, a fé Reformada permaneceu e tornou-se mais e mais profundamente arraigada nos corações de muitos. Visto que foram esmagadas pelas tropas católicas romanas, um grande número de igrejas desapareceu de certas regiões (por exemplo, da Normandia), e sempre que isso acontecia, elas se desenvolviam em outro lugar, e seus Sínodos continuavam a reunir-se, observando a doutrina e a vida de todos os crentes, de acordo com as Sagradas Escrituras. Academias reformadas (i.e., universidades) foram fundadas, bem como centenas de escolas ("As igrejas farão disto sua tarefa obrigatória ou, seja, a tarefa de estabelecer escolas, e insistirão para que os jovens recebam instrução”, diziam os Artigos da Disciplina). Entre os teólogos da Idade de Ouro do Calvinismo Francês, cujos nomes é essencial conhecer, e com cujas palavras deve-se estar familiarizado, estão: 1. Os da Primeira Geração Guillaume Farel (1489-1565), de Gap, foi um precursor do Calvinismo e, posteriormente, um calvinista. Sendo perseguido em todos os lugares depois de ter evangelizado Dauphiné, sua província natal, e Guyenne, fugiu para o exílio logo em 1524. Foi ele quem deteve Calvino em Genebra em 1536. Depois de sua expulsão de Genebra em 1538, juntamente com Calvino, tornou-se pastor em Neuchâtel, na Suíça, por aproximadamente trinta anos,
e ali mesmo morreu. Entre suas obras, as seguintes merecem menção: Sumário e Breve Declaração de Alguns Pontos de Doutrina de Grande Importância para um Cristão (1530); Sobre o Verdadeiro Uso das Cruzes (1552). João Calvino (1509—1564) de Noyon — naturalmente! Theodore Beza (1519-1605), de Vézelay, fugiu para o exílio na época de sua conversão, em novembro de 1548. Apesar disso, ele voltou várias vezes à França: para dirigir a delegação protestante no Colóquio de Poissy (que reuniu protestantes e católicos romanos em 1561); e para ser capelão do exército de Condé durante a primeira das guerras de religião, e para ser presidente do Sínodo Nacional em La Rochelle, em 1571. Como teólogo, ele é autor de várias obras, incluindo A Confissão de Fé Cristã (versão francesa: 1528, versão latina: 1560),1 que ele escreveu na esperança de que essa ajudasse na conversão de seu pai, “em sua idade avançada”. Essa pequena obra-prima teológica e literária foi adotada como a “Confissão de Fé” das Igrejas Reformadas da Hungria, em 1562, e das igrejas da Transilvânia, em 1563. O artigo 24 da Parte III diz o seguinte a respeito de Cristo: Ele desceu à terra para nos levar ao céu. Desde o momento da sua concepção até o de sua ressurreição, ele suportou nossos pecados a fim de nos livrar deles. Cumpriu perfeitamente toda justiça para cobrir as nossas injustiças. Revelounos plenamente a vontade de Deus, seu Pai, através de suas palavras e do exemplo de sua vida a fim de mostrar-nos o verdadeiro caminho da salvação. Finalmente, para coroar sua obra expiatória por nossos pecados, que ele tomou sobre si mesmo, foi preso para nos libertar, foi condenado para que pudéssemos ser absolvidos. Sofreu vergonha infinita para nos livrar de toda dor e culpa. Foi pregado na cruz, para ali pregar nossos pecados. Morreu suportando a maldição que nos era devida, a fim de satisfazer para sempre a ira de Deus através de seu sacrifício singular. Foi sepultado para tornar real para nós a sua morte e para vencer a morte em seu próprio território... Ressuscitou vitorioso para que, com toda nossa corrupção morta e sepultada, pudéssemos ser renovados para uma novidade de vida eterna e espiritual... 1
Michel Réveillaud, La Confession de Foi Chrétienne, edição francesa moderna La Revue Réformée (St. Germain-en-Laye, 1955).
Como jurista, Beza, depois do Massacre de São Bartolomeu (1572), lançou um apelo por uma resistência justa contra a tirania: De Jure Magistratum. Como historiador, ele foi o autor da Vida de Calvino (1575) e provavelmente, da História Eclesiástica das Igrejas Reformadas do Reino da França (1580). Como dramaturgo, compôs a notável “peça mistério”, O Sacrifício de Abraão (1550). Como poeta colocou em versos franceses muitos salmos, alguns dos quais permaneceram poesias ímpares (SI 42, 47, 68, 72, 116, 121, 144, 149). 2. Os da Segunda Geração Lambert Daneau (1530—95), de Beaugency, foi pastor e professor de Teologia tanto no exterior (Genebra, Leyden, Ghent) como na França (Gien, Orthez, Castres). Escreveu mais de setenta livros e preocupou-se particularmente com a ética cristã. É o autor de Um Breve Protesto Contra o Jogo (1574), de um estudo sobre a ética, em três volumes (1574) e de Um Tratado Sobre a Dança (1579). Profundamente alicerçado na Palavra de Deus, ele recusou o rigor excessivo. Assim, ele escreve em seu Breve Protesto: Quando nos entretemos legitimamente a fim de cuidarmos de nós mesmos e de conservar nossa saúde e vigor, para recobrar nossa força física e revigorar nossos espíritos, de modo que possamos desenvolver mais alegre e eficientemente a obra para a qual foi do agrado de Deus chamar-nos; essa atividade também redunda para a glória de Deus. Desta forma, podemos servilo mais fielmente e também servir para o bem de nosso próximo, a quem nós poderemos mais facilmente ajudar de acordo com as nossas possibilidades, estando nós mesmos descansados e bem dispostos em nossa mente.
Michel Berault, ou Beraud, (1537-1611) foi professor na Academia Reformada de Montauban. Exaltou a grandeza justa e misericordiosa da predestinação divina e, em resposta aos ataques dos teólogos católicos romanos, publicou um livro sobre a vocação dos ministros do Evangelho. Simon Goulart (1543-1628), de Senlis, foi, ao mesmo tempo, pastor de Genebra, teólogo, erudito eminente e também poeta.
Escreveu muitos livros históricos e teológicos, entre os quais estão as suas Teses Sobre o Estado da França (1576). Foi um dos maiores “poetas teólogos” do Calvinismo. Falando sobre sua conversão, ele escreve. Oh, Ano feliz, mês feliz, dia feliz, hora feliz, Quando meu Pai celestial, estando preocupado comigo, Clamou em alta voz ao meu coração: Eis-me aqui, De agora em diante, farei minha morada em ti!
3. Os da Terceira Geração Philippe du Plessis-Mornay (1549-1623) foi um político e líder protestante de notável sabedoria. Sendo um dos amigos e colaboradores de Henrique IV, ele também foi um excelente teólogo (sendo um incansável leitor da Bíblia e dos Pais da Igreja, além de ser um discípulo de Calvino). Com a idade de 28 anos, publicou Um Tratado Sobre a Igreja, mas sua obra-prima foi um livro de apologética: Um Tratado Sobre a Verdade da Religião Cristã (1581), que, em alguns aspectos, antecipa Pascal. Também escreveu um livro sobre a Eucaristia e a Igreja Primitiva (1598), que não teve a boa sorte de agradar o apóstata Henrique IV. Daniel Chamier (morto em 1621) foi professor na Academia Reformada de Montauban, onde, por um certo tempo, provou ser capaz de ensinar, ao mesmo tempo, com muita perícia, Dogmática, Filosofia, Hebraico e Hrego! Também escreveu uma obra em quatro volumes: Pantrastae Catholicae, uma ordem de batalha universalmente aplicável. Sua morte, nas muralhas de Montauban, durante um cerco, impediu-o de compor um quinto volume — sobre a Igreja. Em sua Pantrastae Catholicae, ele observa, como um exegeta pioneiro, que “os evangelistas não usaram o grego ático, mas o grego coinê, a língua comum do povo”. Apenas para citar, é válido notar que nesse assunto ele foi apoiado pelo erudito protestante, em Filosofia, Saumaise (15881658), que afirmava, na mesma época, que os autores do Novo Testamento haviam usado o grego coloquial de seu tempo.1 1
Paul Vulliaud, La Clé Traditionnelle des Evangiles (Paris: Librairie Emile Nourry,
Pierre du Moulin (1568-1658), um dos melhores teólogos e polemistas franceses que já viveram, expressou-se em linguagem de pureza clássica. Foi pastor, clérigo e capelão de Madame Catarina de Bourbon, irmã do Rei Henrique IV (Naquele tempo, o título “Madame” era dado à irmã de um rei ou de uma rainha da França.). Visitou várias vezes a Inglaterra. Suas obras são muitas: livros sobre Teologia e Filosofia, cartas, sermões e poemas.1 Du Moulin percebeu os grandes perigos que havia em a Igreja deixar-se levar por qualquer influência arminiana. Em 1620, ele presidiu o Sínodo Nacional de Alês que, ao adotar os Cânones de Dort, rejeitou e condenou “as doutrinas dos arminianos, observando que essa faz a eleição divina depender da vontade humana, enfraquecendo e destruindo a graça de Deus; enaltece o homem e as faculdades de seu livre-arbítrio, a fim de desanimá-lo; traz de volta o Pelagianismo; disfarça o papismo e aniquila toda certeza de salvação”. Em sua Novidade do Papismo (1627), em uma resposta magnífica aos ataques do Cardeal du Perron, du Moulin escreve: Eles desejam que o povo siga seus líderes sem questionar se estão ou não seguindo o caminho certo e ensinando a doutrina verdadeira. Como alguém pode esperar reunir uma congregação de crentes sem saber o que significa ser crente? E como alguém saberá o que significa ser um crente, sem conhecer a doutrina da fé? Como saberei o que é puro e verdadeiro, se pessoas escondem de mim a regra da verdade e da pureza, impedindo-me de ler as Sagradas Escrituras, que são, unicamente, a fonte destas regras? A Igreja não deve julgar as Sagradas Escrituras, mas apenas ser uma testemunha e uma guardiã das mesmas. Por que deveríamos ter medo de dar louvor demais a Deus ou de atribuir muito 1936), pp. 8-9. 1 Especialmente dignas de nota entre as obras de du Moulin estão as seguintes: Le Bouclier de la Foi (1618), uma defesa vívida e rigorosa da Confissão das Igrejas Reformadas do Reino da França; Du Combat Chrétien et des Afflictions (1622); Traité de la Connaissance de Dieu (1625); De Juge dos Controverses (1630); e L’Anatomie do la Messe (1636).
à sua graça, ou de humilharmo-nos demasiadamente diante dele? Por que deveríamos levar os homens a entrarem em um relacionamento com Deus, para atribuir alguma parte deste louvor ao homem? A verdadeira religião é aquela que dá louvor a Deus e todos os benefícios ao homem. Ela tanto humilha o homem como glorifica a Deus. Voltemos a Jesus Cristo, e acharemos completo descanso em sua expiação se, ao darmos a Deus a glória, quisermos achar descanso para as nossas consciências.
André Rivet (1572—1651), um calvinista fervoroso, foi pastor na França e, depois, professor na Holanda. Sua Introdução ao Estudo das Escrituras estabelece os fundamentos de uma exegese que procura avidamente pelo sentido exato do texto. Antoine Garrissoles (1578-1650), professor em Montauban, foi, juntamente com alguns outros, o autor de um livro bem estruturado intitulado A Imputação do Pecado Original, no qual responde às idéias estranhas de Josué da La Place, que transformou o pecado original em uma questão simples de hereditariedade, através da qual cada pessoa não era considerada como um indivíduo responsável. A pesquisa filosófica e científica foi estimulada e desenvolvida entre o povo reformado, que via a glória de Deus manifestada nas maravilhas e segredos de sua criação. Em seus escritos, Calvino defendeu essa legítima curiosidade, ordenada por Deus já nos dois primeiros capítulos de Gênesis, contra o obscurantismo: ... de uma massa de mentes entusiasmadas que clamam contra todas as artes liberais e ciências honestas, como se elas não fossem boas para coisa alguma, exceto para tornar os homens orgulhosos, e como se não fossem sobremodo úteis tanto para o conhecimento de Deus como para a conduta da vida humana.
Em seu catecismo, Calvino acrescenta: ... Deus manifestou-se a nós em suas obras, devemos procurá-lo nelas. Porque somos incapazes de compreender a sua essência. Mas o mundo é como um espelho para nós, no qual podemos contemplá-lo na medida em que nos é
conveniente conhecê-lo.
Pierre de la Ramée, ou Ramus (1515-1572),1 desempenhou um papel importante como erudito e, especialmente, como filósofo nos progressos científicos dos séculos 16 e 17, que tiveram lugar, notavelmente, nos países protestantes. Sua grande luta, que lhe trouxe muitos inimigos, foi travada contra a “maladie de L’École” (o morbus scholasticus, a doença do Escolasticismo), que consistia em seguir como escravo e de modo supersticioso, a Aristóteles, naquela época. Em suas obras “anti-escolásticas” (Dialeticae partitiones; Aristotelicae animadversiones; Oratio pro philosophica disciplina; et al.) Ramus manifestava-se estarrecido e desalentado diante do fato de que a realidade cristã estava sendo alicerçada sobre uma filosofia pagã; que Aristóteles, em vez das Sagradas Escrituras, era a fonte de instrução no campo ético; e que a coerência de um argumento era muito mais estimada do que a sua fidelidade aos dois livros de Deus — a Bíblia e o universo criado. Convertido à fé Reformada depois do Colóquio de Poissy, (1560), Ramus não era popular na escola de Genebra, especialmente para Theodore Beza, visto que esse, embora excelente teólogo na maior parte de suas obras, manteve sua defesa de Aristóteles, quanto a ponto de partida para o conhecimento e a erudição. Ramus estava interessado em questões de semântica e lingüística. Ele exigia que as definições fossem tão claras e simples quanto possíveis. Renovou o sistema da lógica, distinguindo entre “invenção” e “juízo”. Definiu um método empírico para a abordagem, o exame e a compreensão das realidades criadas, de modo a não estarem mais presos às “hipóteses” do Escolasticismo. Em tudo isso, apesar de uma certa inclinação infeliz para o Racionalismo, Ramus fez um trabalho efetivo de epistemologia na tradição reformada. 1
Cp. R. Hooykaas, “Humanisme, Science et Réforme”, Free University Quartely (Amsterdã, 1958), pp. 167-294.
Delineou sistemas de aritmética, geometria e álgebra que foram usados no século 17. Adotou, sem hesitação, o sistema de Copérnico. Perto do fim de sua vida, depois de tornar-se um teólogo, escreveu Comentários Sobre a Religião Cristã. Assim, o homem que havia definido a Física como a Ciência que estuda “primeiro o céu, depois os meteoritos, os minerais, as plantas e árvores, os peixes, os pássaros, os quadrúpedes e os homens”, descobriu também, em oração e submissão obediente, a ciência que estuda a Palavra de Deus. Ramus foi morto no massacre do Dia de São Bartolomeu. Bernard Pallissy (1510-90),1 um contemporâneo de Ramus, foi um grande homem. Morreu na Bastilha, em Paris, onde teve a honra de ser preso por sua fé Reformada. Ele também substituiu os raciocínios do Escolasticismo por sua fé cristã viva e prática. Para ele, a criação é um “livro de maravilhas”, no qual palavras divinas podem ser lidas e de onde se pode extrair “uma sabedoria necessária a todos os habitantes da terra”. Em seus livros, Pallissy expressa seu louvor pelas obras de Deus e relata as descobertas científicas que Deus lhe permitiu fazer.2 Seus amplos interesses científicos conduziram-no a várias realizações notáveis. Na cerâmica, melhorou a transparência do material usado na fabricação de louça, aumentou a qualidade e a variabilidade das cores. Produziu obras de cerâmica policrômicas sarapintadas, cobrindo-as com desenhos de pedras, conchas, peixes e répteis. Suas estatuetas rústicas foram imitadas praticamente em toda parte, nos séculos que se seguiram. Fundou o primeiro curso de Geologia na Sorbonne, com lições sobre água, 1
As passagens a respeito da obra de Bernard Palissy foram tomadas de diferentes volumes da notável Encyclopaedia Universalia, in loc. (Paris, 1968ss.). 2 Palissy é autor de Traité dos Sels Divers et de l’agriculture (1553); Recepte véritable par laquelle tous les hommes de la France pourront apprendre à multipIier et augmenter leurs Thrésors (1563); e Discours admirables de la nature des eaux et fontaines (1580).
pedra e metais. Em seus estudos de Hidrologia, deu uma interpretação correta sobre o ciclo da água, especialmente no que se refere à alimentação das fontes pela chuva. Na Paleontologia, desafiou toda a orientação da Escolástica, afirmando que as conchas-fósseis eram conchas reais e que animais reais, incluindo peixes, haviam dado suas formas às pedras fósseis. Na fisiologia das plantas, observou que as plantas não absorvem apenas água e humus do solo, mas também “sais” e que alguns destes sais lhes eram benéficos. Essa foi a primeira vez que se demonstrou a nutrição mineral das plantas. Cheio de admiração com as belezas, os segredos e as múltiplas leis da criação, Palissy definiu dois alvos unificados da pesquisa científica: a glória de Deus e o bem-estar dos homens. Ambroise Paré (1509-90) foi um autodidata, apelidado de “o pai da cirurgia moderna”. Desde a idade de 20 anos, começou a praticar essa profissão necessária e difícil, por amor a Deus e ao próximo. Em cerca de trinta obras, ele escreveu tudo o que aprendera através de cuidadosas investigações.1 Na época do Massacre de São Bartolomeu, Paré estava sob a proteção do Rei Carlos IX. Brantôme (1537-1614) relata como “o rei gritava incessantemente: ‘Matem, matem!’ jamais pretendendo poupar qualquer deles, exceto o Mestre Ambroise Paré, seu mais ilustre cirurgião e o mais ilustre da Cristandade. Mandou buscá-lo para vir ao seu quarto e escondeu-o naquela noite, ordenando-lhe 1
Méthode de traiter les plaies faites par arquebuses et authres bâtons à feu et de celles faites par flèches, dards eI semblables (1545); Brève collection de l’administration anatomique avec la manière de conjoindre les os. Et d’extraire les enfants tant morts que vivants du ventre de la mère iorsque nature de soi no peut venir à son effet (1549); Méthode curative des plaies et fractures de la tête humane (1562); Dix livres de la chirurgie avec le magasin dos instruments nécessaires à icelle [alguns destes instrumentos, somente com modificações menores, ainda estão em uso hoje) (1564); Traité de la peste, de la petite vérole et rougeole [Esse livro nos fornece um estudo detalhado sobre o fenômeno do contágio.] (1568); Des animaux et de l’excellence de l’homme (1579); Le livre de la licorne [Paré demonstra que o assim denominado animal não existe.) (1580).
que não se movesse dali...” Paré teve contato com a maior parte das áreas da Medicina e da Cirurgia. Em seu prefácio “ao leitor”, no início de sua Introdução ou Ingresso em Como Alcançar um Conhecimento Verdadeiro de Cirurgia, ele escreveu: Tenho motivo para louvar a Deus pelo fato de ter ele se agradado em chamarme para a prática médica, comumente chamada cirurgia, prática que não pode ser adquirida por prata ou ouro, mas apenas pela perseverança e longa experiência... As leis da venerável Medicina não estão sujeitas às leis dos reis, ou de outros suseranos, nem a costumes, porque a Medicina tem a sua origem em Deus, a quem eu oro para que se digne abençoar esse meu empreendimento, para a sua eterna glória.
Além de tais eruditos como Palissy e Paré, eu deveria mencionar também Olivier de Serres (1539-1619), um diácono da Igreja Reformada de Berg. Ele transformou sua propriedade, em Pradel, num modelo de empreendimento agrícola e, mesmo durante as “Guerras Religiosas”, fez progressos na ciência da Agronomia. Adotou o mesmo brilhante empirismo cristão com que Palissy e Paré trabalharam em seus campos de conhecimento. Serres produziu três obras principais. A primeira foi O Coletor da Seda pela Alimentação dos Bichos que a Produzem (1559). Foi um protestante de Nimes, François Traucat, que encorajou o crescimento de amoreiras por todo o sul da França. Serres também escreveu Empreendimentos Agrícolas e Administração do Campo (1600), do qual, segundo se diz, o Rei Henrique IV gostou tanto que mandava ler umas poucas páginas para ele todas as noites. Essa obra define uma reforma minuciosa da Agricultura, mas não foi posta em prática realmente até o século 19. A terceira obra foi Um Valor Adicional da Amoreira Branca (1603). Houve também escultores e arquitetos notáveis na idade de ouro do Calvinismo francês.1 Ligier Richier (1500-67) foi chamado de o artífice mais hábil e talentoso já visto na arte de esculpir. Entre suas obras estão: a excelente Entombment, na 1
Cp. Paul Romane-Musculus, La prière des mains, Je sers (Paris, 1938).
Igreja de Saint-Etienne em Saint-Mihiel (sua cidade natal, Lorena), a estátua funerária chamada A Morte ou O Arrepio Morte, ou, ainda, O Esqueleto, para o mausoléu de René Chalon, Príncipe de Orange; e a Figura Reclinada de Filipe Gueldre, no mosteiro franciscano, em Nancy.
na da de de
Pierre Bontemps (1507-63) esculpiu as estátuas de Dauphin François e Charles d’Orleans, em oração, e os baixos relevos notavelmente precisos, representando as batalhas do reinado de Francisco I. Jean Goujon (c. 1510-65) criou os baixos-relevos dos Quatro Evangelistas e do Sepultamento de Cristo, no Museu do Louvre: baixos relevos de Guerra e Paz, no Cour Carrée; baixos-relevos de História, Vitória, Fama e A Glória do Rei nas projeções laterais da fachada; as quatro estátuas na galeria das Cariátides; e Henrique II no Caminho do Céu. Foi responsável pela bela Fonte dos Inocentes, na Praça dos Inocentes, em Paris, e pelo O Bom Pastor, um painel esculpido em madeira, que embeleza uma porta da Igreja de Saint-Maclou, em Rouen. Goujon foi um artista em gravuras, ilustrou a primeira edição francesa dos Dez Livros da Arquitetura, de Vitruve. “Meu Trabalho”, disse ele, “está de acordo com o conhecimento que Deus me deu”. Jacques Androuet Du Cerceau (1510-85) foi um arquiteto em gravura e foi autor de Os Mais Belos Edifícios da França (1576-79), um trabalho de peso, cujo terceiro volume permaneceu inacabado. Escreveu vários outros livros que exerceram uma influência maior.1 Construiu duas casas em Orleans bem como dois castelos, que já foram destruídos. Salomon de Brosse (1571-1626), neto materno de Jacques Ou Cerceau, trabalhou no castelo de Montceaux (para Gabrielle 1
Entre suas obras mais influentes estão as seguintes: Recueil de Petites Habitations (1540, 1545); Livre des Arcs (1549); Livre des Temples (1550); Vues d’optique (1551); Livre d'Architecture (1559); Monuments Antiques (1560); Second Livre d’Architecture (1561); Livres des Edifices Antiques et Romains (1564).
d’Estrées e, posteriormente, para Marie de Médicis), Verneuil, Blérancourt e Coulomniers-en-Brie. Desde 1615 ele foi o arquiteto do novo Palácio de Luxemburgo e, em 1618, da Grande Sala do Palácio da Justiça, em Paris. No mesmo ano ele auxiliou na conclusão do Edifício do Parlamento Britânico, em Rennes. Em 1623, construiu a Segunda Igreja Protestante de Charenton, que, infelizmente, foi destruída em 1685, na época da revogação do Edito de Nantes. Outros dignos de menção: Charles du Ry, que construiu o Portão Saint-Honoré, em Paris; os escultores Abraham Hideaux, Barthélémy Prieur e Slaximilien Poultrain; e os arquitetos Jacques Aleaume e Salomon de Caus. Ainda, no campo mui diversificado das artes, eu mencionaria três outros: Jacob Bunel (1558-1614), que foi um notável artista autor de retratos e pintor eminente cuja obra, infelizmente, se perdeu. Pintou a decoração de um claustro no Escurial e a grande galeria do Louvre. Também foi responsável pelos afrescos de Fontainebleau. Outro artista foi Claude Vignon (1593-1673), cuja pintura de Ester diante de Assuero ainda pode ser vista no Louvre. Teve familiaridade com Rembrandt. Abraham Bosse (1602-76) produziu extraordinariamente e ficou famoso por suas gravuras, retratando com esmero e detalhe minucioso a vida cotidiana daquela época: O Contrato de Casamento, O Jardim do Nobre Francês, O Casamento na Cidade, Oração pela Refeição, A Matança, O Mestre, As Quatro Épocas da Vida, Visita à Prisão e outros. Também escreveu Um Tratado Sobre os Métodos de Gravura em Pratos de Cobre. Além destes três, deveriam ser mencionados também compositores franceses: Louis Bourgeois (c. 1510-60) foi cantor da Catedral de São Pedro, em Genebra, e colaborou por um certo
tempo com Calvino. Compôs salmos polifônicos e escreveu O Caminho Certo da Música (1550), dando possibilidade de a música do século 16 ser compreendida e interpretada adequadamente. Claude Goudimel, que foi morto em Lyon, no dia do Massacre de São Bartolomeu, em 1572, escreveu música para todos os salmos que Clémente Marot e Theodore Beza traduziram para o francês. Compôs também vários Magnificats. O tenor quase sempre conduz a melodia (o soprano conduz a melodia apenas dezessete vezes). Goudimel, particularmente, tinha em mente, em suas composições, uma família cantando no lar. Claude Lo Jeune (c.1530-1600) foi um compositor que podia lidar com uma grande variedade de gêneros musicais. Seu estilo, cheio de vida e precisão, fez completa justiça aos salmos dos textos franceses de Marot, Beza, Baif e Agrippa d’Aubigné. Uma explosão de atividade literária, particularmente, deu testemunho da fé dos calvinistas franceses durante sua idade de ouro. Entre outras obras, as de grande valor são as Memórias, diversificadas e mesmo assim do mesmo caráter básico, de Pierre de La Place, Louis Regnier de La Planche, Antoine La Roche de Chandieu e Simon Goulart. O capitão François de la Noue (1531-91) incluiu a todos em seu Discursos Políticos e Militares (1587), capacitando-nos a reviver essa era de fé e de derramamento de sangue, e fogo. O maior escritor do período — um dos mais ilustres dos escritores franceses — é, sem dúvida, Theódore d’Agrippa d’Aubigné (1552-1630), autor de duas obras-primas: História Universal (1616-20) e Os Trágicos, um poema iniciado em 1577, quando ele tinha 25 anos, e publicado em 1641, quando tinha 64.
Agrippa d’Aubigné foi um menino prodígio. Com a idade de 6 anos, ele podia ler francês, latim, grego e hebraico e, com 8 anos, era capaz de ler textos de Platão. Como amigo e conselheiro do Rei Henrique IV, cuja renúncia ao Protestantismo ele lamentou para sempre e nunca perdoou, pôs-se a escrever, depois da morte do rei, sua História Universal que, não obstante o seu título é, de fato, a história da França Protestante, desde 1550 até 1601. Mesmo sendo um calvinista fervoroso, d’Aubigné tentou ser tão objetivo quanto possível, sempre dando prioridade ao relato preciso e detalhado dos fatos, antes das exigências do estilo. São suas as seguintes palavras: “Quando a verdade põe um punhal em nossa garganta, devemos beijar a sua branca mão, ainda que ela esteja manchada com o nosso sangue!” Les Tragiques [Os Trágicos], um poema épico que recorda Dante e antecipa Victor Hugo, que o lia e estudava com freqüência. Em uma sucessão apertada de quase dez mil linhas de poesia, seu ímpeto ainda arrasta o leitor de hoje. Um crítico do século 20, Thierry Maulnier, escreveu sobre d’Aubigné: “Nenhum outro poeta francês teve uma inspiração tão importante, pois esse fez vibrar a voz do gigante, cujo fôlego foi feito para fazer soar as trombetas dos desastres cósmicos, para convocar a reunião das nuvens do Dilúvio, para cantar a queda das muralhas cercadas, e proclamar a aurora de Josafá."1 Farel uma pausa aqui para citar as últimas quatro linhas de Les Tragiques [Os Trágicos]: Meus sentidos nada mais sentem, meu espírito de mim se evola. O coração arrebatado silencia, minha boca jaz sem palavra. Tudo morre; a alma desvanece-se e retorna a seu lar, E, em êxtase, é arrebatada para o seio de seu Deus.
1
Em Introduction à la Poésie Française, Nouvelle Revue Française (Paris, 1936).
Alimentado e formado pela Bíblia, cheio de compaixão pelo oprimido, sendo terrível em seus ataques contra poderosos, d’Aubigné é a própria essência do Calvinismo francês, o huguenote. Além de d’Aubigné, e quase com a mesma repercussão, está o Milton francês, Guillaume de Saluste du Bartas (1544-90), que se expressou em um estilo muito diferente. A Semana da Criação do Mundo, que ele publicou em 1579, é um longo poema de sete cânticos louvando o Autor desta criação e as maravilhas do universo. Um outro nome a ser mencionado é o de Antoine de Montchrestier (1576-1621) que, de modo estranho, foi ao mesmo tempo, escritor de peças trágicas e economista. Escreveu Sophonisbe, A Lacenae ou Constância, David, Aman, Hector e, em 1605, uma obra-prima de verdade: A Senhora Escocesa ou Mary Stuart. Ele foi um dos primeiros a compreender a necessidade da industrialização. Ele mesmo estabeleceu uma fábrica metalúrgica, especializada em cutelaria, em Chantillonsur-Loire. E o autor de Um Tratado de Política Econômica (1615). Entre os poetas, não deveriam ser esquecidos Simon Goulart, Jean Tagaut, Christophe de Gamon e Bernard de Montmeja, uma vez que todos eles louvaram as maravilhas da criação de Deus, descreveram a grande miséria da raça humana caída, e exaltaram a obra salvadora do único e perfeito Mediador. AlbertMarie Schmidt, grande crítico, escreveu sobre estes discípulos de Calvino, dizendo que eles “integravam, em suas próprias personalidades, as doutrinas de seu mestre, a ponto de seus poetas harmonizarem a simplicidade natural de testemunho com a precisão exigida em toda reflexão teológica. Essa mistura de perfeição estética, rigor dogmático e humildade confiante é
absolutamente singular na história da poesia francesa.1 Assim, durante um século, de 1533 a 1633, a França podia contar centenas de milhares de filhos e filhas espirituais de João Calvino. Eles procuraram celebrar a glória do Deus criador e salvador em todas as áreas da vida, para a alegria da Igreja que havia sido reformada de acordo com a sua Palavra.2
1
Cp. Albert-Marie Schmidt, Jean Calvin et la Tradition Calvinienne, Editions du Seuil (Paris. 1957). 2 Cp. Émile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme (Paris: Presses Universitaires de France, 1961), vol. 1-2; Auguste Lecert, Etudes Calvinistes (Paris: Delachaux et Nièstlè, 1458); Raoul Stephan, Histoire du Protestantisme Français (Paris: Club des Libraires de France, 1961).
Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos W. Robert Godfrey
W. Robert Godfrey é Professor de História da Igreja no Westminster Theological Seminary, na Califórnia. É graduado pela Stanford University (A.B., M.A., Ph.D.) e pelo Gordon Conwell Theological Seminary (M.Div.) e ministro da Igreja Cristã Reformada. Dr. Godfrey tem escrito artigos para a Archive for Reformed History e para o Westminster Theological Journal e escreveu um volume da obra Discord, Dialogue, and Concord. É membro da American Historical Association e da American Society for Reformed Research.
CAPÍTULO 5
CALVINO E O CALVINISMO NOS PAISES BAIXOS
O Calvinismo penetrou e influenciou os Países Baixos tanto quanto em qualquer outro país do mundo, se não mais. Os Países Baixos têm sido um centro de vida, pensamento e renovação calvinista, e os calvinistas holandeses têm trazido várias contribuições à comunidade da Reforma ao longo dos séculos. Os calvinistas holandeses nos proporcionaram um modelo de coragem e fidelidade na luta da Holanda pela sua independência da Espanha, no século 16. Eles confrontaram e responderam à ameaça da teologia arminiana no grande Sínodo de Dort, no princípio do século 17. Proferiram palavras proféticas oportunas à sociedade pós-revolucionária da Europa moderna, do século 19 ao século 20 pela obra de Guillaume Groen van Prinsterer e Abraham Kuyper. O Calvinismo holandês recente tem inspirado os esforços filosóficos e enciclopédicos de Herman Dooyeweerd. Cada uma dessas contribuições, juntamente com muitas outras, constituíram o tecido do Calvinismo holandês. Esse estudo procurará examinar alguns dos modos pelo qual esse tecido tem sido composto ao longo dos séculos. Desde o primeiro impacto do próprio Calvino, esse estudo investigará o padrão que se desenvolveu a partir da Reforma Calvinista da Igreja e da Sociedade dos Países Baixos.
A Reforma antes do Calvinismo O padrão da Reforma nos Países Baixos foi estabelecido de várias maneiras por sua história política e religiosa característica. Politicamente, no século 16, os Países Baixos eram compostos de
dezessete províncias situadas na área da atual Bélgica, Holanda e Norte da França. Essas províncias, conhecidas como Países Baixos ou Bélgica, estavam ligadas por uma participação comum em um Parlamento e por laços culturais, étnicos e econômicos. Por volta da metade do século 16, cada uma das províncias reconheceu como seu soberano a Carlos V, o Santo Imperador Romano e rei da Espanha. Uma preocupação pela reforma religiosa da Igreja Católica Romana tinha profundas raízes nos Países Baixos já antes do começo da Reforma. Encontramos manifestações em favor da necessidade de uma reforma já no século 14, quando Jan van Ruysbroeck expressou sua preocupação por uma renovação entre os cristãos em termos de um relacionamento místico com Deus. Seu maior pupilo, Geert Groote (1340-84), formou a comunidade conhecida como Irmãos da Vida Comum, que enfatizava a vida cristã prática em devoção a Cristo. Os Irmãos baseavam seu ethos em princípios monásticos, mas não ligavam ninguém à comunidade através de juramento. Seu compromisso com o valor da educação para a vida cristã fica evidente, na tarefa de copiar manuscritos e estabelecer escolas. O ambiente espiritual fomentado pelos Irmãos deu à luz a grande obra devocional de Thomas à Kempis, A Imitação de Cristo (1418). A ênfase da Imitação sobre a relação espiritual e interna entre a alma e Cristo, e sobre a importância da vida moral, permaneceu como característica da maioria dos movimentos reformistas dos Países Baixos. Mesmo assim, na obra de Wessel Gansfort (1419-89), também influenciada pelos Irmãos da Vida Comum, havia um elemento adicional de preocupação pela reforma doutrinária. Ele parecia ter uma visão mais espiritual sobre a Ceia do Senhor, e Lutero considerou Gansfort como um precursor de seu ensino sobre a justificação. No despontar da Reforma, os Irmãos ajudaram a educar o grande erudito humanista, Desiderius Erasmus (c.1469-1536). Erasmus também tinha uma visão de uma igreja reformada na qual floresceria uma
piedade mais espiritual, moral e bíblica. A longa história de chamadas para uma reforma positiva e para a correção de abusos na igreja deu fundamento à preocupação sobre a qual a Reforma Protestante construiria com tanto sucesso. Por essa razão, a pronta reação a Martinho Lutero, nos Países Baixos, tanto negativa quanto positiva, não foi surpreendente. Em novembro de 1519, por exemplo, a Faculdade Teológica da Universidade de Louvam tornou-se o primeiro grupo da Europa a condenar o ensino de Lutero. Por outro lado, dois monges agostinianos defenderam zelosamente a reforma de Lutero e tornaram-se dos primeiros mártires da causa, ao serem queimados em Bruxelas, em 1523. As divisões entre defensores e oponentes da Reforma, nos Países Baixos, se intensificaram ao longo do século 16 e o governo católico-romano de Carlos V e de seu filho e sucessor, Filipe II da Espanha, ordenou o que se tornou uma das mais severas perseguições dos protestantes na Europa. Se a resposta a Lutero foi rápida nos Países Baixos, ela não foi amplamente difundida. O Luteranismo nunca veio a ser ali um movimento amplo e popular. Igualmente, não o foi a segunda manifestação do Protestantismo nos Países Baixos, o sacramentarianismo. O sacramentarianismo atraiu uma pequena elite humanista e continuou a ser mais uma abordagem erasmiana da Reforma. A influência mais importante desse movimento deuse através do estadista Cornelius Hoen, que escreveu “A Carta Mais Cristã”. Nessa carta, ele propôs uma visão espiritual e memorial da Ceia do Senhor, que foi rejeitada por Lutero, mas influenciou grandemente a Ulrich Zwínglio em sua teologia eucarística. A primeira expressão do Protestantismo que conquistou um grande número de seguidores holandeses foi o Anabatismo. Vários líderes proeminentes anabatistas vieram dos Países Baixos, desde seguidores revolucionários de Melchior Hoffman, tais como Jan Matthys de Haarlem e Jan Beuckelszon de Leiden, que liderou a
revolta em Mürister, aos pacifistas David Joris e Menno Simons. Estes primeiros anabatistas deixaram profundas raízes no povo dos Países Baixos e suportaram o auge da perseguição das autoridades católico-romanas. O Anabatismo foi a forma dominante do Protestantismo nos Países Baixos, nos anos 1530 e 1540, mas ulteriormente o Calvinismo suplantou o Anabatismo como a expressão mais popular da Reforma nos Países Baixos.
O Contato de Calvino com os Países Baixos João Calvino (1509-64) foi um francês que passou seus anos mais criativos em Genebra. Contudo, sua preocupação pela Igreja de Jesus Cristo não se limitava à França e à Suíça. Sua volumosa correspondência dá testemunho de sua preocupação com o avanço da causa da Reforma pela Europa, incluindo os Países Baixos. Na verdade, através de ligações pessoais, ele teve contatos íntimos com os Países Baixos. Durante seu exílio em Estrasburgo, Calvino veio a conhecer muito bem o holandês Johannes Sturm. Em Genebra, em diferentes ocasiões, ele encontrou-se com vários líderes da reforma holandesa: Peter Dathenus, Guido De Brès, Philipp Marnix van St. Aldegonde, Franciscus Junius, Jean Taffin, e Pierre Loiseleur de Villiers. Além desses contatos, o próprio Calvino tinha afinidades étnicas com os Países Baixos. Sua mãe e sua esposa nasceram nos Países Baixos, sua mãe em Cambrai, e sua esposa em Liège. Calvino nasceu na Picardia, uma província francesa que faz fronteira com os Países Baixos. Sua cidade natal, Noyon, ficava a apenas cinqüenta quilômetros da fronteira da Bélgica. Em uma carta a Heinrich Bullinger, Calvino inclusive observou: "eu também sou um belga".1 Calvino também estava envolvido no envio do primeiro pregador calvinista, de que se tem notícia, para os Países Baixos. No fim de 1544, Calvino instou com Pierre Brully para que fosse pregar em Tournai e Valenciennes. Calvino tinha conhecido 1
Citado em Emile Leonard, A History of Protestantism (Londres: Nelson, 1967), 2:80.
Brully em Estrasburgo e Brully sucedera a Calvino como pastor da igreja francesa de refugiados daquele local. Brully tinha pregado por apenas três meses nos Países Baixos, quando foi capturado e queimado vivo por causa da sua fé. Mas, sua obra corajosa de construir uma Igreja Visível iniciou uma penetração lenta, porém constante do movimento da Reforma na parte sul dos Países Baixos. A influência de Calvino nos Países Baixos, entretanto, não foi limitada a contatos pessoais. Seus escritos, famosos e amplamente distribuídos foram igualmente muito importantes para disseminar a fé da Reforma. A edição definitiva das Institutas foi traduzida para o holandês em 1560 e foi, provavelmente, após Decades de Bullinger, o livro mais influente ali publicado por um reformador. Calvino também escreveu vários tratados especificamente para os Países Baixos. Três deles — escritos respectivamente em 1543, 1544 e 1562 — discutiam como um fiel deveria viver entre os papistas. Dois outros tratados analisaram o Anabatismo e o Espiritualismo, pois estes constituíam ameaças ao movimento da Reforma nos Países Baixos. Sua primeira obra dirigida aos Países Baixos foi seu tratado de 1543: Um Pequeno Tratado Mostrando como o Fiel, que Conhece a Verdade do Evangelho, Deve Proceder quando Está entre os Papistas. Essa obra advertia contra uma conformidade exterior com o Catolicismo romano ao passo que, interiormente, se adotava a Reforma. A visão de vida cristã de Calvino expressa nesse tratado, deixou um profundo impacto nas igrejas reformadas holandesas. O argumento de Calvino, nessa obra, é bem claro. As cerimônias da Igreja Romana, incluindo a missa, batismo, peregrinações, orações pelos mortos e as imagens, eram idólatras. Calvino instou com o verdadeiro cristão para que fugisse da idolatria não apenas em seu coração, mas também em suas ações externas. Esse mandamento tornou-se característico do
Calvinismo holandês: “Minha doutrina é que o fiel deve santificar-se e se consagrar a Deus, tanto no seu corpo como no seu espírito...”1 Para apoiar seu ensino, Calvino referiu-se duas vezes a Romanos 10.9,10. Servir a Cristo com o coração, mas não com o corpo, é “prudência carnal".2 Isso não era correto para o verdadeiro cristão: “Pois se o coração é bom, ele produzirá seus frutos exteriormente".3 Calvino insistia em que a verdadeira confiança em Deus faria com que tal difícil obediência se tornasse possível: “Deus ama, acima de todas as coisas, essa confiança: que ao observarmos seus mandamentos nós confiemos o fim à sua providência, e que nisso nosso espírito descanse."4 Ele insistia em que apenas o martírio ou o exílio eram as opções do cristão fiel quando forçado a se conformar à idolatria. Ele declarou apaixonadamente: “Vocês dizem que são forçados. Vocês pensam, então, que ele (Deus) não estima a sua glória muito mais do que suas vidas?."5 Nesse tratado, Calvino estabeleceu o que viriam a ser guias para o programa das igrejas reformadas holandesas. A vida tem de ser vivida para a glória de Deus, qualquer que seja o preço. O verdadeiro cristão tem de enfrentar qualquer perigo com confiança absoluta na providência de Deus. Ele tem de estar comprometido com a verdade da doutrina da Reforma, e tem de dar expressão visível à sua fé, quaisquer que sejam as conseqüências. Essa visão da Igreja Reformada, disciplinada e militante, permanece no cerne do ideal abraçado por vários calvinistas dos Países Baixos, um ideal que orientou suas ações por séculos a fio.
1
João Calvino, “Petit Traicté monstrant que c’est que doit faire un homme fidèle cognoissant la verité de l’évangelie, quant it est entre las papistes”, Corpus Reformatorum, vai. 34 (Brunswick, 1867), col. 566. 2 Ibid., col. 572. 3 Ibid., col. 580. 4 Ibid., col. 571. 5 Ibid., col. 568.
As Igrejas sob a Cruz É difícil determinar o caráter e o crescimento das congregações da Reforma nos Países Baixos dos anos 1540 até os anos 1560. Essas congregações estavam “sob a cruz”, isto é, sofrendo perseguição. Muitas de suas atividades eram secretas e sobreviveram poucos registros pelos quais o historiador possa reconstruir a situação. Entretanto, dois pontos sobre esse período estão claros. Primeiro, havia diferenças significativas dentro da comunidade da Reforma sobre práticas e doutrinas. O tratado de Calvino sobre a obrigação cristã de praticar abertamente a fé foi rejeitado por alguns como sendo muito rigoroso e severo, enquanto que outros advogavam a posição de Calvino para a Igreja. Sobre assuntos doutrinários, havia aqueles que esposavam uma teologia mais erasmiana, ao passo que outros seguiam o avançado agostinianismo de Calvino. As tensões entre os às vezes denominados “a Reforma nacional” e os calvinistas estritos continuaram ao longo do século 16 e manifestaram-se novamente na controvérsia arminiana. Os calvinistas estritos parecem ter sido uma maioria considerável, mas, em dias de perseguição, eles foram incapazes de alcançar uma uniformidade na doutrina ou na prática da comunidade reformada. Em segundo lugar, está claro que o crescimento do movimento da Reforma, tanto em número quanto em organização, foi significativo nessas décadas, apesar da perseguição. O maior crescimento numérico foi no sul, especialmente nas províncias de Flandre e Brabante. A penetração para o norte (a Holanda de hoje) veio mais lentamente e não pode ser claramente identificada até os anos 1560. Conforme o movimento se alastrava, havia esforços para organizar as congregações tanto internamente como em suas relações mútuas. Havia uma comunicação e apoios mútuos através
de um sistema sinodal limitado. Mas, um estudo recente mostrou que essa organização era bem mais limitada do que os eruditos anteriormente pensavam.1 O Calvinismo não se tornou num partido revolucionário altamente disciplinado. A pregação pública, amplamente difundida, a pregação itinerante e a onda de iconoclastia que varreu os Países Baixos, em agosto de 1566, não foram o resultado de um planejamento bem orquestrado da Reforma. Os pregadores de defesa eram tanto freqüentemente leigos itinerantes quanto ministros, e os ministros da Reforma estavam divididos entre si acerca da adequabilidade da violência iconoclasta. Todavia, o final dos anos 1560 e o início dos anos 1570 observaram um movimento significativo em direção à organização maior e à disciplina doutrinária entre os reformados holandeses. Foram feitos esforços determinados para realizar a visão que Calvino tinha da igreja. Em 1568, um grupo de calvinistas holandeses reuniu-se em Wesel para uma conferência sobre a Igreja. Embora realmente não fosse um Sínodo, a conferência adotou artigos influentes para orientar a Igreja. Esses artigos foram intitulados: “Certos capítulos ou artigos que os ministros da Igreja Holandesa julgaram ser parcialmente necessários e parcialmente úteis para o ministério da igreja”. A preocupação pela unidade e bem-estar da Igreja Reformada culminou na convocação do primeiro Sínodo Nacional da Igreja, que se reuniu em Emden, na Frísia Oriental, em 1571. Esse Sínodo estabeleceu oficialmente os fundamentos para a ordem eclesiástica das igrejas reformadas holandesas. Baseados na conferência de Wesel e na estrutura da Igreja Reformada Francesa, os atos do Sínodo de Emden demonstraram o zelo da Reforma pela ordem e pela disciplina na vida da Igreja. O segundo artigo declara que os participantes subscreveram tanto a Confissão Belga como a Confissão Francesa, para testificar de sua unidade mútua, 1
Phyllis Mach Crew, Calvinist Preaching and Iconoclasm in the Netherlands, 1544-1569 (Londres: Cambridge University Press, 1978).
e com os franceses em seu compromisso para com a fé reformada. O artigo 4 convoca todos os ministros presentes e futuros para, igualmente, assinarem as Confissões. O artigo 5 requisita o uso do Catecismo de Genebra nas igrejas de fala francesa e do Catecismo de Heidelberg nas igrejas de fala holandesa, embora o Sínodo permitisse que outros catecismos, que se conformassem à Palavra de Deus, continuassem ser usados nas igrejas onde já haviam sido adotados. Os próximos artigos tratam da estrutura organizacional da Igreja. O artigo sexto requer que cada igreja tenha um consistório composto por um ministro, anciãos e diáconos, e que o consistório se reúna pelo menos semanalmente. O artigo 7 convoca para encontros de instrução a cada três ou seis meses. Conforme o artigo 8, os Sínodos regionais deveriam acontecer anualmente. O artigo 9 afirma: “Finalmente, será efetivada uma assembléia de todas as igrejas holandesas, conjunta-mente, a cada dois anos."1 A intenção do Sínodo de Emden foi a de claramente erigir uma estrutura sinodal completa para a Igreja. O Sínodo de Emden não convocou a Igreja para uma disciplina apenas em termos de organização, mas, também, em termos de supervisão sobre a vida dos membros das igrejas. Os artigos 25-34, sobre a Ordem da Igreja, enfatizavam a obrigação da disciplina moral como parte da chamada do ministro e delinearam o modo de se lidar com pecados públicos e privados; as etapas da disciplina levavam, caso necessário, à excomunhão; a disciplina de oficiais que não desempenhassem adequadamente suas funções também era abordada. A adoção da Confissão Belga e dos Catecismos, como padrões doutrinários para a Igreja pelo Sínodo de Emden, teve uma importância especial para regular o ensino na Igreja. O Sínodo endossou a Confissão Belga, que fora escrita em 1559 e 1
Akten der Synode der Niederlaendischen Kirchen zu Emden vom 4-13 Oktober 1571, herausgegeben von J. F. G. Goeters (Neukirchen-Vluyn: Naukirchen Verlag, 1971), p. 18.
revisada para distribuição em 1561, por Guido De Brès. A Confissão foi significativamente modelada pela Confissão Francesa de 1559, que fora escrita sob a supervisão de João Calvino. A Confissão Belga deveria ser um resumo da fé reformada para instruir os de dentro da Igreja e para informar os de fora da Igreja. Com ela, De Brès procurou diferenciar a Reforma claramente, especialmente dos anabatistas, que eram objeto de muita desconfiança popular e oficial. Ele procurou demonstrar o caráter bíblico e católico do Cristianismo Reformado. A teologia da Confissão Belga é distinguida em muito pouco da Confissão Francesa, exceto nas observações sobre a Igreja. A Confissão Belga, seguindo o tema do primeiro tratado de Calvino aos Países Baixos, enfatizou a importância da Igreja e de sua disciplina face à oposição. O artigo 28 insiste: “É obrigação de todos os crentes... unir-se a essa congregação, onde quer que Deus a tenha estabelecido, mesmo que os magistrados e os editos dos príncipes a ela sejam contrários; sim, mesmo que devam sofrer morte ou punição corporal”. Em acréscimo, De Brès afirma que existem três características da verdadeira Igreja: a pregação fiel da palavra, a administração fiel dos sacramentos, e o exercício fiel da disciplina.1 Embora Calvino, freqüentemente, tenha mencionado a importância da disciplina na Igreja, a Confissão Francesa não faz da disciplina uma característica da Igreja. A Confissão Belga, portanto, foi mais além ao enfatizar a importância da Igreja, de sua disciplina e da expressão visível da fidelidade. O Catecismo de Heidelberg, igualmente mencionado pelo Sínodo de Emden, veio a ocupar um lugar importante na Igreja Reformada Holandesa. Esse catecismo, preparado no Palatinado por Zacarias Ursinus e Gaspar Olevianus, em 1563, trouxe uma apresentação pastoral e calorosa ao Calvinismo. Algumas das ênfases peculiares do Calvinismo, especialmente a da predestinação, não são proeminentes nesse catecismo. Porém uma 1
Confissão Belga, Artigo 29.
perspectiva fortemente calvinista permeia a obra. Através de seu ensino regular aos jovens, e de sua pregação às congregações, os ministros da Reforma fizeram dela uma ferramenta importante para imprimir a fé da Reforma nos holandeses. Não há estimativas confiáveis sobre as dimensões do movimento da Reforma nos Países Baixos, quando seriamente irrompeu a Revolta contra a Espanha, em 1572. Mas, claramente, ainda era uma pequena minoria, mesmo nas áreas em que era mais forte. Mesmo assim o zelo e devoção de seus adeptos lhe conferiram uma importância muito maior que seus números. A caminho da unidade na organização e de confissão, o movimento já tinha demonstrado sua força de caráter na honradez de seus mártires (incluindo Guido De Brès), e no ativismo de seus adeptos (na pregação pública e no cântico noturno de salmos).
A Igreja num Estado Novo Para acompanhar o desenvolvimento do Calvinismo holandês é essencial entendermos a situação política na qual ele se formou. Em 1566, o ano da iconoclastia, havia uma reação política importante contra as políticas econômica, administrativa e religiosa do Rei Filipe, nos Países Baixos. Alguns da baixa nobreza formaram uma aliança e pediram a Filipe que restaurasse os antigos privilégios dos Países Baixos e acabasse com a opressão religiosa. Em resposta, Filipe enviou o Duque de Alba com tropas espanholas para subjugar a oposição; nas escaramuças de 1568, Alba obteve sucesso. Porém, em 1572, quando irrompeu seriamente a revolta liderada por Guilherme de Orange, a situação tornou-se mais difícil para Filipe. Ele encontrou dificuldade para conseguir que novas tropas entrassem nos Países Baixos porque os rebeldes controlavam todos os portos. Para avolumar ainda mais seus problemas, Filipe sempre enfrentava escassez de dinheiro para pagar as tropas que já estavam na ativa, e assim mantê-las lutando.
Embora ajudados pelas dificuldades de Filipe, Guilherme e os rebeldes foram obstruídos por seus próprios problemas. Eles tinham pouco dinheiro para custear a revolta e contavam com poucos aliados. Toda a Europa temeu a Espanha e considerou que seria apenas uma questão de tempo até que a revolta fosse controlada. Outras potências estavam relutantes em apoiar os rebeldes. Os príncipes alemães luteranos se recusaram a apoiar a revolta, a não ser que os líderes concordassem em assinar a Confissão de Augsburgo. O contingente calvinista militante na revolta não concordaria com essa condição. As esperanças de apoio francês sucumbiram com Gaspard de Coligny, que pereceu no massacre do Dia de São Bartolomeu. Elizabeth, da Inglaterra, ofereceu um apoio limitado com algumas tropas e recursos, mas desejava realmente dar apoio moral, que era menos dispendioso e menos comprometedor. Apesar das dificuldades com que se deparava, Guilherme tinha claros em sua mente os objetivos da revolta. Ele desejava reconquistar os antigos direitos dos Países Baixos prometidos no juramento de coroação de seu soberano, e também buscava o fim da perseguição religiosa. Ele procurava conquistar esses alvos e evitar que a revolta se tornasse uma cruzada protestante que apenas alienaria a nobreza holandesa, que ainda era, em sua grande maioria, católico-romana. Mas, por outro lado, Guilherme reconhecia realisticamente que a parte principal de seu apoio provinha da comunidade reformada dos Países Baixos. Para conseguir seus objetivos, Guilherme precisava manter unida a tênue aliança dos nobres católico-romanos com os zelotes reformados. Inicialmente, a revolta foi conduzida em nome do rei, mas, em 1581, essa ficção legal foi abandonada quando o Parlamento, constituído por representantes das províncias, abjurou da soberania de Filipe. Por algum tempo, o Parlamento procurou, sem sucesso, por um soberano. Porém, em 1584, as Províncias Unidas
(basicamente compostas pelas sete províncias nortistas da Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Gelderlândia, Overijssel e Groningen) tornaram-se, de fato, uma república. Elas estavam unidas conjuntamente pela União de Utrecht de 1579, que não fora escrito como uma constituição, mas como uma aliança defensiva, que Guilherme esperara unisse todas as dezessete províncias. As Províncias Unidas se desenvolveram como república em resposta às exigências da guerra com a Espanha, que se arrastou até 1608, quando as Províncias Unidas conquistaram, de fato, a independência. Dessa forma, o novo Estado holandês, nascido das necessidades de momento, formou-se com várias contradições internas e não resolvidas. Por exemplo, em seu devido tempo, o filho de Guilherme, Maurício, recebeu o título oficial de Stadhouder (algo como vice-rei) de diversas províncias. Mas o papel constitucional do Stadhouder, na ausência de um monarca, nunca foi claramente definido. Outro exemplo é a posição de John Oldenbarnevelt. Pouco após a morte de Guilherme, em 1584, a maioria do poder político real passou para as mãos de Oldenbarnevelt, que era Patrono da Holanda. O cargo de Patrono tinha pouco poder constitucional ou posição oficial, mas através do exercício de suas habilidades e qualidades políticas Oldenbarnevelt tornou-se o cabeça oficial do governo. Uma situação dominante, com tanta ambigüidade constitucional, certamente produziria tensões, e o choque entre Maurício e Oldenbarnevelt, no século 17, acerca da questão arminiana, foi inevitável. Se as instituições políticas dos Países Baixos tinham ambigüidades, o status da Igreja Reformada, nas Províncias Unidas, era igualmente incerto. O artigo 13 da União de Utrecht declarava que a religião era assunto para que cada província decidisse e reconhecia os direitos legais da Igreja Reformada explicitamente apenas na Holanda e na Zelândia. A União também declarava que questões importantes que afetassem todas
as províncias somente poderiam ser decididas no Parlamento por voto unânime. O Parlamento aplicava essas prescrições da União à convocação de Sínodos nacionais, uma decisão que limitava seriamente a independência da Igreja no exercício da disciplina. Apesar do conflito potencial entre o novo Estado e a Igreja, sobre a convocação de Sínodos nacionais, a Igreja Reformada rapidamente veio a dominar as atividades religiosas das províncias, com um poder bastante desproporcional a suas dimensões. No final do século 16, o exercício público da religião católico-romana fora posto na ilegalidade em todas as Províncias Unidas. Mesmo assim, a Igreja Reformada continuou sendo uma minoria. Até 1610, mesmo nos centros fortes da Reforma (Holanda e Zelândia), a maioria da população permaneceu fora da Igreja Reformada. Não foi antes de 1650 que pelo menos 50% da população das Províncias Unidas veio a pertencer à Igreja Reformada, e somente em 1800 o índice chegou a alcançar 60%. O poder da Igreja Reformada e a íntima cooperação em alguns assuntos, entre Igreja e Estado, não significaram que a Igreja tivesse oficialmente se tornado uma Igreja estatal. Conquanto a cooperação entre Igreja e Estado fosse estreita, em certos assuntos, continuou a haver tensões sobre questões de disciplina doutrinária. O Estado, freqüentemente, procurava controlar a vida da Igreja de acordo com as posições de Thomas Erastus, enquanto que a maioria dos líderes da Igreja buscava obter uma ampla independência para a Igreja, especialmente em questões de disciplina. Aqui, a Igreja Reformada dos Países Baixos demonstrou ser uma verdadeira filha de Calvino. A Igreja desejava encontros regulares de Sínodos que tivessem o direito de julgar a ortodoxia dos que exercem cargos. Mas o governo, às vezes, bloqueava essa disciplina. Tal interferência ocorria mais freqüentemente em nível local ou provincial. Por exemplo, em 1591, Herman Herbertsz, um ministro em Gouda, foi suspenso pela Igreja, mas as autoridades locais o mantiveram em seu posto até que ele se reconciliasse com as autoridades da Igreja, em 1593.
Por trás dessa interferência local está a insistência contínua do governo no sentido de que problemas maiores da Igreja deveriam ser resolvidos somente em Sínodos Nacionais, e que tais Sínodos somente poderiam ser convocados por voto unânime do Parlamento.
Armínio e a Confrontação As tensões entre a Igreja e o Estado, nas Províncias Unidas, permaneceram relativamente pequenas no século 16. Contudo, as diferenças acerca de questões disciplinares deixaram um potencial para uma divisão profunda e uma confrontação aguda na sociedade holandesa. Esse potencial veio à tona na controvérsia arminiana — um conflito tão amargo que levou as Províncias Unidas à beira da guerra civil. Em 1603, Jacobus Arminius (1560-1609) foi indicado para uma cadeira de Teologia na Universidade de Leiden. Essa indicação despertou alguns protestos esparsos por parte da Igreja. Leiden tornara-se uma universidade reformada importante e internacionalmente reconhecida. A Igreja estava preocupada em manter uma ortodoxia inquestionável naquela Faculdade Teológica. Superficialmente, Armínio parecia ser confiável. Ele tinha estudado em Genebra, retornou com uma excelente carta de recomendação em mãos, de Theodore Beza, e serviu muito bem como pastor em Amsterdam. Porém, alguns ministros levantaram questões acerca de sua teologia. Em alguns sermões sobre Romanos 7 e 9, ele fizera referências a posições sobre a vontade dos não-regenerados e sobre a predestinação, posições que perturbaram a alguns. Em 1603, Franciscus Gomarus, um calvinista estrito e, após a morte de F. Junius e L. Trelcatius, vitimado pela peste, o único membro sobrevivente da Faculdade Teológica de Leiden, ofereceu-se para entrevistar Armínio. Após a entrevista, Gomarus declarou que estava completamente satisfeito com as posições de Armínio e esse foi empossado na
universidade. Entretanto, dentro de um curto espaço de tempo, começaram a circular rumor na universidade acerca do ensino de Armínio. Em 1605, o Sínodo local procurou investigar, mas foi impedido de fazê-lo pelas autoridades universitárias. No mesmo ano, todos os Sínodos provinciais exigiram a convocação de um Sínodo Nacional para investigar o assunto, mas o governo recusou-se a convocar um Sínodo para esse propósito. Ao invés disso, Oldenbarnevelt organizou conferências não-eclesiásticas em 1608 e 1609, nas quais ele esperava que as discussões pudessem resolver os problemas. Os calvinistas estritos insistiam em que Armínio tinha-se desviado seriamente da ortodoxia calvinista, nos assuntos de justificação e eleição. Foram lançadas contra Arminio acusações de Socinianismo, Pelagianismo e simpatia ao papismo. A controvérsia foi suspensa apenas temporariamente pela morte de Armínio em 1609. A teologia de Armínio frustrou uma análise completa no início do século 17, pois muitos de seus escritos importantes não tinham sido publicados. Em retrospectiva, suas posições não eram nem socinianas nem pelagianas, mas, efetivamente, diferiam da ortodoxia reformada confessional. Ele estava preocupado em sustentar a bondade e a misericórdia de Deus. Ele temia que o supralapsarianismo tendesse a fazer de Deus o autor do pecado. Ele desejava enfatizar a importância da fé e da santidade, na vida cristã, e temia que alguns elementos da teologia calvinista corroessem a moralidade. Em sua obra, Um Exame do Tratado de William Perkins a Respeito da Ordem e do Modo da Predestinação (escrita em 1602), ele demonstrava sua abordagem nãocalvinista da eleição. Ele escreveu: “Em segundo lugar, afirma você que ‘a Eleiçao divina é o poder de dar ou retirar a fé. Por essa razão, a Eleição não pertence aos crentes, mas antes a fé pertence ao eleito, ou vem pelo dom da Eleição’. Você me permitirá negar isso, e pedir apresentação de provas, mas eu advogo a causa daqueles cujo sentimento você confronta aqui. A
Eleição é feita em Cristo. Mas ninguém está em Cristo, a não ser que seja um crente. Por essa razão ninguém é eleito em Crísto a não ser que seja crente."1 Ele também questionava se a graça especial e operante era necessária para que alguém chegasse à fé, e igualmente desafiou a doutrina da perseverança.2 A morte de Armínio apenas adiou a erupção da controvérsia na Igreja. Na verdade, seus seguidores continuaram a trabalhar resolutamente pela tolerância de suas posições dentro da Igreja. Um grupo de quarenta e três ministros arminianos, liderados por John Uytenbogaert, encontrou-se, em 1610, para redigir uma petição, um protesto ao Estado da Holanda, pedindo proteção para suas posições. Eles expuseram suas posições em cinco pontos, declarando, primeiramente, que Deus não elegeu indivíduos, mas antes o grupo daqueles que crêem e obedecem; segundo, que Cristo morreu por todos os homens e por cada homem; terceiro, que a fé é um dom de Deus e, quarto, que se pode resistir ao dom da fé; quinto, que eles estavam em dúvida acerca da doutrina da perseverança. Esse documento despertou uma reação veemente da parte dos calvinistas estritos, que produziram uma declaração de sete pontos a que denominaram Contra-Protesto. A partir desse ponto os dois grupos se tornaram amplamente conhecidos por seus contemporâneos dos Países Baixos como Protestantes e ContraProtestantes. O governo continuou sua tentativa de lidar com a situação através de conferências, mas tanto a Igreja quanto a sociedade apenas polarizaram-se mais acerca da questão. Os ContraProtestantes (os arminianos) incluíam a grande maioria dos ministros e dos membros da Igreja. Os Protestantes (calvinistas restritos) representavam uma pequena minoria que era protegida pelo governo, especialmente por Oldenbarnevelt e por outros que promoviam as perspectivas erastianas (de Tomas Erastus) dos importadores da Holanda. 1 2
James Arminius, The Writings of James Arminius (Grand Rapids: Baker, 1977), 3:489. Ibid., ps. 481, 491, 509.
Os calvinistas estritos experimentaram uma frustração crescente acerca da controvérsia arminiana. Eles acreditavam que os arminianos negavam verdades básicas do Evangelho, comprometendo a ortodoxia de suas igrejas, e que o governo estava impedindo os líderes da igreja de cumprirem com seu direito e responsabilidade de disciplinar os transgressores doutrinários. Em algumas cidades, os calvinistas tomaram a iniciativa extraordinária de se retirarem das igrejas de pregadores arminianos, e de visitarem cidades vizinhas ou de manterem seus próprios cultos de pregação, fora dos muros da cidade. As tensões, em algumas cidades, eram tão grandes que irromperam revoltas. Em 1615, alguns ministros começaram a falar sobre a organização de Sínodos secretos e a se retirarem da Igreja dominada pelo Estado. A polarização da sociedade holandesa parecia ser completa quando, em julho de 1617, o Príncipe Maurício identificou-se abertamente com a causa Contra-Protestante, ao recusar-se continuar a freqüentar a Igreja da Corte, em Hague, onde Uytenbogaert era o pregador. Até esse ponto, Maurício não tinha estado ativamente envolvido na controvérsia teológica que assolava as igrejas. Seu primo, Guilherme Louis, da Frísia, estivera questionando os méritos da causa calvinista, mas, provavelmente, as considerações de natureza política foram mais influentes com relação a Maurício. Esse vira na controvérsia uma oportunidade de conquistar vantagem política sobre seu rival Oldenbarnevolt, com quem já contendia acerca da questão da paz com a Espanha. Maurício desejava que a guerra continuasse até que o país fosse novamente unificado, enquanto que Oldenbarnevelt desejava uma paz permanente com a Espanha, para o bem das boas relações comerciais das Províncias Unidas. Maurício apoiou a convocação de um Sínodo Nacional para tratar do problema arminiano e, em novembro de 1617, o Parlamento votou (com quatro votos contra três) pela convocação
desse Sínodo. A Holanda insistiu em que era necessário o voto unânime, e que a ação da Parlamento era destituída de validade. Quando Maurício começou a fazer pressão militar sobre o governo, Oldenbarnevelt ameaçou levantar um exército civil para lutar contra o príncipe. A ameaça de guerra civil deixou de existir quando Maurício prendeu Oldenbarnevelt, em 29 de agosto de 1618. Vários líderes da causa Protestante (calvinista) deixaram o país. Com Maurício plenamente no controle, o decreto do Parlamento, do ano anterior, entrou em vigor imediatamente e o Sínodo Nacional foi convocado para reunir-se em Dordrecht (Dort), em novembro de 1618.
O Sínodo de Dort Os calvinistas holandeses foram sensíveis ao argumento dos Contra-Protestantes no sentido de que eles não receberiam um tratamento justo no Sínodo Nacional, pois alegavam que foram somente problemas locais de personalismos que causaram o conflito. Por essa razão, para assegurar e para demonstrar a lisura dos procedimentos, os holandeses decidiram convidar delegações de igrejas reformadas irmãs de toda a Europa, para participarem como membros plenos do Sínodo. O Sínodo foi constituído por delegações ou colégios. Os colégios holandeses foram dos Sínodos de Gelderlândia, Holanda do Sul, Holanda do Norte, Zelândia, Utrecht, Frísia, Overijssel, Groningen, Drenthe e as igrejas de Waloon. Havia também uma delegação de professores holandeses de Teologia — Johannes Polyander, Franciscurs Gomarus, Anthonius Thysisus, Antonius Walaeus, e Sibrandus Lubbertus. Os colégios internacionais vieram da Inglaterra, Palatinado, Hesse, Nassau, Bremen, Emden, Suíça de fala alemã (Zurique, Berna, Basiléia e Schaffhausen) e de Genebra. Também foram enviados convites a França e a Brandenburgo, mas problemas políticos impediram que suas delegações viessem. As delegações estrangeiras exerceram influência considerável
no trabalho do Sínodo, especialmente o colégio da Grã-Bretanha. O rei James, da Inglaterra, era um fiel aliado militar dos holandeses, e os holandeses estavam ansiosos para demonstrar todo o respeito por seus representantes no Sínodo. A Igreja da Escócia estava descontente por não ter sido convidada separadamente da Inglaterra. James realmente acrescentou um escocês à sua delegação, com atraso, mas esse delegado, Walter Balcanqual, era membro da Igreja da Inglaterra. Entretanto, os holandeses tinham determinado que, sempre que possível, fossem enviados convites, para participarem do Sínodo, aos chefes de Estado, permitindo-lhes que escolhessem a delegação de seus domínios. O Sínodo de Dort, que se reuniu a 13 de novembro de 1618, foi certamente único sob vários aspectos. Por exemplo, a reunião em Dordrecht foi indubitavelmente a do único Sínodo holandês no qual um bispo (George Carlton, da Inglaterra) foi delegado. Mais importante que isso, porém é que ele foi o único Sínodo verdadeiramente ecumênico que as igrejas da Reforma já tiveram. A maioria das igrejas reformadas do mundo estava representada, e suas delegações eram membros plenos do Sínodo, habilitadas, portanto, para discutir e votar a questão doutrinária. As decisões do Sínodo sobre a teologia arminiana foram unânimes e amplamente aclamadas por toda a Europa Reformada como uma clara estruturação da verdade bíblica e como uma vitória para a ortodoxia da Reforma. O trabalho básico do Sínodo era julgar as posições dos arminianos. Os líderes Protestantes (calvinistas) que não tinham fugido dos Países Baixos foram convocados para apresentar suas posições ao Sínodo. Através de seu porta-voz, Simon Episcopius, os arminianos tentaram, de várias formas, atrasar o trabalho do Sínodo e dividir os delegados. Após ouvir seus protestos e representações por mais de um mês, o Presidente do Sínodo, Johannes Bogerman, dispensou os arminianos e declarou que o Sínodo tomaria suas decisões baseadas em suas obras escritas.
Cada um dos diversos colégios redigiu seu próprio parecer sobre as doutrinas arminianas e um comitê, que incluía os delegados mais proeminentes, preparou a forma final dos Decretos que foram adotados. À medida que trabalhavam em seus pareceres, surgiram alguns problemas e diferenças entre os delegados ortodoxos do Sínodo. Tanto os infralapsarianos como os supralapsarianos estavam presentes. Eles concordaram em escrever cânones aceitáveis a ambos os lados. As diferenças sobre a extensão da expiação foram mais difíceis. As diferenças teológicas, que apareceram sobre essa questão, surpreenderam a muitos e irritaram alguns. Mas, no final, o Sínodo alcançou um acordo que unia os delegados contra os arminianos, sem resolver completamente suas próprias diferenças. Em sua forma final, os decretos do Sínodo foram divididos em cinco Seções Doutrinárias, como resposta aos cinco pontos do Protesto dos arminianos. Pelo fato de o terceiro ponto do Protesto estar errado apenas em relação ao quarto ponto, os decretos enfeixavam uma Terceira e Quarta Seção Doutrinárias como uma unidade. Os decretos declaravam que o propósito de Deus, em eleger, não estava condicionado por coisa alguma inerente ou realizada pelos homens pecadores; que a morte de Cristo era suficiente para salvar o mundo, mas era eficiente apenas para os eleitos; que o homem decaído é totalmente incapaz de ajudar-se a si próprio e que, por essa razão, o Espírito concede soberana e irresistivelmente o dom da fé ao eleito; e os que são justificados e regenerados serão preservados até o fim e serão glorificados. Essas cinco Seções Doutrinárias têm sido, freqüentemente, denominadas Os Cinco Pontos do Calvinismo. Mas elas não são um resumo da totalidade do Cristianismo Reformado. É melhor considerá-las como as cinco respostas do Calvinismo aos cinco erros do Arminianismo.1 1
Para uma apresentação do Calvinismo como sistema, ver Calvinismo, de Abraham Kuyper, da Editora Cultura Cristã.
Tem-se feito uma caricatura dos decretos do Sínodo, tratandoos como expressão de uma rígida e árida teologia reformada escolástica. Quem quer que leia os decretos, encontrará neles uma realidade totalmente diferente. Os decretos têm um caráter profundamente pastoral e foram deliberadamente escritos em linguagem popular, para a edificação da Igreja. Eles não são especulativos, porém, começam com referir-se à miséria da condição humana e se concentram na provisão graciosa e eficaz de Deus para a salvação em Cristo. O tema da consolação do crente aparece repetidamente. Podemos ver essa qualidade dos Decretos do Sínodo de Dort, por exemplo, no Decreto 1, 13: “O significado e certeza desta eleição confere, aos filhos de Deus, motivo adicional para uma humilhação diária perante ele, para adorar a profundidade de suas misericórdias, para purificar a si próprio, e para dar uma resposta agradecida de ardente amor Àquele que, primeiramente, manifestou tão grande amor para com eles. A consideração desta doutrina da eleição está tão distante de encorajar negligência, na observância dos mandamentos divinos, ou de submergir os homens numa segurança carnal, que tais resultados — pelo justo juízo de Deus —, são os efeitos comuns de uma presunção precipitada, ou de negligência e frivolidade libertina com a graça da eleição, naqueles que se recusam a andar nos caminhos do eleito”. O trabalho do Sínodo não se limitou às questões levantadas pelos arminianos. Uma vez que nenhum Sínodo Nacional tinha-se reunido desde 1586, havia várias outras questões sobre a vida e a obra da Igreja necessitando de uma resolução. Um exame geral da obra adicional do Sínodo nos oferece modos úteis de compreender as preocupações e o caráter da Igreja Reformada Holandesa, no princípio do século 17. Esse trabalho adicional do Sínodo foi dividido em Pro-Acta e Post-Acta, i.e., o trabalho feito antes de os arminianos terem chegado, e o trabalho completado após a adoção dos Decretos. O Pro-Acta compunha-se de cinco disposições básicas. Segundo a primeira, o Sínodo decidiu por uma nova
tradução oficial da Bíblia para o holandês. O resultado final foi a Statenvertaling, uma versão quase tão influente nos Países Baixos quanto o era a Versão King James (Rei Tiago) no mundo de fala inglesa. De acordo com a segunda, o Sínodo proporcionou uma instrução catequética regular para os jovens e uma pregação regular do Catecismo nas igrejas. Pela terceira, o Sínodo decidiu que os filhos pagãos de servos da casa de mercadores cristãos, no Extremo Oriente, não deveriam ser batizados quando crianças, mas deveriam primeiramente ser instruído na fé. Segundo a quarta questão, era necessário que houvesse uma preparação para os candidatos ao ministério, e a quinta decisão regulamentava a censura de livros considerados perigosos. No Post-Acta, o Sínodo tratou de três questões principais. A primeira estabeleceu um texto definitivo da Confissão Belga para a Igreja. A segunda dava respostas às crescentes tensões que havia nas igrejas holandesas, entre uma observância estrita do Sábado Puritano e a observância praticada no continente, menos estrita. O Sínodo, editando uma declaração de seis pontos, que tomou uma posição mediadora, determinou que havia uma dimensão moral contínua ao quarto mandamento, que proibia o trabalho ordinário e proibia a recreação que interferisse na adoração pública.1 Pela terceira, o Sínodo adotou uma nova Ordem da Igreja, que incorporava a preocupação de Calvino pelo direito de a Igreja disciplinar-se a si própria. Essa Ordem Eclesiástica, baseada no precedente Sínodo de Emden, entretanto, não acabou com o Erastianismo funcional praticado pelo Estado, nos Países Baixos. Na verdade, nenhum Sínodo Nacional reuniu-se nos Países Baixos por aproximadamente duzentos anos depois do Sínodo de Dort. O Sínodo de Dort marcou o triunfo da ortodoxia calvinista na teologia da Igreja Reformada Holandesa e manifestou o zelo calvinista por uma Igreja disciplinada em suas decisões sobre ética e negócios de Estado. Seu conselho, entretanto, nem sempre foi o 1
Para consultar o texto ver Howard B. Spaan, Christian Reformed Church Government (Grand Rapids: Kregel, 1968), p. 208.
determinante do real curso de eventos na sociedade e na Igreja Holandesa, durante os séculos que se seguiram. Mesmo assim, seus atos e conclusões expressaram, sob nova forma, a visão de João Calvino, demonstraram a vitalidade do Cristianismo Reformado e proporcionaram uma rica fonte de sabedoria da qual o Calvinismo eclesiástico fortaleceu-se e foi renovado.
Pietismo e Escolasticismo O Sínodo de Dort resolveu o problema teológico mais sério que confrontava a Igreja Reformada nos Países Baixos, no princípio do século 17, e pronunciou-se a respeito de várias questões práticas cruciantes sobre a vida da Igreja. Mesmo assim, várias outras oportunidades e tarefas aguardavam medidas eficazes por parte da Igreja. A Igreja continuava a examinar a vida e piedade de seus membros, a tornar mais clara a sua teologia e a desenvolver providências pela preocupação missionária, que visava a disseminar o Evangelho para além das fronteiras dos Países Baixos. A preocupação pela piedade da Igreja é inerente ao Cristianismo Reformado. Conforme F.E. Stoeffler observou: “O Calvinismo é intrinsecamente voltado para a piedade.1 Nos primeiros dias da Reforma não havia uma tensão especial entre doutrina e vida. O risco envolvido em se adotarem os princípios da Reforma geralmente uniam o crente conjuntamente na doutrina e no compromisso de vida. Mesmo assim, já no início da era da Reforma, os protestantes reconheceram a diferença entre a “fé histórica” — um assentimento intelectual meramente formal à doutrina — e a “fé viva” — um compromisso de todo o coração com Cristo. Conforme as igrejas protestantes iam sendo estabelecidas e se tornando socialmente necessárias em certas áreas, elas tiveram de enfrentar o crescente problema de membros cuja relação para com a Igreja era meramente formal. Isso também 1
F. Ernest Stoefller, The Rise of Evangelical Pietism (Laiden: Brill, 1965), p. 116.
era verdadeiro nos Países Baixos e, para muitos dos holandeses, o puritanismo inglês oferecia o modelo segundo o qual se podia vincular a piedade à doutrina. Um calvinista holandês que abordou a preocupação pela piedade na Igreja foi Guilherme Teellinck (1579-1629), que se tornou conhecido como o pai do Pietismo reformado. Durante suas viagens à Inglaterra, ele aderiu à teologia puritana. Ao retornar aos Países Baixos, trabalhou efetivamente como pregador e pastor, conclamando os indivíduos a uma vida de maior compromisso. Os temas principais de seu trabalho eram a chamada para uma nova vida em Cristo, autonegação e a felicidade de se conhecer a Deus.1 Embora, algumas vezes, ele tenha sido criticado antes do Sínodo de Dort, pelo fato de não ser suficientemente militante em sua oposição ao Arminianismo, sua teologia traduzia o Calvinismo ortodoxo. Teellinck, assim como outros pietistas posteriores dos Países Baixos, cria que os Cânones de Dort apoiavam os esforços para continuar a reforma moral da igreja, enfatizando a necessidade e o caráter radical da regeneração.2 Os pietistas holandeses consideravam especialmente a Guilherme Ames como o teólogo de seu movimento. Ames (15761633), um aluno de Guilherme Perkins, era, ele próprio, um inglês. Porém, após 1610, ele gastou sua vida num exílio, nos Países Baixos, devido a seu inconformismo. Ele lecionou Teologia na Universidade de Franeker desde 1622 até pouco antes de sua morte. Suas obras mais famosas e influentes, The Marrow of Theology [A Essência da Teologia] (1623 e 1627) e Conscience with the Power and Cases Thereof [Consciência do Poder e seus Exemplos] (1622 e 1630), mostravam o caráter de seu pensamento e sua preocupação pela piedade nas Igrejas reformadas. Seguindo o modo lógico do calvinista francês Peter Ramus, ele dividiu sua concepção em duas partes: fé e observância. Ele insistia na 1 2
Ibid., pp. 127-133. Ibid., p. 116.
importância de um viver aberto e de manifestar a vida regenerada. Sua casuística, isso é, sua tarefa em determinar a aplicação da lei bíblica à vida cristã, foi o fundamento ético para o purismo holandês. Esse purismo preocupava-se com uma obediência legal e exata na vida cristã, sempre carregando consigo o perigo do legalismo do Pietismo holandês posterior. Outros vultos importantes demonstraram contínua preocupação com uma maior piedade na Igreja Reformada holandesa. Jadocus van Lodensteyn (1620-77) levou os princípios do purismo e da autonegação a dimensões ainda maiores do que seus predecessores e, inclusive, foi atraído por algumas formas de piedade medieval. Ele trabalhou tanto como pastor quanto como escritor de literatura devocional para cristãos. T. G. Brakel (160869) e seu filho Guilherme (1635-1711) começaram a dar maior ênfase aos sentimentos na experiência cristã. Pietistas posteriores, de convicções fortemente puristas, tendiam ainda mais a perder o equilíbrio entre doutrina e vida, colocando ênfase excessiva numa vida rigorosa, ao passo que outros superenfatizavam o papel dos sentimentos e de experiências religiosas. Enquanto os pietistas trabalhavam para desenvolver a vida moral e espiritual da Igreja, outros iam ao encontro das necessidades da Igreja, que precisava de uma obra continuada na teologia sistemática. A estruturação e o aperfeiçoamento da teologia reformada eram fundamentais em dias de vigorosas polêmicas contra os católicos romanos, socinianos e outros. Todavia, com o passar do século 17, os teólogos da Reforma também tiveram de se defrontar com novos desafios filosóficos à sua obra. O surgimento do pensamento de Descartes marcou um desafio especial à dogmática da Reforma pelo fato de a filosofia cartesiana confrontar o Aristotelismo, freqüentemente utilizado para expressar a teologia sistemática reformada das universidades. Dessa forma, a teologia caminhou numa direção mais técnica e escolástica, em resposta à atmosfera polêmica e filosófica da época, mas também em resposta à convicção básica da Reforma
de que a teologia era uma ciência. Um dos primeiros produtos mais importantes desta reflexão teológica continuada foi um manual de teologia reformada aplicado pouco depois do Sínodo de Dort. A obra Synopsis Purioris Theologiae (1625) foi escrita por J. Polyander, A. Rivetus, A. Walaeus e A. Thysius. Essa Synopsis, organizada em cinqüenta e dois loci, continuou durante anos sendo um influente resumo da teologia sistemática da Reforma.
Voetius O desenvolvimento da teologia escolástica não pode ser caricaturizado como um exercício acadêmico, árido e irrelevante, em conflito com a vida e a piedade da Igreja. A vida e obra de Gisterbus Voetius (1589-1676), o principal teólogo dos Países Baixos da metade do século 17, demonstra a união harmoniosa do Escolasticismo com o Pietismo e, como um espelho, reflete vários aspectos da Igreja Reformada holandesa de sua época. Voetius cresceu num ambiente carregado de tensões e problemas da sociedade holandesa do final do século 16. Ele nasceu em Heusden, próximo da fronteira com a Holanda Espanhola, e seu pai foi morto em 1597, enquanto lutava pelo príncipe Maurício. Voetius estudou em Leiden de 1604 a 1611, onde demonstrou grande interesse por Filosofia, Teologia e Línguas Semíticas. Tornou-se um aristotélico convicto em filosofia e, segundo o modelo de seu professor Gomarus, foi igualmente um calvinista estrito. Em seus dois primeiros pastorados, Voetius trabalhou duramente para combater os erros do Romanismo e do Arminianismo. Sua eficácia, como pastor, granjeou-lhe uma indicação para o Sínodo de Dort, apesar de sua juventude. Sua obra, como pastor, foi fenomenal. Além de visitar os membros de
sua congregação e de catequizar os jovens ele pregava oito vezes por semana e teve alunos particulares como professor de Teologia, Lógica, Física, Metafísica, Hebraico, Siríaco e Árabe. Ele dedicava também dois dias por semana para seu estudo particular. Durante seu segundo pastorado, em Heusden, publicou sua primeira obra, Prova do Poder da Religiosidade (1634). Uma vez ele serviu também como capelão das forças do Príncipe Frederick Henry, na guerra contra a Espanha. Quando a cidade de Den Bosch foi capturada pelo príncipe, Voetius foi, juntamente com outros capelães, trabalhar para reformar a população. Isso lançou Voetius numa polêmica com o bispo de Ypres, Cornelius Jansenius, mas essa discussão não levou a nenhum entendimento entre esses dois agostinianos. Em 1636, Voetius foi chamado para lecionar Teologia e Línguas Orientais na Academia de Utrecht. Quando, alguns anos mais tarde, a Academia foi elevada à condição de universidade, Voetius tornou-se professor. Ele resumiu suas preocupações em sua aula inaugural: “Da Piedade Associada à Ciência”. Tanto seu ensino como sua pregação em Utrecht despertaram muita atenção e ele atraiu muitos alunos. Sua fama e influência estavam tão difundidas que a universidade freqüentemente era denominada a Academia Voetiana, e seus escritos disseminaram seu pensamento por todo o território. Ele escreveu contra uma aliança com arminianos ou romanistas e opôs-se inclusive contra a paz com a Espanha (1648), porque essa deixava os Países Baixos do sul vinculados a Roma. Nos anos de 1640, Voetius direcionou suas energias para liderar o ataque contra a influência crescente do Cartesianismo nas universidades holandesas. Descarte respondeu pessoalmente aos ataques de Voetius em sua Carta ao Mui Famoso Homem Gisbertus Voetius. Hoje em dia, a dedicação de Voetius a Aristóteles, tanto na filosofia como na ciência, parece ser simplesmente reacionária e obscurantista. Mas, em sua época, Voetius retardou a disseminação de novas idéias que considerava
serem inimigas da fé. Ele não ajudou a Igreja a desenvolver instrumentos para a efetiva compreensão e o trato adequado de sistemas modernos de pensamento, mas, conforme John Beardslee comentou: “E verdade que os teólogos agiram com pobreza ao lidar com as novas questões que viriam a dominar o subseqüente desenvolvimento da cultura européia... Mas, se esse mundo ‘secular’ não era de seu interesse, também não o era do homem comum."1 Mais tarde em sua vida, Voetius se deparou com uma nova disputa dentro da Igreja. Essa girou em torno de Johannes Cocceius (1603-69), um teólogo nascido em Bremen, que lecionou primeiramente em Franeker e depois em Leiden. Cocceius começou a fazer uma nova abordagem do Antigo Testamento. Ele buscava lidar com o Antigo Testamento de um modo mais histórico e contextual, e menos dogmático. Voetius cria que a afirmação de Cocceius sobre fazer uma abordagem mais ligada à aliança e mais cristocêntrica ao Antigo Testamento, na verdade corroía tanto a dogmática calvinista estrita quanto o purismo para a vida cristã. O método cocceiano de interpretação dizia que o Antigo Testamento não mais podia ser usado simplesmente como prova de conclusões dogmáticas, ou como fonte de lei moral cristã. A Igreja, rapidamente, dividiu-se em dois grupos. A divisão, mais do que qualquer outra coisa, realmente refletia uma diferença de espírito — o inflexível versus o flexível. Por exemplo, diferenças sobre quão estrita e precisamente o Sabbath deveria ser observado eram típicas dessa divisão. Os vigorosos esforços de Voetius, em promover a pureza doutrinária e o aperfeiçoamento moral da Igreja, nunca debilitaram sua devoção à Igreja Visível e institucional. Seu relacionamento com Jean de Labadie (1610-74) ilustra sua preocupação tanto com a unidade quanto com a pureza da Igreja. A pregação de De Labadie tinha sido a fonte do reavivamento 1
Reformed Dogmatics, apresentada e organizada por John W. Beardslee III (Nova York: Oxford University Press, 1965), p. 10.
espiritual nas igrejas reformadas da Suíça. Voetius, entusiasmado com essas notícias, e esperando um reavivamento semelhante nos Países Baixos, arquitetou a chamada de De Labadie para Middelburg, na Zelândia, em 1665. Mas De Labadie logo entrou em conflito com as autoridades da Igreja e começou a mover-se cada vez mais na direção do cisma. Voetius, ao mesmo tempo em que era simpático à visão de uma Igreja pura, horrorizava-se também com o separatismo, pelo que pegou da pena para escrever contra De Labadie. Além de tais escritos ocasionais contra o separatismo, a declaração mais completa de Voetius, sobre a Igreja e sua unidade, foi sua notável obra de três volumes Política Eclesiástica (1663-76). A característica determinante, nessa obra, era a clara rejeição, por parte de Voetius, do Erastianismo e sua reivindicação no sentido de a Igreja ser completamente independente do Estado e de qualquer patronato. Voetius articulou uma clara visão de uma Igreja Reformada piedosa e ortodoxa dominando a sociedade holandesa. Porém, as mudanças do século 17 trouxeram várias outras influências sobre a vida nos Países Baixos. As Províncias Unidas eram, claramente, um dos principais países da Europa, no meio do século 17, e tinham alcançado uma segurança e estabilidade política consideráveis. Os Países Baixos floresciam economicamente, dominando o comércio mundial. Na cultura, sua arte e literatura floresciam, produzindo vultos tais como Rembrandt e Vondel. Várias correntes intelectuais distintas atravessavam os Países Baixos. Voetius colocou-se firmemente contra a inovação e a diversidade, e continuou a perseguir, de forma um tanto medieval, seu ideal de uma sociedade totalmente Reformada.
Missões Além dos problemas internos de teologia e piedade com os quais a Igreja se digladiava, abriu-se uma oportunidade inteiramente nova à Igreja com vistas às missões estrangeiras
pelos empreendimentos econômicos holandeses no Oriente. Ao longo do século 16 os holandeses estiverem envolvidos no comércio de especiarias da Europa, comprando especiarias em Lisboa e distribuindo-as na Europa nórdica. No final do século 16, eles enviaram suas primeiras expedições para o Extremo Oriente e descobriram que o negócio era tão lucrativo que iniciaram uma rivalidade ativa com os portugueses. Em 1602, a Companhia Unida das Índias Ocidentais recebeu sua carta patente e um monopólio do comércio para os holandeses. O primeiro contrato não continha menção de uma obrigação de levar a fé, e não é surpreendente que a Companhia sempre colocasse, em primeiro lugar, seus interesses comerciais. Entretanto, a carta renovada de 1622 obrigou-a a “promover corretamente a fé comum."1 A Companhia assumiu a responsabilidade pelo treinamento e supervisão de todos os missionários no Oriente. A abertura do Oriente aos holandeses ajudou a estimular o pensamento da Igreja acerca da tarefa de missões. Adrian Saravia (1531-1613), outrora um ministro da Reforma e amigo de Guido De Brès, acentuou a importância de se levar o Evangelho aos pagãos, em sua famosa obra De Diversis Gradibus Ministrorum (1590). Esse tratado, escrito depois de ele ter aderido à Igreja Anglicana, também defendia o episcopado, insistindo que o envio de missões estava relacionado com o ofício episcopal. Mais característicos das perspectivas holandesas, sobre missões, foram Jean Taffin the Youger, Guilherme Teellinck, Justus Heurnius e Voetius — pietistas do século 17, que enfatizavam a importância de missões na obra da Igreja. Destes pensadores holandeses surgiu a primeira importante teoria protestante sobre missões. Vários problemas práticos se apresentaram à Igreja quando a Companhia Unida das Índias Ocidentais começou a requisitar o clero para seus navios e comunidades de negócios no Oriente, por volta de 1609. Em resposta à crescente necessidade de 1
Theodor Mueller-Brueger, Der Protestantismus in Indonesien (Stuttgart: Evangelisches Verlagswerk, 1968), p. 41.
missionários, foi aberto em Leiden um instituto para treinar homens para o ministério no Oriente, sob Antonius Walaeus em 1622. Esse instituto foi provavelmente a primeira escola protestante para missionários, mas sobreviveu somente até 1633 e formou apenas doze estudantes. A interferência da Companhia no trabalho de missões, sem dúvida, contribuiu para o fracasso da escola. A história das missões holandesas na Indonésia dificilmente foi gloriosa. O número de convertidos foi bem pequeno e se desenvolveram, na Igreja da Indonésia, sérios erros de teologia e prática. Em grande parte, a responsabilidade foi da Igreja mãe cujo zelo e visão eram tão freqüentemente limitados. Mas a interferência negativa da Companhia, nos esforços missionários, limitaram e debilitaram ainda mais a obra. Ministros que foram para o Oriente, perceberam que a Companhia coibia qualquer ação criativa, ou independente, da Igreja no Oriente, e inclusive impedia a comunicação efetiva com a Igreja mãe. O resultado foi que durante os primeiros 120 anos do monopólio da Companhia, na Indonésia, a Igreja cresceu de quarenta mil (os quais os portugueses tinham convertido à igreja católico-romana) para apenas cinqüenta e cinco mil.
Iluminismo, Revolução e Reavivamento No século 18, o ambiente intelectual e religioso dos Países Baixos começou a se transformar ainda mais rápida e significativamente do que no século 17. O individualismo e o Racionalismo do Iluminismo francês penetraram na sociedade e na Igreja holandesa. O Iluminismo triunfou nos Países Baixos, quando a França revolucionária foi à guerra contra as Províncias Unidas, em 1793. Os franceses vitoriosos reorganizaram os Países Baixos como a República da Batávia, de 1795 a 1806. A nova república instituiu uma separação radical entre Igreja e Estado, o que trouxe dificuldades éticas e financeiras para a Igreja e o clero.
O Estado era considerado como secular e a Igreja era tratada simplesmente como mais uma organização privada. Isso dificilmente podia ser considerado o fim do Erastianismo que Voetius tinha previsto. Quando Napoleão criou o Reino da Holanda, em 1806, e então anexou os Países Baixos à França, em 1810, as condições para a Igreja não mudaram significativamente. Após a derrota de Napoleão, os poderes europeus vitoriosos estabeleceram a Casa de Orange como a monarquia dos Países Baixos, em 1813. Em 1816, o Rei Guilherme I promulgou uma nova constituição para o reino, que considerava todos os grupos religiosos como iguais perante a lei. A constituição declarava que o Estado tinha uma preocupação especial para com a Igreja Reformada. O rei deu à Igreja Reformada uma nova Ordem eclesiástica que, em sua natureza, era mais hierárquica do que presbiteriana, e dava ao Estado a autoridade de supervisionar vários aspectos do trabalho dos Sínodos. Os calvinistas tradicionais viam essas mudanças com desalento, sentindo que o Erastianismo lhes tinha sido imposto na pior forma de todos os tempos. Enquanto a estrutura externa da Igreja estava sendo modificada, os calvinistas estritos experimentavam uma renovação espiritual através do reavivamento religioso, o Despertamento, que estava alcançando várias partes da Europa, nos anos 1820. Vários calvinistas holandeses foram fortalecidos em suas convicções de que a Igreja tinha sido enfraquecida por sua nova Ordem eclesiástica e que os fundamentos da disciplina e da doutrina sofreram uma erosão causada pelos princípios do Iluminismo. Entre os que se manifestaram contra o novo espírito da época, estava o poeta Guilherme Vilderdyk. Assim como outros que conclamavam a todos por um reavivamento nacional, Vilderdyk (1756-1831), ele mesmo um fruto do Despertamento, escreveu sobre as glórias da herança calvinista holandesa. Isaac Da Costa fez eco a esse tema, ao lamentar o presente declínio na disciplina da Igreja.
Os calvinistas estritos passaram a vislumbrar um perigo iminente para a Igreja na nova forma de subscrição dos padrões doutrinários da Igreja. A nova forma de subscrição, de 1816, era vaga e ambígua. Alguns oficiais da Igreja insistiam em que eles subscreviam os padrões doutrinários porque (quia) tais padrões se conformavam à Palavra de Deus. Essa interpretação impunha um Calvinismo estrito a todos os que subscreviam. Outros alegavam que subscreviam até o ponto em que (quatenus) os padrões se conformassem à Palavra de Deus. Essa interpretação permitia uma abordagem muito mais liberal às questões doutrinárias. Esse conflito sobre a natureza da subscrição fez com que alguns calvinistas estritos, influenciados pelo Despertamento e pelo Pietismo holandês, se desanimassem quanto ao futuro da Igreja. Após alguns anos de conflito acalorado sobre tal imprecisão, ocorreu uma secessão (a Afscheiding) em 1834. Ela foi liderada por Hendrik de Cock, H. P. Scholte e outros. Em poucos anos, cerca de vinte mil calvinistas ortodoxos se aliaram ao movimento da secessão, mas muitos outros permaneceram na Igreja Reformada holandesa e continuaram a enfatizar as reivindicações em favor de uma ortodoxia reformada naquela entidade. Os conflitos internos da Igreja holandesa, no princípio do século 19, refletiam a condição social e cultural instável da sociedade holandesa em geral. As crescentes tendências de pluralismo, secularismo e fragmentação da sociedade eram todas produto do espírito da Holanda moderna e pós-revolucionária. Neste novo ambiente cultural surgiu um pensador calvinista que enfrentou os problemas do mundo moderno de modo honesto, e abriu uma nova era no desenvolvimento da vida e pensamento da Reforma. Esse homem, Guillaume Groen Van Prinsterer (180176), era um aristocrata nascido num ambiente liberal. Influenciado pelo Despertamento, Groen veio a aderir à fé ortodoxa reformada. Dedicou-se a trabalhar como um historiador (em 1832 ele foi indicado para arquivista da Casa de Orange-Nassau) e, como político, tendo servido no Parlamento e fundado o Partido Anti-
Revolucionário. Em todas essas atividades, ele buscava relacionar seu compromisso cristão com seu trabalho. Embora ele não se tenha unido à Afscheiding ele, realmente, compartilhava de muitas daquelas preocupações sobre a crescente carência de disciplina na Igreja Reformada. Ele pediu tolerância legal para a Afscheiding e trabalhou pela independência e doutrina própria para a Igreja Reformada. Groen foi influenciado, no desenvolvimento de seu pensamento, pela convicção de que o espírito da Revolução Francesa era a maior ameaça de seus dias ao Cristianismo e à sociedade holandesa em geral. Esse espírito quer se manifestasse no absolutismo quer em noções individualistas de soberania, opunha-se à soberania e lei de Deus a que todos os cristãos deveriam obedecer. Por essa razão, ele estava convicto de que os cristãos tinham de ser “anti-revolucionários”. Ele expressou sua crença acerca da força destrutiva do princípio revolucionário de modo bastante forte: “A história da filosofia não-religiosa do século passado é, em sua fonte e resultado, o ensino que, livremente desenvolvido, destrói a Igreja e o Estado, a família e a sociedade, produzindo desordem sem nunca alcançar a liberdade ou restabelecer a ordem moral e, em assuntos de religião, leva infalivelmente seus seguidores conscientes ao ateísmo e ao desespero."1 Mesmo assim, Groen insistia também em que o cristão não poderia retornar a um ideal teocrático do século 17, nem manter um conservadorismo estático. Ele rejeitava tanto o absolutismo revolucionário quanto o absolutismo contra-revolucionário. Argumentava que a soberania, na sociedade, é derivada de Deus e só nele reside, em última instância, e não no Estado, no povo ou num monarca. A serviço do Deus soberano, o cristão deve procurar promover ativamente a justiça e a bondade de acordo com as circunstâncias e oportunidades peculiares à sua própria 1
Matthijs Pieter Thomassen a Thuessink van der Hoop van Slochteren, Kerk en Staat Volgens Groen Van Prinsterer (Groningen: Oppenheim, 1905), p. 255.
época. A Palavra de Deus deve ser aplicada à realidade histórica. Neste sentido, ele defendia o slogan: “Está escrito e aconteceu”. Groen cria que os conservadores cometeram um erro trágico ao continuarem a “agarrar-se ao velho e obsoleto, esquecendo de que a vida somente é preservada pelo crescimento, que tudo o que vive está sujeito à mudança, que a existência é revelada pelo movimento e pelo progresso, e deveriam desejar desatrelar (do espírito conservador) as conquistas da mente moderna e os aperfeiçoamentos que, a despeito do espírito revolucionário, têm sido bons e louváveis resultados dentro da agitação social — liberdade de religião, abolição de privilégios excessivos, igualdade perante a lei, direitos civis, centralização política".1 Groen estava convencido de que os cristãos reformados necessitavam estruturar seus próprios princípios e programas de acordo com a sua compreensão religiosa peculiar e, então, deveriam persegui-los sem concessões. Sua convicção sobre o caráter distintivo da Reforma, na política, tornou-se uma espécie de lema para o Partido Anti-Revolucionário: “Nossa força está em nosso isolamento”.
Kuyper A influência de Groen alcançou várias áreas da vida holandesa, mas, inquestionavelmente, seu sucessor e colaborador mais fiel e poderoso foi Abraham Kuyper (1837-1921). Kuyper, assim como Groen, passou por uma peregrinação espiritual antes de tornar-se um calvinista convicto. Enquanto estudante universitário, ele aceitara o liberalismo religioso de sua época, e somente em seu primeiro pastorado, na Igreja Reformada Holandesa, é que ele se curvou à fé reformada ortodoxa. Logo em seguida, ele empregou seu grande talento na tarefa de restauração do caráter reformado da Igreja e na tarefa de aumentar o impacto 1
G. Groen Van Prinsterer, The Anti-Revolutionary Principle, trad. por J. Faber (Grand Rapids: Groen Van Prinsterer Society, 1956), p. 42.
do Cristianismo, de modo geral, sobre a vida holandesa. Ele abraçou o velho ideal calvinista de uma Igreja disciplinada e de uma sociedade cristã, mas adotou a forma moderna e progressista desse ideal, forma encontrada na obra de Groen. Kuyper foi um pensador profundo, um grande organizador e um comunicador eficaz no trato com o povo comum. Ele, efetivamente, utilizou seus talentos como escritor poderoso e fecundo escrevendo para periódicos e produzindo obras teológicas. Em 1870, tornou-se o editor do semanário religioso De Heraut, que foi um veículo para expressar suas posições por toda a sua vida, e através do qual ele buscava restaurar a saúde da Igreja. Em 1872, ele fundou e começou a editar o jornal diário De Standaard, para apresentar uma perspectiva adequada da Reforma sobre todos os problemas que a sociedade holandesa enfrentava. Para o leitor inglês, a totalidade de sua posição acerca do Calvinismo moderno está resumida nas conferências que ele proferiu em Princeton, em 1898, editadas como Calvinism: Six Stone Foundation Lectures.1 Sua crescente preocupação acerca das questões sociais e políticas dos Países Baixos lançou-o na vida política holandesa. Em 1874 ele foi eleito para o Parlamento e isso exigiu seu afastamento do ministério. Ele reorganizou o Partido AntiRevolucionário, transformando-o no primeiro partido dos Países Baixos, partido que deixou de ser uma espécie de clube de elite para tornar-se um verdadeiro partido popular, envolvendo as massas. Seu sucesso político levou-o ao posto de primeiro ministro da Holanda, de 1901 a 1905. Seus maiores alvos políticos pessoais abrangiam a extensão do voto, o apoio estatal para as escolas cristãs e uma legislação social que ajudasse a proteger o povo trabalhador.
1
Abraham Kuyper, Calvinism: Six Stone Foundation Lectures (Grand Rapids: Eerdmans, 1943). Palestras publicadas no Brasil pela Editora Cultura Cristã com o título Calvinismo.
Ele via também a necessidade de uma universidade reformada para promover o desenvolvimento intelectual cristão. Em 1880, ele ajudou a fundar a Universidade Livre de Amsterdã (livre tanto do controle do Estado quanto do da Igreja). Ali, o próprio Kuyper lecionou Teologia, Homilética, Hebraico e Literatura. Embora ele não mais pudesse servir como pastor, sua preocupação com a Igreja nunca diminuiu. Kuyper serviu como presbítero na Igreja de Amsterdã, onde se esforçou por aperfeiçoar a disciplina e a fidelidade da Igreja. A maioria do Consistório de Amsterdã, do qual Kuyper fazia parte, entrou em conflito com autoridades maiores da Igreja, quando o Consistório recusou-se a admitir catecúmenos liberais como membros da Igreja. Em 1886, as autoridades maiores removeram Kuyper e a maioria do Consistório de suas funções. Essa ação disciplinar contra a ortodoxia precipitou uma nova divisão. Cerca de duzentas congregações deixaram a Igreja Reformada e formaram as igrejas da Doleantie, igrejas afligidas ou lamentosas. Essas igrejas, inicialmente, esperavam que mudanças na Igreja Reformada viessem a lhes dar condições para retornar algum dia. Quando as esperanças de mudanças se desvaneceram, as igrejas da Doleantie uniram-se, em 1892, com a maioria das igrejas da Afscheiding, para formar uma denominação chamada de Igrejas Reformadas nos Países Baixos. A nova Igreja estava comprometida com o Calvinismo tradicional, conforme estava expressa na teologia das Três Formas da Unidade — a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort — e à Ordem Eclesiástica tradicional do Sínodo de Dort. Em toda a obra de Kuyper permaneceram consistentes certas convicções básicas. Ele insistiu numa antítese radical entre o pensamento cristão e o pensamento não-cristão. Os cristãos devem buscar sua própria compreensão distintiva acerca de Deus e de seu mundo, baseados na revelação que Deus faz nas Escrituras e na natureza. Mesmo assim, ele reconhecia que, pela graça universal (ou comum) de Deus, os efeitos do pecado foram restringidos no
mundo, de modo que a verdade podia ser encontrada e estar presente na obra de não-cristãos, idéia essa que permitia alguma coalizão política com não-calvinistas. Sua obra, como reformador da Igreja, como educador e político, estava baseada na sua idéia de “esfera soberana”. Cada esfera da vida (Igreja, Estado, Família, etc.) tem sua própria área de responsabilidade, que é derivada diretamente de Deus, e as pessoas, dentro de cada esfera, são responsáveis apenas perante Deus. Ele via esse princípio como o baluarte essencial contra todas as formas de totalitarismo moderno e como fundamento de um pluralismo moderno verdadeiro. Mesmo assim, o cristão deve lutar para ver Cristo honrado em cada uma dessas esferas. Conforme ele escreveu em Pra Rege: “Na extensão total da vida humana não há nenhum centímetro quadrado acerca do qual Cristo, que é o único soberano, não declare: É meu."1
Antítese ou Acomodação O espírito e a obra de Kuyper renovaram e revitalizaram o Calvinismo, como força vital na Igreja e na sociedade dos Países Baixos. Kuyper tinha vários colaboradores e seguidores, das quais somente podemos mencionar alguns aqui. Herman Bavinck (1854-1921), filho de um ministro Afscheiding, era, juntamente com Kuyper, um dos grandes teólogos do Calvinismo reavivado. Ele ensinava na escola teológica da Afscheiding, em Kampen, de 1883 até ir para a Universidade Livre, em 1902. Sua maior obra foi sua brilhante teologia sistemática, Gereformeerde Dogmatiek (4 volumes, lª edição: 1895-99, 2ª. edição: 1911). Talvez, o pensador mais profundo de gerações posteriores, entre os calvinistas holandeses, foi Herman Dooyeweerd (18941977). Desde 1926 ele trabalhou como Professor de Direito na 1
Frank Vanden Berg, Abraham Kuyper (Sr. Catharines, Ontário. Canadá: Paedeia, 1978), p. 255.
Universidade Livre. Ele procurou desenvolver uma filosofia completamente reformada, na tradição da ênfase de Kuyper sobre a antítese e a soberania de esferas. Ele enfatizava especialmente a função da lei, tanto como limite entre Deus e sua criação, quanto como estrutura do mundo criado. Ele desenvolveu completamente seu complexo pensamento filosófico na obra Uma Nova Crítica do Pensamento Teorético (4 volumes, 1953-58). Enquanto Dooyeweerd procurava ampliar o pensamento de Kuyper, na área da filosofia, o mais notável sucessor de Kuyper e Bavinck na teologia foi G. C. Berkouwer (nascido em 1903). Em 1945, ele sucedeu a Valentinus Hepp na cadeira de Teologia Dogmática na Universidade Livre. A obra de Berkouwer começou com força na tradição ortodoxa de seus antecessores. Suas obras, nos anos de 1930 e de 1940, eram dirigidas contra as teologias do Liberalismo, Romanismo e neo-ortodoxia. Ele desenvolveu sua reputação como teólogo influente e reflexivo em sua obra de múltiplos volumes, Estudos na Teologia Dogmática. Mas, nos anos de 1950 e de 1960 a obra de Berkouwer, bem como várias das instituições do Calvinismo holandês, começou a mostrar uma atitude mais amena em relação às expressões religiosas nãoreformadas. Berkouwer escreveu sobre o triunfo da graça na teologia de Barth. Ele esteve no Segundo Concílio do Vaticano, e escreveu de modo simpático sobre os desenvolvimentos da Igreja Católica Romana. Ele levantou questões sobre o efeito deformador do Aristotelismo nos padrões doutrinários das igrejas reformadas. Suas obras mais recentes acerca das Escrituras, igreja e teologia — especialmente Meio Século de Teologia (1974) — mostram desvios significativos da ortodoxia reformada que marcara suas primeiras obras. Berkouwer é, de certa forma, um símbolo dos meandros da tradição calvinista holandesa nas últimas décadas. A visão de Calvino e de seus primeiras seguidores holandeses sobre uma igreja forte, ortodoxa e disciplinada, e sobre uma sociedade justa, parece estar em declínio. As igrejas reformadas dos Países Baixos
não parecem desejar manter seus padrões doutrinários. A Universidade Livre abandonou, em várias áreas, seu compromisso e busca por um ensino distintivamente cristão. Assim como em outros pontos da História dos Países Baixos, os poderes criativos do verdadeiro Calvinismo, para a sociedade como um todo, parecem estar em declínio. A acomodação ao Liberalismo moderno parece estar substituindo o princípio da antítese. O historiador não é nenhum profeta. Ele somente pode esperar para ver se o declínio presente representa um recuo temporário ou um abandono definitivo das raízes calvinistas. Os seguidores do desenvolvimento do Calvinismo, nos Países Baixos, podem ainda no futuro ver novas formas do Calvinismo naquele país. Mesmo assim, traga o que trouxer o futuro, o Calvinismo certamente não deixou de ser uma chave importante para a compreensão da vida e pensamento modernos da Holanda.
A Igreja Reformada da Alemanha: Calvinistas, uma influente minoria D. Clair Davis (Tradução: Sabatini Lalli)
D. Clair Davis é professor de História da Igreja no Seminário Teológico de Westminster, em Filadélfia, na Pennsylvania. Tem títulos acadêmicos do Wheaton College (B.A., M.A.), do Seminário Teológico de Westminster (B.D), e da Georg-August Universitãt, em Gottingam, na Alemanha (Th.D). Serviu nas faculdades do Olivet College, no Michigan, e na Escola de Graduação em Teologia de Wheaton. Foi editor do Westminster Theological Journal e escreveu artigos para esse e para Christianity Today, Eternity e para o Journal of Pastoral Practice. É membro da Americam Society of Church History e da Evangelical Theological Society.
CAPÍTULO 6
A IGREJA REFORMADA DA ALEMANHA: CALVINISTAS, UMA INFLUENTE MINORIA
A Igreja Reformada da Alemanha não tem atraído muita a atenção do mundo de língua inglesa. Talvez, isso se deva ao fato de a nostalgia calvinista preferir focalizar os países onde as igrejas reformadas tenham sido dominantes ou, mesmo, tenham sido igrejas oficiais, como na Escócia e na Holanda ou, ainda, em menor escala, igrejas como na cidade-estado de Genebra e na Bay Colony, de Massachusets. Quando esse é o enfoque dado, há manifesta descontinuidade entre os anos de sereno controle calvinista e a situação atual de igrejas pequenas, quase insignificantes, submersas em uma sociedade pluralista. Por essa razão, a outra face da história das igrejas reformadas é digna de nossa atenção, não apenas por parte dos historiadores profissionais, mas de todos aqueles que hoje se interessam e se empenham na luta por um Calvinismo atuante. As igrejas reformadas são mais bem compreendidas como fenômenos da segunda geração. Não as empolgam lutas por um ideal único, quer seja o retorno luterano ao âmago do Evangelho, que é a justificação só pela fé, quer seja o zelo anabatista pela vida de discipulado radical. Para os calvinistas, a meta deve ser sempre a do domínio total do Senhor e sua salvação, indo adiante a partir de um bom começo, que é o de jamais cansar de fazer o bem, visando a “completar a Reforma”. Isso significa que não é só a Roma que se deve responder, mas também ao humanismo renascentista; as Institutas de Calvino, claramente, trava luta em ambos os fronts.1 Em razão de seu caráter multifacetado, não é de 1
Sobre o humanismo da Calvino, ver Quirinus Breen, John Calvin (Grand Rapids: Eerdmans, 1931) e François Wendel, Calvin et l’humanisme (Paris: Presses Universitaire
surpreender que o papel a ser desempenhado pelas igrejas reformadas seja aquele reservado à minoria. Contudo, isso dificilmente significa que se trate de uma minoria sem importância; ao contrário, ela se constituiu num visível lembrete para todos os cristãos de que há outras opções bíblicas que podem ser exploradas e que é errado acomodar-se, mesmo que seja ao tradicionalismo protestante. Esse é, na verdade, o caso particular da Igreja Reformada na Alemanha. Devido à contínua existência, ali, de comunidades menores de governo feudal, muitas delas poderiam servir como áreas onde a teologia e a prática reformadas poderiam ser encorajadas; porém, sua proximidade com territórios católicoromanos e luteranos tornavam inevitável sua interação com eles. Esse fato serviu para a continuação e expansão das já úteis igrejas do “projeto-piloto” de refugiados calvinistas, que já existiam em Genebra e Estrasburgo. Nessas cidades foi possível, às congregações de refugiados calvinistas da França, Inglaterra e Escócia, colocarem imediatamente em prática as reformas radicais quanto à forma de culto, quanto ao governo e à disciplina da igreja, reformas impossíveis de realizar em seus lares, mas que poderiam tentar implantar, em nível nacional, quando retornassem a seus países de origem. Essas áreas menores eram, no entanto, via de regra, bastante artificiais. O culto, nessas congregações, era normalmente ministrado apenas em sua língua materna, isso é, em uma língua praticamente desconhecida nas comunidades onde se encontravam. Além disso, o tamanho das cidades-estado induzia não apenas à imigração de estrangeiros sem vínculos duradouros com suas novas residências temporárias, mas estimulavam também a saída de grandes contingentes de antigos moradores que partiam inconformados, indispostos a adaptar-se às compreensivas mudanças introduzidas pelos recém-chegados e, talvez, por perceberem que estavam perdendo o controle de seus lugares na estrutura de poder sóciode France, 1976).
econômico de suas comunidades. Desta maneira, enquanto tais micro-manifestações das igrejas reformadas provavam ser de inestimável valor na aprendizagem de como aplicar os novos conceitos calvinistas no estabelecimento de uma igreja bíblica, de modo prático poderiam estar, em última análise, se enganando quanto a como a Igreja deveria ser estabelecida em sociedades maiores e pluralistas. É neste aspecto que as igrejas de porte “médio” dos principados germânicos, com seu caráter nativo, seriam de maior utilidade. É neste ponto que a diferença entre o Calvinismo e o Luteranismo viria a se tornar mais claramente visível, não apenas quanto à teologia, mas também, e muito mais plenamente, na expressão prática desta teologia na vida da Igreja. Isso é fato, ainda mais no contexto britânico de então, onde os conflitos a respeito do próprio culto e governo de uma igreja biblicamente reformada tornavam-se, muito freqüentemente, questões de natureza política e mesmo de luta social. Na Alemanha, a teologia estava muito mais essencialmente ligada a questões reais que envolviam a Ceia do Senhor, e isso levava a uma apreciação própria tanto da verdadeira humanidade de Jesus, em seu estado de ascensão e exaltação, como também do verdadeiro caráter histórico de sua ascensão e de sua volta. Quando se considera a igreja reformada no seu contexto germânico, aprende-se a definir sua essência em termos de “contínua” relação de Jesus Cristo com seu povo, e não apenas em termos de sua eleição eterna ou de sua obra soberana de trazer a indivíduo à fé, no instante de sua conversão, como se pode facilmente depreender do enfoque calvinista anglo-holandês, em oposição ao arminianismo.1 Talvez, somente quando as ênfases anglo-holandesa e germânica forem combinadas, é que o Calvinismo recente, inclusive o de nossos dias, poderá ser tão biblicamente completo nas suas respostas a tudo quanto o Senhor tem feito por nós, como o era na visão original do próprio João 1
O melhor tratamento erudito da questão da interação entre Calvinismo e Luteranismo ainda é Matthias Schneckenburger. Vergleichende Darstellung des Lutherischen und Reformierten Lehrbegriffs (Stuttgart: Metzler, 1855).
Calvino. A Igreja Reformada na Alemanha não é uma abstração, pois envolvia muitas pessoas comprometidas em muitos lugares diferentes. Como foi sugerido acima, a Igreja Reformada na Alemanha teve início em Estrasburgo, uma cidade livre ao sudoeste. Mathew Zell, em 1521, e, depois, Capito, deram início à grande tarefa de pregação bíblica; contudo, foi Martin Bucer quem veio assumir a verdadeira liderança, tornando-se seu pastor, em 1524. Muito cedo estabeleceu estreito contato com os três ministros da Igreja Reformada dos refugiados franceses na região, inclusive com Farel. Encontros posteriores com Zwínglio levaram Bucer a tomar seu partido em oposição a Lutero na Conferência de Marburg, onde tentativas no sentido de estabelecer um acordo entre a Suíça e a Alemanha foram infrutíferas, em função das divergências sobre a natureza da Ceia do Senhor. Quando, em 1530, se reuniu a Dieta de Augsburg, e Melanchthon ficou encarregado de preparar o que passou a ser conhecido como Confissão de Augsburg, para representar a posição protestante, Estrasburgo esperava que a Confissão tivesse uma formulação suficientemente ampla para poder assiná-la, e assim ser protegida por ela. Como não pôde endossá-la, precisou formular sua própria Confissão, a Tetrapolitana, redigida por Bucer e por Capito. Essa passou a ser a primeira Confissão Reformada Alemã. Ela enfatiza o fato de que “Cristo oferece seu próprio corpo e seu próprio sangue como comida e bebida espiritual a seus seguidores”; contudo, quase nada diz sobre a relação do pão e do vinho com o corpo de Cristo, questão de fundamental importância para os luteranos. No entanto, vai além da Confissão de Estrasburgo ao enfatizar a necessidade de sustentação bíblica para todos os aspectos do culto e denuncia a culto de imagens, enquanto os luteranos continuavam a manter estátuas religiosas em suas igrejas.1 Na prática, Estrasburgo substituiu o altar pela mesa. 1
Arthur C. Cochrane, Reformed Confessians in the Sixteenth Century (Filadélfia: Westminster, 1966), pp. 75-76; cp. Referências à natureza reformada do culto, pp. 61-66, 71-72, 78-81.
O próprio Calvino esteve envolvido nos fatos ocorridos ali, pois lá chegara em 1538, depois de ter sido expulso de Genebra. O Presbiterianismo mais consistente da igreja de refugiados franceses, da qual se tornou pastor, contribuiu muito para mudar o padrão de governo e de culto em outras igrejas da cidade; e foi assim que o protótipo genebrês se tornou o modelo de Estrasburgo! A permanência de Calvino em Estrasburgo foi de grande importância para seu próprio desenvolvimento. Foi ali que ele veio a conhecer, em primeira mão, o ponto de vista luteranogermânico, particularmente quanto à sua posição em relação à teologia da Ceia do Senhor. Em 1549, quando o Ínterim1 foi imposto a Estrasburgo, com a reintrodução do ritual católico-romano no culto, Bucer partiu para a Inglaterra onde se tornou professor em Cambridge, e exerceu considerável influência na elaboração do segundo livro da Commum Prayer [Oração comum], que se tornou o credo de Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana. Mais uma vez as lições aprendidas na Alemanha seriam de grande proveito em outra região do mundo reformado. Infelizmente, quando a Fórmula de Concórdia, da Igreja Luterana Conservadora ou anti-reformada foi imposta a Estrasburgo, em 1581, esse bom começo chegou a seu fim, e a Igreja Reformada sentiu necessidade de procurar outras metas na Alemanha. No entanto, pelo menos algum conhecimento a respeito de um estilo mais natural e mais simples de culto veio a ser difundido em todo o movimento protestante. O reconhecimento das igrejas calvinistas bem como das luteranas como legítimas (em contraste com os menos organizados grupos de anabatistas), e como dignas de tolerância e, talvez, de interesse, foi de valor inestimável para a proteção dos reformados contra perseguição pior. Esse fato também ajudou a estabelecer, entre os luteranos, alguma consideração pelos reformados.
1
Termo aplicado a certos editos ou decretos de efeito temporário, válidos enquanto se decidia a controvérsia que lhe deu origem (Nota do Tradutor).
Essa tendência à tolerância haveria de ter um efeito bastante especial na atitude da Igreja de Hesse, particularmente. Não há dúvidas de que os encontros preliminares entre líderes reformados e luteranos, em Estrasburgo, tenha tido muita influência sobre a relativa unidade verificada na Conferência de Marburg. Uma vez que a questão referente à Ceia do Senhor continuou sem solução, esquece-se, freqüentemente, de que os luteranos, no início, desconfiavam do ponto de vista reformado a respeito do pecado original e de justificação, e logo se tornou patente a todos que, sobre essas questões, havia consenso fundamental entre os protestantes. Na verdade, o Landgrave Phillip, de Hesse, insistiu em que a conferência registrasse esse fato nos quinze artigos de Marburg. Suas sugestões para que se fizesse uma declaração mediadora sobre a Ceia do Senhor, com a qual todos pudessem concordar, foram adotadas posteriormente pelo teólogo luterano Melanchthon, em sua “variação” da Confissão de Augsburg. Foi principalmente por influência de Melanchthon que a Confissão de Augsburg não estigmatizou explicitamente o zwinglianismo como uma heresia. Mesmo sendo de confissão luterana, a Igreja de Hesse acolhia os zwinglianos e os calvinistas, e sua forma de governo se assemelhava à da Igreja Presbiteriana, com sínodos, mas sem presbíteros. Mais do que isso, é só com base neste fundamento que se pode explicar a dependência do Pietismo luterano em relação ao Pietismo anglo-holandês. Na verdade, todo o enfoque pietista que tende a “completar a Reforma”, isso é, que prossegue na busca de uma completa ortodoxia bíblico-doutrinária bem como na de um completo aperfeiçoamento do culto e do viver bíblicos, precisa ser compreendido do ponto de vista da perspectiva do interesse luterano no exemplo reformado, fato que se tornou evidente, pela primeira vez, em Estrasburgo. Já nos referimos à contribuição germânica para o desenvolvimento do Presbiterianismo como forma de governo da Igreja Reformada. Não se deve pensar que ela sempre significou a
mesma coisa que significa hoje, com ênfase na igreja local e seus presbíteros “leigos”. Ao contrário, ela respeitava, em primeiro lugar, a estrutura “superior” da administração eclesiástica: o Sínodo. Naquele tempo, a questão essencial na relação IgrejaEstado era: Quem é, afinal, o responsável pela estruturação doutrinária, pela disciplina dos ministros e de seus iguais? Deveria ser o governante secular, ou seus representantes, ou a própria Igreja? Ou deveria haver uma solução intermediária? Essa questão é de importância capital em tempos de perseguição ou guerra, pois envolve aspectos políticos que, de determinados pontos de vista, são melhores negociados por autoridades civis. Esse problema bem como suas várias soluções possíveis são, em grande parte, os mesmos em todo o mundo reformado. No entanto, em sentido mais básico e fundamental, pode-se reconhecer a contribuição singular feita pela Igreja Reformada Alemã ao significado e à importância do presbítero local, especialmente segundo a visão de John Laski (à Lasco) da igreja da Frísia, ao noroeste da Alemanha. Mesmo que a maior parte das comunidades reformadas (isso é Genebra, Londres e Amsterdã) tenha encontrado na Bíblia a base para a unidade governativa de uma grande cidade, unidade composta de ministros e de presbíteros, que podiam administrar os negócios de todas as igrejas da região como um presbitério sem sessões! Enquanto a autoridade de uma Assembléia, ou Sínodo, sobre os presbíteros era geralmente aceita, ao menos como uma meta razoável (alcançada na Escócia), foi de Laski a tarefa de coordenar a responsabilidade de presbitério e congregação e desta com os presbíteros. Ele definiu inclusive as atribuições dos presbíteros dentro das congregações. Laski era um nobre polonês cujo tio havia sido arcebispo de Gnessen e primaz de toda a Polônia; e ele próprio já havia recebido a oferta de uma diocese polonesa. Através da influência de Zwínglio, e de outros líderes suíços, ele se tornou reformado e se estabeleceu no leste da Frísia, em 1540. Em 1543 ofereceram-lhe o cargo de superintendente da Frísia. Ele não apenas introduziu a simplicidade no culto reformado, mas
também estabeleceu, particularmente, encontros semanais de todo o clero da região durante o período que vai da Páscoa até a Festa de São Miguel (29 de setembro). Nessas reuniões, a vida e a fé dos ministros eram questionadas, ouviam-se e discutiam-se sermões, e organizavam-se debates sobre questões doutrinárias, que diferentes ministros presidiam cada semana. O fato de saber que a disciplina da Igreja era exercida entre os próprios ministros, e que uns treinavam os outros no cuidado pastoral, teve um efeito tremendo sobre as congregações. Um encontro de ministros era mais do que uma simples reunião administrativa; era um verdadeiro exercício espiritual! Quando o imperador tentou impor, outra vez, as antigas superstições do Catolicismo às igrejas da Frísia, estes ministros mantiveram firme oposição contra elas, recusando-se a aceitar até mesmo compromissos que luteranos poderiam assumir. Contudo, quando as ligações internacionais de Laski provocaram acusações de traição contra ele, ele partiu para Londres onde assumiu a igreja de refugiados. Ali, sua contribuição ao desenvolvimento do Presbiterianismo foi ainda mais longe. Uma vez que se reuniam na mesma congregação diferentes grupos étnicos, ele achou conveniente fazer uso desta subdivisão natural. Para isso, foram escolhidos presbíteros em cada grupo, dando-lhes responsabilidade de supervisão sobre os respectivos grupos, com a obrigação de apresentarem relatório a todo o corpo de presbíteros. A partir destes relatórios surgiam, muito naturalmente, discussões sobre doutrinas e problemas de ordem prática enfrentados por toda a Igreja. Exatamente como na Frísia as reuniões de ministros eram voltadas para a resolução de seus próprios problemas, assim também em Londres, os encontros de presbíteros debatiam as questões trazidas pelos presbíteros. Aqui, mais uma vez, constata-se um avanço cujo significado tem longo alcance para as igrejas reformadas, particularmente nos dias atuais. Não é difícil demonstrar que as igrejas têm apresentado grande crescimento em todos os aspectos, sempre que
seus membros se organizam em pequenos grupos para edificação mútua e treinamento no serviço. Quer se pense no “profetismo”, no “adestramento” escocês, no “conventículo” pietista ou na “classe” wesleiana ou metodista calvinista, o princípio e o valor parecem os mesmos. Contudo, é também verdade que estes grupos têm reputação, por vezes merecida: a de serem perturbadores do culto e da vida da igreja “verdadeira”. Essa subversão ocorre quando estes grupos deixam de se considerar como um suplemento ou apoio ao trabalho de toda a Igreja, para achar que executam uma função que a Igreja está deixando de realizar. Há, quase que inevitavelmente, um tom de julgamento quando se fala destes grupos. Por outro lado, nem toda Igreja vê com bons olhos a existência de tais grupos em seu meio, pois parecem estar substituindo a pregação da Palavra pelo ensinamento de pessoas cismáticas e sem preparo. Essas questões continuam presentes entre nós. Um dos elementos de grande força, nos movimentos “carismáticos”, é sua ênfase ao desenvolvimento e à utilização dos dons espirituais de cada crente, o que leva, naturalmente, ao anseio por cultos com pequeno número de pessoas ou encontros informais onde os dons de muitos podem ter expressão. Nas igrejas presbiterianas de nossos dias, a grande questão ainda não resolvida é a da definição exata da linha que separa a função de ministro da função de presbítero. Ou será que não há essa separação? A solução encontrada por Laski é ainda de muito maior amplitude. Se o presbitério e as reuniões administrativas não são dominados por outros problemas senão pelas questões pastorais ou espirituais, então há naturais oportunidades para que as preocupações das igrejas e dos presbíteros sejam expressas. Desta maneira, o trabalho dos grupos sob orientação dos presbíteros não pode ser, em absoluto, substituto do trabalho da Igreja, e sim, um aspecto vital desta mesma Igreja. Já não se pode mais encarar o papel de presbítero como o de conselheiro do ministro, único a desempenhar a função pastoral na igreja, uma vez que todos compartilham do verdadeiro cuidado pastoral. Uma vez que a
única “regra” da igreja protestante é uma lei espiritual, isso é, fundamentada na comunicação do ensino da Bíblia, então, a capacidade de um presbítero para governar é, na verdade, sua capacidade de ensinar. Portanto, a linha que separa a função de um ministro da de um presbítero não é tão visível. Isso é o que os presbiterianos sempre sentiram, e mesmo pregaram, mas sempre tiveram muita dificuldade para colocar em prática. Foi isso que Laski e a Igreja da Frísia foram capazes de pôr em prática. Uma vez mais a influência posterior da prática reformada sobre o Pietismo luterano é inconfundível. Enquanto na prática luterana a liderança espiritual de leigos é algo impraticável (exceto no futuro distante ansiado pelo próprio Lutero, quando os cristãos possuírem maturidade espiritual suficiente para tornar isso possível) a prática reformada só poderá ser incentivada uma vez que os presbíteros não são “leigos”, mas oficiais da igreja e, como tais, dificilmente subverteriam sua ordem; antes, dá-lhe suporte. Mesmo que os pietistas nunca tenham endossado formalmente a estrutura administrativa reformada para o governo da Igreja, eles certamente aprenderam com ela e a utilizaram conforme o que dela puderam observar na Inglaterra e na Holanda, e, provavelmente, jamais tenham imaginado sua origem germânica. O relacionamento puritano pietista, no entanto, vai muito além de tais questões de estrutura. Os luteranos parecem ter erigido um medo muito grande de ênfase sobre a santificação, de obediência à lei de Deus, ou de propostas semelhantes.1 Isso é compreensível quando visto contra o fundo legalista da história do próprio Lutero e de outros homens da primeira geração do movimento protestante, porque eles dificilmente poderiam pensar na obediência a Deus em quaisquer outros termos que não estivessem relacionados com perdão. No entanto, o exemplo vivo dos reformados na Alemanha, e em outros lugares, tornou claro que a vital preocupação com detalhes da vida cristã não corroe, necessariamente, os fundamentos da Reforma ou, seja, não corroe 1
Não obstante, a explicação que o Breve Catecismo de Lutero fornece sobre os Dez Mandamentos é virtualmente indistinguível da de qualquer catecismo reformado!
a justificação apenas pela fé. Afinal, tanto luteranos como reformados estavam de acordo, em princípio, sobre algo como estrutura e disciplina reformadas, e a convicção dos luteranos de que sua implantação deveria ser adiada obviamente perdeu muito de sua força com o passar do tempo. Mais importante do que a estrutura presbiteriana é a doutrina reformada. Certamente a contribuição mais significativa e duradoura da Igreja Reformada alemã é seu grande credo, o Catecismo de Heidelberg. Tecnicamente falando, não existe uma declaração de fé reformada internacional equivalente à Fórmula Luterana de Concórdia. Ao contrário, temos três famílias de credo: A Primeira Confissão Suíça e a Segunda Confissão Helvética; os símbolos ingleses da Confissão de Fé de Westminster; o Catecismo Alemão-Holandês de Heidelberg e a Confissão Belgo-Holandesa e os Cânones de Dort. Todas as tentativas de se definir um credo verdadeiramente internacional falharam, via de regra por se reconhecer que tal credo seria totalmente desnecessário uma vez que “todos sabem o que é o Calvinismo".1 Contudo, a representação doutrinária que melhor expressa o Calvinismo internacional, em toda a sua simplicidade, é, certamente, o Catecismo de Heidelberg. Mais do que qualquer outro credo reformado, ele transcende as controvérsias passageiras do momento e se concentra na fé bíblica positiva, conhecida como Fé Reformada. É, ao mesmo tempo, um Catecismo para crianças e o único credo para ministros e teólogos, reconhecido pela Igreja Alemã. Facilita a pregação evangelística nas igrejas reformadas posto que é admiravelmente oportuno e organizado para a instrução e prática doutrinária. Essa é a razão pela qual Heidelberg e os territórios vizinhos do Palatinado são especialmente significativos na história do Calvinismo na Alemanha. Mesmo que as conquistas alcançadas em Estrasburgo, em Hesse e na Frísia tenham sido muito 1
J. Thomson, org., First General Presbyterian Council (Edimburgo: Constable, 18771, ps. 28-51.
importantes, os efeitos mais duradouros, ao menos para a Igreja Alemã, tiveram origem em Heidelberg. Conquanto em outros lugares o Calvinismo deva sua força aos ministros e ao povo, constituindo ele, essencialmente, a fé de uma minoria tanto quanto ao que concerne aos altos escalões do governo, pode-se dizer que ele foi fundado em Heidelberg, e deve sua força ao Eleitor Frederico III, o mais poderoso estadista da Alemanha depois do imperador. Aparentemente sua fé protestante era, em grande parte, devida à influência de sua esposa luterana. Quando ascendeu ao poder, defrontou-se com um Estado dividido por questões religiosas; os protestantes estavam divididos entre si, estando de um lado os “luteranos tradicionais”, que eram os menos tolerantes. Uma breve discussão sobre o ponto central da questão relativa à presença física de Cristo, na Ceia do Senhor, pode ser muito útil neste momento. Como é possível que uma questão que hoje parece periférica (ao menos para os calvinistas) tenha sido tão fundamental naquela época? Aos olhos dos “luteranos tradicionais” parecia que nada menos que o próprio Evangelho estava em jogo. Em primeiro lugar, a autoridade da Escritura parecia estar sendo questionada. Se a Bíblia afirma claramente “Isso é o meu corpo”, então, qualquer tentativa de explicar esse texto por meia de alusões a linguagem metafórica (ou figurada) do próprio Evangelho, é precisamente o que fizeram as interpretações medievais! O repúdio dos reformados, às palavras da Escritura era nada mais que puro Racionalismo, que transformava a razão do homem em ídolo diante do qual a Palavra de Deus deveria curvar-se. Os luteranos se preocupavam não apenas com esse ataque potencial ao Evangelho, mas acreditavam também que negar a presença física de Cristo na Ceia era, em si, uma rejeição do Evangelho. Se tudo o que se tem para oferecer é um Cristo espiritual, que valor tem para nós, quando somos ameaçados com a morte de nossos próprios corpos? Não, diziam os luteranos, nada temos a fazer com um tal Cristo, mas somente com o Cristo concreto, histórico e nosso salvador. Aos ouvidos dos reformados isso soava, nada
mais, nada menos, como caricatura. Era exatamente por seu interesse no Cristo encarnado, no Cristo histórico que os reformados davam tanta ênfase ao fato de ele agora ter subido ao céu e, conseqüentemente, não estar presente na Ceia do mesmo modo que estivera presente nos dias de sua permanência na terra, antes de sua ascensão, e estará presente de forma diferente outra vez, depois de sua volta. Do mesmo modo como sustentavam isso, podiam sustentar também a realidade de Cristo e de sua obra. “Espiritual”, para os reformados, não significava “ser incompleto”, mas significava a permanente atuação de Cristo através de seu Espírito, e longe de negar a plenitude da obra de Cristo, expressava a continuidade de sua obra em favor de seu povo. Os reformados sentiam que confessavam o mesmo que os luteranos, só que o faziam em linguagem mais clara, mais bíblica. Os luteranos, por outro lado, acreditavam ser impossível um acordo sobre essa questão. Era essa a situação eclesiástica com que se deparou o Eleitor.1 No início, Frederico tentou seguir o caminho do partido mediador de Melanchthon, que nem afirmava, nem negava a perspectiva reformada, porém mantinha-se cuidadosamente ambíguo. Quando outros príncipes alemães — que haviam assumido postura semelhante — fizeram outra opção, deixaram Frederico sem qualquer alternativa senão a de dar apoio à posição reformada. Isso já era previsto, quando a nova Universidade de Heidelberg concedeu diploma a um estudante que defendeu teses calvinistas, fato que comprometeu a própria Universidade. Além disso, práticas reformadas eram introduzidas no sentido de promover um culto bíblico, livre de superstição e uma legislação civil foi estabelecida na mesma linha da disciplina de Genebra. Faltava apenas a composição de um novo credo para completar o alicerce da Igreja Reformada. 1
Estudos úteis acerca do conflito reformado/luterano acerca da Ceia do Senhor e da ascensão e volta de Cristo, respectivamente, são os de Ernest Bizer, Studien zur Geschichte des Abendmahlsstreits im 16 Jahrhundert (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesallschaft, 1962) e James B. Wagner. Ascendit ad Coelos (Winterthur: Keller, 1964).
Essa seria a tarefa de dois grandes teólogos: Zachary Ursinus e Kasper Olevianus. Ursinus fora grandemente influenciado por Melanchthon, e usara o seu manual ao pregar em Breslau, sua cidade natal. Quando os “luteranos tradicionais” levantaram oposição à sua pregação, ele decidiu estudar na Suíça, onde passou a admirar Peter Martyr, que havia esclarecido a concepção reformada de predestinação e de eleição. Quando Martyr recusou o convite de Heidelberg, indicou Ursinus para ir em seu lugar. Olevianus, natural de Trier, começou a freqüentar os grupos de calvinistas perseguidos na França, as chamadas igrejas “sob a cruz”. Após estudar com Calvino, retornou a Trier para pregar a nova mensagem. Porém, quando a Reforma foi esmagada ali pelo Eleitor católico, aceitou o convite para ser pastor-capelão na corte de Heidelberg. Estes foram os homens que o Eleitor Frederico escolheu para formular seu novo credo, com a intenção de que pudesse haver em seu reino unidade e pureza de doutrina. Depois de concluído o credo e aprovado pelo Eleitor (pessoalmente comprometido em sua formulação final), esse convocou um Sínodo de teólogos e ministros, em dezembro de 1562, para exame e aprovação do Catecismo. Cumprida essa etapa, o Catecismo de Heidelberg veio a público no início de 1563 e circulou por toda a Alemanha. Enfrentou imediata oposição tanta de luteranos como de católicos, em parte por causa de um documento anexado a ele, que defendia o uso de pão ao invés de hóstias na Ceia. Quando os luteranos declararam que a Confissão de Augsburg havia sido rejeitada por Heidelberg, Frederico respondeu que muito de seu conteúdo havia sido ensinado em Heidelberg pelo teólogo luterano Brenz, e que eram os “luteranos tradicionais” que, com sua nova doutrina de ubiqüidade, atribuíam ao corpo de Cristo a prerrogativa divina da onipresença, e não seu Catecismo. Quando houve em Maulbron uma conferência entre teólogos luteranos e representantes de Heidelberg, tornou-se evidente que os reformados não aceitariam a doutrina da ubiqüidade, e a conferência malogrou. Os poucos minutos que durou esse encontro, no entanto, tornaram claro aos
melanchthonianos — ala mediadora dos luteranos —, o quanto eles próprios estavam ameaçados pelos defensores da doutrina da ubiqüidade, fato que encorajou alguns dentre eles a se voltarem para o Calvinismo como seu lar natural. Mais eloqüentes, no entanto, são os fatos que resultaram no reconhecimento da Igreja Reformada. Considerando que o único reconhecimento do protestantismo, até aquele momento, havia sido o reconhecimento alcançado pela Paz de Augsburg, em 1555, àqueles que prestavam lealdade à Confissão de Augsburg, com seu enfoque luterano sobre a Ceia do Senhor, como poderiam os reformados obter o reconhecimento e a proteção legal que esse fato implicava? Quando Frederico foi acusado, em 1566, de ter violado aquele acordo, respondeu que continuava leal à Confissão de Augsburg e que a interpretava sob o mesmo prisma dos melanchthonianos; que Estrasburgo a interpretara da mesma forma sem ser rejeitada e que, portanto, o Palatinado deveria estar sob sua proteção. O imperador Maximiliano, no entanto, decretou que Frederico deixasse seu Calvinismo bem como o Catecismo de Heidelberg e voltasse para o Luteranismo. Frederico recusou-se a fazê-lo, declarando que o Catecismo estava fundamentado nas Escrituras, e que só poderia ser derrubado se contestado por elas. Além do mais, não cabia a um príncipe católico determinar o que era Luteranismo ortodoxo, e que sua declaração de apoio à Augsburg deveria ser levada a sério. Diante deste fato, a opinião da Dieta voltou-se a favor de Frederico, e o Calvinismo foi reconhecido sob a proteção da Confissão de Augsburg. A partir deste momento, apesar de pequena, a Igreja Reformada tem sido considerada como uma Igreja legalizada na Alemanha.1 Que catecismo é esse que agora se tornara a espinha dorsal do Calvinismo alemão? Já destacamos sua dupla função de catecismo prático e de confissão teológica de fé. A orientação prática do Calvinismo, centrada na vida cotidiana, tem sólidos fundamentos 1
James T. Good, The Origin of the Reformed Church in Germany (Reading, Pa.: Daniel Miller, 1887), pp. 203-213.
teológicos. À medida que se avança pelo Catecismo, não se pode evitar a emoção causada por seus temas singulares. Acima de tudo, sua preocupação central com a necessidade do homem, e a maneira pela qual essa necessidade é atendida através das graciosas provisões do Evangelho. Os fatos e doutrinas centrais a respeito da obra de Cristo são continuamente definidos em termos de “benefícios” que deles recebemos (Perguntas e Respostas números 36, 43, 45, 51) e de “conforto” (57, 58, 59) culminando com o magnífico 59: P. Mas, como é que isso te ajuda, agora que crês todas essas coisas? R. Que sou justo em Cristo, diante de Deus, e herdeiro da vida eterna. Quase todas as perguntas falam das conseqüências da obra de Cristo “por mim”. Na verdade, a própria estrutura do Catecismo de Heidelberg, como expressa na pergunta de número dois, demonstra claramente sua orientação pessoal: P. Quantas coisas deves conhecer para viveres e morreres na bem-aventurança desta consolação? R. Três. Primeira, a grandeza do meu pecado e miséria. Segunda, como sou libertado de todos os meus pecados e de suas conseqüências miseráveis, Terceira, quê gratidão devo a Deus por essa redenção. Que significado teve esse enfoque teológico para a Igreja Reformada alemã? Seria possível falar de uma orientação analítica, de uma orientação teológico-escatológica e de uma “metodologia” reformada alemã que corresponda a essa teologia? Essa pode ser uma discussão complicada, pois além de a metodologia e a estrutura do Catecismo de Heidelberg não serem exclusivamente reformados em sua origem, seu maior impacto foi
sobre a teologia luterana, com sua ênfase na doutrina da salvação. Além do mais, há também o interesse dos puritanos ingleses, em particular Guilherme Ames, por uma orientação teológica semelhante; o esforço dos puritanos em considerar a teologia como uma arte, e não como uma combinação de arte e ciência, parece andar paralelo ao Catecismo de Heidelberg. Quando toda a poeira se assenta, a questão fundamental parece ser: Que papel pode ter, na teologia, a doutrina da eleição? Será que o fato de ser essencialmente incompreensível impede sua inclusão numa abordagem teológica que focaliza exatamente a possibilidade e necessidade de os cristãos “experimentarem” a graça de Deus? (Se é assim, então a necessidade de incluir a doutrina da eleição significará que o enfoque analítico é, afinal, insatisfatório para o Calvinismo pela mesma razão que, para o Luteranismo, é satisfatória a omissão deliberada, nos seus estudos teológicos, de qualquer discussão consistente a respeito da predestinação?) Talvez a incapacidade do Calvinismo em aplicar o método analítico à doutrina da eleição tenha levado à sua subseqüente preocupação com a questão do surgimento subjetivo da fé; poderia parecer que o malogro em aplicar a doutrina bíblica da eleição à vida pessoal dos indivíduos tivesse levado à opção por um interesse não bíblico, para explicar a gênese e a morfologia da fé.1 É o mesmo que dizer que enquanto o Catecismo de Heidelberg tem muito a dizer sobre o fato de o crente pertencer a Cristo e participar de todos os seus benefícios, nada tem a dizer a respeito do lado escuro da predestinação e da rejeição dos não eleitos. Na verdade, foi precisamente por causa desta ambigüidade potencial que a Igreja Holandesa achou necessário complementar o Catecismo de Heidelberg com os esclarecimentos dos Cânones de Dort. Haverá, na verdade, algo de sub-reformado no fato de se apresentar apenas os aspectos positivos dos decretos divinos? Ao menos, deve-se observar que o próprio Calvino procedeu de maneira bastante semelhante. A maior parte de suas discussões 1
Otto Weber, Die Treue Gottes in der Geschichte der Kirche (Neukirchen: Erziehungsverein, 1968), pp. 131-146.
sobre a eleição, nas Institutas, encontra-se não no Livro 1, que trata da doutrina de Deus, mas no Livro III, que trata da vida cristã. Ali esse tema é tratado em conexão com a mais prática de todas as questões: a perseverança e a confiança do crente no decorrer de toda a sua luta com o sofrimento e com a tentação. Freqüentemente a erudição moderna tenta estabelecer uma separação entre o Calvinismo original e o mais recente; é mais razoável, no entanto, ver continuidade entre a teologia pastoral de Calvino e a teologia de Heidelberg e reconhecer o valor desta abordagem “analítica”. É também aconselhável observar o paralelo que se estabelece em relação aos puritanos, na própria diversidade de sua prática calvinista. É certo que existe um elo entre os dois desenvolvimentos, particularmente quanto à influência que a filosofia do mártir huguenote francês, Petrus Ramus, teve sobre ambos.1 Seu empirismo prático, anti-aristotélico, floresceu não apenas entre os puritanos na Velha e na Nova Inglaterra, mas foi também, por algum tempo, posição dominante em Heidelberg e em sua instituição sucessora, a academia reformada de Herborn. Essa abordagem se caracterizava pela redução de complicados argumentos lógicos ao simples silogismo disjuntivo, evitando assim que qualquer argumento se distanciasse completamente da realidade, visto que estava sujeito o constante monitoramento dialético “se/ou” (quer isso seja verdade ou não, quer isso promova a glória de Deus ou não...). Conquanto essa metodologia pudesse prestar-se à vulgarização, foi uma tentativa reformada internacional no sentido de evitar que se apagasse a linha de distinção entre Deus e o homem, confusão tão comum nas abordagens aristotélicas mais antigas, que se provou estar em uso. Tanto o Calvinismo germânico quanto o inglês se uniram, então, contra o Racionalismo e a favor de um maior empirismo prático. Conquanto a influência do Catecismo de Heidelberg tenha sido mínima na Inglaterra, não se deu o mesmo com seu pensamento. É 1
Para uma compreensão da importância de Ramus, ver Perry Miller, The New England Mind: The Seventeenth Century (Boston: Beacon, 19541, cap. 7.
provável que cristãos germânicos, cujo pensamento tinha sido moldado segundo as concepções de Heidelberg, fossem receptivos às concepções puritanas de teologia e de vida, como apresentadas pelos pietistas. Não é de surpreender que os pietistas, com suas abordagens práticas, ou mesmo pragmáticas, da teologia, tenham sido levados a ver, no modo reformado de compreender a Ceia do Senhor, algo mais constante com a sua fé. Desta forma, a concepção de Heidelberg forneceu, em seu início, uma ponte através da qual se pode perceber a continuidade existente entre o coração do Luteranismo e o do Calvinismo. Heidelberg ofereceu também os fundamentos para a posterior cooperação entre luteranos e calvinistas no Pietismo, o qual chega mesmo a explicar a união subseqüente de concepções eclesiásticas diversas, em vários “despertamento” e “avivamentos” na igreja dos dias atuais e, a partir deste ponto, esclarece também o ecumenismo basicamente bíblico dos movimentos evangélicos contemporâneos. O desenrolar da história da Igreja Reformada do Palatinado não é, contudo, tão animadora. A constante rejeição das igrejas reformadas por suas irmãs luteranas alemãs, levou a causa protestante a uma fraqueza tal, que a Igreja Católica foi praticamente forçada a retomar território por força militar, no que foi bem sucedida. A animosidade constante, por parte dos luteranos, para com os reformados, no momento em que ambos, literalmente, lutavam por suas próprias vidas, é ainda mais difícil de compreender. Os luteranos queriam o apoio militar dos reformados; só que, ao invés de auxiliá-los, como recompensa, se aproveitaram de sua exaustão; tiraram vantagem da situação, tomando para si território reformado. Resumindo em poucas palavras, a Igreja Reformada, em função do terrível sofrimento suportado, foi praticamente eliminada do Palatinado. Esse fato levou sobreviventes a emigrarem, para benefício de muitas outras igrejas, inclusive para a comunidade reformada na América. Ainda que a contribuição teológica mais significativa feita à
Igreja deva ser atribuída ao Palatinado, em outros aspectos, o maior sucesso reformado foi em Brandenburgo, um dos estados anteriores à Prússia, que, posteriormente, se tornou o estado dominante na Alemanha. Por causa da índole comparativamente inconstante e espírito tolerante de Brandenburgo, muitos refugiados calvinistas e muitas famílias de comerciantes haviam se fixado ali desde o início da Reforma, inclusive crentes e ministros vindos da Holanda, de Estrasburgo e da Polônia. A verdadeira invasão, no entanto, ocorreu quando John Sigismund, seu governador, aderiu à Igreja Reformada, em 1613. Ainda que tenha havido motivos políticos, inclusive a segurança do território disputado na Alemanha Oriental para o seu estado, sua conversão deve ser encarada como fruto de convicção, baseada em seus contatos pessoais com reformados da região e, particularmente, na profunda impressão deixada sobre ele pela Fé Reformada de Heidelberg. Quase que imediatamente, em 1614, ele proclamou liberdade de consciência em seu reino, sem fazer qualquer tentativa de obrigar seus súditos luteranos a se tornarem reformados. Essa atitude antecipa a primeira de muitas outras vitórias em favor da liberdade de consciência tanto na Inglaterra como em Rode Island.1 Na verdade, depois da Guerra dos Trinta Anos, foi outra vez o Eleitor de Brandenburgo que assegurou direitos para os reformados sob o Tratado de Westfália e, mais tarde, foi o único a proteger a fé protestante na Alemanha. Brandenburgo tornou-se o grande lugar de refúgio não apenas para calvinistas alemães, mas também para calvinistas vindos de toda a Europa. Sob o governo do “grande eleitor” Frederico Guilherme, Brandenburgo intercedeu pelos valdenses em Savoy, pelos calvinistas em Anhalt e também pelos escravos das galeras em Nápoles. Quando Guilherme de Orange foi para a Inglaterra para tomar o trono, nove mil soldados de Brandenburgo foram enviados para acompanhá-lo. Talvez, mais importante tenha sido o fato de o Eleitor acolher os refugiados huguenotes, que viriam a tornar-se muito influentes no desenvolvimento de Berlim e da 1
Godd, Reformed Church in Germany, p.374.
própria Prússia. Parece, no entanto, que o pluralismo religioso não se adequava tão bem à Europa quanto à América, pois no interesse da unidade, no século 19, foi estabelecida a União Prussiana da Igreja que integrava a “maioria” luterana e a “minoria” reformada. Ao que tudo indica, nos séculos de vida lado a lado, o levedo reformado não havia levedado toda aquela massa informe porque, na União, foram impostos os rituais litúrgicos luteranos e poucas eram as oportunidades para igrejas e seminários de caráter reformado. E possível que isso tenha ocorrido porque na união de um corpo maior com outro menor sempre subsistem obstáculos. Além disto, o Romantismo da época reforçou as tradicionais práticas luteranas. É possível, no entanto, que a razão fundamental do colapso dos reformados tenha sido, nada mais, nada menos que o efeito drenador que os anos de nacionalismo provocaram na teologia. Se o Calvinismo vive ou morre por sua teologia, e se ele enfraqueceu, é quase inevitável que o único ponto de ênfase numa união está na questão prática. É também verdade que as comunidades de refugiados reformados tendiam a permanecer comunidades fechadas, como sociedades de classe média superior, e a grande massa da classe de trabalhadores mal percebia a presença dos reformados em seu meio. Resta ainda uma última comunidade reformada cujo impacto é digno de se considerar: a pequena cidade-estado de Bremen, a noroeste da Alemanha.1 A fé reformada chegou ali em 1547 através da pregação de Hardenberg, um amigo de Laski. Talvez seu modo de considerar a Ceia do Senhor fosse inicialmente desconhecido, mas logo os luteranos deram início às costumeiras pressões com o objetivo de levá-lo a aceitar a doutrina da ubiqüidade. Melanchthon aconselhava que tais irrelevâncias fossem evitadas, o que não impediu o surgimento de sérias revoltas que resultaram no controle ora de um grupo, ora de outro. Quando houve a tentativa de forçar Bremen a passar para o território dos “luteranos tradicionais”, a cidade resistiu às pressões 1
Jürgen Moltmann, Christoph Pezol und der Calvinismus in Bremen (Bremen: Einkehr, 1958).
católico-luteranas, sob liderança do dinâmico pastor Pezel, e adotou sua solidamente reformada Confissão de Bremen, em 1595. A importância teológica de Bremen é vista na apresentação que faz da teologia da aliança, ou teologia bíblica.1 O desenvolvimento desta teologia é melhor conhecido na Holanda. Contudo, o fato de saber que seu fundador foi John Kock, de Bremen, e que ela tem uma base Reformada Alemã, torna mais clara a compreensão do movimento. Em primeiro lugar, a teologia bíblica da aliança procura evitar o dilema luterano/reformado a respeito da Ceia do Senhor. Discussões infindáveis sobre questões metafísicas tais como em que sentido Cristo estava no céu e, ao mesmo tempo, em que sentido se encontrava na Ceia, e ainda, como estes dois sentidos limitavam um ao outro, foram questões que não levaram a lugar algum. Os reformados sempre vinham afirmando que essas questões metafísicas deveriam estar subordinadas à realidade histórica da ascensão e da volta de Cristo, isto é, de maneira alguma se deveria permitir que a “presença” de Cristo agora tornasse relativa sua verdadeira “ausência” e sua segunda vinda. As questões históricas precisam ser colocadas em primeiro lugar. A verdadeira natureza graciosa da obra de Deus, em nosso favor, é transformar, nutrir e tornar-se história mais do que tem sido em qualquer momento do passado. Talvez, essa seja apenas uma maneira particularmente dramática de dizer o que os debatedores calvinistas sempre afirmaram sobre a controvérsia da Ceia ou, seja, que a realidade da ascensão é mais fundamental do que a natureza da presença de Cristo na Ceia. Certamente, há aqui também a habitual ênfase dos Reformados sobre a atuação do Espírito de Cristo em nossa era, em oposição à ênfase luterana sobre atuação permanente do Cristo encarnado. 1
Acerca da teologia da aliança, as seguintes obras são as mais úteis: Gottlob Schrenk, Gottesreich und Bund (Gütersloh: Bertelsmann, 1923); Charles S. McCoy, “The Covenant Theology of Johannes Cocceius” (Dissertação na Universidade da Yale, 1956); Heiner Faulenback, Weg und zieI der Erkenntnis Christi (Neukirchen: Erziehungsverein, 1973); Gaarhardus Vos, Redemptive History and Biblical lnterpretation, org. por Richard B. Gaffin, J. R. (Phillipsburg, N. J.: Presbyterian and Reformed, 1980).
A teologia da aliança, no entanto, sugere um novo começo para a teologia evangélica em geral, em torno da estrutura da autorevelação e da atuação de Deus em todo o desdobramento do plano de Salvação apresentado na Bíblia. Por exemplo, no contínuo debate sobre a relação entre a ética do Antigo Testamento e a ética do Novo Testamento, a teologia da aliança ajudou, definindo a linha que separa a lei “cerimonial” da lei “moral” (tipicamente, isso foi usado para sustentar a disputa entre a Suíça e a Alemanha sobre se o Dia do Senhor era ou não o Sabbath1). Questões de grande praticidade envolvendo o caráter psicológico da fé salvadora poderiam ser exploradas através da comparação entre o conceito de salvação no Antigo e no Novo Testamento. De uma forma geral, seria possível buscar uma teologia mais científica, na qual todas as conclusões teológicas estivessem em grau jamais alcançado antes, enraizadas nas próprias Escrituras, e Escrituras compreendidas aqui como um todo orgânico e não como uma coleção de textos-prova isolados uns dos outros. Isso poderia levar à realização do grande sonho ecumênico reformado: uma Igreja protestante verdadeiramente unida. No entanto, na Holanda, a facção puritana precisianista mais tradicionalista se opôs fortemente a essa abordagem (no que se referia à questão do Sabbath, por exemplo), e foi necessário um certo tempo para que ambas as partes percebessem que a teologia bíblica e a piedade reformada podiam muito bem atuar em conjunto. Esse não foi o caso na Alemanha, onde o grupo reformado, do movimento puritano/pietista, passou a fazer uso imediato do procedimento. Não foi por acidente que esse fato chegou a diluir a hostilidade dos luteranos, promovendo grande crescimento do Pietismo luterano. Como a doutrina da aliança parece ser facilmente compreendida, talvez mesmo pelo fato de não existir pleno domínio de fundamentos filosóficos, prestou-se imediatamente aos propósitos dos pequenos grupos de estudo 1
A posição não-sabatista dos calvinistas foi expressa em forma de credo primeiramente em 1566, na Segunda Confissão Helvética, onde é declarado que “não cremos que um dia seja de qualquer forma mais santo do que qualquer outro, nem pensamos que o descanso em si mesmo seja aceitável a Deus”. (Cochrane, Reformed Confessions, p. 291).
bíblico liderado por presbíteros leigos. Desta forma a teologia do noroeste alemão foi transplantada para a constituição laskiana. A Alemanha, contudo, como outros países protestantes, não se manteve fiel à sua herança reformada. Será importante avaliar em que sentido o liberal Schleiermacher ou Karl Barth podem ser considerados reformados?1 Se há algum sentido em se retomar essa questão, a tarefa transcende à finalidade deste capítulo. Contudo, devemos ter em mente que a postura dos teólogos ou pregadores mais famosos de uma igreja, nem sempre representa o ponto de vista da maioria de seus membros. É verdade, os pietistas Stillen im Lande (os sem voz no país, a “maioria silenciosa”), não ficaram a salvo do liberalismo moderno, mas tinham suas próprias Bíblias, sua teologia bíblica, seus pequenos grupos e, definitivamente, seu Catecismo de Heidelberg. Assim, quando o Senhor ergueu uma bandeira evangélica reformada, ali estavam eles para unir-se em torno dela. Isso foi o que aconteceu no século 19, quando a Alemanha estava oficialmente sob o jugo do Schleiermacher e Ritschl; mesmo assim, a teologia e o Pietismo reformados sobreviveram. Conquanto menos visíveis hoje, os Die Stillen ainda estão lá. Mesmo que dificilmente nos deparemos hoje com a perspectiva da construção de grandes universidades reformadas na Alemanha, e não esperemos uma ruptura da teologia evangélica reformada ou, mesmo, o estabelecimento de grandes igrejas com pastores famosos e vigorosamente fiéis ao Catecismo de Heidelberg, contudo há grande valor e encorajamento a serem adquiridos do estudo do Pietismo reformado alemão. Influência calvinista essencial parece provir de outras igrejas e grupos paraeclesiásticos; o exemplo do Pietismo dos primeiros dias é fonte de permanente incentivo. Como já foi observado em relação à Frísia, o conceito presbiteriano de presbítero e de conselho de presbíteros 1
Algumas das tradicionais atitudes reformadas de resistência a governadores injustos podem ser vistas na resistência dos barthianos a Hitler; é significativo que isso se iniciou no território tradicionalmente reformado da Alemanha. Ver A. G. Cochrane, The Churchs Confession under Hitler (Filadélfia:Westminster, 1962).
é admiravelmente adequado aos membros da igreja. Não é de surpreender que esse conceito viesse a ser tão útil mais tarde, quando os luteranos levantaram a questão da possibilidade de a instrução bíblica ser realizada fora da pregação oficial. Nessas circunstâncias, os reformados podiam oferecer exemplos construtivos, bem-sucedidos e não subversivos. Particularmente, a proposta reformada de uma instrução prática do Catecismo foi de imenso significado na formação de uma confirmação evangélica entre os jovens no Luteranismo; isso forneceu um meio “respeitável” para abordar a questão fundamental a respeito da presença ou ausência de uma fé salvadora inteligível entre os jovens da Igreja. Talvez, esse tenha sido o antídoto mais eficaz contra a morte da ortodoxia em todo o movimento pietista. O Pietismo reformado musicou suas poesias devocionais criando os hinos que tanto têm contribuído para manter vivo o espírito evangélico. O melhor de tudo foi que o espírito de Cristianismo prático, biblicamente fundamentado, foi nutrido e divulgado pelos grupos reformados e luteranos, mesmo quando se encontravam cercados pelo “Racionalismo” oficial e pela descrença. Talvez, uma tal expressão de fé pudesse ser chamada ou de profana ou de iletrada. No entanto, é mais adequado dizer que foi e continua sendo a expressão dos reformados alemães, de Heidelberg e da teologia da aliança e da fé, e que se recusa a aceitar qualquer movimento que não observe seriamente a orientação bíblica para fé e para a vida. Esse é o grande legado dos reformados alemães. E, em essência, pouco diferente de qualquer outro movimento calvinista ou de qualquer outro movimento firmemente evangélico. Contudo, na Providência divina, essa Igreja foi chamada a definir questões de grande significado, em termos práticos e vitais, o que fez com muito sucesso. Essa herança ainda continua a abençoar a Igreja de Deus onde quer que se confesse seu “único conforto na vida e na morte”.
A Reforma Helvética na Hungria Kálmán D. Tóth Káimán D. Tóth é ministro presbiteriano aposentado, em Ottawa, Ontário. Serviu como missionário e ministro em vários lugares no Canadá, de 1947 a 1978. É detentor dos seguintes títulos: B.D., pelo Theological Seminary of the Reformed Church, de Budapest; Th.M. pelo Seminário de Princeton; Th.D. pelo Union Seminary, de Nova York; escreveu algumas teses, inclusive "The Dialectic in the Political Ethics of Calvinism", publicada em Budapest, em 1941. Tem escrito artigos sobre História e a Vida da Igreja. Durante dez anos foi editor do mensário New Life.
CAPITULO 7 A REFORMA HELVÉTICA NA HUNGRIA
Uma geração atrás, o século 16, com todas as suas tragédias, sua luta pela sobrevivência e a luz do Evangelho brilhando nas trevas, era considerado uma época claramente documentada e bem conhecida na história da Igreja Húngara. Teríamos dito que o Calvinismo estava muito bem estabelecido até por volta de 1545 e os gigantes da Reforma Húngara estavam pacificamente assentados em seus campos luteranos e calvinistas respectivos. Entretanto, recentes traduções da literatura reformada do latim para o húngaro e a conseqüente pesquisa dos historiadores abalaram algumas das posições, classificações e declarações tradicionais a respeito da teologia de reformadores individuais e, também, das correntes teológicas que eles representaram. Os húngaros (magiares no vernáculo) são de origem étnica FinnUgor e Ogur-Türk. Após três mil anos de migração para o Oeste, os dois povos se uniram numa nação, na época de Cristo, na área de Tobol. Sendo levado mais para o Oeste pela Grande Migração, a nova nação, sob Árpád, entrou na Bacia do Cárpato em 896.1 Por essa época, sua religião girava em torno do culto de Is-ten, o “Grande e Poderoso Senhor”. Após contatos preliminares com a Igreja Oriental, os árpáds decidiram-se pelo Cristianismo ocidental. O filho de Géza, Vojk, que foi batizado como “Estevão”, estabeleceu um forte reino cristão na Bacia do Danúbio, em 1000 d.C.. Apesar de ferozes rebeliões, que foram esmagadas sem misericórdia pela mão do rei pio, o governo real e o Cristianismo tiveram aceitação 1
Segundo recentes estudos, a ocupação da Bacia Carpácia aconteceu em duas etapas: uma em 670 outra em 896.
generalizada. Os árpáds deram vários “santos” à igreja cristã: Estevão, Emery, Ladislau, Elizabete e Margarete. Logo houve reação contra a Igreja — que era corrupta na ignorância e levava uma vida imoral e de luxúria —, reação que surgiu nos movimentos dos albigenses, bogomils e cátaros ao longo da fronteira do sul, e no movimento valdense por todo o país. Pedro Valdo, que por alguns anos foi um refugiado na Boêmia, enviou pregadores apropriados (idoneos verbi divini ministros)1 para a Hungria, de modo que por volta da metade do século 13 já se encontravam nas regiões norte, oeste e sudoeste e, em 1303, mesmo na própria Buda, comunidades valdenses de estudo bíblico, de estilo de vida simples e laborioso. Essas comunidades sobreviveram a perseguições severas até que, no século 15, elas foram absorvidas pelas comunidades hussitas. Os ensinos de João Huss espalharam-se rapidamente entre os veteranos húngaros que retornavam da guerra hussita e os estudantes que freqüentavam a Universidade de Praga.2 Dentre as três facções hussitas, a unitas fratrum encontrou refúgio na região norte do Cárpato. Em 1410, Jerônimo de Praga pregou em Buda. Após 1420 havia comunidades hussitas não apenas na parte norte, mas também nas regiões central, leste e sul, e inclusive em Buda. A primeira tradução da Bíblia para o húngaro, a “Bíblia Hussita”, foi obra de dois sacerdotes na Moldávia nos anos de 1430 — Thomas Pécsi e Bálimt Ujlaki, que eram refugiados hussitas.3 O rei renascentista, Matthias Hunyadi (1458-1490), organizou as guerrilhas hussitas de Giskra em sua famosa “Legião Negra”. Ele também reassentou refugiados hussitas da Moldávia na região 1
Mihály Zsilinszky, History aí lhe Protestant Church in Hungary (Budapeste: Athanaeum Rt., 1907), p. 33. 2 Ibid., p. 34. 3 Peter Payne de Oxford, um refugiado adepto de Wycliff, primeiramente em Praga, depois da Moldávia, exerceu influência sobre a tradução húngara “Biblia Hussita” e sobre o calendário a ela anexado. Cp. Sándor Fest, “Data Concerning lhe First Hungarian Translation of the Bible” in Studies in English Philology (Budapeste: Pázmány University, 1937), 2:41.
do Danúbio-Tisza. Na virada do século a baixa e a alta nobreza juntaram-se ao movimento. O Sínodo Geral Hussita de 1508 apresentou uma declaração de sua fé ao Rei Wladyslas II (1490-1516).1
Na Década da Desgraça de Mohács As Noventa e Cinco Teses de Lutero foram distribuídas na Hungria já em 15182 e foram bem recebidas primeiramente nas cidades alemãs, depois nas cidades húngaras. Em 1521, o arcebispo de Esztergom ordenou que a bula papal contra Lutero fosse lida em todos os púlpitos. Também em 1521, Estevão Werboczy, chefe do Partido Nacional, deu um banquete em honra a Lutero na Dieta Imperial de Worms e tentou persuadi-lo a renegar seus ensinos.3 No mesmo ano, Simon Grynaeus, mais tarde professor em Heidelberg e em Basiléia, por convite do margrave George de Brandenburgo, começou a ensinar na Universidade de Buda. No ano seguinte, Paul Speratus, de Würtzburg, seguiu seu exemplo para escapar à perseguição. A pregação evangélica e o repúdio ao papa foram mais abertos em Sopron, Nagyszeben, Kormoe e Loese, enquanto que Eperjes expulsou um vendedor de indulgências. Ao mesmo tempo dois estudantes, Baumheckel de Beszteree e Martin Czirják de Löese, matricularam-se na Universidade de Wittenberg. Antes de 1526 eles foram seguidos por outros cinco estudantes, e por outros seiscentos no restante do século. Tanto o Margrave de Brandenburgo, guardião do rei húngaro e um dos signatários do Protesto em Speyer, em 1529, como a Rainha Maria, eram simpáticos à Reforma. Em 1523 a rainha indicou o evangélico Conrad Cordatus e John Henckel como pregadores da corte. Entretanto, os enviados do Papa chegaram em 1524 e em 1526 1
Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 34. Aladér Szabó, Jr., History of the Reformed Churches in Hungary (Debrecen: Debrecen, 1942), p. 4. 3 Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 43. 2
para silenciar os evangélicos, e Vid Vinshemius, um professor de convicções evangélicas, em Buda, foi expulso em 1524. Outros, inclusive Grynaeus e Henckel escaparam, enquanto que John Kresling e Conrad Cordatus foram aprisionados.1 Uma vez que a Reforma, naquela época, era considerada como uma causa alemã que dividia a nação húngara, a Dieta nacional de 1523, por insistência do Partido Nacional, tomou severas medidas contra os seguidores do movimento. Ela decretou que “todos os luteranos sejam punidos com a morte e o confisco de propriedade”, enquanto que as Dietas de 1524 e 1525 resolveram que “todos os luteranos sejam queimados".2 Seguiram-se algumas execuções, mas a lei realmente não foi aplicada. A Dieta de 1526, desiludida pelo fato de o Papa não ter dado apoio contra os turcos, anulou a resolução e permitiu alguma liberdade para a pregação evangélica. Em 1525, Kresling estava pregando nas cidades mineiras do norte. A pregação entre os alemães e os húngaros começou na antiga capital do condado de Székesfehérvár e Trenesén, no norte. A preferência popular, que se seguiu ao “Ano Santo 1525”, foi indicada pelas ofertas, que consistiram em um trigésimo das do “Ano Santo” anterior, e também por bilhetes encontrados nas caixas de coletas que criticavam e ridicularizavam o Papa e o clero. No ano de Mohács, 1526, a rainha e a corte real vieram novamente para o centro das atenções. Enquanto George de Brandenburgo se correspondia com Lutero, o Reformador dedicava quatro Salmos de sua própria tradução à rainha, sob o título: Vier Trostliche Psalmen an die Konigin von Ungern (1526) [Quatro Salmos de Conforto para a Rainha da Hungria]. O papa Clemente VII reclamou a Carlos V a respeito da empatia de sua 1
Ibid., pp. 36-39; Imre Revesz e George A. F. Knight, History of the Hungarian Reformed Church (Washington, D. C.: Hungarian Reformed Federation of America, 1956), p. 7. 2 Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 43.
irmã para com a “heresia”, enquanto que a Rainha Maria permitiu ao enviado do imperador, Schneidpeck, propagar abertamente suas convicções evangélicas na corte. Na Dieta de Augsburgo, de 1530, ela tentou persuadir Carlos a ser clemente para com os seguidores da Confissão de Augsburgo.1 Existem também indicações da influência de Zwínglio no país durante os anos de 1520. Quando em 1525 foi publicada a carta aberta de John Bugenhagen para John Hesse de Breslau, antes que Zwínglio pudesse responder, uma forte e bem argumentada resposta anônima foi impressa em Augsburgo, presumivelmente escrita por Conrad Reyss de Ofen, de Buda. Ela logo foi reimpressa em Zurique e em Estrasburgo.2 O outro zwingliano, cujo nome aparece por volta desta época registrado como “João”, foi mencionado pelo povo de Kisszeben, no ano de 1530, por seu ensino no espírito zwingliano sobre a Ceia do Senhor3. O número crescente de seguidores de Zwínglio e Oecolampadius, após a derrota dos húngaros em Mohács, é indicado pelas severas punições a eles impostas pelo decreto de 1527, do Rei Ferdinando.
As Conseqüências de Mohács O Sultão Suleiman II, em seu avanço para o Oeste, não desejava conquistar a Hungria, mas somente os Bálcãs. Ele buscava apenas utilizar a Hungria como um estado vassalo amigável, como um pára-choque entre o império otomano e o de Habsburgo. Entretanto, ele exigiu tributo do Rei Luís II. Porém, após sua delegação enviada a Buda ter retornado de mãos vazias, em 1521, ele perseguiu seu objetivo pela força. Em Mohács (1526), seu exército de duzentos mil homens aniquilou a força húngara de vinte e seis mil homens. O rei e a nobreza dirigente 1
Ibid., p. 39. Révész e Knight, Hungarian Reformed Church, p. 29; Szabõ, Reformed Churches in Hungary, p. 5; Sándor Birõ et al., The History of the Hungarian Reformed Church (Budapeste: Kossuth, 19491. p. 29. 3 Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p 84. 2
caíram, e a nação entrou em colapso. Seguiram-se pilhagem, saques e matança. Os turcos marcharam rumo ao norte, entraram em Buda e se retiraram, deixando em seu rastro a devastação e duzentos mil mortos. Apoiado numa lei de 1505,1 John Szapolyai, o voivoda da Transilvânia, foi eleito rei pelo Partido Nacional, enquanto que, apoiados num acordo de dinastias com os Jagellos, o Arquiduque Ferdinando de Habsburgo foi eleito pela facção pró-ocidental: ambos, em 1526. Entre o reino ocidental (Habsburgo) e o reino oriental (nacional) o Sultão governava o segmento central e maior. Após a morte do Rei John, em 1540, Ferdinando buscou controlar também a Buda. Assim também procedeu o Sultão, em apoio à viúva Rainha Isabela e seu filho infante, João II. Para evitar uma confrontação sangrenta, Suleiman, com um pretexto ardiloso, entrou pacificamente em Buda e os turcos a mantiveram por um século e meio. Desta forma a divisão tripartite do país foi selada. De forma nenhuma as condições nos três segmentos do país eram as mesmas, tanto em relação ao bem-estar e segurança física do povo como em relação ao progresso da causa do Evangelho. Sob a ocupação turca, o povo sofreu agruras incríveis.2 Multas pesadas e injustificadas foram acrescentadas ao já severo fardo de taxações, segundo os caprichos do oficial turco. Os líderes de comunidades, entre eles a maioria dos reformadores, sofreram aprisionamento e açoitamento, dos quais o resgate era praticamente o único modo de se escapar. Multidões de pessoas, inclusive mulheres e crianças, foram lançadas na escravidão. As aldeias eram invadidas e queimadas. Para os comprometidos a coexistência significava uma moralidade deplorável.3 As 1
Elemér Bakó et al., History of Hungary (Munique: Hunnia, 1951), p. 74. János Csohány, “The Reformed Church in the Sixteenth Century and the turks”, in Studia et Acta Ecclesiastica (Budapeste: Magyarországi Református Egyház, 1973), 3:891-901; Antal Földváry, The Hungarian Reformed Church and the Turkish Occupation (Budapeste: Rábakõzi, 1940), pp. 9-210. 3 János Csohány, “Pal Thuri Farkas’s Circular Letter”, in Studia et Acta Ecclesiastica, 3:919. 2
condições físicas de vida, por outro lado, eram satisfatórias sob os Habsburgos e boas no reino nacional. No que toca à liberdade religiosa, havia uma liberdade considerável sob os turcos que, às vezes, freqüentavam o culto protestante ou, mesmo, arbitravam debates religiosos. Havia muito menos liberdade de culto sob os Habsburgos, e os pregadores protestantes eram freqüentemente aprisionados. A liberdade religiosa era maior no reino nacional, especialmente após 1556. Entre 1544 e 1574, na Transilvânia, o farol desta liberdade, a Dieta Nacional garantiu por vinte e duas vezes a liberdade de religião, sendo que de forma mais abrangente em 1557 e 1568.1 Em geral, os pregadores sempre estavam em viagem, não somente procurando onde pudessem pregar, mas também, em seu zelo missionário, procurando oportunidades para fazerem convertidos. As disputas religiosas também eram freqüentes, primeiramente entre papistas e protestantes; depois, entre luteranos e sacramentalistas, como eram denominados os seguidores da Reforma Helvética; e, finalmente, entre estes últimos e os anti-trinitarianos. Nestes debates públicos, os dramas polêmicos populares, nas escolas de igrejas bastantes difundidas e em numerosos produtos da imprensa, o povo como um todo estava muito envolvido. Psicologicamente, as condições políticas trágicas e os sofrimentos desumanos da maior parte da nação tiveram efeitos benéficos em todo o país. A aristocracia, a nobreza e o povo comum foram aproximados em muito. Eles também aprenderam a identificar a causa da fé cristã com a da nação. Por essa razão, quando os pregadores declararam que a devastação da terra e o sofrimento do povo eram o juízo de Deus por causa da idolatria que haviam cultivado, o povo aceitou o castigo com um arrependimento sincero e aceitou a consolação do Evangelho com uma resposta alegre e positiva.2 1 2
M. Eugena Oslerhaven, “Transylvania”, Reformed Review (Holland, Mich., 1968), p. 22. Révész e Knight, Hungarian Reformed Church, p. 8; Szabó, Reformed Churches in
Martin Kálmáncsehi Sánta (c. 1500-57) A influência da Reforma zwingliana na Hungria está indicada pela defesa que Conrad Reyss fez de Zwínglio (1526) e pelo decreto do Rei Ferdinando, em 1527, que proibia o ensino zwingliano. O representante mais proeminente dessa escola foi Martin Kálmáncsehi Sánta em Debrecen. Kálmáncsehi provavelmente nasceu em Kálmáncsa, Barânia, no baixo Transdanúbio, por volta da virada do século. Em 1523, ele matriculou-se na Universidade de Cracóvia onde, em 1525, foi honrado com o posto de “sênior” pela “Bolsa Húngara".1 Após retornar para casa com o grau de Mestre, em 1538, tornou-se cônego e diretor da Escola da Catedral de Gyulafehérvár (Alba Júlia). Esse colegiado da Catedral desempenhou um papel importante na história da Reforma na Transilvânia, uma vez que ali havia fortes inclinações para reformas e, no devido tempo, também para com o movimento da Reforma. A chave para a compreensão disto pode ter sido a liberalidade do reitor, o humanista Antônio Verancsics, e a hostilidade para com o bispo católico-romano, João Statileo. Mais provável, entretanto, foi o impacto da atmosfera puritana do colegiado, que se esforçava para voltar à simplicidade apostólica da igreja do Novo Testamento.2 O cônego Peter Kolozsvári e três outros membros importantes do colegiado tornaram-se líderes proeminentes no movimento da Reforma. Deste abrigo de erudição e do clero iluminado, o Cônego Martin tornou-se proeminente como o Reformador Helvético de Debrecen. Hungary; Birõ et al. Hungarian Reformed Church, p. 31. 1 Michael Bucsay, Gregory Szegedi, Reformer in Debrecen, a Pioneer of the Calvinian Trend in Hungary (Budapeste: Balazs, 1945), pp. 10ss.; Jenõ Zoványi, Lexicon of Church History (Budapeste: Reformed Church n Hungary, 1977), p. 289. 2 Michael Bucsay, Gregory Belényesi, Calvin’s Hungarian Student (Budapeste: Balázs, 1944), pp. 85-86.
Kálmáncsehi subiu ao primeiro plano quando foi indicado pelo Rei João como árbitro de um debate entre protestantes e católicos romanos, em 1538, em Segesvár. Sendo um homem sincero, ele dizia o que pensava mesmo ao rei: “Somente posso dizer que ele [o debatedor Estevão Szántai, reformador de Kassa] argumenta e ensina somente a verdade. Ele fala e considera somente as Escrituras, enquanto que o assunto dos monges e sacerdotes não passa de fábulas, opiniões humanas e tagarelice vã”.1 Presume-se que esse debate foi o ponto crucial na vida de Kálmáncsehi. Ele tomou a decisão de aderir à Reforma. No início dos anos de 1540 ele era ministro em Mezótúr. No final dos anos 1540 ele trabalhou em Sátoraljaújhely, e em 1551 mudou-se para Debrecen. Naquela parte do mundo estes eram anos difíceis para a Reforma, especialmente para aqueles que defendiam a posição helvética. Embora “Frade George” Martinuzzi Utyeszenovics — o bispo católico-romano de Nagyvárad com tendências próHabsburgo, porém ao mesmo tempo o mais poderoso conselheiro da rainha e um dos guardiões do jovem Rei João II —, fosse assassinado em 1551, seu sucessor, Matthias Zabárdy, de convicções semelhantes, teve sucesso em conseguir uma vitória contra os protestantes. Ele derrotou na batalha a Peter Petrovics,2 um dos mais ricos latifundiários do país e o único sobrevivente conselheiro e guardião de João II, que também era um protestante decididamente favorável à manutenção da independência do reino húngaro. Sob Zabárdy os luteranos obtiveram uma nova chance e a proibição da Dieta de 1548, contra os “sacramentalistas”, como eram denominados os seguidores da Reforma suíça, foi reavivada. Entretanto, a situação se inverteu quando Zabárdy morreu, em 1556, e Nagyvárad, após um longo cerco, foi tomada pelas forças petrovianas, em 1557. Esse ano marca o ponto crucial em favor da parte helvética e de toda a Transtibiscia, a área ao leste do rio 1 2
Bucsay, Gregory Szegedi, p. 10. Ibid., p. 14.
Tisza. Peter Petrovics surgiu como o homem mais poderoso do reino. Ele apoiou-se no elemento mais vigoroso dos húngaros, os seguidores da Reforma Helvética. Contra esse cenário político, Martin Kálmáncsehi Sánta abriu seu próprio caminho e lutou suas próprias batalhas. Como “plebanus” (ministro sênior) em Debrecen, desde 1551, em seu zelo puritano zwingliano ele purificou, talvez prematuramente, a cidade do Catolicismo romano e do Luteranismo. Dentro de um ano ele se viu excomungado por seus irmãos protestantes no Sínodo Luterano de Korosladány. Em contrapartida, ele os excomungou.1 Em 1552, ele deixou Debrecen e foi para Munkács no nordeste, onde, sob a proteção de Peter Petrovics, deixou marcas de sua influência numa representação moderada das posições helvéticas nos dois Sínodos de Beregszász (1552). Ulteriormente, a maioria luterana, protegida pela lei de 1548, confirmou a posição apresentada nos Atos do Sínodo de Erdód (1545) e na Confessio Pentapolitana (1549), ambos documentos luteranos. Eles, efetivamente, demonstraram um espírito de moderação e acordo, contudo, os diversos Sínodos durante os anos subseqüentes seguiram seu exemplo, embora de forma alguma tenham aceitado completamente a posição suíça sobre a Ceia do Senhor. Seus acordos devem ter sido difíceis para o radical Kálmáncsehi e seus numerosos seguidores, mesmo que por volta de 1552 seu zwinglianismo provavelmente deva ter amadurecido no espírito do Consensus Tigurinus de 1549.2 No início dos anos 1550, Kálmáncsehi sofreu ataques dos católicos romanos. George Draskovich — mais tarde arcebispo, cardeal e chanceler —, enquanto estudava em Pádua, escreveu sua obra Confutatio eorum quae dicta sunt a Joanne Calvino sacramentario, publicada em 1551. No ano seguinte, Draskovich, como cônego de Nagyvárad, relatou à Chancelaria Real que em sua diocese havia muitos sacramentalistas, bem como luteranos. O 1 2
Ibid., p. 11. Ibid., p. 12.
principal expoente de seu ensino era Martin, um sacerdote de Debrecen. Ressuscitando as posições de Berengar, ele ensinava que o corpo de Cristo estava nos céus desde Sua ascensão, e, portanto, não poderia estar presente no sacramento. Pelo relato de Draskovich, fica evidente que Kálmáncsehi ensinava no espírito da Reforma Helvética, mas é difícil precisar se sua posição era zwingliana ou se ele seguia a doutrina de Oecolampadius, Bucer e Calvino.1 No princípio de 1556, Kálmáncsehi voltou a Debrecen e foi eleito bispo da Transtibiscia.2 No mesmo ano, após a volta da Rainha Isabela, Petrovics, um fiel patrono e seguidor de Kálmáncsehi, purificou a igreja Kolozvár da parafernália católicoromana e convidou o reformador a vir para a Transilvânia para ensinar a doutrina helvética, especialmente acerca da Ceia do Senhor. Seus opositores saxões luteranos o desafiaram para um debate público; porém, percebendo sua posição minoritária, ele declinou. Então os líderes luteranos Francis Dávid e Caspar Heltai o atacaram em sua obra Responsum... ad scripta varia Martini a Calmancsa (1556),3 Matthias Hebler seguiu seu exemplo em sua obra Elleboron ad repurganda Phanaticorum... Capita qui primum in Transylvania Calvinismi semina spergere coeperunt authore M. Kãlmáncsehi, publicada no mesmo ano.4 Bálint Wagner criticou-o no ano seguinte em sua obra Odia calviniana (manuscrito).5 Novamente desafiado pelos luteranos, em 1557, Kálmáncsehi partiu para a Transilvânia. Entretanto, seu grave estado de saúde fê-lo voltar para Debrecen, onde morreu no fim do ano. Apesar da desigualdade desfavorável para a tendência 1
Ibid., p. 11. Zoványi, Lexicon, p. 289. 3 Ibid., p. 290; Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 87. 4 Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 87; Géza Kathona, “Helvetic Theological Elements in the Theological Views of Stephen Szegedi Kis” in Studia et Acta Ecclesiastica, 3: 23. 5 Zoványi, Lexicon, p. 693. 2
helvética, 1557 foi o ponto crucial de mudança na história da Transilvânia e da liberdade religiosa. A Dieta da Transilvânia daquele ano repetiu suas proclamações, uma vez em Kolozsvár e outra vez em Torda, de que “cada um poderá seguir a fé que escolheu”. A Dieta de Torda, entretanto, decidiu no ano seguinte contra os sacramentalistas. Mas a preponderância dominante dos seguidores da “religião húngara”, como o Calvinismo fora denominado por Kálmáncsehi, tornou impossível a implementação da lei. A declaração final de liberdade foi a glória da Dieta de Torda em 1568.1
Estêvão Szegedi Kís (1505-72) Szegedi nasceu em Szeged, no Baixo Tisza. Após um reitorado na região, ele estudou em Viena e em Cracóvia, onde serviu como professor assistente. Em 1543, ingressou na Universidade de Wittenberg, onde gozou da amizade de Lutero e de Melanchthon e, no mesmo ano, obteve seu doutorado em teologia com suprema distinção. A partir de 1545, ele manteve reitorados em Cegléd e na Baixa Transtibiscia. Na Transtibiscia começou a ensinar no espírito da Reforma Suíça, provavelmente sob influência de Martín Kálmáncsehi, a quem ele sucedeu em Mezótúr. Sofreu severas perseguições e foi levado de um lugar a outro. Em 1552, tendo já formulado sua orientação helvética, ele encontrou um refúgio como reitor do Toma College. Por causa de sua erudição, o “Mestre Szegedi” granjeou o título de Magister Hungariae. Szegedi travou sua batalha mais difícil e conquistou sua mais notável vitória. [Em Torna, e em trânsito para o pastorado de Laskó, no baixo Danúbio (1554-1558), ele venceu sua mais difícil batalha e ganhou sua maior recompensa: conquistou, para a Reforma Helvética, dentre a ala de LuteroBrenz, um de seus discípulos chamado Peter Melius Juhász.2] Em Laskó, ele foi eleito bispo do Distrito da Barânia, cujas cento e 1 2
Osterhaven, “Transylvania”, pp. 22-24. Kathona, “Helvetic Theologic of Elements”, p. 15.
vinte igrejas foram conquistadas para a Reforma por seu predecessor, Michael Sztáray. Após quatro anos ele prosseguiu rumo oeste para o baixo Transdanúbio e, com sua paróquia em Kálmáncsa, serviu na região fronteiriça em ambos os lados da linha divisória turco-húngara. Por essa época ele redigiu os Decretos da Barânia que, em sua revisão helvética, vieram a ser os Decretos de Hercegszólõs1 (1576). Foi preso pelos oficiais turcos, mas após ter sofrido por dois anos nas cruéis prisões turcas, ele foi solto por meio de um resgate coletado entre toda a nação. Depois disso, ele serviu fielmente à Igreja em Ráckeve e, como bispo, serviu ao distrito danubiano maior, devotando grande parte de seu tempo à erudição teológica. Esse “mais erudito Reformador húngaro"2 é autor de várias obras, todas elas publicadas postumamente e no estrangeiro: Assertio vera de trinitate (Genebra, 1573, 1576), Speculum Romanorum pontificum (Basel, 1584, 4ª ed. 1602), Tractatus brevis de traditionibus quíbusdam pontificum Romanorum, juntamente com o anterior; Questiones de venbis coenae Domini (Zurique, 1584), Theologiae sincerae loci communes de Deo et homine (Base), 1585, 5ª ed. 1608), Doctninae papisticae, acrescentada à obra anterior, Confessio verae fidei de uno veno Doo, anexada à 4ª e 5ª edições de Loci Communes, e Tabulae analyticae (Shaffhausen 1592, V ed. Londres 1593, 5ª ed. Basel 1610).3 A análise de sua obra magna, Loci Communes, feita por G. Kathona,4 nos será útil no propósito de demonstrar sua procedência teológica em relação aos Reformadores ocidentais, especialmente os representantes da corrente helvética, e os caminhos pelos quais, por intermédio da erudição de Szegedi, a 1
Zoványi, Lexicon, pp. 48, 252, 584. Ferenc Balogh, Details of the Hungarian Protestant Church History (Dabrecen, 1872), p. 73; Michael Bucsay, “Stephen Szegedi Kis’s ‘Speculum”’, in Studia et Acta Ecclesiastica. 3:110; Kathona, “Helvetic Theological Elements”, pp. 16, 106. 3 Zoványi, Lexicon, p. 584. 4 Kathona, “Helvetic Theological Elements”, pp. 13-106.
2
teologia Reformada influiu na vida da Igreja Reformada da Hungria. Após os Loci Communes de Melanchthon (1521), seguiram-se vários Loci, especialmente no arraial helvético. O mais importante deles é o de Wolfgang Musculus (1597-1663),1 de 1560. Na verdade, Szegedi o utilizou como modelo para sua obra. Musculus, anteriormente um diácono em Estrasburgo, ministro em Augsburgo e, após 1560, professor em Berna, formulou sua teologia sob a influência de Bucer e Capito em seus primeiros anos. Durante seu professorado em Berna, ele também foi influenciado por Bullinger e Calvino, especialmente quanto a seu ensino sobre a predestinação. Pela correspondência e por contatos pessoais, ele exerceu forte influência sobre vários húngaros, entre os quais Szegedi Kis e sua obra Loci Communes. Szegedi, contudo, vai além de Musculus em suas conclusões teológicas e estende o escopo de sua abrangência a campos derivados, incluindo ética, política, sociologia e suas fontes foram os principais teólogos da Reforma Helvética.2 Fora estes, o único é Melanchthon, que Szegedi considera ser o Musculus da ala luterana. Szegedi desempenha supremamente bem o papel mediador de Musculus através de sua abordagem eclética da teologia. Ele identifica suas fontes muito raramente, mas extrai liberalmente material delas. O nome de Musculus somente é mencionado três vezes, embora se possam esboçar seus Loci Communes de 1560 por toda a obra de Szegedi. Fica evidente que Musculus é o teólogo favorito de Szegedi. O nome de Peter Vermigli Martyr é mencionado por treze vezes, na maioria ligado a assuntos secundários, enquanto que suas posições foram adotadas por Szegedi em assuntos principais, tais como predestinação eleição, pecado, reprovação e outros. O nome de João Calvino aparece apenas uma vez, ao condenar a dança imoral, mas ele não é mencionado na exposição do Pai Nosso, que 1 2
Ibid., pp. 20-21. Ibid., pp. 17-19; Bucsay, “Stephen Szegedi Kis’s ‘Speculum”’, pp. 99-106.
Szegedi tomou emprestada em todos os seus elementos essenciais. O nome de Theodore Beza nunca é mencionado, embora sua Confissão de 1560 esteja essencialmente incorporada na obra de Szegedi. O nome de Heinrich Bullinger é mencionado três vezes, acerca da lei e casamento, porém suas posições sobre os sacramentos, a Ceia do Senhor, aliança, anjos, autoridade civil e heresias estão incorporadas nos Loci de Szegedi. O nome de Melanchthon ocorre quatro vezes, com relação a casamento, embora seu ensino esteja refletido também nas questões da penitência, boas obras e vontade livre. Uma análise maior revela que na apresentação que Szegedi faz em vinte e seis capítulos, Musculus domina em vinte e um — em sete com exclusividade, em quatorze com predominância. Aparentemente, Szegedi tinha uma empatia para com seu teólogo favorito, devido a convicções teológicas e esforços comuns para construir uma ponte eclesiástica entre Wittenberg e Genebra. Alcançamos uma compreensão maior do pensamento teológico de Szegedi ao considerarmos seu modo de selecionar, retificar e enfatizar seu material. As posições de Musculus, sobre pecado e salvação, concordam com as de Calvino: elas são consideradas como parte do mesmo decreto. Musculus discute muito pouco a respeito do problema acerca de Deus como o autor do pecado. Szegedi, porém, vai mais longe em sua busca por uma solução. Ele passa a considerar Vermigli, que considera o pecado como o meio de Deus apontar para a salvação. Ao desviar-se da visão mais obscura de Musculus, Szegedi apresenta paralelamente a ele o ensino de Melanchthon sobre iustitia civilis,1 mostrando como o homem é capaz de fazer boas obras na vida civil — uma visão que de forma alguma estaria em conflito com o ensino de Calvino ou de Beza. Entretanto, a repercussão de Szegedi na Reforma, na Hungria, é mais abrangente do que isso. Através de seus esforços sutis de retificar os ensinos de Bullinger (que em seus dias era muito popular na Hungria) com os ensinos mais importantes de Beza, 1
Kathona, “Helvetic Theological Elements”, pp. 24-101.
Szegedi serviu como um instrumento para introduzir Calvino e o Calvinismo na Hungria. Entretanto, através de seu ecletismo ingênuo, ele o fez num espírito irônico, servindo como mediador entre as duas correntes da Reforma Helvética representadas pela Segunda Confissão Helvética, de Bullinger, e pelo Catecismo de Heidelberg, que foi escrito sob a inspiração de Calvino. Esse era o “Evangelho” unificador pelo qual as facções da Reforma ansiavam, e esse foi o segredo do enorme sucesso do “mais erudito Reformador húngaro”, tanto em sua terra como no estrangeiro.1
Gregório Szegedi (m. 1569) A pessoa de Gregório Szegedi fornece uma resposta para três importantes questões: (1) A identidade do estudante húngaro de Belénves, um correspondente que visitou João Calvino em 1544;2 (2) O enigma do grande número de estudantes húngaros que, após retornarem de Wittenberg, tornaram-se líderes de primeira linha da Reforma Helvética; e (3) o problema da origem do “Calvinismo” na Hungria. Segundo o historiador da Igreja do século 17, Peter Bod, Szegedi foi o único reformador húngaro que visitou a João Calvino em Genebra (em 1544), antes de seus estudos em Wittenberg (1556-57). Sob influência helvética, ele serviu de instrumento para introduzir o canto de salmos nos cultos, contribuiu para a Confissão de Debrecen e, acima de tudo, foi um pregador e professor erudito da doutrina helvética sobre a Ceia do Senhor, no espírito do Consensus Tigurinus (1549). Por todas essas características, Gregório Szegedi tornou-se um dos principais expoentes, se não o principal, do Calvinismo na 1
Ibid., pp. 105-106. O Professor Bucsay teoriza acerca da possível identidade de Gregório Belényesi como o “aluno húngaro da Calvino” e Gregório Szegedi como o “reformador de Debracan, um pioneiro da corrente calvinista na Hungria”. 2
Hungria.1 Szegedi manteve o inconspícuo papel de reitor em Debrecen até 1556, quando foi para Wittenberg gozando licença para estudos. Saindo de Debrecen não apenas sob pressão católicoromana, mas também sob pressão luterana, ele encontrou refúgio exatamente na cidadela do Luteranismo. Como aluno devoto de Melanchthon, ele aceitou a teologia mediadora do grande mestre, freqüentemente denominado criptonista. Como o número de estudantes húngaros, em Wittenberg, fosse grande, é compreensível que os formandos de Wittenberg retornaram à Hungria não somente como excelentes eruditos da Reforma, mas também como seus líderes de vanguarda.2 Entretanto, ao considerarmos que a maioria desses formandos saiu de Wittenberg para tornar-se o “Estado Maior” da Reforma Helvética, na Hungria, surge a seguinte questão: quem era o estudante com uma dedicação tal e com tal conhecimento pessoal dos reformadores e igrejas helvéticos de modo que pôde conquistar muitos de seus colegas estudantes para a corrente helvética? A conjectura de M.Bucsay, fortemente apoiada pelos estudos que elaborou, é de que não era ninguém menos que Gregório Szegedi, cognominado Belényesi, que se correspondera com Calvino e o visitara em Genebra. Essa conjectura é apoiada por três evidências.3 Em primeiro lugar, o ano que passou em Wittenberg, Szegedi não fez segredo de suas posições doutrinárias, porém em duas cartas impressas, de agradecimento, ele expressa sua gratidão inesgotável a seus dois patronos — Peter Petrovics, o grande estadista, e Martin Kálmáncsehi Sánta, “plebanus” de Debrecen — ambos expoentes e defensores inflexíveis da corrente helvética. Em segundo lugar, em 1557, em sua volta para Debrecen, ele parou em Eperjes e 1
Bucsay, Gregory Szegedi, p. 4. L. Balázs, “Laskai Csókás Péter ‘De homine’ cimü müvébek elószavábói”, in Studia et Acta Ecclesiaslica, 3:1017 ss. 3 Bucsay, Gregary Szegedi, p. 36. 2
Kassa e, em Eperjes, pelo convite de amigos, em Kassa, pelo convite do Conselho Municipal, pregou diversos sermões sobre a Ceia do Senhor. Em Eperjes ele apresentou as posições de Melanchthon, porém em Kassa ele demonstrou ser um expoente tão eloqüente da doutrina helvética que o Conselho lhe estendeu um convite. Em terceiro lugar, mesmo que por causa da objeção de Debrecen, ele teve de declinar do convite, dentro de dois meses ele enviaria a Kassa uma nova declaração da doutrina helvética por ele prometida, que tinha sido recém-adotada sob sua liderança pelo Sínodo de Partium. Era o Credo da Ceia do Senhor (1557),1 unindo a Cistibíscia e a Transcistibíscia na sólida fé helvética. Em seu episódio Eperjes-Kassa, Szegedi seguiu a corrente helvética no que toca à Ceia do Senhor, despertando dessa forma uma tormenta entre os luteranos. Ele ensinou a presença objetiva de Cristo na Ceia, porém definiu o modo de Sua presença como ratione officii, exatamente como o fizeram Oecolampadius, Bucer, Calvino e o “Lutero húngaro”, Matthias Dévai Biro.2 O Officio de Szegedi referia-se ao papel de Cristo agora à direita do Pai, como a Cabeça que nutre Seu corpo espiritual, a Igreja, na qual os crentes se unem com o Senhor pela habitação do Espírito Santo. O corpo espiritual de Cristo é tomado unicamente pelos crentes. Essa era a posição helvética, expressa no Consensus Tigurinus. Entretanto, os oponentes luteranos de Szegedi contrastaram seu ensino, com uma má vontade considerável, não com a Augustana Variata de 1540, nem mesmo como texto latino da Augustana de 1530, porém com a variação alemã de 1530, que é bem menos flexível do que as outras duas.3 O solene Sínodo dos “mestres cristãos de toda a Hungria e Transilvânia”, em Marosavásárhely Transilvânia, em 1559, seguindo as Propositiones de coena Domini disputandae In synodo Vasarheliensis, concordou com a Confissão Cristã Geral 1
Ibid.. pp. 53-54. Ibid., pp. 48-49. 3 Ibid., pp. 49-50. 2
a respeito da Ceia do Senhor. Essa primeira declaração de fé, na língua magiar, é uma declaração Zwínglio-Bullingeriana, mas é também calvinista ao lidar com a participação do crente no sacramento. Aqui aparece a doutrina de Gregório Szegedi, mas também se pode detectar a influência de Szegedi Kis e a perícia de Peter Mélius, esse último sendo o principal representante das igrejas da Hungria no Sínodo.1 O credo transcrito em alemão foi enviado para Heidelberg onde foi aprovado e publicado pela faculdade, o que é um reconhecimento de seu caráter calvinista. A mesma herança calvinista foi codificada na Confessio Debreceniensis-Agrovalliensis, em 1562, da qual novamente Gregório Szegedi e Peter Mélius são considerados co-autores, esse último tendo o papei principal. A Confessio tem uma concordância notável com a posição de Calvino, principalmente em duas doutrinas intimamente ligadas, a Cristologia e a Ceia do Senhor. A respeito da presença de Cristo na Ceia, ela não se alinha nem com o objetivismo de Lutero, quanto aos sinais, Palavra e ocasião, nem com o subjetivismo da fé de Zwínglio, mas arquiteta uma construção do “objetivismo do Espírito Santo pela Palavra”. A respeito da unidade do crente com Cristo — “Cristo em mim e eu em Cristo” — a Confissão de Debrecen ensina a união com a totalidade de Cristo, porém a limita a Seus benefícios espirituais. Isso está em harmonia com sua Cristologia e, o que não é de surpreender, com o ensino de Calvino sobre a Communicatio idiomatum utrius naturae ad personam.2 A Confissão, entretanto, leva esse princípio calvinista para além de Calvino, em sua doutrina da Ceia do Senhor. Após a publicação da Confissão de Debrecen, em 1563, Szegedi recebeu um convite para Kolozvár, Transilvânia, mas, por alguma razão desconhecida, ele declinou do convite. No mesmo ano ele deixou Debrecen e desempenhou pastorados em Tokaj e, 1
Ibid., pp. 60-61. Ibid., pp. 67-73. A comunicação das propriedades da cada natureza à pessoa. Institutes, 11.14.1. 2
mais tarde, em Eger, mas não temos explicação deixada quanto à sua saída de Debrecen. Alguns historiadores sugerem uma razão: um possível conflito entre Szegedi, o ministro sênior de Debrecen, e o vivaz, produtivo e bem-sucedido segundo ministro, o jovem Bispo Peter Mélius.
Peter Mélius Juhász (1536-72) Peter Mélius, um filho da baixa nobreza; nasceu em Horhi (um lugar não mais habitado), no condado de Somogy, Baixo Transdanúbio. Seu sobrenome, Juhász, significa “pastor de ovelhas”; o nome Mélius é derivado de um termo grego correlativo. Após ter cursado a escola básica e secundária em sua região, muito provavelmente ele ingressou na recém-fundada, e de rápido crescimento, faculdade de Tolna, em 1553 ou 1554, onde, de suas primeiras convicções brentianas e luteranas, ele foi conquistado para as doutrinas helvéticas pelo erudito Estêvão Szegedi Kis. Depois de Estevão ter-se mudado para Laskó e ter-se tornado bispo da Barânia em 1554,1 eles continuaram a manter correspondência. Szegedi também mudou a lealdade confessional da escola de Tolna para a Reforma Helvética. O próximo reitor da escola Paul Thuri Farkas, era um forte adepto de Genebra.2 Dessa forma, mesmo antes de seus estudos em Wittenberg em 1556 a 1557, Mélius foi fortemente influenciado pelas doutrinas helvéticas. Em 1557, seus estudos foram abruptamente interrompidos ao ser convocado de volta para sua terra para combater as crescentes forças do antitrinitarianismo. Entretanto, permanece sendo um enigma o seu paradeiro entre meados de 1557 e meados de 1558, antes da chamada para Debrecen.3 1
Géza Kathona, “The Work of Peter Melius”, in Studia et Acta Ecclesiastica (1967). 2:113. 2 O dístico de Paul Thuri Farkas para as Institutas de Calvino: “Desde a época de Cristo, à exceção dos escritos apostólicos / Os séculos não produziram outro livro como essa”. 3 István Botta identifica MéIius com Peter Somogyi, professor em Vãgsellye, no noroeste
Debrecen era uma cidade de estancieiros, vendedores de gado e comerciantes. Com uma população de quinze mil habitantes, era a maior cidade da Hungria na era pós-Mohács (1526). Foi em Debrecen, sob o ministério de Kálmáncsehi, que a Reforma Helvética obteve a supremacia a partir de 1556. O jovem Mélius, de 22 anos de idade, um erudito de grande reputação e talentos extraordinários, iniciou seu trabalho lá em 1558. Durante seu ministério de menos de quinze anos ele publicou quarenta e quatro obras, a maioria delas ainda existentes. Doze outras ficaram sem publicação. Suas obras incluem seis confissões de fé, cinco volumes de sermões, dezenove obras polemistas, dois catecismos, três livros devocionais, um hinário, três teologias, sete traduções e exposições da Bíblia, um direito canônico, uma obra sobre botânica e uma coleção de correspondência.1 Como segundo ministro, sob Gregório Szegedi como plebanus, ele foi eleito bispo aos 25 anos pelo distrito que, em seu curto período de vida, foi acrescido das áreas de Nagyvárad e Szatnár, e veio a compreender praticamente toda a Transcistibíscia. Mélius era um pregador impetuoso de estilo expositivo, um sincero estudioso da Bíblia, um teólogo erudito, um eficiente organizador e um infatigável debatedor. Sua grandeza, porém, não se encontra em nenhuma destas qualidades, mas em seu profundo senso de chamado: “É desígnio de Deus, decreto de Deus”, disse ele, “que na Hungria, em Debrecen, seja pregada a Palavra de Deus. Não é por acaso”. Acerca de si próprio, ele escreveu: “Sou uma trombeta, uma voz clamando. Não falo de mim mesmo, mas de Deus”. E mais: “Sou obrigado a pregar, quer o mundo me ataque, quer me persiga; quer eu viva ou morra; mas tenho de ensinar, mesmo pelo preço da perda de minha vida".2 Após uma vida gasta, em sua maior parte, da Hungria, que por duas vezes foi preso e cujo diário da prisão ainda existe. Ocasionalmente Peter Mélius assinava seu nome como “Peter Somogyi” (isto é, de Somógia, o condado onde nasceu). Essa teoria preenche a lacuna de tempo entre 1557 a 1558 — o tempo entre sua partida da Wittenberg e sua chegada em Debrecen. Cp. lstvãn Botta, The Youth of Peter Melius (Budapeste: Akadémiai Kiadó, 1978). 1 Barnabas Nagy, “The Works of Peter Melius” in Studia et Acta Ecclesiastica, 2:193301. 2 Kathona, “The Work of Peter Melius”, 2:106-107.
em ferozes debates com os anti-trinitarianos, ele morreu aos 36 anos de idade, em 1572. Cerca de duzentos sermões de Mélius ainda existem em cinco volumes. Esse é um número relativamente pequeno, comparado com o número de sermões que ele realmente pregou em seus quinze anos de ministério. Embora ele nunca tenha observado as regras clássicas da homilética, através, de seu biblicismo fiel, sua sólida base teológica, seu propósito educacional e, sobretudo, sua consciência profética de chamado, ele exerceu uma influência extensa. Essas qualidades se refletem também em seus sermões impressos, redigidos após a pregação. Mesmo no texto impresso sua natureza impetuosa brilha com o fogo da pregação original no púlpito. O livro de Mélius sobre Colossenses (1561) é uma “pregação expositiva” versículo-por-versículo, no estilo da Reforma. Os sermões tópicos sobre “o ofício mediatório de Cristo” (1561) são mais tratados dogmáticos, abundantemente apoiados nas Escrituras e vivificados por argutas observações expositivas. Sua obra Sermões Húngaros (1563) são exposições da Epístola aos Romanos, enquanto que seus Sermões Selecionados (1563), aos quais é acrescentada sua Agenda (Livro de Ordem), são para os dias sagrados do ano cristão. O livro sobre Apocalipse (1568), refletindo o êxtase de sua mente, é a mais verdadeira apresentação de sua personalidade.1 Deus, para Mélius, é o Deus vivo cujo ser se manifesta em Cristo tanto na criação como na redenção. Cristo é a cabeça, o plano e o propósito da criação e salvação. A estrutura de Seu plano e ação é a predestinação. Podemos nos apossar de Cristo e de Seus benefícios pela fé em nós operada pelo Espírito Santo. Sua teologia cristocêntrica, aplicada de modo bastante prático, permeia toda a sua pregação ribombante e cheia de paixão, sempre conduzindo os ouvintes às águas tranqüilas do amor de Deus. 1
Nagy, “The Works of Peter Melius”.
Em seu Livro de Orações, impresso entre seus dois Diálogos, Peter Mélius, o teólogo erudito e o pregador trovejante, aparece como fiel pastor do rebanho de Deus. A importância peculiar do livro é que ele é o primeiro livro de orações escrito em húngaro para o povo de fé reformada. Ele é um abandono radical dos modos tradicionais de oração: um produto da mente criativa do autor. As orações têm uma afinidade íntima com o primeiro diálogo relacionado à vida real. São orações bíblicas designadas para fortalecer os crentes contra armadilhas de superstições, encantamentos e tradições sobreviventes do antigo folclore, sancionadas pela religião medieval. Elas são “orações de exaltação, aliviantes, edificantes e comoventes".1 Seu tom não é a mea culpa de “pecadores miseráveis”, mas antes a alegria do eleito pelo amor e graça de Deus. Elas transpiram a segurança da fé que repousa na aliança de Deus e na adoção para sermos Seus filhos. O desejo do coração de Mélius era o de uma vida pacífica e feliz, e ele freqüentemente orou e ensinou outros a orar por isso. Em grande parte, o tempo e a energia de Mélius foram gastos com controvérsias teológicas — primeiramente com os papistas, depois com luteranos, mas na maioria das vezes com os antitrinitarianos. Dezenove de suas cinqüenta obras, quantitativamente cerca de metade de seus escritos, foram dedicadas a estes últimos. Já cedo, em seu ministério, num debate de duas semanas, em 1560, ele derrotou Thomas Arany, o mais notável representante do modo anti-trinitariano pré-Servetus.2 Então, em meados dos anos 1560, ele apoiou os cistibiscianos em sua luta contra Lukas Egri, que morreu na prisão. Entre 1566 e 1569, Mélius teve cinco debates importantes em Gyulafehérvár, Debrecen, e Nagyvárad contra dois de seus mais fortes oponentes anti-trinitarianos — Francis Dávid (1520-79), que primeiramente fora luterano, depois 1 2
Ibid., p. 213. Ibid., pp. 205-206; Kathona, “The Work of Peter Melius” 2:127-130.
reformado, e finalmente um bispo anti-trinitariano na Transilvânia, e George Blandrata, médico da corte e spiritus rector de Dávid. Além destes, ele teve alguns debates menores com os seguidores deles em sua própria região, até 1570. A Brevis Confessio Pastorum, confissão latina do Sínodo Constitucional de 1567, em Debrecen, tendo Mélius como principal redator, dedica metade de suas páginas à defesa da doutrina da trindade e à refutação dos “seguidores de Servetus”. O credo húngaro do mesmo Sínodo também dedica quase o mesmo espaço ao assunto.1 Devido a seu papel autoritário, o título “Papa Peter” foi ligado ao nome de Mélius não sem razão. O outro título, “Calvino Húngaro”, tradicionalmente atribuído a Mélius, porém, mostrouse ser um nome errôneo à luz de estudos recentemente efetivados. O historiador Bispo Imre Révész mostrou, e estudos nos anos 1960 e 1970 o confirmaram, que Mélius não poderia ser considerado um representante ideológico unicamente de Calvino. Sua teologia reflete a influência de Melanchthon e, através de Estevão Szegedi Kis, de Musculus. Embora seja evidente que, direta ou indiretamente, ele conhecia os ensinos de Bullinger e Calvino, também se detectam nos elementos formais de sua teologia traços de seus antigos mestres luteranos, Brenz e Flacius. É comprovado que Mélius não se tornou um imitador servil de nenhum reformador, de sua terra ou do estrangeiro. Nas doutrinas principais ele concorda com Calvino, em várias outras, seu ensino se assemelha aos ensinos de diversos teólogos diferentes, porém suas deduções e formulações são completamente diferentes. Sem sujeitar-se à autoridade exclusiva de qualquer um dos reformadores, ele demonstrou ser um sincero seguidor da Reforma Helvética, ao mesmo tempo sustentando sua independência. A importância de Mélius não está no fato de ele ser um 1
Nagy, “The Works of Peter Melius”, pp. 232-235.
imitador de Calvino. Na verdade, ele foi um teólogo eclético da Reforma Helvética, ocasionalmente ultrapassando inclusive essa delimitação. Ele conhecia muito bem o sistema dos teólogos contemporâneos, porém sua mente independente não o prendeu a uma ou outra autoridade. Ele manteve sua liberdade mesmo em relação a seus primeiros professores, abandonando suas fontes teológicas, e permitiu que suas doutrinas se desdobrassem conforme a genialidade de sua mente na liberdade do Espírito. Sua importância histórica é que com sua teologia, forjada no combate contra o Romanismo, Luteranismo, anti-trinitarianismo e sectarismo radical, ele deixou fundamentos para os séculos futuros, para a ecclesia militans, sua mui querida Igreja Reformada.1
Padrões Confessionais Sínodos confessionais eram freqüentes e importantes para a Reforma Helvética, na Hungria, por causa de seus diversos centros regionais e das diferentes nuances doutrinárias. Confissão Católica ou Debrecenense, 1562 A primeira grande Confissão do partido helvético na Hungria foi produto de Debrecen e surgiu sob três nomes diferentes: Confessio Catholica, Confessio Agrovalliensis e Confessio Debreceniensis.2 Originalmente, ela foi escrita para Debrecen em 1561; entretanto, ela surgiu impressa primeiramente sob o nome Confessio Agrovalliensis [Confissão do Vale do Eger] em 1562. Eger era um pequeno forte no nordeste da Hungria, dominado por Habsburgo. Eger repeliu valentemente um longo sítio dos turcos em 1552. Uma década mais tarde, suas forças armadas e a 1
Ibid., p. 185. Kathona, “The Work of Peter Melius”, 2: 130- 133; Nagy, “The Works of Peter Melius”, pp. 206-209. 2
população da cidade e região foram acusadas de traição e sedição contra o rei de Habsburgo, por causa de sua fé evangélica. Em resposta ao pedido da igreja de Eger, os líderes da igreja de Debrecen lhes enviaram sua Confessio Catholica ou Confessio Debreceniensis, recém-impressa, com uma nova capa trazendo o título Confessio Agrovalliensis. O corpo principal do credo está escrito no estilo pesado e conciso de Méliús, enquanto que a carta de apresentação e várias passagens estão redigidas no estilo mais leve de Gregório Szegedi. “Todo o regimento de cavalaria e milícia no Vale do Eger, e os habitantes nobres e comuns da cidade de Eger” juraram obediência a essa declaração de fé, afirmando que eles continuariam na “verdadeira fé e doutrina católica”, e que não permitiriam que seu pastor saísse. O fato de a congregação de Eger jurar obediência a Deus e estar unida em sua fé comum como igreja é o primeiro exemplo do conceito “reformado” de Igreja na Hungria. Eles rejeitaram as acusações de conspiração e sedição, disseminadas por seus adversários papistas. Eles declararam, perante os comissários reais, sua determinação em abandonar o forte caso continuassem a ser pressionado a despedir seu pastor, a quem juraram obediência. Então, eles pediram ao rei que lhes permitisse “permanecer na verdadeira fé e doutrina católica e manter seu pastor, que os nutria com a mais clara Palavra de Deus”.
A Confissão de Tarcal-Torda, 1562-63 Em 1562, o Sínodo de Tarcal, apesar da presença luterana, aceitou a Confessio Christianae Fidei, de Beza, de 1560, um credo puramente calvinista, com pequenas abreviações e omissões.1 O Sínodo, ao aceitar a Confissão de Beza com pequenas 1
Zoványi, Lexicon, p. 621.
emendas, era claramente calvinista em sua doutrina, especialmente em dois pontos centrais: a predestinação e a Ceia do Senhor. O poderoso senhor feudal da região, o luterano Gabriel Perenyi, ofendeu-se amargamente com os pronunciamentos helvéticos de Tarcal. Paul Thuri, escritor do famoso dístico sobre as Institutas de Calvino, respondeu bravamente às acusações, dizendo a respeito da Ceia do Senhor e da questão da predestinação que essas eram assuntos de fé nos quais eles deveriam antes ouvir a Deus do que os homens. A mesma Confissão foi aceita em 1563, no Sínodo de Torda, na Transilvânia, defendida conjuntamente pelos transilvânios, e por essa razão recebeu o título de Confissão de Torcal-Torda. O Sínodo de Gone, novamente na Cistibíscia, confirmou a mesma posição helvética em 1568. Podemos também acrescentar aqui que o Catecismo de 1545, de João Calvino,1 traduzido e publicado por Peter Mélius em 1563, foi igualmente aceito pelo Sínodo de Tarcal de 1564. A Segunda Confissão Helvética2 A Segunda Confissão Helvética, uma versão ampliada da Primeira Confissão Helvética (1536), foi escrita por Heinrich Bullinger, em 1562. Ela conquistou o reconhecimento público quando o Eleitor Frederico III, do Palatinado, a apresentou à Dieta Imperial. Antes disto, a Segunda Confissão era conhecida nos cantões protestantes da Suíça que, à exceção de Basiléia, a aceitaram unanimemente como sua própria Confissão de Fé e como tal a publicaram em 1566. A Confissão Helvética serviu como base comum unindo vários centros da Reforma — na Suíça, no Palatinado e na Baixa Alemanha —, numa aliança em sua luta 1
Kathona, “The Work of Peter Melius”, 2:138; Nagy, “The Works of Peter Melius”, pp. 210-211. 2 Endre Tóth, “History of the Second Helvetic Confession in Hungary”, in Studia et Acta Ecclesiastica, 2:13-99; Endre Zsindely, “Heinrich Bullinger’s Hungarian Connections” in Studia et Acta Ecclesiastica, 2:57-58.
constitucional para assegurar a liberdade de religião. Na Hungria, a Confissão preencheu uma necessidade gritante e serviu ao mesmo fim. Por volta dos meados dos anos 1560, a pressão católico-romana diminuiu e o zelo luterano se esmoreceu. O antitrinitarianismo, porém, em pleno vigor, não apenas se avizinhava, mas já estava no limiar de Debrecen. No Sínodo Constitucional de Debrecen,1 em 1567, Peter Mélius e seus colaboradores deram um golpe decisivo contra os anti-trinitarianos. Suas duas confissões, Brevis Confessio Pastorum, em latim, e a Verdadeira Confissão Segundo as Escrituras, em húngaro, consistiram em refutações eficazes do anti-trinitarianismo e declarações esmeradas da fé ortodoxa.2 Os pais de Debrecen, entretanto, sentiram a necessidade de mais outro credo que cobrisse todo o campo da doutrina e conduta. Na unidade de fé eles desejavam expressar sua coesão com seus irmãos na terra natal, e também com cristãos de pensamento semelhante no estrangeiro. A Segunda Confissão Helvética foi aceita como sendo esse denominador comum no Sínodo de Debrecen, em 1567, para a Transtibíscia e a Cistibíscia. Ela é mencionada nos Decretos de Hercegszõllõs (1576) na Danúbia sob governo turco, e na obra de Estevão Pathai, Sobre os Sacramentos (1592), no Transdanúbio governado pelos Habsburgos. A Confissão foi traduzida para o húngaro por Peter Szenci Csene e publicada por Albert Szenci Molnár, em Appenheim, em 1616. Ela aparece com o nome histórico da Igreja na Hungria: “Reformada segundo a Confissão Helvética”.
O Catecismo de Heidelberg Conforme a tradição, Zacarias Ursinus e Caspar Olevianus são considerados co-autores do Catecismo.3 Pesquisas recentes 1
Kathona, “The Work of Peter Melius”, 2:155-157. Ibid., pp. 157-158; Nagy. “The Works of Peter Melius, pp. 232, 235. 3 Barnabas Nagy, “The Appearance, History and Editions of the Heidelberg Catechism in Hungary in the Sixteenth and Seventeenth Centuries”, in Studia et Acta Ecclesiastica 2
confirmaram o papel principal de Ursinus na autoria, porém hoje se reconhece a participação de um grupo na redação e disposição final, sendo que Thomas Erastus teve uma participação igual à de Olevianus. Provavelmente, os outros membros do comitê foram: (1) os pastores e professores Emanuel Tremellius, Pierre Boquinus, Diller e Dathenus e, (2), os leigos Eheim, Zuleger e Circler. Conforme estudos recentes, o papel de Frederico do Palatinado também é visto com nova luz. Ele reivindicou o título de “pai do Catecismo” e referiu-se a ele como o “meu Catecismo”. Suas contribuições foram a idéia, o planejamento e a fundamentação bíblica.1 As posições sobre as fontes também foram revisadas. Tradicionalmente, diversos outros catecismos, as obras dos reformadores e os dois rascunhos de Ursinus eram considerados as fontes. Agora se sabe que a grande e a pequena Confissão de Beza (1560), que serviu como base para a Confissão de Tarcal-Torda, também teve influência em todo o Catecismo de Heidelberg. É importante reconhecer que Beza, primeiro e principal colaborador de Calvino, exerceu uma influência tão vital na Hungria mais ou menos na mesma época em que o fez no Palatinado. Essa descoberta nos fornece uma interessante pista sobre a origem do Calvinismo húngaro. Através dos séculos foram publicadas cem edições do Catecismo na Alemanha, cem na Holanda e quase duzentas na Hungria. É interessante traçar as rotas pelas quais o Catecismo de Heidelberg chegou à Hungria. Seu primeiro indício é a carta dos professores de Heidelberg aos pastores em Kolozvár e a todos os irmãos na Transilvânia, escrita em 1 de setembro de 1564. Nos anos de 1560 havia debates ferozes sobre a Ceia do Senhor entre os grupos luteranos e helvéticos. Os luteranos, liderados pelo Bispo Matthias Hebler, fizeram seu pronunciamento no Sínodo de Medgyes, em 6 de fevereiro de 1561, em Brevis Confessio de (1965), 1:17-91. 1 Ibid., p. 19.
sacra coena domini... Una cum íudicio quatuor Academiarum Germaniae1.... Eles pediram a opinião das Academias Luteranas na Alemanha. Em julho de 1564, os pastores reformados, por sua vez, pediram aos eruditos de Heidelberg que expressassem suas posições. A resposta de Heidelberg, Epistola Professorum Theologiae Inclytae Academiae Heydelbergensis, foi publicada em 1565. Nela os professores, naquela época sob Boquinus como deão, expressaram em termos calorosos sua solidariedade, responsabilidade e empatia para com seus irmãos reformados. Eles não consideraram ser necessário mais apoio literário. Achavam que a obra já publicada de Ursinus sobre os sacramentos, bem como as obras de Boquinus e Olevianus sobre a Ceia do Senhor, eram suficientes. Eles consideraram que os escritos de Hebler eram “indignos de uma nova resposta”. O Catecismo de suas igrejas, o Livro de Ordem das igrejas do Palatinado, uma Defesa do Catecismo e alguma literatura sobre a Ceia do Senhor estavam incluídas. Essa era uma resposta de peso e um meio útil de defesa. Por outro lado, à medida que ambos os partidos se entrincheiravam nesta discórdia aguda, ficou evidente que não mais havia esperança para sua reconciliação. A divisão tornou-se definitiva. Os luteranos odiaram os reformados com mais ardor inclusive do que os papistas o fizeram. Foi em meio a essa guerra doutrinária feroz que surgiu o Catecismo. Mesmo assim, tanto ele quanto a carta de Heidelberg transpira um profundo desejo pela unidade. O Catechismus Ecclesiarum Dei, publicado em Kolozvár, Transilvânia, em 1566, marca um episódio peculiar na história do Catecismo de Heidelberg.2 Essa foi a primeira edição latina do catecismo na Hungria, tendo modificações aceitáveis aos antitrinitarianos. Estes, porém, fizeram mal uso do acordo, para o desapontamento do reformador helvético Peter Mélius. Por outro lado, o Sínodo de Debrecen, em 1567, opôs-se violentamente e o 1
Ibid., pp. 22-23. Kathona, “The Work of Peter Melius”, pp. 2:151-153; Géza Kathona, “The Deformation of the Heidelberg Catechism in the Struggle Against Anti-Trinitarianism”, in Studia et Acta Ecclesiastica. 1:93- 129. 2
rejeitou ao final. A primeira tradução húngara do Catecismo de Heidelberg foi preparada por David Huszár e, com um apêndice de um livro de orações de tamanho considerável, foi publicado em Pápa, no Transdanúbio, com o título Sumário do Ensino da Verdadeira Fé em Breves Perguntas (1577).1 Não existe sinal da aceitação do Catecismo de Heidelberg em Debrecen, como símbolo oficial da Igreja. Os pais do Sínodo, porém, afirmaram indiretamente sua adesão ao Catecismo por ordenar, no Artigo 52 do Livro Canônico, seu ensino nas congregações. Após o Sínodo de Debrecen, de 1567, o ensino do Catecismo de Heidelberg foi ordenado pelo Sínodo de Sók, em 1619, no Alto Danúbio, pelo Sínodo de Pápa e pelo da Transilvânia no mesmo ano. Na Cistibíscia, as leis de 1621, da Faculdade de Sárospatak, ordenaram seu ensino e o Seniorato de Zemplén, encontrando-se em Sátoraljaujhely, o incorporou no juramento de ordenação de seus ministros, em 1630. O Sínodo unido da Cistibíscia e Transtibíscia exigiu que estudantes que fossem ou viessem de academias no estrangeiro jurassem obediência ao “Heidelberg”. Finalmente, o Sínodo Nacional de Szatmárnémeti, em 1646, sob influência dos puritanos húngaros, aceitou o Catecismo de Heidelberg juntamente com o Catecismo de João Siderius. O movimento da aceitação é notável: dos estratos inferiores, os ministros e o povo, para as mais altas cortes da igreja.2 Apesar de sua enorme popularidade e do ensino do livro na Igreja e na Escola, sua aceitação solene pelo Sínodo Geral, como o símbolo oficial da Igreja Reformada da Hungria, aconteceu somente em 1928, em Budapeste.
A Confissão do Sínodo de Csenger. 1570 Essa Confissão, que era a elaborada declaração final de Peter Mélius Juhász sobre a doutrina trinitariana, e que apresenta seu 1 2
Nagy, “The Heidelberg Catechism in Hungary”, p. 29. Ibid., p. 28.
ensino claramente calvinista sobre a Ceia do Senhor e a eleição particular, marca o clima de sua luta contra o anti-trinitarianismo. Ela foi sua obra-prima polêmica e organizacional, na qual ele escreveu: “nós estamos em harmonia com a Palavra de Deus e com os doutores católicos da verdadeira Igreja”. Em apoio a essa declaração, ele apresentou uma recente carta de Theodore Beza, uma avaliação elogiosa das três mais recentes obras antitrinitarianas de Mélius.1 Essa Confissão, juntamente com outros credos das igrejas reformadas no estrangeiro, foi publicada no Syntagma confessionum; infelizmente, porém, recebeu o título errôneo de Confessio Polonica. Niemeyer também a publicou em sua obra Collectio confessionum. Seu título completo é Confessio vera ex Verbo Dei sumpta et in Synodo Czengerina uno consensa exhibita et declarata.
Organização e Governo A Reforma da Hungria iniciou-se no nível congregacional. Ela também foi apoiada por pregadores da corte da alta nobreza, sob proteção de grandes senhores feudais tais como Peter Pretrovics e as famílias Nádasdy e Tórôk. Todavia, foi o zelo pessoal de seus protagonistas que mais contribuiu para a disseminação rápida do movimento. As congregações logo foram agregadas em “condados eclesiásticos”, seguindo o padrão católico-romano de dioceses.2 Mesmo que houvesse uma divisão aguda e constante entre as duas principais denominações protestantes, em questões doutrinárias, o grupo helvético aceitou o sistema luterano de organização e governo. Nas igrejas helvéticas os nomes “condado eclesiástico” e 1
Nagy. “The Works of Peter Melius”, pp. 267-271; Kathona, “The Work of Peter Melius”, pp. 172-173. 2 Zovànyi, Lexicon, pp. 167, 182, 559.
“diocese” refletem um remanescente católico-romano, enquanto que contubernium, fraternitas e districtus têm uma derivação luterana; Suas designações tractus e seniorate soam com mais originalidade. O moderador ou deão das igrejas helvéticas era considerado primus inter pares; ele era escolhido como vitalício. Sua responsabilidade era convocar encontros, preparar agendas, presidir os encontros, executar as decisões e representar o seniorato. Sua tarefa também era o exame, ordenação e deposição de ministros; visitação canônica e o exercício da disciplina. Os condados eclesiásticos (tracti, seniorates) estavam agregados em distritos eclesiásticos, Sínodos, Dioceses ou Superintendências, abrangendo áreas maiores do território, sob a liderança do bispo ou superintendente, eleito pelas igrejas distritais. O distrito da Transtibíscia veio à existência no encontro conjunto das superintendências das áreas de Debrecen-Nagyvárad e Szatmár em 1557. O distrito do Danúbio compreendeu as antigas superintendências do Médio Danúbio e da Barânia (1554), isso é, a área entre o Tisza e o Lago Balaton. O distrito do Transdanúbio, após longas décadas como Sínodo conjunto das igrejas luteranas e helvética, iniciou sua existência independente como Sínodo Reformado, em 1595. Na Cistibíscia, quatro condados eclesiásticos constituíam a suprema união numa cooperação e federação livre até 1735. Naquela época eles se submeteram à orientação do Bodrogkeresztur Conventus, de que deveriam eleger seu próprio bispo e organizar-se em distrito.1 Foi organizado o Distrito da Transilvânia, após a divisão decisiva com os luteranos, no Sínodo de Negyenyed, em 1564. Os distritos eclesiásticos eram a mais alta unidade de organização e governo no século 16. Sua tarefa consistia em treinar e ordenar ministros, promover visitas episcopais às igrejas regionais (generalis visítatio), formular confissões e leis canônicas, decidir questões matrimoniais e representar as igrejas junto ao governo. 1
Ibid., p. 86; Zsilinszky, Protestant Church in Hungary, p. 95.
O cargo de bispo (superintendente) foi introduzido bem cedo, nos anos 1550, em parte para preencher o vácuo criado pela ausência de bispos católico-romanos, em parte para seguir o padrão luterano, em parte para ter uma representação de autoridade junto à autoridade secular húngara, habsburga ou turca. Esse ofício foi estabelecido sem qualquer reivindicação de sucessão apostólica, através da indicação feita pelas igrejas do distrito. Um bispo somente deveria agir como “primeiro entre iguais”. A autoridade teológica do ofício era a carta de João Calvino ao rei da Polônia, na qual ele recomendava a instauração do ofício de arcebispo, que seria o presidente do Sínodo Nacional. Os bispos deveriam ser escolhidos com base no julgamento dos ministros, e após a eleição todos os párocos deveriam ratificar a escolha. Calvino conclui dizendo que foi essa eleição livre do bispo que a igreja papal deixou cair em desuso.1 Por outro lado, o princípio corporativo não se tornou realidade no que toca o envolvimento do laicato. A Confissão de TarcalTorda2 abrandou as afirmações da Confissão de Beza na questão dos anciãos, uma vez que o tempo não estava suficientemente maduro. Na verdade, ele não amadureceu até 1618, primeiramente no Transdanúbio.3 Esse princípio foi popularizado peio Movimento Puritano no final dos anos 1630, na região leste e nordeste. Contudo, os homens leigos foram envolvidos na vida da Igreja principalmente como patronos, segundo o padrão luterano, e como membros do Conselho Municipal, segundo o padrão de Genebra. Embora a organização a nível nacional não pôde acontecer durante séculos por causa da tripartição do país, alguns dos Sínodos parciais freqüentados por representantes de dois, três ou, 1
Epistolae Ioannis Calvini, n9 2057, ao rei da Polônia, Corpus Reformatorum (Brusvigae Schwetschke, 1876), col. 329. 2 Confession of Tarcal-torda, 1562, 1563. 3 János Makár, János Kanizsai Pálfi and his Life Work (New Brunswick, N.J.: publicação particular, 1961), p. 101.
às vezes, apenas um distrito eclesiástico, receberam a autoridade de Sínodos Nacionais. Suas resoluções foram reconhecidas nacionalmente e honradas historicamente. Assim foi com os Sínodos de Tarcal, Cistibíscia (1562), Torda, Transilvânia (1563), Debrecen, Transtibíscia (1567), e Hercegszölös no Danúbio (1576). Entre as Leis Canônicas, o Articuli majores é um dos produtos do Sínodo Constitucional de Debrecen, que aconteceu em 25 e 26 de fevereiro de 1567. Foi publicado posteriormente naquele ano sob o título Articuli ex verbo Dei et Lege naturae compositi. Ele é considerado, em sua maioria, obra de Peter Mélius Juhász. Sua forma abreviada, Articuli minores, foi editada e publicada em 1577 por George Gönczi Kovács.1 A constituição eclesiástica da área do Danúbio, os Decretos de Hercegszölös, foi aprovada e aceita pelo Sínodo de Hercegszölös no Baixo Danúbio, em 16 e 17 de agosto de 1576. Ele deveria substituir os Decretos de Barânia, que eram uma espécie de documento experimental, e procedeu a uma exposição completamente calvinista destes. Seu original em latim consistia de quarenta e sete artigos, enquanto que a tradução húngara compunha-se de quarenta e seis. Barânia, nos anos 1550, e Hercegszölös, nos anos de 1560, foram redigidos por Estevão Szegedi Kis. Provavelmente a tradução foi obra do discípulo de Szegedi, Mateus Skaricza. O original foi assinado pelos quarenta ministros presentes. David Huszár publicou tanto o original latino quanto a tradução húngara em sua casa impressora, em Pápa, em 1577. Por causa de sua origem e fonte comum, os decretos posteriores do Condado Luterano de Sopron (1598), e do Condado reformado de Peste (1628), têm muita afinidade com os Decretos de Barânia e Hercegszölös. Por volta do final do século 16, mais de noventa por cento da 1
Kathona, “The Deformation of lhe Heidelberg Catechism”, pp. 159-161; Nagy, “The Works of Peter Melius”, pp 237-239.
população da Hungria, mesmo estando dividida, era da Reforma, a maioria segundo a corrente helvética.
A Bíblia Húngara Assim como Erasmo e os humanistas no estrangeiro abriram caminho para a Reforma, assim também o fizeram seus correspondentes húngaros. Suas traduções bíblicas logo se espalharam amplamente pela ação da imprensa. A obra Epístolas de S. Paulo, de Benedict Komjáthi, publicada na Cracóvia em 1533, inaugurou a série. Ela estava baseada nas Paráfrases de Erasmo. Esse livro escrito cuidadosamente é de difícil leitura. O Novo Testamento de Gabriel Pesti Mizsér (Viena, 1536), também baseado em Erasmo, contém apenas os quatro Evangelhos. É uma tradução mais correta e mais compacta do que a de Komjáthi. A obra magna de John Erdösi Sylvester foi seu Novo Testamento (Sárvár, 1541). Embora sua linguagem seja difícil, Sylvester merece crédito por sua dedicatória, “Ao povo magiar”, escrito em dísticos que se desenrolam suavemente.1 Os representantes da Reforma Helvética também traduziram diversas porções da Bíblia. Estevão Bancédi Székely produziu uma tradução soberba dos Salmos (Cracóvia, 1548). Peter Mélius Juhász traduziu dos textos originais vários dos principais livros do Antigo Testamento e todo o Novo Testamento. Thomas Félegyházi, o teólogo mais erudito da fé helvética, produziu uma excelente tradução do Novo Testamento, que foi muito popular em sua edição póstuma, publicada em 1586 em Debrecen. O grupo colaborador de Caspar Heltai publicou sete volumes de sua tradução de quase toda a Bíblia, entre 1551 e 1566. Por causa da falta de unidade de estilo e da mudança de lealdade confessional 1
Imre Czegle, “The Way of Hungarían Bible Translation Till Caspar Karoli”, n Studia et Acta Ecclesiastica, 3:501-512.
do grupo, entretanto, essa obra não conquistou popularidade. A Versão Károli, ou Bíblia Vizsoly, publicada em 1590, foi a primeira Bíblia húngara completa a ser impressa. “Se Deus conceder-me que eu viva o bastante para ser capaz de publicar essa Bíblia, estarei pronto para morrer e ir para Cristo”, disse o velho e piedoso homem, Caspar Károli, enquanto trabalhava extenuantemente já em seus últimos anos, para completar a tradução de toda a Bíblia.1 Károli nasceu por volta de 1530 em Nagykároly, no nordeste da Hungria. Recentes estudos revelaram que ele foi um aluno da famosa escola de John Honterus, em Brassó, na Transilvânia. Após Wittenberg (1556), ele também estudou na Suíça e em Estrasburgo. Voltando para sua terra natal em 1562, ele recebeu um convite para Göne, onde permaneceria durante seu período de vida ministerial. Foi também nesse lugar que ele preparou a tradução durante sua última década. A tradução e a publicação da Bíblia foi a principal obra de Károli e a coroa da Reforma húngara. Ele expressou sua motivação para a sagrada tarefa nas seguintes palavras do prefácio: “Embora o Livro de Deus esteja disponível a cada nação em sua própria língua, a nação húngara não se ocupou disto durante muito tempo... Considerando, portanto, a deficiência e a futura edificação da Santa Igreja Mãe em nossa nação, bem como nosso chamado, não descansei até ter completado a tradução de toda a Bíblia".2 Károli considerava como sua vocação espiritual a sagrada tarefa de traduzir a Bíblia. No princípio da obra ele reuniu os pastores de seu seniorato para orarem, e eles conjuntamente 1
S. Jószef Szabó, “Gaspar Károlis Lífe and Work”, in Károli Memorial Book, org. por BéIa Vasady (Budapeste: Coetus Theologorum, 1940), pp. 7-25; Czegle, “Hungarian Bible Translation”, pp. 512. 2 Gaspar Károli, Foreword to the Bible (Visol: Mantskovit, 1590). Reimpresso em Studia et Acta Ecclesiastica, 3:519- 536.
oraram pelo progresso e sucesso do empreendimento. Como grupo cooperativo eles estabeleceram os princípios, distribuíram as tarefas e estabeleceram o cronograma. Pelo texto fica evidente que a tradução é um empreendimento cooperativo de diversos homens. O próprio Károli diz que “alguns irmãos devotos e instruídos” o ajudaram em seu trabalho. Entretanto, o Novo Testamento parece ser o mais consistente nos princípios e na linguagem, e temos boas razões para crer que ele foi produzido somente por Károli. Alguns livros do Antigo Testamento foram traduzidos por outros, embora ele tenha reservado para si próprio a tarefa de revisão e de supervisão, bem como a direção de todo o projeto. É bem provável que seus associados na tradução tenham sido Matthias Thuri de Szantó; John Czeglédi de Vizsoly; Nicolaus, irmão de Károlí; e Emery Huszti, o segundo ministro em Göne, enquanto que John Pelei, o reitor local, pode ter sido útil em prestar assistência técnica.1 O editor da Bíblia Károli, Bálint Mantskovit (falecido em 1597, em Vizsoly), ele próprio um erudito e adepto da fé reformada, mudou-se para a Hungria em 1573. Após examinar três outras localidades, ele foi atraído a Vizsoly, em 1588, e foi contratado para imprimir a Bíblia. Sua editora estava estabelecida numa casa fornecida por Sigismundo Rákóczi, um dos patrocinadores anônimos, no terreno de sua mansão. Outro patrono, Estevão Báthori, supremo juiz do país, comprou novos tipos e papel. As páginas impressas eram armazenadas numa ampliação dos fundos da igreja de Vizsoly, onde, em tempos difíceis, a gráfica também era operada clandestinamente sob proteção de uma milícia fornecida pelos patronos. O tradutor, no prefácio, nos informa acerca do texto no qual a Versão Károli está baseada.2 Ele fornece um relato fiel das diversas traduções utilizadas, além dos textos originais hebraico e 1 2
Szabó, “Gaspar Károli’s Life and Work”, pp. 21-22. Károli, Foreword, p. 535.
grego. Antes de tudo, ele leu e estudou a Vulgata, e com sua mente aguda e crítica nela descobriu diversos erros. “Por essa razão,” escreve ele, “não nos prendemos a ela, mas consultamos homens devotos e instruídos e suas traduções, ao lado da tradução grega dos setenta intérpretes — Vatabulus, Münsterus, Pagninus e Tremeltius”. Santes Pagninus era um dominicano. Sua primeira edição surgiu em 1528 e desfrutou de grande popularidade. Francis Vatabulus era um famoso professor da Faculdade da França. A primeira edição de sua tradução foi publicada em 1544. Sebastian Münsterus foi primeiramente um franciscano, depois, após aceitar a Reforma, tornou-se professor em Heidelberg e erudito hebraísta de grande renome. Sua edição hebraica e sua tradução latina eram tidas em alta consideração. Emanuel Tremellius, judeu por nascimento e um renomado hebraísta, tornou-se um ardente seguidor de Calvino e, após diversos infortúnios, também se tornou professor em Heidelberg. Ele primeiramente publicou o Antigo Testamento, depois a Bíblia completa em latim, com comentários eruditos. E mais compreensível que Károli não tenha usado a tradução de Lutero do que ter omitido a excelente edição do Novo Testamento de Beza, cuja tradução para o latim ele, forçosamente, conheceu, e que lhe estaria disponível. Na maioria das vezes, Károli seguiu a tradução e comentários de Tremellius. Além dos outros tradutores mencionados, ele também se utilizou “diversos outros doutores intérpretes”. Além disso, ele consultou aqueles “que anteriormente traduziram certas partes da Bíblia”, tais como C. Heltai e Peter Mélius. Ao longo dos séculos a Versão Károli ou Bíblia Vizsoly foi publicada em 293 edições — 25 delas sem o ano de publicação. Desde 1869 a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira tem sido a editora, e, durante a Segunda Guerra Mundial, a editora foi a Sociedade Bíblica Húngara. Embora uma nova tradução da Bíblia tenha sido preparada pelo Conselho Bíblico Húngaro e publicada em 1975, a Bíblia Károli continua sendo a versão padrão em
húngaro. Em reconhecimento à primeira edição da Versão Károli ou Bíblia Vizsoly (1590), foi publicada uma edição fac símile desta pela Editora Europa, sustentada pelo governo húngaro, em 1981.
Culto e Hinódia Os primeiros hinos da Reforma na Hungria foram, por um lado, traduções de hinos latinos medievais e, por outro lado, hinos alemães — alguns deles de Lutero. O primeiro hinário impresso, o de Estevão Galszécsi (Cracóvia, 1536, remanescente apenas em fragmentos), continha três hinos de Lutero e cerca de dez outros de origem alemã. Os próprios reformadores húngaros foram produtivos na composição de hinos e de paráfrases dos salmos. O culto de adoração, assim como a Formula Missae de Lutero, não diferia muito da missa romana, a exceção de que era no vernáculo. Louis Szegedi, conhecido como colaborador de Kálmáncsehi, nos anos de 1550, e famoso por suas paráfrases dos salmos em seu período luterano (c. 1542), cantou a missa em húngaro. Essas liturgias foram preservadas em graduales manuscritos, dos quais o Codex Batthyány (por volta de meados dos anos de 1550) é o mais antigo. Graduales impressos foram os de Martin Kálmáncsehi Sánta e talvez Estevão Beythe (ambas essas liturgias agora estão perdidas) e a primeira parte de Hinos e Orações Religiosas de Gál Huszár (Komjáti, 1574). A obra de oitocentas páginas, Velho Graduale (1636), editada pelos bispos da Transilvânia, John Keserui Dajka e Estevão Geleji Katona, foi uma última tentativa, grandiosa, porém mal-sucedida, patrocinada pelo Príncipe George Rákócsy 1, para salvar e reavivar a tradição. O primeiro hinário contendo hinos para canto congregacional
surgiu em 1560 e foi utilizado paralelamente com os graduales. Os hinos não eram agrupados segundo a seqüência da liturgia, porém segundo a história da salvação, as ocasiões festivas e outras ocasiões especiais de culto. Os primeiros dois hinários deste tipo são evidência da atitude favorável dos Reformadores Helvéticos para com o canto congregacional. A obra Hinos e Salmos Religiosos (1560), de Gál Huszár, era tida como não mais existente até a descoberta de uma cópia em Stuttgart, em 1975. Ela foi compilada e impressa em três etapas: a primeira em Óvár, a segunda em Kassa, onde Huszár estava sob prisão domiciliar, e a terceira logo após sua fuga para Debrecen. A Carta Dedicatória foi endereçada a Mélius, muito provavelmente para abrir o caminho do editor para “a Roma calvinista”. Sua seqüência de hinos — paráfrases de salmos e hinos festivos, confessionais e para eventos determinados — deve ter sido seguida pelo agora não mais existente “hinário em miniatura”, organizado por Peter Mélius e Gregório Szegedi, e impressa muito provavelmente por Huszár em Debrecen, em 1562. Tanto o hinário de Huszár, de 1560, como o hinário Mélius — Szegedi, de 1562, foram incorporados na segunda metade do hinário maior de Huszár (Komjáti, 1574). Todavia, uma vez que esse último não contém a música do primeiro e do menor hinário, a descoberta de Stuttgart, com suas quarenta e nove melodias, é inestimável para a hinódia húngara.1 Seguiram-se em rápida sucessão numerosas edições revistas e corrigidas do hinário de Debrecen, de 1562. O Hinário Várad publicado em Nagyvárad, em 1566, por “L.F.”, muito provavelmente o cunhado de Mélius, seguiu a ordem dos hinos e salmos. O Hinário Debrecen, de 1569, inverteu a ordem, e esse permaneceu sendo o padrão desde então. As séries de hinários tipo Debrecen culminaram com a edição de 1590, de George Gönci Kovacs, intitulada Hinos Cristãos, o protótipo que estabeleceu o 1
Mensagem pessoal de Kálmãn Cs. Tóth. Também artigos de G. Borsa e K. Cs. Tóth em “Magyar Zene” (1976), pp. 119-133; (1981), pp. 176-208.
padrão de desenvolvimento durante quarenta edições pelos séculos subseqüentes. A luz de tal abundância de composição de hinos e produção de hinários, nem é necessário dizer que os Reformadores Húngaros, radicais como eram nas tradições teológica e eclesiástica, não seguiram a ordem desarmônica de Zurique ou mesmo o exemplo genebrino de utilizar somente salmos no canto congregacional. Mélius, ele próprio autor de hinos, era fortemente contrário à posição zwingliana sobre música, e defendeu veementemente o canto congregacional.1 O Sínodo de Erdöd II (1555) advertiu contra hinos não-escriturísticos, porém encorajou o louvor a Deus e o canto coletivo. A Confissão de EgerDebrecen (1562) julgou “hinos tomados das Escrituras” necessários no culto de adoração. O Sínodo de Debrecen (1567) considerou as razões para “o belo canto na Igreja Cristã”, estando entre elas o fato de que muitas pessoas se convertem a Deus através do canto. O Artigo 47 da Confissão de Csenger (1570) pode ter sido parcialmente dirigido contra os romanos, e parcialmente contra entusiastas radicais, quando afirma que hinos escriturísticos deveriam ser cantados com entendimento, espírito e coração, e não gritados numa linguagem sem sentido semelhante à dos sacerdotes de Baal.2 A coroação da hinódia húngara foi de certa forma o atrasado Psalterium Ungaricum (Herborn, 1607). Ele é uma tradução do Saltério de Genebra feita pelo erudito itinerante da Reforma Húngara, Albert Szenci Molnár.3 Szenci Molnár — sob influência reformada em Estrasburgo (1593-96), por inspiração de sua amizade com Beza em Genebra e com a assistência de Clement Duboys em Frankfurt — traduziu os salmos em Altdorf, em menos de cem dias. Ele publicou o 1
Nagy, “The Works of Peter Melius”, p. 260. Ibid., pp. 268-269. 3 K. Tóth, Reformatus, pp. 217-222. 2
Saltério em Herborn (1607), e novamente em Hanau (1608), tendo essa última edição sido anexada à Bíblia Vizsoly, a qual ele revisara. Desde 1635, o Saltério de Szenci tem sido sempre publicado em um volume juntamente com o hinário de tipo Debrecen, sendo que o Saltério é colocado após os hinos. Após 1806 o saltério precedeu aos hinos, e o nome do livro passou a ser Zsoltár. O Saltério de Molnár é um grande feito na lingüística e poesia. A exceção do divertidamente versátil poeta Bálint Balassa (1554-94), não houve poeta húngaro que se pudesse comparar a Molnár durante os séculos 16 e 17. Sua tradução dos “versos de um frágil vocabulário francês” para uma linguagem de expressões longas e difíceis foi um feito notável. Seu conhecimento erudito da Bíblia, sua perícia teológica e lingüística e seu gênio poético não são explicações suficientes para sua obra maravilhosa; deve ser levada em conta a iluminação do Espírito Santo. A grande popularidade de Molnár floresceu com o surgimento do puritanismo, por volta e depois dos anos 1630. Por suas numerosas edições, o Saltério tornou-se o livro mais popular e mais amado pelo povo. Abert Szenci Molnár recebe o crédito por introduzir no fluxo de vida das igrejas húngaras da Reforma o Saltério de Genebra de Calvino. Com isso e com a tradução das Institutas de Calvino (Hanau, 1624), ele uniu inseparavelmente a Igreja Reformada da Hungria com João Calvino e Genebra.
Sumário Por todo esse estudo foi feito um esforço de indicar as fontes, canais, contatos e resultados da Reforma Helvética na Hungria. O leitor pode ter percebido o uso cauteloso da terminologia e o fato de evitarmos os nomes Calvino e Calvinismo, enquanto que outros representantes da corrente helvética constantemente
estavam em primeiro plano. Seguindo os resultados de estudos recentes e esmerados, indicados em nossa introdução, devemos iniciar nossas observações conclusivas com uma declaração assaz negativa acerca do papel de Calvino na Hungria, na maior parte do século 16. Géza Kathona, um dos mais proeminentes pesquisadores contemporâneos, afirma que João Calvino, apesar de seu papel de liderança entre os Reformadores Suíços, exerceu pouca influência direta na Hungria antes das últimas décadas do século, e que mesmo essa influência ocorreu somente através de obras de importância secundária e da mediação de Theodore Beza, seu mais íntimo colaborador. “Mesmo essa influência fortaleceu-se apenas nas últimas décadas do século”, diz ele, “quando a estrutura doutrinária de nossa Igreja. Reformada já estava formulada em suas características essenciais. A influência de Calvino sobre as grandes massas do povo somente pode ser mencionada em nossa Igreja após 1624, quando Albert Szenci Molnár, sob influência de Heidelberg, publicou em húngaro as Institutas de Calvino em Hanau”. E mais: “Não podemos falar da dominância da doutrina de Calvino na Igreja Reformada da Hungria durante o século 16”. Entretanto, são numerosas as evidências negativas da presença do Calvinismo. O Artigo XI da Lei de 1548 baniu da terra os anabatistas e os sacramentalistas. A Dieta da Transilvânia também baniu os sacramentalistas em 1558 e 1559. O fato de que o nome de Calvino era bem conhecido na Hungria e Transilvânia, por volta de 1550, é evidente a partir do panfleto de George Draskovich contra ele (1551), e o relato sobre seus seguidores (1552), bem como pelos três escritos contra Kálmáncsehi e o Calvinismo (1556 e 1557). Nos anos de 1550, quando a Reforma Helvética obteve sua primeira conquista (1551-52) e estabeleceu-se a partir de 1556, houve sinais de uma crescente autoridade e reputação de Calvino.
Ambrosius Moibanus, um reformador em Breslau, em suas cartas de 1 de setembro de 1550 e 24 de março de 1552, assegurou para Calvino que suas obras eram recebidas com grande entusiasmo na Polônia e na Hungria. Em 26 de outubro de 1557, Gál Huszár, um Reformador húngaro, relatou a Heinrich Bullinger a grande popularidade das obras de Calvino na Hungria. Por volta da mesma época, Paul Thuri Farkas, que retornara recentemente de Wittenberg, como ardente adepto de João Calvino, escreveu o famoso dístico para as Institutas. Francis Ferinus Kaprophontes, o segundo dos dois correspondentes húngaros de Calvino, escreveu, em 26 de dezembro de 1561, para Calvino, de Wittenberg, que a obra de Lutero foi por ele (Calvino) levada à perfeição sublime, e que a confiança de toda a Hungria agora estava em sua autoridade e na dos eruditos helvéticos. O Catecismo de Peter Mélius Juhász, publicado em 1562 em Debrecen, refere-se a Calvino em seu subtítulo: “Compilado das Escrituras Sagradas e adaptado segundo os escritos de Johannes Calvinus”. Embora essa reivindicação não possa ser substanciada pelo texto, exceto que as questões introdutórias lembram o Catecismo de Calvino, de 1542, e as Institutas, essa inscrição é uma evidência clara da alta consideração que Calvino desfrutava naquela época, na Hungria. Por último, em 1º de maio de 1568, três anciãos da Cistibíscia — Caspar Károli, Michael Hevesi e Gregório Szikszai — reunidos em Göne, escreveram conjuntamente a Theodore Beza, notificando-o de que na Hungria os ensinos de Calvino foram aceitos com relação à predestinação, livre arbítrio e a Ceia do Senhor. Todos estes testemunhos apóiam a aceitação do fato de que Calvino era amplamente conhecido na Hungria nos anos 1550 e 1560, e que sua autoridade continuou crescente. Embora os ensinos de Calvino não dominem o movimento da Reforma na Hungria, nessas décadas, são detectáveis outros traços
substanciais de sua presença. A opera calvini alistada no legado de Caspar Károli são sinais externos de que seus ensinos estavam presentes. Mais importante é a informação de que, na preparação para seu histórico Sínodo de 1562, os Pais de Tarcal utilizaram as Recomendações a Westphal de Calvino, em 1561. O Catecismo de Genebra, de Calvino, de 1545, traduzido e publicado por Peter Mélius em 1563, foi aceito pelo Sínodo de Tarcal em 1564. Há um registro de reputação questionável de que a obra Optima iucundae concordias de Calvino foi apresentada como representação da doutrina reformada acerca da Ceia do Senhor, no Sínodo de Nagyenyed, na Transilvânia, em 1564, por George Blandrata, o médico da corte antitrinitariano, embora o autor não tenha sido identificado. É dada uma importância mais do que formal às apresentações de doutrinas calvinistas pelos três “gigantes” da Reforma: Estevão Szegedi Kis, Gregório Szegedi e Peter Mélius, de quem já tratamos em detalhe. Considerando os dotes doutrinários da Igreja Reformada da Hungria, podemos concluir que, na época da Reforma, os ensinos de Calvino que estavam diretamente dirigidos para a Hungria, eram sobre a predestinação, por Estevão Szegedi Kis, Gregório Szegedi e Peter Mélius Juhász na Confessio DebreceniensisAgrovalliensis; e sobre a inspiração verbal e o Pai Nosso por Szegedi Kis; sobre a Ceia do Senhor e a condição das almas após a morte, na Confessio Debreceniensis-Agrovalliensis; e sobre a formação da alma do crente na Ceia através de sua ascensão até Cristo, por Francis Dávid. Todas as outras doutrinas reformadas conquistaram o campo para a Reforma húngara nos anos 1550 e 1560 através da mediação de Theodore Beza, Heinrich Bullinger, Wolfgang Musculus, Peter Verrnigli Martyr, Martin Bucer e o Catecismo de Heidelberg. Desta forma, ao passo que o gênio de Calvino se reflete em todos estes intermediários, é mais acurado considerar a Reforma na Hungria, mais do que em termos de Calvinismo, como uma reflexão de toda a “Reforma Helvética”,
que tão eminente e eloqüentemente representa o amálgama do espírito de Bullinger e de Calvino.
Calvino e a Igreja Anglicana Phillip Edgcumbe Hughes
Phillip Edgcumbe Hughes é Professor Emérito do Trinity Episcopal School for Ministry, Cambridge, na Pensilvânia; Professor Visitante no Westminster Theological Seminary, em Filadélfia; Reitor Associado da St. John’s Episcopal Church, Huntingdon Valley, na Pensilvânia. É detentor de títulos acadêmicos da University of Cape Town (B.A., M.A., D.Litt.), da University of London (B.D.), e do Australian College of Theology (Th.D.). Suas numerosas obras incluem comentários sobre a 2 Coríntios e Hebreus; Teologia dos Reformadores Ingleses, Interpretação de Profecias, Mentes Criativas na Teologia Contemporânea e Registro do Conselho do Pastores de Genebra no Tempo de Calvino. Antigo Editor do The Churchman (Londres) é membro da Renaissance Society of America, da American Society for Reformation Research e da Studiorum Novi Testamenti Societas.
CAPITULO 8
CALVINO E A IGREJA ANGLICANA
A Reforma Inglesa, conquanto seja considerável sua dívida para com Lutero e Calvino e outros líderes do continente europeu, não foi importada da Alemanha ou de Genebra, pois ela podia orgulharse de sua própria origem nativa que vai até os Lolardos, no século 14, e, especialmente, até a “estrela da manhã da Reforma”, que é John Wycliffe (1329-84). O inconfundível protesto contra os erros e abusos da igreja papal, comumente associado ao movimento reformista do século 16, não era novo na Inglaterra. Foxe, ao narrar a perseguição aos Lolardos, no século 15, oferece esse vigoroso comentário: Se o conhecimento e a boa disposição daqueles bons homens tivesse tido, naquele tempo, a mesma liberdade, com a ajuda da mesma autoridade que temos agora, e não tivessem sido restringidos pela iniqüidade do tempo e da tirania dos prelados, seria manifesto o quão antiga é essa doutrina, que agora eles desprezam e rejeitam como nova; nem Bonner necessitaria ter perguntado a Thomas Hawks, e a outros tais, onde estava sua igreja quarenta anos atrás, uma vez que há quarenta anos, e mais... existiam tantos que professavam a mesma fé e a mesma doutrina que professamos agora. Ele acrescenta que os registros mostravam existir “uma tal associação e uma concordância doutrinária no meio dela, que, em suas afirmações e artigos quase não havia diferenças: a doutrina de
um era a doutrina de todos os outros."1 A natureza de seu protesto é amplamente ilustrada pelas objeções levantadas contra eles, com queixas de que eles ensinavam que “a confissão não deveria ser feita a um sacerdote, mas somente a Deus, porque nenhum sacerdote tinha poder para absolver um pecador de seu pecado”; que “nenhum sacerdote tinha o poder de fazer o pão tornar-se corpo de Cristo no sacramento do altar” e que “após as palavras sacramentais ele continuava tão somente pão material quanto antes”; que “cada verdadeiro cristão é um sacerdote diante de Deus”; que “é perfeitamente legítimo aos sacerdotes terem esposas”; que “os homens não devem ir às romarias”; que “não se deve honrar as imagens do crucifixo, de nossa senhora ou de qualquer outro santo”; que “a água benta consagrada na Igreja, pelo sacerdote, não é mais santa nem mais virtuosa do que qualquer outra água corrente ou de poço, porque o Senhor abençoou a todas as águas em sua primeira criação”; que relíquias ou “restos mortais, como ossos de homens mortos, não devem ser nem adorados, nem desenterrados de seus túmulos, nem colocados em relicários”; que “as orações feitas em todos os lugares são aceitáveis a Deus”; que “os homens não devem orar a nenhum santo, mas unicamente a Deus”; e que “a Igreja Católica é a congregação só dos eleitos".2 Onde há muitos mal entendidos, é necessário enfatizar que a essência tanto quanto a origem do movimento reformista da Inglaterra tinha (para tomar emprestadas as palavras do professor Dickens) pouco em comum com a velha saga dos Tudor: Divórcio, Reforma do Parlamento, Dissoluções e Livros de Orações.3 A Reforma, tanto na Inglaterra quanto em qualquer outro lugar, foi essencialmente um movimento evangélico, demonstrando mais uma 1
John Foxe, Acts and Monuments, org. por J. Pratt, 4ª. ed.) Londres, 18431, III. 589. Ibid., III. 590. 3 A. G. Dickens, Lollards and Protestants in the Diocese of York 1509-1558 (Oxford: University Press, 1959), p. 7. 2
vez que o Evangelho de Jesus Cristo é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16) e, ao mesmo tempo, traz dinamicamente a certeza de que a mensagem das Escrituras Sagradas é a Palavra de Deus dirigida aos homens pecadores. A chama da fé salvadora acendeu-se no coração de Thomas Bilney, em Cambridge, em 1519, quando ele lia o Novum Testamentum de Erasmo — foi esse Bilney que Deus usou para levar Hugh Latimer à conversão, o qual, em 1531, foi queimado vivo por proclamar publicamente o mesmo Evangelho. Ao chegar em Cambridge, Willian Tyndale — que enquanto esteve em Oxford “aperfeiçoou-se tanto no conhecimento de línguas e de outras artes liberais, quanto especialmente no conhecimento das Escrituras, às quais sua mente estava singularmente inclinada” — foi o instrumento da conversão do brilhante jovem estudante John Frith.1 Eram estes homens, e outros cujas vidas tinham sido transformadas pelo Evangelho, que se encontravam em Cambridge, na White Horse Inn, para estudar as Escrituras e para encorajar-se mutuamente na fé, e que depois saíram para dar testemunho e para morrer pela nova fé que tinham descoberto. É na intensidade de sua experiência, na graça de Deus, que encontramos o verdadeiro coração do grande movimento de reavivamento espiritual que conhecemos como a Reforma. Essas coisas estavam acontecendo quando João Calvino era ainda um menino que crescia na França. Quando a Reforma tomou impulso na Alemanha, Suíça e Inglaterra, aí também desenvolveu-se uma evidente unanimidade de convicções entre Lutero, Calvino e Cranmer a respeito de doutrinas tais como a soberania de Deus a autoridade das Escrituras, a depravação do homem e a justificação pela sola gratie e sola fide. A única área com uma desarmonia mais séria estava associada com o dogmatismo eucarístico de Lutero, 1
Foxe, Acts and Monuments, V. 4. 115.
com o qual nem os suíços nem os ingleses acharam possível concordar. Tanto Calvino como Cranmer estabeleceram uma doutrina recepcionista que evitava os extremos da consubstanciação de Lutero e os do mero memorialismo geralmente vinculado ao nome de Zwínglio. O ensino recepcionista é encontrado em Wycliffe, que o tinha encontrado em Agostinho; mas o tratado eucarístico do monge do século 9º, Ratramnus (Bertram), que foi lido alternadamente por Frith e por Ridley, desempenhou um papel importante em persuadir os reformadores ingleses sobre a verdade desta posição. Ointeresse de Calvino no progresso da Reforma na Inglaterra, assim como em outros países, era genuíno e ele sempre estava disposto a fazer qualquer coisa a seu alcance para encorajar seus companheiros da Reforma, na obra que reaIizavam. Calvino não tinha desejo de impor a eles uma forma de estrutura eclesiástica diferente daquela com que eles estavam acostumados. Na verdade, seu horror ao cisma (veja-se, por exemplo, Institutas IV i.9ss); bem pode tê-lo feito ver, com algum ciúme, a possibilidade da Inglaterra em reformar a Igreja de cima para baixo. Sua correspondência com os líderes ingleses mostra, conforme o Professor Basil Hall observou: Calvino não impôs o tipo genebrino de Reforma, mas antes defendeu os princípios da Reforma em termos gerais; ele propôs a elaboração de uma Confissão de Fé, a prática do catequismo, uma pregação mais freqüente e eficaz, e a disciplina moral.1 A congregação francesa em Londres, que Calvino estava preocupado em suprir com pastores capazes e que desfrutassem da boa vontade das autoridades inglesas, era também um vínculo 1
“Calvin against the Calvinist” in John Calvin, org. por G. E. Duffield (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), p. 33.
importante com a Inglaterra. Além disso, durante a perseguição desencadeada pela rainha Maria, floresceu em Genebra uma congregação inglesa sob a liderança de John Knox, e foi nesta cidade que Willian Whittingham (que mais tarde se tornou o Decano de York) e outros seus compatriotas trabalharam na preparação da Bíblia de Genebra, que foi publicada em 1560. O interesse profundo e simpático do Reformador de Genebra, pelo avanço da renovação espiritual da Inglaterra é evidente nas cartas que ele escreveu aos líderes da Igreja e do Estado naquele país. Nosso propósito, no que se segue, é fornecer um levantamento dessa correspondência, documentando dessa forma, a partir de fontes originais, o relacionamento entre João Calvino e a Igreja Anglicana. Nosso ponto de partida é a epístola dedicatória do comentário de Calvino às Cartas Pastorais (junho de 1548), dirigida ao Duque de Somerset, Protetor da Inglaterra e tio do jovem Rei Eduardo VI. O tom efusivo e elogioso da carta pode ser considerado como característica da época. O que nos interessa aqui é o modo pelo qual, através dessa dedicatória, Calvino esperava encorajar o Protetor a conduzir os negócios de Estado e instruir seu sobrinho real segundo os princípios da doutrina bíblica. Os seguintes extratos servirão para mostrar o espírito com que Calvino escreveu: As dificuldades tão grandes e numerosas que você tem experimentado não o impediram de fazer da restauração religiosa sua principal preocupação. Essa consideração, na verdade, não é mais digna de um príncipe do que benéfica para o Estado; pois os reinos desfrutam de prosperidade segura e de fiéis guardiões quando — aquele sobre quem eles são fundados e através de quem são preservados —, o Filho de Deus preside sobre eles. Conseqüentemente, você não poderia ter estabelecido mais beneficamente o Estado
inglês do que através da retirada de ídolos e de sua substituição pela adoração pura de Deus; e isso não pode acontecer sem que o ensino genuíno da piedade, que já por muito tempo tem sido suprimido pela tirania sacrílega do Anticristo Romano, seja restaurado pela entronização de Cristo. E fazer isso, que sempre será excelente, é o que há de mais digno, pois hoje poucos governadores podem ser encontrados que sujeitam a honra de sua alta posição ao cetro espiritual de Cristo. E, portanto, uma vantagem excepcional a esse mui sereno rei ter uma pessoa tal como você, relacionada com ele por laços familiares, e como o guia de sua juventude... Como, sob os auspícios de seu rei, você, extenuantemente, empenha-se no seu trabalho pela Reforma da Igreja Anglicana que — como é o caso com quase toda a cristandade —, tem sido terrivelmente corrompida pela horrorosa impiedade do Papado e, para esse fim (o de reformar a Igreja), você tem a cooperação de muitos Timóteos (aparentemente uma referência aos líderes eclesiásticos tais como Cranmer, Latimer e Ridley), você não poderia organizar mais efetivamente seus santos esforços do que seguindo as instruções deixadas por Paulo... Que o Senhor em cujas mãos estão os confins da terra, preserve longamente o reino da Inglaterra, em segurança e prosperidade; que ele adorne esse mui sereno rei com o espírito de liderança e derrame sobre ele todas as bênçãos; e que ele capacite você a perseverar alegremente em seu honroso caminho, para que, por seu intermédio, sua fama seja estendida sempre mais e mais."1 Cerca de quatro meses mais tarde, em 22 de outubro de 1548, Calvino enviou uma longa carta ao mesmo correspondente. No ano anterior, encorajado pelas recomendações de Calvino, o rei inglês e 1
Tradução do autor de J. Calvino, in Novum Testamentum Commentarii, A. Tholuck, org. (Berlim, 1834), VI, 331 ss.
o Arcebispo Cranmer receberam em seu país os exilados italianos Pietro Martyr Vermigli e Bernardino Ochino, o primeiro sendo indicado Professor Régio de Divindade em Oxford, e o último recebendo uma Prebenda de Cantuária e uma pensão real. No ano seguinte (1549), Martin Bucer aceitou um convite similar e tornouse Professor Régio de Divindade em Cambridge. Essas indicações revelam bastante a confiança mútua e a boa vontade que prevaleceram entre os reformadores na Inglaterra e Calvino, e outros no continente europeu. Entretanto, enquanto isso, Somerset não ficou sem problemas e, em outubro de 1549, os adversários que tinham tramado sua queda asseguraram seu aprisionamento na Torre de Londres. Embora tenha sido solto em fevereiro de 1550, aqueles que o desejavam completamente afastado do cenário, tiveram sucesso em conseguir sua execução quase dois anos depois. Consciente do zelo reformador de Somerset e das dificuldades que o cercavam, Calvino aproveitou a oportunidade para insistir com ele sobre o valor da perseverança na obra em que ele pusera sua mão. Escrevendo como companheiro no serviço do mesmo Mestre, Calvino fortaleceu-lhe o ânimo nos seguintes termos: Não tenho outro fim em vista, exceto apenas que, dando seqüência ainda mais e mais ao que você já começou, você possa incrementar a honra de Deus, até você ter realizado seu reino numa perfeição tão grande quanto se deve procurar no mundo... Temos todas as razões para sempre sermos agradecidos a nosso Deus e Pai, porque ele se agradou de empregá-lo numa obra tão excelente quanto a de estabelecer a pureza e a ordem correta de seu culto na Inglaterra, através de você, e estabelecer a doutrina de salvação de modo que ela possa ser fielmente proclamada a todos aqueles que consentirem em ouvi-la; que ele tenha concedido a você tal firmeza e constância, para perseverar até aqui, apesar de tantas provações e dificuldades; que ele o tenha ajudado com sua poderosa mão, abençoando todos os seus conselhos
e seus labores para fazê-los prosperar. Estes são motivos de gratidão que animam todos os verdadeiros crentes para magnificarem seu nome. Relembrando a Somerset a incessante atividade de Satanás, especialmente onde a verdade do Evangelho está avançando, Calvino apelou para que ele considerasse atentamente determinados métodos de reforma, que ele desejava propor. A primeira proposta ocupava-se do tipo de instrução na fé que deveria ser ministrado ao povo. “Eu não pretendo dizer que doutrina deve ser”, explica Calvino: Antes ofereço graças a Deus por sua bondade, visto que depois de ter iluminado você no puro conhecimento dele mesmo, deu-lhe sabedoria e discrição para tomar medidas a fim de que sua pura verdade seja pregada. Louvado seja Deus que você não tenha de aprender qual é a verdadeira fé dos cristãos e a doutrina que eles devem sustentar, visto que por seu intermédio a verdadeira pureza da fé tem sido restaurada. Isso é, que nós sustentamos que somente Deus é o único Governador de nossas almas, sustentamos que sua lei deve ser a única regra e orientação espiritual para nossas consciências, não servimos a ele conforme as tolas invenções dos homens. E, também, que segundo sua natureza ele deve ser adorado em espírito e em pureza de coração. Por outro lado, reconhecendo que não há, em nós, nada além de miséria e que somos corruptos em todos nossos sentimentos e afeições, de modo que nossas almas são um abismo de iniqüidade, e somos completamente desesperançados de nós mesmos; e que, tendo esgotado qualquer presunção de nossa própria sabedoria, ou o poder de fazer bem, nós temos de recorrer à fonte de toda bênção, que está em Cristo Jesus, aceitando que o que ele nos confere, isso é, o mérito de sua morte e paixão, e que, por
estes meios, nós possamos ser reconciliados com Deus; que sendo lavados em seu sangue, nós não tenhamos medo algum de que nossas máculas nos impeçam de encontrar a graça no trono celestial; que sendo assegurados de que nossos pecados são livremente perdoados em virtude de seu sacrifício, nós possamos repousar e mesmo descansar sobre essa verdade para a certeza de nossa salvação; que nós possamos ser santificados por seu Espírito, e assim consagrar-nos à obediência da justiça de Deus; que sendo fortalecidos por sua graça nós possamos vencer a Satanás, o mundo e a carne; finalmente, que sendo membros de seu corpo, nós nunca duvidemos de que Deus nos reconhece entre o número de seu filhos, e que confiantemente possamos chamá-lo como nosso Pai; que possamos ser cuidadosos em reconhecer e ter em mente esse propósito em qualquer coisa que seja dita ou feita na Igreja, a saber, que sendo separados do mundo, nós devemos subir aos céus com nosso Cabeça e Salvador. Reconhecendo a necessidade de uma “pregação viva” e, ao mesmo tempo, a necessidade do uso de homilias escritas e aprovadas, lidas por pessoas deficientemente equipadas para a pregação enquanto houvesse carência de pastores competentes, de modo que em todo lugar o povo possa ser solidamente instruído no ensino bíblico, Calvino defendeu a preparação de um “resumo explícito da doutrina que todos devem pregar” e um Catecismo ou “Fórmula Comum de Instrução para crianças e para pessoas ignorantes, que servisse para familiarizá-las com a sólida doutrina, de modo que elas sejam capazes de discernir a diferença entre ela e a falsidade e corrupções que lhes possam ser trazidas em oposição”. Calvino expressou sua convicção de que “a Igreja de Deus nunca se preservará sem um catecismo, pois é como a semente que preserva o bom grão de morrer e faz com que ele se multiplique de geração em geração”. Um catecismo foi realmente incluído no primeiro dos
livros de oração edwardianos, que foi publicado no ano seguinte (1549), e continuou a ser uma característica em cada edição subseqüente do Livro de Oração Comum. A segunda proposta de Calvino enfatizava a importância de uma erradicação total de todos os erros antibíblicos e de todas as distorções, se era para se fazer uma reforma adequada da Igreja: Quaisquer combinações que os homens tenham introduzido, com base em sua própria imaginação, são carregadas de tantas contaminações que nos afastam do uso santificado daquilo que Deus nos concedeu para nossa salvação. Por essa razão, cortar tais abusos só pela metade de modo algum restaurará as coisas a um estado de pureza, porque, do contrário, teremos sempre um Cristianismo sem autenticidade. Ele “de boa vontade reconheceu” que “devemos observar a moderação, pois o exagero não é nem discreto nem útil”; na verdade, essas formas de culto necessitavam de ser ajustadas à condição e ao gosto do povo”; porém, sempre deveria ser assegurado que as corrupções satânicas e anticristãs não fossem admitidas sob aquele pretexto. Portanto, (instou ele), vendo que Deus te moveu até agora, toma cuidado, eu te imploro, para que, sem qualquer exceção, ele possa te aprovar como reparador de seu templo, a fim de que os tempos do rei, teu sobrinho, possam ser comparados aos de Josias, e que tu ponhas todas as coisas em tal condição que ele somente necessite manter a ordem religiosa que Deus terá preparado para ele através de ti. Se lembrarmos apenas que a Reforma da sua igreja é obra de Deus, mais do que por nossa limitada compreensão humana
desejaremos ser guiados por ele em todas as coisas, para que não venhamos a trazer o que é celestial à sujeição do que é terreno: Dessa forma, não excluo a prudência que é tão necessária (explicou Calvino), para tomar todas as medidas corretas e apropriadas, não caindo em extremos nem de um lado nem de outro, para conquistar o mundo inteiro para Deus, caso isso seja possível. Porém a sabedoria do Espírito, não a da carne, deve governar sobre tudo; e tendo indagado da boca do Senhor, devemos pedir para que ele nos guie e nos lidere, mais do que seguirmos a tendência de nosso próprio entendimento. A terceira proposta de Calvino era um apelo para o exercício da disciplina, especialmente para restringir ou frear a indecência e a blasfêmia: A grande e desgarrada licenciosidade que vejo em toda a parte, pelo mundo, me constrange a te implorar que tu, sinceramente, volvas tua atenção para manter os homens dentro dos limites da disciplina sólida e saudável. Que, acima de tudo, tu te mantenhas encarregado, para a honra de Deus, de punir esses crimes que os homens têm tido o hábito de não levar a sério. Menciono isso porque, às vezes, furtos, assaltos e extorções são mais severamente punidos, porque através deles os homens são prejudicados; ao passo que eles toleram a prostituição e o adultério, bebedices e blasfêmias ao nome de Deus, como se isso fossem coisas completamente permissíveis ou, pelo menos, coisas de muito pouca importância... As Escrituras nos dizem claramente que por causa de blasfêmias um país inteiro é corrompido... Quando o Santo Matrimônio, que deve ser uma imagem vívida da união sagrada que temos com o Filho de Deus, é maculado, e a aliança, que deveria persistir mais firme e
indissolúvel que qualquer coisa deste mundo, é deslealmente feita em pedaços, se não considerarmos seriamente o fato de que isso é um pecado contra Deus, esse fato é um sinal de que nosso zelo por Deus é realmente muito baixo. No que toca à prostituição, deveria ser bastante para nós o fato de São Paulo compará-la ao sacrilégio, visto que, por seu intermédio, os templos de Deus, que são nossos corpos, são profanados. Devemos também lembrar que os beberrões e os que se prostituem são banidos do reino de Deus, de modo tal que somos proibidos de conversar com eles, do que se segue claramente que eles não devem ser tolerados na Igreja. Quanto mais tolerante e indulgente o povo for para com tais excessos, mais certo é o juízo de Deus contra ele. Conseqüentemente, Calvino apela para Somerset nos seguintes termos: Portanto, para evitar sua ira, eu te rogo, Senhor, para manter a rédea curta, e fazer com que aqueles que ouvem a doutrina do Evangelho comprovem seu Cristianismo com uma vida de santidade. Pois assim como a doutrina é a alma da Igreja para vivificá-la, assim também a disciplina e a correção dos vícios são como os nervos que sustentam o corpo num estado de saúde e vigor. A obrigação dos bispos e párocos é a de vigiar para que a Ceia do Senhor não seja contaminada por pessoas de vidas escandalosas. Porém, na posição de autoridade em que Deus te colocou, a principal responsabilidade recai sobre ti, que tens encargo especial que te foi dado, que é o de colocar os outros em movimento, com o propósito de que cada um cumpra suas obrigações, e observe diligentemente para que a ordem estabelecida seja devidamente observada. Essa carta exibe claramente a preocupação genuína de Calvino
pela promoção da causa evangélica em todos os países, e o modo franco e sábio pelo qual, sem ser exagerado ou precipitado, ele procura encorajar outros que se tenham engajado na reforma de sua Igreja e nação. O fato de o seu conselho ao Protetor da Inglaterra não ter passado desapercebido é demonstrado pela atitude da Duquesa de Somerset, que lhe enviou um anel como expressão de gratidão. Calvino, um tanto estranhamente, sentiu ser inconveniente expressar sua gratidão diretamente à duquesa, mas o fez através de uma carta, datada de 17 de junho de 1549, à sua filha, Lady Anne Seymour, nos seguintes termos: Como sua mãe, ilustre senhora, recentemente presenteou-me com um anel, como símbolo de sua boa vontade para comigo, dádiva que eu absolutamente não mereço, seria excessivamente inconveniente, de minha parte, não mostrar nenhum sinal de gratidão, expressando pelo menos meu apreço por ela. Entretanto, não sendo capaz de encontrar uma maneira pela qual pudesse cumprir esse tipo de obrigação, nada me parece mais adequado do que pedir o teu auxílio, nobre lady, não menos distinto por tua honra que por tua ascendência. Pois tu serás, entre todas as outras, a mais adequada negociadora com tua mãe e, em virtude de tua mui grande afeição por ela, serás gentil em apresentar a ela essa prova de respeito, especialmente porque a mensagem não lhe será desagradável, ou muito me engano. Pois depreendi que entendes, pelas palavras dela, que ela me é de disposição favorável. Agora, se minhas orações têm algum proveito para contigo, eu te pediria especialmente para que não julgasses imprópria a humilde saudação oferecida a ela, de minha parte, com toda submissão, a fim de que ela possa, pelo menos, entender que a dádiva da qual ela me julgava digno não foi concedida para esse que não soube ser agradecido.
Referindo-se à própria reputação de Anne Seymour, de estar bem fundamentada nas doutrinas de Cristo, ele a exortou a perseverar firmemente no caminho do Evangelho. “Certamente", continua ele, entre tantos dons excelentes que Deus te tem concedido e com os quais te tem adornado, esse, inquestionavelmente, se destaca em primeiro lugar: que ele te estendeu sua mão na tenra infância, para te guiar a seu próprio Filho, que é autor da eterna salvação e fonte de todo o bem. Cabe a ti esforçarte, com todo o zelo, para seguir fielmente sua chamada... Que o Senhor te enriqueça diariamente com sua bênção, e que ele seja o guia constante de todo o caminho da tua vida. No outono daquele ano, o Duque de Somerset foi aprisionado na Torre de Londres, conforme eu já havia dito. Foi depois de ficar sabendo que o Duque fora posto em liberdade que Calvino voltou a escrever-lhe. Essa carta não está datada, mas deve ter sido escrita pouco tempo depois de 6 de fevereiro de 1550, data da libertação de Somerset. Nesta carta, Calvino expressou sua alegria pelo fato de Somerset ser novamente um homem livre, e sua confiança de que ele retomaria sua tarefa em favor do estabelecimento do Evangelho de Cristo. Não sou só eu que me alegro pelo bom resultado que Deus deu à tua aflição, mas todos os verdadeiros crentes que desejam o progresso do reino de nosso Senhor Jesus Cristo, pois que eles conhecem a solicitude com que tens trabalhado pelo re-estabelecimento do Evangelho em toda a sua pureza, na Inglaterra, e para que todo tipo de superstição seja abolido. E eu, efetivamente, não duvido de que estás preparado para perseverar no mesmo caminho, enquanto tiveres os meios.
Lembrando-o da admoestação do apóstolo Paulo, no sentido de que “não temos de lutar contra carne e sangue, mas contra os ardis ocultos de nosso inimigo espiritual”, Calvino apelou pare que ele concentrasse suas energias na guerra contra Satanás, e que mostrasse um espírito de perdão a seus perseguidores: Portanto, não desperdicemos nossas energias com homens, porém, antes coloquemo-nos contra Satanás para resistir a todas as suas maquinações contra nós, pois não há dúvida de que ele foi o autor do mal que pesou sobre ti, com o fim de obstruir o progresso do Evangelho e levar todos à confusão. Por essa razão, senhor, esquecendo e perdoando as faltas daqueles que podes ter considerado como teus inimigos, aplica toda a tua mente para repelir a maldade de Satanás que, dessa forma, os usou para sua própria destruição, quando determinaram buscar tua ruína. Esse espírito de grandeza não será agradável somente a Deus, mas fará de ti também o mais amado entre os homens. Tendo ou não sido influenciado por essa recomendação — que Calvino apresentou sob o impulso do “amor que tenho para contigo e do cuidado que tenho para com tua honra e bem-estar” — Somerset comportou-se de modo amigável e destituído de vingança para com os que lhe causaram dano. Além disso, Calvino exortou-o a considerar os sofrimentos pelos quais passara como correção vinda das mãos de um Deus benevolente, com o propósito de o abençoar: Tem sido grande o teu zelo em exaltar o nome de Deus e em restaurar a pureza de seu Evangelho. Porém, tu sabes, senhor, que numa causa tão grande e digna, mesmo quando tivermos empregado todas as nossas força, ainda estamos muito longe daquilo que se exige. Entretanto, se Deus, por esse meio, uniu-te a ele novamente, planejando ele mesmo
induzir-te a fazer melhor do que nunca, tua obrigação é de esforçar-te ao máximo, e com todas as tuas energias, de modo que uma obra tão santa quanto a que ele começou através de ti, possa ser levada adiante. Não duvido de que procedes assim; porém, também estou confiante em que, conhecendo tu a afeição que me leva a exortar-te com esse fim, receberás todas as minhas solicitações com tua costumeira benignidade. Se dessa forma a honra de Deus for por ti estimada acima de tudo o mais, certamente ele velará por ti e por toda tua casa, para sobre ela derramar mais abundantemente a sua graça, e te fará conhecer o valor de sua bênção. Pois essa promessa nunca pode falhar: “Eu honrarei àqueles que me honram” (1 Sm 2.30). É verdade que aqueles que melhor cumprem sua tarefa freqüentemente são mais atribulados por muitos ataques violentos. Mas é bastante suficiente para eles o fato de que Deus está próximo para os socorrer e aliviar. Calvino prossegue, expressando sua gratidão por causa da piedade do jovem rei, Edward VI, e de sua dedicação à tarefa de promover a fé evangélica por todo o seu reino: Agora, embora seja bastante para ti olhar para Deus e sentir a segurança de que a obra que fazes lhe é agradável, não obstante, senhor, é para ti um grande conforto ver o rei com tão boa disposição a ponto de preferir a restauração da Igreja e da pura doutrina a qualquer outra coisa, vendo que é uma virtude a ser grandemente admirada nele, e uma bênção especial para o reino, pois, num jovem de idade tão tenra as vaidades deste mundo não obstruem o temor a Deus, e não impedem que a verdadeira religião governe seu coração.1 1
Ibid., II, nº CCLVII; Original Letters Relating to the English Reformation, org. H. Robinson (Cambridge: Parker Society. 1847), II, nº CCCXXXV.
No Domingo de Pentecostes de 1550, Martin Bucer, então em Cambridge, enviou uma carta a Calvino na qual, após ter descrito os diversos obstáculos que se opunham ao progresso da Reforma na Inglaterra, também falou elogiosamente do zelo do jovem monarca e da sua percepção em questões espirituais. Bucer rogou: Redobra tuas orações pelo mui sereno rei, que está fazendo um progresso maravilhoso na piedade e no aprendizado. Pois tu facilmente podes perceber o perigo em que ele está, humanamente falando, pois que os papistas em todo lugar estão mui furiosos, pois vêem e sabem que o rei está exercendo todo o seu poder para a restauração do reino de Cristo. Bucer mencionou especialmente o perigo representado pelo apego obstinado à religião papal, por parte da irmã mais velha de Edward, Mary, que, conforme se confirmaria, muito em breve subiria ao trono inglês e introduziria um reino de terror para os que professassem a fé reformada. O fato de o próprio rei ter Calvino e seu trabalho em alta consideração, fica evidente numa carta datada de 4 de dezembro daquele mesmo ano (1550), escrita de Londres para Calvino por Francis Bourgoyne que, por algum tempo, servira como ministro na França. Ele contou a Calvino que: Nosso Josias, o rei da Inglaterra, fez-me mui amável indagação acerca de tua saúde e teu ministério, ao que, quando respondi o que, em minha opinião, considerei digno de ti, ele declarou convincentemente, tanto através de seu semblante quanto de suas palavras, que tem grande interesse por ti e por tudo que te diz respeito. Incidentalmente, fez-se menção da carta que uma vez enviaste para ser entregue a seu tio, então protetor do reino, e que ele declarou ter lhe
sido profundamente gratificante. Ele insistiu com Calvino sobre a adequada oportunidade de enviar ao jovem rei “uma carta de tal natureza que adicionasse esporas a um cavalo disposto”. “O rei”, acrescentou ele, “apóia e encoraja, o quanto pode, a religião pura e os homens piedosos e instruídos, e realizaria muito mais se sua idade lho permitisse."1 Calvino não perdeu tempo e aproveitou essa recomendação, pois no Natal, apenas três semanas depois, ele dedicou seu comentário a Isaías com uma epístola preambular dirigida à “Sua Sereníssima Alteza, Edward, o Sexto, Rei da Inglaterra, um príncipe verdadeiramente cristão”. O Reformador elogiou a Edward por assumir sua posição corajosamente como um campeão da verdade do Evangelho, e o encorajou a continuar conforme tinha começado. Ele escreveu: O fato de Deus haver-te levantado e dado capacidade e disposições tão excelentes para defender a causa da piedade, e de tão diligentemente teres obedecido a Deus nesta questão que tu sabes que ele aceita e aprova, pode com justiça ser considerado como uma consolação nada ordinária no presente estado de infortúnio da Igreja. Pois embora os negócios do reino até aqui sejam conduzidos por teus conselheiros, e embora o mui ilustre tio de Vossa Majestade, o Duque de Somerset, e muitos outros, tenham a religião em tão alta estima, — a ponto de laborarem diligentemente, como o devem fazer, para estabelecê-la —, com teus próprios esforços tu os excedes de modo a deixar bem manifesto que eles recebem um não pequeno impulso do zelo que observam em ti. Tu és celebrado não apenas por possuir uma disposição nobre e algumas sementes de virtudes (que numa idade tão precoce geralmente são 1
Ibid., II. 548, 730.
consideradas como notáveis), mas também pela maturidade destas virtudes que vão bem além de teus anos, virtudes que seriam especialmente admiradas e louvadas numa idade bastante avançada. Tua piedade, especialmente, é tão intensamente aplaudida que o profeta Isaías — estou totalmente convencido —, terá em ti alguém que o considera com muita reverência, agora que ele está morto, do mesmo modo como o fez Ezequias, quando ele ainda estava vivo. Calvino instruiu o rei, dizendo-lhe que “quando reparamos as ruínas da Igreja, dedicamos nosso labor ao Senhor, em obediência às suas leis e injunções” e que, “mesmo assim, a restauração da Igreja é obra própria de Deus”; e continuou: Nem é sem boa razão que isso está ensinado em todas as partes das Escrituras, e é tão seriamente enfatizado pelo profeta Isaías. Portanto, relembrando essa doutrina e confiando no auxílio de Deus, não hesitemos em empreender uma obra que está muito além de nossas forças, e que nenhum obstáculo nos desvie ou desencoraje, de modo a abandonarmos nosso empreendimento. E aqui conclamo expressamente a ti, mui excelente Rei, ou antes, o próprio Deus fala contigo por boca de seu servo Isaías, encarregando-te de agir com o máximo de tuas forças e. capacidades, para levar avante a restauração da Igreja que, com tanto sucesso, tem sido iniciada em teu reino. Ele chamou a atenção de Edward VI para o fato de que Isaias denomina os reis “os pais adotivos da Igreja” (Is 49.23) e, também, pronuncia uma maldição sobre todos os reis e nações que se recusam a lhe dar seu apoio”, e então ele instou: “Não deves ser desviado de teu propósito por nenhum evento, mesmo que calamitoso”. A carta se encerra com essa oração:
Adeus, mui ilustre Rei! Que o Senhor faça tua majestade prosperar e a preserve por um longo período, auxiliado e guiado por seu Santo Espírito, e te abençoe em todas as coisas! Amém.1 Um mês depois, em 24 de janeiro de 1551, Calvino deu seqüência a essa missiva com outra epístola dedicatória, desta vez prefaciando seu comentário às Epístolas Católicas. Nesta carta ele deixou transpirar severas críticas ao Concílio de Trento (cujas sessões tinham começado em 1545). Porém, ao mesmo tempo, ele expressou sua disposição em freqüentar o concílio desde que ficasse assegurado que ele e seus companheiros da Reforma não fossem amordaçados! Que eles nos dêem um concílio no qual tenhamos ampla liberdade de falar em defesa da causa da verdade, e que se nos recusarmos a comparecer a esse concílio e a dar uma razão de tudo o que temos feito, então eles com justiça nos acusem de desobediência... Eles declaram que não é legal admitir qualquer pessoa em seus assentos exceto os ungidos e os mitrados. Então os deixe ficar sentado enquanto nós ficamos em pé, desde que sejamos ouvidos ao declarar a verdade. Depois de ter afirmado sua determinação em se dedicar à causa da Reforma evangélica e escriturística, enquanto tiver fôlego, Calvino termina sua carta dirigindo-se a Edward nos seguintes termos: Retornando a ti, mui ilustre Rei, tens aqui um pequeno penhor, meus comentários às Epístolas Católicas... Como os intérpretes das Escrituras, segundo a sua habilidade, se 1
J. Calvino, Commentary on The Prophet Isaiah, org. por W. Pringle (Edimburgo: Calvin Translation Society, 1850),I. xix ss.
abastecem de armas para lutar contra o Anticristo, assim também deves ter em mente que é uma tarefa que cabe a vossa Majestade defender a verdadeira e genuína interpretação das Escrituras contra calúnias indignas, de modo que a verdadeira religião possa florescer... Adeus, mui nobre Rei. Que o Senhor continue a preservar vossa Majestade em sua fé, como ele já iniciou, que ele governe a ti e a teus conselheiros com o Espírito de sabedoria e fortaleza, e mantenha todo o teu reino em segurança e paz.1 O portador desta carta, que também levou outra para o Duque de Somerset, era o colega aristocrata de Calvino, Nicolas Des Gallars, que mais tarde passaria algum tempo na Inglaterra, como pastor da igreja francesa em Londres. As novidades que ele trouxe, ao voltar da Inglaterra, acerca do modo favorável pelo qual as mensagens de Calvino foram recebidas na corte real, são descritas com júbilo pelo Reformador de Genebra, numa carta endereçada a Farel, em 15 de junho de 1551: Finalmente, Nicolas retornou da Inglaterra, tendo sido retido por onze dias de ventos contrários, e posteriormente agitado por uma tempestade tão severa que, com dificuldade, escapou de um naufrágio. Ele relata que foi recebido de modo tão gentil e afetuoso que tenho boa razão para congratular-me, pois meu trabalho foi feito com o melhor proveito. Depois de ter entregado minha carta ao Duque de Somerset, e tendo dito que levava também outra para o Rei, o próprio Duque se encarregou de apresentá-la, e no dia seguinte partiu para a Corte. Salvo engano meu, a obra não apenas agradou em muito ao Conselho Real, como também trouxe profundo regozijo ao próprio Rei. O Arcebispo da 1
Calvino, Commentary on the Epistle to the Hebrews, the Catholic Epistles, and the First and Second Epistles of Peter, trad. por W. G. Johnston (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), p. 219 ss.
Cantuária informou-me de que não haveria nada mais útil que eu pudesse fazer do que escrever mais freqüentemente ao Rei. Isso me trouxe alegria maior do que se tivesse vindo a receber grande soma de dinheiro. Numa carta de 25 de julho, do mesmo ano, dirigida a Somerset, Calvino declarou sua inaptidão para agradecer suficientemente ao Duque pela gentileza com que ele recebera Des Gallars, pelo incômodo que ele tivera ao apresentar pessoalmente seus comentários ao rei, e “por todas as outras provas de singular afeição e amizade que até hoje me tens" demonstrado graciosamente.1 Foi nesta época que Thomas Cranmer, Arcebispo de Cantuária — que, conforme indica o extrato da carta de Calvino a Farel acima transcrito, já tinha se comunicado com Calvino encorajando sua participação na Reforma inglesa —, estava desenvolvendo seu grande esquema para reunir um Concílio Ecumênico de teólogos reformados. Esse Concílio não seria apenas uma reação contrária ao Concílio de Trento — que então acontecia —, mas seria também uma ocasião para resolver a controvérsia em torno da doutrina da eucaristia, que estava dividindo os luteranos e seus companheiros evangélicos na Europa e Inglaterra. Na primavera de 1552, Cranmer enviou cartas aos principais Reformadores do continente europeu propondo a convocação de tal Assembléia. Em sua carta a Calvino, datada de 20 de março, ele escreve como se segue: Como não há nada que mais injuriosamente tenda a dividir as igrejas do que heresias e disputas a respeito de doutrinas da religião, do mesmo modo nada tende mais efetivamente a unir as Igrejas de Deus e mais poderosamente a defender o rebanho de Cristo do que o ensino puro do Evangelho e a harmonia da doutrina. Portanto, freqüentemente desejei, e 1
Cat. Letts., II. 311, 315 ss.
ainda continuo a fazê-lo, que os homens instruídos e piedosos, eminentes por sua erudição e juízo, possam encontrar-se conjuntamente em algum lugar seguro, onde, tomando conselho em Assembléia, e comparando suas respectivas opiniões, possam tratar de todos os tópicos da doutrina eclesiástica e legar, à posteridade, sob o peso de sua autoridade, alguma obra não só sobre os assuntos em si, mas também a respeito da maneira de expressá-los. Nossos adversários estão agora reunidos em Concílio, em Trento, para fundamentarem seus erros; deveremos nós negligenciar a convocação conjunta de um Sínodo piedoso para a refutação do erro e para a restauração e propagação da verdade? Conforme estou informado, eles estão elaborando decretos a respeito da adoração da hóstia: por essa razão não devemos deixar pedra sobre pedra, não somente para guardar outros contra essa idolatria, mas também para que nós mesmos cheguemos a um acordo sobre a doutrina deste sacramento. Certamente, não escapa à tua prudência o quão excessivamente a Igreja de Deus tem sido injuriada por dissensões e diferenças de opinião a respeito deste sacramento de unidade; ainda que agora, em certa medida, elas tenham sido removidas, mesmo assim eu desejaria um acordo nesta doutrina, não apenas com relação ao assunto em si, mas também com respeito às palavras e formas de expressão.1 Essa carta mostra que a visão de Cranmer, assim como a de Calvino, não estava limitada a um país ou território. A resposta de Calvino à proposta do Arcebispo foi entusiástica: Mui ilustre Senhor, verdadeira e sabiamente julgas que, no presente estado conturbado da Igreja, nenhum remédio mais 1
Orig. Letts., 1. nº XIV.
adequado pode ser adotado que o da reunião conjunta dos homens piedosos e circunspectos, bem disciplinados na escola de Cristo, que professarão abertamente sua concordância nas doutrinas da religião... Na verdade, o Senhor, como está acostumado a fazer desde o princípio do mundo, é maravilhosamente capaz — e por meios que nos são desconhecidos — de preservar a verdade, impedindo que seja resgatada em pedaços pelas dissensões dos homens. Não obstante, de forma alguma ele deixaria inativas aquelas pessoas a quem ele próprio pôs como vigias, visto que ele as apontou como seus ministros, e com a ajuda das quais ele pode purificar a sólida doutrina da Igreja de toda a corrupção, e passá-la inteira para a posteridade. Para ti mesmo, mui excelente Arcebispo, é especialmente necessário, conforme o fazes, dedicares toda a tua atenção a estes assuntos, de acordo com a tua mais exaltada posição. E eu não digo isso como se considerasse necessário estimulálo novamente, tu que não somente te antecipaste a nós por tua própria e livre vontade, mas estás também, em teu próprio e urgente parecer, a exortar um curso de ação tão feliz e excelente. Passando para o progresso da Reforma na Inglaterra, Calvino continuou com as seguintes palavras de apreciação: Realmente, ouvimos que o Evangelho está fazendo um progresso favorável na Inglaterra. Mas não tenho dúvidas de que julgas ser também aí a situação idêntica à que Paulo viveu em sua época, no sentido de que quando uma porta é aberta para receber a doutrina pura, surgem imediatamente muitos adversários. Porém, embora eu esteja ciente da quantidade de campeões que tens contigo, bem qualificados para refutar as mentiras de Satanás, contudo, tal é a maldade destes partidos cujo maior negócio é criar confusão, que a
diligência dos bons homens a esse respeito nunca pode ser julgada excessiva ou supérflua. Sei, também, em segundo lugar, que teu cuidado não está limitado só a Inglaterra, mas que estás ao mesmo tempo, atento ao mundo todo. Portanto, não é apenas de se admirar a disposição generosa do mui sereno Rei, mas também sua rara piedade em honrar, com seu favor, o desígnio piedoso de fazer realizar-se uma Assembléia desta espécie, oferecendo um lugar para a reunião dentro de seu reino. Eu desejo que essa Assembléia possa ser realizada e que os homens distintos e instruídos das principais igrejas possam se encontrar no lugar indicado e, após considerações diligentes de cada artigo de fé, leguem para a posteridade uma forma definida de doutrina conforme a sua opinião unânime. Porém, deve-se reconhecer também, entre os maiores males de nosso tempo, o fato de as igrejas estarem tão distanciadas entre si que raramente ocorre entre elas o intercâmbio comum da sociedade, muito menos o da santa comunhão dos membros de Cristo, comunhão que todos professam com seus lábios, embora poucos a honrem sinceramente na prática... A seção final desta carta contém a famosa declaração de Calvino acerca de sua disposição em atravessar dez mares para participar de tal Concílio: No que me toca, se puder ser útil em algo, não me recusarei a atravessar dez mares, ser for necessário, para atender a esse objetivo. Se oferecer a ajuda de um apoio ao rei da Inglaterra fosse o único ponto em discussão, apenas isso já me seria motivo suficiente. Porém, agora — quando o objetivo que se busca é um acordo entre os homens instruídos e um bem estruturado e seriamente considerado acordo segundo o padrão das Escrituras, acordo pelo qual as igrejas, ao invés de ficarem separadas entre si, possam unir-
se —, não considero ser certo para mim fugir de quaisquer trabalhos ou dificuldades... Despeço-me, ó mui excelente e sinceramente honrado Arcebispo. Que o Senhor continue a guiar-te por meio de seu Espírito e conceda as suas bênçãos a teus santos esforços.1 Mais evidência do profundo interesse de Calvino pelo progresso da Reforma na Inglaterra, encontramos numa carta datada de 4 de julho, na qual dedica ainda outra obra ao rei inglês (a terceira desta espécie em cerca de dois anos e meio). Esse era um pequeno volume de quatro sermões sobre o Salmo 87, que Calvino redigira tendo em mente especialmente Edward VI. Na verdade, a carta é uma exortação breve e amigável: Tu bem sabes, Senhor, que perigo há para reis e príncipes, quando a altura a que são elevados deslumbre seus olhos e os divirta cá em baixo, fazendo-os esquecerem o reino dos céus; não tenho dúvida de que Deus não somente te tem advertido a respeito deste perigo, mas também dele te pode preservar; não duvido de que tu te protegerás cem vezes melhor do que aqueles que o experimentaram sem dele estarem cientes. Agora, no Salmo que temos diante de nós, nos são apresentadas a grandeza e a dignidade da Igreja, a qual de tal modo deve atrair para si mesma tanto grandes quanto pequenos, que todas as riquezas e honras do mundo não os possam nem impedi-los de almejar esse objetivo, a saber, o de serem contados entre o povo de Deus. Mui grande coisa é ser um rei, especialmente de um tal país; mesmo assim, não tenho dúvidas de que tu considerarás como incomparavelmente melhor o fato de se ser cristão. Por essa razão, é um privilégio inestimável que Deus tenha feito de ti, Senhor, um rei cristão, a fim de que possas agir como 1
Ibid., l. nº CCCXXXVII; Cat. Letts., II. Nº CCXCIV.
seu vice-regente na manutenção do reino de Jesus Cristo na Inglaterra. Vês, portanto, que no reconheceres esse benefício especial, que recebeste da infinita bondade de Deus, deves ser muito zeloso em empregar todos os teus poderes para sua honra e serviço, propiciando a teus súditos um exemplo para homenagearem a esse Grande Rei, a quem vossa Majestade não se envergonha de sujeitar-se com toda humildade e reverência, sob o cetro espiritual de seu Evangelho... Senhor, depois de ter-me mui humildemente recomendado à tua graça, imploro a nosso bom Deus que te conceda os dons de seu Santo Espírito, guiando-te em toda a sabedoria e virtude, e fazendo-te florescer e prosperar para a glória de seu nome1 Talvez Calvino não tenha avaliado completamente a tarefa gigantesca com que se defrontavam os Reformadores na Inglaterra, à medida que buscavam reformar a igreja nacional, a qual estendiase amplamente por todo o país; comparada com eles, a obra de Calvino na cidade de Genebra e seus arredores, ainda que de longo alcance, não obstante sua preocupação e visão — apesar dos muitos problemas e frustrações com os quais ele tinha de lutar — era de natureza muito mais limitada e, portanto, bem mais fácil de administrar. O número de pastores necessários para a situação de Genebra era nada, comparado com a necessidade de pastores competentes e responsáveis nas várias centenas de paróquias da Igreja Anglicana — uma necessidade que não havia esperança de suprir exceto após um período de vários anos. A indicação de homens como Peter Martyr e Martin Bucer, como professores de teologia nas duas universidades inglesas, foi feita por Cranmer para atacar o problema em suas raízes, que era a própria base de treinamento do futuro ministério. Enquanto isso, vários passos foram dados para providenciar pastores adequados e remover aqueles que fossem inaptos para suas funções. O fato de os recursos 1
Ibid., II. nº CCXCVII; Orig. Letts., II. nº CCCXXXVIII.
imediatamente disponíveis serem escassos significava que a situação não poderia ser remediada rapidamente. Calvino, conforme demonstra uma carta sua a Cranmer, em meados de 1552, estava impaciente por ver progressos mais espetaculares e efetivamente acusou o arcebispo de lentidão. Na verdade, exatamente nessa época, Cranmer e seus colegas estavam tomando medidas vigorosas em favor do progresso da Reforma. Calvino também lamentou o modo pelo qual a arrecadação da Igreja Anglicana tinha sido pilhada; porém isso acontecera durante o reinado de Henrique VIII, e de forma alguma Cranmer fora responsável, e não havia coisa alguma que ele pudesse fazer acerca disso. A carta, entretanto, é uma expressão da profunda solicitude de Calvino pela promoção e estabelecimento da fé evangélica em tantos países quanto possível. “Dificuldades tão numerosos e tão aflitivas como aquelas contra as quais estás lutando”, conclui ele, “me parecem motivo suficiente para as exortações que apresentei. Adeus, mui distinto e estimado Arcebispo. Que o Senhor te preserve longamente em segurança; que ele te encha mais e mais com o espírito da sabedoria e fortaleza, e abençoe teus labores! Amém.1 Em 13 de fevereiro de 1553, Calvino escreveu ao preceptor de Edward VI, Sir John Cheke (o Duque de Somerset fora executado no início do ano anterior), para perguntar se havia algum modo pelo qual ele pudesse encorajar o rei inglês na boa direção que ele estava seguindo. Ele elogia a Cheke pela excelente instrução que dera ao jovem monarca: Essa razão é suficiente para conquistar para ti o favor de todos os homens bons, ou seja, o fato de a Inglaterra ter um rei a quem tu treinaste por teu labor, que não apenas possui talentos bastante superiores, mas também uma maturidade de excelência moral além da sua idade, que está estendendo 1
Cat. Letts., II. nº CCXCVII.
uma mão para a sofredora Igreja de Deus nestes tempos mui maus... Realmente, tenho que te pedir especialmente para que, quando quer que julgues que o mui sereno Rei possa ser encorajado pelas minhas exortações, me avises, e, conforme as circunstâncias, peço-te que não me prives de tua opinião.1 As esperanças de ver o dia de a Reforma evangélica alcançar o seu auge na Inglaterra foram malogradas, pelo menos temporariamente, pela morte de Edward, em 6 de julho daquele ano (1553). Igualmente, foram destruídos os planos de Cranmer para a convocação de uma Assembléia de teólogos reformados. Um grande número de pessoas simpáticas à Reforma encontrou refúgio no Continente; porém, muitos que permaneceram na Inglaterra, inclusive o Arcebispo Cranmer, foram queimados vivos. Calvino, obviamente, ficou profundamente angustiado nesta altura dos acontecimentos. É difícil dizer o quanto ele procurou manter algum contato com os lideres evangélicos que estavam presos, aguardando a morte, para encorajá-los em meio ao sofrimento. Temos uma carta dele datada de 13 de novembro de 1554, ao Lorde John Grey que, em 21 de fevereiro daquele ano, fora encarcerado na Torre de Londres e cujo irmão, o Duque de Suffolk, fora decapitado dois dias depois. Menos de duas semanas antes da morte de seu irmão, sua sobrinha, Lady Jane Grey, fora executada. O Lorde John Grey tinha sido solto no final de outubro. A carta de Calvino é uma carta de compaixão e conforto: Embora não possa ser diferente, mui nobre senhor, que a desgraça de tua casa, tão sofrida e lamentada por todos os bons homens, deve ter produzido em ti uma ferida duplamente severa, provocando em ti o mais vívido pesar, mesmo assim estou seguro de que, como convém a um cristão, tu sempre foste firme e irredutível, e ainda continuas sendo, 1
Ibid., II. nº CCCXL.
mesmo sob esse peso excessivo das provações. Pois embora, às vezes, percebemos que as mentes piedosas, pela enfermidade da carne, são dolorosamente abaladas mesmo por calamidades menores, ainda assim a fé que repousa em Cristo nunca pode ser completamente derrotada. Por isso, não tenho dúvidas de que quando foste alcançado por aquela turbulenta tempestade, tiveste tua âncora fixada nos céus, e que resististe bravamente e agüentaste firmemente a fúria das ondas, que, de outra forma, te teriam tragado cem vezes. Mesmo assim permanece algo da maior importância: que tu deves continuar a batalha da cruz mesmo até ao fim... Pois embora eu me congratule com o mui ilustre duque teu irmão e tua excelente sobrinha, uma senhora cujo exemplo é digno de lembrança eterna, ambos tiveram a oportunidade, mesmo na própria morte, de confiar suas almas triunfantes às mãos de Deus e ao fiel cuidado dele. Mesmo assim, em meio a marés angustiantes, sempre me sustentou o conforto nada comum de ter ouvido que tu foste arrebatado das garras da morte e, ainda para nós, estás preservado em segurança. Parece que Calvino não sabia que Lorde John Grey sofrera a perda de mais outro irmão, Lorde Thomas Grey, também por execução (em abril) — as execuções aconteceram em conseqüência da rebelião liderada por Sir Thomas Wyatt contra Mary — e neste caso também ele parece ter estado a ponto de escrever levado pelo desejo de declarar aos dois eruditos europeus do hebraico — Immanuel Tremellius e seu genro Anthony Chevalier, então na Inglaterra e destituídos de meios —, como dignos de sua assistência.1 Sir John Cheke foi um dos que escaparam da Inglaterra para o continente europeu e, em 20 de outubro de 1555, escreveu a Calvino 1
Ibid., III. nº CCCLXXI; Orig. Letts., II. Nº CCCXXXIX. Sob Elizabelh, Trameilius e Chevalier foram alternadamente professores de hebraico em Cambridge.
de Estrasburgo a respeito do trágico estado de coisas na Inglaterra, sob Mary: Eu oro para que nesta confusão e ruína geral o Senhor possa prestar alguma ajuda e assistência à desgraçada Inglaterra, onde existem muitas manifestações de seu mais profundo desagrado, e apenas muito poucas evidências de sua bondade e misericórdia. Pois os homens bons e, o que é ainda mais angustiante, aqueles que estão à frente na instrução e na autoridade, por cujo conselho e prudência muitas medidas importantes foram tomadas na Igreja, não têm apenas suas vidas postas em perigo, mas estão realmente sob condenação e diariamente aguardam a morte que, embora desejável para eles próprios, mesmo assim seria lamentável e desastrosa para a Igreja. Estes, por seu exemplo e constância, não devem apenas encorajar os da era presente, mas também propiciar um eminente exemplo às gerações futuras. Entre os que servem de exemplo estão Cranmer, Ridley e Latimer, os bispos de Cantuária, de Londres e outrora de Worcester, que perseveraram firme e corajosamente na doutrina cristã que abraçaram, e não consentiram em ser dela desviados pelo terror da punição, pela morte e pelas chamas, homens que são agora condenados e degradados, como eles os denominam; e, entendo eu, ou eles já estão queimados, ou brevemente experimentarão o poder das chamas e a crueldade de seus tiranos. De fato, Ridley e Latimer foram queimados em Oxford, quatro dias antes de ser escrita essa carta. O martírio de Cranmer ocorreu em 21 de março do ano seguinte. Cheke afirmou sua convicção de que, qualquer que fosse o propósito de Deus ao permitir “esse massacre de homens piedosos”, ele “agiria de modo tal que todas as coisas haveriam de tender para o bem de seu eleito, cujo apoio e
proteção ele garante.1 A morte de Mary, em novembro de 1558, e a ascensão ao trono de sua irmã Elizabeth significaram a restauração da fé protestante na Inglaterra. Calvino, cujos escritos, juntamente com os de outros teólogos reformados, estiveram sob proibição oficial durante o reinado de Mary, não perdeu tempo para tentar exercer sua influência com o raiar de um novo dia de oportunidade evangélica para o povo da Inglaterra. Em 15 de janeiro, o dia da coroação de Elizabeth, ele lhe enviou (conforme anteriormente enviara para Edward VI) um exemplar de seu comentário ao Livro de Isaías, agora completamente revisado, juntamente com uma carta dedicando-lhe a obra. Calvino explicou, como se segue, a razão para essa dupla dedicatória: Ainda que ao aperfeiçoar esse comentário eu lhe tenha dedicado tanto cuidado e esforço, mui nobre Rainha (que com justiça ele deveria ser reconhecido como uma nova obra), mesmo assim, como na primeira edição ele foi dedicado a teu irmão Rei Edward que, embora jovem, em muito excedeu aos homens de sua idade — e cuja memória desejo manter para a posteridade, como ele merece —, eu pretendia não fazer qualquer alteração naquela dedicatória. Porém, desde que em meio a essa desditosa e lamentável dispersão da Igreja e de opressão à doutrina pura, uma extraordinária violência provocou uma devastação durante um curto período, esse livro, juntamente com toda a doutrina da verdadeira religião, foi por algum tempo banido da Inglaterra. Porém agora, acredito eu, seja favorecido por teu feliz reinado e será restaurado a seus privilégios anteriores, por isso, eu pensei que não haveria impropriedade alguma se, ao nome do mui excelente rei, eu 1
Ibid., I. nº LXXII.
adicionasse teu próprio nome, que todos os bons homens consideram com não menos estima e satisfação. Não foi apenas uma oportunidade, mas a necessidade pareceu exigir que eu deveria obter tua completa proteção para esse comentário, cujo banimento, estou ciente disso, fora visto com profunda tristeza por uma grande parte de teus piedosos súditos. Calvino teve o cuidado de indicar que sua preocupação não era somente por sua própria obra, mas pela obra de todos os autores dignos e pelo progresso do ensino bíblico sob o patrocínio da rainha. Porém, meu objetivo nem é tanto o de ser favorecido por tua graça em meus labores pessoais, mas solicitar humildemente, e implorar, pelo sagrado nome de Cristo, não apenas que, através de tua bondade, todos os livros ortodoxos possam novamente ser recebidos e ter livre circulação na Inglaterra, mas que teu cuidado principal seja o de promover a religião, que tem caído em negligência vergonhosa. Levando-a a lembrar-se do modo notável pelo qual Deus a fez atravessar em segurança as turbulências do período mariano, ele instou com ela para que reconhecesse que isso foi feito ... ... com o propósito expresso de que reconheças, com uma determinação invencível e uma firmeza inabalável de mente, tua obrigação para com teu Protetor e Redentor e, deixando de lado todos os outros tipos de atividades, grande número das quais, não tenho dúvidas, assediar-te-ão no inicio do teu reinado, trabalha para que o culto de Deus, que por algum tempo foi baixa e desgraçadamente corrompido naquele reino, seja restaurado a seu primeiro esplendor.
Calvino a exortou tanto a “cuidar do rebanho que não há muito estava temeroso e escondido” como a exortou a “reunir os exilados que preferiram antes se desfazer das vantagens de sua terra natal do que nela permanecer enquanto a religiosidade dela estava banida”: Essa será a prova culminante de tua gratidão a Deus, e um sacrifício do mais agradável aroma: que os fiéis que adoraram a Deus e que, por confessarem o Evangelho, foram constrangidos a perambular por todas as redondezas de países distantes, devem agora, por tua bondade, ser restaurados a seu pai natal. Nós também, em quem esse pesaroso espetáculo despertou a mais dolorosa aflição, como o deveria ter feito, temos abundante razão para nos alegrar e para congratular-nos contigo quando, pelo gracioso exercício de tua vontade real, vemos aberto o caminho para o retorno de nossos irmãos, não somente para estarem livres para adorar a Deus nos domínios de vossa Majestade, mas também para prestar auxílio a outros.1 Duas semanas mais tarde, em 29 de janeiro de 1559, Calvino resolveu escrever para William Cecil (Lorde Burleigh), a quem Elizabeth tinha indicado como seu secretário de Estado — cargo que ele tivera também sob Edward VI. Aparentemente, Calvino fora encorajado, para iniciar essa correspondência, por “alguns indivíduos piedosos” que falaram muito bem de Cecil como um homem de integridade, um promotor da fé reformada e uma pessoa influente junto à Rainha. O nobre inglês foi exortado pelo Reformador de Genebra para que não se deixasse intimidar por nenhuma “dificuldade, luta ou terror tormentosos” que pudessem estar em seu caminho:
1
Commentary on Isaiah, 1. xvi ss.
Realmente, não tenho dúvidas de que obstáculos estejam reqüentemente ocorrendo, ou mesmo, de que perigos te ameacem abertamente, perigos que sufocariam a resolução dos mais corajosos se Deus não os sustentasse pela maravilhosa eficácia de seu Espírito. Porém, essa é uma causa acima de todas as outras e em cuja defesa não nos é permitido recusarmos qualquer tipo de labor. Enquanto os filhos de Deus estiveram expostos a um massacre aberto e declarado, tu mesmo mantiveste teu lugar em companhia dos outros. Agora, finalmente, quando pela recente e inesperada bênção de Deus lhes foi restaurada uma liberdade maior, cabe a ti explicar-te, de modo que se até agora tu tens sido tímido, possas agora compensar tua deficiência pelo ardor de teu zelo. Não que eu ignore quanto dano, às vezes, é produzido por uma precipitação indevida, e quantas pessoas, por um zelo abrupto e irrefletido, demoram realizar o que deveriam esforçar-se em resolver de uma vez uma questão. Porém, por outro lado, tu estás seriamente obrigado a considerar que estamos fazendo a obra de Deus, quando afirmamos a verdade incorruptível de seu Evangelho e de sua perfeita santidade e que, por isso, não deveria começar uma obra com desleixo. De tua posição podes melhor determinar quanto progresso será oportuno fazer, e se é adequado adotar uma moderação prudente. Mesmo assim, entretanto, lembra-te de que qualquer atraso, acompanhado de quaisquer pretextos plausíveis, devem ser por ti considerados com suspeita. Calvino revelou ter conhecimento do perigo de um tumulto popular que estaria sendo articulado por elementos malintencionados da nobreza; porém, seu desejo era de que a Rainha, a quem ele próprio escrevera, buscasse seguir seu caminho sem desvios.
Contudo, como sua mui Excelente Majestade, a Rainha, foi elevada ao trono de modo maravilhoso, pela mão de Deus, ela não pode dar testemunho de sua gratidão de outra forma senão por um pronto entusiasmo em retirar todos os obstáculos e vencer, com sua magnanimidade, todos os impedimentos. Porém, uma vez que é quase impossível que num estado de coisas tão perturbado e confuso ela não venha a ser, no início de seu reinado, distraída e mantida em suspense por perplexidades, e freqüentemente forçada a manter uma conduta vacilante, tomei a liberdade de aconselhá-la no sentido de que, tendo uma vez ingressado no caminho reto, deveria nele perseverar inflexivelmente. Se ao fazê-lo eu agi prudentemente, que outros o julguem. Se por tua cooperação minhas admoestações trouxerem fruto, não me arrependerei de meu conselho. A seguinte admoestação foi então dirigida a Cecil: E tu também, mui ilustre senhor, mantém sempre em mente que foste elevado, pela providência divina, à posição de dignidade e favor que agora ocupas, para que te entregues completamente a essa tarefa e empenhes cada nervo para a promoção dessa grande obra.1 Para Calvino, foi um desapontamento saber que a Rainha da Inglaterra recebera com frieza sua mensagem e que Cecil falara dele sem entusiasmo. Tendo Elizabeth como protagonista ativa da Reforma não somente as perspectivas para a Inglaterra seriam brilhantes, mas também no continente europeu a causa seria grandemente fortalecida. Tendo a percepção semelhante à de um estadista, Calvino tinha plena consciência das questões que estavam em jogo. Contudo, essa medida de desfavor, por parte da Inglaterra, 1
Cat. Letts., IV. nº DXXII.
foi conseqüência da ofensa causada pelo surgimento da obra de John Knox, intitulada The First Blast of The Trumpet against The Monstrous Regiment and Empire of Women [O Primeiro Toque da Trombeta contra o Império e o Governo das Mulheres] e do trabalho de Cristopher Goodman sobre The Obedience of Subjects [A Obediência dos Súditos] (na verdade, ambos publicados durante a última parte do reinado de Mary). O fato de estes escritos procederem de Genebra repercutiu desfavoravelmente contra Calvino, uma vez que se presumia que eram por ele aprovados. Calvino apressou-se em explicar que de modo algum estava a par da preparação das referidas obras, dirigindo-se a William Cecil numa carta que não foi datada, mas que, provavelmente, foi escrita no início da primavera de 1559: O mensageiro a quem eu encarregara de levar meus comentários de Isaías, para serem apresentados à mui serena Rainha, informou-me de que minha homenagem não fora gentilmente recebida por Sua Majestade, porque ela estava ofendida comigo por causa de alguns escritos publicados aqui (em Genebra). Ele, também, reproduziu para mim, mui ilustre senhor, o conteúdo e uma conversação mantida por ti, na qual tu me pareces mais severo do que seria coerente com tua cortesia, especialmente por ter-te eu assegurado, pela minha carta, do quanto confiei na tua consideração para comigo. Porém, embora razões suficientes me impeçam de reivindicar uma discussão séria, mesmo assim, para que por meu silêncio não seja eu visto como confessando, de algum modo, a consciência de ter feito algo errado, considerei ser correto declarar, em poucas palavras, como a questão se configura. Há dois anos John Knox perguntou-me, numa conversa particular, o que eu pensava acerca do governo por parte de mulheres. Candidamente eu respondi que, como fosse um desvio da ordem original e própria da natureza, essa prática deveria ser incluída na lista de punições — não
menos do que a escravidão —, conseqüentemente da queda do homem; porém que ocasionalmente, havia mulheres tão dotadas, que as singulares e boas qualidades que nelas se destacam, tornavam evidente o fato de que elas foram levantadas por autoridade divina; ou que Deus, por tais exemplos, tenha determinado condenar a inatividade dos homens, ou para a melhor revelação de sua própria glória. Calvino acrescentou os exemplos das Escrituras de Hulda e Débora, bem como a profecia de Isaías (49.23) de que rainhas seriam amas da Igreja. (Ele citara estes exemplos em sua epístola dedicatória a Elizabeth.) Conseqüentemente, ele não nutria nenhum sentimento subversivo para com Elizabeth, ou qualquer ingerência nesse assunto; mais do que isso, ele não tivera conhecimento da existência do livro de Knox até um ano após sua publicação: Finalmente, cheguei a essa conclusão: uma vez que tem sido estabelecido tanto por costumes e consentimento público quanto por longa prática, que os remos e principados podem, pelo direito hereditário, recair sobre mulheres, não me pareceu ser necessário levar adiante a questão, não somente porque isso seria odioso, mas também porque em minha opinião não seria legítimo estabilizar governos que são ordenados pela providência especial de Deus. Eu não suspeitava da existência do livro e, por um ano inteiro, ignorava o fato de sua publicação. Quando fui informado por certos grupos, mostrei suficientemente meu desagrado pelo fato de tais paradoxos serem publicados; porém, como fosse muito tarde para remediar, pensei que o mal, que não mais podia ser corrigido, devesse antes ser sepultado no esquecimento do que se ter transformado em assunto de agitação. Embora descontente por ter sido vítima de acusações injustas,
Calvino reassegurou a Cecil seu respeito e boa vontade para com ele e para com a Rainha: Realmente, estou excessiva e imerecidamente angustiado, em proporção à minha surpresa em relação ao fato de que os delírios de outros, como um pretexto calculado, fossem lançados sobre mim, para impedir que meu livro seja aceito. Se o presente oferecido à Rainha não fosse aceitável, ela poderia tê-lo rejeitado por uma só palavra e teria sido muito simples se fosse feito assim. Isso, certamente, ter-me-ia sido mais aceitável do que ter sido alvejado com acusações falsas, além da ignomínia de uma recusa. Entretanto, sempre reverenciarei tanto à mui serena Rainha, ao mesmo tempo que não cessarei, mui ilustre Senhor, de amar e respeitar também a ti, por tua mais excelente disposição e por tuas outras virtudes, embora tenha eu te sentido menos amigável para comigo do que eu esperava, e embora não digas nada acerca da boa vontade mútua para o futuro. Disto, porém, não estou desejoso de extrair nenhuma conclusão desfavorável.1 Essa carta revela um Calvino surpreendentemente irritadiço e sensível. Cecil, por sua vez, respondeu, de forma tranqüilizadora, numa carta de 22 de junho, dizendo que ele estava convencido de que escritos dessa espécie desagradavam muito a Calvino, e concluiu sua mensagem com a expressão: “Com muito afeto e com o mais caloroso zelo pela confissão evangélica”. Porém, Calvino não teve sucesso em conquistar a atenção de Elizabeth, conforme o conseguira com Edward. Sendo por natureza circunspecta e independente, a Rainha preferia seguir seu próprio caminho e, preferia antes atender (quando o fizesse) a vozes inglesa, às vozes estrangeiras. Ao mesmo tempo, porém, Calvino era tido na maior 1
Zurich Letters, (Cambridge: Parker Society, 1845), II. XV; Cal. Lotts., IV. nº DXXX VII.
veneração pelos líderes eclesiásticos do período elizabetano, e em todas as questões essenciais havia harmonia entre a teologia deles e a de Calvino. Isso fica muito bem ilustrado pela amigável troca de correspondência entre o Bispo de Londres, Edmund Grindal (que se refugiara no continente europeu durante o reinado de Mary, e que mais tarde tornou-se Arcebispo de York e Arcebispo de Cantuária, respectivamente) e Calvino, em 1560. Grindal escrevera insistindo com Calvino para que enviasse um pastor hábil para ministrar à congregação francesa em Londres, a qual ele desejava ver seguramente estabelecida, para o benefício de todos. Isso foi grandemente apreciado por Calvino, conforme mostra sua carta enviada a Grindal, em maio daquele ano: Embora tu não esperes que eu te agradeça por um serviço de piedade que prestaste à Igreja de Cristo, agora o caso é diferente com relação à proteção que te dignaste prestar àqueles nossos compatriotas que habitam na principal cidade de tua diocese. Por teu cuidado, eles obtiveram permissão, através da indulgência da Rainha, não somente para invocar, em pureza, a Deus, mas também para nos enviar aqui uma petição por um pastor fiel... E uma vez que não hesitaste por tua própria vontade em pedir e rogar que eu providenciasse para que um pastor adequado fosse selecionado dentre meus compatriotas, não tenho necessidade de recomendar, à tua fidelidade e proteção, as pessoas por cuja salvação és tão solicito. E tão certamente quanto a assisti-los tão liberalmente até esse momento, tu deste uma prova rara e singular de teu zelo piedoso, assim também agora, em tua constância, continuarás até o fim a prestar teus bons préstimos. O homem escolhido para essa posição gozava da confiança do próprio Calvino, o amado lugar-tenente Nicolas Des Gallars. Essa escolha, em si, é uma evidência adequada da importância atribuída
por Calvino à igreja francesa em Londres, mas também às suas ligações com a Igreja Anglicana e seus líderes. Calvino aproveitou também a oportunidade para encorajar Grindal a se esforçar no exercício de sua autoridade espiritual concedida por Deus com a assistência da Rainha, mas sem interferência dela. (Uma carta extraordinariamente corajosa relacionada exatamente com essa questão, escrita por Grindal a Elizabeth, quando ele era Arcebispo de Cantuária, precipitaria para ele uma crise alguns anos mais tarde.) “Mas”, concluiu Calvino, “como nem tua sabedoria necessita de conselho, nem tua magnanimidade de estímulo, tenho somente recurso às orações e suplico a Deus, meu mui excelente e honrado Senhor, para que te governe por seu Espírito, te sustente por seu poder e abençoe a todos os teus santos labores.1 Des Gallars, que fora o portador desta carta, ao obter seu novo posto, respondeu a Calvino (em 30 de junho) a respeito de seu encontro com Grindal, conforme se segue: Esperei pelo bispo, por quem fui recebido mui cortesmente. Apresentei a ele, meu pai, tua carta, a qual ele leu em minha presença com um semblante aberto e alegre, e em seguida relatou-me resumidamente seu conteúdo, expressando sua gratidão por teres escrito para ele de modo tão amigável, e também por relembrá-lo de sua tarefa. Então, ele saudou os anciãos que me tinham acompanhado até sua residência, para alguns dos quais minha chegada de modo algum era agradável, e exortou-os a não serem ingratos para com Deus e para contigo, uma vez que eles obtiveram mais do que ousaram esperar; para que eles seguissem minhas recomendações e, doravante, em todas as circunstâncias agissem segundo meu conselho; que se mostrassem amigáveis para comigo e prevenissem toda a igreja a 1
Ibid., IV. nº DLIX.
respeito de sua obrigação para comigo. Então... ele me ofereceu seus bons préstimos e disse que eu poderia ter acesso familiar para com eles sempre que desejasse.1 Duas semanas antes, em 16 de junho de 1560, Calvino enviara a Des Gallars uma carta que mostrava claramente sua atitude de estima e confiança para com Grindal: Temos visto que certas pessoas de tua congregação têm estado ocupadas em transferir, para outro, o cargo de superintendente, que foi confiado pela Rainha e seu conselho ao reverendo pai, o Bispo de Londres. Se isso é verdade, deves esforçar-te em examinar essa intromissão inoportuna, para a qual não se encontrará outro motivo senão a cobiça pessoal. Pois o pretexto que eles apresentam, de que é incerto como se revelará o caráter de seu sucessor, não tem nenhuma importância para ti, uma vez que a inspeção sobre tuas igrejas não foi conferida a nenhum qualquer Bispo de Londres, mas a esse íntegro, fiel e sincero protetor de tua liberdade. Se estivesse à tua disposição qualquer outro igualmente adequado, ainda assim, em minha opinião, seria melhor para ti não procederes a nenhuma alteração, pois não te é vantajoso separar-te da boa vontade do homem que te abraçou com a mais calorosa afeição, que assumiu a tarefa de defender a tranqüilidade de tua igreja, e cuja coragem e atividade para obter tua tranqüilidade já foram experimentadas por ti, e cuja autoridade, numa só palavra, te é mais do que nunca necessária.2 Numa carta dirigida ao Conde de Bedford (não datada, porém escrita por volta da mesma época), Calvino demonstrou sua preocupação para que Elizabeth não continuasse solteira e, dessa 1 2
Zurich Letts., II. nº XXI. Cat. Letts., IV. nº DLXV.
forma, não tendo herdeiro, abrisse o caminho para um tumulto na Igreja e no Estado, quando ela estivesse fora de cena: É de se lamentar que tua Rainha não leve em conta o bem da posteridade e não se disponha a deixar uma estirpe de filhos para sucedê-la. Pois, pensa bem, quê aconteceria se ela morresse sem deixar qualquer descendência? Mas, levado por minha ansiedade e por meu amor ao país, eu transpus os limites que me houvera prescrito. Entretanto, não pude deter-me e deixar de fazer uma alusão tácita à solicitude daqueles que desejam uma duração contínua da boa sorte de tua nação. Entrementes, mui ilustre Senhor, alegro-me de que é incansável no teu santo zelo pela piedade, e levando adiante o progresso da Igreja, e oro de coração a Deus para que te preserve, mais e mais, te enriqueça com seus dons e te sirva de escudo com sua proteção.1 Finalizando, o afeto de Grindal por Calvino e sua preocupação para que esse, por descuido de sua saúde, não fizesse com que a Igreja fosse privada de alguém cuja falta ela não poderia suportar, estão comoventemente comprovados numa carta de Londres para Genebra, datada de 19 de junho de 1563 (o ano anterior à morte de Calvino): Sinto-me afligido em meu coração pelo fato de, em tua idade, e com uma estrutura tão débil, estares acometido, conforme me informa Des Gallards, de um ataque de gota. Não tenho dúvidas de que contraíste essa moléstia por estudo e esforço excessivo. Doravante, portanto, deves amenizar, em alguma medida, teus costumeiros labores e tempestuosas lucubrações, a fim de que, por não te poupares, não aumentes em muito tua doença e te tornes de 1
Ibid., IV. nº DLXVI.
menos serventia para a Igreja. Considera (Gregório) o Nazianzeno que, por não tê-lo feito, quando em idade avançada abandonou totalmente aquela austeridade que costumava manifestar desde cedo em sua vida, era quase que constantemente obrigado a ficar em sua cama e, por causa disso, tornou-se menos útil para a Igreja. Como tu e Bullinger são praticamente os únicos pilares principais que restam, gostaríamos de desfrutar de vós... o máximo possível.1 Vemos então que Calvino considerava a Reforma inglesa com aprovação, simpatia e compreensão, embora, às vezes, fosse impaciente porque as questões pareciam estar-se movendo mais vagarosamente do que ele desejaria. Ele teve uma clara compreensão de que o sucesso do Evangelho na Inglaterra, desejável como o era por si só; não deixaria de contribuir para o sucesso do Evangelho no continente europeu, e ele estava sempre pronto para ajudar na promoção da causa evangélica de qualquer forma que lhe fosse possível. Além disso, sua influência não cessou com sua morte, pois através de seus escritos ele continuou a instruir e a inspirar os líderes evangélicos da Igreja Anglicana, à medida que estes se dedicavam à causa do estabelecimento da fé e do culto bíblico em todo o seu país. Ainda hoje mais de quatrocentos anos depois da morte de Calvino, somente o estudo atento de suas Institutas resultará num imenso benefício àqueles que se preocupam com o progresso do Cristianismo sólido.
1
Zurich Letts., II. nº XLII.
A Modificação Puritana da Teologia de Calvino R.T. Kendall — Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
R.T. Kendall é Ministro da Westminster Chapel, Londres. É graduado pelo Trevecca Nazarene College (B.A.), Southern Baptist TheoIogical Seminary (M.Div.), University of Louisville (M.A.) e Oxford University (Ph.D.). É natural de Ashland, Kentucky (USA), e o primeiro americano a se tornar Ministro da Westminster Chapel. Serviu no ministério pastoral na Flórida e em Indiana. Dr. Kendall é autor de Calvin and English Calvinism to 1649 [Calvino e o Calvinismo Inglês até 1649] (Oxford University Press), Jonah: an Exposition [Jonas: Uma Exposição] (Zondervan) e Believing God [Crer em Deus] (Zondervan). Ele é editor da publicação mensal Westminster Record [Informe de Westminster]. Ele é membro do Oxford and Cambridge Club.
CAPÍTULO 9
A MODIFICAÇÃO PURITANA DA TEOLOGIA DE CALVINO
Uma das coisas mais fáceis para um admirador de Calvino fazer é superestimar sua influência direta na e sobre a Inglaterra. Embora seja certamente possível errar pela subestimação de sua influência, muito do que pode levar a um exagero de sua influência ocorre devido a associação popular de que “Calvinismo” seja também Calvino. O termo Calvinismo, nos dias de hoje, é largamente usado alternadamente para muitas teologias que defendem a predestinação e, por essa razão, há a tentação de rotular de calvinista qualquer pensador inglês, seja ele pré-elizabetano ou pós-elizabetano, caso ele creia na doutrina da predestinação incondicional. A verdade é que a teologia da predestinação, que está embutida na teologia inglesa do século 16, precedeu a influência de Calvino por um bom número de anos. Quando William Tyndale (1536) traduziu e plagiou boa parte do famoso prefácio de Lutero em seu comentário à Epístola aos Romanos, Calvino só tinha 16 anos de idade. Além disso, reformadores do continente europeu, tais como Peter Martyr (m. 1562), Martin Bucer (1491-1551) e Henry Bullinger (1504-75) estavam produzindo um impacto incalculável sobre ingleses, entre eles Thomas Cranmer (1489-1556), John Bradford (1510-1555) e John Hooper (m. 1555). Todos esses homens podem ser classificados como adeptos da predestinação em sua teologia. Dizendo de outra forma, antes de Mary Tudor (“Mary, a sanguinária”) subir ao trono, em 1553, o nome de Calvino, embora conhecido na Inglaterra, não era respeitado tanto quanto os de Martyr, Bucer ou Bullinger. Quando Calvino escreveu ao Arcebispo
Cranmer, em 1552, dizendo que ele “não temeria cruzar dez mares1” para ajudar a curar as sangrentas feridas do corpo de Cristo, ele, sem dúvida nenhuma, fez-se benquisto de modo especial aos irmãos ingleses, mas era menos influente do que os outros. De qualquer forma, a influência de Calvino durante esse período incidia mais provavelmente sobre a eucaristia do que sobre a predestinação. Enquanto John Hooper dizia que o tratamento dado por Calvino à questão da Ceia do Senhor “enormemente me desagradou2”, as posições de Cranmer e de Nicholas Ridley (1500-55) eram tão semelhantes à de Calvino que é difícil de acreditar que essa semelhança fosse mera coincidência. Durante o reinado de Mary Tudor (1553-58), cerca de oitocentas pessoas fugiram para o continente,3 praticamente um terço delas foi para Genebra. Havia não menos de 233 membros da Igreja inglesa em Genebra, liderada por John Knox (c. 1514-72) e Christopher Goodman (fl. 1560).4 Em seu elogio fúnebre para a Rainha Mary, em novembro de 1558, John White, Bispo de Winchester, fez essa predição: “Eu vos advirto que os lobos [estarão] vindo de Genebra e de outros lugares... cheios de doutrinas pestilentas, blasfêmias e heresia para infectar o povo."5 Estes “lobos” realmente retornaram à Inglaterra, trazendo consigo a Bíblia de Genebra, uma amostra da Reforma genebrina, e uma teologia mais fortemente bíblica, que eles aprenderam à sombra de João Calvino. Não se pode saber o quanto eles foram diretamente 1
Ioanni Calvini Opera (Brunswick, 1863-1900), Calvino e Cranmer, Carta nº 1619, XIV, 313. 2 Original Letters (Cambridge: Cambridge University Press, 1846). 1: 48. 3 C. H. Garratt, The Marian Exiles, (Cambridge: Cambridge University Press, 1938). pp. 32 ss. 4 S. K. Knox, “A Study of the English Genevan Exiles” (Tese de B. L. H., Trinity College, Dublin, 1953). p. 130. 5 John Strype, Ecclesiastical Memorials (Londres: Wyat, 1721), III, iii, 42.
influenciados por Calvino em Genebra. Estes exilados precisavam de entender o francês para ouvir Calvino pregar na Igreja de São Pedro e precisavam ter fluência em latim para ouvir suas aulas aos estudantes de teologia. No entanto, a atmosfera reformada generalizada de Genebra, durante aqueles dias, não necessitava de tradução. E tal atmosfera “corrompeu” muitos deles de modo que estavam determinados a tentar reproduzi-la na Inglaterra, quando começaram a voltar a seu país natal, em 1559. Não há dúvida de que os exilados que retornaram pavimentaram o caminho para uma influência mais profunda de Calvino na Igreja Anglicana. A obra de John Foxe, Acts and Monuments - Book of Martyrs [Atos e Monumentos — Livro de Mártires], manteve viva a memória das horríveis perseguições sofridas sob Mary e, dessa forma, constituiu garantia maior de que o Catolicismo Romano não mais seria reavivado na Inglaterra. Enquanto a via media de Elizabeth I era dificilmente o tipo de reforma1 que estes exilados retornados e não poucos outros desejavam, pode-se suspeitar de que a influência deles restringiu a disposição da rainha, nominalmente protestante, de inclinar-se mais às práticas romanas do que ela o fez. Entretanto, para desânimo de muitos, Elizabeth não reformou a Igreja; ela apenas “varreu o lixo para trás da porta”.2 Aqueles que se opuseram a uma Igreja “somente meio reformada” foram alcunhados de “puritanos”.3 A Bíblia de Genebra (publicada em Genebra em 1560) tornouse a Bíblia familiar do povo inglês, substituindo a Grande Bíblia (1540), sempre superando em vendas a Bíblia Episcopal (1568) e, bem depois, superando em vendas a Versão Autorizada (1611) 1
O “caminho intermediário” de Elizabeth é aquele que foi visto como de certa forma entre o Catolicismo Romano e a Reforma completa desejada por muitos protestantes. 2 William Haller, The Rise of Puritanism (Nova York: Columbia University Press, 1938), p. 8. 3 Ver Patrick Collinson, The Elizabethan Puritan Movement (Londres: Cape, 1967), pp. 29ss. Ver também Thomas Fuller, The Church History of Great Britain (Oxford: Oxford University Press, 1845), 4:327.
durante uma geração.1 As anotações da Bíblia de Genebra vieram a ser a hermenêutica do povo, pois eles aprenderam “muito de sua exegese bíblica dessas notas”. Ela era popular para o povo, mas causava desgosto aos Bispos.2 As notas marginais eram lidas e aceitas praticamente sem crítica, assim como hoje em dia alguns lêem as notas da Scofield Reference Bible [Bíblia Anotada de Scofield]. A Bíblia de Genebra foi a primeira edição inglesa a introduzir a enumeração dos versículos. Ela foi dedicada à Rainha Elizabeth, embora nunca tenha recebido autorização real ou eclesiástica. Embora o próprio Calvino não tivesse nenhuma ligação direta nem com a produção nem com as anotações da Bíblia de Genebra, temos de dar-lhe crédito por sua existência e por uma grande parte de seu tom. Pois não havia nenhum lugar, além de Genebra, onde uma Bíblia assim pudesse ser produzida. Portanto, a influência de Calvino na Inglaterra, durante o reinado de Elizabeth, foi fortalecida por muitos dos exilados que regressaram e tornou-se ainda mais aceitável pela popularidade da Bíblia de Genebra. Entretanto, as tentativas de uma Reforma feitas durante o reinado de Elizabeth, até cerca de 1589, eram de natureza preponderantemente eclesiológica, e não soteriológica. As questões eram amplamente confinadas a assuntos tais como vestimentas, detalhes da adoração pública, fazer o sinal da cruz, o lugar da eucaristia no culto em relação ao lugar da pregação, e também o governo eclesiástico. Acerca do governo eclesiástico, certos homens, tais como Thomas Cartwright (1535-1603), tendiam para uma forma presbiteriana. Não se pode negar que a influência de 1
S. L. Greenslade, Cambridge History of the Bible (Cambridge: Cambridge University Press, 1950). 3:158. 10. F. F. Bruce, The English Bible (Londres: Lutterworth, 1961), p. 90. 2 H. W. Robinson, The Bible in its Ancient and English Version (Oxford: Clarendon, 1940), p. 186.
Genebra deixou parcialmente essas ênfases eclesiológicas para segundo plano, mas dizer que essas ênfases refletiam perfeitamente as posições ou desejos de Calvino é ir longe demais. Pois a tendência por uma eclesiologia presbiteriana, na Inglaterra, era liderada por homens que iam além do próprio Calvino. Foi essa questão de ir além de Calvino que, na verdade, se tornou conhecido por Calvinismo, pelo menos na Inglaterra. O homem que, mais do que qualquer outro, foi a mente que arquitetou o Calvinismo inglês, foi o sucessor de Calvino em Genebra, Theodore Beza (1519-1605). Beza talvez não desejasse que sua teologia fosse conhecida como Calvinismo, mas sua ação de sistematizar e dar estrutura à teologia teve o efeito de perpetuar um fenômeno que levava o nome de Calvino, mas que, dificilmente, era o pensamento puro de Calvino. O efeito teológico provocado por Beza foi tanto eclesiológico como soteriológico, extrapolando o pensamento de Calvino em ambas as áreas. Por exemplo, o Presbiterianismo implícito de Calvino foi explicitado e dogmatizado por Beza. Não era incomum encontrar clérigos não-presbiterianos proeminentes que evocavam a Calvino como apoio às posições que defendiam. Quando John Whitgift (1530-1604), que se tornou Arcebispo de Cantuária em 1583, invocou o nome de Calvino contra aqueles que tendiam para uma eclesiologia presbiteriana, Cartwright simplesmente respondeu que ele não cria que algo fosse verdadeiro só porque Calvino o defendia.1 Entretanto, deve ser dito que durante os anos de 1580, quando os presbiterianos faziam suas asserções, não havia equiparação do Calvinismo com nenhuma interpretação particular de eclesiologia. O termo Calvinismo surgiu mais tarde e foi entendido largamente 1
Ver Collinson, Elizabethan Puritan Movement, p. 140.
em termos de assuntos soteriológicos, sem falar no movimento “clássico” daquele período. A questão aqui é que Beza dogmatizou o Presbiterianismo que tem sido creditado a Calvino. Por que isso é assim? A resposta é que, popularmente, o Presbiterianismo estava associado com Genebra, e o venerado Calvino permaneceu como a figura-mor daquela “santa cidade”. As sutis, porém definidas, alterações de Beza não pareciam ter importância para a maioria das pessoas. Certamente, alguém tão próximo de Calvino não poderia ser muito diferente do mestre! E, mesmo assim, as dificuldades da forma presbiteriana de governo eram desenvolvidas por Beza e mediadas na Inglaterra principalmente por Cartwright e Walter Travers (1548-1635). Estes dois homens aprenderam aos pés de Beza, em 1571, e o próprio Cartwright lecionou na Academia de Genebra. O Bispo Edwin Sandys (c. 1516-88) citou Cartwright como “o autor dessas novidades e, depois de Beza, o seu primeiro inventor".1 Entrementes, o nome de Calvino veio a ser mais e mais apreciado na Inglaterra. Seus escritos eram especialmente bem recebidos. Até 1600, não menos de noventa obras de Calvino foram publicadas na Inglaterra, incluindo quinze edições das Institutas. Essa obra tornou-se leitura teológica padrão para os estudantes de teologia de Oxford e Cambridge. Os exilados que retornaram cantavam os louvores de Genebra e a Bíblia de Genebra marcava o nome de Calvino nos corações de muitos. A grande reputação de Calvino estava se tornando suficientemente confiável a ponto de coisa alguma vinda de Genebra receber qualquer crítica para sua aceitação, na maior parte da Inglaterra. Numa palavra, Calvino levou Beza à Inglaterra numa salva de prata. E, mesmo assim, devemos dizer que a influência de Calvino foi 1
Ibid., p. 110.
tanto engrandecida quanto eclipsada por Theodore Beza. A obra de Beza Briefe and Pithie Summe of the Christian Faith [Resumo Breve e Essencial da Fé Cristã] alcançou sua sexta edição até 1589. A Booke of Christian Questions and Answeares [Livro de Perguntas e Respostas Cristãs] teve cinco edições entre 1582 e 1586. A Briefe Declaration of the Chiefe Points of the Christian Religion Set Forth in a Table, the Treasure of Trueth [Breve Declaração dos Pontos Principais da Religião Cristã Apresentada num Quadro, o Tesouro da Verdade] chegou a pelo menos quatro edições até 1613. Estes três escritos contêm substancialmente tudo o que se precisa saber acerca da doutrina de Beza sobre a salvação. Uma ironia dessa época é que os homens de percepção eram capazes de dissociar Calvino da eclesiologia de Beza, mas, aparentemente, ninguém do reinado elizabetano veio a fazer tal observação a respeito de Calvino e da soteriologia de Beza. Mesmo assim, Beza foi além de Calvino tanto nessa questão quanto o fizera na outra. Uma ironia ainda maior é que os escritos de Beza tornaram o nome de Calvino mais popular do que nunca na Inglaterra. A explicação é bem simples: William Perkins (1558-1602). Perkins veio a Cambridge em 1577, matriculado como bolsista no Christ’s College. No final de 1584 ele foi indicado como conferencista no prestigiado púlpito da Great St. Andrews. Seus sermões “não eram tão claros, mas os piedosos aprenderam a admirá-los; não eram tão inteligíveis, mas os esclarecidos os entendiam”. Ele “costumava pronunciar a palavra maldição com uma ênfase tal que deixava um doloroso eco em seus ouvintes por um bom tempo".1 Na verdade, “o erudito não podia ouvir sermões mais instruídos, nem o homem da cidade sermões mais claros".2 Além disso, “todos tinham Perkins como um profeta — quer dizer, um doloroso despenseiro da vontade Deus em seu mundo".3 1
Samuel Clarke, The Marrow of Ecclesiastical History (Londres: Miller, 1675), p. 415. Thomas Fuller, Abel Redivivus (Londres: Stafford, 1651), p. 434. 3 Fuller, Church History, 5:170.
2
No final do século 16, Perkins já tinha substituído tanto a Calvino quanto a Beza, aproximando-se dos escritores religiosos ingleses que mais vendiam. Alguns de seus livros já estavam sendo traduzidos para outras línguas. Após sua morte, as obras de Perkins foram editadas na Suíça, Alemanha, França, Boêmia, Irlanda e Hungria. Além destas, havia traduções para o espanhol e o gaulês publicadas em Londres. Entre 1600 e 1608, três edições singulares da coleção de obras de Perkins foram lançadas. Após 1608, as obras reunidas constituíam três volumes in-fólio (totalizando mais de duas mil e quinhentas páginas), que alcançaram oito edições até 1635, paralelamente a diversas edições de outros tratados avulsos. Todos os tratados de Perkins são de natureza essencialmente soteriológica. Nem uma vez ele se refere a anciãos, diáconos e cortes eclesiásticas, que tinham sido enfatizados pelos proponentes do Presbiterianismo. A razão disso parece estar no fato de — como Elizabeth estava efetivamente destruindo o movimento “clássico” e outros radicais eclesiológicos, por volta de 1589 — Perkins ter visto nisso a mão que escrevia na parede. Pelos próximos vários anos o empreendimento eclesiológico passou a ser subterrâneo. Quando, mais tarde, ele deveria vir à tona, os eclesiologistas radicais não eram meramente Presbiterianos e Separatistas, mas também Independentes. Tanto os Separatistas como os Independentes adotaram um modelo congregacional de governo eclesiástico, mas estes últimos procuraram fazer essa obra dentro da Igreja Anglicana. De qualquer forma, Perkins deixou de lado questões eclesiológicas em seus tratados e sermões. Em 1589, Perkins publicou sua primeira grande obra: A Treatise tending unto a declaration Whether a man be in the estate of darnnation or in the estate of grace: and if he be in the first, how he may in time come out of it: if in the second, how he maie
discerne ít, and persevere in the same to the end1 [Um Tratado cuidando da declaração de um homem estar no estado de condenação ou no estado da graça; se ele estiver no primeiro, como poderá sair dele em tempo; se, no segundo, como ele poderá discerni-lo e perseverar no mesmo até o fim]. Esse tratado inaugurou uma nova era na teologia inglesa. A expressão Whether a man [se um homem] traduz uma doutrina de fé que, ainda que refinada ou modificada por seus seguidores, recebeu, contudo, sanção de credo pela Assembléia de Westminster (1643-49). A tese de Perkins ocupava-se da natureza da fé “salvadora” (que apenas os eleitos de Deus têm) como oposta à fé “temporária” (que os reprovados ou não-eleitos podem possuir). A preocupação fundamental da teologia de Perkins centraliza-se na seguinte questão: Como pode alguém saber que é eleito e não reprovado? A doutrina da predestinação dupla era uma pressuposição nos escritos de Perkins. Por isso, sua doutrina da fé é desenvolvida no contexto do ensino de que todos os homens são eternamente predestinados ou para a eleição ou para a reprovação. A salvação ou a destruição, céu ou inferno. Em Whether a man, [se um homem] Perkins começa com o inalterável decreto da reprovação. Seu título compreensível é dado como uma advertência aos cristãos professos para que se examinem a si próprios a fim de que não ocorra que eles possuam apenas uma fé temporária — uma posição arrogante à qual os réprobos, embora condenados desde o princípio, podem se ater. Perkins começa com “Certas proposições" declarando "quão longe alguém pode ir à profissão do Evangelho e mesmo assim ser um homem ímpio e um Réprobo”. Por trás de sua referência a “quão longe” um reprovado possa ir, está sua posição de que o não-eleito pode exceder, em “certos frutos, ao eleito” e que isso acontece pelo que ele denomina uma “chamada ineficaz".2 1
A partir daqui denominado Whether a Man . The Workes of that Famous and Worthy Minister of Christ in the Universitie of Cambridge, Mr. William Perkins (Columbia: Legal, 1608-1609)1:356, 107 ss. 2
Entretanto, o tratamento que Perkins deu à “chamada ineficaz” não foi muito detalhado até que sua Magnum Opus apareceu no ano seguinte: Armilla Aurea, que foi traduzida como A Golden Chaine [Corrente Dourada], que, em seu original latino, alcançou não menos que dezessete edições até 1614 (além de sua inclusão em suas Obras). É na página de título de A Golden Chaine que Perkins revela sua dívida para com Theodore Beza:
A GOLDEN CHAINE: ou, A Descrição da Teologia: Contendo a Ordem das Causas da Salvação e Condenação, segundo a Palavra de Deus, uma visão da qual pode ser vista no Quadro anexo. Até aqui é utilizada a ordem que M. Theodore Beza utilizou para confortar consciências aflitas. O “Quadro anexo” é, na verdade, “a ordem que M. Theodore Beza utilizou”. Pois Perkins enfeitou a tabela de Beza, que fora um recurso visual na obra deste último, Briefe Declaration... Set Forth in a Table [Breve Declaração... Apresentada numa Tabela]. Essa “tabela”, ou quadro, torna central a doutrina supralapsariana da predestinação; na verdade, a doutrina da predestinação dupla é a realização mais óbvia deste quadro fascinante e é o tema predominante de A Golden Chaine [Corrente Dourada]. A contribuição de Perkins à tabela de Beza foi, simplesmente, fazê-la mais atraente e (possivelmente) mais compreensível. A tabela de Beza contrastava (1) o amor de Deus por seu eleito com seu ódio pelo reprovado, (2) uma chamada efetiva ao eleito vis-
à-vis a uma chamada ineficaz do não-eleito, (3) um amolecimento do coração do eleito contraposto ao endurecimento do coração do réprobo, (4) fé como oposta à ignorância, (5) justificação e santificação versus injustiça e contaminação, e (6) a glorificação do eleito comparado com a justa condenação do réprobo.1 Todo o sistema teológico de Perkins está construído sobre a tabela de Beza — a “corrente dourada” de Romanos 8.30. Whether a man [Caso o homem] começa com a pressuposição de que a chamada ineficaz do não-eleito é tão poderosa que o sujeito manifesta — a si mesmo e a outros — todas as aparências do eleito: tais como zelo, boas obras e santificação. As implicações pastorais deste ensino são enormes. Um cristão sincero podia muito bem ter medo de ser um réprobo. Entretanto, essa doutrina não começou com Perkins ou Beza, mas com o próprio João Calvino. Porém é neste ponto que podemos ver as sutilezas entre Calvino e Beza. Calvino apontava os homens a Cristo só quando eles duvidassem de sua eleição, ao passo que Beza indicava aos homens à sua santificação. Perkins seguiu a solução de Beza e também o uso que Beza fez de 2 Pedro 1.10 — “Procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isso, nunca jamais tropeçareis” (ARC). Beza e Perkins viam esse verso como a fórmula pela qual as pessoas podiam provar a si próprias que foram objeto de uma chamada eficaz. O texto de 2 Pedro 1.10 tornou-se o estandarte bíblico para o Calvinismo inglês. Perkins e seus seguidores concentraram, na consciência, a certeza que deve ser derivada deste verso. E aqui que rapidamente se pode reconhecer a diferença entre as tradições de Calvino e as de BezaPerkins. 1
A tabela de Beza foi produzida tanto em A Briefe Declaration (Londres: Moptid and Mather, 1575), como em The Treasure of Trueth (1576). Estes livros são excepcionalmente raros.
Pode-se ver, prontamente, o dilema que há em tentar resolver o problema de alguém saber se é ou não eleito, examinando sua santificação. Se as pessoas podem alcançar a santificação através de uma chamada ineficaz, como podem elas estar certas de que a santificação que vêem em si mesmas provém de uma chamada eficaz? Calvino tinha conhecimento deste modo insatisfatório de se lidar com a questão de segurança. Mesmo assim, essa razão básica para se evitar esse modo de lidar com 2 Pedro 1.10 não era meramente por causa da óbvia cilada da ansiedade contínua. Ele apontava Cristo às pessoas pela mesma razão que Beza não podia fazê-lo: a questão da “extensão” da expiação. Calvino lhes indicava diretamente a Cristo, porque Cristo morreu indiscriminadamente por todas as pessoas. Beza não podia indicar Cristo diretamente às pessoas porque (segundo ele) Cristo não morrera por todos; Cristo morreu apenas para os eleitos. Diz-se a alguém que sua única esperança de ser salvo é tornar-se um daqueles por quem Cristo morreu, há a possibilidade de se estar confiando no Cristo que não morreu por esse alguém. Beza tirou o decreto da eleição da eternidade e o fixou na morte de Jesus na cruz. Em outras palavras, o número de eleitos e o número daqueles por quem Cristo morreu é o mesmo. Não se podia ter mais satisfação olhando para Cristo do que se podia tê-la ao olhar para os eternos decretos de Deus. Beza sabia disso e, com isso em mente, desenvolveu sua teologia. Então, ele apresentou essa solução: nós olhamos para dentro de nós mesmos. Não podemos subir até ao eterno conselho de Deus, mas podemos ver se ele está operando em nós: Agora, quando Satanás nos põe em dúvida sobre nossa eleição, nós não podemos procurar a resolução dela no eterno conselho de Deus, cuja majestade não podemos compreender, mas, ao contrário, devemos começar pela
santificação que sentimos em nós mesmos... uma vez que nossa santificação, da qual procede a boa obra, é um efeito seguro do efeito (maior) ou, antes, de Jesus Cristo habitando em nós pela fé (meu itálico).1 A diferença entre Calvino e Beza sobre esse assunto é que Calvino fez do objeto da fé e da base da segurança a mesma coisa (a morte de Cristo), mas Beza fez uma separação entre o objeto de fé (a morte de Cristo) e a base da segurança (santificação). Para Beza, não se podia ter conhecimento de que se poderia olhar seguramente para Cristo senão depois de se ter suficiente certeza da santificação. Mas, Calvino afirmou: “Se Pighius me pergunta como eu sei que sou eleito, eu respondo que Cristo para mim é mais do que mil testemunhos."2 Calvino pôde dizer isso por causa de sua convicção de que Cristo morreu por todos.3 Havia mais uma diferença entre Calvino e Beza, que merece nossa atenção. Beza levantou uma questão que Calvino considerava ser especulativa, a saber, a ordem dos decretos. Partindo de Romanos 9, em geral, e particularmente da discussão de Paulo sobre a “massa",4 Beza construiu um sistema que, mais tarde, veio a ser conhecido como supralapsarianismo, um termo que aparentemente emergiu próximo da época do Sínodo de Dort (1618-19). Ele levantou a questão sobre se o termo massa significa “a humanidade criada e corrompida, da qual Deus ordenava [sic] alguns para a honra e alguns para a desonra”, e concluiu:
1
T. Beza, Briefe and Pithie (Londres: Moptid and Mathar, 1572), pp. 36-37. J. Calvino, Concerning the Eternal Predestination of God (Naperville. III.: Allenson, 1965), p. 135. 3 Sobre uma exposição e defesa do que para alguns pode ser visto como uma declaração controvertida, ver meu livro: Calvin and English Calvinism to l649 (Oxford: Oxford University Press, 1979). 4 “Não tem o oleiro o direito da mesma massa da barro fazer alguns vasos para uso nobre e outros para uso comum?” (Rm 9.21, NIV). 2
Não há dúvida de que Deus tomou ambos os tipos da mesma massa, ordenando para eles fins contrários. Agora também eu digo, e afirmo abertamente, que Paulo, semelhantemente, reportou-se à mencionada ordenança soberana à qual, na ordem das causas, está submetida a própria criação da humanidade e, por essa razão, o Apóstolo pôde antever a prevista corrupção da humanidade. Pois, primeiramente, pelo termo massa (massae) é manifestamente sugerida uma substância ainda informe (materia adhuc rudis) e preparada apenas para ser trabalhada mais tarde. Novamente, ao comparar Deus a um oleiro e a humanidade a uma massa de barro, da qual se farão os vasos posteriormente, sem dúvida nenhuma o Apóstolo inferiu a primeira criação do homem. Além disso, ele estaria falando inadequadamente, por assim dizer, se os vasos de ira não fossem feitos dessa massa. Pois se essa massa significa a humanidade corrompida, então já deveriam existir os vasos para desonra e não se diria que o oleiro deveria fazê-los de modo diferente daquele que já eram.1 O máximo que a posição de Calvino poderia aproximar-se da posição de Beza, seria dizer que os homens são escolhidos dentre uma “massa corrupta".2 Porém, ele não disse nada mais, nem explicou como chegou a essa conclusão. Beza, por outro lado, alegou que tanto os eleitos quanto os réprobos foram predestinados a partir de uma massa “ainda informe”. O supralapsarianismo, então, afirma que os decretos da eleição e da reprovação têm prioridade cronológica sobre os decretos tanto da Criação como da Queda; dessa forma, para o supralapsarianismo, a predestinação se refere aos destinos de pessoas ainda não criadas, e muito menos decaídas. 1 2
A Book of Christian Questions and Answers (Londres: Harrison, 1572), pp. 84-85. João Calvino, Institutas, III. xxiii. 3.
É neste ponto que podemos ver, mais claramente, porque o ensino de Beza veio a ser conhecido como Calvinismo. Perkins não somente incorporou o supralapsarianismo de Beza, em A Golden Chaime, mas, ao escrever De Praedestinationis Modo et Ordine,1 ele desenvolveu esse supralapsarianismo em detalhe ainda maior. E não somente isso; Perkins denominou-a “a doutrina dos calvinistas".2 O fato de Perkins ter denominado seu sistema de “a doutrina dos calvinistas” sugere: (1), que ele considera que as posições dele e de Beza são as de Calvino e, (2), que ele não leu Calvino inteiramente ou criticamente. Na verdade, quando Perkins cita Calvino, o faz sempre com aprovação; e ele não oferece nenhuma indicação de ver alguma diferença entre Calvino e Beza, ou entre ele próprio e Calvino. Ele admite livremente que segue o esquema de Beza e dá razão a seus leitores para presumirem que tanto ele como Beza estão prosseguindo no ensino do próprio Calvino. Entretanto, Perkins não seguiu somente a Beza. Havia um grupo de teólogos de Heidelberg sobre os quais Perkins também se baseava. O principal destes era Zacharias Ursinus (1534-83). Em 1563, Ursinus e Kaspar Olevianus (1536-87) redigiram o famoso Catecismo de Heidelberg. Ursinus escreveu um comentário sobre esse catecismo que foi muito lido na Inglaterra, a saber, The Summe of Christian Religions [A Essência da Religião Cristã].3 A teologia contida em The Summe deu origem ao que agora é conhecido como teologia federal. Essa é uma questão conhecida como a aliança das obras e a aliança da graça, embora tenha surgido
1
Traduzido como A Christian and Plan Treatise of Predestination em 1606. W. Perkins, no prefácio, Ibid. 3 A partir daqui denominado The Summe (Londres: Young, 1633), alcançou não menos do que oito edições na Inglaterra entre 1587 e 1633. 2
como “aliança das obras” e “aliança da fé”, em The Summe.1 Ursinus apresentou essa questão como suposição, não como inovação. Não se sabe quão amplamente essa posição foi defendida. Ela não faz parte da teologia de Calvino; mas está de acordo, consistentemente, com o pensamento de Beza. De qualquer forma, Perkins tomou essa posição por empréstimo e ela se tornou uma pressuposição do Calvinismo inglês, a partir de Perkins.2 Mas havia uma outra expressão que Perkins podia ter tomado por empréstimo de Ursinus: o “silogismo prático".3 Ursinus centralizava a fé numa “boa consciência"4 e afirmava que a consciência não é “nada mais que” um "Silogismo Prático” da mente.5 Perkins aceitou esse modo de pensar e construiu sobre ele toda a sua doutrina a respeito da fé, pois ela se adequava perfeitamente ao esquema de Beza. Perkins utilizou o “silogismo prático” de duas formas: (1) para extrair uma conclusão do fato de alguém ter crido e (2) para refletir sobre as aparências da santificação em si mesmo e tirar uma conclusão. Perkins pôde afirmar a hipótese: “Todo aquele que crê, é filho de Deus”. A tese é: “Pois eu creio”. A conclusão que se segue é: “Por essa razão eu sou filho de Deus".6 Ou ele podia afirmar desta forma: Aquele que crê e se arrepende é filho de Deus. Assim diz o Evangelho: Mas, eu creio em Cristo e me arrependo: pelo menos eu sujeito minha vontade ao comando que me ordena 1
Ursinus, The Summe, p. 94. Ursinus e seus colegas, inclusive Girolamo Zanchius (f. 1590), foram precedidos nesta espécie de pensamento por Wolfgang Musculus (f. 1563) e Henry Bullinger. 2 Dudlay Fenner, Sacra Theologia (Genebra: Vignon, 1589). Fanner pode ter sido o primeiro inglês a falar deste tema. 3 Ursinus, The Summe, p. 39. 4 Ibid., p. 95. 5 Ibid., p. 39. 6 Perkins, Workes, 1:541.
arrependimento e fé: eu detesto minha incredulidade, e todos os meus pecados: e desejo que o Senhor aumente minha fé. Por essa razão eu sou filho de Deus.1 Em outras palavras, o “silogismo prático” tornou-se a base da segurança. Perkins não indicava Cristo às pessoas, mas indicava essa reflexão sobre si próprio. Essa última veio a ser conhecida como ato reflexo. Era um empreendimento subjetivo e introspectivo. Perkins também não conduzia as pessoas a Cristo antes de elas, primeiramente, terem satisfeito as exigências do “silogismo prático”. Perkins chegou a ponto de igualar o “silogismo prático” ao testemunho do Espírito. Mas, “se o testemunho do Espírito de Deus não for tão poderoso no eleito,” então a pessoa deve olhar para a segurança da sua eleição “pelo outro efeito do Espírito Santo: a saber, a Santificação".2 Perkins menciona os seguintes “efeitos” da santificação: (1) sentir amargura no coração, quando ofendemos a Deus pelo pecado, (2) lutar contra a carne, (3) desejar sinceramente a graça de Deus, (4) considerar que a graça de Deus é a jóia mais preciosa, (5) amar aos ministros da Palavra de Deus, (6) invocar a Deus sinceramente e com lágrimas, (7) desejar a segunda vinda de Cristo, (8) evitar qualquer ocasião de pecado e (9) perseverar nestes efeitos “até o último fôlego de vida”. E, mesmo assim, se estes efeitos forem somente “muito fracos”, não deveríamos desanimar; significa que Deus está nos testando. Pois a ausência destes efeitos não significa que nós somos não-eleitos. Pois Deus, “efetivamente”, com freqüência, prefere aqueles que parecem mais que todos ser estranhos ao seu favor.3 Essa ênfase sobre a piedade cristã pode muito bem ser 1
Ibid., 2:322. Ibid., 1:115. 3 Ibid. 2
considerada como conseqüência das ênfases de Calvino. Pois a vida religiosa, de forma alguma diferente destes “efeitos”, não é menor em Calvino —, porém, com essa diferença crítica: Calvino via estes efeitos como vindos da segurança, não como produzindo a segurança. Pois “quando o cristão olha para si mesmo, ele pode encontrar base apenas para ansiedade, na verdade, para o desespero".1 Não deveríamos buscar segurança pela “conjectura”, pois a fé corresponde “a uma promessa simples e livre; por isso, “não há lugar para a dúvida".2 Por essa razão, a fé, em si, é asseguradora para Calvino, porque, por ela, se olha para a promessa gratuita; Calvino não faz qualquer distinção entre fé e segurança. E a fé, ou segurança, que produz a santificação que deve caracterizar o eleito de Deus. Mas, os eleitos nunca devem olhar primeiramente para sua santificação. Até ao ponto em que nossa obediência confirma nossa adoção, o “conhecimento experimental” pode fornecer “auxílio subsidiário” à sua “confirmação".3 Porém, tais frutos somente podem dar conforto a posteriori.4 O amor, então, pode servir como um auxílio inferior, e como um “amparo para nossa fé".5 Mas, mesmo no contexto desta declaração, se apressa em acrescentar que ninguém deve concluir disto que “devemos olhar para nossas obras para que nossa segurança seja firme".6 Por trás dessas afirmações de Calvino está sua convicção de que o lugar da fé é o coração.7 Com o termo “coração” ele quer dizer a mente, não a vontade. A vontade é “anulada” na conversão.8 Pela fé a pessoa é “convencida por uma firme convicção".9 e tal convicção 1
Calvino, Commentary, 1Co 1.9. Institutes. III. ii. 38. 3 Commentary. Js 3.10. 4 Institutes, III. xiv. 19. 5 Commentary, 1 Jo 3.19. 6 Ibid. 7 Commentary, Rm 10.10. 8 Institutes, II. iii. 6. 9 Institutes, III. ii. 16. 2
se manifesta numa mente totalmente persuadida. O “coração” freqüentemente significa “a mente em si”, diz Calvino, “que é a faculdade intelectual, da alma".1 É neste ponto que podemos ver porque Perkins pensava estar verdadeiramente seguindo a Calvino. Pois Perkins insistia em que o “lugar da fé” é a “mente do homem, não a vontade”. Ele pensava que isso era verdade porque a fé “situa-se num conhecimento ou persuasão especial e não há persuasão a não ser pela mente".2 Mas, Perkins devia ter dito que é a segurança, certamente não a fé, que está situada na mente. Pois ele define a fé como “apreender e aplicar Cristo” em si próprio.3 É a “aplicação” de Cristo que precede a segurança. Para Perkins não há um modo pelo qual a pessoa possa se assegurar simplesmente apreendendo a Cristo. Uma pessoa estará segura somente quando for capaz de refletir que, verdadeiramente, aplicou Cristo à sua vida. Tal segurança, ou persuasão, realmente acontece na mente. Mas esse “aplicar”, com certeza, está na vontade. Dessa forma o ato da vontade precisa aparecer antes que o ato reflexo possa acontecer na mente. O que Perkins, então, deveria ter dito é que a fé está localizada na vontade e a segurança está localizada na mente. Mas, aparentemente, Perkins era incapaz de compreender isso. Ele estava muito envolvido em seus próprios esforços em olhar para Calvino, Beza e Ursinus com objetividade. Ele não percebeu que as doutrinas de Beza e de Ursinus eram vinho novo que não se mantinha bem nos odres de Calvino. O uso do “silogismo prático”, por Perkins, estabeleceu uma distinção entre fé e segurança, distinção que ele fora incapaz de ver. O sistema de Perkins, que parece ser tão teocêntrico, torna-se 1
Commentary, Dt 29.4. Perkins, Workes, 1:126. 3 Ibid., 1:362. 2
antropocêntrico em sua aplicação. Ele requer uma “incursão em nossos próprios corações",1 a introspecção contra a qual Calvino advertira. O ensino da expiação limitada é a doutrina principal responsável pela confusão da fé com a segurança, no pensamento de Perkins. Uma vez que não havia maneira, exceto a revelação extraordinária, pela qual uma pessoa poderia saber se pertencia àqueles por quem Cristo morreu, então a pessoa precisa fazer certas coisas para deduzir sua segurança. Thomas Fuller diz que Perkins teria morrido “no conflito de uma consciência atribulada”. Isso não é “nenhum milagre”, diz ele, pois Deus, “aparentemente, abandona seus santos quando eles abandonam o mundo, lançando-os em seu leito de morte em profundas tentações e lançando suas almas até ao inferno, para ressoar mais alto até aos céus.2 Samuel Ward, que visitou o moribundo Perkins, escreveu em seu diário: “Deus sabe que sua morte, provavelmente, será uma perda irreparável e um grande juízo para a universidade, vendo que não há ninguém para tomar o seu lugar".3 Em 25 de outubro de 1602, James Montagu pregou o sermão no ofício fúnebre, utilizando Josué 1.2: “Meu servo Moisés é morto”. Quando os sinos dobraram na morte de Perkins, Thomas Goodwin, que se tornou um clérigo líder na Assembléia de Westminster, tinha dois anos de idade. Goodwin veio a Cambridge em 1613 e, mais tarde, escreveu que a cidade refletia a plenitude do poderoso discurso do ministério de Mr. Perkins.4 John Cotton, entretanto, 1
Ibid., 1:290. T. FuIler, The Holy State (Londres: 1848), p. 82. 3 N. M. Knappen, org., Two Elizabethan Diaries (Londres, 1933), p. 109. 4 The Works of Thomas Goodwin (Edimburgo: Nichol, 1861), 2:lviii. 2
alegrou-se secretamente com a morte de Perkins. Os sermões de Perkins tinham perturbado profundamente o jovem Cotton, então com 18 anos, e ele ficou aliviado ao ver-se livre de Perkins. Mais tarde, Cotton converteu-se mediante a pregação de Richard Sibbes. Sibbes tinha-se convertido com Paul Baynes, o sucessor de Perkins, em St. Andrews. Paul Baynes (m. 1617) nunca alcançou a estatura de Perkins, nem em popularidade, nem em influência. Ele teve várias de suas obras publicadas, mas essas não trouxeram uma contribuição significativa. Entretanto, há um ponto digno de menção: Baynes mudou o problema de “quão longe um réprobo pode ir” para “quão longe um incrédulo pode ir".1 Baynes é a primeira figura da tradição de Perkins que parece mudar, conscientemente, a direção do homem ansioso em sua dúvida, evitando que ele encare a terrível possibilidade de uma chamada ineficaz. A substituição que Baynes fez do termo réprobo pelo termo incrédulo tende a afastar o horror de se estar eternamente perdido. Richard Sibbes (m. 1635), embora seguindo claramente a tradição de Perkins, continuou no espírito da preocupação pastoral tão óbvia em Paul Baynes. “O celestial Dr. Sibbes” era o mais acalorado pregador inglês da tradição Beza-Perkins. Havia muito pouco na pregação de Sibbes que poderia fazer alguém se preocupar com o fato de não ser um eleito e ter apenas uma fé temporária. Por essa razão ele enfatizava o lado positivo dizendo que Cristo não “quebrará a cana esmagada".2 “Você está esmagado? Fique confortado, ele o chamou".3 Embora permanecesse na tradição de Perkins, Sibbes desviou a ênfase da fé do entendimento para a vontade. Mas o próprio Perkins 1
Briefe Directions unto a Godly Life (1618), p. 30. The Complete Works of Richard Sibbes (Edimburgo: Nichol, 1862), 1:45. 3 Ibid., p. 46.
2
deveria ter feito isso. O principal elemento da religião é a vontade juntamente com as emoções, e quando a vontade e as emoções estão prontas, a obra é feita em termos da graça. E não há outro modo de saber se a obra anterior levada a efeito pelo entendimento e pela persuasão foi eficaz e com propósito ou não, além deste: saber se a vontade escolhe e se apega a coisas boas, e se nossas emoções nelas se alegram e se deleitam.1 Não surpreende então que a doutrina da segurança de Sibbes está baseada em um “ato reflexo inerente à alma".2 Esse ato de reflexão é o segundo de um “ato duplo de fé”, uma idéia que Sibbes desenvolveu à luz de sua observação de que muitos filhos de Deus esperam um longo tempo até terem a segurança. O primeiro ato é confiar em Deus e na promessa; o segundo é “o ato reflexo, através do qual, se conhecemos, fazemos e temos a segurança”. E é possível que alguém tenha o primeiro sem ter o segundo.3 Isso significa virtualmente que uma pessoa pode ter fé sem ter a segurança, um ponto que está implícito no sistema de Perkins, mas que o próprio Perkins não percebeu. O mais famoso discípulo de Sibbes foi John Cotton (15841652). Cotton tornou-se um ministro e encaixou-se no modelo estabelecido por Perkins, dando continuidade somente a algumas das posições de Perkins, conforme Sibbes o fizera. Perkins tinha dito que a obra da conversão deveria ser distinta e entendida como ocorrendo entre os “inícios da preparação” e os “inícios da composição".4 Mas, ele não deu total continuidade às implicações da doutrina da preparação para a graça. Sibbes disse simplesmente 1
Ibid., 7:446. Ibid., 2:47. 3 Ibid., 3:467. 4 Perkins, Workes, 1:628. 2
que “todas as preparações são de Deus",1 uma posição que qualquer pessoa adepta da predestinação sustentaria obviamente. Mas Cotton avançou muito mais na direção da preparação para a graça, ao sugerir uma preparação da parte do homem antes da regeneração. Nós devemos “preparar um caminho para que Cristo venha a nós, afirmava Cotton.2 Sua expressão favorita, neste assunto, era a expressão “preparado para Cristo”: Quando estamos “desejosos de ser aquilo que Cristo quer que sejamos”, então estaremos “preparados para que Cristo venha para dentro de nós".3 Se não houver nada no coração de um homem, mas ele estiver desejando ser guiado pelo reto governo da Palavra de Deus, e ele tem, como direto objetivo, a glória de Deus, a vinda de seu Reino e fazer sua vontade, então é só o homem deixar de lado seus caminhos tortos e o coração estará tão aplainado que Cristo subitamente adentrará em Seu templo.4 Cotton passou por uma mudança radical de mente entre a época em que pregara seus primeiros sermões (conforme encontrados em Christ the Fountaine of Life [Cristo a Fonte da Vida] e sua chegada na América, em 1633. Mas não podemos tratar deste assunto aqui.5 Seus sermões pregados na Inglaterra demonstraram que ele estava definidamente na tradição de Perkins, mesmo levando as implicações das posições de Perkins para mais perto de sua conclusão lógica. Entretanto, o primeiro ministério de Cotton estava longe de ser improdutivo. Em 1611, ele pregou um sermão que pensava ser muito pobre. Ele foi para seu quarto num estado melancólico. Ouviu 1
Sibbes, Complete Works, 6:522. J. Cotton, Christ the Fountain of Life (Londres: Ibbitson, 1656), p. 40. 3 Ibid., p. 41. 4 Ibid., p. 43. 5 Ver minha obra “John Cotton — First English Calvinist?’ Westminster Conference Papers (1976). 2
baterem na porta do seu quarto. Era John Preston, que se tinha convertido recentemente pelo sermão de Cotton. Preston (m. 1628) alcançou o grau B.D. e tornou-se deão do Queen’s College em Cambridge. Ele foi o primeiro homem da tradição de Perkins que conquistou o favor real; Seu relacionamento íntimo com o Duque de Buckingham parece ter exercido grande influência para sua indicação como Capelão efetivo do Príncipe Charles. Preston foi muito influenciado por Cotton, mas era também um amigo muito íntimo de Sibbes, que auxiliou na publicação de alguns dos sermões de Preston. Preston foi o primeiro homem dessa tradição, desde Perkins, a dar ampla ênfase à aliança das obras e à aliança da graça. A aliança das obras consiste nisso: “Faze isso, e viverás”. A aliança da graça é: “Crê” e “receberás o dom da justiça".1 A contribuição de Preston a essa tradição está principalmente no fato de fazer da fé uma disposição e, ao fazê-lo, ele se aproxima muito da idéia da preparação para a graça anterior à regeneração. Utilizando-se de raciocínio em círculo, Preston afirma que o Espírito precisa modificar nossa disposição e, mesmo assim, ele enfatiza que há coisas que devemos fazer antes de podermos ter os benefícios da aliança da graça.2 Ele afirma que a promessa feita a Abraão não estava baseada no “ato particular” de fé, “mas naquele hábito, naquela graça da fé, naquela disposição para crer".3 Dessa forma, ao mesmo tempo em que ele dizia que a condição da nova aliança é a fé, a aplicação que fazia disto não enfatiza a fé, mas sim o arrependimento: “A Condição que de nós é requerida, como parte da Aliança, é fazer essas coisas; a ação, o efetuar essas
1
John Preston, New Covenant (Londres: Dawson, 1630), pp. 317- 318. Ibid., pp. 321-325. 3 Ibid., p. 358. 2
coisas, é arrepender-se, servir ao Senhor em novidade de vida".1 “Tu deves saber” que “estás dentro da aliança”, assim como Abraão, “porque tua fé opera".2 A segurança é, na verdade, o segundo de dois atos de fé: (1) o “ato direto” é receber a Cristo, e (2) o “ato reflexo” é aquele pelo qual “nós sabemos que temos recebido a Cristo".3 O segundo ato está “baseado na nossa própria experiência".4 Preston, mais do que outros que examinamos até agora, tende a fazer do arrependimento uma forma de preparação para fé. Tal arrependimento, caso seja constatado, dá segurança. Conseqüentemente, esse fato sugere maior interesse na religiosidade do que em Deus.5 Mas foi Thomas Hooker (1586-1647) quem deu a essa tradição um ensino completamente desenvolvido sobre a preparação para a fé, anterior à regeneração. Isso fica bem evidente simplesmente ao citarmos o título do tratado de Hooker, The Unbelievers Preparing for Christ [A Preparação dos Incrédulos para Cristo]. Giles Firmin (m. 1692) relata um incidente interessante: Quando Mr. Hooker pregava aqueles sermões acerca da preparação das almas para Cristo, e da humilhação, meu sogro, Mr. Nath Ward, lhe disse: Mr. Hooker, o senhor faz tão bons cristãos antes de eles estarem em Cristo, como eles nunca o são depois; e disse: Eu gostaria de ser agora um cristão assim tão bom, como o senhor faz os homens serem, enquanto eles apenas estão se preparando para Cristo.6 1
Ibid., p. 389. Ibid., p. 392. 3 John Preston, The Breast-Plate of Faith and Love (Londres: Jones, 1630), 1:63. 4 Ibid., p. 64. 5 Devo essa frase a J. I. Packer. Ele a utilizou numa conversa para descrever determinados “puritanos”. 6 Giles Firman, The Real Christian (1670). p. 19. 2
Podemos resumir toda a teologia de Hooker nessas palavras: “Antes de a alma de um homem poder participar dos benefícios de Cristo, duas coisas são necessárias: Primeiro, que a alma seja preparada para Cristo. Segundo, que a alma seja implantada em Cristo".1 Essa preparação é o "ajustamento de um pecador para poder estar em Cristo".2 A posição de Hooker é que o homem natural, através da graça universal, “é capaz de esperar por Deus quando estiver capacitado para receber a graça".3 Os detalhes do sistema de Hooker são muito intrincados para que se possa examiná-los aqui. Porém, devemos fazer duas observações: (1) que a teologia de Hooker é o produto final do sistema Beza-Perkins, cuja doutrina da segurança requeria uma introspecção desde o princípio e (2) que podemos ver o quão distante o “Calvinismo” ficou de Calvino. Há mais um personagem que merece nossa atenção — William Ames (1576-1633). Ames foi o mais famoso aluno de Perkins, mas, diferentemente da maioria dos seguidores de Perkins — que ficaram distantes de confrontações eclesiásticas — Ames teve problemas com a hierarquia e fugiu para a Holanda. Pouco depois de ter chegado à Holanda, ele envolveu-se com os Protestantes — os ardentes seguidores de Armínio (1560-1609). O próprio Armínio tinha lido a obra de Perkins De Praedestinationis Modo et Ordine. Armínio preparava uma resposta a Perkins, em 1602, mas não a publicou ao saber da morte de Perkins, no mesmo ano. Entretanto, os Protestantes publicaram o panfleto de Armínio em 1612, pouco depois de Ames ter chegado à Holanda. Armínio fez algumas críticas concludentes ao tratado de Perkins. Numa palavra, Armínio declarou sustentar virtualmente a mesma doutrina de Perkins a respeito da fé. Ames parece ter lucrado 1
Unbelievers Preparing (1638), p. 1. The Soules Implantation (Londres: Young, 1637), p. 26. 3 Unbelievers Preparing, p. 120.
2
com as críticas de Armínio, pois ele retomou a posição de Perkins e refinou a teologia deste, tornando-a mais defensável. Ames manteve a doutrina básica da predestinação, segundo Perkins, embora tenha feito duas mudanças’importantes: (1) Ames retirou dela a noção de chamada ineficaz e (2) colocou a fé como baseada na vontade e não no entendimento. A escandalosa doutrina da fé temporária, de qualquer forma, tinha estado escondida sob o tapete desde a morte de Perkins e Ames concedeu a esse ensino um funeral decente. Ao fazer da fé um ato da vontade, ele simplesmente disse o que o próprio Perkins deveria ter dito.1 O saldo resultante do ensino de Ames foi esse: ao fazer da fé um ato da vontade e ao rejeitar a possibilidade de que o não-eleito possa alcançar a santificação, Ames pôs a certeza da salvação dentro do alcance imediato de qualquer um que desejasse ser piedoso. A ameaça da fé temporária tinha passado. Pois “a santificação é um certo efeito e sinal” da eleição,2 “é, como se fosse, eleição de fato”. Ames prosseguiu dizendo que esse princípio serve para refutar àqueles que acham possível que a santificação esteja “nos não eleitos",3 uma inquestionável alusão a seu mentor. Finalmente, Ames deu sua valorizada sanção à separação entre fé e segurança. Isso ele sistematizou em sua obra Marrow [Essência]. Em um sermão proferido na Câmara dos Comuns, em 1641, Edmund Caleamy (1600-66) insistiu para que o Parlamento não apenas “extirpasse o Arminianismo” mas, também, que estabelecesse a doutrina da Igreja de tal modo que “não houvesse nela lugar para um arminiano".4 Em 12 de junho de 1643, o Parlamento convocou “uma Assembléia de Teólogos Sábios e 1
W. Ames, The Marrow of Sacred Divinity (Londres: Griffin, 1643), pp. 8-9, e passim. W. Ames, An Analytical Exposition of Both the Epistles of the Apostle Peter (Londres: Rothwell, 1641), p. 4. 3 Ibid. 4 E. Calamy, Gods Free Mercy to England (Londres: Meredity, 1642), p. 20. 2
Eruditos” para deliberar, com o Parlamento, a respeito do estabelecimento de um Governo e Liturgia da Igreja, e “para defender a pureza da Doutrina da Igreja Anglicana contra todas as falsas calúnias e difamações".1 A histórica Assembléia de Teólogos reuniu-se em Westminster, pela primeira vez, em 1º de julho de 1643. Quando os 121 teólogos foram escolhidos, havia entre eles um consenso a respeito da Soteriologia; isso fora garantido pela cuidadosa seleção realizada pelo Parlamento. Embora houvesse diversidade quanto à Eclesiologia, havia unidade quanto à Soteriologia. Em 20 de agosto de 1644, a Assembléia nomeou uma comissão para se reunir com os delegados escoceses a fim de redigir uma Confissão de Fé. Talvez a revelação mais notável das Minutes [Minutas] da Assembléia, como um todo, tenha sido a aceitação aparentemente inquestionável de uma distinção entre fé e segurança, pois “Fé” era um dos cabeçalhos da Confissão, e “certeza de salvação” era outro.2 Essa divisão entre fé e segurança parece ter sido aceita, implicitamente, já anteriormente na Assembléia. Não há indicação de qualquer questionamento a respeito desta importante divisão. Dessa forma, a posição de Calvino de que a fé é a segurança foi considerada impossibilitada de figurar nos documentos de Westminster desde o princípio. Quando a Confissão de Westminster afirma que “a segurança infalível não pertence à essência da fé”, ela, virtualmente, sancionou a orientação seguida por Perkins e refinada por William Ames. Os Documentos de Westminster tiveram uma redação tão semelhante ao Marrow de Ames, em certos pontos, que é de se suspeitar que os teólogos tivessem Marrow em mãos ao deliberarem. Ao separar a fé da segurança, a teologia de Westminster reafirmou, sem usar 1
Journals of the House of Lords (s.d.), fl, 6:93. Minutes of the Sessions of the Westminster Assembly of Divines (Edimburgo: Blackwood, 1874), p. 270. 2
linguagem expressa, o que os seguidores de Perkins vieram a chamar de ato direto (fé) e ato reflexo (segurança). A teologia da Confissão de Westminster é universalmente considerada como calvinista. Ela devia antes ser vista como a culminação da tradição Beza/Perkins. A teologia de Westminster, no entanto, sem dúvida, continuará a ser conhecida por Calvinismo conforme o era nos anos de 1640. Mas ela dificilmente é o tipo de teologia que levaria uma pessoa a proclamar, por um ato “direto”, que “Cristo é para mim melhor do que mil testemunhos”.
A Contribuição do Calvinismo na Escócia Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
J.D. Douglas foi editor colaborador de Christianity Today. Veterano das Forças Aéreas estudou nas universidades de Glasgow e de St. Andrews, bem como no Hartford Theological Seminary, em Connecticut. Ele possui os graus de M.A., B.D., S.T.M., Ph.D. Foi professor de História Eclesiástica em St. Andrews, Ministro da Igreja Escocesa em Bute e Bibliotecário da Tyndale House. Cambridge. Tem vários livros escritos; organizou várias obras importantes, incluindo o New Bible Dictionary [Novo Dicionário da Bíblia] e New International Dictionary of the Cristian Church [Novo Dicionário da Igreja Cristã]; e colabora regularmente com vários jornais religiosos.
CAPÍTULO 10
A CONTRIBUIÇÃO DO CALVINISMO NA ESCÓCIA
A Reforma demorou a chegar à Escócia. Quando o Parlamento aboliu o papismo, no verão de 1560, Zwínglio já tinha morrido há vinte e nove anos, Lutero há quatorze, Henrique VIII há treze; e a vida de Calvino estava apenas a quatro anos do fim. Portanto, John Knox pertenceu à segunda geração de reformadores que usufruíram dos benefícios do pensamento e experiência de seus predecessores, na luta contra Roma. Não obstante, ele e seus colegas se defrontaram com uma série de problemas aos quais os projetos continentais nem sempre se aplicavam. A vitalidade do Calvinismo era tal que ele tinha florescido em diferentes formas, em diferentes países e circunstâncias. Na Escócia, ele causou um impacto sem paralelo. Para entendê-lo, precisamos examinar a história escocesa precedente para ver como um extraordinário mal foi contido por remédio tão extraordinário.
A Escócia antes da Reforma Durante os dois turbulentos séculos que separaram Robert Bruce e John Knox, a Escócia foi um país difícil de se governar. Utilizada como peça avulsa de um jogo de xadrez, no eterno conflito FrançaInglaterra, foi também dilacerada pela guerra civil e pelos clãs feudais locais; ela estava atrasada na civilização e oferecia pouca segurança para a vida e a propriedade. Atormentada mais tarde por uma patética sucessão de reis infantis (cuja idade média, ao assumir
o trono, não era mais do que 8 anos) e por regências disputadas, a monarquia estava enfraquecida, a nobreza rebelde e a Igreja corrupta. Mesmo assim, essa região em nada promissora era aqui e acolá tocada e alcançada por John Wycliffe e seus evangelistas missionários, preocupados em disseminar o conhecimento da Bíblia numa linguagem que o povo pudesse compreender. Um desses mensageiros, James Resby, atravessou a fronteira da Inglaterra para falar aos escoceses acerca do novo-velho Evangelho e, em Perth, pagou com a vida a sua ousadia, em 1408. Em 1433 Paul Crawar (Craw), um físico da Boêmia, veio à Escócia e estabeleceu-se em St. Andrews. Logo, a cidade estava inundada de ensinos hussitas: a negação da transubstanciação, do purgatório e da eficácia da absolvição. Para o bispo e o clero desta capital eclesiástica isso era monstruoso e Crawar também foi entregue às chamas, tendo sido colocada em sua boca uma bola de latão, a fim de que as pessoas não pudessem ouvir suas últimas palavras. No mesmo século, surgiu um movimento ainda mais nativo, quando os Lolardos de Kyle disseminaram crenças distintivamente protestantes, especialmente na parte sudoeste da Escócia. A Igreja e o Parlamento estavam tão alarmados que todos os formados de St. Andrews tinham de jurar defender a Igreja contra eles. Mesmo assim, pelo final do século, esse movimento tinha alcançado as classes superiores. Eles começaram também a falar contra a transubstanciação e o purgatório, condenando o uso de imagens e zombavam das pretensões do papa, cujo controle sobre o clero escocês já, por muitos anos, vinha sendo irregular e insatisfatório. Estes Lolardos, que já antes de Lutero nascer antecipavam muito do seu ensino, afirmavam também que cada homem e mulher
crente era um sacerdote. A simplicidade e a austeridade de sua doutrina eram singularmente atraentes num país que pouco conhecia as glórias da Renascença e era um tanto alheio quando os estudiosos do continente europeu redescobriram os escritos da Antiguidade e quando o grande humanista Erasmo ridicularizava as afirmações dos clérigos. Mesmo antes de a nova doutrina se espalhar da Alemanha e Inglaterra, havia na Escócia um espírito de crescente hostilidade entre os homens da Igreja e a classe média em ascensão. Então, realmente, começou o despertamento. Cópias do Novo Testamento, de Tyndale, começaram a alcançar a Escócia através dos Países Baixos. A literatura luterana veio de Campvere através de Aberdeen e Leith; e para Dundee navegaram sacerdotes que tinham vivido na Alemanha e trouxeram de volta, para a Escócia, hinos utilizados pelos reformadores alemães adaptados às melodias de baladas escocesas: Não obstante sua tirania [escreveu Knox], o conhecimento de Deus cresceu maravilhosamente dentro deste reino, em parte pela leitura, em parte pela reunião conjunta dos irmãos que, naqueles dias perigosos, era realizada para o conforto de muitos; mas, principalmente através de mercadores e marinheiros que viajavam por outros países e ouviram a afirmação da verdadeira doutrina e tomavam conhecimento da aberta condenação da futilidade da religião papista.1 Em 1525, sob a influência da Igreja, que possuía pelo menos metade dos bens da nação e mantinha seu controle sobre o povo através do medo, da ignorância e da superstição, foi aprovado um ato contra todos os que introduziam as doutrinas ofensivas. O clero era amplamente iletrado, a pregação era praticamente desconhecida, as obrigações paroquiais eram negligenciadas, as contribuições 1
John Knox, The History of the Reformation in Scotland, org. por W. C. Dickinson (Edimburgo: Nalson, 1949), 1:25.
eram esbanjadas em coisas mundanas, os edifícios das igrejas eram saqueados pelos ingleses ou por rebeldes, ou eram abandonados e entravam em decadência. Em alguns casos, Knox foi mais tarde comodamente acusado por isso. O bispo Robert HalI disse que muitos mediam sua distância do céu por sua distância de Roma.
O Primeiro Mártir Protestante Escocês A avalanche não pôde ser contida. Em 1528, foi queimado por heresia, em St. Andrews, um jovem estudante aristocrata, mas “a fumaça da fogueira que queimou o Mestre Patrick Hamilton contaminou todos aqueles sobre quem pairou".1 Alexander Alane (Alesius), que tentara convencer Hamilton de seu erro, foi, ele mesmo, convertido e por pouco escapou de um destino semelhante. Muitos, inclusive nas universidades, começaram a “questionar o que antes sustentavam como verdade certa ... e começaram a perceber a futilidade da superstição que receberam".2 Apesar da estrita legislação, os pontos de vista protestantes se disseminaram. Em 1546, George Wishart, um erudito amável e humilde que, no continente europeu, tinha aprendido muito de Calvino e de Zwínglio, foi queimado numa estaca, em St. Andrews. Contudo, antes ele dispensou seu guarda-costas, um sacerdote chamado John Knox, que estava pronto para empunhar uma enorme espada em defesa de seu mestre. Wishart não se utilizaria disso. “Volte para seus filhos”, recomendou ele a Knox, o tutor, “e Deus o abençoe. Um é suficiente para um sacrifício".3 No ano seguinte, a Igreja pediu à Rainha regente, Mary de Guise Lorraine, viúva de James V, para fazer cumprir as leis contra os 1
Ibid., p. 15. Ibid. 3 Ibid., p. 69 2
“luteranos”, um termo freqüentemente utilizado como nome geral para designar os protestantes, de cujas “heresias pestilentas a terra estava agora infectada, e que agora estavam pregando abertamente”.
Vitória à Vista Porém, alguns dos nobres mais poderosos eram, na verdade, genuinamente simpáticos à causa da Reforma e tentavam provocar mudanças por meios constitucionais. Em 1557, eles firmaram num encontro Comum ou Religioso, aliança que defendia o uso, em todas as igrejas paroquiais, do Segundo Livro de Orações de Eduardo VI e a exposição das Escrituras de modo privado em casas disfarçadas. O ano de 1558 viu o último mártir protestante da Escócia, quando o ancião de 82 anos, Walter Myln, sacerdote e pároco de Lunan, morreu nas chamas, em St. Andrews. Não sendo ele próprio um rebelde, Abbot Quintin Kennedy, naquele mesmo ano lamentou a corrupção de sua Igreja e contou quantos benefícios vacantes eram cobiçados por grandes homens: “Se eles tivessem um irmão ou filho... alimentado num vício todos os seus dias, ele seria imediatamente posto sobre uma mula, com uma toga e um boné redondo, e então seria uma questão de ver se ele ou sua mula saberia cumprir melhor sua obrigação. Que admiração é essa ... o pobre povo simples, tão amavelmente comprado pelo sangue e morte de Cristo, pereça miseravelmente; a Igreja está injuriada e Deus é desonrado".1 Em março de 1559, o Concílio Provincial da Igreja reuniu-se pela última vez e fez tão pouco e tão tardiamente que mostrou apenas como ela estava inteiramente alheia ao espírito ascendente da época. 1
O. Kennedy, “Ane Compendius Tractive” (1558), in The Wodrow Miscelany (Edimburgo: Wodrow Society, 1844), p. 151.
Então John Knox entrou em cena. “Quando a quota de tijolos é dobrada”, diz o provérbio hebreu, “Moisés vem”. Knox estava agora em seus 40 anos e fora ordenado sacerdote havia já duas décadas. Desde sua adesão ao mártir Wishart ele foi, sucessivamente, tutor, ministro em St. Andrews, escravo nas galés no cativeiro francês e capelão do rei inglês Edward VI. Entretanto, quando lhe foi oferecido o bispado de Rochester, ele declinou, profetizando “maus dias futuros”. Durante a maior parte do reinado de Mary Tudor, na Inglaterra (1553-58), Knox estava no exílio, primeiramente em Frankfurt, depois em Genebra. Mas seu ardente interesse era a Escócia, e sabemos que ele consultou Calvino e Bullinger acerca da atitude de um súdito em relação a “um magistrado que impõe a idolatria e condena a verdadeira religião”. Ele esteve na Escócia durante seis meses a partir de agosto de 1555 e, numa linguagem singular, porém constrangedora, refere-se às boas vindas que recebeu e à “sede ardente de nossos irmãos, dia e noite soluçando e gemendo pelo pão da vida”. Através de sua pregação muitos foram conquistados para a fé reformada, segundo o modo pelo qual ele celebrava a Ceia do Senhor. Ele dissuadia o povo de ir à missa e essa abstenção tornou-se a marca de um protestantismo radical. Ao retornar a Genebra, ele deixou atrás de si um “Conselho Saudável”, lembrando aos chefes de família de que eles eram bispos e reis, e recomendando o estabelecimento, em congregações particulares, de algo semelhante ao primitivo culto apostólico. Em sua ausência foi condenado à morte, mas Knox não temeu. Quando estava próximo o fim de 1559, a intervenção francesa e a inconstância da rainha inglesa, Elizabeth, punham a causa em perigo e Knox, num sermão memorável, exortou seus colegas a “voltar-se para o Eterno, nosso Deus... que se agirmos sinceramente
... nossa dor, confusão e temor serão convertidos em gozo, honra e coragem".1 E assim aconteceu. A vitória foi efetivamente assegurada em julho de 1560. A revolução chegara ao fim — e fôra notavelmente realizada sem derramamento de sangue. O Deus de John Knox triunfou, a Velha Aliança com a França foi revogada e os escoceses, como nunca antes, aplaudiram o surgimento de um amigável exército inglês.
A Confissão Escocesa Knox e seus colegas não tinham nem tempo nem a disciplina mental sistemática para produzir uma declaração da Fé Reformada. Portanto, sob a direção de Knox, eles recorreram àquela que Calvino tinha feito. Em quatro dias, tomando emprestado das Institutas e de outras declarações reformadas e luteranas, eles produziram a Confissão Escocesa de 1560. Muito do material exposto em vinte e cinco vigorosos capítulos reflete um ensino idêntico ao de Paulo e de Agostinho. Essa compilação feita pelos seis Johns — Knox, Spottiswoode, Row, Douglas, Winram e Willock — reflete as características da verdadeira igreja como sendo três: 1. A verdadeira pregação da Palavra de Deus. 2. A correta administração dos sacramentos. 3. A disciplina eclesiástica legitimamente administrada segundo a Palavra de Deus. 1
Knox, History, 1:290.
A Confissão renunciava à autoridade papal, proibia a celebração da missa, implicava a aceitação dos credos históricos, estabelecia a doutrina da expiação e da Justificação pela Fé, e tratava da eleição (como o fizera o primeiro Calvinismo) como um meio de graça e como evidência do “invencível poder” da natureza divina na salvação. Expressa em forma menos semelhante a um documento teológico e mais como um manifesto vigoroso que refletia o ambiente contemporâneo, a Confissão permaneceu como base do ensino da Igreja da Escócia até a Confissão de Westminster de 1647. Ainda assim, esse primeiro documento, freqüentemente, era considerado como a mais pura expressão da mente e do coração da Igreja; no século 19, Edward Irving costumava lê-la duas vezes por ano em sua congregação em Londres. Irving, um filho brilhante, porém instável da Igreja, afirmava que a Confissão Escocesa era “o estandarte da Igreja em todas as suas lutas e conflitos; mas a Confissão de Westminster eram as cores do acampamento que ela tinha usado durante seus dias de paz; a primeira era para a batalha, a outra para a boa aparência e boa ordem".1
O Primeiro Livro de Disciplina Qual seria a melhor maneira de se governar uma Igreja Reformada? Originalmente composto em menos de três semanas, em maio de 1560, porém revisado mais tarde, o primeiro Book of Discipline [Livro de Disciplina] é, de algum modo, até mais importante do que a Confissão, pois ele deixou uma marca permanente na religião e na vida escocesa. 1
Edward Irving, Collected Writings (Londres: Slrahan, 1865), 1: 602.
Uma obra prática e abrangente, que muito aproveitou das igrejas reformadas do estrangeiro, o Livro estabeleceu os fundamentos do futuro da Escócia numa base de verdadeira religião. Hume Brown o considerou “o mais importante documento da historia escocesa”, incorporando um esquema ao qual o termo “socialismo cristão” não seria inaplicável.1 O esquema esboçado no primeiro Livro de Disciplina era incompatível com a existência concreta da igreja medieval. Um sistema completamente presbiteriano não surgiu até 1581, mas ele estava profundamente enraizado na Reforma Escocesa. O primeiro Livro de Disciplina expunha a estrutura hierárquica na Igreja e na Sociedade. Uma vez que a Igreja é o povo de Deus, cada membro devia ter um status igual para controlar a religião da nação. O estabelecimento de tal igualdade, necessariamente, exigia a liberdade contra a opressão da tirania tanto civil quanto eclesiástica. “Pedintes teimosos e negligentes” foram desencorajados, mas a causa da viúva, do órfão e do pobre idoso e inabilitado deveria ser esposada calorosa e compassivamente, e dever-se-ia fazer provisão de ofertas das igrejas para eles. Em relação à igualdade, não havia contradição em afirmar que Deus tinha concedido dons especiais a indivíduos para o serviço em sua Igreja. Essa não era apenas a posição de Calvino, mas também encontrava apoio explícito nas Escrituras. Embora reconhecesse a carência de “homens piedosos e instruídos”, o primeiro Livro de Disciplina insistia num alto padrão de qualificações educacionais para o ministério. É uma posição da qual as igrejas presbiterianas modernas não se afastaram. O objetivo de toda pregação deveria ser a instrução e a 1
P. Hume Brown, John Knox (Edimburgo: A. & C. Black, 1895), 2:148. Cp. também a edição de J. K. Cameron do The First Book of Discipline (Edimburgo: St. Andrew, 1972).
persuasão, não sentimental, não emocional, e não em forma de controvérsias, exceto ao lidar com a Igreja Romana. As Escrituras deveriam ser expostas em seqüência, de modo que as pessoas pudessem conhecer o ensino completo. O impacto seria avaliado em encontros semanais com propósitos catequéticos. Havia exercícios semanais para ministros que viviam razoavelmente próximos, exercícios para a discussão da doutrina das Escrituras. Um moderador deveria presidir e verificar qualquer tendência para a crítica violenta e para a irrelevância. Nisso estava o germe do presbitério. O ambicioso programa de ter uma escola em cada paróquia e oferecer oportunidade igual para todos serem educados até ao nível universitário, mostrava a intenção de criar e desenvolver uma nação cristã completamente igualitária. Não era suficiente, para os “magistrados piedosos, purificarem a Igreja de Deus de toda superstição e estabelecê-la em liberdade contra a escravidão de tiranos” — ela tinha também de garantir a sua permanência na mesma pureza para as posteridades seguintes. Sabedoria e entendimento eram considerados como um legado mais valioso, para a posteridade, do que tesouros terrenos. A Palavra de Deus deveria ser a vida e alma da Igreja, mas a conduta piedosa e a disciplina também eram recomendadas. Essa última asseguraria que os que vivessem vidas más não seriam enumerados entre os filhos de Deus, que o mau não contaminaria ao bom e que os pecadores seriam levados ao arrependimento e à novidade de vida. Os crimes capitais seriam punidos por autoridades civis como por autoridades espirituais. Pecados tais como embriaguez, intemperança de qualquer tipo, licenciosidade, calúnia e opressão dos pobres seriam passíveis de punição pelas cortes da Igreja. A disciplina deveria ser administrada com estrita imparcialidade —
essa característica admirável, indubitavelmente, contribuiu para o fato de que o Livro de Disciplina, diferentemente da Confissão Escocesa, nunca ter sido ratificado pelo parlamento. Ao planejar o livro, Knox foi influenciado pelo conhecimento que tinha das Ordonnances da Igreja de Genebra sob Calvino, da Forma utilizada na Igreja alemã de John Laski, em Londres, e da Discipline da Igreja Reformada Francesa, de 1557-59. A questão central de tudo era a necessidade urgente de pregadores. Era um Knox sobrecarregado o que foi levado a seu leito de morte, pois numa de suas últimas orações, diz: “Senhor, envia verdadeiros pastores à Tua Igreja”. Os pastores eram necessários porque, para Knox, a Reforma não significava apenas alguns aperfeiçoamentos modestos da Igreja Cristã. Roma não era uma forma defeituosa de Cristianismo: para ele a Igreja Católica não era Cristianismo de forma alguma, mas era o resultado de uma fraude cósmica pela qual as pessoas foram iludidas mais uma vez, como no Éden, e seduzidas para uma adoração diabólica inconsciente. Essa é uma posição ainda ferrenhamente sustentada na Escócia por, pelo menos, um dos menores grupos presbiterianos. A Oposição Cresce Os problemas vieram logo. Os ministros afirmavam que a religião era inseparável do governo e que se reinasse a verdadeira religião, a verdadeira política se seguiria. A maioria da alta nobreza, entretanto, tendo controlado “gananciosamente as possessões da Igreja”, não estava disposta a deixar que ela beneficiasse os ministros, as escolas e os pobres. Dessa forma, os ministros foram traídos pelos que se autopromoviam.
Dois terços dos impostos permaneciam nas mãos dos donos anteriores, sendo o terço restante dividido entre os ordenados dos
pastores e o poder real. “Duas partes dadas livremente ao Diabo”, comentava Knox, “e a terceira tem de ser dividida entre Deus e o Diabo".1
Todavia, isso significava que os ministros, na Escócia, continuavam a serem identificados com os pobres, compartilhando de sua sorte e conhecendo suas dificuldades e problemas diários. Em 1843, deveria ser feito um rompimento, em parte, com um sistema patronal que, estabelecido em 1712, indicava às paróquias os homens que poderiam não ter nada em comum com seus paroquianos.
Andrew Lang tinha pontos de vista tipicamente idiossincráticos sobre o estabelecimento da Reforma na Escócia. O Calvinismo sugere ele, era “o sistema mais barato porque não requer despesas com arcebispos, bispos, decanos, cônegos, catedrais e outras luxúrias".2 Talvez sim, mas Lang ignora o fato de que a Igreja Anglicana contemporânea continuava a ter tanto as “luxúrias” quanto o Calvinismo.
Os reformadores não ficam sem seus resultados. O corolário da igualdade de todas as pessoas diante de Deus era a responsabilidade de todas as pessoas perante ele. Não havia respeito diferenciado a pessoas. Em 1563, o Lord Tesoureiro da Escócia foi punido por imoralidade; em 1567, a Condessa de Argyll foi forçada a aparecer vestindo panos de saco durante o culto na Capela Real, em Stirling, por ter assistido ao batismo católico-romano do futuro James VI. Tais humilhações não tornaram os zelosos reformadores benquistos aos olhos das classes superiores. 1 2
Knox, History, 2:29. A. Lang, The History of Scotland (Edimburgo: Blackwood, 1907), 2:86.
A República Piedosa Seguindo o modelo genebrino, tanto a Confissão Escocesa como o primeiro Livro de Disciplina assumiram que Igreja e Estado fossem duas partes de uma república cristã, uma idéia originada da Cidade de Deus, de Agostinho. O que os autores evidentemente não previram foi que uma tal teoria seria basicamente impraticável quando o governante estivesse em oposição à Igreja. O sistema de Calvino, projetado para uma comunidade única, apresentava dificuldades patentes ao ser aplicado a um reino inteiro. A idéia de uma nação religiosa era factível na Genebra republicana, onde o próprio Calvino ajudou a formular o código civil. Mas era fundamentalmente insustentável quando o soberano era alguém como Mary, rainha dos escoceses, uma católica irredutível de 19 anos de idade, que se aliou à batalha contra Knox logo após sua chegada da França, em 1561. “Você ensinou o povo a receber uma religião diferente daquela que seus príncipes podem permitir”, protestou ela, “e como pode tal doutrina ser de Deus, se Deus ordena aos indivíduos que obedeçam a seus príncipes?” É um argumento válido, pois não é verdade que a apropriada doutrina genebrina e a própria Escritura afirmam que os reis foram “indicados para a manutenção da verdadeira religião?”. Knox foi forçado a recuar em seu princípio mais fundamental, de que “a religião correta não se originava na autoridade de príncipes mundanos, mas procedia unicamente do Deus eterno".1 Em certo sentido, Knox estava sozinho nesta questão, pois as 1
Knox, History, 2:16.
posições de Calvino (e de Lutero ainda mais) não tinham vislumbrado sua aplicação em circunstâncias tais como as que existiam na Escócia. É parte da grandeza de Knox o fato de ele não ser servilmente dependente de diretrizes estabelecidas pelos pioneiros. Ele era um homem de visão e de imaginação, um homem que sabia improvisar. As vezes, esquecemos que ele era extraordinariamente bem dotado para fazê-lo. Ele não apenas tinha visto o culto realizado na Igreja de Roma e na Igreja Anglicana, mas também tinha visto, por si próprio, o efeito da Reforma na Alemanha, França e Suíça. O Calvinismo dera princípios básicos a Knox e a seus colegas. Estes princípios, por sua vez, deram aos escoceses a justificação necessária para uma rebelião de tal modo, que o Luteranismo não poderia tê-lo feito. Dessa forma, o Calvinismo abriu a porta, na Escócia, para um movimento religioso dotado de uma organização eclesiástica capaz de funcionar efetivamente tanto em tempos de adversidade, bem como em circunstâncias mais favoráveis, quando a Igreja estivesse já estabelecida e recebesse o reconhecimento devido pelo Estado. Enquanto na Inglaterra havia insegurança quanto à manutenção dos vínculos com o passado, a Escócia refletia uma situação política diferente que permitia um tipo mais radical de organização da Igreja. Não obstante, na Escócia, o passado não foi rejeitado num ponto importante: os reformadores mantiveram uma doutrina da Igreja tão elevada quanto a encontrada na própria Roma. A Igreja não era apenas a Igreja da Escócia, mas era, na Escócia, a representante da Igreja Universal. Foi a hierarquia romana que partiu desta concepção. Desde a Reforma até 1690, a verdadeira voz da Reforma, na Escócia, achou cada vez mais necessário afirmar que Cristo era o único Cabeça da Igreja — e não o papa, nem a Coroa.
Dessa forma, não foi uma depreciação do Calvinismo, mas antes sua declaração, quando em 1644 os delegados escoceses da Assembléia de Westminster afirmaram num panfleto: “Denominarnos calvinistas, e às Igrejas Reformadas de Igrejas Reformadas Calvinistas é desgraçar a verdadeira Igreja de Cristo, e fazer-nos semelhantes aos papistas, que a si próprios se denominam a Igreja Católica... Aqueles que não percebem nenhum perigo nos nomes (pois que há um grande perigo neles) não deveriam... unir-se com os papistas, dando nomes de seitas para as Igrejas Reformadas".1 A mesma objeção pode ser levantada contra a publicação anglicana do século 20, que tem o hábito de se referir à “Igreja Presbiteriana da Escócia”. Para os reformadores escoceses não deveria haver duas igrejas: protestante e católica. Isso era inimaginável; havia um consenso de que coexistirem duas igrejas no mesmo reino era uma situação tão monstruosa quanto a idéia de existirem nele dois Estados. A visão de uma Igreja está ainda presente na Escócia, bem como uma aguda consciência da desunidade. Pode-se encontrar, em qualquer denominação aqueles que farão eco à exclamação do velho montanhês da Escócia quando seu ministro se referia à Igreja: “Igreja! Nós temos apenas os estilhaços de uma Igreja”. A Liturgia de Knox Um outro legado de Genebra foram as formas litúrgicas utilizadas pela congregação genebrina de Knox. Em 1562 e em 1564 a Assembléia geral sancionou e autorizou o Book of Common Order [Livro de Ordem Comum], conhecido por alguns como a Liturgia de Knox, e adotou-o como um útil anuário de culto da Igreja da Escócia. Esse livro, que estivera em uso já anteriormente na Escócia, incluía também uma versão metrificada dos Salmos. 1
“A Reforma do governo eclesiástico na Escócia afastou alguns erros” (Londres: Bostock, s.d.).
Depois de a Assembléia ter indicado John Craig e outros para revisar o Saltério Genebrino e adaptá-lo às necessidades da Igreja, o Antigo Saltério Escocês foi publicado em 1565 e muito utilizado até 1650. A cada domingo, em algumas igrejas escocesas atuais, podem ser ouvidos os Salmos 100 e 124, cantados nas melodias primeiramente ouvidas na Genebra de Calvino. Nas paróquias, o leitor deveria instruir as crianças nos rudimentos “e especialmente no catecismo como o temos traduzido agora no Livro da Ordem Comum denominado a Ordem de Genebra”. A cada domingo à tarde, em todas igrejas paroquiais e na presença de seus pais, as crianças tinham de repetir as respostas às questões e o ministro ou o leitor tinha de explicar tanto as perguntas quanto as respostas e aplicar as doutrinas. O fato de essa prática ter continuado longamente sugere quão profunda era a influência de Calvino no pensamento escocês. No início da década de 50 eu fui convidado, num dia de jejum, para examinar os pupilos de uma escola montanhesa segundo o Breve Catecismo, bem como para trazer uma mensagem apropriada. Tendo sido cumpridas as formalidades, as crianças puderam então ter o restante do dia livre! O Livro da Ordem Comum ainda estava oficialmente em vigor até a tentativa frustrada do Arcebispo William Laud, setenta e cinco anos mais tarde, de interferir na prática litúrgica escocesa. A tentativa fracassou e aos ministros foi permitido conduzirem os cultos segundo seu próprio critério, mas as formas atuais ainda são essencialmente aquelas que se configuraram sob a influência de João Calvino. Após a morte de Calvino, em 1564, a conexão com Genebra foi mantida através de Beza. Uma carta de Bullinger para Beza, em
1566, incluía “um exemplo da correspondência intensa de Knox, mediante a qual você ficará conhecendo toda a situação da Escócia”. Anteriormente, naquele ano, Beza pediu para a Igreja, através de Knox, que aprovasse a Segunda Confissão Helvética, principal documento calvinista que tinha acabado de ser produzido. Os laços íntimos com Beza continuaram longamente depois da morte de Knox, em 1572.
Educação e Laicato Knox buscou na Bíblia sua inspiração e por ter percebido que Calvino lá estivera antes dele, o Reformador Suíço tornou-se para o Escocês “aquele instrumento singular de Deus”. O credo protestante surgiu do estudo sistemático da mensagem redentora. Roma teve razão em se alarmar quando as pessoas começaram a ler ou a ouvir livremente a Bíblia, pois aqui havia uma fonte de força espiritual diretamente disponível e um eliminador de superstições. A semente de uma revolução intelectual foi semeada com o zelo dos reformadores pela educação. Eles consideravam a educação como sendo vital, não apenas porque os jovens são mais suscetíveis ao aprendizado, mas, também, porque o novo sistema requeria capacidade de ler para fazer-se a leitura da Palavra de Deus. Foi somente em 1696 que cada paróquia escocesa efetivamente tinha sua própria escola, mas após essa data a Escócia estava equipada com o que se afirmava ser o melhor sistema educacional da Europa. Apesar da avareza dos nobres, que se opunham a um programa criativo de reforma universitária, os reformadores também pressionavam nesse nível e nos dias de Andrew Melville (o sucessor de Knox desde 1574) os estudantes deixavam a Escócia para
ensinar, e não para serem ensinados, nas universidades estrangeiras. Educação, um bom governo, moralidade e religião estavam conjuntamente vinculadas à perspectiva reformada e em tudo isso foi dada oportunidade de serviço ao laicato. Um dentre eles, John Erskine de Dun, foi moderador da Assembléia Geral já em 1564 e foi elevado ao posto pelo menos mais três vezes. Talvez nenhuma outra Igreja no mundo tenha sido tão pioneira em recrutar leigos para funções chaves. Em sua expressão máxima é uma figura historicamente memorável a do ancião escocês temente a Deus, com uma sólida educação e uma preocupação pela conversão espiritual de seus conterrâneos. Ele não se arrefeceu quando, após 1700, não mais podia efetivamente solicitar o auxílio do magistrado civil para sustentar seu governo piedoso. Os altos padrões éticos que ele estabelecera eram reminiscências de Genebra, mas eram vistos como inadequados em si mesmos. Conforme Calvino o dissera: “Levantar nossas mãos para os céus nada significa se nossos corações permanecerem cá embaixo”. Vários dos esquemas da Reforma eram imaginativos; alguns estavam séculos adiante de seu tempo. Os representantes da Igreja ainda eram encontrados em muitas corporações nacionais; atualmente duas das nove regiões da Escócia têm ministros presbiterianos à frente. Mais um dado, cuja importância nem sempre é apreciada, é que as quatro escolas de teologia da Igreja da Escócia são também as faculdades de teologia das quatro antigas universidades.
Governo da Igreja John Knox, assim como Calvino, não tinha profunda aversão ao
episcopado como não-bíblico. Sob Andrew Melville desenvolveu-se uma política rigidamente presbiteriana, que está refletida nos Livros de Disciplina tanto de 1560 como de 1578, por causa das relações Igreja-Estado.1 Não obstante, pode-se acrescentar convenientemente que, durante os três séculos anteriores à Reforma, a conduta dos bispos escoceses não os fazia simpáticos ao país. No século 16, o problema foi levantado como um agudo contraste por Andrew Melville, freqüentemente considerado como “o pai do Presbiterianismo”. Ele o considerou como a forma mais bíblica de governo eclesiástico, uma vez que ela reconhece a Bíblia como a fonte da autoridade, e não o rei nem o papa. Além disso, ele oferecia um governo ordeiro e espiritual à Igreja, numa terra que já tinha visto muito desgoverno. Entretanto, é lamentável, embora compreensível, que uma reação demasiado excessiva levou alguns a defender o direito divino do presbitério, uma teoria indefensável, embora esposada no século seguinte pelo temível Samuel Rutherford. O ministro da Igreja da Escócia, para ser ordenado atualmente, necessita apenas conhecer que o governo presbiteriano de sua Igreja “esteja de acordo com a Palavra de Deus”. Durante a última parte do século 16, James VI considerou o episcopado como útil na promoção de seus próprios fins políticos, não menos importante do que sua reivindicação do trono inglês. Seu filho impulsionou ainda mais o episcopado, sob a influência do Arcebispo William Laud, até que os escoceses se rebelaram — e relataram porque o fizeram no Acordo Nacional de 1638. Mais tarde, sob Charles II e James VII, o episcopado foi identificado com o uso da força bruta e com as atrocidades contra os inconformados. A forma inglesa de episcopado aliava-se confortavelmente à monarquia e se permitia ser manipulada, mas as condições 1
Cp. J. Kirk, org., The Second Book of Discipline (Edimburgo: St. Andrew, 1980), ps. 51ss., para uma interpretação diferente.
escocesas eram diferentes. O problema do Presbiterianismo versus episcopado chegou ao seu auge numa campanha amarga contra os participantes do Acordo, depois da restauração da monarquia, em 1660. Mas foi Melville e sua visão de dois remos que, finalmente, triunfou na Escócia; e as instituições democráticas do mundo ocidental foram beneficiadas por essa vitória, pois foi na Escócia que o Presbiterianismo sustentou sua afirmação de ser uma forma efetivamente prática de política nas circunstâncias do Estado centralizado moderno.
O Calvinismo e os Partidários do Convênio Os Partidários do Convênio do século 17, da Escócia, continuaram a ênfase calvinista sobre a soberania de Deus. A batalha contra Roma fora vencida, mas havia uma nova batalha a ser travada sobre a questão de que “ninguém, além de Cristo, reina”. Aqui estava o Calvinismo que, nas palavras de Alexander Smellie, “ensina que o alto decreto, o cetro real e o domínio majestoso do Senhor Deus Todo-Poderoso se estendem a tudo o que acontece no universo".1 Aos olhos do Pacto ou Convênio, o Estado merecia apenas uma lealdade limitada, pois a lealdade era condicionada pela moralidade; até os reis poderiam ser destituídos pela vontade do povo que os erigiu. Perguntados sobre se eles pensavam que o poder do rei era limitado, os Partidários do Pacto, corretamente, respondiam que nenhum poder, exceto o de Deus, era ilimitado. Essa idéia — que de muito antecedia à Reforma, fora elaborada por George Buchanan — atingiu a maturidade sob o vigoroso calvinista Rutherford e tornouse um espinho na carne, após a Restauração, para os regimes tirânicos de Charles II e James VII, e trouxe uma notável 1
Alexandar Smelie, Men of the Covenant (Edimburgo: Malrose, 1924), p. 241.
contribuição para a derrubada da dinastia Stuart. Já se passaram mais de três séculos desde a assinatura do Pacto ou Convênio Nacional (1638), em Greyfriars, Edimburgo, mas permanece verdadeiro o fato de que nada corrói com maior sucesso as bases do poder totalitário do que uma Igreja Cristã livre que entende claramente suas prioridades ao lidar com Deus e com o homem. Calvino fundara seu sistema religioso mais na verdade do que na liberdade de consciência. Se, naquela ocasião, os Partidários do Pacto mostraram pouca misericórdia ou compreensão para com aqueles a quem consideravam inimigos declarados da verdade, então eles não estavam fazendo nada que não seria aprovado por Calvino ou por Knox. Todos estavam claramente cientes do grande abismo colocado entre esse mundo e o outro, entre aqueles que são de Cristo e aqueles que não são. Confrontados por estes calvinistas escoceses do século 17, temos de perguntar-nos por que eles eram o que eram; o quê os motivava; o quê os sustentava ao longo de anos desgastantes; o quê fez deles testemunha vibrante quando autoridades incompreensivas os arrastavam morro abaixo ou os empurravam pelos degraus das plataformas de execução? A resposta é a mesma que seria dada se as mesmas circunstâncias tivessem ocorrido na Genebra do século 16: a confiança de serem eles os eleitos de Deus. De posse dessa convicção, o desastre, para eles, vinha para “a punição de pecados anteriores e para o juízo futuro”. A derrota motivava a seguinte frase de James Renwick: “Nós nunca saberemos melhor que Deus é o Deus de nossa aliança senão através disto ou, seja, o sermos levados em cativeiro”. O sucesso ou a prosperidade era a segurança dada por Deus de que acima de tudo estavam os braços eternos. O deixar de fazer represálias significava
trazer a si próprio “a maldição de fazer a obra do Senhor enganosamente".1 Os Partidários do Pacto inclinavam-se a renunciar a todas as coisas para as quais não podiam encontrar apoio bíblico. Conforme Knox o dissera um século antes, todo homem deveria ter “liberdade para expressar e declarar o que pensa, com conhecimento para confortar e edificar a Igreja”. Isso, entretanto, era um vinho inebriante que tendia a fazer surgir uma classe de “santos de Deus”, os únicos que podiam interpretar sua vontade — e, freqüentemente, tal interpretação em suas mãos era destituída da misericórdia que sempre deveria estar vinculada com o conceito de um Deus santo lidando com homens pecadores. Mesmo assim, foi exatamente sua perseverança em lutar pela liberdade política e religiosa que preservou uma Igreja identificável com a dos reformadores e contribuiu para construir o caráter e a individualidade nacional. Esse aspecto foi muito bem analisado pelo historiador anglicano J.A. Froude, ao escrever: Por mais da metade do século 17 foi necessário travar a batalha na Escócia que, na verdade, era a batalha entre liberdade e despotismo; e onde, exceto numa convicção intensa e ardente de que eles estavam sustentando a causa de Deus contra a do Diabo, poderia o pobre povo escocês ter encontrado a força para a luta desigual que lhes era imposta? Tolerância é algo bom a seu tempo; mas não se pode tolerar quem não nos tolera e está tentando cortar a nossa garganta. Não se pode ter esclarecimento suficiente, mas deve ser pelo verdadeiro esclarecimento que vê uma coisa em todo o seu contexto. Os Partidários do Pacto travaram a batalha e conquistaram a vitória; e, então, e não antes disso, veio 1
James Renwick, Prefaces, Lectures and Sermons (Glasgow: Bryce. 1776), p. 27.
David Hume com suas economias políticas, máquinas a vapor, estradas de ferro, instituições políticas e todos os abençoados e malditos frutos da liberdade.1 O próprio João Calvino era inegavelmente intolerante quanto a opiniões teológicas que diferiam de suas próprias. Isso, freqüentemente, levou o dissidente a ser excluído da membresia da Igreja ou, mesmo, a sofrer uma penalidade mais drástica. Calvino teve seu Servetus e, em 1696, a Igreja da Escócia restabelecida, tendo passado todo o perigo, cometeu, a sangue frio, sua própria estupidez. Thomas Aikenhead, um estudante de teologia em Edimburgo, foi executado por negar a divindade de Cristo com base no depoimento de uma única testemunha. Essa triste mácula da Igreja escocesa deveria ser considerada no contexto da luta amarga, durante o século 17, para manter o conceito do Cristo Pessoal e de sua Liderança, e não somente sua vida terrena e exemplo, mas também sua presença espiritual no mundo. O Calvinismo, que relembrou ao povo que coisa terrível era cair nas mãos do Deus vivo, novamente o exaltou na consciência de sua renascida liberdade em Cristo. E se Deus realmente tinha feito algo em Cristo, de quem dependia a salvação do mundo, então, conforme James Denney o diz, “é uma obrigação cristã ser intolerante para com tudo que o ignore, o negue ou o deturpe”.
O Gosto pela Teologia Polêmica A teologia calvinista nutriu o lado argumentativo e especulativo do gênio escocês. Quando, em 1670, o Arcebispo Leighton enviou uma comissão de episcopais conciliatórios numa missão itinerante pelo Oeste, região que fazia parte do Pacto, eles encontraram um 1
J. A. Froude, “The influence of the Reformation on the Scottish Character” in Short Studies on Great Subjects (Londres: Longmans, Green, 1895), 1:180.
povo que lhes era superior, como diz o Bispo Gilbert Burnet: Nós estávamos realmente maravilhados ao ver uma comunidade pobre, no entanto tão hábil em discutir pontos de governo e sempre disposta a lutar contra o poder dos príncipes em assuntos de religião: sobre todos esses tópicos eles tinham preparados textos das Escrituras; e tinham respostas para qualquer coisa que lhes fosse dita. Essa medida de conhecimento estava disseminada mesmo entre os menores deles, seus camponeses e seus servos... Assim que partimos, uma equipe desses pregadores acalorados foi a todos os lugares em que estivéramos, para destruir todo o bem que esperávamos ter feito. Eles lhes disseram que o Diabo nunca é tão formidável como quando está transformado num anjo de luz.1 Ali surgiu uma tendência para avaliar uma pessoa não segundo o fruto do Espírito que ela pudesse evidenciar, mas sim se ela tinha posição “sólida em seus fundamentos”. Não era atípico que uma mulher comentasse que seu ministro lhes tinha feito um grande discurso, mas que ela, afinal, “não podia transformá-lo em obrigações”. A teologia escocesa, no melhor dos casos, naturalmente renuncia a tal ultrajante distinção. Na verdadeira tradição de Calvino, ela sempre sustentou que a Palavra de Deus não era para especulação, mas para a reforma da vida. O conhecimento da doutrina correta e a prática da piedade estavam inseparavelmente vinculados. A nação superou sua Confissão Escocesa e seu Livro de Ordem Comum, mas os princípios básicos ficaram inalterados e inalteráveis.
1
O. Burnet, History of His Own Time (Londres: Evans, 1809), 1:410.
O Calvinismo Será Antiestético? Tanto Calvino quanto Knox podiam ser agradáveis e de bom humor. Ambos tinham qualidades afáveis não reconhecidas ou ignoradas por aqueles que os desprezam como fanáticos amargurados. “Para épocas duras” — disse Froude numa mensagem retórica em St. Andrews, em 1871 —, “homens duros são necessários, e intelectos que podem penetrar até às raízes onde a verdade e as mentiras se misturam”. Mas homens duros, às vezes, têm outros humores. Calvino, por exemplo, escreveu certa vez: “As pequenas aves que cantam estão cantando para Deus; as feras urram para ele; os elementos o temem; as montanhas ecoam seu nome. As ondas e as fontes olham para ele, a grama e as flores sorriem para ele”. Quem pode dizer que a soberania de Deus é diminuída por causa de uma tal descrição? Knox também merece um tratamento melhor por parte da Escócia moderna do que ser lembrado apenas como o provedor de um credo triste que inibe a alegria inocente e os negócios do turismo. Ele, afinal, foi o autor da inteligente e comovente nota que assim se inicia: “Tem misericórdia de mim, Ó Senhor, e não leves a juízo meus múltiplos pecados; e, principalmente, aqueles pecados dos quais o mundo é incapaz de me acusar”. Em seus escritos, Calvino aprovou o dom divinamente concedido a Jubal e declarou que “todas as artes provêm de Deus e devem ser respeitadas como invenções divinas”. As artes, afirma ele, são dadas para nosso conforto; a música pode enobrecer”. Aqui há para o homem uma lembrança constante de uma realidade mais elevada do que um mundo decaído. Entretanto, seria ocioso negar um caráter de certa forma antiestético da história presbiteriana. Na Escócia, durante os séculos
16 e 17, os cristãos estavam totalmente envolvidos ou em edificar ou em defender a Igreja. Certamente, há uma notável ausência de misticismo na literatura escocesa daquele período (e desde então não o há em demasia). Umas das poucas exceções — e um dos poucos livros do século 17 ainda lidos hoje (um outro é o comentário de Leighton sobre Pedro) — é a obra Letters [Cartas], de Samuel Rutherford. Mesmo assim, elas também testificam dos tempos e do abuso suportados pelos Participantes do Pacto, segundo seu testemunho: Eu nasci desprezado e odiado; Eu nasci iníquo e carregado de ignomínia. Pelo orgulho da terra tenho sido difamado, Mas, pelo nome de Cristo, sou três vezes bendito! Onde Deus colocou seu mais límpido selo Eles estamparam seu mais sórdido ferrete. Porém, o juízo brilha como o meio dia Na terra de Emanuel.1 Mas isso também era parte do plano divino. Dessa forma, Rutherford declarou: “Cristo teve um grande desígnio de livre graça para essas terras; porém suas rodas têm de mover-se sobre montes e rochas. Ele nunca cortejou uma noiva sobre a terra, mas fê-lo no sangue, no fogo e no deserto”. Geralmente, o reconhecimento da soberania de Deus era expresso de forma menos poética. Nenhum relato da religião escocesa será completo se omitirmos as características físicas de uma terra da qual as simples necessidades da vida têm de ser extraídas. Conseguir o sustento da vida requeria resistência e perseverança, e era de certa forma condizente com tais condições que os escoceses adotassem um sistema religioso com um código de culto e obrigações austeros. 1
A. R. Cousin, Immanuel’s Land and Others Pieces (Londres: Nisbet, 1896).
Infelizmente, isso também significava que a beleza era vista com desconfiança e o lazer era suspeito, como ainda ocorre em algumas igrejas escocesas remanescentes. Essa atitude levava, por si só, a uma ênfase descomedida sobre “a Lei”. O Presbiterianismo adquiriu uma imagem crua e destituída de afeto. Dessa forma, Charles Calder, de Ferintosh, no século 18, cujo tema maior de pregação era o amor de Cristo, foi condenado por alguns de seus paroquianos como “um flautista que toca música de uma só nota”. O melhor da poesia escocesa desse mesmo século baseava-se em heróis ou era sobre heróis muito diferentes de Knox, Melville e dos Signatários do Pacto. Algumas poesias de fato surgiram da reação contra as tradições presbiterianas. Mesmo hoje, numa aldeia montanhesa, a introdução de um hino evangélico num culto noturno da Igreja da Escócia levará muitas pessoas mais calvinistas a fazerem a acusação de que se quer transformar o culto em “um concerto”. A consideração contra o Calvinismo, de que ele é áspero e inflexível, foi ampliada em conseqüência da interpretação mais rígida dada tanto aos decretos do Sínodo de Dort (1618-19), que reafirmavam as doutrinas do pecado e da graça, como contrapostas ao ensino de Armínio, quanto da Confissão de Westminster. Um “ato a respeito de Doutrina” aprovado pela Assembléia Geral, em 1722, refletia a inflexibilidade e a frieza da influência dos teólogos holandeses na Escócia. Com o passar dos anos, a moralidade escocesa ainda tendia a ficar atrasada em relação à sua teologia. “Uma caricatura perversa da teologia da predestinação de Calvino era pregada”, diz Geddes MacGregor, “e sua audaciosa doutrina a respeito da soberania de Deus tornou-se figura de uma divindade muito inamistosa. O inferno e o Juízo Final estavam entre os assuntos mais populares dos púlpitos e algumas pessoas viajavam quarenta ou cinqüenta
quilômetros para ouvir um sermão de um proeminente pregador sobre esses temas".1 A influência puritana encorajava igualmente uma visão legalista do Sabbath, embora seu efeito completo não parece ter sido sentido senão em meados do século 18. O sabatismo é ainda mais forte na região montanhosa da Escócia e nas ilhas. Gradualmente, a tradição puritana tornou-se mais associada com grupos dissidentes que, a partir de 1733, povoaram e complicaram a vida eclesiástica escocesa. Em 1819 eles constituíam cerca de quarenta por cento da população de Glasgow. Mesmo assim, e isso é notável entre as diferenças, havia pouca variação de doutrinas: foi somente em 1893 que a Escócia veio a conhecer uma divisão eclesiástica causada principalmente por discordância doutrinária. Escrevendo no final do século 19, acerca de sua paróquia em Skye, um ministro da Igreja Estatal relatou que teve de discutir com três outros grupos presbiterianos, cada um preocupado em preservar a pureza de sua doutrina. Os quatros não adoravam a Deus nem oravam juntos. A pregação era sem ânimo. Ali havia um obscuro sabatismo. “A música e a dança que recebiam o pródigo com boas vindas foram banidas da casa; e a Mesa do Senhor não contava com os convidados."2 Em casos assim, o povo via a soberania de Deus como algo que os impedia, como pecadores, de vir assentar-se à sua mesa. Essa atitude tem persistido até ao dia de hoje. Dados, oficiais publicados em 1977 mostram que a Igreja Livre da Escócia, afirmando ter a lealdade de 22.000 pessoas, não conta com mais de 5.500 em sua membresia efetiva. Os dados comparáveis, mesmo para a ainda mais calvinista Igreja Presbiteriana Livre, dão 6.694 e 781.3 1
Geddes, MacGregor, Corpus Christi (Londres: Macmillan, 1959), p. 85. N. MacLean, Set Free (Londres: Hodder & Stoughton, 1949). p. 212. 3 The United Kingdom Protestant Mission Handbook (Londres: Evangelical Missionary Alliance, 1978). 2:12. 2
Um uso indevido da herança de João Calvino a respeito de uma visão muito elevada da Palavra e do Sacramento impediu, por longo tempo, o crescimento de um evangelização que não estivesse intimamente ligada à Ceia. Essa prática não variou muito até quase o final do século 18, com o ministério de Robert e James Haldane. Mesmo depois disso, o costume presbiteriano, especialmente na região montanhesa, continuou a fazer da ocasião da Ceia seu principal canal de evangelização. No século 18, podemos também observar que a ênfase knoxiana sobre a educação foi levada adiante pelo estabelecimento de novas escolas nas quais houvesse um enfoque criativo em relação aos currículos e, com a reforma e expansão das universidades, uma ênfase à obra na qual os clérigos tinham o papel principal. A convicção knoxiana a respeito do lugar crucial que cabe à educação, especialmente à educação religiosa, foi reativada no século seguinte, quando Thomas Chalmers a aplicou à era da revolução industrial e social. Chalmers via a educação como o remédio para os males sociais. O caráter (bem formado) poderia realizar o que a legislação não podia; a miséria de poucos poderia ser mitigada pela bondade de muitos. Conforme a visão de Chalmers, a caridade estatal era algo mau: era portanto adequado que o pobre sem merecimento devesse “sentir o peso das severidades que o Deus da natureza estabeleceu para seguir o seu curso, como conseqüência da preguiça, da imprudência e do vício".1 Pode-se encontrar em Chalmers um grotesco caráter malthusiano, porém mesmo assim nenhum clérigo de sua época mostrou maior preocupação pelos pobres. Temos aqui um evangélico proeminente com um evangelho social altamente 1
Thomas Chalmers, Works (Londres: Constable, 1838-1842), 21:175.
desenvolvido, um clérigo de visão ampla, que enxergava tanto o passado quanto o futuro; alguém que relembrou a seus conterrâneos as velhas virtudes escocesas inculcadas pelos reformadores: piedade de vida, diligência no trabalho, boa cidadania e a crença resoluta de que perante Deus todas as pessoas são iguais. Chalmers refletia a abrangência calvinista que trata da vida integral. Como ministro de St. John’s, Glasgow, por exemplo, ele criou um notável esquema de alívio para a pobreza. Seus dez mil paroquianos foram divididos em vinte e cinco subdivisões, cada uma delas organizada de modo tal que as necessidades espirituais e materiais fossem completamente supridas. Ao melhorar a sorte das classes menos favorecidas, o alvo de Chalmers era “não apenas para que eles pudessem participar mais dos prazeres materiais da vida, mas que também para que, livres dos laços opressivos e com a perspectiva de um lazer dignificante, pudessem aproveitar a oportunidade e o espaço plenos para o desenvolvimento de suas faculdades mais nobres, na execução dos mais altos objetivos de uma existência racional e imortal".1 Mais que um Credo Teológico Investigadores cuidadosos ficam sempre cada vez mais surpreendidos ao descobrirem que um sistema religioso evidentemente calculado para mergulhar as pessoas no mais profundo desespero tenha, ao invés disso, dado a elas força moral no mais alto grau. Segundo diz o literato inglês, Visconde Morley: “Aqueles que, inevitavelmente, deveriam imaginar-se vivendo em correntes com elos inexoravelmente soldados movendo-se numa trilha estabelecida por uma vontade invisível antes do princípio dos tempos, exibiram todavia uma coragem ativa, uma resistência resoluta, um autocontrole cordial, um auto-sacrifício exultante, que 1
Ibid., 9:459.
os homens consideram tais resultados como entre as mais elevadas glórias da consciência humana”. O Calvinismo era mais do que um credo; era uma filosofia abrangente que englobava toda a vida. Por exemplo, foi uma consciência cristã vivaz acerca da responsabilidade para com Deus e para com as pessoas de toda parte, um conceito que permeia todo o sistema doutrinário da Reforma, que deu origem, na Escócia, a seus esforços missionários, agora de alcance mundial. Os escritos de Calvino, a partir de uma concepção fundamental da soberania divina, levavam todos os cristãos a sentir a necessidade de fazer o Evangelho conhecido. Aqueles que levavam o Evangelho a outras terras e aqueles que eram exilados por necessidades econômicas, encontraram igualmente o conforto na doutrina calvinista básica. Isso foi expresso pelo poeta montanhês Donald Matheson, quando disse que pelo fato de a terra pertencer ao Senhor, seu povo está sempre em terra própria, estejam eles na Carolina ou em qualquer outra parte. Isso bem pode explicar a tendência escocesa inclinada a alcançar os pontos mais longínquos da terra. Longe de ser um empecilho para missões, o Calvinismo as tem encorajado; na verdade, quanto mais forte é o Calvinismo, mais notável tem sido a dedicação a missões. As generosas ofertas missionárias dadas pelos pequenos grupos que têm preservado uma tradição fortemente calvinista, serve de censura à igreja nacional da Escócia.1
Calvino e a Cultura O Calvinismo despertou questões acerca dos grandes mistérios da criação, da providência e da redenção, e a mente escocesa desenvolveu um apego à discussão de tais assuntos. Não era incomum que os trabalhadores rurais, depois de terem cumprido sua 1
Cp. a oficial History of the Free Presbyterian Church (Inverness: Free Presbyterian Church of Scotland Publications, 1975), pp. 156-163.
tarefa diária, se encontrassem para debater temas tão elevados como o da predestinação. Um visitante da Escócia do século 19, o historiador protestante Merle d’Aubigné, perguntava-se por que o Evangelho tinha sido mais eficaz na Escócia do que em todos os países reformados. Sua conclusão: “Seu apego à doutrina sólida, não foi prejudicado por uma preocupação desordenada com a especulação apocalíptica. Pode-se ver”, comentava d’Aubigné, “que o espírito cristão lhes foi infundido não a partir de ramos enfraquecidos dos romanos, mas de um tronco jovem, vigoroso e nativo”. Samuel Johnson já tinha prestado anteriormente um tributo extraordinário à cultura que ele encontrara durante sua famosa visita às ilhas ocidentais. “Não vi ninguém nas ilhas”, testificou ele, “de quem eu pudesse pensar que fosse deficiente na aprendizagem ou de vida irregular; porém encontrei várias pessoas com quem não podia conversar sem desejar, à medida que meu respeito crescia, que tais pessoas não fossem presbiterianas".1 O Calvinismo deixou uma marca profunda mesmo naqueles que contra ele se revoltaram. Alguns o detestam, porém mantêm por ele uma admiração invejosa. Os casos mais famosos estão no campo literário. Podemos considerar Sir Walter Scott, Robert Louis Stevenson, Robert Burns, John Buchan, e até David Hume. Todos eles, de uma forma ou de outra, para bem ou para mal, foram obcecados pelo Calvinismo e em seus escritos sempre de novo a ele retornavam. Pode-se dizer que se o Calvinismo não lhes foi útil espiritualmente, contribuiu, no entanto, para seu enriquecimento material. Talvez possamos ver nessa influência do Calvinismo um vínculo 1
Samuel Johnson, Journey to the Western Islands of Scotland (Londres: Universily Tutorial Press, s.d.), p. 115.
peculiar com a identificação intentada por Max Weber, da ética protestante com o espírito do Capitalismo. Enquanto essa teoria tem de permanecer como aquilo que o sistema legal escocês denomina “not proven” [não provado], é inquestionável que o Calvinismo inculcou os hábitos da diligência no trabalho diário e de altos padrões éticos no intercâmbio comercial. O exemplo mais notável da impressão duradoura do Calvinismo, num escritor escocês, provavelmente é o de Thomas Carlyle. Não sendo conhecido pela robustez de sua fé religiosa, apesar da influência piedosa em sua criação, Carlyle, perto do fim de sua vida, escreveu: “Quanto mais envelheço, e agora à beira da eternidade, tanto mais vem a mim a primeira sentença do Catecismo que aprendi, quando criança, e tanto mais completo e profundo se torna o seu significado: Qual é o fim principal do homem? Glorificar a Deus e deleitar-se nele para sempre. A disciplina ética da vida está aqui considerada como sendo a obediência à vontade de Deus em todas as esferas. Isso é fundamental para o Calvinismo".1
Tendências Modernas Alguém poderia ter imaginado que o crescimento do partido moderado da Igreja, com sua grande ênfase sobre a cultura e boas maneiras, modificaria a influência calvinista e a visão da comunidade religiosa. Um dos grandes líderes moderados, William Robertson, de fato chamou a John Knox de “bárbaro”, mas não por causa de sua teologia. Foi durante a ascendência do Moderatismo (administração de Moderador) em 1831, que John McLeod Campbell foi deposto do ministério por pregar a doutrina da expiação universal. Cinqüenta anos depois, uma Assembléia Geral bastante diferente, composta por evangélicos, destituiu William 1
D. A. Wilson a D. W. MacArthur, Carlyle in Old Age (Londres: Kegan Paul, 1934), p. 362.
Robertson Smith de sua cadeira na Universidade da Igreja Livre por defender posições contrárias à outra pedra angular calvinista: a crença na inspiração das Escrituras. A Igreja Livre remanescente tomaria hoje a mesma atitude, mas a Igreja Nacional da Escócia dá lugar de honra a professores e a ministros muito mais radicais do que McLeod Campbell. De várias maneiras a Escócia distanciou-se muito do Calvinismo de seus ancestrais, mas ela continua a perseguir aqueles que pretendem desprezá-lo. “Meu maior inimigo ainda é aquele antigo presbiteriano, John Knox”, queixou-se Lorde Harewood, diretor artístico do Festival de Edimburgo, em 1963, quando apareceu no palco, nua, uma modelo de 19 anos de idade, e provocou revolta na capital. Dois anos mais tarde foi quebrada uma tradição de séculos com a inauguração de uma linha dominical de navegação para a ilha de Skye — “o pecado do dia chegou às ilhas” — apesar de objeções e demonstrações de desagrado por parte dos habitantes. Essa mesma ilha calvinista viu a mão de Deus no incêndio que destruiu um café restaurante local, que tinha instalado uma vitrola automática. Noutra ilha, uma mulher de fortes convicções religiosas tentou, sem sucesso, procedimentos legais contra a instalação da luz elétrica que passaria por sobre sua propriedade, e que propiciaria a seu vizinho o. benefício mundano da televisão. Mas há um aspecto mais sério desse ponto. Em 1973, o povo de Lewis, talvez a mais calvinista de todas as ilhas hébridas, defrontouse com um dilema cruciante: um projeto de construção de quinze milhões de dólares, que traria a tão necessária oportunidade de emprego para muitos, estava ameaçado de cancelamento a não ser que fosse permitido o trabalho aos domingos. “Eles não apenas querem duzentos acres de nossa terra”, lamentava-se um habitante da ilha, “mas querem também parte de nossa herança”.
O Anuário de 1972, da Igreja da Escócia, em suas 475 páginas, dava a lista de aniversários importantes. Estes incluíam o aniversário da Rainha-Mãe e o Dia Memorial das Bandeirantes. Mas não registrou o fato de que esse era também aniversário do quadricentenário da morte de John Knox. O Departamento Escocês de Educação descuidou-se da enorme e ampla contribuição que o Reformador fez à educação e ignorou completamente a comemoração do quadricentenário. Um locutor da BBC, uma corporação que nunca temeu aliar-se ao espírito da época, referiu-se “àquele enfadonho velho trovejador”. Em St. Andrews, a velha cidade com a qual Knox tinha tido ligações tão estreitas, a Igreja paroquial efetivamente programou um culto comemorativo. Assistida pelas autoridades municipais, universitárias, pelo presbitério e por convidados de honra de outras Igrejas e países, a cerimônia foi celebrada apressadamente e durou quarenta minutos. Houve algo ironicamente apropriado quando o prefeito da cidade, lendo uma passagem de Ezequiel, esqueceu-se de ler o último versículo —“E deixou os ossos secos com pele e tendões, mas sem vida”. Possivelmente, Knox teria apreciado esse fato com humor austero. A Igreja Nacional da Escócia, entretanto, honrou a Knox promovendo encontros especiais por todo o país. Seu presidente, naquele ano, advertiu que a comemoração do quadricentenário poderia ser utilizada como ocasião para zombarias gratuitas contra o Reformador por parte de “alguns de seus conterrâneos, mentalmente incapazes de apreciar os ideais pelos quais ele deu sua vida, e moralmente insensíveis à degradação da qual ele salvara o povo e a nação”. Isso é verdade; o não-religioso não entende o religioso. Basta olharmos para o Oxford Dictionary of Quotations [Dicionário Oxford de referências]: existem cerca de 2450 referências sob o
verbete William Shakespeare; nenhuma sob João Calvino. Dois eventos significativos, nos últimos anos, sugerem que a Igreja da Escócia não se esqueceu completamente de seu passado. Um deles diz respeito a St. Giles’ em Edimburgo, a Igreja mãe do Presbiterianismo na qual o próprio Knox ministrara. Seu ministro, Harry Whitley, tinha batalhado durante anos para que a Igreja transportasse uma estátua de John Knox e a colocasse na Praça do Parlamento, onde o marco metálico — que, segundo dizem assinalava o local da sepultura de Knox —, estava freqüentemente coberto pelo carro de alguma eminência em leis. Embora tecnicamente essa área de terra pertencesse à Igreja e estivesse sob seu controle e jurisdição, o ministro defrontou-se, em seu caminho, com todos os obstáculos possíveis. Ele foi ameaçado com uma ação judicial pelo Lorde prefeito e pelas autoridades da coroa. Destemido, ele e alguns amigos transportaram a estátua para a praça bem cedo, numa manhã. Ele foi convocado para comparecer perante o tribunal municipal onde lhe disseram que ele não tinha “permissão do planejamento” para tal atitude, e que deveria remover a estátua. Segundo a melhor tradição de seu famoso predecessor, Whitley desafiou a lei. A estátua lá permaneceu. As autoridades desistiram. Em 1965, foi inaugurada uma placa sob a estátua por um descendente de décima terceira geração de Knox, que era de cinco anos de idade.1 Entretanto, o Calvinismo ainda é nominalmente reconhecido inclusive na Igreja Nacional, conforme se tornou evidente em 1974. Esse deveria ter sido o ano em que, conforme a aprovação da proposta pela maioria dos presbitérios, a Confissão de Westminster seria rebaixada do status de “padrão subordinativo” para o de mero “documento histórico”. Mas as coisas não correram segundo o 1
H. C. Whitley, Thorns and Thistles (Edimburgo: Edina, 1976), pp. 60 ss.
planejado pela parte liberal que, há anos, vinha desbastando a Confissão. Continuará sendo um mistério o fato de um antigo moderador, instruído nas leis e com pouca simpatia pelos evangélicos, ter persuadido inesperadamente a Assembléia a arquivar a questão até o aparecimento de uma declaração de fé mais completa. Um tal documento ainda não foi produzido. A Igreja escocesa, que convidou dignitários católico-romanos para conferenciar na corte suprema, nos últimos anos, não está ainda oficialmente comprometida com a dupla predestinação, com sabatismo estrito e com a identificação do papa como o Homem da Iniqüidade.
Origens “Cristãs” da América: A Nova Inglaterra Puritana como um Caso de Estudo George M. Marsden Tradução de Luiz Alberto Teixeira Sayão.
George M. Marsden é professor de História no Calvin College, Grand Rapids, Michigan. Obteve o grau de Bacharel em Artes pelo Haverford College, Bacharel em Divindade pelo Westminster Theological Seminary e os de Mestre em Artes e Doutor em Filosofia pela Yale University. E autor de The Evangelical Mind and The New School Presbyterian Experience [A Mente Evangélica e a Nova Experiência Pedagógica Presbiteriana] (YaIe, 1970) e de Fundamentalism and American Culture [O Fundamentalismo e a Cultura Americana] (Oxford, 1980). E ainda coeditor (com Frank Roberts) de A Christian View of History? [Uma Visão Cristã da História?] (Eerdmans, 1975).
CAPITULO 11
ORIGENS “CRISTÃS” DA AMÉRICA: A NOVA INGLATERRA PURITANA COMO UM CASO DE ESTUDO
Uma das opiniões mais persistentes e amplamente defendidas na comunidade evangélica americana, e em muitos círculos reformados conservadores, é a de que a América teve origens essencialmente cristãs, das quais se afastou lamentavelmente no século 20. Recentemente, por exemplo, uma versão dessa tese recebeu imensa publicidade no livro e filme de Francis Schaeffer How Should We Then Live? [Como Deveríamos Viver Então?] Schaeffer fala, repetidamente, de uma “base Cristã” que a Civilização Ocidental, perdeu, uma “base cristã reformada” de países tais como os Estados Unidos e da perda de “um consenso cristão que nos deu liberdade dentro de padrões bíblicos".1 O movimento Maioria Moral baseia seu programa em pontos de vista semelhantes. De qualquer forma, tais afirmações são feitas e precisam apoiar-se fortemente num apelo à herança puritana como a mais influente tradição da Reforma que modelou a cultura americana. Logicamente, seria concebível argumentar em favor de uma fundamentação cristã louvável da cultura americana, sem apelar para a tradição puritana. Contudo, se demonstrasse que os puritanos — que colonizaram a América — não estabeleceram princípios culturais dominantes verdadeiramente cristãos, que foram perpetuados através de algumas formas importantes, poder-se-ia então levantar uma forte suspeita de que toda a hipótese em favor de uma América cristã, agora perdida, baseia-se antes em fundamentos nebulosos. 1
Francis A. Schaeffer, How ShalI We Then Live? The Rise and Decline of Western Thought and Culture (Old Tappan, N. J.: Revell, 1976), pp. 245, 249.
O propósito deste capítulo é examinar tais afirmações gerais concernentes a uma base “cristã” original para a cultura americana, observando especificamente algumas das realizações culturais da Nova Inglaterra puritana e as contribuições puritanas para a cultura americana posterior. A tese é que tais afirmações deveriam ser severamente consideradas à luz do caráter ambíguo do quanto foi realizado pela cultura puritana e sua influência. Essa tese está baseada num argumento de caráter mais teórico que questiona a possibilidade de se encontrarem quaisquer exemplos históricos reais de verdadeiras culturas cristãs. Essas conclusões, finalmente, e mais incidentalmente, levantam algumas questões a respeito de vários programas de “transformação cristã da cultura”, promovidos por calvinistas da atualidade. O caso da Nova Inglaterra é especialmente intrigante e importante porque os líderes puritanos tiveram uma relativa liberdade de ação para modelar sua cultura de acordo com regras claramente articuladas, regras que eles criam ser singular e consistentemente cristãs. Como tais essas regras representam um “laboratório” notavelmente ideal, no qual se podem analisar as possibilidades e as armadilhas de uma cultura verdadeiramente cristã. Nas colônias do sul, como contraste, as maiores instituições, — tais como o governo representativo ou a escravidão negra —, desenvolveram-se sob circunstâncias nascidas mais da ambição material do que dos ideais especificamente cristãos. Os puritanos, por outro lado, dificilmente lavrariam um campo sem estabelecer por escrito uma razão cristã para o seu trabalho. Essa clareza e articulação deram aos puritanos uma grande vantagem como modeladores de cultura. Muito do que eles disseram explicitamente, outros protestantes do século 17 compartilharam de modo implícito; mas as articulações dos puritanos deram às idéias uma forma distinta, tanto intelectual como institucionalmente. Por essas razões, pelo menos parcialmente, as concepções puritanas permaneceram
durante muito tempo como influências principais na América. Nas igrejas americanas mais influentes, os puritanos eram uma classe muito comum, até a metade do século 19. Com exceção de alguns notáveis políticos sulistas, quase todos os pensadores americanos, até a 1ª Guerra Mundial, ou nasceram na Nova Inglaterra ou receberam sua instrução lá. Mesmo nas primeiras décadas do século 20, muitos vultos da literatura americana ainda estavam lutando com os vestígios da herança puritana. E até mesmo mais penetrante do que tal influência sobre as idéias americanas foi o impacto do Puritanismo sobre os valores da América. Embora o Puritanismo não pudesse ter a pretensão de ter moldado sozinho a consciência americana, certamente ele contribuiu para a definição de suas características mais distintivas. A grande maioria da comunidade erudita tem, há muito, reconhecido o vasto impacto do Puritanismo na formação da cultura americana. A evidência do contínuo interesse por esse tema pode ser vista no livro de Saevan Bercovitch The Puritan Origins of the American Self (New Haven, 1985) [As Origens Puritanas do Eu Americano], que se tornou notavelmente popular não obstante ser uma publicação acadêmica. Bercovitch baseia sua exposição no conceito dos puritanos a respeito de sua própria identidade. Baseados no seu modo de entender as tipologias, na história do povo de Deus, eles consideraram a missão vinculada à Nova Inglaterra como uma recapitulação da missão da nação de Israel, no Antigo Testamento. A conclusão a que essas idéias conduzem — a de que a América foi escolhida por Deus e destinada a liderar a humanidade — tem sido traçada por muitos historiadores, inclusive as preocupações dos puritanos americanos com a aliança e o milênio. Da mesma forma, o continuo fervor moral americano tem sido atribuído às origens puritanas. E continuando a partir daí, a ligação entre o “espírito do Capitalismo” e a “ética protestante” pode ser prontamente ilustrada mediante uma linha genealógica da Nova Inglaterra, que vai de Cotton Mather a Benjamin Franklin. Em
seu notável livro Religious History of the American People [História Religiosa do Povo Americano], Sydney Ahlstrom enfatiza essa cultura puritana formativa ou, como ele a apresenta: o “domínio do puritanismo na herança religiosa americana”: Os Estados Unidos do futuro foram estabelecidos e, em grande medida formados por aqueles que trouxeram consigo uma forma muito especial de protestantismo radical, que combinava um purismo moral vigoroso, um profundo comprometimento com o modo de viver evangélico e a determinação de tornar o estado responsável pela manutenção destas idéias morais e religiosas. Conseqüentemente, os Estados Unidos tornaram-se, por excelência, a nação do reavivalismo, do “legalismo” moral e de um “evangelho” de obras revestido pela assim chamada Ética Puritana.1 Contudo, mesmo que se admita o ponto de vista de Ahlstrom e de outros eruditos no sentido de que as influências puritanas na vida americana foram verdadeiramente grandes, permanece sem resposta o fato de que eles se constituíram uma base verdadeiramente cristã para a cultura americana. A questão é complicada pelo fato de o termo “cristão” bem como o termo “puritano” possuírem uma confusa variedade de significados. Primeiro, o termo pode ter um fraco significado genérico, como se descrevesse apenas alguma conexão com a herança judaico-cristã. Desde o fim do Império Romano, até cerca de 1800, quase tudo, na cultura ocidental, era “cristão” neste sentido. Contudo, fica claro que existem muitos destes “produtos culturais cristãos” — A Guerra dos Trinta Anos e a perseguição dos judeus e dos valdenses, por exemplo — que nós não aprovaríamos. 1
Sydney E. Ahlstrom, A Religious History of the American People (New Haven: YaIe University Press, 1972), p. 1090.
Um segundo uso comum do termo cristão e de termos correlatos refere-se à presença de muitos indivíduos aparentemente cristãos em determinada cultura. Uma breve reflexão indica que a presença de cristãos não é garantia de que as atividades culturais a que eles se dedicaram, justifiquem a nossa aprovação. Por exemplo, muitos cristãos de hoje desaprovam a política racial sul-africana,1 mesmo que ela seja promovida por muitos cristãos aparentemente calvinistas e sinceros. Através da História, muitos cristãos genuínos, mesmo quando tentaram aplicar seus princípios cristãos para dirigir suas atividades culturais, revelaram estar drasticamente enganados. Se desejarmos falar a respeito das atividades culturais cristãs, com o objetivo de fazer uma avaliação, obrigamo-nos a esclarecer que temos para o termo um terceiro e mais restrito sentido em mente. Nós nos referimos a fenômenos culturais produzidos por pessoas aparentemente cristãs que não somente estão tentando seguir a vontade de Deus como também são de fato razoavelmente bem sucedidas em fazê-lo. Isto é, ainda que não esperemos perfeição, podemos esperar que uma sociedade “cristã”, neste sentido, distinguir-se-ia, de modo geral, da maioria das outras sociedades no que diz respeito ao valor meritório tanto de seus ideais como de suas práticas. A família, as igrejas e o Estado seriam corretamente formados em conjunto. A justiça e a caridade seriam normalmente demonstradas às minorias, aos pobres e às outras pessoas desafortunadas. A sociedade seria predominantemente pacífica e a lei seria permanente. Os padrões morais corretos deveriam prevalecer de modo geral. As atividades culturais tais como o aprendizado, o comércio ou o domínio da natureza seriam basicamente desenvolvidos de acordo com a vontade de Deus. Em resumo, tal sociedade seria um modelo adequado para ser imitado por nós.
1
Na época desta segunda edição em português o apartheid já está extinto (N. do E.).
A Nova Inglaterra como um Caso—Teste Será que a Nova Inglaterra puritana foi tal modelo de cultura cristã? Os puritanos consideravam-se a si mesmos como uma “cidade no alto da colina” para que o mundo os imitasse. De fato, a cultura deles tinha muitas características admiráveis. Apesar disso, suas realizações foram falhas em alguns de seus métodos básicos e mais irônicos. A corrupção do melhor torna-se freqüentemente o pior. E, neste caso, alguns dos melhores princípios puritanos foram transformados nos piores na situação histórica atual. Mais ironicamente, o fator principal que, provavelmente, tornou a realização cultural puritana grandemente ambígua, foi o próprio conceito que é o tema central deste capítulo — a idéia de que se pode criar uma cultura verdadeiramente cristã. Visto de uma perspectiva cristã reformada, os puritanos parecem, na verdade, ter começado com muitos dos melhores princípios. A pressuposição do pensamento puritano era a de que o Deus Triúno havia se revelado a si mesmo preeminentemente nas Escrituras. Assim, as Escrituras, através do trabalho iluminador da graça de Deus entre os regenerados, eram o único guia seguro para a verdade de Deus. Tudo o que alguém fizesse tinha, portanto, que estar baseado nos princípios bíblicos. Embora as Escrituras não revelassem todas as coisas que alguém precisasse saber (a razão devia ser um guia subordinado), elas tocavam nessas coisas em grande medida, e as pessoas deveriam ser guiadas por elas onde quer que falassem. Especialmente na área de preocupações a respeito da redenção, a Bíblia era um guia completo. Por isso, no que diz respeito à Igreja, ninguém poderia fazer coisa alguma que fosse além das Escrituras. Essa foi a questão que, inicialmente, separou os puritanos dos anglicanos no fim do século 16. Ambos aceitavam a autoridade das Escrituras. No entanto, os puritanos viam a Bíblia como regulamentadora de qualquer assunto que ela
referisse, até mesmo sobre o uso de perucas, por exemplo. Com respeito à conduta da Igreja, o princípio fundamental dos puritanos não era somente fazer o que era compatível com as Escrituras, mas era também não fazer nada que não fosse ordenado por elas. Certamente os puritanos não poderiam ser culpados de negligenciar o princípio do Sola Scriptura. Na verdade, se eles tiveram alguma falta nesta área, foi em, às vezes, levar esse bom princípio ao extremo. Os seus princípios teológicos essenciais também devem parecer, de uma perspectiva cristã reformada, dignos de louvor. Sua teologia seguia essencialmente a tradição de Calvino, especialmente ao enfatizar a soberania de Deus, a insuficiência humana, a dependência única da graça de Deus e a necessidade do direcionamento de toda a vida para a finalidade de glorificar a Deus. Com respeito às expressões de motivos básicos, a sociedade puritana aparece como especialmente digna de louvor. Tanto pública como particularmente, a soberania de Deus e a necessidade de dependência de sua vontade eram amplamente reconhecidas. Além disso, os padrões morais com os quais a maioria da população aparentemente concordava, parecem ter sido extremamente altos. A lei de Deus era intensamente estudada e, em princípio, respeitada. Indiscutivelmente, a presença destes altos ideais teve alguns efeitos culturais muito positivos — na vida familiar, no respeito ao próximo e aos seus direitos, na preocupação com o pobre, no evitar a ostentação, nas expressões de reverência para com o nome de Deus e em outras coisas semelhantes. Naturalmente, a linha entre a moralidade que procede de uma piedade genuína e a que procede de um legalismo formal é deveras tênue e, sem dúvida, os puritanos cometiam freqüentemente a segunda transgressão, conforme seus opositores gostavam de salientar. Apesar disso, alguém dificilmente poderia duvidar de que
a introdução vigorosa de padrões morais bíblicos teve uma influência louvável e geral em sua vida cultural. Quanto a isso, no entanto, os próprios puritanos foram os primeiros a enfatizar quão longe dos padrões que eles professavam chegou a sua prática efetiva. A própria avaliação deles, sobre o estado de sua sociedade, torna claro que se a prática moral deve ser a medida para saber se uma cultura é “cristã” em um sentido rigoroso, os puritanos dificilmente seriam um modelo confiável a ser imitado. E isso não é somente por causa de seus constantes fracassos morais. Aparentemente, eles, muitas vezes, apenas deduziram implicações a respeito da vida cristã a partir das tendências e movimentos de sua época, mais do que dos princípios eternos. Suas atitudes ásperas para com os estranhos, por exemplo, dificilmente seriam modelos que deveríamos imitar. Embora não fosse prático tentar avaliar aqui o sucesso ou fracasso relativo de cada aspecto da experiência puritana, em seu esforço central e edificação cultural — o estabelecimento de um governo civil — podemos ver mais distintamente as dificuldades para estabelecer uma sociedade verdadeiramente “cristã”. Na fundação de seu governo, os puritanos começaram com os louváveis princípios já apresentados. Citando Massachusetts Bay, certamente a principal colônia puritana, John Winthrop, seu primeiro governador, formulara um sistema sócio político-racional muito preciso antes mesmo que seu navio tocasse as praias da América. Começando com a premissa de que a glória de Deus deveria ser manifestada nas atividades humanas, Winthrop delineou como deveriam viver os que amam a Deus. O resumo de seu pensamento estava essencialmente de acordo com a tradição agostiniana e bíblica. Aqueles que glorificavam a Deus deveriam guardar a sua lei. Com respeito aos relacionamentos sociais foi dito: “o
mandamento de amar o próximo como a si mesmo sobre esse solo fundamenta todos os preceitos da lei moral, no que concerne ao nosso comportamento com os homens".1 Tal concepção de ideal para os relacionamentos e as atitudes dos cristãos parece, pelo menos, um bom começo. O problema central, no entanto, apresentou-se imediatamente quando Winthrop, o governador civil, tentou aplicar o resumo daquela lei a toda sociedade de Massachusetts Bay. Enquanto, no “modelo”, ele fez a distinção entre justiça, que deveria ser esperada em qualquer sociedade, e a misericórdia, que deveria ser encontrada nas associações cristãs, ele considerou claramente toda a sociedade de Massachusetts como se fosse essencialmente cristã. Ao agir com essa pretensão Winthrop estava, naturalmente, apenas refletindo uma posição geralmente admitida como certa desde os últimos dias do Império Romano, ou seja, que a sociedade ocidental era pelo menos em princípio ou, no mínimo, potencialmente cristã. Winthrop expressou essa pretensão de uma forma pactual tipicamente puritana, da qual se seguiu a concepção puritana de empreendimento americano. O Antigo Testamento ensinava claramente que Deus tratou com as nações mediante alianças, de modo explícito ou implícito, cujas condições eram a lei de Deus. As nações que quebrassem a aliança eram punidas; as que a guardassem seriam abençoadas. O povo de Deus — Israel no Antigo Testamento e a Igreja na era do Novo Testamento — estava naturalmente em um relacionamento especial com Deus. Se eles fossem constituídos como uma entidade política, e aqui Israel parecia obviamente o modelo a ser imitado, logo eles deveriam tornar explícita sua aliança sócio-política, seguindo os exemplos do Pentateuco. Isso é exatamente o que Winthrop e seus companheiros puritanos acreditavam que estavam fazendo. Eles estavam se tornando um povo de Deus com uma identidade política e, assim, 1
"A Model of Christian Charity" in Edmund S. Morgan, org., The Founding of Massachusetts: Historians and the Sources (Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1964), p. 191.
estavam precisamente no mesmo relacionamento com Deus como o esteve o Israel do Antigo Testamento. Bercovitch explica essa idéia de igualdade em termos tipológicos: A história sagrada não terminou finalmente com a Bíblia; ela se tornou a tarefa da tipologia para definir o curso da Igreja (“ Israel espiritual”) e da vida cristã exemplar. Neste ponto de vista, Cristo, o “antítipo”, permanecia no centro da História lançando sua sombra tanto em direção ao fim dos tempos, no futuro, como em direção ao passado, através do Antigo Testamento. Cada crente era um typus ou figura Christi, e a peregrinação da Igreja, como aquela do velho Israel, era de imediato recapitulativa e prenunciativa".1 Winthrop, conseqüentemente, assumiu que ele poderia transferir o princípio de nacionalidade encontrado no Israel antigo para a Companhia de Massachusetts Bay, sem nenhuma necessidade de explicação. No “Modelo de Caridade Cristã” ele, por conseguinte, baseou seu argumento afirmando que o amor resume a lei da terra diretamente com base na aliança do Antigo Testamento. “Assim, encontra-se essa causa entre Deus e nós”, ele afirmou. “Estamos em aliança com ele para essa obra...” Ele foi tão longe, a ponto de dizer que se Deus ouviu as orações desta companhia e “nos traz em paz ao lugar que desejamos [isso é, se os navios chegam com segurança até Massachusetts], logo ele ratificou sua aliança e selou nossa autoridade [e] esperará uma execução rigorosa dos Artigos contidos nela...” Com citações diretas da despedida de Moisés em Deuteronômio 30, Winthrop concluiu com a promessa de bênçãos ou maldições que dependiam da observância da lei: Amados, está agora colocada diante de nós a vida e o bem, a morte e o mal, de modo que somos ordenados neste dia a 1
Sacvan Bercovitch, The Puritan Origins of the American Self (New Haven: Yale University Press, 1975), p. 36.
amar o Senhor nosso Deus e amar um ao outro para andarmos em seus caminhos e guardarmos os seus mandamentos, suas ordenanças, suas leis e os Artigos de nossa Aliança com ele para que vivamos e sejamos multiplicados... [ou] pereçamos fora da boa terra...1 Aqui, antes de a classe principal dos puritanos ter posto os pés nas praias americanas, está resumido no pensamento de Winthrop o caráter paradoxal de quase todo empreendimento puritano. Eles acreditavam que sua visão para a transformação da cultura humana estava fundamentada somente nos melhores princípios extraídos das Escrituras. Apesar disso, a sua experiência histórica — uma tradição de mais de mil anos, que viviam dentro da “Cristandade”, um conceito que o protestantismo clássico não dispensou — levouos a interpretar as Escrituras da forma mais pretensiosa, concedendo ao seu Estado e sociedade o exaltado status de um novo Israel. Alguns dos resultados desta identificação foram louváveis, tais como a consciência da necessidade de dependência de Deus nas atividades humanas, o reconhecimento do fato de que os governos (Estados) são ordenados por Deus e uma clara afirmação da regulamentação da lei. Mas essas realizações positivas foram contrabalançadas por conseqüências práticas mais duvidosas. A lei do Antigo Testamento foi direta se não exclusivamente incorporada aos sistemas legais da Nova Inglaterra. De modo que encontramos no “Corpo de Liberdades” de Massachusetts, de 1641, a afirmação que diz: “se um homem, por convicção legal, tiver ou adorar algum outro deus, que não seja o Senhor Deus, será morto.” A mesma pena foi prescrita, juntamente com as citações correspondentes do Antigo Testamento, para a feitiçaria, blasfêmias, assassinato, sodomia, homossexualismo, adultério e rapto.2 1
“A Model of Christian Charity”, pp. 202-204. “A Coppie of the Liberties of the Massachusetts Colonie in New England”, in Edmund S. Morgan, org., Puritan Political Ideas, 1558-1794 (Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1965), pp. 197-198. 2
Tais leis não eram todas sem precedentes na Lei Comum Inglesa e em outras mais, porém, neste caso, os textos do Antigo Testamento eram diretamente copiados nos livros de leis da Nova Inglaterra. Os casos mais notórios de um grande fracasso da justiça, na Nova Inglaterra, as execuções das feiticeiras de Salém, embora não tão extensivos como muitos incidentes similares na Europa, e como resultado de uma histeria social temporária, não obstante, foram legalmente baseados na suposição de que a lei da Nova Inglaterra deveria ser uma réplica da lei do Israel antigo. Embora tenham sido feitos esforços sinceros para manter tecnicamente separada a Igreja do Estado, de fato era o Estado que estabelecia a Igreja nas Colônias, cuidava para que somente a religião verdadeira fosse ensinada, exigia freqüência à Igreja, bania os dissidentes e até mesmo convocava Sínodos. Em Massachusetts Bay, o privilégio de voto estava limitado aos membros da Igreja e, como conclusão lógica, somente tais membros poderiam ser eleitos para o serviço público. Por detrás de toda confusão prática entre Igreja e Estado estava a suposição dominante de que a Nova Inglaterra era o Novo Israel. Em nenhuma outra situação, perigos desta pressuposição tornaram-se mais claros do que no tratamento que os puritanos deram aos nativos da América. Desde que os puritanos consideravam-se a si mesmos como povo escolhido de Deus, eles concluíram que eles tinham o direito de tomar a terra dos índios pagãos. Novamente, eles tinham razões explicitamente bíblicas para a sua política. Consideravam-se a si mesmos como o novo Israel político; mas tratava-se de um caso de engano de identidade. O resultado foi pior do que se eles não tivessem feito nenhuma tentativa para encontrar uma base cristã para a política. Ironicamente, estavam utilizando razões cristãs para justificarem seu próprio orgulho e seus interesses egoístas.
Os paradoxos nos ideais “cristãos” da classe principal dos puritanos da Nova Inglaterra tornam-se mais aparentes quando contrastamos suas formulações com as de um homem chamado Roger Williams, que desafiava suas cruciais pressuposições com respeito a Israel e a Igreja. Williams também deve ser contado entre os calvinistas que contribuíram para a herança americana, embora ele representasse uma posição minoritária entre os próprios calvinistas. Em seu ponto de vista sobre a Igreja, Williams, em certo sentido, era mais puritano do que os puritanos. Preocupado acima de tudo com a preservação da pureza da Igreja, ele chegou à conclusão de que isso só poderia ser realizado através da clara separação entre a Igreja, o Estado e a sociedade. Williams diferiu da vasta maioria dos calvinistas de seu tempo, defendendo consistentemente a idéia de que a Igreja era uma entidade essencialmente espiritual composta daqueles que se reuniam no puro amor de Deus. Essa concepção alterou seu ponto de vista da própria interpretação do Antigo Testamento e da tipologia. Na visão prevalecente entre os puritanos, Cristo era o antítipo para o qual apontava a história do Antigo Testamento e os princípios da época do Antigo Testamento eram recapitulados na Igreja. Williams, por outro lado, embora visse que os tipos do Antigo Testamento eram cumpridos em Cristo, também defendia o ponto de vista de que a Igreja era o antítipo espiritual de Israel, em vez de um tipo exatamente equivalente ao Israel político. Assim, com referência ao Israel do Antigo Testamento, Williams escreve: Eu provei que o Antítipo deste estado é a Igreja Cristã que, conseqüentemente, foi e é afligida por pragas, desolações e cativeiros espirituais, pela corrupção da Religião que lhes tem sido revelada.1
1
Roger Williams, “The Bloody Tennet of Persecution”, in Puritan Political Ideas, p. 208.
Assim, na visão de Williams, até mesmo a Igreja era propensa à corrupção como Israel o tinha sido e, certamente, o governo civil não chegou mais perto de representar puramente a nação eleita de Deus do que o fez a Igreja. Por isso, os estados, longe de serem potencialmente novos “lsraéis”, eram uma influência corruptora adicional e não deveriam tentar impor os princípios da verdadeira religião. Assim, talvez devamos considerar Williams como o melhor exemplo ou considerá-lo a influência calvinista verdadeiramente positiva para a cultura americana. Seu conceito claro de separação entre a Igreja e o Estado com a conseqüente tolerância para com os dissidentes religiosos, recomendam-no como uma figura de grande destaque. Isso também por causa de sua recusa em aceitar a idéia de que os ingleses, por causa da virtude de seu pacto com Deus, haviam adquirido algum direito especial para tomar a terra dos nativos americanos. Mesmo assim, é certamente irônico ter de apresentar Williams como a evidência principal das influências calvinistas dignas de louvor na cultura americana. Primeiro porque, para os padrões de quase todos, ele possuía algo de excêntrico. Segundo porque, conforme os padrões dos próprios puritanos, foi exatamente por causa de sua posição sobre o relacionamento do Cristianismo com a cultura que Williams foi desprezado pela vasta maioria dos puritanos e de seus herdeiros mais diretos. Assim, quando nós olhamos para os esforços dos puritanos no sentido de estabelecer as estruturas reais de uma sociedade “cristã”, nossa procura por origens cristãs louváveis na experiência americana, termina perdida em um labirinto de paradoxos. Os princípios com os quais eles começaram, pareceram bastante bons, e certamente houve muitas realizações positivas. Mas, toda cultura, na História, tem algumas leis e instituições boas mescladas com algumas outras más. A Nova Inglaterra puritana não parece, de modo incomum, mostrar diferença a esse respeito. Apesar de seus
esforços enérgicos em aplicar bons princípios na edificação de uma sociedade cristã modelo, que seria uma “Cidade no alto de uma colina”, para ser imitada pelo mundo, somos deixados na incerteza de se a cidade em questão é a Cidade de Deus.
O Longo Alcance do Impacto do Calvinismo na Cultura Americana: Uma Contribuição Calvinista Princípios Americanos de Governo Apresentadas tais origens irregulares, não é surpreendente que o edifício cultural secularizado posterior da América apresente acentuadas características paradoxais. A secularização1 certamente não corrige o modelo fundamental. Às vezes, ela pode inadvertidamente melhorá-lo, porém modificações são tanto acidentais como casuais. A irregularidade permanece, às vezes, mais espetacular ou até mesmo grotesca. Tais conclusões aplicam-se ao problema do vasto alcance das contribuições puritanas para os princípios americanos de governo — certamente o ponto central para os argumentos persistentes e populares de que a América teve origens cristãs louváveis. A pedra angular de tais concepções é a ênfase puritana sobre a lei, assim se expressa Rousas J. Rushdoony a esse respeito:
1
“Secularização” é um termo ambíguo que poderia legitimamente ser usado de um modo positivo. No entanto, tenho em mente duas coisas, uma das quais ou ambas, são essencialmente negativas: (1) ou é uma degradação do Cristianismo motivada por uma miscelânea de elementos estranhos de modo que fenômenos ou ideais essencialmente nãocristãos passam a ser visto como parte do Cristianismo, ou (2) é uma substituição do Cristianismo por uma nova religião “secular”, tal como o Marxismo, o Nacionalismo, o Materialismo, o Racionalismo, o Existencialismo, o Individualismo, o Liberalismo político ou Conservadorismo etc.
Mas, básico a todo o pensamento colonial era o sentido antigo e cristão da transcendência e majestade da lei. De acordo com João Calvino “a lei é um magistrado silencioso, e um magistrado é uma lei que fala.1 Tais princípios haviam sido explicitados na visão puritana sobre a aliança, na qual a lei de Deus foi ordenada tanto para estar acima do governo como do povo. A execução de Charles I na Inglaterra, em 1649, tomou como certa a centralidade desta Lei maior. As formulações de John Locke, na geração seguinte, foram claramente uma secularização deste conceito fundamental. A Lei natural, ordenada pela divindade e passível de descoberta pela razão, reinava acima dos monarcas. Em 1776, tais concepções eram tão amplamente defendidas na América que o arquipropagandista da Revolução, Thomas Paine, podia reivindicá-las como senso comum. Ressoando a linguagem puritana, Paine sugeriu que: ... um dia será solenemente separado para a proclamação da Escritura; deixe que ela seja trazida à luz, colocada na Lei divina, a Palavra de Deus; que uma coroa seja colocada sobre ela, pela qual o mundo poderá saber que do mesmo modo que aprovamos a monarquia, aprovamos também que, na América, a Lei é o rei.2 Segundo estava bem patente na consciência de Paine, esse conceito tinha uma linhagem fortemente cristã e puritana na América. Nos termos que nós temos definido, ele se qualificaria como “cristão”, pelo menos genericamente e, na proporção que podemos aprovar a idéia da Lei maior, devemos dar aos puritanos e 1
Rousas J. Rushdoony, This Independent Republic (Nutley, N. J.: Craig, 1964), p. 32. Francis Schaeffer também destaca esse principio da “Lex Rex” na história americana, How Shall We Then Live? pp. 109-110. 2 Thomas Paine, "Common Sense", in Loren Baritz, org., Sources of the American Mind, (Nova York: Wiley, 1966), 1:145.
aos seus herdeiros o crédito por estarem entre os principais promotores dela. Ainda que possamos atribuir crédito aos puritanos e a outros calvinistas por promoverem tais idéias, isso não equivale a reconhecer que os conceitos sobre os quais o governo americano estava baseado, eram conceitos essencialmente “cristãos”, em qualquer sentido forte e positivo do termo. Até mesmo no sentido genérico fraco há alguma ambigüidade na identificação do conceito como essencialmente “cristão”. Afinal de contas, o conceito tem outras raízes tais como grega, romana, anglo-saxônica e (como o caso de Paine torna claro) tem raízes também do Iluminismo. Separar o aspecto “cristão” é enganoso, embora a tradição judaicocristã tenha trazido uma contribuição importante e, é bem provável, completamente digna de louvor. Supõe-se, no entanto, que nós examinamos a reivindicação que é mais central para a nossa pesquisa, ou seja, que os princípios básicos sobre os quais o governo dos Estados Unidos foi fundado, eram cristãos no sentido estrito, positivo e avaliador. Além disso, supõe-se que tomamos como padrão — para o que é exatamente consistente com a Palavra e a vontade de Deus — uma compreensão calvinista moderna. Em outras palavras, à parte de que houve algumas influências significativas no governo dos Estados Unidos, influências que foram geralmente calvinistas, estaremos estudando até onde pudermos demonstrar que os alicerces do governo eram exatamente calvinistas. O resultado de tal investigação será descobrir que, na própria raiz da teoria política do século 18 sobre a qual foi fundado o governo dos Estados Unidos, há um ponto de vista sobre a natureza humana claramente anticalvinista. Na verdade, todo pensamento político prevalecente em sua própria época, na América, estava baseado na pressuposição de que a luz natural da razão era suficientemente forte para revelar os princípios eternos da lei de Deus a qualquer pessoa de pensamento reto e sem preconceitos. Parecia que a corrupção causada pela Queda poderia ter atingido a vontade dos homens, mas nem sequer foi levado em
conta ter ela cegado os seus intelectos. Assim, essa posição, que estava na base da teoria americana de governo foi, na verdade, relacionada de modo geral com os ideais da lei maior biblicamente fundamentada, mas ela modificou a versão distintamente calvinista deste ideal em um ponto crucial. À luz da visão sobre a natureza humana na epistemologia prevalecente no século 18 é curiosamente paradoxal que uma das áreas onde existe alguma grande influência calvinista genuína na forma de governo dos Estados Unidos seja na visão da natureza humana refletida na Constituição. Esse paradoxo não pode ser resolvido simplesmente através da sugestão de que a Declaração da Independência, baseada na teoria da lei natural otimista, representava uma tradição de pensamento diferente e menos exatamente cristã do que a Constituição edificada sobre a pressuposição da depravação humana. Os pensadores políticos americanos do século 18 eram de fato absolutamente unânimes em suas pressuposições fundamentais a respeito deste ponto. Diversos indivíduos, por exemplo, como Thomas Jefferson e John Witherspoon, para citar o mais “iluminista” e o mais calvinista dos grandes personagens históricos, concordavam em que os homens, por natureza, tinham, essencialmente, capacidades inatas seguras para apreenderem a verdade, tanto no mundo físico como na esfera da moralidade. Tanto Jefferson como Witherspoon foram influenciados por estes pontos de vista pregados pelos filósofos do Iluminismo escocês, tais como Francis Hutcheson e Thomas Reid. E verdade que James Madison, um aluno de Witherspoon — enquanto compartilhava de tal epistemologia otimista como outros pais fundadores da América — tinha uma compreensão maior do que Jefferson sobre a tendência para as paixões de interesse próprio ou de interesse faccioso para cegar as pessoas na aquisição da verdade. A Constituição dos Estados Unidos, modelada consideravelmente por Madison, reflete esse ponto de vista. Quando em “Federalist 10” Madison descreve uma facção como cidadãos “que estão unidos e
estimulados por algum impulso ou paixão comum, ou de interesse, contrário aos direitos de outros cidadãos",1 ele está refletindo alguma coisa do quadro calvinista-agostiniano do impulso direcionador nas civilizações do mundo. Embora algumas outras tradições tenham contribuído para essa visão, o Puritanismo foi o movimento que, provavelmente, mais teve relação com a proeminência desta visão na cultura americana. Na verdade, na cultura ocidental, a Bíblia é provavelmente a fonte principal (embora não a única) desta descrição da insuficiência humana. Assim, a contribuição cristã calvinista neste ponto é absolutamente positiva. Apesar disso, as mesmas qualificações aplicam-se aqui no que concerne aos conceitos da Lei maior. Dizer que há uma contribuição cristã calvinista para uma idéia não é dizer que a versão secularizada desta idéia é “cristã”, além de um mero sentido genérico. Uma das formas mais comuns de secularização ocorre quando um conceito corretamente cristão mistura-se com um outro princípio totalmente estranho. O resultado deste amálgama pode bem não ser adequado ou consistentemente cristão, ou pode sê-lo apenas fracamente. Esse foi o caso ocorrido com a visão a respeito da depravação humana, na teoria política americana do século 18. Tratava-se de uma visão atenuada desta depravação e, de fato, estava condenada a uma breve existência como base de uma forma de governo claramente secularizada. Pelo menos na atmosfera progressiva e romântica da cultura americana do século 19, o dogma da bondade e segurança essenciais das percepções humanas logo suprimiram o senso das limitações da vontade humana. Quaisquer que sejam as contribuições cristãs positivas neste ponto, permanece o fato de que uma visão da autonomia humana absolutamente anticalvinista foi um dos principais fatores que ocuparam o centro da teoria política americana primitiva e, muito em breve, tornou-se 1
James Madison, “Federalist nº 10” in Baritz, Sources of the American Mind, 1:186.
uma idéia dominante. Quando falamos das influências puritanas sobre os conceitos americanos de Lei maior e da depravação humana, estes mesmos requisitos também são necessários quando falamos das contribuições puritanas para a democracia. Existem simplesmente muitíssimas outras fontes para isso ser alguma coisa, mas é confuso falar de um desenvolvimento basicamente “cristão”, até mesmo em um sentido genérico. Apesar disso, é clara a evidência de que os puritanos estavam entre as principais forças que apoiaram o crescimento da democracia na América. Embora os primeiros colonos tenham se oposto à democracia, em princípio, baseados na idéia de que uma vez que Deus tinha ordenado governantes, o poder de governo residia nos mesmos e não no povo. Eles, no entanto, defenderam o governo representativo com base em que, originalmente, “é no povo, em quem, fundamentalmente, todo poder está”, embora entregue ele esse poder quando escolhe seus representantes".1 O governo eclesiástico puritano incorporou os mesmos princípios representativos. De qualquer forma, era uma tendência forte, típica do Protestantismo, de mover-se do simples autoritarismo para a democratização do poder-base da sociedade. Além do mais, o Puritanismo era aliado do partido do Parlamento contra os reis e os bispos. Essa tradição anti-autoritária do fim do século 17 fundiu-se com a política dos Whig e continuou a atuar no século 18, na tradição influente dos “Homens da Commonwealth”. Estes escritores dissidentes e partidários do livre-arbítrio, argumentando com base nos direitos naturais, na moralidade e no Cristianismo, opuseram-se tanto à tirania eclesiástica quanto à tirania política e sustentaram a necessidade de fiscalizar o poder executivo corrupto, pela afirmação vigorosa dos direitos do povo. Na América, essa fusão das tradições whig e puritana foi 1
John Cotton, “An Expositian upon the 13th Chapter of Revelation” (Londres, 1656) in The Puritans: A Sourcebook of their Writings, I., Perry Miller e Thomas H. Johnson, org., (Nova York: 1963 [1938]), p. 213.
amplamente aceita como a norma política auto-evidente, tanto na Nova Inglaterra como em outras partes. Assim, por exemplo, nós encontramos um congregacionalista tão liberal como John Adams, começando seus ataques ao domínio britânico através de uma amarga denúncia da “confederação perversa entre dois sistemas de tirania”, a lei canônica e feudal".1 Semelhantemente, até mesmo os calvinistas mais rigorosos tinham, nesta época, aceitado inteiramente os princípios lockeanos do governo representativo que eram padrões do século 18. Logo, não pode haver dúvida de que o Puritanismo deu uma grande contribuição ao crescimento do pensamento democrático americano. Apesar disso, tão logo cheguemos a essa conclusão, as ambigüidades comuns surgem, se tentarmos mudar a base de nosso discurso para falarmos a respeito dos alicerces adequadamente “cristãos” da política americana. No desenvolvimento da teoria democrática americana, como nos casos das questões previamente mencionadas da Lei maior e da depravação humana, o problema central é a tendência epistemológica de quase todo pensamento do século 18. A questão fica mais clara se voltarmos à observação de que até mesmo muitos dos calvinistas mais rigorosos, na América, aceitaram as tradições lockeanas e whig dos “Homens da Commonwealth” do século 18, como ortodoxia política. A razão para a sua inteira aceitação desta tradição da Lei essencialmente natural foi que eles haviam perdido todo forte senso de que a razão, para o cristão e para o não-cristão apontará, freqüentemente, para direções diferentes. Afirmando, pelo contrário, a total validade das conclusões honestas do intelecto natural, eles podiam adotar prontamente a sabedoria política secularizada da época, como completa e corretamente “cristã”. Essa identificação da política dos whig como cristã, em um sentido avaliador positivo, foi particularmente plausível porque a tradição era verdadeiramente 1
John Adams, “A Dissertation on the Canon and the Feudal Law” (1765), in Baritz, org., Sources of the American Mind, 1:115.
cristã no sentido genérico do termo. O resultado foi que na época da Revolução Americana não havia nenhuma linha de pensamento político distintamente “cristão” em oposição a um pensamento político secular. Tudo era cristão, e também nada o era. Os patriotas calvinistas ortodoxos americanos, de maneira concorde, compartilharam de uma única ortodoxia política com os Thomas Paines, Thomas Jeffersons e Ethan Allens de seus dias. Somente quando o assunto chegou a questões de “religião” estreitamente restritas é que apareceram diferenças nítidas. O fenômeno da falta de um pensamento político distintamente “cristão” e, além disso, de uma disposição para considerar os pontos de vista políticos seculares contemporâneos como essencialmente cristãos, revela uma característica do processo de secularização que foi notado em outras relações. Quando a secularização começa a ocorrer ela não toma necessariamente a forma de limitação de áreas atingidas pelo Cristianismo, mas pode muito bem envolver a aparente expansão de tais áreas.1 Neste caso, a base da expansão é uma vez mais a concessão epistemológica aparentemente generosa que admite a validade da razão humana e do bom senso, sem nenhum outro auxílio. O resultado é um tipo de imperialismo ideológico cristão no qual emblemas cristãos são hasteados em todo o território do pensamento político do dia. Por conseguinte, quando a Revolução Americana irrompeu, o clero calvinista estava entre os primeiros a identificar os princípios da causa americana com uma revelação divina. Típica da identificação extravagante abundante é essa que veio de um púlpito da Nova Inglaterra, em 1777, informando a congregação que a Revolução foi: 1
Sobre esse ponto devo a análise a Nathan O. Hatch, The Sacred Cause of Liberty: Republican Thought and the Millennium in Revolutionary New England (New Haven: Yale University Press, 1977). Hatch por sua vez cita Ernest H. Kantorowicz, The King’s Two Bodies: A Study in Political Theology (Princeton: Princeton University Press, 1957), pp. 207-232 como fonte das observações sobre a secularização, Hatch, “Revolution and Religion: The Impact of Republican Thought Upon New England Millennialism. 1770-1800, apostila não publicada, notas, p. 3.
... a causa da verdade, contra o erro e a falsidade; a causa da justiça contra a iniqüidade; a causa dos oprimidos contra os opressores, a causa da religião pura contra o fanatismo, a superstição e a invenção humana... Em suma, é a causa do céu contra o inferno.1 Tais sentimentos trazem-nos ao centro do assunto com respeito às origens “cristãs” da América porque, de fato, em meio a tal retórica nasceu a notória religião civil americana. Nesta religião civil, o Estado tornou-se o objeto de culto, apesar disso a linguagem usada para descrever o Estado era extraída das Escrituras. Mais precisamente, a tipologia histórico-redentora que os puritanos haviam aplicado ao seu próprio empreendimento era agora transferida para a instituição secular americana. O mesmo processo que havia obscurecido as distinções entre a teoria política cristã e a não-cristã, no século 18, permitiu a eliminação da distinção entre história secular e sagrada, na mente dos americanos. Assim, no pensamento americano do século 19, tornou-se comum referir-se à América como uma terra há muito oculta, mas agora revelada para ser o palco no qual o último ato da história da redenção seria iniciado. Conforme colocou Lyman Beecker, em um contexto que se refere explicitamente à aproximação do milênio: Mas onde poderia tal nação ser encontrada? Precisou ser criada porque não tinha existência sobre a terra. Observe agora a história de nossos pais e eis o que Deus construiu: ...uma nação poderosa em pleno gozo de liberdade civil e religiosa, onde todas as energias dos homens ... encontram oportunidade e entusiasmo no propósito de mostrar ao mundo, por experiência, o que o homem é capaz de fazer.2 1
Abraham Keteltas, “God Arising and Pleading His People’s Cause (Newburyport, Mass.: 1777). p. 30, citado em Hatch, Sacred Cause, p. 61. 2 Lyman Beecher, conforme citado de uma mensagem de 1827 em Winthrop Hudson,
Tal retórica, que confundiu os Estados Unidos tanto com o Israel antigo quanto com o reino milenar, foi um ingrediente poderoso no nacionalismo americano ascendente. As distorções envolvidas tornaram-se particularmente aparentes em tempo de guerra — especialmente na Guerra Civil, quando o Cristianismo tornou-se a principal arma retórica da campanha para salvar a união política. Durante aquela guerra, a canção mais popular da União proclamava que “sua verdade prossegue em marcha”, mas os fatores culturais secularizados dirigiam a melodia e impunham o passo: As Escrituras apenas supriam as palavras.
A Influência Moral do Calvinismo Enquanto o desenvolvimento político americano, tomado como um todo, produziu muitas influências “cristãs” e calvinistas — embora não nos permita concluir que houve, em certa ocasião, uma América adequadamente cristã —, existe pelo menos mais uma grande área onde um debate pode ser feito em favor da versão de uma tal conclusão. Essa é a área da influência moral geral que ajudou a criar cidadãos respeitadores da lei e dotados de uma forte consciência. Sidney Alhstrom chega a ponto de sugerir que essa foi a principal contribuição do Puritanismo para a democracia americana, quando “o Puritanismo quase criou um novo tipo de pessoa cívica".1 Embora as relações exatas sejam, naturalmente, impossíveis de ser documentadas definitivamente, parece que os americanos estavam geralmente bem dispostos a obedecer a lei civil, a agir conforme as regras do processo democrático e a considerar Religion in America: An Historical Account of the Development of American Religious Life, 2ª ed. (Nova York: Scribner, 1973 [1965]), pp. 112-113. 1 Sydney Ahlstrom, “Thomas Hooker — Puritanism and Democratic Citizenship: a Preliminary Inquiry into some Relationships of Religion and American Civic Responsibility, Church History, vol. 32, nº4 (Dezembro de 1963), p. 423.
suas ações e também as dos outros sob o juízo retrospectivo moral. Essas disposições podem ser traçadas, pelo menos em parte, até às ênfases puritanas sobre a Lei de Deus como base fundamental de sua própria sociedade. Para os puritanos, tal ênfase envolvia não somente a idéia de que o governo estava sujeito à Lei maior, mas também que todos os cidadãos estavam obrigados a guardar a Lei de Deus. A Lei, dita Escritura, era um mestre que preparava pessoas para a regeneração; por isso, parecia um serviço valioso que o Estado poderia requerer que todos os cidadãos guardassem a Lei. Além disso, visto que os termos da aliança estipulavam que a sociedade seria abençoada ou amaldiçoada por Deus, dependendo de sua obediência à Lei moral, cada cidadão tinha, ele próprio, um motivo forte para guardar a Lei e encorajar seus vizinhos a fazer o mesmo. Desde que a Lei de Deus foi o mestre para a Nova Inglaterra, e a Nova Inglaterra, em grande medida, foi o mestre para a América, os americanos, na tradição puritana, na verdade, pareceram ter tido um senso de responsabilidade cívica e moral incomum e internalizado, altamente desenvolvido. Essa consciência genericamente “puritana”, de fato, ainda provê um aspecto importante da explicação das eras periódicas de reforma que moldaram a história social e política americana. Tais reformas parecem normalmente ter tido uma liderança de classe média que não poderia ser explicada em termos de interesse particular próprio dessa classe. O movimento antiescravidão, por exemplo, teve uma forte liderança yankee que via o progresso de toda a nação retardado pelos pecados de seus membros sulistas. Semelhantemente, embora as expressões que usavam fossem termos um tanto mais secularizados, o movimento progressivo do fim do século 19 e do início do século 20 deve ser explicado, pelo menos em parte, em termos diferentemente confortáveis da má consciência da classe média. Tais atitudes podem ser relacionadas com uma atitude puritana
geral para com a cultura, melhor resumidas através do conceito de “chamado”. Como era geralmente verdade a respeito dos calvinistas, os puritanos enfatizavam que as responsabilidades espirituais de alguém não eram confinadas à Igreja ou à vida devocional. Pelo contrário, em cada aspecto das atividades de alguém, até mesmo as mais mundanas, esse indivíduo era chamado para glorificar a Deus. Daí as responsabilidades do indivíduo para com a sociedade — e.g., participar na esfera política e fazer com que a justiça fosse feita — eram parte da vocação espiritual de uma pessoa. De modo semelhante, o trabalho de alguém, quer fosse pastor de ovelhas de verdade ou pastoreasse o povo de Deus, era uma tarefa sagrada. Novamente, na medida em que estes ideais refletissem motivos corretos, nós, calvinistas posteriores, os aprovaríamos como adequadamente cristãos. Ironicamente, no entanto, os calvinistas deveriam ter provavelmente menos prazer do que a maioria das outras pessoas com respeito ao grande alcance do impacto de tais ideais puritanos, na formação da cultura americana. O senso de responsabilidade moral, quando aparece como uma característica americana, aparece de uma forma predominantemente secularizada. Ou seja, trata-se de um sentido moral separado do Evangelho da graça. A ironia envolvida talvez seja mais clara com respeito à ética do trabalho. O protótipo da expressão deste impulso tipicamente americano é Benjamin Franklin. A moralidade tem, na verdade, uma linhagem puritana; mas sua expressão atual é uma justiça de obras separada da obra da graça de Cristo. Semelhantemente, a moral e os impulsos de reforma na sociedade americana têm, em sua forma secularizada, o caráter de uma religião de moralismo. A nação acredita-se, salvarse-á a si mesma por suas próprias obras de justiça; tal fervor moral torna-se freqüentemente um fim em si mesmo. Os exemplos mais claros são encontrados nas versões secularizadas do próprio Protestantismo americano — tais como o Unitarismo — nos quais a religião tornou-se moralidade. O Calvinismo, na verdade, ajudou a
criar tais tradições mas, em suas versões secularizadas, a descendência da ética calvinista vem a ser, no máximo, a justiça das obras do Pelagianismo ou, até mesmo, do mero moralismo secular. Mesmo assim, os defensores de um ponto de vista mais positivo a respeito das contribuições dos puritanos à moralidade americana poderiam apontar para o fato de que muitos cristãos americanos nunca dobraram os seus joelhos ao Baal do modernismo, com exceção do Unitarismo, e que entre muitos protestantes conservadores, ainda encontrados na América, sobrevive até agora uma ética protestante saudável. Afinal de contas, no fim da década de 1970, um terço dos americanos, segundo a opinião geral, alegavam ter passado pela experiência do novo nascimento. Apesar disso, o evangelicalismo, pelo menos desde cerca de 1870, provê pouco auxílio para a nossa pesquisa sobre a continuação de uma influência calvinista verdadeiramente positiva na cultura americana. O evangelicalismo secularizou-se a si mesmo na América e, do modo como o fez, alguns dos aspectos centrais da tradição ética calvinista estavam entre os principais desastres. O evangelicalismo e o fundamentalismo modernos tenderam a deslocar o foco do Cristianismo da soberania de Deus para a experiência pessoal humana. De modo geral, o resumo da experiência cristã foi descrito em termos de um ato especial de consagração, no qual alguém desistiu de si mesmo (como no caso de “entregar tudo no altar”) e permitiu que Cristo ou Espírito Santo tomasse o controle. Aqueles que assim se consagraram a si mesmos conseguiram o que eles consideravam ser uma vida na qual gozavam, pelo menos, de uma vitória consistente sobre o pecado. A sensibilidade espiritual, a preocupação com a santidade e o zelo evangelístico associado com essa posição, certamente têm sido reconhecidos com freqüência admirável. No entanto, tais tendências perfeccionistas ou semiperfeccionistas, no evangelicalismo americano, freqüentemente envolveram a diminuição das áreas relativas à santificação. A vida cristã passou a envolver principalmente atividades “espirituais”,
devoções especialmente pessoais, testemunho sobre a experiência particular de alguém e o evitar determinados sintomas específicos de mundanismo. Também tendeu a ser fortemente individualista com relativamente pouca compreensão dos chamados ou responsabilidades de corpo. Um outro aspecto crucial da ética puritana calvinista perdeu-se nesta ética evangélica tipicamente americana. Essencial à visão puritana, e certamente uma das grandes fontes de virtude de todo o seu modo de vida, era um senso de incapacidade até mesmo do cristão em servir perfeitamente a Deus. Por isso, a vida puritana era caracterizada por um auto-exame contínuo e por um forte senso de indignidade própria diante da santidade de Deus. Tal senso de suas próprias limitações servia como lembrança da necessidade de lançar-se inteiramente na graça de Deus. Esse senso de limitação foi um aspecto essencial da ética puritana e uma oposição importante às pretensiosas tendências daqueles que se consideravam a si mesmos como escolhidos de Deus. Isso se aplicava até mesmo ao seu conceito de nação, de modo que a autoconfiança era limitada pelo reconhecimento de indignidade, conforme se pode constatar na imensa literatura jeremíada (de lamentação) que lamenta o declínio das sociedades puritanas. Esse senso de limitação diante de Deus era, no entanto, um aspecto da ética puritana que não poderia ser facilmente perpetuado no processo de secularização. Esse afastamento do ponto de vista calvinista a respeito da natureza humana, quase completado na metade do século 19, logo transformou a ética da maioria dos herdeiros evangélicos do Calvinismo. Embora o evangelicalismo e o fundamentalismo americanos tenham preservado e proclamado muito do Evangelho, esses movimentos agiram paradoxalmente como uma força contrária a uma das influências mais positivas do Calvinismo sobre os ideais morais dos cristãos na América. Ironicamente, por esse padrão calvinista, o próprio evangelicalismo tornou-se uma das fontes da destruição das influências cristãs positivas na América — um fato
que os intérpretes evangélicos tanto lamentam.
Por que não existem Culturas Cristãs Que é que sobra então do mito das origens “cristãs” da América? No aspecto positivo, vemos que os puritanos aproximaram-se da execução da tarefa de construção cultural com alguns princípios verdadeiramente excelentes e muitos motivos aparentemente bons. Portanto, o Cristianismo parece ter tido influências positivas na cultura da antiga Nova Inglaterra. Tal reivindicação, no entanto, é consideravelmente menos do que dizer que a cultura era essencialmente “cristã” num sentido rigoroso ou até mesmo do que dizer que ela tinha base essencialmente “cristã”. A razão pela qual os puritanos e todos os grupos semelhantes, na História não conseguiram estabelecer uma “cultura cristã” parece clara, embora os defensores da “cultura cristã” pareçam ignorá-la. Na base de toda cultura humana existe um grupo de valores “religiosos” compartilhados que ajudam a manter a sociedade unida. Estes valores não são simplesmente os valores da religião oficial organizada da cultura (embora normalmente tal religião sustente fortemente tais sistemas de valores), são porém aqueles ideais ou coisas que as pessoas de uma cultura valorizam extremamente, e com as quais elas estão comprometidas e pelas quais estariam dispostas a morrer. Muitas das características desta “religião” central de uma cultura refletem diretamente os valores que predominam na natureza humana decaída. Assim, por exemplo, um fator universalmente reconhecido como o maior valor para manter as culturas unidas é o orgulho pecaminoso. Esse orgulho pode ser manifestado através de várias maneiras possíveis, porém, entre as formas mais comuns estão o tribalismo, o racismo, o nacionalismo e o orgulho pela classe ou status que alguém usufrui. Cada um deles pode tornar-se uma maneira de convencer um povo de que ele é
inerentemente superior aos outros povos e, portanto, pode tratar os outros como inferiores e, até mesmo, como sub-humanos e dignos de desprezo e até mesmo de abuso. Semelhantemente, qualquer cultura humana se mantém unida pelos simples valores de interesses egoístas compartilhados. Colocar-se a si mesmo e o seu próprio grupo em primeiro lugar é, de fato, quase que a premissa básica sobre a qual estão baseados todos os governos humanos. Outros valores amplamente defendidos, encontrados em quase todas as culturas, são o materialismo, o amor ao poder e o amor à violência. Conquanto as culturas poderiam manter-se unidas por outros valores — tais como amor ou respeito pelos mais velhos, respeito à lei, amor à virtude —, a maioria dos valores amplamente sustentados, valores relativos à natureza humana, acabam por ser diretamente opostos ao Cristianismo. O que acontece, então, quando o Cristianismo é introduzido em larga escala em tal cultura? Em primeiro lugar, se a “cristianização” é mais do que mera formalidade, muitas pessoas em meio à civilização podem viver vidas radicalmente transformadas pela graça de Deus. Se isso significa que o pecado é erradicado das vidas de tais santos que controlam o governo, a sociedade pode ser transformada em algo razoavelmente cristão, no sentido mais restrito possível, exceto em algumas áreas omitidas por causa de manchas escondidas, má informação, preconceitos da época e outras coisas semelhantes. No entanto, em nenhuma sociedade de qualquer tamanho que seja, a esmagadora maioria dos cidadãos foi ou é composta de cristãos radicalmente comprometidos com a fé. Além do mais, até mesmo os maiores santos fracassaram em vencer totalmente pecados tais como o orgulho e o interesse próprio e, freqüentemente, fracassaram até mesmo diante do materialismo, do amor ao poder e do amor à violência. Assim, uma civilização, ainda que possa contar com muitos cristãos verdadeiros, manifestará essas características humanas universais. A introdução do Cristianismo, na verdade, melhorará a civilização, desde que muitas pessoas e
algumas atividades culturais e instituições resultantes sejam modelados pelos ideais mais ou menos afinados com a vontade de Deus. Assim, ao lado das tendências pecaminosas patentes no núcleo de uma civilização, podem existir outras tendências positivas importantes para as quais o Cristianismo contribuiu. Hendrikus Berkhof, por exemplo, argumentou que a vinda de Cristo trouxe um novo conceito sobre a importância do sofrimento e da opressão na cultura ocidental. “Uma cena comum de rua, tal como uma ambulância fazendo parar o trânsito porque um homem ferido precisa ser socorrido é o resultado da vinda do Reino”. Essas observações e outras similares sobre o impacto do Cristianismo na cultura têm considerável credibilidade. Não obstante, é importante enfatizar, como o faz Berkhof, que estes são os prenúncios do Reino. “Eles são os temperos no inverno de um mundo decaído".1 O Cristianismo, de vez em quando, transforma aspectos da cultura; todavia, em grande medida ou no correr do tempo, tal transformação será severamente limitada por outras forças que agem na base de uma sociedade. As vitórias, embora reais, serão quase sempre ambíguas, uma vez que, em muitos casos, o Cristianismo sofrerá o amálgama de várias forças anticristãs que distorcem os fundamentos de qualquer sociedade. Tais ambigüidades tornam-se particularmente fortes se a sociedade vier a considerar-se a si mesma como mais ou menos oficialmente “cristã”. Em tais casos, o emblema do Cristianismo servirá como rótulo pespegado a uma cultura que retém algumas características essencialmente anticristãs. A cultura puritana, então, não obstante todos os seus méritos, dificilmente poderia ser qualificada como um modelo de cultura cristã para ser imitada por nós. Isso de modo nenhum é para condenar os puritanos, porque de muitas maneiras eles são um exemplo atraente e bem sucedido de aplicação do Cristianismo às 1
Hendrikus Berkhof, Christ and the Meaning of History (1962; ed. reimpr., Grand Rapids: Baker, 1979), pp. 88, 181.
suas atividades culturais. Mas, exatamente por causa deste grau de sucesso, eles são um exemplo excelente dos limites inerentes à tentativa de estabelecer uma cultura cristã modelo. Que podemos dizer, então sobre as influências “cristãs” positivas na cultura além do fato de ela fazer bem aos indivíduos? Certamente há amplas e boas influências como, por exemplo, quando a vida das famílias é melhorada, a caridade é praticada, os pobres recebem cuidados, os altos padrões morais são apreciados, leis justas são aprovadas, a dignidade pessoal é adequadamente valorizada, as minorias e os estrangeiros são vistos como pessoas à imagem de Deus — tudo isso por causa do entendimento mais ou menos correto da Palavra e da vontade de Deus. Todavia, tais influências não resultam automaticamente da presença de cristãos aparentemente sinceros em uma cultura.. A relação entre o número de cristãos e a sociedade e os resultados culturais positivos da mesma nunca foram dados fáceis de ser equacionados. Freqüentemente, as influências positivas, de fato, não parecem predominar. Para resolver estes aparentes paradoxos será útil usar a imagem do sal da terra, empregada por Jesus. Isso é, o Cristianismo age como um elemento retardador das tendências naturais presentes nas culturas edificadas sobre a natureza humana decaída, desacelerando o processo de sua deterioração. Tais influências cristãs nem sempre são óbvias, mas podem ser cruciais. Essas observações têm implicações importantes não somente para a avaliação das influências cristãs, no passado, como também para a nossa própria tarefa cultural hoje. Certamente, se falamos, como muitos calvinistas o fazem, da transformação que H. Richard Niebuhr descreveu quando falou de “Cristo, o transformador da cultura”, devemos fazê-lo com uma visão realista da natureza limitada e freqüentemente ambígua das realizações cristãs, nos feitos do passado. Também devemos lembrar que nós, por nós mesmos, provavelmente, não temos os esquemas para o
estabelecimento do Reino dos céus na terra. Deveríamos reconhecer que não somos melhores aprendizes da vontade de Deus do que o foram os puritanos e que não estamos mais isentos de erro, ao interpretá-la, do que eles estavam. O relacionamento entre o Cristianismo e a cultura é sempre recíproco. A cultura transforma o cristão, ao mesmo tempo em que o cristão transforma a cultura. Por isso, quando assumimos nossa responsabilidade para a “transformação da cultura”, deveríamos fazê-lo com uma igual apreciação pelo ponto de vista que Niebuhr descreve como “Cristo e cultura em paradoxo".1 Apesar disso, a combinação destes pontos de vista não reduz a urgência ou a necessidade de nossa tarefa cultural. Quando nada, deveríamos usar tais obrigações para aplicar nosso Cristianismo a todas as áreas da vida, até mesmo mais urgentemente. Todavia, quando o fazemos, deveríamos reconhecer que os efeitos positivos do Cristianismo são basicamente aqueles que atenuam fundamentalmente o caráter distorcido da vida cultural humana. Embora os princípios do Reino sejam antecipados pela vida cristã nesta era, coisa alguma, ainda que vagamente semelhante à realidade global do Reino no progresso da cultura, deve esperar uma outra época.
1
H. Richard Niebuhr, Christ and Culture (Nova York: Harper and Row, 1951), pp. 149222. Sou igualmente grato ao Professor C. T. McIntire do Instituto para Estudos Cristãos de Toronto, por uma valiosa análise crítica dessas questões. Diversos membros do corpo docente do Calvin College também contribuíram com úteis conselhos. Fico especialmente grato ainda ao Proiessor Harry Stout por diversas boas sugestões.
Os lrlandeses-escoceses na América C. Gregg Singer - Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
C. Gregg Singer é Professor de História da Igreja e Teologia Sistemática na Atlanta School of Studies. Graduou-se no Haverford College (B.A.) e pela Uníversity of Pennsylvania (M.A. e Ph.D.). Foi chefe dos Departamentos de História no Salem Coilege e no Wheaton College; foi Vice-Presidente e Chefe do Departamento de História no Belhaven College; Chefe do Departamento de História no Catawba College, antes de aposentar-se em 1977, época em que assumiu sua atual posição. Escreveu: A Theological Interpretation of American History; John Calvin: His Roots and Fruits; A Critical Study; The Unholy Alliance; From Rationalism to Irrationality; A Christian Approach to Philosophy and History; South Carolina in the Confederation: 1781-1789 e, em co-autoria com o comandante Russel Evans, a obra The Church and the Sword.
CAPÍTULO 12
OS IRLANDESES-ESCOCESES NA AMÉRICA
Dentre todos os grupos étnicos e nacionais que vieram à América durante o período colonial, os irlandeses-escoceses foram os mais penetrantes em sua influência sobre o desenvolvimento das colônias onde se estabeleceram. Eles constituíram um fator principal na formação do caráter do Presbiterianismo americano. Eles não apenas eram os mais numerosos, mas também suas colônias estavam mais disseminadas estendendo-se do Maine à Geórgia, já em 1750. Embora os irlandeses-escoceses fossem poucos em número em grande parte da Nova Inglaterra, eles se concentraram fortemente em Nova York e tornaram-se uma voz dominante na vida colonial da Pensilvânia, Nova Jersey, Maryland, Virgínia e nas Carolinas. Os puritanos estavam confinados à Nova Inglaterra em sua maioria; os holandeses estavam amplamente centralizados em Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia; os suecos estavam no Vale Delaware; e os quakers estavam na Pensilvânia, Nova Jersey e Delaware. Embora os alemães rivalizassem com os irlandeses-escoceses em suas peregrinações, eles não eram tão numerosos e tendiam a concentrarse na Pensilvânia, Nova York, Nova Jersey, no Vale de Virgínia e na área piemontesa da Carolina do Norte e do Sul. Os alemães igualmente representavam estirpes diferentes de teologia e prática protestantes. Vários dos grupos alemães tinham uma perspectiva pietista e preferiam manter-se afastados das principais tendências da vida colonial. Dessa forma, os alemães nunca foram capazes de exercer a influência que os irlandeses-escoceses tiveram no período colonial e nos primórdios do período nacional da história
americana. Na verdade, nas colônias como um todo, a influência dos irlandeses-escoceses excedeu, amplamente a dos puritanos, dos alemães, dos franceses esparsos e dos mais concentrados holandeses; eles logo rivalizaram com a influência dos ingleses. Dentro de bem poucos anos após a chegada dos irlandesesescoceses nas colônias, estes se tornaram uma força que os governantes coloniais não podiam ignorar. Por volta de 1776, eles constituíam uma voz importante que clamava por independência da pátria-mãe. Os irlandeses-escoceses desempenharam um papel ainda mais importante na constituição da tradição presbiteriana americana. Num sentido bem real, eles logo se tornaram o espírito e a vida do Presbiterianismo americano. É bastante duvidoso se o Presbiterianismo teria se tornado a força vital que tem sido no Cristianismo americano se os irlandeses-escoceses não tivessem chegado nessas plagas em número suficiente para dar vitalidade à obra presbiteriana que ainda lutava por estabelecer-se. Sua influência penetrante conquistou estima no Presbiterianismo pelo fato do Presbiterianismo ser a única religião que esses colonos conheciam. Dizia-se que se um colono irlandêsescocês era religioso ao chegar nas colônias, ele era um presbiteriano. Os colonos ingleses podiam ser anglicanos, puritanos ou quakers, e os alemães podiam ser reformados, luteranos ou pietistas; mas os irlandeses-escoceses, como nenhum outro grupo das colônias, eram adeptos de uma única teologia e organização eclesiástica, e essa adesão deu-lhes um alto grau de unanimidade de expressão em sua vida política e religiosa. Entretanto, não se pode explicar a influência dos irlandesesescoceses somente dessa forma. A combinação do caráter escocês e do irlandês em Ulster produzira a cepa vigorosa que seria necessária para conquistar a fronteira colonial que, para a maioria deles, seria
seu lugar desde a chegada. O vasto sertão da fronteira foi poucas vezes penetrado antes de sua chegada e esperava por eles para ser conquistado. Em contraste, os puritanos satisfizeram-se em permanecer nos limites um tanto estreito da Nova Inglaterra; os holandeses se estabeleceram ao longo do litoral; os quakers na Pensilvânia oriental, Nova Jersey e Maryland; e os católico-romanos em Maryland. Os alemães, em sua maior parte, preferiram manter-se isolados e, dessa forma, preservar suas diferenças culturais e religiosas. Eles o fizeram de tal modo que sua influência sobre o desenvolvimento religioso e político das colônias foi um tanto fraca.
Os Irlandeses-escoceses: Por que vieram? Os historiadores geralmente concordam em que havia duas causas básicas para as migrações continuadas dos irlandesesescoceses de Ulster, na Irlanda do Norte, para as colônias americanas durante o século 18: a político-religiosa e a econômica. Os fatores que subjazem a esse movimento de forma nenhuma eram exclusivos das migrações de irlandeses-escoceses. As mesmas causas básicas trouxeram os Peregrinos a Plymouth e os puritanos à Nova Inglaterra, os alemães às colônias centrais e os huguenotes para várias colônias, ao longo da costa atlântica. A perseguição religiosa foi claramente um fator influente em todas essas migrações; desgraças econômicas, em vários níveis, também desempenharam seu papel. Somente uma urgência máxima poderia ter produzido tal migração indiscriminada da Irlanda para o novo mundo, como a imigração dos irlandeses-escoceses. Os fatores econômicos indubitavelmente participaram da urgência deles em sair, mas só estes fatores não podem ser considerados como uma explanação satisfatória para esse movimento migratório em massa. Interpretar só dessa forma tais eventos da História seria um grande erro. O
determinismo econômico é uma filosofia da História amplamente defendida nos círculos acadêmicos de nossos dias, mas leva a sérias distorções de nossa interpretação do passado. No século 18, as motivações religiosas ainda eram uma força dominante na vida da Europa. No caso dos irlandeses-escoceses essas motivações provaram ser de um significado peculiar, só igualado pela ameaça econômica da situação da Irlanda, como razão para justificar sua disposição em deixar a terra natal e ir para as fronteiras da América. É difícil para vários historiadores modernos entenderem a força instigadora do desejo de liberdade religiosa como uma explicação para tal migração, mas os registros não deixam dúvida sobre a importância desse desejo, que ardia flamejantemente nos corações irlandeses-escoceses. Sua história, ao se estabelecerem nas colônias, prova que esse foi um fator de primeira importância. As raízes da migração encontram-se nos esforços de James I, da Inglaterra, em criar um grande assentamento de presbiterianos escoceses na Comarca de Ulster, na Irlanda do Norte. Seu propósito era o de trazer estabilidade e ordem política a essa parte de seu reino. Sua política era elogiável, mesmo parecendo estar além da compreensão da mentalidade do século 20, à luz do tumulto que de fato resultou de seus esforços bem-intencionados. A favor da iniciativa de James devemos ter em mente que Ulster fora o desespero dos monarcas da dinastia Tudor que o antecederam e James acreditava que estes camponeses um tanto indisciplinados, sobre quem ele reinara na Escócia, poderiam muito bem ser a solução para seus difíceis problemas em ambos os países. A qualidade dos que eram escolhidos para cumprir essa missão era a mais alta. Entretanto, é também verdade que o plano de conceder a estes imigrantes uma fazenda, por um período de vinte e um anos, atraiu um grande número de aventureiros para Ulster. Quando os imigrantes escoceses chegaram à Irlanda, defrontaram-se com uma situação de crises — religiosa, política e econômica — que fez desvanecer-se seu entusiasmo pela aventura, e começaram a
procurar sequiosamente um novo lar nas colônias americanas. Os irlandeses revelaram-se um sério motivo de tribulações para os escoceses em Ulster, mas de forma alguma eram eles a causa única de desilusão. A situação religiosa da Inglaterra, sob Charles I e o Arcebispo Laud, produziu uma grande inquietação, pois a Igreja Anglicana era a Igreja Oficial da Irlanda, mas não era a da Escócia. Quando os governantes da dinastia Stuart, da Inglaterra, procuraram impor o Ato da Uniformidade na Irlanda, surgiram problemas. Em 1641, quando os irlandeses se levantaram contra os irlandesesescoceses, Cromwell utilizou esse tumulto como um excelente pretexto para tentar esmagar tanto os católicos quanto os presbiterianos nessa ilha infeliz. Se Cromwell atiçou as chamas da inquietação religiosa e da dissensão na Irlanda, a política econômica de Charles II acrescentou combustível às chamas. A política de Charles devia-se em parte ao fato de os irlandeses-escoceses terem dado um grande impulso ao desenvolvimento econômico da Irlanda por causa de sua perícia em tecer fibras e mercadorias de linho.1 Em algumas áreas da atividade econômica, a Irlanda estava se tornando um rival tão notável da Inglaterra que Charles II viu-se forçado a tomar uma atitude adequada à defesa dos interesses comerciais ingleses. Dessa forma, o Ato de Navegação de 1663, famoso na história americana, proibiu a exportação de mercadorias irlandesas para as colônias americanas, exigindo que elas, primeiro fossem embarcadas em portos ingleses e só então fossem destinadas às colônias. Esse Ato proibia também a exportação de bens diretamente das colônias para a Irlanda, embora os artigos “enumerados” pudessem ir para a Irlanda, após serem exportados para a Inglaterra. 1
Em 1689 os huguenotes franceses, então exilados de sua terra natal pela Revogação do Edito de Nantes, chegaram na Irlanda para auxiliar os irlandeses-escoceses no desenvolvimento do bem-sucedido comércio de linho.
Essas restrições se tornaram um sério golpe à prosperidade econômica da Irlanda. A rainha Anne aumentou a insatisfação ao reabrir a questão religiosa em 1703, exigindo que todos os funcionários públicos da Irlanda recebessem a Comunhão conforme as práticas da Igreja Oficial. Isso impedia os presbiterianos de serem funcionários públicos. Esse descontentamento atingiu o ápice em função de uma estiagem que perdurou por quatro anos. Um último fator subjacente a essas migrações, que se tornou de importância fundamental para o movimento, importância quase igual à de fatores políticos e religiosos na Inglaterra dos Stuarts, foi o temperamento dos irlandeses-escoceses. Eles eram um povo corajoso e aventureiro, dispostos a suportar perigos e riscos de vida pelas convicções religiosas e políticas que nutriam. A situação em Ulster, por mais penosa que fosse, dificilmente teria provocado tal êxodo, se os imigrantes não estivessem prontos e dispostos a fazer os sacrifícios exigidos por tal aventura. As Migrações Estima-se que entre 1717 e 1775 mais de 250.000 cidadãos de Ulster vieram para as colônias britânicas da América do Norte. Os quatro anos da grande estiagem estabeleceram o cenário da primeira migração, que começou em 1717, com a partida de cerca de 5.000 pessoas para o novo mundo. Essa primeira fase durou cerca de dois anos. Entre 1720 e 1725 muito poucos se sentiram impelidos a deixar a Irlanda. A Irlanda foi mais uma vez assolada por más colheitas e a segunda onda de migração foi posta em movimento em 1725. A perda de população foi tal que preocupou muito o Parlamento. Condições econômicas melhores puseram fim a essa segunda
migração por volta de 1730. Por cerca de uma década houve apenas uma pequena emigração esparsa de irlandeses-escoceses do Ulster para as colônias. Então, em 1740-41 as colheitas pobres trouxeram uma época de fome à Irlanda, resultando na morte de cerca de 200.000 pessoas. O êxodo para as colônias foi renovado. Essa migração foi de tais proporções que os que chegavam na Pensilvânia começaram imediatamente a seguir seu caminho ao longo dos vales Cumberland e Shenandoah, em direção às colônias de Virgínia e Carolina. A propaganda feita pelas colônias provocou outra onda de migrações em 1754 e 1755, que foi encerrada pela irrupção das guerras francesa e indígena, que abafaram o impacto dos relatórios das colônias. Mais quatro anos de outra séria estiagem desencadearam a última grande migração, que começou em 1771 e durou até o inicio das hostilidades da Guerra da Independência.1 Embora se estime em cerca de 250.000 o número de pessoas que vieram durante o período de 1717 a 1775, as estimativas variam muito, não obstante os registros de imigração do período iniciado por volta de 1700 serem muito mais acurados do que os do século 17.2 Numa mensagem proferida no Congresso Irlandês-Escocês, em 1890, J.H. Bryson declarou que um terço da população das colônias era de origem irlandesa-escocesa.3 Essa estimativa parece ser um tanto elevada, se considerarmos a estimativa de 250.000 imigrantes entre 1717 e 1775. Se Leyburn está correto em estimar que os irlandeses-escoceses constituíam cerca de quinze por cento da população em 1790, isso significaria que eles somariam entre 1
Para uma posição um tanto diferente, ver R. J. Dickson, Ulster Migration to Colonial America, 1718-1775 (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1961). 2 Leyburn estima que por volta de 1775 cerca de 200.000 pessoas haviam chegado às colônias e que por volta de 1790 os irlandeses-escoceses totalizavam aproximadamente 15 por cento da população da nova nação. James Leyburn, The Scotch-Irish: A Social History (Chatell Hill, N. C.: University of North Carolina Press, 1962), pp. 180, 183. 3 Scotch Irish in America: Proceedings and Addresses of the Third Congress, (Nashville, 1891), p. 102.
550.000 e 600.000 naquele ano. A afirmação de que, em 1776, eles constituíam um terço da população também levanta outra questão. Como poderia a porcentagem declinar tão drasticamente em quinze anos (1775-90)? Isso somente é possível se aceitarmos a proposição de que o restante da população efetivamente aumentou, ao passo que o número de irlandeses-escoceses ou declinou ou permaneceu estável. Essa parece ser uma posição insustentável. A chegada da paz às colônias, em 1783, não trouxe nenhuma renovação das migrações, e os irlandeses-escoceses nunca mais poderiam reivindicar tal força na população total do país. Todavia, suas contribuições à vida nacional continuariam a ser um importante fator na formação da cultura americana, devido à sua influência predominante nas questões coloniais do século 18. Os irlandeses-escoceses tendiam a se assentar nas fronteiras da América colonial. Por ocasião da primeira migração, a maioria das áreas litorâneas já tinha sido ocupada. Essas áreas mais distantes mostraram-se mais adequadas ao temperamento dos irlandesesescoceses. Seu espírito aventureiro fez deles os primeiros desbravadores da história americana. As terras costeiras do sul com suas grandes plantações não eram muito atraentes aos irlandesesescoceses; por isso eles procuraram as regiões mais ocidentais da Virgínia e das Carolinas para ser seu novo lar.1 Em 1776, eles estavam vivendo em cerca de quinhentas comunidades que existiam em toda a colônia, embora tendessem a se concentrar em algumas
1
O sistema de doação de terras das colônias da Nova Inglaterra provou ser um enorme obstáculo ao assentamento de grandes grupos e o senhorio no Vale do Hudson, em Nova York, ofereceu o mesmo problema. Na Pensilvânia, os Quakers estavam concentrados nos três condados mais ao leste, porém as áreas do centro e do oeste continuavam abertas para eles. Na região norte eles somente podiam fixar residência em Nova Jersey, nas áreas mais colonizadas. Da Maryland à Carolina do Sul (e depois Geórgia), o sistema predominante de cultivo somente lhes deixava disponiveis o Vale de Shenandoah e o Piemonte das Carolinas do Norte e do Sul; foi aqui que eles se concentraram nas colônias do sul.
colônias.1 Havia cerca de setenta desses assentamentos na Nova Inglaterra (incluindo os de Maine), quarenta ou cinqüenta em Nova York, cinqüenta ou sessenta em Nova Jersey, cento e trinta na Pensilvânia e Delaware, mais de cem na Virgínia e Tennessee, cinqüenta na Carolina do Norte e cerca de setenta na Carolina do Sul e Geórgia, a maioria destes na Carolina do Sul. Dentre todos os grupos religiosos que vieram à América durante o período colonial, os irlandeses-escoceses eram os mais disseminados. Foi esse fato que levou William W. Sweet a concluir que por volta de 1776, os presbiterianos tinham as melhores condições para se tornar a maior igreja americana.2 Sua outra observação de que eles não conseguiram tirar vantagem da oportunidade que lhes era oferecida, fica como uma questão aberta. Em termos de números absolutos de adeptos, Sweet provavelmente está correto ao afirmar que outras igrejas eram maiores. Mas, será que números absolutos de membros constituem verdadeiramente uma grande igreja? Sweet parece presumir que esse é o caso aqui. Em termos de sua influência posterior sobre o desenvolvimento político e religioso do povo americano, sua conclusão dificilmente suportaria o teste da verificação histórica. Embora tanto os metodistas quanto os batistas fossem bem mais numerosos, estes não produziram o impacto que os presbiterianos alcançaram. William Penn recebeu cordialmente os irlandeses-escoceses em sua colônia, por isso eles se estabeleceram em grande número nos municípios a oeste dos assentamentos dos quakers. Por volta do fim do século, eles tinham ido da Pensilvânia central para a seção ocidental daquele estado e desceram do Vale Cumberland para Maryland, para o Vale da Virgínia e até as Carolinas. Os sucessores de Penn perderam seu entusiasmo pelo ardor irlandês-escocês e, por 1
William Warren Sweet, Religion on the American Frontier, vol. 2. The Presbyterians. 1783-1840 (Nova York: Harper and Brothers, 1936), p. 4. 2 Ibid., p. 23.
volta de 1756, houve muito atrito entre eles e os líderes dos quakers acerca da apropriação do dinheiro para a defesa das fronteiras ocidentais contra os índios. Os irlandeses-escoceses não tinham muita paciência com a doutrina de não-resistência dos quakers, à vista do uso que os franceses faziam dos índios contra as fronteiras da colônia. Esse conflito deu um impulso maior para o movimento rumo ao sul, para Virgínia e as Carolinas.
O Impacto dos Irlandeses-Escoceses sobre o Presbiterianismo Americano Os irlandeses-escoceses mostraram-se o fator determinante na estruturação do caráter do Presbiterianismo americano. Antes de sua chegada, os presbiterianos não eram apenas poucos em número, mas também estavam geograficamente dispersos e não tinham coesão nem organização. Cinqüenta anos após a chegada dos irlandesesescoceses, a Igreja Presbiteriana tornou-se uma realidade nacional. Embora os puritanos da Nova Inglaterra compartilhassem de sua herança doutrinária, eles não aceitavam a forma presbiteriana de governo e tiveram pouca influência fora de sua própria região. O Puritanismo não se destinava a se tornar uma igreja nacional ou mesmo um rival sério para o Presbiterianismo. Por volta de 1700, o Puritanismo inclusive começava a perder sua influência na vida e pensamento da nova Inglaterra. Como resultado disso, Cotton Mather e outros líderes de sua geração começaram a olhar um tanto saudosamente para o padrão presbiteriano de governo como um meio de sustentar a força desvanescente de sua herança teológica e eclesiástica puritana. Eles deram os primeiros hesitantes passos nesta direção, quando adotaram a Plataforma de Saybrook. Essa abordagem, para muitos, era inaceitável na Nova Inglaterra. Como resultado, ficou demonstrado que ela era ineficaz para estancar a maré de dissidência teológica que surgia dentro da comunidade puritana. Do mesmo modo, foi mal adaptada para criar uma
verdadeira ordem presbiteriana nas igrejas congregacionais. Os irlandeses-escoceses eram ferrenhamente leais ao Presbiterianismo, na forma que eles herdaram de John Knox e de seus sucessores. Essa lealdade fora testada e fortalecida por um século de intermitente perseguição na Escócia e na Irlanda, sob os últimos governadores da dinastia Stuart. Isso se revelou um excelente aprendizado para preparar os irlandeses-escoceses para sua nova vida no Novo Mundo. Eles foram condicionados para defrontar-se com o que os esperava nas fronteiras coloniais. Eram disciplinados na doutrina e treinados em administrar os negócios de suas igrejas, e isso lhes dava uma vantagem especial ao procurarem uma nova vida nas colônias e ao erigirem igrejas presbiterianas onde se estabeleciam. O Presbiterianismo irlandês-escocês era, num sentido muito real, um Puritanismo reestruturado e adaptado a um ambiente mais pluralista, não mais restrito aos limites estreitos da Velha ou da Nova Inglaterra. Tanto seu Calvinismo como sua forma presbiteriana de governo asseguraram os meios para que ele se tornasse o movimento teológico dominante na história da igreja americana e também na formação do caráter nacional americano.1
O Grande Despertamento Na verdade foi providencial que o Presbiterianismo tenha conseguido uma forte base naquelas décadas que precederam a vinda do Grande Despertamento.2 Os primeiros passos para o 1
Ao fazer tal declaração estou bem ciente do fato de que há muito o Presbiterianismo cessou de reivindicar possuir o maior número de membros de igrejas deste país, mesmo que uma reivindicação assim já pudesse ter sido feita. Sua força não foi proveniente das dimensões de sua membresia, porém de sua força doutrinária inerente e do vigor e força de sua administração eclesiástica. 2 Records of the Presbyterian Church in the United States of America (Filadélfia, 1841), pp. 7-8.
plantio da semente do Presbiterianismo foram dados por Francis Makemie, que veio para Maryland e Virgínia no final do século 17 e desenvolveu um surpreendente ministério evangelístico. O primeiro presbitério da América foi formado em 1706 e Makemie foi eleito seu primeiro moderador.1 Por volta de 1735 o zelo tanto dos puritanos como dos presbiterianos tinha esmorecido. A imoralidade ingressara nas fileiras da igreja infante, tanto no ministério como no lacaito. Pelo menos um caso escandaloso envolvendo um ministro tornou-se famoso. É verdade, porém, que ele despertou viva oposição indicando que o zelo pela vida cristã não desaparecera de suas fileiras.2 Parece também que a calorosa controvérsia, que logo tomou conta do Sínodo, era, pelo menos em parte, o resultado do desejo de muitos ministros em restaurar o Presbiterianismo à sua pureza original de vida e pensamento. Há evidência de que esse zelo estava sendo restaurado mesmo antes do Grande Despertamento. A formação do Sínodo, em 1717, criou esperanças pelos melhores aspectos do grande reavivamento que estava por vir. O Sínodo proporcionou também um abrigo eclesiástico para as ondas de imigrantes vindos do Ulster, a primeira das quais chegaria no ano seguinte.3 O primeiro evento da história do Presbiterianismo americano, a desempenhar um importante e principal papel, foi a Controvérsia da Subscrição. A crise desencadeou-se com a aprovação do Ato de Subscrição na reunião do Sínodo, em 1729. Esse Ato foi essencialmente um acordo em que “todos os 1
Ibid., p. 8. Records of the Presbyterian Church, p. 61. 3 Ibid., pp. 43-44.
2
ministros deste Sínodo, ou que a ele fossem admitidos a partir de agora, deveriam declarar sua concordância e aprovação da Confissão de Fé com os Catecismos Maior e Menor da Assembléia dos Clérigos de Westminster, concordância e aprovação reconhecendo serem todos os artigos necessários e essenciais, terem uma boa forma de sistema e palavras sólidas da doutrina cristã e, também, adotarem a referida Confissão e os Catecismos como a confissão de nossa fé.1 Esse Ato de Adoção convocava também os presbitérios a providenciarem para que nenhum candidato ao ministério fosse admitido sem subscrever todos os artigos essenciais e necessários da Confissão ou dos Catecismos. Providenciava também para que, caso qualquer ministro do Sínodo não pudesse aceitar algum artigo julgado necessário e essencial pelo presbitério, esse presbitério o declarasse impossibilitado de continuar como membro daquele corpo.2 A aprovação deste Ato foi uma vitória notável para os irlandeses-escoceses e uma derrota para os ingleses e puritanos que participaram do Sínodo. Determinou também o futuro do Presbiterianismo americano pelos próximos 250 anos.3 Embora a controvérsia despertada pela aprovação do Ato continuasse e os Presbitérios de Newcastle e Donegal, sustentáculos da força dos irlandeses-escoceses, exigissem um ato de subscrição ainda mais forte do que o aceito em 1729, o Ato de Adoção permaneceu imutável como a base doutrinária da Igreja Presbiteriana até a aceitação de um novo credo, em 1967. Sua aprovação, porém, logo despertou descontentamento entre os ministros que representavam a ala mais moderada da Nova Inglaterra, no Presbiterianismo. Estes sustentavam os grandes 1
Ibid., p. 92. Ibid. 3 Para uma completa abordagem da história subseqüente desta controvérsia, ver L. J. Trinterud, The Forging of an American Tradition, (Filadélfia, 1949), pp. 49-56. 2
elementos essenciais da fé, porém faziam sérias objeções quanto a fazer desses elementos um requisito para a ordenação, através da subscrição. E difícil de determinar-se exatamente que direção essa controvérsia teria tomado, e Trinterud provavelmente está certo ao concluir que o surgimento do Grande Despertamento, no Presbiterianismo, destruiu posteriormente o equilíbrio delicado que existia entre estes dois grupos.1 Entretanto, é bastante questionável sua outra proposição, a de que a vinda do Grande Despertamento revitalizara tanto a doutrina quanto a ética do Presbiterianismo nas colônias.2 Originando-se na pregação de Jonathan Edwards, de Stockbridge, Massachusetts, e recebendo impulso adicional dos esforços evangelísticos de George Whitefield, o Grande Despertamento demonstrou ser um poderoso estímulo ao Presbiterianismo e impulsionou a igreja para novas alturas espirituais. Não obstante o fato de ter ocasionado temporária divisão eclesiástica dentro da igreja, dificilmente se pode negar que ele trouxe, em sua esteira, um novo zelo evangelístico, abrindo novas oportunidades para a pregação do Evangelho nas colônias. Ao mesmo tempo, ele também possibilitou aos irlandeses-escoceses, assumirem uma liderança e influência em suas fileiras — uma influência que eles não renunciaram senão após a reunião de 1869. Alguns historiadores da igreja argumentariam que essa antiga paixão dos irlandesesescoceses pelo conservadorismo na teologia e a paixão pela atividade missionária não diminuíram até já bem dentro do século 20. 1
Ibid., p. 51. Na avaliação que Trinterud faz desta seqüência de acontecimentos existe uma forte insinuação de que os Subscricionistas do Sínodo estavam mais preocupados com a preservação da doutrina correta do que com a preservação da pureza ética da igreja, e que a ênfase na ética cristã era praticamente um monopólio do Partido Anti-subscricionista. 2
O Grande Despertamento, que teve influência tão poderosa, mas duração um tanto curta sobre a vida religiosa da Nova Inglaterra, teve uma influência igualmente poderosa, embora mais prolongada, sobre o Presbiterianismo e seu desenvolvimento futuro. Seu resultado mais imediato foi sentido nos Sínodos de Nova York e Filadélfia, que foram criados em 1717.1 O principal vulto do reavivamento e do cisma resultante foi William Tennent, educado na Irlanda e ordenado na Igreja Anglicana. Chegando à América em 1716, ele pediu admissão ao Sínodo de Filadélfia.2 Começou suas atividades pastorais numa igreja perto de Filadélfia, em 1721. Juntamente com seus quatro filhos, ele logo se tornou uma força vital e até controvertida no Presbiterianismo colonial, embora efetivamente não tenha tomado parte ativa na controvérsia da subscrição. Ele e seu filho mais velho, Gilbert assinaram a subscrição aos Padrões de Westminster, conforme requerido pela ação levada a efeito em 1729.3 Parece que neste período de suas carreiras ministeriais, em questões relativas a doutrinas, eles estavam mais próximos do partido do Sínodo, que desejava uma interpretação estrita e uma adesão aos Padrões de Westminster. John Tennent, outro filho, assinou a subscrição no Presbitério de Newcastle naquele mesmo ano. Trinterud, entretanto, insiste que os Tennents, em espírito, eram definitivamente puritanos ingleses, e que a controvérsia continuada acerca do significado do Ato de Subscrição, de 1729, preparou o solo fértil para o crescimento do Grande Despertamento 1
Ver Edwin S. Gaustad, The Great Awakening in New England (New Haven, Yale University Press, 1938). Para um relatório acurado deste movimento nessas colônias ver Charles Hartshorn, The Great Awakening in the Middle Colonies (Chicago: University of Chicago Press, 1920). Wesley M. Gewehr, The Great Awakening in Virgínia. 1740-1790 (Durham: Duke University Press, 1930) é de grande valor por suas declarações sobre o Presbiterianismo. 2 Records of the Presbyterian Church, p. 49. 3 Ibid., p. 92.
entre os presbiterianos das colônias centrais. Ele afirma também que nas décadas entre 1720 e 1741 os líderes do que talvez se poderia denominar Grupo Tennent, passaram para as mãos de Gilbert Tennent, que começara seu ministério no Presbitério de Newcastle, que subscrevia fortemente suas posições teológicas.1 Os Tennents, de comum acordo, dissociaram-se neste período da ala subscricionista. Não há dúvida de que, em sua segunda jornada missionária pelas colônias, Whitefield exerceu forte influência por onde passou. Ele levou poderosas mensagens a várias igrejas presbiterianas na Filadélfia e arredores. Veio a conhecer Gilbert Tennent, a quem encontrou no Log College, fundado em 1726. Essa experiência, bem como seus contatos anteriores com Theodore Frelinghuysen, um ministro da congregação reformada holandesa em New Brunswick, Nova Jersey, causou uma profunda impressão em Gilbert Tennent. Entretanto, não deveríamos superenfatizar a influência destes dois homens sobre Tennent. Já se ouviram rumores de futuras controvérsias no encontro do Sínodo, em 1734, antes de Tennent ter encontrado Whitefield ou Frelinghuysen. Neste encontro, Tennent apresentara uma proposta pedindo ao Sínodo que tivesse mais cuidado ao admitir candidatos para o ministério, indagando especialmente “pela evidência da graça de Deus neles, bem como por outras qualificações necessárias".2 Nessas propostas Tennent não estava pedindo ao Sínodo para relaxar sua vigilância sobre a ortodoxia de seus candidatos ao ministério. Aparentemente, houve pouca oposição ou debate e o Sínodo concitou os presbitérios “a ter um cuidado especial em não 1
Trinterud, Forging of an American Tradition, p. 54. Essa tese é questionável à vista do fato de que William Tennent fora preparado numa escola anglicana na Irlanda e deixou aquela comunidade ao vir para a América. Parece estranho que dentro de bem poucos anos ele se converteria ao Puritanismo inglês. 2 Records of the Presbyterian Church, p. 108.
admitir ao ofício sagrado pessoas irreligiosas, descuidadas e relapsas, mas a investigar especialmente as conversações, conduta e comportamento dos tais, quando se oferecem ao ministério ..."1 Embora a semente de seu Pietismo evangélico amadurecido fora semeada por seu pai, quase não há dúvida de que os contatos posteriores que Gilbert Tennent manteve com Theodore Frelinghuysen e George Whitefield levaram-no a frutificar. Tennent não estava satisfeito com o modo pelo qual os presbitérios efetivaram o pedido do Sínodo de 1734 e os registros daquele período indicam que nem tudo ia bem com a conduta do ministério do Sínodo. Tennent logo se envolveu numa controvérsia com o Presbitério de Filadélfia sobre a colocação de David Cowell, um formado de Harvard proveniente da Nova Inglaterra, como pastor da igreja em Trenton, Nova Jersey.2 Tennent convenceu-se de que havia demais homens indignos sendo admitidos ao ministério. Alimentava também a suspeita de que o grupo subscricionista do Sínodo não estava disposto a aceitar, como membro, os ministros que fossem graduados no Log College. Em 8 de março de 1740, Gilbert Tennent pregou em Nottingham, Pensilvânia, um dos sermões mais influentes na história presbiteriana colonial. Seu sermão “Sobre os Perigos de um Ministério Não-convertido”, demonstrou ser o clarim que pôs a questão em foco no encontro do Sínodo, em 1741. Mais do que qualquer outro líder presbiteriano de seus dias, ele foi o responsável por levar a questão ao ponto que resultou num cisma entre os partidos do Novo Lado e do Velho Lado. O cisma logo precipitou os Tennents contra o partido irlandês-escocês na igreja. Embora os problemas do ministério tenham sido a causa imediata, parece que a questão da subscrição estava no cerne da divisão. A ala escocesa estava fortemente a favor do Ato de Subscrição de 1729 e 1 2
Ibid., pp. 108-109. Ibid., p. 138.
era radicalmente oposta às técnicas reavivalistas do Novo Lado, do qual os Tennents surgiram como líderes. O Velho Lado, firmemente no controle do encontro do Sínodo de 1741, expulsou o Presbitério de New Brunswick. Esse presbitério fora o centro da força do Novo Lado, bem como de grande parte da mobilização em favor de um ministério pietista ou “convertido”. Mas não era uma questão doutrinária e a ação do Sínodo de 1734 parece indicar que o Velho Lado era tão favorável a uma política mais cuidadosa na admissão de novos membros ao ministério presbiteriano quanto o Novo Lado. Não existe evidência de que Gilbert Tennent fosse menos apegado aos Padrões de Westminster do que os membros do Velho Lado. Olhando retrospectivamente, o abismo entre os dois grupos não era tão grande quanto eles imaginavam. Após a morte de Jonathan Dickinson, tanto os líderes da parte mais moderada do Partido Velho Lado como Gilbert Tennent sentiram-se responsáveis pela tarefa da reunificação dos grupos, o que foi realizado em 1758. Nesta reunião, ambos os grupos reafirmaram sua completa lealdade aos Padrões de Westminster.1 Qual fora então a causa da ruptura? A ruptura parece ter sido causada pelas apreensões surgidas no ministério subscricionista em função das técnicas dos pregadores reavivalistas do Novo Lado. O Novo Lado fora culpado de alguns excessos em seus cultos e Gilbert Tennent admitiu isso. É também verdade que o Sínodo fora negligente em sua política de ordenação de pastores antes de 1741 e de nem sempre disciplinar seus membros culpados de sérias irregularidades em sua conduta. A vida e o testemunho da Igreja fora maculado por mais de um escândalo e Gilbert Tennent foi levado a lançar uma advertência contra os perigos de um ministério não-convertido.
1
Ibid., pp. 285-288.
O soberano Deus extraiu muito de positivo desta divisão entre os santos na América colonial. Formou-se uma unidade mais firme, bem mais forte do que era na época da divisão. Os registros indicam que o ministério foi depurado e que houve muito menos discussão sobre escândalos e negligências. Agora a Igreja estava pronta para a tarefa com a qual logo iria defrontar-se, quando irrompessem as hostilidades entre a Inglaterra e as colônias. Nesta Igreja, agora firmemente unida, os irlandeses-escoceses teriam voz bastante forte mesmo porque eles desempenhariam um papel principal no conflito militar que logo surgiria. A avaliação que Trinterud faz a respeito do impacto do Grande Despertamento no Presbiterianismo americano é interessante e sugestiva, mesmo que não seja inteiramente convincente: Na união dos presbitérios de Log Gollege e do Presbitério de Nova York forjou-se o caráter de um Presbiterianismo americano. Foi uma união da segunda e da terceira geração dos puritanos dos presbitérios da Nova Inglaterra com um grupo de jovens presbiterianos irlandeses-escoceses que, através de William Tennent, Sr., tornaram-se imbuídos da piedade e das posições do Puritanismo inglês.1 Se foi isso o que aconteceu, por que foi apenas mencionada a controvérsia da subscrição durante a reunião e depois dela? Provavelmente porque, se as posições da Nova Inglaterra prevaleceram, teria havido um clamor muito mais forte contra o Ato de 1729. Não há dúvida de que um Presbiterianismo muito mais fortalecido emergiu como resultado dessa ação, mas é bem menos certo que o Presbiterianismo resultante seja, tanto quanto Trinterud afirma, uma fusão. A resposta que o Sínodo deu, em sua reunião de 1734, às propostas de Gilbert Tennent, refletia um espírito cordial 1
Trinterud, Forging of an American Tradition, p. 122.
de preocupação e piedade evangélica e foi uma resposta que poderia facilmente ter sido escrita pelos adeptos do movimento do Log College.1 Não há dúvida de que George Whitefield, Theodore Frelinghuysen e Jonathan Edwards inspiraram o grupo dos Tennents e do Log College e renovaram seu zelo pela pregação do Evangelho, de modo cordial. Em certa medida, através destes homens, o Puritanismo da Nova Inglaterra entrou na corrente do Presbiterianismo americano, mas a tendência principal desta corrente que se ampliava, era composta de irlandeses-escoceses, que lhe acrescentavam seu próprio fervor e entusiasmo. Um dos resultados mais benéficos do surgimento do Novo Lado foram a intensificação de um zelo missionário e a disseminação da Igreja para os vales da Virgínia e da área do Piemonte, nas colônias da Carolina. As migrações posteriores de irlandeses-escoceses para as colônias levaram esses imigrantes em grande número para as áreas da Pensilvânia, a oeste dos assentamentos alemães. A partir dessa região, eles continuaram descendo seu caminho através da Maryland para a Virgínia e, finalmente, para as Carolinas, onde encontraram grandes áreas de terra que lhes estavam disponíveis. Pelo fato de serem irlandeses-escoceses eles se tornaram um tremendo desafio missionário para a Igreja do Velho Lado. Porém, o Sínodo de Filadélfia era incapaz de tirar vantagem desta oportunidade que se oferecia, pelo fato de não ter criado um seminário para o treinamento dos ministros necessários à realização de tal ventura. Dessa forma, coube ao Novo Lado, com seu Log College, evangelizar estes espíritos incansáveis na fronteira recentemente aberta. O Novo Lado aceitou prontamente o desafio. Um destes pioneiros da evangelização e portador do Grande Despertamento para o Sul foi Samuel Davies, freqüentemente 1
Ibid., p. 108.
considerado como o maior orador dos púlpitos do século 18.1 Uma porção de congregações existentes hoje na Carolina do Norte e na Virgínia deve sua origem à obra pioneira deste grande homem e de seus colaboradores. Eles não enfrentaram apenas os perigos da existência pioneira, mas também a oposição deliberada do clero da Igreja Anglicana oficial, que considerava perigosos estes pregadores itinerantes. Entretanto, a Igreja oficial fez poucos esforços em cada colônia para conquistar estes novos colonos e organizá-los em congregações. A organização episcopal era um veículo inadequado para tal expansão na América do século 18. Por volta do final do século, a Pensilvânia era um baluarte presbiteriano e, portanto, irlandês-escocês. O Presbiterianismo irlandês-escocês era muito forte no Vale Shenandoah e em Hanover, na Virgínia, mas era um tanto fraco nas áreas de preamar da colônia. Esse padrão continuou verdadeiro em menor extensão na Carolina do Norte e foi claramente distinguível na Carolina do Sul. Em 1759, o Presbiterianismo era mais forte do que todas as outras denominações juntas em Nova York, Pensilvânia e Nova Jersey. Esse ainda era o caso mesmo em 1775, mas sua liderança estava sendo desafiada pela crescente força dos batistas e logo defrontarse-ia com outro formidável rival, que apareceu com o surgimento do movimento metodista, em larga escala. A forma presbiteriana de governo, com sua ênfase num ministério bem treinado e com sua forma imponente de culto, era muito menos adaptável a uma fronteira para além do Allegheny, do que a dos metodistas e batistas, cujas atividades missionárias não eram dificultadas pelos requisitos alegadamente rígidos da doutrina, educação e administração presbiterianas.
1
John Robinson foi um ministro do Lado Novo, que visitara a Virgínia em 1742 a 1743. Mas ele não estava só. Outros pregadores do Lado Novo pregaram em Hanover e em outras partes mais ocidentais da colônia.
Os batistas e os metodistas desenvolveram tanto uma teologia como uma administração mais adequadas às exigências da vida democrática da fronteira, do que o era a teologia calvinista do Presbiterianismo irlandês-escocês. Nem na teologia, nem na administração o Presbiterianismo daqueles dias era democrático em sua concepção, ao passo que a administração batista e a teologia metodista tinham um forte apelo emocional para os colonos das fronteiras. Esse apelo tornou-se evidente nos reavivamentos do Kentucky e do Tennessee, que irromperam na virada do século e demonstraram ser um ponto crucial da história protestante da América. Estes reavivamentos deram às igrejas metodista e batista uma superioridade numérica no Protestantismo americano, que elas nunca mais perderam. A percepção da necessidade de certa flexibilidade na estrutura levou a Assembléia Geral Presbiteriana, de 1801, a ingressar num plano cooperativo com as igrejas congregacionais da Nova Inglaterra, esperando que tal acordo impulsionasse a evangelização do Oeste, especialmente do Velho Noroeste (Ohio, Indiana, Illinois, Michigan e Wisconsin). Esse bem-intencionado plano de cooperação ecumênica mostrou-se bem menos benéfico ao avanço do Presbiterianismo nessa região do que para o Congregacionalismo, cuja administração era bem mais adequada às necessidades de uma sociedade de fronteira. Mostrou também ser um tanto prejudicial para o próprio Presbiterianismo. Essa cooperação abriu uma avenida pela qual a teologia da Nova Inglaterra ingressou no Presbiterianismo. Conhecida mais particularmente como a teologia de New Haven ela representava um Calvinismo modificado, que demonstrou estar bem próximo do Arminianismo. Seu principal expoente, Nathaniel Taylor, escolhido para a cadeira de teologia didática em Yale, em 1822, pregou um sermão em 1828, no qual rejeitava a doutrina do pecado original no sentido de que "o homem herda qualquer
disposição ou tendência para o pecado, e que é a causa do pecado”. Como conseqüência necessária dessa pressuposição básica, Taylor foi levado a definir o pecado como um ato do próprio homem, “ato peio qual ele escolhe livremente algum outro objeto como seu deus principal, mais do que a Deus".1 Por isso, o homem tem de ser livre para voltar-se para Deus antes de ser regenerado pelo Espírito Santo. A ênfase de Taylor sobre a liberdade da vontade levou necessariamente a outros desvios dos ensinos das Escrituras e dos Padrões de Westminster. Os representantes desta teologia da Nova Inglaterra não rejeitaram apenas a doutrina presbiteriana do pecado original, mas também a eleição incondicional e a concepção substitutiva da expiação. Eles substituíram essas doutrinas por uma teoria governamental da expiação, que era similar àquela do erudito holandês do século 17, Hugo Grotius. Charles G. Finney levou essa teologia da Nova Inglaterra à sua conclusão lógica, ao declarar que a conversão é um ato do pecador. Ele admitia que o Espírito Santo e o ministro no púlpito desempenhavam um papel limitado na transformação espiritual do pecador, mas o pecador era o principal agente de sua redenção.2 Essa teologia teve ampla aceitação nas igrejas presbiterianas da Nova Inglaterra e seus efeitos causaram mais preocupação dentro da Igreja do que qualquer crise doutrinária anterior em sua história, nesse país. A preocupação era amplamente justificada, pois esse ensino arminiano ameaçava a teologia e a missão histórica do Presbiterianismo. A situação chegou ao auge em 1838, quando Albert Barnes, 1
Christian Observer (11 de junho de 1841), p. 95. Citado em Ernest Trice Thompson, Presbyterians of the South (Richmond, Va.: John Knox, 1963), 1:362. 2 Samuel J. Baird, A Story of the New School (Filadélfia: Claxton, Remsen, and Hoffelfinger, 1868), pp. 217-219.
pastor da Primeira Igreja Presbiteriana em Filadélfia, foi acusado de heresia por pregar essa teologia de New Haven. Embora ele tenha sido inocentado pela Assembléia Geral de 1836, as questões levantadas pelo processo estavam longe de serem resolvidas. Na verdade, sua absolvição trouxe um novo momento para a controvérsia, que ameaçava novamente a unidade da Igreja. A absolvição saiu das mãos de uma Assembléia Geral que era bastante dominada pelo partido da Nova Escola. Esse fato ficou ainda mais evidente no caso que envolveu o Dr. Lyman Beecher, um ministro congregacional, que fora convocado para ocupar o púlpito da Segunda Igreja Presbiteriana, em Cincinnati. Ele foi acusado pelo Dr. Joseph Wilson, um líder membro do grupo da Velha Escola, de inclinar-se igualmente na direção da teologia da Nova Inglaterra. Entretanto, a absolvição de Albert Barnes fez com que o caso fosse posto de lado, e ele não foi trazido perante essa Assembléia Geral de 1838. A ação desta Assembléia convenceu os líderes da Velha Escola no sentido de que a Igreja Presbiteriana deveria abandonar qualquer esforço cooperativo com os congregacionais, esforço desenvolvido no Plano de União de 1801. Na verdade, as primeiras medidas para acabar com esses esforços cooperativos, começaram durante a reunião de 1835, da Assembléia, quando a liderança da Velha Escola convocou um encontro especial de seus membros presentes. Esse encontro produziu o “Ato de Testemunho” que convocava a Igreja Presbiteriana à restauração de sua antiga pureza doutrinária. Com o fim de alcançar esse objetivo, o documento também convocava uma reunião dos ministros e anciãos interessados, anterior à reunião da Assembléia de 1836, estando os elementos da Nova Escola firmemente no controle dos procedimentos. Os membros da Velha Escola estavam convencidos de que chegara o tempo de se realizar uma separação entre os dois grupos da Igreja. Enquanto a Assembléia Geral de 1836 estava ainda em sessão, houve um outro encontro e fizeram-se planos para a separação.
Os detalhes desta separação estão fora do escopo deste estudo, mas um estudo dos documentos deixa bastante claro que a força da Velha Escola estava nas seções da Igreja onde os irlandesesescoceses eram a influência predominante.1 Essa influência ainda era bem forte na Virgínia, Carolinas, Tennessee oriental e grande parte da Geórgia e do Alabama, como resultado de migrações do Velho Sul para essas áreas.2 A formação da Igreja Presbiteriana da Velha Escola, em 1837, pode muito bem ser considerada como um último grande triunfo dos irlandeses-escoceses na luta contínua por preservar a pureza doutrinária do Presbiterianismo americano. Pela mesma razão, a reunião de 1869 pode ser corretamente considerada como o fim da influência dominante dos irlandeses-escoceses na denominação resultante, que tomou o nome de Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América, conhecida popularmente como a Igreja Presbiteriana do Norte.3 Devemos também observar que essa influência dos irlandeses-escoceses continuou desempenhando um papel importante na história da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, conhecida popularmente como a Igreja Presbiteriana do Sul, até meados do século 20. Alguns líderes do Presbiterianismo argumentaram que a ausência da ala da Velha Escola, bastante forte na Igreja sulista, desde a união de 1869, teve o efeito de impedir a ala da Velha Escola da Igreja nortista de preservar, em maior escala, o 1
Para uma discussão detalhada desta divisão ver Thompson, Presbyterianism of the South, vol. 2, capítulo 25, e Baird, Story of The New School. 2 Sobre a força da teologia da Escola Velha ver, Thompson, Presbyterianism of the South, capítulo 26. 3 Em 1861 os Sínodos do sul pertencentes à Escola Velha separaram-se novamente e formaram a Igreja Presbiteriana nos Estados Confederados da América. No final do conflito essa igreja veio a ser conhecida como a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos. A teologia da Escola Velha era a sua teologia dominante.
testemunho ortodoxo daquela entidade. Esse era um tema favorito daqueles lideres, que trabalharam tão resolutamente ao longo dos anos e mesmo até os dias atuais (1982), sem sucesso, por uma união entre as duas denominações. É verdade que a reunião entre a Velha e a Nova Escola no Norte, em 1869, ficou sem tratar das questões básicas que causaram a divisão em 1837.1 É bastante duvidoso que a Igreja sulista, numericamente menor que a nortista, pudesse ter aumentado tanto as fileiras do grupo da Velha Escola, no Norte, de modo que ele pudesse ser capaz de alcançar uma união baseada na teologia da Velha Escola, ou que seria capaz de tornar-se uma força dominante na Igreja nortista depois de a reunião ter-se realizado. A divisão de 1837 e as bases insatisfatórias da reunião de 1869 lançam dúvidas sobre a tese de Trinterud de que a reunião de 1758, entre os grupos do Velho e Novo Lado, tornou possível aos irlandeses-escoceses constituírem o elemento formativo do desenvolvimento do Presbiterianismo americano. Isso era verdade antes do surgimento da teologia da Nova Inglaterra, após 1801, mas sua posição é difícil de se defender à luz da natureza da divisão de 1837. Essa separação foi basicamente o resultado de uma divisão na concepção teológica entre o grupo da Nova Inglaterra e os irlandeses-escoceses, pois estes eram da Velha Escola, ao passo que o grupo da Nova Inglaterra, ou congregacional, adotava a teologia da Nova Inglaterra, de Nathaniel Taylor e de seus associados. Podese dar ênfase ainda maior à influência forte e contínua dos irlandeses-escoceses na vida da Igreja Presbiteriana do Sul. Entretanto, ela começou a desvanecer-se por volta de 1935. Nos últimos quarenta anos, essa influência pouco passou de um murmúrio naquela comunidade. A influência que possa ter hoje resulta do impacto de líderes individuais que são irlandesesescoceses na descendência e na teologia, mais do que dos irlandeses-escoceses como um grupo composto, na vida da Igreja. 1
Lefferts Loetcher, The Broadening Church (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1950), p. 8.
Os Irlandeses-Escoceses e a Luta pela Liberdade Religiosa Uma vez que a grande emigração dos irlandeses-escoceses começou em 1717, eles vieram para colônias onde a administração religiosa já estava estabelecida. Com exceção da Pensilvânia, Delaware e Rhode Island, as Igrejas já tinham sido estabelecidas por lei e por suas respectivas cartas constitucionais, ou pelo fato de os grupos que se assentavam dentro de suas fronteiras já terem criado Igrejas estabelecidas. Mesmo na Pensilvânia, os irlandesesescoceses começaram a sofrer uma forma de discriminação política depois de 1750, por mãos da Assembléia Provincial, que era controlada pelos quakers das três comarcas orientais. A falta de liberdade de culto era mais característica das colônias nas quais a Igreja Anglicana fora oficializada, embora a liberdade de culto não fosse comum mesmo na Nova Inglaterra. Os irlandesesescoceses se estabeleceram em número relativamente grande nas colônias onde a Igreja Anglicana estava estabelecida. Por essa razão, eles logo se revelaram um sério desafio ao continuado controle que a Igreja Anglicana exercia sobre a vida religiosa. Embora as primeiras escaramuças a favor da liberdade religiosa tenham acontecido em Nova York e na Virgínia, pouco depois de os irlandeses-escoceses terem-se estabelecido nessas colônias, as lutas mais importantes ocorreram na Virgínia depois da Paz de 1783.1 A vitória na guerra e a conquista da independência deram um impulso à separação mas, mesmo à luz desses novos acontecimentos, a Igreja Anglicana não estava suficientemente disposta a abdicar de sua 1
O primeiro destes encontros aconteceu enquanto Francis Makemie levava a efeito sua viagem missionária pela Virgínia. Algum tempo depois, o Governador Gooch, daquela colônia, declarou que fora sua intenção admitir a mesma toleráncia que era permitida na Inglaterra sob os Atos de Tolerância.
favorecida posição, de que ela gozava não apenas por lei, mas também por riqueza e prestígio social. Por causa do crescente número de batistas e metodistas nas partes mais ocidentais da Virgínia, após 1793, havia uma exigência cada vez maior por liberdade de culto e pela desoficialização da Igreja Anglicana, que se tornara a Igreja Episcopal logo depois do Tratado de 1783. As reivindicações em favor de liberdade religiosa não mais podiam ser ignoradas, pois estavam recebendo então um reforço adicional de grupos mais seculares, que não tinham grande zelo nem pela Igreja Presbiteriana nem pela Batista e que estavam igualmente desgostosos por serem obrigados por lei a sustentar financeiramente qualquer grupo cristão. Essas pessoas estavam determinadas a ser livres de quaisquer obrigações religiosas. Para atingir seu objetivo, eles estavam dispostos a unir forças com outros grupos. Alguns, como Thomas Jefferson, achavam que a oficialização legal de qualquer grupo religioso era contrária à filosofia da Declaração de Independência e do modo de vida democrático que Jefferson sonhara para a nova nação. Deveria ser enfatizado que os esforços dos filósofos-estadistas como Jefferson e Madison se seguiram aos esforços de ministros dissidentes e não foram os fatores primários na consecução da tolerância. O impulso inicial veio de ministros cristãos, principalmente presbiterianos e batistas. Em 1776, durante a guerra, os presbiterianos irlandesesescoceses da Comarca Augusta e do Presbitério de Hanover enviaram sérios protestos à Assembléia de Virgínia, contra o encargo financeiro adicional obrigatório imposto sobre os dissidentes, em função do sustento financeiro exigido deles para a manutenção da Igreja Anglicana. As diversas petições postas diante da Assembléia prepararam o caminho para o prolongado conflito que irrompeu em 1780. A
questão chegou ao auge com o aparecimento do Memorial and Remonstrance [Memorial e Protesto] de James Madison, no qual ele argumentava, com seu habitual discernimento e habilidade, em favor da tese de que a religião deveria ser inteiramente livre da intrusão do Estado e da sociedade em geral. Esse documento recebeu bastante apoio dos presbiterianos de Virgínia, que adotaram uma declaração redigida por William Graham, da Liberty Hall Academy. A declaração afirmava que o propósito do governo civil era assegurar a liberdade e a propriedade temporal da humanidade e “protegê-la no livre exercício de sua religião".1 Em dezembro de 1785, Madison propôs, na Legislatura de Virgínia, que o documento de Jefferson, de 1779, fosse transformado em lei. A proposta foi aceita e os presbiterianos irlandeses-escoceses da Virgínia, conquistaram a sua mais notável vitória legislativa na história americana.
A Comunidade Presbiteriana dos Irlandeses-Escoceses O desenvolvimento do Presbiterianismo na América colonial é, em sua maior parte, a história da transformação intelectual e social dos irlandeses-escoceses, à medida que eles foram se americanizando. Esse processo de americanização, exatamente pela natureza do seu caso, era, ao mesmo tempo, um processo de americanização do Presbiterianismo americano. Por volta de 1783, os irlandeses-escoceses eram o grupo dominante do Presbiterianismo americano. Tratar de um é necessariamente tratar do outro.
1
Thompson, Presbyterianism of the South, pp. 106- 107.
Mesmo assim, estes dois desenvolvimentos não eram totalmente sinônimos. O Presbiterianismo, na era colonial, perdera seu controle sobre milhares de irlandeses-escoceses que avançaram bem longe na fronteira. Essa perda não foi o resultado de alguma rebelião contra sua herança religiosa, em função da qual teriam vindo para o Novo Mundo. O fato de eles se estabelecerem na fronteira tornou difícil às Igrejas, das regiões primeiramente estabelecidas, satisfazerem as necessidades de uma vida corporativa constituída para unidades congregacionais bastante separadas entre si. Isso foi realizado até certo ponto, mas não havia um padrão consistente de congregações organizadas. O problema foi agravado pela falta de ministros que viajassem por essas áreas mais remotas e pastoreassem as congregações onde elas estivessem estabelecidas.1 Como resultado, em vários assentamentos de fronteiras, faltou para os irlandeses-escoceses a necessária liderança e ensino pastoral. Embora se tenha conseguido alguma ajuda das universidades escocesas, esse auxílio equivalia a uma gota em comparação com a necessidade urgente que existia em todas as colônias.2 A falta de um ministério adequado foi a principal razão de William Tennent para a fundação do Log College, em 1726, bem como para o cisma de 1741. O Log College sofreu a oposição dos pastores que temiam que tal escola ministerial resultasse em padrões mais baixos para a Igreja. Esses temores não eram infundados, embora fossem exagerados naquela época. A questão básica com a qual a Igreja se deparava era o quanto e quão longe ela deveria ir ao encontro do desafio do ambiente da fronteira e modificar suas tradições de educação e de ensino doutrinário para se adequar. A questão da evangelização também 1
Mesmo quando tais congregações eram formadas, freqüentemente ficavam sem qualquer liderança pastoral durante muito tempo. 2 The Records of the Presbyterian Church trazem testemunho freqüente sobre esse problema que persistia.
desempenhava seu papel, mas não era em si o problema que subjazia ao cisma. A questão básica era se a Igreja deveria modificar seus padrões educacionais de modo suficiente a prover um maior número de ministros para atender às necessidades da fronteira, mais do que poderia ser obtido da Escócia. O Log College, de Tennent, revelou-se uma instituição bastante eficaz para resolver o problema. Em seu curto período de vida, de vinte anos, ele produziu um número impressionante de ministros do Evangelho bastante capazes, e estes homens proclamaram o Evangelho em lugares grandemente distantes, da Pensilvânia às Carolinas. Mesmo que tanto o Novo e o Velho grupo tendessem a se afastar das formas de culto e vida religiosa que consigo trouxeram da Irlanda, não há razão para presumirmos que eles fossem menos presbiterianos em sua doutrina. Eles não pretendiam perder sua herança doutrinária calvinista em função das necessidades de uma sociedade de fronteira. Os irlandeses-escoceses da América permaneceram calvinistas estritos. Os registros de congregações isoladas, bem como os de presbitérios, indicam que eles mantinham uma exigência geral para que todos os jovens memorizassem o Breve Catecismo, ao mesmo tempo em que o Catecismo Maior deveria ser parte do currículo de estudo. Vários membros foram treinados na Confissão de Fé de Westminster. Dentre todos os grupos religiosos das colônias, à parte da Nova Inglaterra, os irlandeses-escoceses eram provavelmente os mais estritos na observância do domingo. Era um dia separado para o culto a Deus e para o descanso de todo trabalho, exceto o que fosse absolutamente necessário. Mesmo a preparação das refeições dominicais era feita no sábado, a fim de que cada membro da família pudesse estar livre para dedicar o domingo à adoração pública e particular. O culto matinal tinha freqüentemente três horas de duração e os sermões duravam pelo menos uma hora, e freqüentemente bem mais. Após um interlúdio para o almoço a congregação voltaria a se
reunir na Igreja para mais um culto de três horas, com outro sermão da mesma extensão do matinal. O único tipo de hinos cantado era o dos Salmos, porque o povo os considerava o único tipo adequado para a adoração. Nas congregações mais estritas, a versão métrica de Rouse dos Salmos era utilizada, enquanto que outros consideravam que os hinos e os Salmos de Isaac Watts também eram apropriados. Porém, o uso generalizado dos hinos de Watts não foi efetivado sem luta. No período colonial nenhum instrumento musical era permitido nas Igrejas Presbiterianas, nem para o acompanhamento do canto congregacional. Na maioria das vezes, os hinos eram “esboçados” e um diapasão era utilizado para determinar o tom no qual seriam cantados. Pianos e órgãos só vieram a ser amplamente utilizado, já em tempo bem avançado no século 19. O Presbiterianismo irlandês-escocês era caracterizado por seu controle sobre a vida de seus membros e de seus filhos. “Eles eram os puritanos das colônias centrais e do sul."1 Todas as violações da observância do domingo, bem como a profanação, a imoralidade, as brigas e desordens eram razões justas para aplicar-se a disciplina da Igreja. Os registros dos Conselhos do período colonial revelam quão freqüentemente e até que ponto a Igreja julgava necessário envolverse na vida de seus membros. Especialmente nas fronteiras, a Igreja era a única agência efetiva para manter a disciplina. Seus membros irlandeses-escoceses eram um grupo altamente individualista, freqüentemente, se deixados à vontade, eram inclinados a uma manifestação excessiva desse individualismo. Tão indesejável quanto hoje, mesmo nas congregações presbiterianas, foi essa disciplina que enrijeceu a fibra dos irlandeses-escoceses e transformou o Presbiterianismo numa força da nação e no Cristianismo americano, bem além do que se poderia representar por sua força numérica, mesmo bem depois de não mais poder 1
Leyburn, The Scotch-Irish, p. 294.
abrigar uma grande porção da população como parte de sua membresia. Por trás desta autoridade e liderança espiritual está a força provinda de um ministério bem treinado defendido pelos irlandeses-escoceses desde 1726, quando William Tennent fundou seu Log College. Se a estrutura rígida do Presbiterianismo o fez menos adaptável às necessidades religiosas da fronteira, ela também deu à Igreja uma estrutura organizacional não só completamente bíblica em sua origem, como também bem preparada para resguardar a pureza de sua doutrina e a força de sua liderança para cumprir seu mandato biblicamente determinado.
Os Irlandeses-Escoceses em Questões Nacionais Medir a influência dos irlandeses-escoceses em questões nacionais é uma tarefa bem mais difícil do que avaliar seu papel na formação do Presbiterianismo americano. Os registros do Congresso, de nossos Tribunais e mesmo da Presidência, muito raramente revelam de per si o papel desempenhado pelos irlandesesescoceses na vida política, econômica e social da nação. Podemos enumerar presidentes, membros dos gabinetes, de Congressos e Tribunais onde, em graus variados, a ancestralidade e a herança teológica dos irlandeses-escoceses estiveram representadas. Fazer isso, porém, é muito menos do que apresentar o impacto total deste povo sobre o desenvolvimento nacional. Em primeiro lugar, nem todos os irlandeses-escoceses aceitaram ou foram profundamente influenciados por sua herança. Com o passar do tempo, eles perderam de vista o que possuíam originalmente e ficaram pelo caminho. Eles tendiam a defender causas e compromissos políticos que estavam bem distantes de suas tradições históricas. Teria pouco valor nomear, num estudo assim,
os indivíduos que foram culpados de deserção. A tarefa de avaliar a influência dos irlandeses-escoceses é dificultada também porque houve muitas pessoas que, embora não fossem de descendência irlandesa-escocesa, nem de teologia presbiteriana, mas atuando sob a influência da graça comum, também comprometeram-se com as posições políticas, econômicas e sociais atribuídas geralmente à administração eclesiástica e à teologia presbiteriana. Enumerá-los seria completamente impossível.
Sua Influência Política Os irlandeses-escoceses deram o primeiro sinal de sua posterior influência política já em sua exigência de liberdade religiosa, em Nova York e na Virgínia. Entretanto, com a irrupção da Guerra da Independência, eles tiveram um escopo bem mais amplo para o exercício de suas crenças políticas. Tendo vindo para as colônias por causa de seu desgosto com a administração inglesa no Ulster, a grande maioria deles abraçou ansiosamente a causa dos colonos na luta pela independência.1 Neste conflito, eles desempenharam um papel de liderança tanto no aspecto político quanto no aspecto militar da guerra. Na Pensilvânia, os irlandeses-escoceses estavam descontentes com o controle dos quakers sobre a colônia durante as guerras francesa e indígena, e estavam especialmente insatisfeitos com a representação desigual concedida pelos quakers — que controlavam a Assembléia Geral — às comarcas do Oeste. Eles participaram de protesto ainda mais ativo na Carolina do Norte contra o que julgavam ser uma política injusta de taxação e de representação sobre eles imposta pelo Governador Tryon e pela Assembléia Geral daquela colônia. Eles compuseram o núcleo das forças revoltosas que se opuseram a Tryon após a Batalha de Alamance em 1771. 1
Mesmo assim, tanto na Carolina do Norte quanto na Carolina do Sul, bem como em Nova York e Virgínia, podia-se encontrar irlandeses-escoceses servindo à causa Legalista.
Quando a guerra contra a Inglaterra teve início, em 1775, já estava preparado o caminho para seu apoio à causa colonial. Em 1775, os Sínodos de Filadélfia e Nova York enviaram uma carta pastoral pedindo aos leigos e aos ministros presbiterianos para que apoiassem as resoluções do Congresso Continental, expressando oposição à política colonialista inglesa. Uma cópia desta carta foi enviada para as Assembléias ou Congressos provinciais de todas as treze colônias.1
O papel dos presbiterianos irlandeses-escoceses nesses anos significativos não foi limitado às ações de Presbitérios ou Sínodos, por mais importantes que fossem. Vários indivíduos assumiram posições de proeminência, não apenas no âmbito do Congresso Continental, mas também nos principais campos de batalha da guerra. No primeiro Congresso Continental de 1774, Robert R. Livingston de Nova York, John Dickinson da Pensilvânia, Patrick Henry da Virgínia e John e Edward Rutledge da Carolina do Sul tiveram bastante influência e continuaram a exercer liderança durante todo o conflito em vários ofícios. Na Convenção Constituinte de 1787, os irlandeses-escoceses desempenharam um papel principal, talvez mesmo dominante. Alexander Hamilton, James Wilson, John Dickinson e John Rutledge destacaram-se em seus esforços para levar a obra da convenção a uma conclusão que tivesse êxito. George Bancroft, um destacado historiador do século 19, declarou que John Rutledge fora o maior estadista do sul da Virgínia. Entretanto, a influência dos irlandeses-escoceses não terminou com a adoção da Constituição. No primeiro gabinete de Washington, eles estavam representados por Alexander Hamilton, Secretário do Tesouro, e Henry Knox, 1
Records of the Presbyterian Church, pp. 466- 469.
Secretário de Guerra. Quatro membros da primeira Suprema Corte também eram de descendência irlandesa-escocesa: James Wilson, John Blair, James Iredell e John Rutledge. Após 1800, a influência dos irlandeses-escoceses em questões nacionais começou a diminuir. A medida que se moviam para o Oeste eles ficavam menos concentrados e seu impacto sobre a vida americana era proporcionalmente menor. As novas migrações da Europa igualmente apressaram esse processo de declínio de influência. Após 1775, as migrações do Ulster virtualmente cessaram, e depois de 1800 chegaram novas levas da Inglaterra, da Irlanda católico-romana, da Escandinávia e da Alemanha. O aumento das igrejas metodistas e batistas, já mencionado, cresceu num ritmo bem maior do que o Presbiterianismo, que já não era, em termos de número, fator principal de influência teológica no Protestantismo. O Calvinismo estava sendo ofuscado pelo crescimento dos grupos arminianos e mesmo semipelagianos dentro do Protestantismo americano. Estes fatores não encerraram subitamente a influência dos presbiterianos irlandeses-escoceses na vida política da nação. Sua influência continuada pode ser vista no surgimento de líderes políticos que, em maior ou menor extensão, compartilhavam das convicções políticas e teológicas de seus ancestrais do século 18. Presidentes tais como Andrew Jackson e James K. Polk refletiam sua herança. Vários eruditos insistem em que Woodrow Wilson foi o mais famoso expoente da herança irlandês-escocesa na vida política americana do século 20. Wilson pode ter sido a última dessas vozes influentes do Presbiterianismo irlandês-escocês na vida americana.
Educação entre os Irlandeses-Escoceses
A insistência dos irlandeses-escoceses na necessidade de um ministério instruído teve um impacto duradouro na educação americana, que foi bem além dos limites do Presbiterianismo como tal. Dessa forma, o Presbiterianismo espelhou essa paixão pela educação e prestou uma inestimável contribuição ao desenvolvimento educacional da nação. Começando com a fundação do Log College, em 1726, e continuando com a fundação do College de Nova Jersey vinte anos depois, o Presbiterianismo inaugurou uma tradição nobre nas questões educacionais americanas. O College de Nova Jersey (que mais tarde se tornaria a Universidade Princeton) exerceu poderosa influência, por mais de um século e meio, em favor da defesa e da extensão do Presbiterianismo irlandês-escocês. Através do Seminário de Princeton essa influência veio a ser intimamente identificada com a teologia da Velha Escola e o seminário tornou-se a cidadela de uma hoste de hábeis defensores da fé, começando com os Hodges até a morte de B. B. Warfield, em 1921.
Todavia, a escola em Nova Jersey não era o único monumento a esse zelo pela educação. Academias foram estabelecidas em várias colônias tais como o Liberty Hall na Virgínia, por William Graham, agora Washington and Lee University. Os Presbiterianos da Virgínia também fundaram o Hampden Sydney College, em 1776. Embora muitas destas escolas tenham perdido sua identidade presbiteriana e desertado da fé que as trouxe à existência e que, por tanto tempo, os nutriu, não devemos ser cegos para o fato. de que essas instituições desempenharam um papel muito importante na formação do caráter americano e forneceram muitos líderes tanto para a Igreja como para a nação ao longo dos anos.
Os Irlandeses-Escoceses na Vida Econômica da Nação Durante o século 18, a grande maioria dos Presbiterianos irlandeses-escoceses estabeleceram-se na fronteira colonial e, portanto, se engajaram na agricultura. Poucos deles, como os Livingstons de Nova York, tornaram-se grandes latifundiários, enquanto que alguns, como James Iredell, da Carolina do Norte, e os Rutledges, da Carolina do Sul, puderam combinar suas atividades agrícolas com suas atividades forenses e suas carreiras em cargos públicos, porém estes foram mais exceção do que regra. O modelo agrícola estabelecido durante o século 18 também continuou a ser válido durante a primeira metade do século 19. Gradualmente, vários agricultores deixaram a fazenda e ingressaram na vida industrial da nação. Um dos primeiros a se tornar um líder na crescente vida financeira e industrial da república foi Cyrus McCormick, famoso pela introdução da colheitadeira, que revolucionou a agricultura americana. É duvidoso, porém, que os irlandeses-escoceses tenham tido um impacto tão grande no desenvolvimento industrial e financeiro como no âmbito político, enquanto grupo. Mesmo sua influência política já estava bastante atenuada por volta de 1850, com exceção de sua força através de lideres individuais. E, mesmo assim, é duvidoso que se possa afirmar que esses homens podiam ser considerados como representantes da herança irlandês-escocesa do século 18, exceto de um modo bastante geral. De forma alguma as atividades econômicas dos irlandesesescoceses, durante o século 18 ou princípios do século 19 dão peso à tese de Weber-Troeltsch, que se tornou tão popular em nossos dias. Não há evidência de que seu Calvinismo tenha produzido o Capitalismo moderno na América, ou de que alguma vez eles
tenham crido que o sucesso econômico deveria ser considerado como prova de que eles eram eleitos.1 Em todas as suas atividades — agrícola, política, econômica, social e educacional — eles se mantiveram firmes na sua crença de que a principal finalidade do homem é “glorificar a Deus e nele se deleitar para sempre”. Essa grande convicção foi sua contribuição duradoura à vida da América, e temos para com eles uma grande dívida de gratidão.
1
O Sínodo também pediu que a igreja observasse um dia de jejum e oração em favor do Segundo Congresso Continental.
O Calvinismo Holandês na América John H. Bratt - Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
John H. Bratt é professor Emérito de Religião e Teologia no Calvin College em Grand Rapids, Michigan. Ele é graduado no Calvin Theological Seminary (Th.B), Columbia Seminary (Th.M). Harvard Divinity School (S.T.M.) e Union Theological Seminary (Th.D.). Lecionou no Departamento de Religião do Calvin College durante trinta e cinco anos. Escreveu New Testament Guide (Eerdmans, 1946, ed. rev. 1961). Springboards for Discussion 1 (Baker, 1970), Springboards for Discussion II (Baker, 1974) e The Final Curtain (Baker, 1977); também organizou The Rise and Development of Calvinism (Eerdmans, 1959) e The Heritage of John Calvin (Eerdmans, 1973).
CAPÍTULO 13 O CALVINISMO HOLANDÊS NA AMÉRICA
Ingressando nos Países Baixos através dos escritos de João Calvino, escritos que foram contrabandeados sob os olhos de águia dos dominantes espanhóis, e através de estudantes que estudaram em Genebra (incluindo eruditos tais como o compositor musical Dathenus e Bogermann, famoso pelo Sínodo de Dort), e através dos huguenotes que desceram da França, o Calvinismo fortaleceu-se nos Países Baixos em meados dos anos 1500. O Luteranismo, Zwinglianismo e o Anabatismo o precederam em terreno holandês, mas a coesão do Calvinismo, seu espírito de organização e sua devoção à liberdade política e espiritual o levaram a uma posição de liderança. Eeningenburg diz que: O Calvinismo propiciou o tipo de religião evangélica capaz de robustecer os nervos de um povo perseguido e caçado. Sua ênfase à soberania absoluta de Deus e à realização de sua vontade a todo custo era exatamente o que essa terrível hora dos Países Baixos requeria.1 Por causa de seu papel estratégico na luta pela liberdade e na quebra dos grilhões da Espanha, virtualmente desempenhada pela Pacificação de Ghent (1576), a calvinista Hervormde Kerk tornouse a Igreja estatal e o Calvinismo, ou a Fé Reformada, tornou-se a religião oficial dos Países Baixos. Isso significava privilégios e prerrogativas e o apogeu para o Calvinismo, que alcançou seu ponto máximo no histórico Sínodo de Dort (1618-19).2 1
Elton E. Eeningenburg, A Brief History of the Reformed Church in America (Grand Rapids: Douma, s. d.), p. 19. 2 Deve-se acrescentar que essa posição privilegiada contribuiu de forma considerável para o
O século 17 foi a era gloriosa na história holandesa. Herdando um vasto império colonial dos espanhóis e portugueses, a Holanda veio a ser reconhecida como uma potência econômica e política. A indústria, a pesca, a construção naval e a manufatura de tecidos floresciam. A vida cultural enriqueceu-se e enriquecia — na pintura havia Hals, Vermeer e Rembrandt; na literatura Cats, Hooft, Huygens, Vondel e Revius; nas ciências, van Leeuwenhoek, Boerhaave e Swammerdam; na filosofia, Espinoza; e na jurisprudência internacional, Grotius, o “pai do direito internacional”. Foi na primeira parte desta Era Dourada que o Calvinismo holandês teve seu início em solo americano. Primórdios O empreendimento foi uma fase do mercantilismo e colonialismo holandês. Por volta de 1620, vários postos comerciais patrocinados pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, uma criação de William Usselinx, em 1609, para competir com a altamente lucrativa Companhia Holandesa das Índias Orientais, pontilhavam o Rio Hudson e tinham estabelecido um próspero negócio no comércio de peles e pelos macios de certos animais. O centro desta intensa atividade comercial era Nova Amsterdã, rebatizada de Nova York sob a ocupação inglesa, em 1664. Porém, embora a motivação comercial predominasse neste novo empreendimento e a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais não fosse religiosamente orientada,1 a religião de natureza calvinista estava destinada a desempenhar um importante papel. É verdade declínio do Calvinismo nos Países Baixos no século 18, quando a Igreja estatal finalmente tornou-se a Igreja dominada pelo Estado. 1 Na verdade uma das queixas apresentadas por alguns Novos Holandeses ao Parlamento Holandês foi sobre esse assunto: “Os Diretores (da Cia. das Índias Ocidentais) não fizeram qualquer esforço para converter ao Cristianismo nem os indianos, nem os negros ou escravos que a companhia ali possuía”. Citado por Gerald F. de Jong, “The Dutch Reformed Church and Negro Slavery in Colonial America”, in Church History nº 40 (1971): 429.
que a carta patente original, de 1621, tratava unicamente de poderes civis e direitos comerciais, porém isso foi retificado em 1623 pela inclusão do seguinte artigo: Dentro de seu território só será permitido cultuar segundo a Verdadeira Religião Reformada ... e através de uma boa vida cristã devem tentar atrair os índios e outras pessoas de coração obscurecido ao Reino de Deus e à sua Palavra, sem, contudo cometer qualquer perseguição religiosa.1 Fica manifesto a partir dessa última cláusula que, embora o culto público fosse permitido unicamente à Igreja Reformada Holandesa, era permitido a adeptos de outros cultos adorarem em suas casas (havia desde cedo, na colônia, também luteranos, católicos, anabatistas e puritanos ingleses) e essa liberdade restrita assegurou às pessoas o que era chamado de “liberdade de consciência”. No que toca ao exercício da religião, primeiramente alguns poucos homens leigos denominados ziektebezoekers (visitadores dos doentes) propiciavam ministração espiritual. Em 1628, porém, o primeiro pregador ordenado, Dominie2 Jonas Michaelius, um formado da Universidade de Leiden, com alguma experiência missionária e de capelania, atravessou o oceano e organizou a Igreja Reformada Holandesa, estabelecendo uma forma presbiteriana de governo eclesiástico. O grupo adotou os três padrões doutrinários do Sínodo de Dort — a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort. Eles formalizaram a membresia e, com uma congregação inicial de cinqüenta comungantes, estabeleceram o primeiro grupo “puro” depositário do Calvinismo (doutrina 1
Charles E. Corwin, A Manual of the Reformed Church in America, 1628-1922 (Nova York, Board of Publications and Bible School Work of the Reformed Church in America, 1922), p. 3. 2 Dominie é um titulo da Igreja Reformada Holandesa que significa “pastor” ou “ministro”.
calvinista e administração presbiteriana) no cenário americano. Cinco anos mais tarde, as comunidades reformadas holandesas construíram duas igrejas e começaram também a obra missionária de ofertas de brindes entre os índios Algonquin, mesmo que Michaelius fosse bastante cético quanto ao valor desta prática. As Igrejas holandesas americanas eram ligadas ao Presbitério de Amsterdã, um dos Presbitérios do Sínodo da Holanda do Norte. Em contraste com os puritanos, que se estabeleceram na Nova Inglaterra com forte motivação religiosa, essa colônia da Nova Holanda cresceu vagarosamente (em 1646 a população mal alcançava um mil) e sua história inicial foi marcada por vários problemas. Um dos problemas era a tensão nas relações IgrejaEstado. Ao manter o ideal calvinista da integração e seu argumento de que a Igreja deveria servir como consciência do Estado e o Estado deveria promover a verdadeira religião — neste caso, a religião Reformada Holandesa — a Igreja fez francas intromissões em questões políticas e civis. Não hesitou também em se engajar em julgamentos de censura e de repreender ocasionalmente os líderes da Companhia em público. Dominie Michaelius chamou o Diretor Geral Minuit de “homem velhaco que, sob a traiçoeira máscara da honestidade, era um composto de toda iniqüidade e maldade”. De modo semelhante Dominie Bogardus, que chegou em 1631, chamou ao sucessor de Minuit, Wouter von Twiller, de “fraco, descolorido e corrupto... um filho do Diabo... cuja única qualificação era o ter-se casado com a sobrinha de Van Renssalaer e, por duas vezes, ter visitado a Nova Holanda num cargueiro de bois".1 Os diretores gerais da Companhia respondiam na mesma moeda e interrompiam os cultos da Igreja, marcando práticas de tiro ao alvo no terreno da Igreja, enquanto se realizavam os cultos. O entendimento entre Igreja e Estado sob a autoridade de Deus é um ideal nobre, mas, segundo o ilustra tão freqüentemente a História, é um ideal muitas 1
Edward A. Ellis, The Epic of New York City (Nova York: Coward-McCana, 1966), p. 31.
vezes frustrado sob as agruras da realidade concreta, e resulta numa colisão. Um segundo problema era a distribuição esparsa dos colonos. Por volta de 1626, Nova Amsterdã tinha duzentos habitantes e, em 1628, apenas duzentos e setenta. Quando a Inglaterra assumiu o controle da colônia em 1664 — sem grandes objeções dos holandeses, pois os colonos não estavam satisfeitos com o acordo que tinham firmado com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, e os termos da rendição foram bastante amenos — a população da Nova Holanda, da qual talvez setenta e cinco por cento era holandesa, era de 8.000 pessoas distribuídas em cerca de trinta e três cidades e vilas, além das áreas agrícolas nos arredores.1 Nove das cidades que gozavam de apoio oficial dispunham de escolas elementares e Nova Amsterdã tinha uma escola de latim; em todas elas as Escrituras e o Catecismo de Heidelberg ocupavam uma posição de proeminência. Não há dúvida de que a população continuou pequena porque a colônia era primariamente orientada para o comércio e as pessoas tinham medo dos índios e as condições de vida na terra-mãe eram satisfatórias (conforme Arnold Mulder diz: “Os que estão bem acomodados não emigram”). Depois de 1664, a imigração holandesa virtualmente cessou. Uma das medidas tomadas para promover a imigração foi o sistema de senhorio. Fazia-se um acordo pelo qual um recrutador que trouxesse cinqüenta famílias no espaço de quatro anos seria agraciado com uma propriedade de proporções razoáveis e com o título de patrono, que consistia na posse de poderes semi-feudais. E esse, por sua vez, ficava obrigado a promover o culto a Deus em conformidade com a religião “Cristã Reformada” e providenciar um 1
Como contraste, a Nova Inglaterra com seu clima difícil e solo pedregoso, por volta de 1640 tinha atraído uma população de cerca de 30.000 pessoas, doze anos após sua fundação. Não há dúvida de que o fator determinante foi a liberdade religiosa que propiciava.
ministro e um professor escolar. Foram estabelecidos seis destes senhorios, mas apenas um deles, Rennsaelerswijk, perto de Albany, obteve algum sucesso. Além disso, esse acordo criou um novo problema, o da autonomia da Igreja de Jesus Cristo. Poderia o ministro, sujeito como estava ao patrono, falar profeticamente e manifestar suprema lealdade a seu Senhor celestial, ou estaria ele sujeito, antes de tudo, a seu senhor “feudal"? Um terceiro problema era a falta crônica de pregadores para a colônia. De 1631 a 1645 houve somente um ministro residente, Dominie Bogardus. Em 1664, quando aconteceu a transferência da colônia para o governo inglês, havia treze igrejas com seis pastores, mas logo depois três destes pastores voltaram para a Holanda, Nova Jersey e Carolina do Sul, respectivamente, deixando três ministros idosos — com idade de 62, 70 e 72 anos — responsáveis pelo cuidado espiritual das igrejas holandesas. A carência persistia. Em 1700, havia vinte e três Igrejas e apenas seis ministros; em 1721 eram quarenta Igrejas e treze ministros; em 1740 a diferença era de sessenta e cinco para vinte; em 1772 os números eram cem e quarenta e um e 41; e em 1792, quando foi assegurada total independência para a Igreja Holandesa americana, havia cento e dezesseis igrejas e quarenta ministros.1 Uma das principais razões para essa carência era a dependência da Holanda para prover pastores e para treinar e ordenar candidatos ao ministério. Os ministros holandeses nos Países Baixos, com raras exceções, não estavam muito desejosos de servir em colônias americanas. Além disso, o Presbitério de Amsterdã era ciumento em relação às suas prerrogativas e, diferentemente dos puritanos — que oito anos após a fundação da colônia estabeleceram o Harvard College a fim de que "não fosse entregue à Igreja um ministério 1
Novamente a titulo de contraste, os puritanos tinham uma liderança espiritual adequada. Por volta de 1632 eles contavam com treze ministros, todos formados em faculdade, e por volta de 1647 já tinham 130, todos à exceção de dois preparados em faculdade.
iletrado” —, insistia em que os candidatos para o ministério da Igreja Reformada Holandesa da América fizessem seu treinamento e recebessem sua ordenação na Holanda. Como conseqüência, a vida espiritual sofreu muito e as condições morais da Colônia, onde havia bebedeiras, desonestidade e licenciosidade em proporções consideráveis, também foram afetadas. Relativamente cedo já estava presente um movimento em favor de um presbitério americano. Dominie Polhemius, em Long Island, propôs, em 1662, uma associação de ministros para intercomunicação e conselho mútuo. A proposta trouxe pouco resultado. Porém, em 1737, os elementos progressistas e de mentalidade evangelística da Igreja constituídos de doze das sessenta e quatro congregações e nove dos vinte e um ministros, propuseram o Coetus, uma união de anciãos e ministros que se reuniria anualmente: Para considerar, determinar, dar sentença e estabelecer todos os assuntos e dissensões que possam ocorrer, ou que sejam trazidos diante de nós para ação, pois estando (aqui) no país estamos em melhor posição para julgá-los e para detectá-los e suprimi-los logo no seu início.1 O objetivo expresso desse Coetus era a manutenção da ordem da Igreja. Embora estes líderes professassem contínua lealdade e submissão ao Presbitério de Amsterdã, os poderes desse presbitério incipiente gradualmente foram se ampliando. No curso de sua história ele chegou a ordenar nove ou dez homens, e manteve o movimento em favor de um treinamento doméstico de seus próprios ministros, seja numa cadeira especial do King’s College ou Princeton, ou num Seminário próprio. Apoiando o movimento estava a tradução da Liturgia, dos Salmos e Hinos para o inglês, em 1
Gerald F. De Jong, The Dutch in America (Boston: Twayne, 1975), p. 98.
1745. O início de cultos em inglês, feitos por um escocês, A. Laialie, em 1763, foi ato que provocou alguns processos e revoltas; bem como a garantia de uma permissão para uma escola liberal de Artes em 1770, que levou o nome de Queen’s College.1 Em oposição ao partido dos que constituíam o Coetus, havia o contingente da Conferentie — composta de elementos altamente conservadores e doutrinariamente orientados, homens que insistiam no uso exclusivo da língua holandesa para preservar a ortodoxia2 e que desejavam manter fortes laços com a pátria mãe. Eles viam as ações dos integrantes do Coetus com muita suspeita e consideravam a declaração de lealdade destes para com a Igreja Reformada holandesa como simplesmente uma “cortina de fumaça”. Ocorreu uma amarga disputa interna. A Igreja dividiu-se em 1755 e não foi reunificada até 1772. O reconciliador das duas partes hostis foi John H. Livingston, um formado de Yale, que foi o último candidato americano a ser enviado à Holanda para treinamento teológico e que goza da distinção de ser o “Pai da Igreja Reformada na América”. Voltando em 1770, esse nobre estadista eclesiástico fez da união das duas alas em conflito seu primeiro objetivo. Em 1771, redigiu-se um Plano de União, que foi submetido a um comitê composto de quatro homens da Coetus, quatro da Conferentie e quatro neutros. Após algumas discussões vigorosas, adotaram o Plano e o enviaram às suas respectivas convenções e às diversas congregações para ratificação.3 Embora os signatários penhorassem adesão à constituição da Igreja Reformada Holandesa, o plano exigia a constituição de um Corpo 1
O Queen’s College iniciou suas atividades em New Brunswick em 1771, com um docente. Em 1774 Matthew Leydt foi seu primeiro formando, deleitando o auditório trazendo mensagens em latim, inglês e holandês por ocasião daquela primeira formatura. 2 Outros grupos de imigrantes sustentavam convicções semelhantes. A preservação da fé estava inseparavelmente ligada à preservação da língua. 3 É possível que a reunião dos presbiterianos da Velha Luz e Nova Luz em 1758 estimulou os holandeses a terminarem com seu cisma.
Geral na América, com poderes de ordenação, acrescentando a proviso (providência) de que os nomes dos examinados e ordenados seriam relatados às Igrejas da Holanda. Fez-se provisão para apelos ao Presbitério de Amsterdã e ao Sínodo da Holanda do Norte. O Plano também concordava em que um professor de teologia da Holanda instruísse, na América, os jovens para o ministério, em adição ao pastorado de uma Igreja. O sistema de “aprendiz” entretanto, não perdurou por muito tempo visto que, logo em seguida, anexou-se um departamento teológico ao Queen’s College e Livingston foi escolhido tanto para ser o presidente da escola quanto para ser professor de teologia. Um quarto problema era a ameaça do estabelecimento do episcopado na Colônia. Quando a mudança de controle aconteceu em 1664, e a bandeira inglesa foi desfraldada sobre Nova Amsterdã (Nova York), a população, em sua maioria, era holandesa, e os ingleses, conforme as Duke’s Laws [Leis do Duque] prometeram aos holandeses o livre exercício de sua religião desde que não perturbassem a paz. Todavia, após um breve episódio de reconquista da independência holandesa (1672-74), os governantes ingleses tornaram-se mais arbitrários e mais agressivos. Em 1686, foi baixado o Test Act, proposto primeiramente em 1673, e promovido por alguns zelosos episcopais; esse Test-Act exigia que cada pessoa fizesse juramento de lealdade ao rei da Inglaterra; que cada um deveria tomar os sacramentos segundo a Igreja Anglicana, e que o Livro das Orações Comuns deveria ser lido em todas as Igrejas nos domingos e dias santificados. Isso criou a suspeita de se estar querendo estabelecer a Igreja Anglicana nas Colônias, pelo que os holandeses protestaram veementemente. As condições melhoraram com a ascensão de um protestante holandês, Guilherme III, ao trono da Inglaterra, em 1689 e, em 1696, a congregação em Nova York recebeu uma autorização que lhes garantia o direito de propriedade da sua Igreja bem como a “liberdade de cultuar a Deus conforme as Constituições e direções da Igreja Reformada da
Holanda, aprovadas e estabelecidas pelo nacional Sínodo de Dort".1 Outras Igrejas holandesas espalhadas por Nova York e Nova Jersey buscaram os mesmos privilégios, e igualmente receberam pública permissão da liberdade. Um quinto problema era o da “ortodoxia morta” e um declínio do fervor religioso. Não eram apenas as idéias racionalistas geradas pela ciência newtoniana e pela filosofia lockeana que ameaçaram a Igreja, mas também o formalismo, o tradicionalismo e o intelectualismo atingiram a Igreja no final do século 17 e início do século 18. A época estava madura para as ondas de reavivalismo que varreram a América nos anos de 1700. Nas colônias holandesas o precursor do reavivamento foi Dominie W. Berthorf (1656-1727), ordenado pelo Presbitério de Middleburg na Holanda. Sua pregação na América foi marcada por calor emocional e por uma ênfase sobre a experiência de conversão. Entretanto, a principal figura do reavivamento foi Dominie J.F. Frelinghuyzen, que fora convocado em 1720 para o vale de Raritan, em Nova Jersey. Filho de um ministro reformado e profundamente influenciado pelo Pietismo holandês, ele encontrou a religião nas áreas de Nova York e de Nova Jersey em um nível bastante baixo. Lá havia frieza e formalismo, falta de disciplina, muita precisão doutrinária, porém pouca evidência de vida espiritual. Frelinghuyzen lutou poderosamente para remediar a situação. Ele surpreendeu seus ouvintes, que estavam acostumados a longos e secos tratados doutrinários, com sermões carregados de emoção, marcados por um senso de urgência e uma chamada ao arrependimento. Utilizou a língua inglesa para novamente atrair os jovens, muitos dos quais tinham-se desviado. Dirigindo seus golpes à consciência individual, ele enfatizou a auto-estima e a necessidade de uma experiência pessoal e consciente da graça de Deus. Como resultado da infusão do Pietismo na Igreja Reformada Holandesa, houve um 1
E. T. Corwin, A History of the Reformed Church, Dutch in American Church History Series (Nova York: Christian Literature, 1895), 8:112.
despertamento espiritual de dimensões consideráveis e a constituição de várias igrejas novas. O estabelecimento dessas congregações avultou o problema da falta de liderança espiritual adequada, e Frelinghuyzen somou sua voz à daqueles que pediam um presbitério americano e a independência eclesiástica. Após a morte de FrelIinghuyzen, em 1761, esse movimento teve seqüência através de Dominie Jacob Hardenburgh e, como conseqüência da licença para o Queen’s College acima mencionada, conclamava o povo por: ... estudo nas línguas aprendidas, nas artes liberais e nas ciências filosóficas; e também pedia que houvesse escola de profetas na qual jovens levitas e nazireus fossem preparados para ingressar no ofício do ministério sagrado.1 Por causa do reavivamento, a Igreja cresceu em pelo menos um terço, e por volta da irrupção da Revolução, a Igreja Reformada Holandesa contava cem igrejas, quarenta e um ministros e setenta mil membros. Ela era a sétima maior denominação na América. Deve-se esperar que o longo período de isolamento étnico promovido pela manutenção da língua holandesa e pela dependência eclesiástica da Holanda tenha ajudado muito pouco a capacitar os holandeses reformados a progredirem na realização do ideal Calvinista de Cristo transformando a cultura. Fez pouco mais do que reter o Calvinismo teológico. Os holandeses não provocaram um impacto no mundo das letras e não desempenharam um papel importante na criação da literatura americana, como o fizeram, por exemplo, os puritanos da Nova Inglaterra. E verdade que Walt Whitman e Herman Melville tinham algum sangue holandês em suas veias e que Washington Irving ingressou no jornalismo com suas caricaturas dos holandeses em seu Knickerbocker Papers. 1
William D. Brown, History of the Reformed Church in America (Nova York: The Board of Publication and Bible Schoal Work, RCA, 1928), p. 91.
Porém, os holandeses entraram nas letras americanas mais como assunto do que como autores e serviram de tema para escritores americanos imaginativos. Uma vez que o cenário da luta durante a Guerra Revolucionária foi o território da Igreja Reformada Holandesa, essa teve de se posicionar a respeito da questão. Alguns tentaram manter neutralidade — posição difícil visto que vários prédios foram danificados e grande parte da terra foi devastada. Outros, por segurança pessoal e preservação da propriedade, alinharam-se entre os Legalistas, mas a grande maioria constituiu-se de Patriotas, numa simpatia cordial para com a causa da liberdade. Milhares de holandeses batalharam no Exército Revolucionário e a região de Albany contribuiu à causa patriótica com três generais, dentre os quais o mais famoso é o General Philip Schuyler. O partido constituído pelos integrantes da Coetus, na Igreja, defendia tanto a liberdade política quanto a eclesiástica. As Igrejas davam o seu apoio aos revolucionários americanos. Seus púlpitos “tiniam com apelos vigorosos que despertavam o ardor patriótico e inspiravam a coragem marcial do povo.1 Em 1775 e 1778, atribuindo a causa da guerra aos pecados do povo, os Sínodos da Igreja Reformada Holandesa separaram um “dia específico de humilhação solene, com jejum e oração, pelo perdão dos pecados e pelo afastamento das merecidas misérias".2 Também em 1780 o Sínodo não hesitou em afirmar que essa era uma guerra “justa e necessária".3 A participação na guerra, bem como a americanização crescente, a quebra do isolacionismo e dos padrões educacionais em desenvolvimento, puseram a Igreja Holandesa da América — que rompeu seus laços oficiais com o Presbitério de Amsterdã em 1792 1
Citado por Corwin, History of the Reformed Church, Dutch, p. 175. Acta 1775, p. 57; Acta 1778, p. 69. 3 Citado por John P. Luidens, “The Americanization of the Dutch Reformed Church” (tese de 1969, University of Oklahoma. Fotocópia, Ann Arbor, Mich., University Microfilms, 1975), p. 202.
2
— em condições muito melhores para provocar um impacto sobre o mundo americano. Por um período de cento e oitenta anos após a ocupação inglesa de Nova Amsterdã, em 1664, a emigração da Holanda para a América estava virtualmente paralisada. Ela foi reativada no século 19, quando aconteceu o que passou a ser conhecido como a Grande Migração. Entre 1840 e a irrupção da Guerra Civil, cerca de 20.000 holandeses se estabeleceram na América. Houve um temporário período de calmaria durante o conflito mas, uma vez terminada a guerra, a imigração entrou em passo acelerado, tendo vindo para a América, na década dos anos 1880, cerca de 55.000 pessoas. Como ocorre em muitas migrações, havia fatores motivadores tanto de natureza religiosa quanto de natureza econômica, porém, neste caso, preponderavam os de natureza religiosa. O século 18, no que toca à fé cristã calvinista, foi calamitoso para a Holanda. Os ventos da Revolução Francesa sopravam forte e duramente e o Racionalismo, o Humanismo e o Misticismo procuravam desarticular a fé ortodoxa. Os calvinistas foram reduzidos a um “remanescente fiel” que — encorajado por um círculo de pregadores piedosos que tentavam opor-se à maré — encontravam-se em “conventículos”, num esforço para manter viva a fé. Então, em 1816, ocorreu um evento de grande significação. O rei Guilherme I, recebido de volta do exílio, reorganizou a Igreja Estatal Holandesa (Hervormde Kerk) no interesse da centralização. Os Sínodos, Presbitérios e Consistórios foram colocados sob a jurisdição de um ministério, o Ministério de Assuntos Internos. Foi a transição de uma Igreja favorecida pelo Estado para uma Igreja dominada pelo Estado, e os direitos reais de Jesus Cristo, como Cabeça da Igreja, estavam em perigo. A reação contra essa tomada de controle da Igreja pelo Estado
— e contra a teologia liberal que estava sendo propagada nas universidades e pregada nas Igrejas — tomou a forma, primeiramente, de vigorosos protestos da parte dos pregadores calvinistas e de seus seguidores e, então, quando isso se mostrou ineficaz, tomou a forma de uma separação, por compulsão, da Igreja Estatal. A reação tornou-se conhecida como a Secessão (Afscheiding) de 1834. E foram os adeptos deste movimento divisório que colaboraram para a próxima afluência de calvinistas holandeses para a América.
A Imigração “Pós-Afscheiding” ou a Imigração depois da Separação A Secessão ou Separação de 1834 fora precedida de um reavivamento evangélico em Genebra que, através de intercâmbio de estudantes e escritos evangélicos, propagou-se para a Holanda. Isso levou ao Dutch Reveil [Alvorada Holandesa], uma tentativa de reavivar a Igreja Holandesa. Seus líderes, notadamente Bilderdijk e Da Costa, publicaram advertências, escrevendo panfletos contra a teologia liberal, tentando uma reforma a partir de dentro; e através de seus esforços não apenas fomentaram inspiração para a Secessão ou Separação, mas também deram impulso ao surgimento do Scholte Club na Universidade de Leiden. Esse clube consistia de um grupo de jovens seminaristas preocupados, que estavam destinados a desempenhar um papel de liderança no movimento da Afscheiding. O primeiro líder da Secessão foi Hendrik De Cock, um formando da Universidade de Groningen. De Cock recebera uma formação teológica liberal, mas converteu-se na sua terceira admoestação em Ulrum. Sua leitura da Bíblia, das Institutas de Calvino, dos Cânones de Dort, com sua ênfase na soberania da graça, bem como de autores pietistas tais como Vader Brakel, assim
como ouvir a constante ênfase de um trabalhador diário em sua congregação, Klaas Kuipenga, sobre a necessidade de regeneração e sobre o fato da total depravação do homem, levaram De Cock a mudar seu coração. Sua conversão significou pregação revitalizada, que atraía centenas de pessoas a seus cultos. Mas, quando ele reeditou os Cânones de Dort, batizou filhos de membros de outras congregações, criticou os hinos do Hinário Litúrgico da Igreja Estatal (192 hinos foram introduzidos em 1807, muitos deles fracos doutrinariamente) e publicou um panfleto chamando a vários de seus colegas de ministérios de “lobos com peles de ovelhas”, ele foi suspenso do ministério da Igreja Estatal, por motivo de insubordinação e perturbação da paz. A partir disso, De Cock (que então contava apenas 33 anos de idade) e 144 membros de sua congregação extraíram e redigiram um Ato de Separação, no qual (1) eles se recusavam a comungar com membros da Igreja Estatal a não ser e até que estes retornassem à fé, e (2) convidaram para sua comunidade todos os que amassem a fé reformada. Isso significou o início de uma nova corporação eclesiástica, a Igreja Reformada da Velha Holanda. Secessões subseqüentes — as de Scholte em Brabante do Norte, Van Velzen na Frísia, Brummelkamp em Gelderlândia, et al. — aumentaram a nova denominação e dentro de meio ano eles já contavam com dezesseis congregações. Em 1836, a Igreja Reformada da Velha Holanda celebrou seu primeiro Sínodo. Ela adotou os padrões doutrinários do Sínodo de Dort, ordenou A.C. Van Raalte (cuja ordenação fora recusada pela Igreja Estatal porque ele se recusara a concordar em adotar seus atos legislativos) e pediu ao governo status legal. Eles apelaram para a Constituição de 1814, que garantia liberdade de religião. O governo, porém, interpretou esse artigo como podendo aplicar-se unicamente às Igrejas existentes em 1814 e passou a aplicar um artigo do velho Código Napoleônico, que proibia assembléias desautorizadas de vinte ou mais pessoas. Os da Secessão, baseados na consciência, recusaram-se a obedecer essa proibição. Como conseqüência, teve
início a perseguição. Os membros da Secessão foram presos, multados e encarcerados, e soldados se aquartelaram em suas casas. Embora a perseguição tenha cessado virtualmente com a abdicação de Guilherme I, em 1840, a discriminação continuou e a situação econômica piorou — os impostos eram altos, havia muito desemprego nos anos 40 e houve uma praga nas batatas. Como acréscimo, a “febre da emigração” (Dosker) tinha tomado conta. Os adeptos da Secessão, portanto, decidiram emigrar. Consideraram várias possibilidades: Suriname, Indonésia, África do Sul, Java e América, optando finalmente pela América. Formaram-se sociedades de imigração para proteger os interessados e efetivar os planos. A Grande Migração estava em curso. Uma característica distintiva desta segunda afluência do Calvinismo holandês em solo americano foi o esforço calculado e a atenção escrupulosa dada ao bem-estar espiritual dos colonos. Liderança religiosa foi considerada indispensável. Durante um surto de febre tifóide, quando a emigração estava em andamento, Van Raalte sentiu uma forte chamada para acompanhar os colonos e perguntou: “Quem será o seu Moisés, o seu Arão? Se nenhum mestre, nenhum instrutor os acompanhar, não se tornarão eles logo uma presa para o ateísmo1...?”. Muitas vezes um ministro holandês sentiu-se constrangido a acompanhar sua congregação, ou parte dela, para a América; por exemplo, C. Vander Meulen foi para a Zelândia, Michigan; M.Ypma para Vrieslândia, Michigan; e H.P. Scholte para Pella, Iowa. Scholte disse nesta ocasião: Aqueles que saem serão capazes de ouvir o Evangelho em sua língua nativa, pelo menos durante os primeiros anos, e poderão, dessa forma, receber o sustento espiritual que os confirmará na fé, incentivando-os no amor (e) advertindo-os 1
Citado por Gerrit J. ten Zythoff, “The Americanization of Albertus C. Van Raalte: A Preliminary Inquiry”, Reformed Review nº 30 (1977):85.
contra os desejos da carne que militam contra o Espírito.1 As colônias “berço” foram Holanda, Michigan, sob a liderança de Dominie A.C. Van Raalte, e suas ramificações, Overisel, Noordeloos, Vriesland, et al., que constituíam “De Kolonie”, e Pella, Iowa, sob a liderança de Dominie H.P. Scholte, um independente que preferiu trabalhar sozinho, porém cuja Colônia, após sua morte, filiou-se à Igreja Cristã Reformada. Outros assentamentos calvinistas holandeses se estabeleceram em Illinois e Wisconsin. Vários colonos filiaram-se à Igreja Reformada da América; outros se associaram à Igreja Cristã Reformada, que veio a existir por volta de 1857, pela separação da Igreja Reformada da América. O movimento da Afscheiding era essencialmente uma recuperação do Calvinismo teológico ou doutrinário, vitalmente necessário neste ponto da História. Foi uma volta aos princípios básicos da fé, das verdades bíblicas que se tinham evaporado ou tinham-se diluído sob o sopro da Revolução Francesa. Dessa forma, ele reflete a ala “doutrinal pietista” da tradição reformada. Conforme indicam os sermões de Van Raalte, o Senhorio de Cristo era limitado principalmente a questões de salvação pessoal; ao serviço do reino, à igreja institucional; e à soberania de Deus, à submissão à vontade de Deus na vida cristã pessoal.2 Em certo sentido, era uma “reforma inacabada”. As perspectivas mais amplas do “princípio-da-soberania-de-Deus” ficaram por ser desenvolvidas. É verdade que havia algo desta visão mais ampliada em Groen van Prinsterer, o fundador dos clubes políticos Antirevolutionaire, porém ele permaneceu na Holanda e passou o bastão para Abraham Kuyper. Nesse período, pouco foi feito na América para reivindicar o direito de Cristo sobre toda a realidade e a vida. 1
Citado por De Jong, The Dutch in America, p. 134. Gordon J. Spykman, Pioneer Preacher (Grand Rapids: Heritage Hall Publications, nº 2, 1976), pp. 44ss.
2
Havia pelo menos quatro fatores que limitavam o envolvimento dos Afgescheidene na cultura americana dessa época. Um era a ênfase mística e pietista, particularmente forte nos zelandeses emigrantes, mas que estava, em certo grau, presente em muitos imigrantes desse período. Essa ênfase era nutrida no movimento de conventículos que precedeu a Secessão de 1834 — um movimento que gerou a “ecclesiola in ecclesia”, onde os que estavam religiosamente preocupados buscavam um antídoto contra a pregação fria e racionalista e alimentavam suas almas com oração, estudo bíblico e com os “velhos escritores”, tais como Hellenbroek, Brakel e Lodenstyn. Embora esse espírito pietista fosse salutar em não ter predominância panteísta, ele efetivamente criou um temperamento e uma estrutura mental que não contribuía para uma preocupação ou desenvolvimento vital e cultural de uma visão de mundo e de vida. Em segundo lugar, deve ser lembrado que os principais motivos para que os imigrantes holandeses viessem à América eram a conservação de valores religiosos e a melhoria econômica. Essas pessoas desejavam principalmente a liberdade de exercer sua fé sem restrições, a liberdade de educar suas crianças de um modo cristão, e a oportunidade de construir uma vida decente para suas famílias. O impacto que eles buscavam produzir sobre a América, conforme os objetivos expressos de sua imigração, era restrito à disseminação do Evangelho e à salvação de almas. Embora não estivesse necessariamente fora de sua esfera, eles não tinham a intenção expressa de imprimir algum efeito cultural ao mundo que adotaram. Em terceiro lugar, havia um complexo de inferioridade marcando os colonos da Afscheiding, uma peculiaridade nada incomum a grupos de imigrantes. A maioria deles era de linhagem camponesa rústica e de escassos recursos. Num grupo de emigrantes de 2.300 pessoas, apenas trezentas estavam em condições
financeiras confortáveis. A maioria deles era de fazendeiros. A agricultura não é um inimigo intrínseco da cultura, mas é um atraso cultural inevitável quando todas as horas de vigília de uma pessoa são virtualmente devotadas a arrancar tocos de árvores e extrair o sustento do solo. Especialmente em Michigan, a vida era uma verdadeira luta pela existência e Van Raalte, que, efetivamente, tinha algumas esperanças e ideais de impacto, estava imerso na rude realidade da sobrevivência. Em quarto lugar, havia uma tentativa deliberada de manter a homogeneidade e isso levava ao isolamento e à segregação. O maior objetivo dos imigrantes era plantar sólidas comunidades cristãs, que Van Raalte denominava brandings-puten (“tochas”), para servir como centros irradiadores do Evangelho. O compromisso cristão era o primeiro pré-requisito para a membresia nas sociedades de emigração. E mesmo que alguns imigrantes tenham ido para comunidades já assentadas, através de seu espírito de casta eles construíram para si próprios guetos auto-impostos. Holland Hill, em Milwaukee, e o Groninger Buurt, em Grand Rapids, são exemplos disso. Havia desconfiança e suspeita em relação às coisas americanas, o temor da contaminação e a questão da segurança — tudo isso os manteve unidos. Conseqüentemente os colonos da Afscheiding deram a muitos americanos uma impressão de indiferença e isolacionismo não diferente da dos Amish. Essa impressão, porém, dificilmente era acurada. Havia um certo grau de penetração e assimilação, grau cauteloso porém existente. Os únicos dois líderes treinados em universidade, Van Raalte e Scholte, instavam com os colonos para que, já na primeira oportunidade, se tornassem cidadãos da nova terra. Certo dia, em 1848, o oficial da comarca de Grand Haven veio para “De Kolonie” e concedeu a cidadania para quatrocentas pessoas, por preços reduzidos. Eles descobriram então que os papéis de naturalização, assim como outras mercadorias naquele país, eram
mais baratas por dúzia. Van Raalte e Scholte lançaram os fundamentos para um futuro envolvimento cultural, promovendo a educação de nível superior. Scholte colaborou para a fundação do Central College em Pella, e Van Raalte fundou a Hope Academy, mais tarde Hope College.1 O propósito expresso de Van Raalte, conforme ele disse, era “libertar da irrelevância essas pessoas e sua confissão”. Eles instaram com os colonos para que concorressem a cargos públicos em âmbito local e que prestassem sua lealdade a um dos principais partidos políticos, e ficassem a par dos assuntos da atualidade através de jornais de suas próprias comunidades. Holland tinha seu De Hollander, a partir de 1850, e seu De Grondwet, a partir de 1860; Scheboygan, seu Nieuwsbode; e Pella seus Weekblad e Gazaette. A maioria dos colonos, em Michigan, filiou-se primeiramente ao partido dos Democratas. Não é fácil determinar por que eles agiram assim. Pode ser que, em sua opinião, esse partido expressasse melhor os ideais de Jefferson e Jackson, aos quais eles eram simpáticos, mas é mais provável que eles o fizeram porque os Democratas, mais do que os Liberais, concediam facilidades para a obtenção da cidadania. Os imigrantes de Wisconsin também foram primeiramente Democratas. Porém, em 1854, eles mudaram em grande número para o recém formado Partido Republicano, quando De Nieuwsbode afirmou vigorosamente que qualquer voto para os candidatos democratas, Pierce e Scott, seria um voto para a injustiça e o pecado. Em Iowa, Scholte criticava todos os partidos e filiou-se relutantemente ao Partido Democrata que, para ele, era o menos pior. Entretanto, rompeu com o partido em 1859, por causa de seu desapontamento com a administração Buchanan, e engrossou as fileiras republicanas. Na eleição de 1860, Lincoln venceu em Illinois e Wisconsin, enquanto Douglas, um democrata, conseguiu uma vitória apertada em Michigan e Iowa. 1
A Igreja Cristã Reformada, que desfez sua união com a Igreja Reformada da América em 1857, fundou o Calvin College em 1876.
As duas principais questões sociais que agitavam a América neste período de sua história eram a proibição e a escravidão. Com exceção de pequeninos grupos isolados a favor da proibição, os holandeses dos Estados Unidos eram predominantemente antiproibicionistas. E quando a questão foi para votação, em 1853, a proibição foi estrondosamente derrotada em Michigan, Wisconsin e Iowa. Os colonos a consideravam de caráter muito abrangente, pois ela também teria proibido o vinho na Ceia do Senhor e eles tinham uma forte impressão de que os que apoiavam a proibição estavam fazendo mau uso das Escrituras para apoiar sua causa. Com relação à escravidão, os colonos concordavam unanimemente em que era um mal absoluto. Entretanto, eles diferiam em suas posições quanto à solução do problema. Em Michigan, onde os sentimentos filantrópicos do Reveil eram fortes e onde a obra Uncle Tom’s Cabin [A Cabana do Pai Tomás], de Stowe, era bastante lida, o sentimento abolicionista, promovido por líderes tais como Van Raalte e Vandermeulen, era forte, e algumas pessoas eram ativas na underground railroad,1 isto é, na “promoção de fugas ocultas”. Em Iowa a situação era diferente. Scholte considerava a escravidão como uma questão localizada, que os Estados deveriam resolver. Ele era um grande admirador de Henry Clay, o “Grande Conciliador”. Scholte achava que o Projeto Geral de 1850 e o Projeto Kansas-Nebraska, de 1854, tinham mérito real e apresentou suas próprias propostas de acordo, que foram saudadas por alguns analistas do jornalismo como “de longe o mais cândido e luminoso tratamento da vexatória questão da escravidão que apareceu até agora".2 Lucas não hesita em afirmar que "no importante ano de 1860, os holandeses estavam tão aguda-mente 1
Literalmente. “ferrovia subterrânea”, indica o auxílio secreto para que escravos fugitivos pudessem escapar. 2 Henry S. Lucas, Netherlanders in America (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1955), p. 552.
interessados nas questões políticas com que o país se defrontava, quanto os americanos em ancestralidade nativa".1
Conforme ficou claro acima, uma notável exceção ao antigo padrão de relativo isolamento ou penetração cautelosa, no cenário americano, era Hendrik Pieter Scholte, fundador de Pella, Iowa. Ele tinha uma mente sagaz, um bom domínio da história americana e uma voz e escrita sempre prontas. Ele integrou-se imediatamente na atividade do cenário político americano. Dentro de um ano, depois da fundação de Pella, ele enviou uma petição à legislatura de Iowa pedindo a organização de um município e que aos novos colonos — que tivessem declarado sua intenção de buscar a cidadania — fosse permitido votar e concorrer a cargos públicos. A petição foi concedida e o próprio Scholte foi eleito Juiz de Paz e inspetor escolar na primeira eleição. Ele também era ativo na política nacional. Em 1856, ele e J.C. Breckinridge, o candidato democrata para a vice-presidência, ingressaram na campanha política. Eles organizaram diversos comícios políticos em Michigan, tentando ali barrar a transferência dos democratas para os republicanos. Naturalmente, ele foi criticado e muitos lhe disseram para manter-se dentro dos estreitos limites religiosos. Mas ele tinha uma visão mais ampla do reino. Conforme já observamos, em 1859 ele abandonou os democratas e uniu-se aos republicanos. Neste partido também ele foi muito mais ativo. Em 1860, na convenção estadual republicana, em Des Moines, ele foi nomeado delegado da Convenção Nacional Republicana, em Chicago. Ele era um ardente admirador de Lincoln, tornou-se seu amigo pessoal e foi à posse de Lincoln, em 1861. Scholte foi, neste período, um holandês que ingressou no cenário político e social da nação americana. Porém, ele foi uma exceção à regra. Os outros 1
Ibid., p. 560.
eram caracterizados por um relativo isolacionismo ou, na melhor das hipóteses, por um ingresso cauteloso na cultura americana. De volta à Holanda, na segunda metade do século 19, houve um novo surgimento da Revolução Francesa — que inspirou o liberalismo na Igreja Oficial. Tendo a Universidade de Utrecht como centro nutridor, o Humanismo, o Racionalismo e o Eticalismo inundaram a Hervormde Kerk. Havia uma negação aberta da divindade de Cristo, de seus milagres, de sua expiação substitutiva, de sua ressurreição física e de sua volta. As Formas de Unidade foram abandonadas, a Igreja Estatal perdeu seu caráter doutrinário e os candidatos ao ministério tinham simplesmente de prometer “promover os interesses do reino de Deus”. O líder da ala conservadora, que protestou contra essa debilitação da fé, era um gigante espiritual e intelectual, Abraham Kuyper. Ele era um bom teólogo, um jornalista talentoso e um político consciencioso que se tornou Primeiro Ministro da Holanda, de 1901 a 1905. Teve sua formação teológica na Universidade de Leiden e graduou-se como modernista, mas converteu-se à fé histórica no exercício do seu primeiro ministério em Beesd. Novamente, como ocorreu com De Cock, foi a leitura da Bíblia, seu estudo das Institutas, de Calvino, das Confissões e as admoestações de um dos seus párocos, que colaboraram para a mudança de seu coração. Ao assumir o segundo período ministerial, em Utrecht, o ideal de Cristo como transformador da cultura o dominou e ele empreendeu a tarefa de revitalizar o Calvinismo. Um encontro com Groen von Prinsterer, o pioneiro do partido político antirevolucionário, inflamou seu entusiasmo e reforçou seus objetivos. E quando as doutrinas básicas da fé estavam sendo amplamente repudiadas, contra os vigorosos protestos de Kuyper, ele e seus seguidores foram forçados a sair, e teve lugar a Doleantie, a segunda secessão da Igreja Estatal no século 19. A nova Igreja, denominada De Nederduits Gereformeerde Kerken, organizou seu
primeiro Congresso em 1887 e já naquela data contava com 10.000 membros. Foi esse novo movimento o responsável pela terceira leva de calvinistas holandeses para a América.
A Imigração Pós-Doleantie Kuyper, que liderou essa nova recuperação do Calvinismo teológico e o desenvolvimento do Calvinismo cultural, resumiu suas convicções e seus alvos em sua posse como presidente da Universidade Livre, a qual ele ajudara a fundar em 1882, como uma instituição livre tanto da Igreja quanto do Estado, ao dizer: “Não existe uma polegada de realidade da qual Cristo não diga: É minha”. Ele elaborou suas posições em sua obra de três volumes intitulada Pro Rege. Para ele, liberdade cristã significava que o cristão não apenas tem a liberdade, mas também a responsabilidade de entrar em todas as áreas da vida e reivindicar o senhorio de Cristo sobre elas. Ele procurava concretizar o princípio que julgava ser central nas Escrituras — a soberania de Deus. No que toca à teologia, com algumas exceções tais como a membresia na Aliança da Graça e o destino dos filhos dos incrédulos que morrem na infância, Kuyper reproduziu as posições de João Calvino. Em sua confrontação com a cultura da época, ele desenvolveu, em oposição ao individualismo liberal da Escola de Thorbeck, as posições do socialismo cristão, como visão orgânica da sociedade na qual a preocupação social do homem por seu semelhante tem expressão; a perspectiva da soberania de Deus sobre as várias esferas da sociedade, da qual ele extraiu a sociedade de pais mais do que a de escolas paroquiais; a crença de que missões são a responsabilidade da Igreja, mais do que um esforço conjunto de Igreja e Estado, como em Genebra; a posição de que Igreja e Estado deveriam ser separados, em contraste com o integracionismo de Genebra, e que mesmo assim apresentava obrigações tão
definidas do Estado para com a religião, tais como restringir a blasfêmia, manter o Dia do Senhor e honrar o nome de Deus na Constituição; e o princípio da antítese, que levou à formação de organizações especificamente cristãs. Após 1870, a emigração para os Estados Unidos renovou-se. A perseguição religiosa já não era um fator ativo, mas as condições econômicas da Holanda — salários baixos, alto índice de desemprego, a política liberal de terra adotada pelo governo dos Estados Unidos, conforme está exposta no Ato de Donatária de 1862, e mais uma vez a “febre de emigração” — tudo isso levou milhares de pessoas a emigrar. Na década de 1880, cerca de 53.000 pessoas deixaram a Holanda rumo à América do Norte. Após a Segunda Guerra Mundial houve um novo surto de emigração. Novamente a emigração foi impulsionada por dificuldades econômicas, a “má experiência” da recente ocupação pelos alemães, o temor da Terceira Guerra Mundial, a superpopulação do país, de modo que conseguir uma casa era um privilégio e os empregos eram difíceis de se achar, além do encorajamento de parentes e amigos dos Estados Unidos. Muitos imigrantes estabeleceram-se no Canadá, enquanto outros nos Estados Unidos. Alguns deles filiaram-se à Igreja Reformada da América; a maioria filiou-se à Igreja Cristã Reformada dos EUA e à Igreja Cristã Reformada Canadense. Essas novas ondas de imigrantes trouxeram uma nova e salutar ênfase sobre um Cristianismo que não era apenas soteriológico, mas também cosmológico — um Calvinismo cultural que buscava reivindicar o senhorio de Jesus Cristo sobre todas as áreas da vida. O idealismo estava em alta. As pessoas eram inspiradas a esforços agressivos, pelo fato de que na Holanda o Calvinismo tinha se tornado uma força religiosa, social, política e científica que tinha de ser levada em conta, e eles presumiram que chegara o tempo de
desferir um ataque calculado e frontal sobre a cultura da América. À medida que as tradições da Afscheiding e da Doleantie se fundiam e mesclavam no “caldeirão” americano, surgiram tensões por causa de dois esquemas de pontos de vista oposto. O primeiro esquema era penetração versus isolacionismo; o segundo era permeabilidade versus organizacionismo. No primeiro esquema, a “mente de impacto” estava organizada contra a “mentalidade de conservação”, ou a “mentalidade de envolvimento” oposta à “mentalidade de afastamento”. A primeira tendia para uma maior comunicação dentro de si própria e do ambiente e uma maior imersão no cenário americano, enquanto que a outra olhava desconfiadamente para a proximidade do contato, temia a perda de valores básicos e adotava como lema: “Em nosso isolamento está nossa força”. Homens como Henry Beets e Watson Groen representavam a primeira posição; homens como Klaas Schooland e J. Van Lonkhuyzen representavam a segunda posição. Essa tensão era espelhada por periódicos que surgiam na comunidade reformada dos Estados Unidos durante essa época. Representando o ponto de vista progressista, havia dois periódicos. Um era De Gereformeerde Amerikaan, nascido em 1897 e extinto em 1916. Os editores opunham-se ao transplante de modelos holandeses para os Estados Unidos e argumentavam que seria possível permanecer solidamente reformado mesmo se tornando completamente americanizado. De feição similar era Religion and Culture, lançado em 1919, sob a responsabilidade editorial de E.J. Tuuk. Esse periódico buscava aplicar os princípios calvinistas a todas as esferas de vida. Representando o ponto de vista conservador, estava The Witness, um periódico que iniciou suas atividades na mesma época em que nasceu o Religion and Culture. Esse periódico tomou sobre
si a responsabilidade de indicar e advertir contra os perigos existentes na exposição ao meio-ambiente americano. O Reformed Herald, que veio à existência um pouco depois, apresentava a mesma perspectiva, enfatizando a necessidade do isolacionismo para que a fé reformada não perdesse seu caráter distintivo. Contudo, seus esforços tiveram curta duração. A ênfase Kuyperiana sobre o ataque e o impacto venceu. A questão do modo adequado de causar impacto deu à luz novas tensões, por causa de outro esquema de pontos de vista opostos — os da permeabilidade e os organizacionalistas. Tendo admitido que chegara o tempo de o Calvinismo provocar seu impacto, qual seria a melhor maneira de esse impacto ser efetivado? Através de crentes individuais agindo como “fermento” e como “luz” nas organizações existentes e concorrendo para cargos públicos como candidatos de um dos dois principais partidos políticos? Ou através da união dos cristãos formando organizações separadas e antitéticas? Essa última opção aparentemente foi eficaz na Holanda; não seria o caso de repeti-la nos Estados Unidos? Escolas cristãs diurnas já eram uma organização antitética viável nos Estados Unidos; por que não dar prosseguimento a essa prática e fazer o mesmo na política, no trabalho, no jornalismo e assim por diante? Aconteceram algumas tentativas abortivas. Em 1903, uma sociedade política de estudo foi formada com o nome latino Fas et Jus. Seu objetivo era culminar com a criação de um partido político cristão. Liderada por Johannes Groen e Klaas Schoolland, homens de visão rara, redigiu uma constituição tendo, em seu cerne, o princípio da soberania de Deus nas questões políticas. Esse grupo pequeno, porém idealista, reunia-se com regularidade, estudava princípios políticos de acordo com o pensamento reformado, apoiava-se bastante nas idéias básicas de Kuyper e, depois de dez anos de estudo, julgou que o tempo era próprio para a formação de um partido político cristão. B. K. Kuyiper foi apontado como
presidente de um comitê de redação que fora instruído para redigir as bases constitucionais deste partido. Isso aconteceu em 1913. Entretanto, no ano seguinte irrompeu a Primeira Guerra Mundial. As questões internacionais tiveram preferência e o projeto nasceu morto. A análise feita no pós-morte desse movimento foi de que o movimento era filosófico e teológico demais para a média dos americanos, que eram, por natureza, pragmáticos em seus conceitos e atividades políticas. Nos anos de 1960, um reavivamento desse idealismo teve expressão na formação da National Association for Christian Political Action [Associação Nacional pela Ação Política Cristã] (NACPA), fundada por calvinistas do Canadá e dos Estados Unidos. Eles se encontram regularmente para discutir temas políticos à luz da Palavra de Deus, fazem publicações avulsas manifestando sua posição (e.g., sobre o aborto) e nutrem a esperança de que, finalmente, venham a se tornar um partido político cristão. Suas posições são publicadas no APJ Report [Relatório APJ] um periódico bimestral, e encontra apoio para sua postura organizacionalista num periódico canadense, o Calvinist Contact, bem como numa publicação mensal dos Estados Unidos, a Christian Reformed Outlook [Perspectiva Cristã Reformada], anteriormente denominada Torch and Trumpet [Tocha e Trombeta]. Um segundo esforço abortivo foi a tentativa de produzir um jornal cristão. Em 1920, seis semanas após a morte de Abraham Kuyper, que servira por muitos anos como editor do De Standaard, um jornal cristão da Holanda, J.C. Monsma, um clérigo cristão reformado, produziu a primeira edição do American Daily Standard, publicado em Grand Rapids, Michigan. Ele chegou às ruas, pela primeira vez, na véspera do Natal, tendo a figura de Cristo na primeira página e, em negrito, a história do nascimento de Cristo, segundo Lucas 2. Em sua carta editorial, o editor desaprova a idéia de que a imprensa deve simplesmente ser descritiva e espelhar a vida como ela é, mas, ao invés disso, ele afirmou que a imprensa deve oferecer liderança espiritual, moral e intelectual. Ele expressou
a intenção da equipe no sentido de “aplicar os princípios do Cristianismo protestante às questões públicas dos tempos modernos”. “Não se permitirá que seja impresso”, acrescentou ele, “coisa alguma que, segundo nosso discernimento, seja incompatível com a verdade, cujo nascimento agora comemoramos”. O jornal sobreviveu dois meses e então naufragou nos recifes da “circulação limitada, carência financeira e administração inexperiente".1 A única outra área, além da educação, na qual uma certa medida de sucesso organizacional foi alcançada, foi a do trabalho. A Christian Labor Association foi formada em 1930 com o propósito expresso de exercer justiça em questões trabalhistas e problemas do trabalho, de acordo com os princípios cristãos. Essa associação fortaleceu-se muito no Canadá e está bem representada nas comunidades reformadas dos Estados Unidos. Os permeabilistas, liderados por homens tais como Henry Stob e Eugene Oosterhaven, difundindo suas convicções em periódicos como o Reformed Journal e o Reformed Review expunham a tese de que a questão de organizações separadas e antitéticas não é assunto de princípios, mas de estratégia cristã. Eles afirmaram que não há exigência bíblica para essas organizações, e que os textos comprobatórios geralmente apresentados (e.g., Mt 12.30; 2Co 6.17) se referem ao indivíduo e ao seu relacionamento com o mundo e não podem ser ampliados para abranger as organizações cristãs, sem se violentarem as Escrituras. A questão se resume na utilização dos melhores meios em favor do progresso do Reino de Deus. Com relação aos filhos de pais cristãos é altamente essencial que sua educação seja unívoca e que Deus seja reconhecido tanto na escola quanto em casa e na Igreja, e à vista de sua flexibilidade e de sua susceptibilidade a impressões, é sábio treiná-los em escolas cristãs separadas. No que se refere a sindicatos de trabalhadores cristãos, 1
Ibid., p. 572.
eles podem ser eficazes em certas áreas e nessas deveriam ser implementados; em outras áreas, e.g., em grandes cidades, eles exerceriam pequena ou nenhuma influência e sua implementação seria impraticável. O melhor caminho é promover candidatos cristãos para todos os cargos públicos a níveis local, estadual e nacional; encorajar os cristãos a que se articulem e que suas vozes sejam ouvidas nas organizações assim chamadas neutras ou seculares; engajar-se num lobby cristão; e, em geral, procurar exercer uma influência cristã positiva em todas as esferas em que vivemos e transitamos. O alvo de Cristo, o transformador da cultura, deve sempre ser mantido em mente; devemos trabalhar incessantemente para conseguir o reconhecimento da soberania de Deus sobre toda a realidade; e devemos ser infatigáveis em nossos esforços de apresentar as reivindicações da soberania de Cristo sobre todas as esferas da vida. Esse ideal do Calvinismo primitivo foi nutrido tanto na leva inicial como no afluxo dos Afgescheidene do Calvinismo sobre o solo americano. Porém, devido aos fatores retro-mencionados, ele encontrou muito pouca implementação e foi a tradição teologicamente sólida do Calvinismo que foi levada adiante em solo estrangeiro. Com o surgimento do Calvinismo kuyperiano nos séculos 19 e 20, esse ideal promete atingir uma realização bem maior com a influência dos Doleantie na vida e na cultura americana.
A Influência de Calvino no Canadá W. Stanford Reid - Tradução de Júlia Pereira Lalli
W. Stanford Reid é professor emérito de História na Universidade do Guelph, em Guelph, Ontário. Possui títulos pela Universidade McGill de Montreal (B.A., M.A.), pelo Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia (Th.D.), pelo Wheaton College de Wheaton, Illinois (L.H.D.Hon.), pela Universidade da Pennsylvania, Philadelfia, (Ph.D.) e pelo Presbyterian College de Montreal, Quebec (D.D.Hon). Serviu no ministério pastoral em Montreal e como membro da Arts Faculty na Universidade MacGill. O Dr. Reid tem escrito artigos para periódicos como Church History, Fides et Historia, The Scottish Historical Review, The Canadian Historical Review, Speculum, Christianity Today, The Presbyterian Record e muitos outros. Escreveu e organizou cerca de dez livros sobre a Reforma Protestante e sobre a História do Canadá. E membro da American Society of Church History, da Canadian Society of Church History, da Scottish Historical Society, da Conference on Faith and History, da Scottish Church History Society e da Royal Historical Society.
CAPITULO 14
A INFLUÊNCIA DE CALVINO NO CANADÁ
Pode surpreender a muitas pessoas o fato de ter havido seguidores de Calvino entre os europeus que viajavam pelo Canadá no início da História moderna. Há, por outro lado, aqueles que sustentam a idéia de que o próprio Jacques Cartier, se não foi ele mesmo um protestante, no mínimo veio de uma família huguenote. No entanto, o certo é que o almirante Coligny, um dos líderes da “Religion Pretendu Reformé”, como os católicos romanos a chamavam, chegou a pleitear junto ao rei francês, na década de 1560, permissão para que os calvinistas franceses imigrassem para a Nova França onde poderiam usufruir de liberdade religiosa, tornando-se, ao mesmo tempo, o posto avançado do poderio francês. Essa solicitação foi negada, o que não impediu os calvinistas franceses de continuarem a demonstrar grande interesse pelas novas colônias que começavam a ser fundadas na região que hoje se chama Quebec. Houve, no entanto, mais do que interesse puramente teórico por parte dos comerciantes huguenotes de Dieppe, La Rochelle e de outros portos costeiros, pois eram eles os únicos que estavam em condições de arriscar tanto seu dinheiro no estabelecimento de novas colônias, como suas embarcações em empreendimentos comerciais. Apesar das muitas dúvidas que há sobre a questão de se saber se Samuel Champlain era ou não huguenote, seu nome ao menos parece indicar uma provável origem de família protestante. Melhor testemunho, no entanto, é o fato de que os De Monts, uma das famílias que trabalhavam a seu lado no estabelecimento do acampamento de Porte Royale, na Bay of Fundy, eram
indubitavelmente protestantes. Além deles, um considerável número de calvinistas se instalou naquela região depois que a Cidade de Quebec foi fundada, em 1603, sendo que o primeiro senhorio concedido pela coroa francesa foi dado a um dos Caens, huguenotes de Dieppe. Conta-se também que os governantes católicos romanos costumavam reclamar dos protestantes, alegando que estes chamavam a atenção dos índios com os Salmos que cantavam, enquanto velejavam pelo rio St. Laurence, e depois usavam estes contatos para incutir-lhes a versão protestante da religião cristã. Deste modo pode-se perceber que os calvinistas franceses desempenharam importante papel na formação do país.1 No entanto, nem tudo eram flores para os protestantes, pois os missionários católico-romanos não ficavam nada satisfeitos com o fato de que os protestantes pudessem usufruir, no Novo Mundo, de uma liberdade que lhes era negada em seu próprio país. Não foi surpresa, portanto, o fato de os huguenotes serem banidos do país quando a Companhia de Jesus e o Cardeal Richelieu decidiram fazer da Nova França um baluarte da ortodoxia católico-romana. Isso aconteceu em 1633 e, a partir de então, o Cardeal Richelieu procurou encaminhar apenas bons católicos romanos para a colônia, certificando-se também de que apenas católicos pudessem investir no comércio de peles e em outros empreendimentos. Ele tentou organizar diversas companhias como a Companhia Nova França, conhecida como a Companhia dos Cem Associados, bem como outros grupos, sem jamais conseguir grande sucesso. Em função deste fato, as autoridades francesas consideraram importante permitir que comerciantes de La Rochelle voltassem a negociar com a colônia, sem lhes permitir, no entanto, a posse de terras ou mesmo 1
Para uma exposição mais detalhada ver meu artigo: “Protestant Pioneers in New France”, The Presbyterian Record, vol. 97, nº 9 (Toronto, 1974), pp. 16-18. Ver também O. Zoff, The Huguenots (Londres: Allen & Unwin, 1943), pp. 248 ss.; G. E. Rieman, The Trail of the Huguenots (Toronto: Allen, 1963), pp. 136 ss.; J. S. Moir, Enduring Witness (Toronto: Bryant, s.d.), pp. 2Oss.
sua permanência ali durante o inverno. Quando, afinal, Quebec caiu sob o poder das forças inglesas, em 1760, as tropas realizaram um culto de ação de graças em uma das igrejas católicas da cidade, que foi assistido por um grupo de comerciantes franceses protestantes que ali se encontravam a negócios. Por esse fato se vê que os calvinistas estiveram presentes na tradição cultural do Canadá desde sua fundação, até à dominação britânica.1 Em 1713, por ocasião do Tratado de Utrecht, a região que hoje é conhecida como Nova Escócia caiu nas mãos dos ingleses e, pouco tempo depois, estes levaram para ali quase três mil protestantes de língua francesa e alemã, refugiados das guerras no Rhineland; muitos dentre eles eram de convicção reformada de maneira que, em 1758, quando houve a primeira sessão do legislativo da Nova Escócia, foi aprovada uma lei que estabeleceu a Igreja da Inglaterra como a Igreja oficial, assegurando, ao mesmo tempo, liberdade de consciência a “calvinistas, luteranos, quakers”, e a todas as outras denominações protestantes. Essa disposição da lei tornou-se, imediatamente, um grande atrativo para um sem número de diferentes grupos: colonizadores da Nova Inglaterra, muitos dos quais de origem escocês-irlandesa; habitantes de Ulster vindos diretamente da Irlanda; escoceses da alta e baixa Escócia, todos conseguiram terras e se estabeleciam como colonizadores.2 Em todos estes grupos havia uma considerável proporção de indivíduos de convicção teológica calvinista. Sob a denominação de calvinistas encontramos uma série de grupos e os mais óbvios entre todos eles eram os presbiterianos e os 1
Reid, “Protestant Pioneers”, p. 24; M. Trudel, The Beginnings of New France, 1524-1663, trad. por P. Claxton (Toronto: McClelland & Stewart, 1973), pp. 54, 59,110,137-138; The Journal of Captain John Knox, org. por A. G. Doughty (Toronto: Champlain Society, 1914), 2:228. 2 J. S. Moir, Enduring Witness, pp. 36-37; cp. K. J. Duncan, “Patterns of Settlement in the East”, in The Scottish Tradition in Canada, org. por W. S. Reid (Toronto: McClelland & Stewart, 1976), pp. 49ss.
congregacionalistas vindos da região da Nova Inglaterra. Em 1764, os presbiterianos de New Hampshire solicitaram um ministro ao Presbitério de New Brunswick, em New Jersey, o que resultou na chegada do reverendo James Lyon à Nova Escócia um ano mais tarde, assumindo em primeiro lugar o pastorado da Igreja de Halifax e, posteriormente, as de Onslow e Truro. Ao que parece, os congregacionalistas que viviam na colônia colaboravam de muito boa vontade com os presbiterianos, uma vez que sua doutrina básica era a mesma. Prova disto se deu quando sessenta famílias de língua alemã, de Lunemburg, depois de se afastarem da Igreja da Inglaterra, desejaram ter seu próprio pastor, e não o conseguindo na Filadélfia, pediram que fosse ordenado Brun Romkes Comingo, um pescador de 46 anos de idade e sem qualquer formação acadêmica. O grande problema então era de quem haveria de examiná-lo e ordená-lo. Diante desta contingência, dois pastores da Igreja Congregacional, juntamente com Lyon e Murdoch, um outro pastor presbiteriano, fundaram um Presbitério e, depois de examinarem Comingo exaustivamente, ordenaram-no ministro. Defendendo essa atitude, o Presbitério declarou não haver nela qualquer sombra de sectarismo, pois os Lunemburgueses haviam sido criados segundo a “Religião Presbiteriana Calvinista” e que, assim sendo, a ordenação de Comingo deveria ser mantida.1 O segundo pastor presbiteriano deste movimento, James Murdoch, representava um outro ramo do Calvinismo, ou seja, o ramo vindo diretamente das Ilhas Britânicas. Antes da chegada de Murdoch, dois outros homens, David Smith e Daniel Cock, ambos do Associate (Burger) Synod, haviam chegado à Nova Escócia, estabelecendo-se o primeiro entre os Ulstermen, nos arredores de Londonderry, e o segundo em Truro. Aproximadamente na mesma ocasião, o General Associate Synod (Anti-Burger) enviava o 1
Moir, Enduring Witness, pp. 38 ss.; cp. W. S. Reid, “The Scottish Protestant Tradition”, The Scottish Tradition, pp. 121-122.
escocês James Murdoch, que se tornou o pastor da Igreja dissidente de Halifax. A estes homens se reuniram, depois da Revolução Americana, um número considerável de legalistas da Alta Escócia vindos da Carolina do Norte, ovelhas do reverendo John Bethune o qual, mais tarde, se mudou para Montreal onde fundou a primeira Igreja Presbiteriana, a St. Gabriel Street Church. Embora as Igrejas Presbiterianas dissidentes da Escócia e Irlanda estivessem ansiosas para atender aos colonizadores, a Igreja da Escócia não demonstrou muito interesse por eles até o início do século 19 e, mesmo então, adotou uma atitude de exclusividade que impediu a cooperação entre os membros da Igreja da Escócia para com seus companheiros presbiterianos.1 Um dos motivos deste fato pode ter sido o tipo de Calvinismo pouco zeloso da Igreja da Escócia, que não a estimulava a desenvolver qualquer esforço evangelístico. Apesar de os presbiterianos serem geralmente calvinistas, havia outros grupos que os igualava, ou mesmo superava em fidelidade às práticas e doutrinas reformadas, sendo os anabatistas o grupo mais importante e numeroso de todos eles. Apesar de alguns dos batistas ingleses terem aceitado os ensinamentos arminianos, a grande maioria continuou fiel aos ensinamentos reformados expressos em uma versão modificada da Confissão de Westminster. Esse grupo, conhecido na Inglaterra como Particular Baptist [batistas particulares], recebeu, na América, o nome de Regular Baptist [batistas regulares], ao passo que os arminianos ficaram conhecidos como os Free WiII Baptists [batistas da livre vontade]. Os batistas estavam presentes na Nova Escócia desde o início da história desta, mas a expansão da Igreja Batista se deve, em grande parte, ao trabalho evangelístico de Henry Alline, de Falmputh, Nova Escócia (1748-84). Geograficamente, os Regular Baptists se concentravam 1
Moir, Enduring Witness, pp. 41, 43, 60.
perto de Sackville e os Free WiII Baptists no Condado de Carlton. Depois da Revolução Americana, um número de batistas legalistas, a maioria dos quais Regular Baptists, se estabeleceu na região de Wolfville. Da dissidência de alguns membros da Igreja da Inglaterra, em Halifax, foi fundada a Graville Street Baptist Church, ainda predominantemente Regular, e que deu origem, mais tarde, à Faculdade de Acadia, fundada em Wolfville.1
Quanto à Igreja da Inglaterra, é muito difícil definir precisamente sua verdadeira posição. Contudo, o fato de o Reverendo Charles Inglis, primeiro bispo nomeado na Nova Escócia em 1787, ser de origem irlandês-escocesa, pode bem indicar uma formação calvinista, no mínimo baseada nos Trinta e Nove Artigos. Essa conclusão poderia ser corroborada pelo fato de ter sido ele indicado, em grande parte, com o objetivo de arrebanhar o maior número de presbiterianos para a Igreja Oficial, uma vez que antes de sua elevação ao episcopado, ocupava com freqüência o púlpito da Igreja Dissidente de Halifax, quando o pastor estava doente. Neste último aspecto, era imitado por dois outros leigos anglicanos da cidade.2 Esse fato dá a impressão de que, em linhas gerais, a Igreja da Inglaterra, na Nova Escócia, era dominada por elementos leigos, e que estava preparada para seguir a tradição da Igreja Reformada. No Canadá, agora Quebec e Ontário, o desenvolvimento espiritual era semelhante ao da Nova Escócia e ao das outras colônias do Atlântico. Quando, em 1763, a França cedeu a Nova França para a Grã-Bretanha, a terra foi aberta para a afluência de colonizadores e, entre os mais diligentes na posse das terras e no estabelecimento do comércio na nova Colônia, estavam aqueles que professavam a teologia calvinista. Uma das primeiras providências do governo britânico foi o estabelecimento de seus regimentos na 1 2
W. Kirkconnell, The Baptists of Canada (Toronto: Baptist Federation, 1958), pp. 4ss. Moir, Enduring Witness, pp. 43 ss.; Reid, “Protestant Pioneers”, p. 129.
terra e, entre os homens assim chegados, estavam os que procederam da Alta Escócia, Murray (42nd) e os Frazer (78th), dos quais muitos eram presbiterianos.1 Um grupo bastante grande se estabeleceu na Murray Bay, à margem norte do Rio St Lawrence. Depois da Guerra da Secessão, outros receberam terras ao norte do Canadá, próximo ao que é hoje a cidade de Perth, a qual se tornou um centro de influência presbiteriana por toda a região.2 A partir de 1763, no entanto, colonos civis começaram a se mudar para o Baixo Canadá em número considerável. Apesar de alguns se fixarem na cidade de Quebec, muitos outros se dirigiram para as cabeceiras do St. Lawrence com o fim de se estabelecer em Montreal onde, como mencionamos acima, Bethune fundou a St. Gabriel Street Church, como uma congregação da Igreja da Escócia. Não foi muito depois disto que escoceses começaram a se transferir para as regiões rurais. Alguns se estabeleceram ao norte de Montreal, em St. Thérese e em St. Eustache e, no final da década de 40, toda uma colônia de irlandês-escoceses, forçados a saírem da Irlanda por uma fome causada por má colheita, se fixaram no setor norte das Seigneury of Mille Isles, a oeste de St. Jerome. Ao sul da cidade de Quebec, no Eastern Townships, próximo à fronteira com os Estados Unidos, houve uma outra migração de escoceses cuja maioria era de presbiterianos. Eles se estabeleceram em uma área delimitada, ao sul, por uma linha traçada da cidade de Quebec até a fronteira americana e, em direção a oeste, até o Rio St. Lawrence.3 Nesta região, o Presbiterianismo era elemento predominante na estrutura eclesiástica.
1
Moir, Enduring Witness, pp. 47 ss.; J. R. Harper, 78th Fighting Frasers (Laval, Que.: DEV-SCO, 1966), pp. 73ss.; G. M. Wrong, A Canadian Manor and its Seigneurs (Toronto: MacMillan, 1926), ps. 22ss. 2 Moir, Enduring Witness, pp. 48ss.; A. M. Evans, “William Bell, Upper Canadian Pioneer”, in Called to Witness, org. por W. S. Reid (Toronto: Presbyterian Publications, 1975), 1:128 ss. 3 Moir, Enduring Witness, pp. 52ss.; Duncan, “Patterns of Settlement”, p. 68.
No Alto Canadá, além dos soldados instalados nos arredores de Perth, os presbiterianos mais antigos eram americanos e United Empire Loyalists [Legalistas do Império Unido] que começaram a se estabelecer na Península do Niagara, logo no início de 1770, e que também cruzaram o Lago Ontário para fixar residência em York (Toronto). Essa primeira colonização da região sul do moderno Ontário foi logo seguida por escoceses e irlandês-escoceses que chegaram em grande número, subindo o Rio St. Lawrence. Tanto civis como militares desmobilizados receberam doações de terras na cabeceira do rio Ottawa e então se espalharam para o interior da região que veio a ser conhecida como Glengarry. Alguns destes colonizadores, mais tarde, deixaram o Glengarry e cruzaram o Ottawa, subindo em direção às Montanhas Laurencianas, no Baixo Canadá ou lado Quebec, onde estabeleceram comunidades de língua gaélica1 de formação profundamente presbiteriana. A região sudoeste do Alto Canadá, estendendo-se para oeste a partir de York, também recebeu grande número de colonos escoceses.2 A Canadá Company, cujo primeiro secretário foi o novelista escocês John Galt, trouxe muitos colonos, e a primeira Igreja estabelecida em Guelph, um dos principais centros, foi a St. Andrews Presbyterian Church, ligada à Igreja da Escócia.3 Alguns escoceses se fixaram na colônia Colonel Talbot, próximo de Chatham, da mesma forma que outros encontraram terras nos condados de Lanark e Renfrew, a oeste de Ottawa. Em todas essas áreas os presbiterianos eram o grupo predominante da população.
Os batistas formavam um grupo quase das mesmas proporções; no entanto, eles chegavam principalmente dos Estados Unidos onde 1
Que pertence ao grupo de línguas célticas. Moir, Enduring Witness, pp. 53ss. 3 D. Allan, St. Andrews Presbyterian Church, Guelph, Ontario, 1832-1932 (Guelph, 1932), p. 6; C. A. Burrows, The Annals of the Town of Guelph (Guelph: Herald, 1877), p. 49. 2
algumas sociedades se organizaram com o objetivo de levar o Evangelho ao Canadá, pregando-o aos novos colonos. Apesar de terem fundado algumas igrejas na região sul do Baixo Canadá, sua principal atuação se deu no Alto Canadá, tendo seu quartel general na península do Niagara. Gradualmente, suas igrejas se espalharam pelas redondezas de York de onde, em 1820, eles desenvolveram intensa campanha missionária. Esse grupo foi fortalecido com a chegada de batistas da Inglaterra que tendiam a conter um pouco as extravagâncias do tipo de religião pregado nas fronteiras. Ao mesmo tempo, escoceses do grupo dos irmãos Haldane começaram a se estabelecer no Baixo Canadá, ao norte de Montreal, dirigindo-se também para a região oriental do alto Canadá. A maior parte destes grupos batistas tinha uma perspectiva profundamente reformada. De uma forma geral eles se mantinham fiéis à Confissão de Fé de Filadélfia, de 1742, que por sua vez era baseada na Confissão dos Batistas Particulares do século 17. Eles se beneficiaram do ato de 1798 o qual, assim como o de 1758 na Nova Escócia, permitia que “pastores da Igreja da Escócia, da Inglaterra Luterana e Calvinista”, realizassem casamentos, alegando que estavam sujeitos às normas calvinistas.1 A Igreja da Inglaterra, nos dois lados do Canadá, tinha uma posição um pouco diferente daquela assumida nas colônias do Atlântico. Enquanto as colônias do lado leste eram dominadas pela tradição da Low Church [Baixa Igreja], a tradição dos antiquados Laudianos predominava nos dois lados do Canadá. Indubitavelmente, havia alguns clérigos que pertenciam ao grupo dos Low Church Calvinists [Calvinistas da Baixa Igreja], mas os líderes da Igreja, como o bispo Mountain e, especialmente, o bispo Strachan, tinham pouco o que fazer, ou pouco tempo para gastar
1
S. Ivison e F. Rosser, The Baptists in Upper and Lower Canada (Toronto: University of Toronto Press, 1956). pp. 10ss.. 20-21, 81-82, 122-123; Kirkconnell, Baptists of Canada, p. 7.
com a teologia calvinista.1 Além disso, estavam dispostos a manter a Igreja da Inglaterra em sua posição de Igreja Oficial, com todos os emolumentos mesmo com as dotações pertencentes a ela. O resultado desta situação foi a luta que durou até meados dos anos 1850. Apesar de os líderes da Igreja da Escócia, no Canadá, terem concordado, em 1840, com uma espécie de “Coestablishment’ [coestabelecimento] com a Igreja da Inglaterra, tendo recebido algumas das doações originalmente destinadas aos anglicanos, isso não solucionou o problema. Entre outras dificuldades, em 1843 a Igreja da Escócia sofreu em suas fileiras a separação de quase um terço de seus membros, que fundaram a Igreja Livre a qual se recusava a aceitar interferências governamentais na administração da Igreja.2 Esse grupo era Reformado em sua posição teológica, o que contrastava com a “moderação” corrente da Igreja Oficial. Muitas das congregações, no Canadá, seguiram o exemplo da Igreja Livre, organizando Igrejas Livres tanto nas Colônias do Atlântico como nos dois lados do Canadá. Essas comunidades assumiram posição contrária à adoção de uma estrutura oficial de doutrina e de governo da Igreja. Em sua postura de anti-oficialização, a Igreja-Livre foi apoiada pelos batistas e metodistas o que, por volta de 1854, demonstrou claramente quão inadequada era a idéia de se aceitar o estabelecimento de uma Igreja Oficial dentro da atmosfera mais livre das colônias. Assim sendo, essa idéia foi finalmente abandonada.3 Enquanto o conflito sobre a oficialização da Igreja se desenrolava no Canadá e nas demais Colônias do Atlântico, outras 1
A. Campbell, The History of St. Gabriel Street Presbyterian Church, Montreal (Montreal: Lovell. 1887), pp. 187ss.; D. C. Masters, Protestant Church Colleges in Canada (Toronto: University of Toronto Press, 1966), pp. 8-9. 2 Moir, Enduring Witness, pp. 72ss., 85-86. 101-102. 3 Ibid., pp. 110 ss.; W. 5. Reid, The Church of Scotland in Lower Canada (Toronto: Presbyterian Publications, 1936), pp. 135 ss.
Igrejas Presbiterianas da Escócia vinham fazendo incursões religiosas. As Igrejas Associadas ou Independentes tinham aberto congregações e quando, em 1847, a Igreja Presbiteriana foi organizada na Escócia — como resultado da união das Igrejas Independentes Unidas com as Relief Church —, suas filiais nas Colônias também se uniram. Isso, em um certo sentido, deu início ao movimento de unificação presbiteriana no Canadá; movimento fortalecido posteriormente, em 1867, pela aliança política de todas as Colônias Britânicas na América do Norte, com exceção de Newfoundland. Em conseqüência disto, em 1875 quase todos os presbiterianos se uniram para a formação da Igreja Presbiteriana do Canadá.1 De modo semelhante, apesar de os batistas se conservarem fiéis à política congregacional, perceberam que para realizar alguma coisa, no Canadá ou além de suas fronteiras, precisariam de algum tipo de organização cooperativa e foi assim que começaram a organizar associações para trabalho conjunto. Em 1800, nove congregações de Batistas Regulares se reuniram em Lower Graville, na Nova Escócia, com o objetivo de formar a Associação Batista da Nova Escócia e, em 1846, essa se transformava na Convenção Batista da. Nova Escócia, de New Brunswick e da Prince Edward Island. Enquanto isso, Os Batistas de Livre Vontade também vinham se expandindo e, em 1906, os dois grupos se reuniram para formar a Convenção Marítima dos Batistas Unidos, com base em um acordo teológico. Nos dois lados do Canadá, ocorreu o mesmo fato a partir de 1802, e a Convenção Batista de Ontário e Quebec foi instalada em 1888, tendo sido na mesma época organizadas Convenções Batistas em Manitoba, nos Territórios do Nordeste e na 1
Moir, Enduring Witness, pp. 137ss.; E. Scott. "Church Union" and the Presbyterian Church in Canada (Montreal: Lovell, 1928), pp. 39ss.; W. Gregg, A Short History of the Presbyterian Church in Canadá (Toronto: Robinson, 1892), pp. 188-189; W. S. Reid, “John Cook and lhe Kirk in Canada”, in Enkindled by the Word, org. por N. G. Smith (Toronto: Presbyterian Publications, 1966), pp. 28ss.
Columbia Britânica, culminando em 1919 com a União Batista do Oeste Canadense.1 A pergunta que surge então é: até que ponto essas uniões tanto de batistas como de presbiterianos poderiam ser consideradas calvinistas em suas posições teológicas? No caso dos presbiterianos, apesar de haverem aceito a Confissão de Fé de Westminster como o fundamento teológico da Igreja no momento de sua unificação, posteriormente houve o arrolamento em suas comunidades de muitas pessoas, especialmente as que vieram da Igreja da Escócia e da Igreja Presbiteriana Unida, que não tinham muito de calvinistas. Por outro lado, teólogos como Donald Harvey MacVicar, diretor da Faculdade Presbiteriana de Montreal, eram sinceros em sua defesa da posição calvinista. MacVicar tinha constantes discussões com George M. Grant, reitor da Universidade Queen’s, cuja posição tendia para o Arminianismo e para o Evangelho Social.2 Desde então, tem havido na Igreja Presbiteriana do Canadá um tipo de posição teológica bastante mesclada. O mesmo pode ser dito a respeito dos batistas que, apesar de nunca terem sido muito “liberais” em sua teologia, freqüentemente tendiam para um fundamentalismo arminiano. Desta maneira, a partir do início deste século, o testemunho reformado de ambas as Igrejas tem sido consideravelmente enfraquecido. A posição teológica de ambas as Igrejas é demonstrada por duas grandes batalhas travadas dentro de suas fronteiras. No caso dos presbiterianos, foi a controvérsia sobre a união da Igreja. Já no início do século surgiu, por parte de alguns presbiterianos, a sugestão de que se deveria fazer uma união entre metodistas, congregacionistas e sua própria denominação. Duas votações foram 1
Kirkconneil, Baptists of Canada, pp. 9-10. J. H. MacVicar, The Life and Work of Donald Harvey MacVicar (Toronto: Westminster, 1904), pp. 173 ss.; D. C. Masters, “The Rise of Liberalism in the Canadian Protestant Churches”, Canadian Catholic Historical Association Annual Report, 1969, pp. 29-30.
2
realizadas entre os presbiterianos sobre essa questão, em 1912 e em 1915. Apesar de a contagem de votos indicar que a maioria era a favor da união, também demonstrou que essa tendência estava se diluindo. Depois da Primeira Guerra Mundial, houve uma redobrada ênfase sobre a questão da unificação e, finalmente, passou no Parlamento um ato criando a Igreja Unida do Canadá, com uma Declaração de Fé chamada Os Vinte Artigos, a qual evita a maior parte dos pontos de divergência entre presbiterianos e metodistas. Em 10 de junho de 1925, foi fundada a Igreja Unida com a participação de praticamente todos os metodistas e congregacionistas, cerca de 75% dos pastores com 65% das congregações da Igreja Presbiteriana no Canadá.1 Ela é a maior denominação protestante no Canadá, mas, se tiver algo de calvinista, é muito pouco. A minoritária Igreja Presbiteriana continuou. Ao se reorganizar, através da influência de Ephraim Scott, seu primeiro presidente de Presbitério e convicto calvinista, ela reafirmou sua lealdade aos Padrões de Westminster. Contudo, muitos em suas fileiras, assim como W. W. Byden, mais tarde diretor da Faculdade de Knox, consideravam isso um erro. A posição de Bryden era bastante próxima à de Karl Barth apesar de ter sido sob sua influência que muitos de seus alunos se interessaram pelo estudo de Calvino, chegando a se transformarem em reformados convictos em suas posições teológicas. Muitos, dentro da igreja, eram mais ou menos indiferentes quanto às questões teológicas, de maneira que algumas atividades antes consideradas importantes, como a instrução das crianças no Breve Catecismo de Westminster, foram abandonadas. Outros, mais positivamente contrários à posição reformada, procuraram introduzir uma nova Confissão, mais neo-ortodoxa, ou mesmo, uma interpretação mais humanista da doutrina cristã. Até hoje essas tentativas não tiveram sucesso e uma pequena minoria 1
Moir, Enduring Witness, pp. 197ss.; Scott, “Church Union”, pp. 127ss.
ainda persiste, talvez, ainda assim, o grupo esteja crescendo, especialmente entre os pastores e leigos que buscam o reavivamento da doutrina reformada nas Igrejas. Alguns, comprometidos com a posição Calvinista, não se “detiveram por coisa alguma”, mas deixaram a Igreja e se uniram a outras denominações, como a Igreja Presbiteriana Reformada (Sínodo Evangélico).1 O conflito dos batistas não foi tanto uma questão de influência externa, porém motivado por problemas internos. No decorrer da primeira parte do século, assim como em todas as outras denominações, tinha havido nas congregações batistas um declínio do elemento evangélico e, particularmente, do elemento reformado. Segundo T. T. Shield, da Igreja Batista da Jarvis Street, grande parte da culpa se deve à Faculdade MacMaster, entidade batista de ensino teológico localizada em Toronto, naquela época. O resultado disto foi que um grupo de congregações batistas se separou da Convenção de Ontário e Quebec para formar a Igreja Batista Regular, seguida pelo afastamento de alguns dos seguidores de Shield e de sua organização, para formarem a Federação das Igrejas Batistas Independentes, em 1930. Posteriormente, em 1955, grande parte dos Batistas Regulares abandona o grupo de Shield para formar, junto com a Federação das Igrejas Batistas Independentes, a Sociedade das Igrejas Batistas Evangélicas. Ao que parece, as duas rupturas dos Batistas Regulares ocorreram devido a conflitos de personalidade com Shields. O remanescente da Igreja Batista Regular é solidamente calvinista em sua concepção, ao passo que a Sociedade das Igrejas Batistas talvez possa ser classificada mais como evangélica do que como calvinista.2 Contudo, os presbiterianos e os batistas não eram as únicas denominações que enfrentavam problemas de doutrina. Com o 1
Compare artigos de N. K. Cliflord sobre Robert Campbell, de J. J. H. Morris sobre George McQueen, e de De C. H. Rayner sobre Ephraim Scott, in Called to Witness, vol. I. 2 Kirkconneli, Baptists of Canada, p. 10.
crescimento do movimento da Igreja Alta do Canadá, a Igreja da Inglaterra também teve seus conflitos. Aqueles que se opunham às tendências anglo-católicas, no entanto, nunca se consideraram calvinistas apesar de se manterem fiéis aos Trinta e Nove Artigos. Eles pretendiam conservar o nome de Igreja Evangélica Baixa. Alguns, por outro lado, mantiveram uma posição reformada em questões doutrinárias. Foi desta separação que surgiram as faculdades Wycliffe, em Toronto, e a Diocesan, em Montreal, na década de 1870, em oposição às faculdades da Igreja Alta, de Trinity, em Toronto, e a de Bishop em Lennoxville, Quebec. No entanto, exceto por uma pequena minoria, não se pode pensar em termos de um forte testemunho reformado por parte da Igreja Anglicana, no Canadá.1 Enquanto as igrejas oficiais, no Canadá, estruturadas inicialmente em base reformada, têm tendido a se afastar da postura rigorosamente reformada, se não de maneira formal, pelo menos de maneira efetiva, um novo elemento calvinista vem surgindo na sociedade canadense, desde a Segunda Guerra Mundial. Esse é o grupo de imigrantes holandeses que começou a chegar em 1945, alcançando seu maior pico em 1952, ano em que entraram no país mais de 21.000 pessoas, perfazendo hoje um total de aproximadamente 200.000. Mesmo que cerca de um terço dessa população seja constituído de católico-romanos, os protestantes são, em geral, calvinistas. O grupo dominante é o da Igreja Cristã Reformada que, de acordo com o censo de 1971, tinha mais de 83.000 membros e congregados, sendo muito insistentes na defesa da Confissão Calvinista.2 Adotando uma posição bastante semelhante, estão duas outras denominações: a Igreja Reformada Canadense, e a Igreja Independente Reformada da América do Norte. A Igreja Reformada Americana, não obstante estar oficialmente comprometida com a posição calvinista, não parece 1 2
Masters, Protestant Church Colleges, pp. 9, 112-113, 122. Recenseamento de 1971 do Canadá: Population, Religious Denominations.
colocar, na conservação dos padrões doutrinários, a ênfase dada por outras igrejas. Ao se observar a sociedade canadense, pode-se perceber suas raízes calvinistas. Quer se pense nos huguenotes, nos presbiterianos escoceses, nos batistas americanos ou nos calvinistas holandeses, a população é formada por uma considerável mistura de pessoas com tradição reformada. As de origem reformada que vieram ao Canadá trouxeram consigo suas tradições e crenças, que tinham uma importante função, tanto no seu modo de pensar como em suas atitudes. Eles, por sua vez, tiveram grande influência na sociedade em que viviam, conforme se pode comprovar se observarmos determinados aspectos da sociedade. Um dos importantes setores de atuação dos que seguem a tradição calvinista tem sido a educação. Ao lado de um vital interesse teológico, tem havido um estímulo para a leitura, não apenas da Bíblia, mas também das obras teológicas de maneira geral, o que, por sua vez, tem levado à leitura de outros tipos de literatura. O aspecto mais significativo desta tendência está no fato de ela ter sido nutrida dentro dos lares. Além disto, tem havido discussões teológicas nos meios familiares aliados à memorização de textos bíblicos bem como do Breve Catecismo de Westminster ou do Catecismo de Heidelberg. Robert Louis Stevenson expressa muito bem esse costume ao comparar o garoto inglês com o garoto escocês: A observância do Sabbath impõe uma série de duras interrupções que são, porém, úteis, no decorrer da infância de um menino escocês — são dias de grande tranqüilidade e solidão para a mente rebelde quando — na falta de livros e jogos, nos intervalos entre o estudo do Breve Catecismo —, os pensamentos e os sentimentos se entretêm, testando-se um ao outro... Sobre o próprio berço do menino escocês, já se ouve o
sussurrar de divindade metafísica e o conjunto de dois sistemas divergentes completos [o Anglicano e o Presbiteriano] é concentrado e não na mera especiosidade das primeiras perguntas dos catecismos rivais, tais como a questão trivial dos ingleses “Como é seu nome?”, ou dos escoceses, tocando o próprio sentido da vida, com a pergunta: "Qual é o fim principal do homem?" À qual respondem nobre, porém obscuramente: "É glorificar a Deus e regozijar-se nele para sempre". Não tenho a intenção de idolatrar o Breve Catecismo, mas o fato é que a simples formulação desta pergunta abre aos meninos escoceses um campo de especulação, e o fato de ser feita a todos nós, do nobre ao lavrador, torna-nos mais próximos uns dos outros.1 O que Stevenson disse sobre a educação calvinista dos meninos escoceses pode ser igualmente aplicado à criança holandesa, em relação ao Catecismo de Heidelberg. Essa tradição e maneira de educação familiar vêm à mente deste autor ao lembrar a importância que seu pai costumava dar à sua educação na casa em que viviam nos municípios orientais de Quebec. Aos domingos, além dos trabalhos da Igreja, aos quais todos compareciam, o início da noite era o momento em que as crianças recitavam o Breve Catecismo, metade em um domingo, e a outra metade no domingo seguinte. Depois disto era lido um sermão de um grande pregador, talvez Spurgeon ou MacLaren, e a reunião era encerrada com orações familiares. Os outros dias da semana eram dias de trabalho tanto físico quanto intelectual. Quer se passasse o dia na escola, atrás do arado ou trabalhando com segadeira, à noite todos deviam gastar algum tempo lendo, e, certamente, não liam histórias em quadrinhos. Antes que meu pai tivesse completado 18 anos, ele já havia lido obras como o 1
R. L. Stevenson, “The Foreigner at Home”, in Memories and Portraits (Londres: Collins, s.d.), pp. 28ss.
Pilgrim’s Progress [O Peregrino], de Bunyan; Saint’s Rest [O Descanso do Santo], de Richard Baxter; Alarm of the Unconverted [Alerta ao não Convertido], de Alleine; Call to a Devout and HoIy Life [Chamada a uma Vida Santa e Piedosa], de Law; Rise and Progress of Religion in the Soul [O Surgimento e o Progresso da Religião na Alma], de Doddridge; History Of The Church Of Scotland [História da Igreja na Escócia], de Hetherington; Grammar [Gramática], de Lennie e outros trabalhos semelhantes. Ele lera também uma série considerável dos romances de Scott, mas os deixara de lado por sentir que desviavam sua mente das questões importantes da vida. A ênfase calvinista na busca de instrução é demonstrada em toda a história da família de meu pai. O filho mais velho foi para Montreal onde obteve seu “B. A.” na Universidade de MacGill e seu “B. D.” na Faculdade Presbiteriana. Em seguida, ele foi para a GrãBretanha e Europa onde estudou em Edimburgo, Berlin e, mais tarde, depois de passar um ano viajando pela Europa e no Oriente Próximo, matriculou-se em Harvard onde conseguiu seu “M. A.”. Só então voltou para casa, tornando-se ministro de uma Igreja Presbiteriana em Montreal. Dois de seus três irmãos também se tornaram ministros; uma de suas irmãs estudou Medicina e veio a ser uma das primeiras mulheres psiquiatras nos Estados Unidos, e as outras duas irmãs se tornaram professoras. Toda essa comunidade presbiteriana escocesa criada à base de mingau de aveia e do Breve Catecismo seguiu, de uma maneira geral, o mesmo padrão. Estima-se que dela tenham saído cerca de cem professores, trinta e cinco enfermeiras, vinte e cinco ministros, entre dez e quinze médicos e sete advogados. Mesmo que alguns das gerações seguintes tenham optado pelo comércio, se traçarmos uma linha até o presente, perceberemos que ainda prevalece a tendência em se optar por profissões eruditas. Mesmo com o enfraquecimento da tradição calvinista, fato em si muito triste, a maior parte da atual
geração adulta é composta ainda tanto de professores universitários, como de professores de primeiro e segundo graus, de médicos e de advogados ou cientistas. Essa comunidade não foi, de maneira alguma, uma exceção em sua atitude para com a educação, pois encontramos entre grupos calvinistas — presbiterianos, batistas ou holandeses reformados — o mesmo padrão geral de comportamento. Na medida em que os recém-chegados conseguiam dinheiro suficiente para permitir à nova geração investir em uma educação sólida, não se importavam em, para isso, fazer sacrifícios. É também digno de nota o fato de a maior parte das universidades canadenses de língua inglesa, de Dalhousie, em Halifax, até a Universidade de Manitoba, terem sido fundadas por escoceses, cuja maioria fora criada sob fundamentos calvinistas, mesmo que não estivessem dispostos a aceitar pessoalmente os ensinamentos Reformados. Com a secularização de grande parte destas instituições, os novos grupos de imigrantes holandeses tiveram que recomeçar todo o processo, fundando escolas cristãs e, mais recentemente, organizando ao menos duas Faculdades Cristãs de Belas Artes, uma em Ontário e outra em Alberta. Além disto, durante alguns anos a Associação de Estudos Científicos Reformados manteve seu Instituto para Estudos Cristãos em Toronto, organização essa comprometida com a posição reformada em suas pressuposições filosóficas básicas. Como se pode observar, o Calvinismo tem tido grande influência sobre o desenvolvimento da educação no Canadá. A influência do Calvinismo, no entanto, tem ido além da educação uma vez que o calvinista, normalmente, não é uma pessoa do tipo “Torre de Marfim”. Em sua maioria, os imigrantes que vieram para o país, em seus primeiros tempos, eventualmente se tornaram fazendeiros e, com seu trabalho honesto, honravam ao Senhor. Outros encontraram espaço no mundo dos negócios onde demonstravam seu senso de responsabilidade e de vocação. Muitos,
das gerações seguintes, passaram a atuar quer como profissionais liberais, ou como comerciantes. Pode-se ter uma idéia da laboriosidade dos calvinistas, de sua honestidade, de seu senso de responsabilidade e senso de vocação através dos comentários escritos por Pierre Berton em seu livro The National Dream [O Sonho Nacional], no qual cita um discurso de Lord Maunt Stephen, um dos fundadores da Estrada de Ferro Canadian Pacific, natural de Aberdeen: Qualquer sucesso que eu possa ter alcançado na vida é devido, em grande parte, à educação uma tanto espartana que eu recebi desde o início, em Aberdeen, como um garoto de 15 anos... Ficou marcado em mim, desde a mais tenra idade, por uma das melhores mães que jamais existiram, que eu precisava colocar como meta o tornar-me mestre absoluto na atividade através da qual eu deveria ganhar meu sustento, e que para isso eu deveria concentrar todas as minhas energias em meu trabalho, qualquer que fosse ele, em detrimento de todas as demais coisas. Logo percebi que se eu quisesse realizar qualquer coisa na vida, eu precisaria perseguir meu objetivo com persistente determinação. Eu não tinha o treino nem o talento para conseguir as coisas sem grande esforço, mas, felizmente, eu tinha conhecimento deste fato. Berton então acrescentou: Foi esse forte senso ético, tão poderosamente descrito por Stephen, que permitiu aos escoceses predominarem no desbravamento do Canadá... Para os escoceses havia trabalho, economia e estudo; estudo, economia e trabalho. Os irlandeses tinham com eles a mesma vantagem numérica de que gozavam sobre os ingleses e, no entanto, os escoceses dirigiam o país... Apesar de representarem apenas a décima quinta parte da população, eles controlavam o comércio de peles, os grandes
bancos e casas de comércio, as maiores instituições educacionais e, até certo ponto, o governo.1 Alguns, é claro, podem achar que isso não prova, necessariamente, coisa alguma sobre o Calvinismo. Contudo, é importante lembrar que os Flemings, os MacDonalds, os Allans e outros oriundos da Escócia, haviam sido criados, via de regra, em um ambiente fervorosamente calvinista. Esse fato é trazido à luz nas memórias do pai deste que escreve, homem que conheceu Donald Smith, Lord Strathcona, um primo de Lord Maunt Stephen. Quando Strathcona foi representante do governo do Canadá em Londres, contou a meu pai o que foi que ele resolveu fazer nos trabalhos dominicais da Igreja, quando começou a trabalhar como administrador de Hudson Bay Company, para atrair o pessoal da fábrica, os índios e os mamelucos da região. Mandou anunciar que haveria um culto e que todos os presentes ganhariam um copo de wiskey. No domingo pela manhã, a Igreja estava lotada. Com uma atitude bastante ingênua ele distribuiu a bebida antes do culto, de modo que em pouco tempo a Igreja ficou vazia. Uma única experiência deste gênero foi suficiente, e a partir de então, o wiskey passou a ser servido depois do culto! Algum tempo mais tarde ele achou que talvez fosse mais adequado distribuir pão. Quando interrogado sobre os sermões que fazia, pois ele mesmo dirigia os cultos, ele contou que a princípio levara consigo alguns sermões de T. de Witt Talmadge, mas que logo em seguida conseguira um livro com os sermões de Spurgeon, que ele considerava muito bons! O que os índios achavam dos sermões, ele não contou. Porém, esse fato dá uma idéia do tipo de homem que havia em grande número entre os pioneiros escoceses e permite também observar a duradoura influência da origem presbiteriana calvinista.
1
P. Berton, The National Dream (Toronto: McClelland & Stewart, 1971), pp. 319- 320.
Quando olhamos para além das profissões e do comércio, para o campo da política, percebemos que um tipo de influência bastante semelhante ocorria nesta área. No início do século 19, houve homens como William Lyon Mackenzie, “o velho rebelde”, um dos fundadores da Igreja Presbiteriana de Knox, em Toronto, que era uma das recém-organizadas congregações da Igreja Livre; e George Brown, editor do Globe de Toronto, muito ativo na política das décadas de 1850 e 1860. Houve também muitos outros que professavam abertamente sua convicção teológica reformada, ao passo que alguns, como Lord Mount Stephen, davam grande valor ao fundamento calvinista sobre o qual haviam sido criados. Assim sendo, apesar se não podermos afirmar que todos os escoceses ou holandeses; todos os presbiterianos, batistas, ou mesmo todos os membros das comunidades cristãs reformadas fossem ou sejam profundamente calvinistas em sua maneira de pensar, ainda permanece o fato de que muitos, na verdade a maioria, veio de lares e de culturas em que o elemento reformado era muito forte. Em alguns casos, talvez em muitos, eles têm se afastado de qualquer aceitação explícita da posição calvinista, considerando Calvino como um homem de caráter muito austero e severo, e alguns de seus seguidores, como John Knox, por exemplo, como desagradáveis protagonistas da cristandade. Não obstante, em muitos casos, herdaram os princípios morais do Calvinismo, que expressam continuamente em seus trabalhos diários. Talvez, as palavras de Donald Gordon, escocês e presbiteriano, que ocupou muitas elevadas posições tanto no governo, como no comércio durante as décadas de 1940 e 1950, possam tornar isso claro: Quanto a mim, nada vejo de antiquado em virtudes como a honestidade e autenticidade, no ardente senso de dever público e na obrigação de fazer o que é certo pelo simples motivo de ser o certo a fazer. Mais do que isso creio que jamais se poderá exagerar a importância que tem a integridade e a boa fé no
mundo dos negócios; e causaria vergonha a muitos cépticos saber com que freqüência nossos obstinados banqueiros consideram a integridade da administração como melhor e mais segura das garantias.1 E preciso ter sempre em mente que apesar de a influência do Calvinismo, no Canadá, não ser hoje tão aberta como o foi nas gerações mais antigas — sendo agora mais indireta —, ainda existem muitos, não apenas entre as comunidades de imigrantes holandeses, mas também entre os elementos escoceses, tanto das Igrejas Batistas, Presbiterianas e, em menor grau, da Igreja Anglicana do Canadá, que se mantêm fiéis à posição calvinista. Estes ainda exercem influência na sociedade, mesmo que às vezes se possa questionar sua verdadeira força e eficácia. Há indícios, em várias regiões do país, de que começa a surgir uma revitalização do Calvinismo.
1
W. S. Reid, “The Scott and Canadian ldentify”, Scottish Tradition, pp. 307ss.
O Impacto do Calvinismo na Australásia Alexander Barkley - Tradução de Vera Lúcia L. Kepler
Alexander Barkley é Professor Emérito no Reformed Theological College, Geelong, Austrália. É graduado pela Universidade de Dublin (M.A.); Reformed Presbyterian Theological Seminary, Pittsburg (Dip.Th.); e Central School of Religion, Londres (Th.D.). Serviu no ministério pastoral em Belfast, Irlanda do Norte, e Geelong, Austrália, e também como Professor de História Eclesiástica e Missiologia e como diretor do Reformed Theological College, Geelong. Dr. Barkley escreveu artigos para Vox Reformata e Irowel and Sword e é Presidente da Tyndale Fellowship da Austrália. É membro vitalício da Associação por uma Universidade Cristã e também do Conselho Diretor do Australian Institute of Biblical Archaeology.
CAPITULO 15 O IMPACTO DO CALVINISMO NA AUSTRALÁSIA
Diferentemente dos colonizadores brancos da América do Norte, os primeiros colonos da Austrália e da Nova Zelândia não eram de estirpe puritana. Não houve uma crise religiosa na Europa que precipitasse um movimento em massa da população rumo à Austrália, com o propósito de escapar à perseguição religiosa. Na verdade, a primeira colônia britânica, na Austrália, foi estabelecida em Nova Gales do Sul, em 1788, dezoito anos após sua descoberta pelo Capitão Cook. Essa foi uma colônia penitenciária. Por mais de meio século a Austrália tornou-se o depósito de lixo para indivíduos indesejáveis, sentenciados por juízes de todas as Ilhas Britânicas. Mesmo que esses condenados não fossem todos criminosos empedernidos, a primeira população branca da Austrália não foi um solo muito favorável ao Cristianismo. Por essa razão, não é fácil avaliar o impacto do Cristianismo em geral, e do Calvinismo em particular, no desenvolvimento colonial da Austrália. Numa extensão maior que na América do Norte, onde maiores influências européias prevaleceram, a dominação religiosa correspondeu à das Ilhas Britânicas. O Protestantismo era representado, em sua maioria, pelas Igrejas Anglicana, Metodista e Presbiteriana. As influências Calvinistas foram bastante canalizadas pelos anglicanos evangélicos e pelos presbiterianos escoceses. Com o desenvolvimento das Igrejas Batistas, houve importantes bolsões de influência Calvinista que tiveram um efeito fermentador sobre o desenvolvimento das relações Igreja-Estado. Os primeiros capelães nomeados para a supervisão espiritual dos primeiros colonos eram naturalmente da Igreja Anglicana, a
Igreja Estatal na pátria-mãe. Entretanto, é importante observar que tanto Richard Johnson, que acompanhou a Primeira Frota, como Samuel Marsden, que chegou mais tarde, eram evangélicos.1 A Sociedade Eclética, um grupo interdenominacional de evangélicos formado para a investigação da verdade religiosa, foi amplamente responsável pela indicação de Johnson. A indicação de Marsden foi influenciada pela Sociedade Elland, um grupo de evangélicos anglicanos que apoiava jovens promissores que buscassem educação universitária tendo em vista a ordenação.2 Outro produto importante do movimento evangélico foi a Sociedade Missionária da Igreja, formada em 1799. Os evangélicos aceitavam os Trinta e Nove Artigos como um resumo quase perfeito da fé. Alguns eram Calvinistas extremados.3 Vários rapazes, inclusive Samuel Marsden, assentaram-se aos pés do piedoso Charles Simeon, que por mais de cinqüenta anos modelou a vida de uma multidão de formandos em Cambridge. Esses pioneiros capelães anglicanos pregaram o evangelho da soberana graça de Deus, em Cristo. Na colônia de Nova Gales do Sul, os princípios evangélicos eram ensinados tanto a presos quanto a livres. Eles esforçaram-se por levar o padrão da ética cristã numa comunidade com pouco respeito pela lei e pela ordem. Marsden estava interessado em lavoura e pastoreio. Ele importou e experimentou novas colheitas, plantas e animais. Alguns desses experimentos tiveram repercussões de longo alcance no desenvolvimento econômico da Austrália.4 Entretanto, o grande impacto do Calvinismo emanaria dos presbiterianos escoceses. O número de condenados da Escócia era 1
Marcus L. Loane, Hewn From the Rock (Sydney: Anglican Information Office, 1976), p. 2. Ibid., p. 10. 3 G. A. Balleine, History of the Evangelical Party in the Church of England (Londres: Church Book Room, 1951), pp. 106-107. 4 A. T. Yarwood, Samuel Marsden (Melbourne: Melbourne University Press, 1977), pp. 89ss.; Loane, Hewn From the Rock, p. 11. 2
proporcionalmente pequeno, comparado com o contingente da Inglaterra e Irlanda.1 Mas foram os colonos escoceses livres que serviram de ponta de lança para o arraigamento do tipo mais abrangente de Calvinismo da Austrália. É notável que as leis contra sedição, na Escócia, tenham sido responsáveis pelo transporte de cinco homens que propagaram os ensinos do Iluminismo na política. Nas palavras de C. M. H. Clark, foi formada na Austrália “a associação entre homens cujas mentes estavam baseadas em tradições calvinistas e homens cujas mentes estavam modeladas pelos ensinos do Iluminismo".2 Isso serviu para preparar o cenário da luta que as forças minoritárias do Calvinismo teriam de travar na Austrália. A batalha era travada em três frentes principais — na política, na igreja e na educação. Politicamente, poder-se-ia dizer que não há muita evidência de qualquer impacto significativo. Entre os primeiros colonos escoceses, nos anos 1820, o líder destacado foi John Dunmore Lang, que nasceu em Greenock e foi educado em Glasgow. As tendências teológicas de Lang foram moldadas sob o ministério de Dr. Chalmers. Além de suas atividades eclesiásticas, Lang envolveu-se na política. Embora ele tenha sido ordenado na Igreja Oficial da Escócia, gradualmente veio a aceitar o Voluntarismo na Austrália. Isso significou entrar em conflito com o governo e também com o Bispo Broughton, que procurava a estabilidade permanente da Igreja Anglicana como a Igreja Oficial da Austrália. Foram proferidas conferências sobre a “inconveniência e injustiça de uma Estatização Religiosa”. Lang baseava seus princípios políticos na Bíblia. Ele afirmava que havia três princípios maiores do governo 1
L. L. Robson, The Convict Settlers of Australia (Melbourne: Melbourne University Press, 1970), Apêndice 5, p. 189. É também interessante observar que os sentenciados escoceses, tanto homens quanto mulheres, foram os piores. 2 C. M. H. Clark, A History of Australia (Melbourne: Melbourne University Press, 1963), 1:93ss. 557.
republicano “em operação sob sanção divina e indicação na comunidade do Israel antigo".1 Esses princípios eram: voto universal (masculino), igualdade política perfeita e eleição popular. Ele argumentou com sucesso a favor de uma Austrália livre e unida, consistindo de estados separados, com justiça social e política para todos. Nunca se tornou membro de um partido político, mas em cada ocasião votava segundo a sua consciência a favor do programa e não da pessoa. O desenvolvimento político da Austrália foi muito mais influenciado pelo Iluminismo, pela filosofia e pelo direito natural do que por qualquer força evangélica. O liberalismo político foi um movimento de massas que deixou sua marca não apenas em todos os países da Europa Ocidental e na América, mas também na Austrália e Nova Zelândia. Com a influência evangélica da Igreja Anglicana e com o cultivo do Presbiterianismo pelos escoceses, a perspectiva do Calvinismo era razoavelmente propícia. A situação instável da Igreja da Escócia, na primeira metade do século 19, impulsionou as famílias a se mudarem para as colônias. Em 1832 foi formado o primeiro Presbitério e essa foi a semente da qual a árvore do Presbiterianismo deveria crescer em todos os estados orientais da Austrália.2 Lang tinha proeminência no assentamento de famílias e na organização da Igreja. Ele era um pregador eloqüente, fervoroso e poderoso. Viajou bastante pelo país, organizando pontos de pregação, tendo em vista o estabelecimento de ministros. Foram feitas várias visitas à pátria-mãe para trazer migrantes e assegurar os serviços de ministros e professores. Entretanto, o desenvolvimento da Igreja Presbiteriana não aconteceria sem distúrbios. Houve divisões, e as divisões na Escócia 1 2
Archibald Gilchrist, John Dunmore Lang 1799-1878 (Melbourne, 1951), p. 8. F. M. Bradshaw, “Presbyterian Church”, in Australian Encyclopaedia, 7:405-406.
tiveram suas correspondentes na Austrália. A ruptura na Escócia, em 1843, teve repercussões muito importantes na Austrália, e uma Igreja Livre exerceu uma influência bastante poderosa na maioria dos estados. Quando, finalmente, aconteceu a reunificação, surgiu uma Igreja Presbiteriana em cada um dos estados, bem como uma corporação menor, a Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental, que continuou separada, mantendo os padrões conforme interpretados nos documentos da ruptura. Em sua constituição, as igrejas presbiterianas aceitavam, como padrões subordinados, a Confissão de Fé de Westminster, os Catecismos Maior e Breve, a Orientação para Adoração Pública, a Forma de Governo Eclesiástico-Presbiteriano, acordadas pela Assembléia de Clérigos em Westminster. Foram estabelecidas escolas de teologia em Melbourne e Sydney, e mais tarde em Brisbane. A preparação de estudantes para o ministério foi subordinada à supervisão de eruditos e teólogos que fossem fiéis aos padrões doutrinários da Igreja. Entre estes se destacaram Adam Cairns, que veio à Austrália procedente da Igreja Livre da Escócia, e John L. Rentoul, que veio da Igreja Presbiteriana da Irlanda. O recenseamento realizado em 1861 mostrou que cerca de 16% da população pertencia à Igreja Presbiteriana e a igrejas menores adeptas dos padrões de Westminster. A medida que a população crescia, havia uma preocupação cada vez maior pela expansão. Foi dada atenção à condição das crianças abandonadas. Surgiram conflitos com o Estado acerca da observância do domingo e do uso das Escrituras nas escolas estatais. Talvez tenha sido no âmbito da educação que os presbiterianos tiveram o maior impacto na Austrália, durante a segunda metade do século 19. No estilo verdadeiramente calvinista, havia preocupação pela educação das crianças. John Knox buscava erigir uma escada educacional que levasse de cada paróquia à universidade, uma
escada à qual cada membro da paróquia deveria ter acesso. Esse espírito prevaleceu entre os colonos escocesas e seus descendentes na Austrália. O mais antigo templo presbiteriano construído na Austrália, Ebenezer, perto de Portland Head, junto ao rio Hawkesbury, presta um tributo silencioso à fé e às aspirações dos pioneiros. Esse prédio era originalmente dividido em dois, sendo uma parte a escola e a outra o lugar de culto.1 Foram estabelecidas escolas em todos os estados e o padrão de educação era elevado. Era ideal da Igreja encher a terra de escolas diurnas, providas de professores de caráter piedoso, tendo a Bíblia como parte do currículo regular.2 Quando o sistema denominacional de educação finalmente foi substituído em ampla escala pelo controle estatal, a educação em toda a Austrália tornou-se “livre, compulsória e secular”. Sob a cláusula de secular, foi proibida a entrada da Bíblia nas escolas, e todas as lições relacionadas com a fé cristã foram removidas dos livros-texto. Embora todas as denominações tenham-se envolvido na batalha contra o governo estatal, o resultado não foi muito satisfatório. Finalmente, foi permitido o ensino das Escrituras no período escolar. Entretanto, não houve um esquema uniformizado aplicado em todos os estados. O programa de ensino das Escrituras, nas escolas, foi diminuído de modo tal a ficar quase insignificante. De certo modo, esse foi o início do declínio da influência do Calvinismo na Austrália. Ainda foram mantidas escolas controladas pela Igreja, mas essas não recebiam apoio financeiro do governo. Isso fez da educação, em âmbito não secular, um empreendimento um tanto dispendioso. A filosofia do humanismo tem sido uma força crescente desde a primeira colônia do país. Quando ela conquistou o controle do sistema educacional, não apenas nas escolas, mas também nas 1 2
C. A. White, The Challenge of the Years (Sydney: Angus and Robertson, 1951), pp. 3-4. Macdonald, One Hundred Years, p. 81.
universidades, teria sido necessário uma filosofia cristã de educação muito forte e bem estruturada, para oferecer resistência. As opiniões divididas se disseminaram, e não surgiu no horizonte um Kuyper australiano para trazer uma advertência profética e estabelecer os fundamentos de uma sólida abordagem bíblica da educação. Mais para o fim do século 19 começaram a alcançar a Austrália os ventos de mudança que estiveram soprando do continente europeu. Primeiramente, era apenas uma suave brisa, mas no século presente [20] ela deveria crescer até atingir força devastadora. O nome associado com essa nova tendência era Charles Strong, que foi empossado em 1879 como ministro da Igreja Escocesa em Melbourne. Aeneas MacDonald, referindo-se ao que veio a ser conhecido como o caso Strong, escreve: No mundo Presbiteriano daquela época o velho Calvinismo resoluto ainda dominava o campo como verdadeira e suficiente expressão da fé evangélica. Mas o criticismo se aproximava de seus flancos. Especialmente os homens treinados por Edward Caird, em Glasgow, estavam trazendo para a Igreja da Escócia uma nova disposição mental distintamente perturbadora daqueles de hábitos e pensamento ortodoxo. A Alta Crítica também agitava as águas na Escócia, embora aparentemente não tenha tomado parte no que aconteceu em Victoria.1 Strong era um pregador atraente e defendia uma atitude moderna e de mentalidade mais aberta em relação à doutrina. Na imprensa pública, a doutrina da expiação estava sob discussão. Numa carta, Strong apresentou a doutrina de modo tal, que omitiu tanto a personalidade de Cristo quanto sua vida e sacrifício expiatório. Isso atiçou os debates nos círculos eclesiásticos e 1
Ibid., p. 126.
motivou uma torrente sem paralelo de correspondência na Austrália. O interesse despertado era tão grande que um importante jornal de Melbourne, Argus, publicou toda a Confissão de Westminster em três partes. Num encontro congregacional da Igreja Escocesa, um ancião, que era advogado, fez um ataque à Confissão de Fé. Strong envolveu-se também em outros assuntos controversos. Ele presidiu um encontro da Igreja Escocesa onde o juiz Higinbotham proferiu uma conferência sobre “A Relação entre Religião e Ciência”, na qual os credos foram denunciados como “os mais insidiosos inimigos da religião de Cristo”. O ministro da Igreja Escocesa foi acusado de heresia e de quebra de seu juramento de ordenação, perante a Assembléia Geral da Igreja. Ele foi convidado a comparecer perante a Assembléia e negar sua cumplicidade com ensinos errôneos, e afirmar sua fé na verdadeira deidade de Cristo, no caráter propiciatório de seu sofrimento e morte e na realidade de sua ressurreição. Strong não compareceu, porém, enquanto a Assembléia se reunia, embarcou num navio e retornou à Escócia. A Assembléia declarou que ele não mais era um ministro da Igreja Victoriana.1 Enquanto o caso Strong deixou bem claro que o Calvinismo histórico não era, de forma alguma, um assunto morto na Austrália, ele também revelou uma importante tendência no ambiente teológico. Em 1882, foi adotado um Ato Declaratório estabelecendo como a Confissão de Fé deveria ser compreendida com relação aos decretos divinos, à salvação de crianças que morrem na infância, como Deus lida com os pagãos e com a criação do mundo em seis dias.2 O Ato Declaratório foi introduzido por teólogos conservadores, não para enfraquecer a Confissão de Fé, mas para tornar seu uso mais significativo nas igrejas. Em 1901, houve a união orgânica federal entre as Igrejas 1 2
“Strong, Charles”, in Australian Encyclopaedia, 8:328. Macdonald, One Hundred Years, p. 128.
Presbiterianas das colônias australianas, quando foi constituída a primeira Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana da Austrália. O padrão supremo foi a Palavra de Deus contida nas Escrituras do Antigo e Novo Testamento. O padrão subordinado foi a Confissão de Fé de Westminster, lida à luz de uma asserção declaratória. Embora tenha sido designada para remover dificuldades para tornar mais significativa a subscrição por parte dos oficiais, a asserção declaratória, de certa forma, rebaixou o Calvinismo em relação aos padrões de Westminster. Poder-se-ia argumentar que as doutrinas essenciais não foram atingidas, e que a liberdade era admitida apenas em questões não essenciais. Foram feitas várias críticas contra a asserção declaratória. Ela foi condenada por carregar a mancha do erro arminiano e pelagiano. Outros a consideraram como um compêndio de todas as heresias. Entretanto, existem duas objeções que não podem ser desconsideradas facilmente. Uma é a ambigüidade de seus termos, e a outra é o poder que a seção 5 coloca nas mãos da Assembléia Geral.1 (A Seção V afirma: “Essa liberdade de opinião é permitida nos assuntos do Padrão Subordinado que não sejam essenciais à doutrina ensinada, sendo que a Igreja se guarda contra os abusos desta liberdade que fere sua unidade e paz”) O testemunho fortemente calvinista da Igreja foi de certa forma desvitalizado, como resultado do enfraquecimento de seus fundamentos. Ao invés de sustentar um estado de guerra contra as forças militantes do humanismo, do materialismo e do ateísmo, a Igreja Presbiteriana tornou-se uma presa dos ataques destruidores do liberalismo. Não é fácil definir onde está a responsabilidade. A mudança no clima espiritual e teológico do Presbiterianismo ficou evidente na indicação de Samuel Angus como Professor de Novo Testamento e Teologia Histórica, no St. Andrew’s College, Sydney, em 1914. Angus era um brilhante erudito clássico. Nasceu 1
Alexander Stewart e J. Kennedy Cameron, The Free Church of Scotland 1843-1910 (Edimburgo e Glasgow: William Hodge, 1910). Essa obra fornece uma análise critica do Ato Declaratório adotado pela Igreja Livre da Escócia em 1892, pp. 68-85.
numa sólida família presbiteriana perto de Ballymena, na Irlanda do Norte, nos dias em que a Bíblia e o Breve Catecismo eram ensinados no lar. Foi educado na Universidade Real da Irlanda, Universidade de Princeton, no Seminário Teológico em Marburgo, e nas Universidades de Berlim e de Edimburgo. Durante vinte e nove anos ele ensinou aos jovens que ingressavam no ministério da Igreja Presbiteriana da Austrália. Durante os últimos dez anos de sua vida, ele foi centro de uma controvérsia prolongada nos tribunais da Igreja. As posições de Angus foram expressas em sua obra Verdade e Tradição, preparada especialmente para a questão da heresia na Assembléia Presbiteriana. Sobre a doutrina da Trindade ele fez essa assombrosa declaração: “Esse não é um dos assuntos considerados vitais para a fé cristã pela nossa Igreja, e que, portanto, goza da permissão da liberdade de opinião. A Igreja Presbiteriana da Austrália não tem uma doutrina da Trindade que ela declare ser válida ou vital".1 Sagazmente, ele rejeitou a doutrina da Trindade, da deidade de Cristo, da natureza sacrificial de sua morte como expiação pelo pecado e de sua ressurreição corporal. A imprensa deu publicidade à controvérsia. Foram pregados sermões e foram escritos panfletos, porém nenhuma atitude foi tomada pela Igreja. O declínio do Calvinismo na Austrália também era visto no crescimento do movimento ecumênico, em geral, e da união da Igreja, em particular. Desde o tempo da união federal das Igrejas Presbiterianas, havia uma controvérsia vívida a respeito da estratégia na busca da união com as Igrejas Metodista e Congregacional. Essa união foi efetivada em junho de 1977, sendo formada a Igreja Unida na Austrália. Como é de se esperar, a base da união foi bastante inclusiva. A Igreja Unida expressa sua disposição em aprender “do testemunho dos pais da Reforma, conforme está expresso nos vários modos da Confissão Escocesa de 1
S. Angus, Truth and Tradition (Sydney, 1934). Em seu argumento Angus utiliza-se do Ato Declaratório como base para sua liberdade em ensinar doutrinas conflitantes com a Confissão de Westminster.
Fé (1560), no Catecismo de Heidelberg (1563), na Confissão de Fé de Westminster (1647) e na Declaração de Sabóia (1658). De modo semelhante, ela ouvirá à pregação de John Wesley, em seus Quarenta e Quatro Sermões” (1793).1 Essa é a única referência ao Calvinismo nos dezoito artigos que constituem a base da união. Nem todos dos círculos presbiterianos eram favoráveis à união. Uma minoria considerável recusou-se a ingressar na união e, dessa forma, a Igreja Presbiteriana continua baseada na união federal de 1901. Existe um reavivamento do interesse na herança calvinista, e — sob a direção de homens como o Diretor Robert Swanton em Melbourne e o Diretor Harold Whitney, em Brisbane —, está sendo plantada a semente da sólida teologia reformada que, com a bênção de nosso soberano Senhor, contribuirá para uma colheita futura. Embora a Igreja Anglicana tenha sido instalada na Austrália pelos evangélicos, o primeiro bispo, William Grant Broughton, era um Alto Clérigo, com simpatia pelos Pactuantes.2 Ele não era antagônico aos evangélicos, mas tinha uma tarefa de grande magnitude na organização da expansão e governo da Igreja, numa vasta área. O sucessor de Broughton foi Frederic Barker. Como discípulo de Charles Simeon, ele foi um evangélico devoto e marcou a diocese de Sydney, bem como várias outras áreas da Igreja. O Bispo Barker foi responsável pela fundação do Moore College em 1856, e essa instituição, por mais de um século, tem produzido um impacto na verdade bíblica e reformada que é impossível de precisar. Thomas C. Hammond foi indicado como diretor, em 1936, e por dezessete anos foi uma luz candente e brilhante, numa era em que a Austrália estava sob as nuvens negras trazidas pelo
1
Constituição e Regulamentações, A Igreja Unida da Austrália, Melbourne (1976), artigo 10, p. 9. 2 Loane, Hewn From the Rock, pp. 45-66.
liberalismo na maioria das escolas teológicas.1 Com sua voz e escritos, Hammond defendeu a bandeira da fé reformada. Uma de suas publicações mais famosas é In Understanding Be Men [Sejam Homens no Entendimento]. Essa obra foi publicada pela IVF e teve quatro edições, com numerosas reimpressões. Hammond exerceu um ministério de grande alcance entre os estudantes das universidades australianas. Ele não receava em desafiar os filósofos modernistas, humanistas e ateístas. Angus veio da Irlanda do Norte e Hammond do Sul da Irlanda. Ambos eram dotados de um intelecto prodigioso, uma boa medida da sabedoria irlandesa e personalidade cordial. Porém, que contraste vemos em sua influência tanto na Igreja como na sociedade! No Moore College estavam associados a Hammond certos homens que ainda estão ativos no mesmo ministério. O Cônego Marcus L. Loane o sucedeu como diretor. Agora ele é Sir Marcus Loane e é o Arcebispo de Sydney. Ele é um dos valentes da herança da Reforma. Em sua obra sobre Pioneers of the Reformation in England [Pioneiros da Reforma na Inglaterra] ele se auto-situa na tradição de alguns dos grandes puritanos que eram formandos da Universidade de Cambridge, bravos na luta, e que não amaram suas vidas até a morte. Em sua recente obra Hewn from the Rock [Derrubados da Rocha], Sir Marcus Loane nos propicia um ótimo resumo da grande contribuição feita pelos evangélicos da Igreja Anglicana para o desenvolvimento de uma cultura que possa ser caracterizada como australiana. O atual diretor do Moore College, David Broughton Knox, mantém-se na mesma tradição de seus precursores. Ele e o Bispo Donald Robinson puseram o “campus” do Moore College à disposição da reunião do Sínodo Ecumênico Reformado, em 1972. 1
Marcus L. Loane, A Centenary History of Moore Theological College (Sydney: Angus & Robertson, 1955), pp. 139-153.
Eles também tomaram parte em algumas das discussões. Apesar dos esforços das autoridades do Alto Clero da Inglaterra, o primeiro bispo anglicano de Melbourne foi Charles Perry. Ele veio para Vitória em 1848, e durante vinte e nove anos exerceu um ministério eficaz como evangélico com convicções profundamente arraigadas. Ele quebrou lanças pela autoridade da Bíblia, quando atacada pelos cientistas. Foi um forte oponente do Pactualismo. Envolveu-se na controvérsia com o governo a respeito do controle da educação, sustentando que os pais eram responsáveis pela educação de seus filhos, não o Estado, nem a Igreja. O Ridley College, em Melbourne, fundado em 1910, tem sido notório pelos eruditos evangélicos em conexão com a Igreja Anglicana. O Cônego Leon Morris, um antigo diretor de Ridley, é bastante conhecido por sua erudição. Ele foi amplamente responsável pela fundação da Comunidade Tyndale, que procura promover o estudo da teologia bíblica numa base erudita. No “Caso Red Book” temos um exemplo da influência dos evangélicos na Igreja Anglicana. Em 1943, o bispo de Bathurst autorizou, para uso em sua diocese, um manual devocional intitulado The Holy Eucharist [A Santa Eucaristia], comumente conhecido como o Red Book [Livro Vermelho]. Houve objeções contra o ensino doutrinário e as práticas ritualísticas autorizadas nesse manual. Foi tomada uma atitude legal nos tribunais civis. A sentença foi que no Red Book havia um desvio das leis e ordem de culto estabelecidos no Livro das Orações Comuns de 1662. Isso era ilegal e promulgou-se um decreto impedindo o bispo de utilizar ou autorizar qualquer liturgia para a Santa Ceia além daquela do Livro de Orações, de 1662. A acusação de heresia foi retirada. O apelo ao Supremo Tribunal foi rejeitado, porém o decreto foi modificado em alguns pontos. Isso abriu um precedente para desvios semelhantes
do Livro de Orações Comuns.1 Desde 1962, a Igreja Anglicana da Austrália não mais retém vínculos legais com as leis eclesiásticas da Inglaterra, constituindo-se uma Igreja autogovernada com uma constituição aprovada. Embora sendo uma minoria ao longo da história da Igreja Anglicana da Austrália, os evangélicos exerceram uma influência muito importante nas áreas da educação, do evangelismo e nos padrões morais da sociedade. Além do Calvinismo moderado sustentado pelos evangélicos nas maiores denominações, tem havido igrejas e organizações menores que postulam uma expressão menos diluída do ensino reformado. A Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental exige uma subscrição irrestrita à Confissão de Westminster por parte dos oficiais. Embora seja relativamente pequena em números, ela publica uma revista mensal e edita informações sinodais, convocando a nação a voltar aos caminhos do Senhor.2 A Igreja Presbiteriana Reformada também existe desde 1858, quando os migrantes da Irlanda e Escócia sentiram-se compelidos a conservar uma existência separada. Embora a Igreja seja muito pequena, ela mantém um testemunho positivo do Calvinismo em panfletos e conferências. Um ministro dessa Igreja, o Rev. W. A. McEwen, possui e edita um jornal mensal, Evangelical Action [Ação Evangélica], na qual é sustentada uma pungente apologia 1
T. C. Hammond interessou-se ativamente pelo “Caso do Livro Vermelho”, publicando detalhes numa obra intitulada The Bathurst Ritual Case. 2 A posição tomada pela Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental para o Presbiterianismo Escocês é convincentemente apresentada por J. Campbell Robinson na obra The Free Presbyterian Church of Australia (Melbourne: Hamer, 1947). Desde a publicação desta obra histórica, o nome da denominação foi mudado para Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental.
pela integridade da Bíblia. Através de cartas aos principais jornais e de programas de TV, ele tem discutido, pelos padrões bíblicos, legislações tais como a abolição da pena de morte e a facilitação do caminho para o divórcio. Por causa das tendências liberais na Igreja Presbiteriana, antes da união, dois ministros também lideraram uma divisão que resultou na formação da Igreja Reformada Presbiteriana. Em 1961, a Igreja Evangélica Reformada veio a existir na Tasmânia. Essa nova Igreja é constituída de ex-membros da Igreja Batista, que pela leitura de publicações tais como as difundidas pela Banner of Truth Trust vieram a aceitar a teologia reformada. Essa corporação agora é conhecida como a Igreja Presbiteriana Evangélica.1 É de se lamentar que todas essas pequenas Igrejas, que defendem os padrões de Westminster, não mais estejam unidas. Tem havido muito tumulto e talvez o entusiasmo dos que mais ultimamente descobriram a rica herança da teologia calvinista tenha precipitado juízos e incompreensões que, gradualmente, serão superados nos próximos anos. No meio das tensões, os termos Calvinismo e Arminianismo podem ser um tanto adulterados e distinções de minúcias teológicas podem criar confusão desnecessária. Uma nova dimensão surgiu no cenário eclesiástico com o afluxo de novos colonos holandeses nos anos subseqüentes à Segunda Guerra Mundial. Os que pertenciam às Gereformeerde Kerken e a outras Igrejas Reformadas encontraram dificuldades em aceitar o clima teológico dominante na Igreja Presbiteriana. Convicções litúrgicas tornaram a assimilação na Igreja Presbiteriana da 1
Rowland S. Ward, Presbyterianism in Tasmania (1977), pp. 36-78.
Austrália Oriental impossível. O resultado foi a formação das Igrejas Reformadas da Austrália. Na providência de Deus foram unidas, na Austrália, as grandes escolas teológicas do Westminster Seminary, Filadélfia, e da Universidade Livre de Amsterdã. Problemas culturais e mal entendidos foram inevitáveis nas primeiras etapas. O grande teólogo escocês, James Denney, escreveu em 1900: “Se você quer ter uma boa idéia do Calvinismo, evite os holandeses. Lá existe bem mais uma espécie de metafísica matemática inferior do que convicção religiosa em seu Calvinismo”. Entretanto, Denney provavelmente teria modificado sua crítica quando as obras teológicas de Kuyper e Bavinck vieram a ser conhecidas no mundo de fala inglesa. A Austrália tem sido enriquecida com o novo interesse pela teologia despertado pelos filhos espirituais de Kuyper, nas Igrejas Reformadas. Em 1954, o Sínodo das Igrejas Reformadas decidiu apoiar a formação de uma Associação Pela Educação Superior de Base Calvinista (mais tarde Associação pela Universidade Cristã, ACU). Essa associação deu à luz o Reformed Theological College, em Geelong, Vitória. O projeto era fundir as duas correntes teológicas, Westminster e Amsterdã, nessa associação. Os primeiros membros docentes da faculdade foram Alexander Barkley, da Igreja Presbiteriana Reformada, que veio a ser diretor, e John A. Schep, das Igrejas Reformadas. Klaas Runia integrou a equipe da faculdade, em 1957, e por quinze anos exerceu um grande ministério na Austrália e Nova Zelândia. Gerard van Groningen, membro do corpo docente por trinta anos, formou-se no Westminster Seminary e A. O. Zorn, o atual diretor, também é formando pelo Westminster. T. L. Wilkinson fora membro da Igreja Presbiteriana da Austrália. Somos gratos ao Senhor pelo Westminster Seminary e pela ajuda tanto direta quanto indireta recebida desta instituição. É para mim uma honra ser incluído entre
os que contribuem para esse volume e, dessa forma, expressar um pequeno testemunho de nossa estima pelo ministério de Paul Woolley, do Westminster. A ACU tem expandido seu programa e agora, além de teologia, inclui filosofia e educação cristã. A maioria dos ministros das Igrejas Reformadas da Austrália e Nova Zelândia são formados no Reformed Theological College. Também há formandos servindo na Igreja Presbiteriana, Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental, Igreja Presbiteriana Reformada e na Igreja Reformada Livre. Com o estabelecimento das Igrejas Reformadas surgiram também movimentos pró-escolas cristãs controladas pelos pais. Atualmente, várias escolas estão operando e um número crescente de cristãos está vislumbrando a necessidade de tal educação, face ao humanismo do sistema estatal. Entretanto, até agora o impacto só acontece sobre uma pequena porcentagem da população. Além da ACU, tem havido o desenvolvimento da Foundation for Christian Scholarship in Australia [Fundação Pró-Erudição Cristã na Austrália] e a corporação correspondente na Nova Zelândia, conhecida como Foundation for Christian Studies [Fundação Pró-Estudos Cristãos]. Por meio de palestras, seminários e publicações, a FCS procura provocar impacto nos estudantes e professores de escolas e universidades seculares de ensino superior. Com o crescimento do nacionalismo na Austrália e com o desenvolvimento do que se poderia denominar uma cultura australiana, há uma necessidade pela promoção de um Calvinismo que, de certa forma, seja separado de seu background étnico. Falar da teologia de Westminster e da teologia holandesa é, praticamente, irrelevante para a situação enfrentada na Austrália. O conteúdo deve permanecer essencialmente o mesmo, porém deve ser adaptado à cultura da nação e apresentado sem rótulos estrangeiros.
Nova Zelândia Assim como na Austrália, os colonizadores brancos da Nova Zelândia vieram principalmente das Ilhas Britânicas. Havia uma intensa lealdade ao trono e o padrão do desenvolvimento da Igreja foi bastante determinado pelas estruturas eclesiásticas da pátriamãe. Diferentemente da Austrália, Nova Zelândia não foi uma colônia penal. Foram feitos esforços para planejar a colonização. O principal arquiteto desse projeto foi Edward Gibbon Wakefield. Seu programa foi projetado para encorajar homens e mulheres de excelente caráter a se tornarem colonos. Ele estudara a influência da religião sobre os colonos pioneiros da América do Norte e chegou à conclusão de que uma estratégia similar poderia ser empreendida na Nova Zelândia.1 O plano Wakefield foi desenvolvido só parcialmente, em determinadas áreas do país e, especialmente, na ilha do sul. Uma colônia importante foi desenvolvida em torno da Igreja Anglicana. A primeira companhia de colonos fundou a cidade de Christchurch e a área recebeu o nome de Canterbury [Cantuária]. Uma colônia similar foi estabelecida na região de Otago, mais ao sul, por colonos escoceses. De modo global, a Igreja exercitou uma influência considerável na primeira ocupação da Nova Zelândia por colonos brancos. Assim como na Austrália, os anglicanos, presbiterianos e católico-romanos foram as principais corporações denominacionais envolvidas. O primeiro bispo anglicano da Nova Zelândia foi George Augustus Selwyn. Ele possuía dotes intelectuais excepcionais e sua liderança na Igreja foi famosa pela eficiência, coragem e tenacidade. 1
W. P. Morrell e O. O. W. Hall, A History of New Zealand Life, (Whitcombe and Tombs, 1957), pp. 29ss.
Ele era amigo íntimo do Bispo Broughton, da Austrália, e suas simpatias com o Alto Clero o puseram em conflito com a posição evangélica da Sociedade Missionária da Igreja. A Igreja Anglicana experimentou um crescimento rápido sob a liderança de Selwyn.1 Entretanto, o padrão seguiu a ênfase do Alto Clero, e desta fonte é vão esperar qualquer simpatia pelo Calvinismo. O principal impacto do Calvinismo, na Nova Zelândia, veio do Presbiterianismo escocês. O primeiro ministro presbiteriano, John Macfarlane, velejou de Glasgow, em 1839, com um contingente de imigrantes. Eles se estabeleceram em Wellington. Em 1843, um ministro da Igreja da Escócia, o Rev. W. Comrie, iniciou os trabalhos em Auckland. Um influente e importante ministro pioneiro foi David Bruce, irmão de A. B. Bruce, um professor do Free Church College [Faculdade da Igreja Livre] em Glasgow. Ele defendeu a causa da extensão da Igreja e, à medida que as Igrejas vieram à existência com o crescimento da população, foi organizada a Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia. O ministério da Igreja incluía homens filiados à Igreja Livre da Escócia, à Igreja Presbiteriana Irlandesa, à Igreja da Escócia, à Igreja Presbiteriana Unida da Escócia e à Igreja Presbiteriana Inglesa, além daqueles treinados na colônia. A primeira Assembléia reuniu-se em 1862.2 Na região de Otago veio a existir uma Igreja Presbiteriana separada. Essa veio a ser conhecida como Igreja Presbiteriana de Otago e Terras do Sul. Ela teve início com a instalação de membros da Igreja Livre da Escócia que chegaram em 1847. Desde o princípio, esses imigrantes visavam a uma ocupação da terra tanto espiritual quanto materialmente. Eles criam estar fundando uma colônia que se tornaria um estado cristão modelo. Originalmente, o 1
NoeI S. Pollard, "Selwyn, George Augustus”, in New International Dictionary of the Christian Church, (Grand Rapids: Zondervan, 1974), p. 895. 2 John Dickson, History of the New Zealand Presbyterian Church (Dunedin: Wilkie, 1899), pp. 17ss.
nome da colônia deveria ser Nova Edimburgo, mas foi alterado para Dunedin, uma antiga designação celta de Edimburgo. O primeiro ministro a chegar na colônia foi Thomas Burns, sobrinho do famoso poeta escocês.1 Durante meio século essa Igreja teve uma poderosa influência no desenvolvimento da metade sulina da ilha do sul da Nova Zelândia. Seus membros lideraram as áreas da vida social, educacional e religiosa que, em grande medida, estavam sob seu controle e direção. Tanto a Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia como a Igreja Presbiteriana de Otago e Terras do Sul exerceram ampla influência na educação durante a segunda metade do século 19. Foram fundadas escolas e trouxeram da Escócia professores cuidadosamente selecionados. Na maioria dos centros mais populosos havia escolas de primeira ordem sob a superintendência de influência presbiteriana. Ambas as Igrejas concordaram em estabelecer a Escola de Teologia em Dunedin, onde os alunos poderiam se preparar para ingressar no ministério. Aqui era ensinada a Teologia Reformada, e por muitos anos Dunedin exerceria uma saudável influência nos círculos teológicos da Australásia. A união das duas Igrejas aconteceu em 1901. Assim como na Austrália, a adoção da Confissão de Westminster foi acompanhada de uma asserção declaratória. Em sua obra WiII Presbyterianism Survive in New Zealand? [Sobreviverá o Presbiterianismo na Nova Zelândia?] J. W. Deenick considera 1901 como “um ano decisivo na história do Presbiterianismo da Nova Zelândia”. Ele afirma que a partir daquele ano a Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia deixou de 1
C. Stuart Ross, The Story of the Otago Church and Settlement (Dunedin: Wise, Caffin, 1887), pp. 2Oss.
representar a fé reformada histórica naquele país. A asserção declaratória, embora bem intencionada, efetivamente deixou uma abertura pela qual o liberalismo pôde ser introduzido sem que a consciência lhe fizesse oposição.1 A primeira indicação de uma atitude mais descuidada da Igreja para com os padrões reformados evidenciou-se na proposta da união com os metodistas e congregacionais, em 1917. Nas pessoas de Kennedy Elliott e Thomas Miller surgiram dois valorosos defensores da posição da confissão presbiteriana histórica. As “Doze Razões” pelas quais não deveria haver união das Igrejas foram redigidas por Miller e enviadas para todas as Igrejas Presbiterianas na Nova Zelândia. Miller era um antagonista da união, qualquer que fosse a época que o tema surgisse. Ele foi um baluarte da verdade, e seus dois filhos, J. Graham Miller e Robert S. Miller seguiram as pegadas do pai. Eles ingressaram no ministério e contenderam seriamente pela fé tanto na Nova Zelândia como mais tarde na Austrália. A união da Igreja ainda não aconteceu. Talvez a situação da Austrália se mostrará como uma advertência aos entusiastas da Nova Zelândia. A controvérsia surgida da proposta de unificação com outras Igrejas, cujas posições doutrinárias não sejam reformadas, indicam claramente um desvio das doutrinas apresentadas na Confissão de Westminster. Em 1967, as negociações em favor da união da Igreja incluíram a denominação Anglicana, Presbiteriana, Congregacional, Metodista e Igreja de Cristo. O resultado dessa combinação seria uma Igreja administrada por bispos e as questões doutrinárias seriam reduzidas a um mínimo. Para satisfazer as condições da união, a modificação das bases doutrinárias é sempre imperativa. Já tem havido um tal desvio geral de seus ancoradouros, por parte de todas as Igrejas implicadas, que a união parece ser o curso natural 1
J. W. Deenik, WilI Presbyterianism Survive in New Zealand? (Auckland: Reformed Publications, 1961), pp. 10 ss.
dos eventos. A Faculdade Teológica, Knox College, continuou durante vários anos a ser o centro a partir do qual a semente da fé reformada foi disseminada. Em seu tempo devido, o joio do liberalismo surgiu. Isso foi tolerado pela Igreja e alcançou o seu auge quando o Diretor L. G. Geering pôde negar impunemente as doutrinas fundamentais da fé.1 A negação da fé, por parte de Geering, foi tão abusiva que até o jornal católico-romano Zealandia comentou, num editorial, que ele perdera seu direito a ensinar. A maré do liberalismo não pôde seguir seu curso sem enfrentar forte oposição. Em 1950, vários ministros, anciãos e membros fiéis da Igreja Presbiteriana estavam convictos de que deveriam firmar uma posição. Conseqüentemente, foi formada a Comunidade Westminster “para conservar o testemunho distintivo reformado da Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia, como filha da Igreja Escocesa e, portanto, da Reforma Calvinista”. “Os membros aceitam de todo o coração a Bíblia como a Palavra de Deus escrita, e aceitam sinceramente a Confissão de Fé de Westminster e os Catecismos como incorporando definitivamente a substância da Fé Bíblica e Reformada”. Com o fim de atingir seus objetivos, a Comunidade Westminster lançou a publicação de um jornal intitulado O Presbiteriano Evangélico. Inicialmente, ele foi publicado 1
John Haverland, The Geering Controversy. Geering negou o ensino calvinista sobre milagres, a infalibilidade da Bíblia, a deidade e o poder de Cristo, a ressurreição de Cristo e a imortalidade da alma. No julgamento de 1967 a Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia não tomou qualquer atitude. Numa carta pastoral às igrejas, a Assembléia declarou sua “confiança no Professor Geering como ministro, professor de teologia e Diretor de nossa Faculdade Teológica”. Cp. O. F. Sage, “1967 Assembly”, Evangelical Presbyterian, vol. 18 nº 1 (janeiro-fevereiro, 1968). O autor afirma que “a Igreja Presbiteriana de N. Z. deixou de ser uma igreja confessional desde que a decisão de Assembléia foi proferida” (p. 7).
trimestralmente, e mais tarde bimestralmente. Os artigos publicados não apenas criticavam o ensino de eruditos tais como Bultmann, Geering e outros, mas também apresentavam a Confissão de Westminster como sendo a doutrina bíblica da Igreja. Encontramos entre os nomes do corpo editorial os de A.G. Gunn, J. Balchin, C.L. Gosling, J. Graham Miller e R.S. Miller. A revista atingiu grande circulação não só na Nova Zelândia, mas também na Austrália. Foi como água fresca para a alma sedenta nas igrejas onde a pregação profética tinha cessado. O Presbiteriano Evangélico teve uma gama mais ampla de interesses do que a Revista Teológica Reformada, que iniciou a publicação na Austrália, em 1941. O objetivo imediato desta última era uma exposição, defesa e propagação erudita da Fé Reformada, considerada como "a mais pura expressão do Cristianismo Histórico”. Nos anos subseqüentes esse objetivo foi, em certa medida, alterado. Além da revista regular, a Comunidade Westminster foi grandemente responsável pela publicação e disseminação de um número considerável de livretos de natureza apologética. Títulos tais como Nossa Fé Presbiteriana, A Autoridade da Bíblia; Após a Morte — O que?; A Importância da Reforma para a Discussão entre as Igrejas, indicam as armas utilizadas na batalha pela verdade. A Comunidade Westminster esteve envolvida no “Caso Geering” quando esse foi apresentado perante a Assembléia Presbiteriana. Entretanto, a decisão tomada desapontou e um acordo preservou uma paz que está longe de ser saudável. Três anos após o início da Comunidade Westminster, uma nova denominação ergueu bem alto o estandarte do Calvinismo na Nova Zelândia. Isso foi propiciado pelo afluxo de novos colonos vindos da Holanda. Assim como na Austrália, esses imigrantes não vieram a seu novo país com a intenção de fundar uma Igreja. Eles deixaram
sua terra natal porque a situação na Europa não era muito promissora e havia perspectivas de condições melhores nos países jovens e menos densamente populosos das Antípodas. Entretanto, eles ficaram desapontados com o ensino e a pregação em várias das Igrejas Presbiterianas. Eles descobriram que muitos ministros não aceitavam a Bíblia como a infalível Palavra de Deus, e havia desconsideração pela autoridade dos padrões confessionais da Igreja. Eles não viram alternativa senão formar uma Igreja que fosse fiel à herança da Reforma. Em seguida, eles publicaram um manifesto em 1953, declarando as razões da fundação das Igrejas Reformadas. De modo algum essa era uma causa popular e houve muitas críticas. O líder pioneiro na fundação dessas igrejas foi J.W. Deenick; em 1954 havia nove congregações localizadas nos maiores centros populacionais. Após vinte e três anos existem agora quatorze congregações e três Presbitérios. A maioria dos ministros é formada pelo Reformed Theological College em Geelong, Austrália. As Igrejas da Nova Zelândia sustentam a faculdade da mesma forma que as Igrejas reformadas da Austrália. O zelo apaixonado das Igrejas Reformadas, da Nova Zelândia e Austrália, por disseminar as verdades imperecíveis descobertas na Reforma, foi visto na fundação da Casa Publicadora Presbiteriana Reformada. Eles estavam decididos a publicar uma revista mensal, e o nome escolhido foi Trowel and Sword [Colher e Espada]. Esse era o oposto do nome escolhido por C. H. Spurgeon para a revista que ele editava. Na primeira capa da primeira edição, em outubro de 1954, os símbolos consistiam de um muro em processo de construção, uma espada e uma colher (de pedreiro) e uma pedra fundamental com o seguinte texto: “O Deus dos céus é quem nos dará bom êxito; nós, seus servos, nos disporemos e reedificaremos — Nm 2.20”. Havia também um retrato de João Calvino.
Os editores eram John F.H. Vander Bom, da Austrália, e J.W. Deenick, da Nova Zelândia. As primeiras edições foram publicadas na Nova Zelândia, porém mais tarde a casa publicadora foi transferida para a Austrália. O objetivo dessa revista foi indicado por Vander Bom no editorial principal. Ele escreveu: Nós não pretendemos lançar uma revista teológica, mas uma edição popular para a família reformada, falando em tom gentil acerca de assuntos relativos a todas as esferas da vida, tais como lar, ciência, sindicatos e trabalho doméstico, igrejas, escolas e missões, política e televisão, e realmente sobre tudo, sem exceção, que caiba no aspecto de nossa responsabilidade cristã e na autoridade da Palavra de Deus.1 Ninguém objetaria que nos vinte e quatro anos desde que a revista Trowel and Sword foi lançada pela primeira vez, esse alto ideal tem sido alcançado. Há sempre o perigo de que uma revista tal fique obsessiva por caprichos teológicos e não alcance o povo comum. O objetivo original de Trowel and Sword não deve tornarse parte da história enterrada. As Igrejas Reformadas da Austrália tornaram-se agora parte do edifício eclesiástico. Elas estão abertas às mudanças teológicas que estão agitando as Igrejas na Holanda. Elas têm visto os efeitos devastadores da teologia do continente europeu na Escócia, e subseqüentemente na Austrália e Nova Zelândia. Ignorar as advertências da História simplesmente significará uma repetição dos erros e falhas do passado.
1
J. F. H. Vander Bom, “Building a New Nation”, Trowel and Sword, Volume 1, nº 1 (outubro de 1954), p. 4.
As Novas Hébridas Qualquer levantamento do impacto do Calvinismo nos países Antípodas seria incompleto sem uma referência às missões. Samuel Marsden não estava envolvido unicamente com a introdução da fé cristã na Austrália, mas também trabalhou para a sua disseminação em outras áreas, nos Mares do Sul. Ele inaugurou a primeira missão cristã aos moaris da Nova Zelândia. Em 1838, a Sociedade Missionária da Igreja contava com uma equipe de trinta e cinco missionários e cinqüenta e uma escolas na Nova Zelândia.1 Na Austrália, os aborígines constituíam um problema muito difícil. Sua organização tribal e suas estruturas sociais tinham um contraste marcante com as estruturas políticas e sociais dos brancos. Os negros foram cruelmente tratados por alguns brancos. Eles foram desmoralizados pelos vícios do homem branco. Os aborígines da Tasmânia desapareceram completamente. No continente australiano a população aborígine decresceu. No século 19, pouco foi tentado nas Igrejas que sustentavam as posições reformadas, para alcançar os aborígines. Foram iniciados alguns pontos missionários, principalmente na Queensland, porém o trabalho entre os aborígines somente foi coordenado depois da Federação das Igrejas Presbiterianas. Essa obra mostrou-se muito difícil e nenhuma Igreja ou sociedade missionária que trabalha entre os aborígines pode expor estatísticas sensacionais.2 Durante os anos em que a Austrália e a Nova Zelândia estavam se desenvolvendo a partir de assentamentos coloniais para uma nação autogovernada, havia grandes atividades missionárias acontecendo nas ilhas do Pacífico Sul. A área onde o maior impacto 1
K. S. Latourette, A History of the Expansion of Christianity (1948; ed. reimpressa, Grand Rapids: Zondervan, 1970), 5:197. 2 Ibid., p. 165.
do Calvinismo pôde ser discernido foram as Novas Hébridas. Esse grupo de ilhas fica a cerca de mil e seiscentos quilômetros ao norte da Nova Zelândia e dois mil e quinhentos quilômetros a leste da Queensland. A primeira tentativa de levar o Evangelho foi feita em 1838 pelo famoso missionário John Williams, que deu sua vida nesse esforço.1 A primeira Igreja Presbiteriana que tentou uma operação missionária nas Novas Hébridas foi a de Nova Escócia. Seu missionário, John Geddie, estabeleceu-se em Aneiteum, a ilha mais ao sul, em 1848. Somos gratos a Robert S. Miller por providenciar um relatório detalhado e fascinante do ministério de John Geddie, em sua obra Misi Gete, publicada em 1975, pela Igreja Presbiteriana da Tasmânia. Talvez, o maior tributo a esse pioneiro missionário e plantador de igrejas sejam as palavras conclusivas de uma placa da Igreja em Anelgauhat, Aneiteum: “Quando ele desembarcou, em 1848, aqui não havia cristãos, e quando ele partiu, em 1872, não havia pagãos".2 Em 1852, ele recebeu a companhia de John Inglis e sua esposa, da Igreja Presbiteriana Reformada da Escócia. Os cristãos de Aneiteum foram pioneiros no trabalho em outras ilhas e alguns deles pagaram com a vida por sua devoção. Um dos mais famosos e mais distintos missionários das Novas Hébridas foi John G. Paton, que também veio da Igreja Presbiteriana Reformada da Escócia. Primeiramente, ele tentou trabalhar na ilha de Tanna, mas, depois de quatro anos, foi forçado a partir por causa da hostilidade dos nativos. Com o apoio da Igreja Presbiteriana de Vitória, Paton começou um trabalho na ilha de Aniwa. Ele teve a 1
J. Herbert Kane, A Global View of Christian Missions, (Grand Rapids: Baker, 1971), pp. 526 ss. 2 R. S. Miller, Misi Gele, John Geddie, Pioneer Missionary to the New Hebrides (The Presbyterian Church of Tasmania, 1975), p. 333.
alegria de ver finalmente a ilha inteira aceitar a fé cristã. Em 1869, a Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia enviou seu primeiro missionário às Novas Hébridas. Esse se chamava William Watt e, em 1870, ele foi seguido por Peter Milne. Milne foi designado para a ilha de Nguna e, após vinte e cinco anos, a população da ilha havia se tornado cristã. Por volta de 1914, além de Aneiteum, Erromanga, Nguna e Aniwa, a Igreja Cristã também estava plantada em cinco outras ilhas: Futuna, Efate, Tongoa, Epi e Paama. Quando a maioria do Sínodo Presbiteriano Reformado, na Escócia, decidiu unir-se com a Igreja Livre da Escócia, os missionários das Novas Hébridas compartilharam da sorte da maioria. John Paton tornou-se um missionário da Igreja Presbiteriana de Vitória. Mais para o fim do século 19, os missionários eram sustentados pelas Igrejas Presbiterianas na Austrália e Nova Zelândia, pela Igreja Livre da Escócia e pela Igreja Presbiteriana do Canadá.1 Missionários fiéis deixaram o fundamento sólido para a jovem igreja das Novas Hébridas. O Evangelho da soberana graça de Deus em Cristo foi proclamado e uma colheita maravilhosa foi o resultado. Os primeiros pioneiros foram seguidos por missionários que levaram o mesmo Evangelho. A Igreja que foi formada teve grande influência nos desenvolvimentos culturais por todo o grupo de ilhas. Foram fundadas escolas e a Bíblia foi traduzida para as línguas faladas nas diversas ilhas. Foram construídos hospitais e os recursos médicos se tornaram disponíveis. Para a educação teológica foi fundado o Tangoa Training Institute. Esse instituto foi fechado em 1970 e substituído pelo Presbyterian Bible College das Novas Hébridas. O primeiro diretor dessa faculdade foi J. Graham 1
Latourette, History of Expansion, p. 229.
Miller (1971-73). Em 1948, a Igreja Presbiteriana das Novas Hébridas tornou-se totalmente autônoma. Segundo sua constituição, a Igreja aceita “as Escrituras dos Antigo e Novo Testamento que contêm a Palavra de Deus como sua Regra Suprema de fé e vida; crê nas doutrinas básicas da fé cristã fundamentada nas Escrituras; e compreende e ensina essas doutrinas pelos princípios norteadores da Reforma Protestante”. Provisões são feitas para o ministério, presbiterato, governo e disciplina conforme o padrão geral para as Igrejas Presbiterianas e Reformadas. O número de membros comungantes é aproximadamente de 8.600, numa comunidade cristã de cerca de 30.000 pessoas. Essa é a primeira Igreja autogovernada na Melanésia. Politicamente, as Novas Hébridas têm estado sob o controle conjunto do Reino Unido e da França. Agora, eles alcançaram um governo próprio e o novo Estado é conhecido como Vanuatu. Uma Igreja forte e ativa em seu autogoverno tem sido como fermento no cenário político e deve continuar a ter ampla influência. A era dourada do Calvinismo, na grande área continental da Austrália, Nova Zelândia e nas ilhas do Pacífico Sul pertence ao século 19. Com exceção das Novas Hébridas, no século 20 tem havido declínio. Uma questão pertinente surge com naturalidade: Haverá um futuro para o Calvinismo nesta parte do mundo? Se permitirmos às falhas do passado e à magnitude na tarefa presente determinarem a resposta, então poderemos hesitar antes de respondermos afirmativamente. Podemos vislumbrar da mente do profeta Ezequiel quando, no vale dos ossos secos, ele foi confrontado com a questão: “Poderão esses ossos viver?”. Ao invés de tentarmos responder à questão com expressões piedosas de esperança, deveríamos seriamente nos esforçar em
avaliar qual é nossa tarefa e o que o Calvinismo requer de seus adeptos. Se a intenção ainda é de plantar alguma espécie singular de Calvinismo, tal como o escocês ou o holandês, não há garantia de sucesso. Se encararmos o Calvinismo como uma fé viva, há muita base para o otimismo. O princípio predominante do Calvinismo é a crença num Deus soberano que está edificando sua Igreja. O mandamento de Cristo ainda está de pé: “Fazei discípulos de todas as nações”: Essa ordem foi precedida pela reivindicação: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra”. É em obediência a esse Senhor que devemos encarar o futuro. Dessa forma poderemos reivindicar as promessas de Deus, que são seguras em Cristo. Calvino tinha sempre em vista o triunfo da causa de Deus. Pouco antes de sua morte, quando se despedia dos pastores de Genebra, ele lhes deu uma palavra de encorajamento: “Sejam corajosos e fortaleçam a si próprios, pois Deus utilizará essa Igreja e a sustentará; eu lhes afirmo que Deus a guardará".1 O futuro não poderia estar em melhores mãos.
1
Jean Cadier, The Man God Mastered (Londres: Inter-Varsity, 1960), p. 174.
O Calvinismo na África do Sul Gideon Thom - Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Gideon Thom é titular do Departamento de História Eclesiástica e Missiologia na Universidade de Fort Hare, Alice, África do Sul. Graduou-se na University of the Free State (B.A.) e no Stellenbosch Theological Seminary(Th.M.; Ph.D.). Como ministro ordenado na Igreja Reformada Holandesa (NGK) serviu como pastor em várias Igrejas de fala Xhosa, no Trans-Ciskei e no Ciskei. Thom é autor de um catecismo na língua Xhosa e contribui com artigos para Missionalia e para o Journal of Theology for Southern Africa. Ele é membro da South African Missiological Society [Sociedade Missiológica Sul Africana].
CAPITULO 16
O CALVINISMO NA ÁFRICA DO SUL
Durante muitos anos, a força da apologética calvinista estava na qualidade de vida de seus adeptos, não apenas de indivíduos tais como Calvino, Knox, de Coligny e numerosos Outros, mas também das comunidades.1 Por causa do apelo dessa apologética ao bom senso, os pontos fracos da prática calvinista eram atacados sem misericórdia. A morte de Servetus, mártires quakers na Nova Inglaterra, presbiterianos defendendo a escravidão — todos receberam mais do que uma justa crítica. Dentre todas as “falhas públicas” da fé reformada, a associação dos calvinistas da África do Sul com a política racial de seu país parece ser a mais horrenda. É algo embaraçoso para os reformados de outros países e, para os nãocalvinistas, parece confirmar as “tendências naturais” de doutrinas tais como a predestinação e a depravação total.2 Em seu livro The Puritans in Africa [Os Puritanos na África], W. A. de Klerk chama a atenção para a “ironia da história sulafricana".3 Existem realmente numerosos (e humorísticos) paradoxos que poderiam ser indicados, mas, de certa forma, de Klerk reforça a “ironia”. Ele encontra as raízes do “desejo de poder” africano no paralelo popular entre o africano e o puritano e o (presumido) supralapsarianismo de Dort, utilizando em seu processo 1
Cp. o artigo “Calvinismo”, especialmente a seção 3 sobre os efeitos práticos do Calvinismo, in John E. Meeter, org., Selected Shorter Writings of Benjamin B. Warfield-II (Nutley, N. J.: Presbyterian and Reformed, 1973). 2 Cp. T. Huddleston, Naught for Your Comfort (Londres: Collins, 1956). 3 Cp. W. A. de Klerk, The Puritans in Africa: A Story of Afrikanerdom (Nova York: Penguin, Pelican, 1976), cap 12.
as teorias de Weber e Tawney.1 Agora, tanto amigos como inimigos aceitaram o pressuposto de que o Calvinismo, realmente, foi a causa da discriminação racial na África do Sul, embora não seja fácil encontrar evidência histórica direta para esse pressuposto.2 Não estou sugerindo que a influência do Calvinismo possa ser isolada com a finalidade de “provar” que todas as coisas más foram causadas por outros fatores e que todas as coisas boas foram produzidas pelo Calvinismo. A vida e a História certamente são complexas demais para um tal “teste de laboratório”. E, não obstante a apologética tradicional, os calvinistas não reivindicam a perfeição.3 Porém, como o Calvinismo é, ao mesmo tempo, uma fé tanto pessoal quanto pública, é possível definir sua influência em certas etapas da História. Pode não ser supérfluo insistir sobre uma definição de Calvinismo ao considerarmos sua influência mais ampla. A tradição calvinista inglesa parece dar ênfase à soteriologia. A tradição escocesa inclui, enfaticamente, a liberdade da Igreja em sua própria organização e na sua relação com o Estado. Abraham Kuyper utilizou-se de uma definição cultural mais ampla que incluiu até o Arminianismo wesleyano.4 John T. McNeiII afirma que Woodrow Wilson foi calvinista e atribui especialmente sua preocupação com os desprivilegiados e com as pequenas nações à influência do
1
De Klerk descobre uma descontinuidade entre Calvino e o Puritanismo, e uma continuidade entre o Puritanismo e o Calvinismo holandês (cp. o recente estudo de R. T. Kendall: Calvin and English Calvinism to 1649 (Nova York: Oxford University Press, 19791). Essa obra é muito interessante e repleta de informações históricas sobre a África do Sul. 2 O Prof. F. J. van Jaarsbeld também atribui o sentimento racista ao “Calvinismo Protestante”, mas não enfatiza muito a doutrina da eleição em sua obra From Van Riebeeck to Vorster 1652-1974 (Johannesburgo: Perskor, 1975), p. 37. 3 Obviamente a apologética tradicional é eminentemente bíblica e não deveria ser abandonada (cp. Mt 5.16). 4 Cp. sua obra Het Calvinisme (Kampen: Kok, 1959), p. 10.
Calvinismo.1 O general Jan C. Smuts não era um calvinista, porém ele e o general Louis Botha criam que o Tratado de Versalhes era injusto para com os alemães.2 Ambos foram criados num ambiente reformado holandês. Será que não deveríamos incluir na definição a integridade moral, a atividade honesta e a compaixão pelos oprimidos, demonstradas por pessoas que cresceram em lares calvinistas sem fazerem uma confissão pública do Calvinismo? Porém, existem armadilhas. Nem todo aquele que é nascido ou batizado numa Igreja Reformada pode ser considerado como calvinista. Conhecimento e compromisso pessoal sempre têm sido tratados com extrema seriedade pelas Igrejas Reformadas. Parece que devemos ficar satisfeitos com uma definição mais modesta, mesmo que isso signifique que poderemos ser incapazes de reivindicar alguns dos legítimos “frutos do Calvinismo”. Por Calvinismo quero denotar aquele ramo da Igreja Cristã e Ortodoxa que enfatiza a liberdade da graça de Deus na salvação3 e a liberdade da Igreja de Deus na sociedade.4 Sob o segundo aspecto não deveríamos esquecer a posição calvinista tradicional de que a própria sociedade (incluindo o Estado) deve ser levada a obedecer ao Deus vivo.
Lampejos do Calvinismo na História da África do Sul Na África do Sul, a influência direta de Calvino, através de seus próprios escritos, foi realmente pequena. As Institutas e seus comentários e sermões ainda não foram traduzidos para o afrikaans
1
Em seu livro The History and Character of Calvinism (Nova York: Oxford University Press, 1962), p. 418. Cp. De Klerk, Puritans in Africa, p. 102. 2 Cp. Deneys Reitz: No Outspan (Londres: Faber and Faber, 1944), p. 14. 3 “A marca que distingue o Calvinismo de todos os outros sistemas está em suas doutrinas da ‘graça eficaz”’, Meeter, Writings of Warfield, p. 415. 4 Em outras palavras, todos aqueles que aceitam o reinado direto de Cristo sobre sua igreja, sejam eles calvinistas congregacionais, clássicos ou conciliares.
[idioma derivado do holandês] em grande escala.1 Entretanto, estão disponíveis traduções em inglês e holandês. O declínio geral do Calvinismo, no século 19, afetou de certa forma todas as igrejas sulafricanas, com exceção da Igreja Reformada (GKSA), que foi fundada parcialmente sob a influência da “Afscheiding” na Holanda, em 1834. Embora a Igreja Reformada Holandesa não tenha abandonado suas Confissões, a pessoa de Lutero recebeu tanta atenção quanto Calvino.2 Entretanto, nos anos 1930 o interesse por Calvino cresceu bastante e, desde então, vários estudos doutorais têm sido empreendidos por eruditos sul-africanos sobre algum aspecto dos escritos de Calvino.3
A Igreja Reformada Holandesa (NGK) O Calvinismo foi trazido para a África do Sul em 1652, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais abriu um ponto no Cabo para fornecer água e alimentos frescos para seus navios. No século 17, o relacionamento entre a Igreja Holandesa e o povo era muito íntimo.4 Na África do Sul, essa característica foi reforçada por vários fatores durante os séculos seguintes. A carta patente da Companhia fazia provisões para o estabelecimento de escolas e igrejas, em benefício dos empregados e de não-cristãos na população. Quando Jan van Riebeeck chegou, ele orou pela extensão de “nossa verdadeira religião reformada” entre os
1
Foram publicadas edições resumidas no dialeto sul-africano. O Dr. Simpson está trabalhando agora numa tradução da edição de 1559 das Institutas. 2 A Reforma é comemorada anualmente em 31 de outubro, mas existem várias outras razões para esse fato. 3 Cp. O. Kempff, Bibliografie Van Suid-Afrikaanse Calviniana (Potchefstroom: PU vir CHO, 1973). 4 J. du Plessis, A History of Christian Missions in South Africa (Londres: Longmans, 1911), p. 21.
habitantes do novo país.1 O relacionamento íntimo entre a Igreja e a Companhia serviu como fator inibidor do desenvolvimento da Igreja no Cabo.2 As “necessidades religiosas” dos habitantes não foram negligenciadas (o primeiro ministro residente foi indicado em 1665, mas ele morreu logo depois); porém paralelos freqüentemente mencionados com assentamentos puritanos na América eram indevidamente favoráveis à situação no Cabo.3 A colônia era primeira e principalmente um empreendimento comercial. Os oficiais e os colonos nem sempre eram indivíduos da melhor qualidade. O holandês da classe média não considerava o Cabo muito atrativo e, freqüentemente, um soldado alemão vinha ao Cabo em busca de fortuna.4 Os ministros vinham e iam a curtos intervalos e poucos dentre eles poderiam ser favoravelmente comparados com os homens que acompanharam os puritanos à América.5 O único grupo que se estabeleceu no Cabo por razões religiosas, foram os huguenotes franceses, que chegaram entre 1688 e 1700. Eles fizeram real contribuição à piedade e à agricultura e, conforme J. du Plessis, também às relações com os clãs indígenas.6 Entretanto, Entretanto, inicialmente não lhes foi permitido constituir sua própria congregação e os direitos para o uso de sua língua foram restringidos. O resultado foi que sua contribuição à vida religiosa não foi o que poderia ter sido.7 1
Ibid., p. 23. P. S. van der Watt, Die Nederduitse Gereformeerde Kerk 1652-1824 (Pretoria: N.G. Kerk, 1976) 1:10. 3 De Klerk reconhece isso: Puritans in Africa, p. 7. 4 Ibid., p. 9. 5 Cp. van der Watt, Nederduitse Gereformeerde Kerk, 1: 25; Eric A. Walker, A History of Southern Africa (Londres: Longmans, 1962), p. 95; du Plessis, History of Christian Missions, p. 46. 6 Du Plessis, History of Christian Missions, p. 44. 7 Van der Watt, Nederduitse Gereformeerde Kerk, 1:20. 2
Um número substancial de alemães foi assimilado pelos primeiros colonos durante o primeiro século da colônia, bem como uma minoria de escravos batizados. Embora não se tivesse empreendido a organização do trabalho missionário, vários habitantes nativos (Khoi-San) foram batizados e assimilados pela população branca.1 A medida que os fazendeiros lentamente se moviam para o vasto interior da África e mantinham contato diário com tribos e indivíduos pagãos, é notável que eles próprios não adotaram práticas pagãs. A versão autorizada holandesa da Bíblia, com notas explanatórias, o Catecismo de Heidelberg e as atividades de ministros militantes preservaram a fé cristã entre eles. Além destes auxílios, o culto familiar regular e os escritos dos pietistas calvinistas holandeses desempenharam um papel importante. Os escritos de à Brakel Smijtegelt Hellenbroek e outros mantiveram as doutrinas reformadas a respeito da depravação humana e da salvação unicamente pela graça, bem como uma ética distintivamente puritana, doutrinas que se mantiveram vivas nos corações e lares de muitos, até bem dentro do século 19.2 Durante o século 18, a Igreja Holandesa foi influenciada pelo supernaturalismo insípido e pelo erastianismo.3 Essas correntes influenciaram de modo especial a população na Cidade do Cabo, que veio a ser conhecida como a “Pequena Paris”. Entretanto, mais para o fim do século 18 alguns ministros capazes trabalharam na Cidade do Cabo. Entre eles, o piedoso Helperus Ritzema van Lier, amigo do famoso calvinista inglês John Newton, era quem mais se destacava.4 Infelizmente, seu ministério frutífero terminou por causa causa de sua morte precoce, em 1793. Ele e M. C. Vos de Tulbagh também começaram a despertar na Igreja do Cabo uma preocupação pela salvação dos escravos e das populações de cor. Construíram-se 1
Van Jaarsveld, Van Riebeeck to Vorster, p. 38. B. Spoelstra, Die Dappers in Suid-Afrika (Bloemfontein: Nasionale Boekhandel, 1963), p. 24. 3 Cp. T. N. Hanekom, Die Liberale Rigting in Suid-Afrika (Stellenbosch, CSV, 1951), p. 100. 4 Ibid., p. 107. 2
vários prédios com o propósito de neles se ministrar a Palavra da vida a essa gente. A viúva Mathilda Smit, que depois auxiliou o Dr. van der Kemp em Bethelsdorp, a setecentos quilômetros da Cidade do Cabo, converteu-se com o trabalho de van Lier. Esse reavivamento, em pequena escala, possibilitou a van der Kemp organizar a Sociedade Missionária Sul-Africana pouco depois de sua chegada, em 1799.1 Em 1818, foi formada também a Sociedade Bíblica Sul-Africana. Em 1795, o Cabo caiu nas mãos dos britânicos, mas a Igreja permaneceu como a Igreja Oficial sustentada pelo Estado. Como resultado da necessidade permanente de ministros, alguns missionários da Sociedade Missionária de Londres aceitaram ocupar posições na Igreja do Cabo.2 O governador britânico tinha planos ambiciosos de proibir o uso do holandês como língua oficial e decidiu recrutar ministros e professores escoceses para o Cabo. Entre os primeiros a chegar, estava Andrew Murray, de Aberdeen, pai do famoso autor e pregador do mesmo nome. A maioria dos que vieram pertencia ao partido evangélico (em oposição ao moderado) na Igreja da Escócia. Eles não tiveram sucesso na tentativa de anglicanizar a população holandesa, mas fortaleceram a tradição evangélica e reformada na Igreja do Cabo. Isso ficou evidente, de modo especial, na luta que se seguiu contra o Erastianismo e o Racionalismo. Exatamente no dia de sua posse, em Tulbagh, Robert Shand manifestou sua objeção contra o controle estatal. Dizia-se que Shand lia apenas dois livros: a Bíblia e as Institutas de Calvino. Entretanto, suas posições fortemente sabatistas relembram mais a Westminster do que a Genebra.3 1
Du Plessis, History of Christian Missions, p. 93. Van der Watt, Nederduitse Gereformeerde Kerk, 1: 26. 3 P. B. van der Watt, Beroerders en Beroeringe (Cidade do Cabo: N. G. Kerk, 1975), p. 24. Shand também se recusou a batizar crianças filhas de pais ignorantes e mundanos e raramente ministrou a Ceia do Senhor. Isso levou a um cisma regional que perdurou por cinqüenta anos, mas tanto o Sínodo quanto o Estado apoiaram Shand. 2
O rompimento dos vínculos com a Igreja da Holanda possibilitou à Igreja do Cabo desenvolver-se independentemente, e seu primeiro Sínodo reuniu-se em 1824. Entretanto, a Igreja ainda estava presa pelo controle estatal. Os ministros escoceses cooperavam com os líderes locais em sua luta para libertar a Igreja. Em 1843, a Igreja foi “desoficializada” por lei, embora o Estado ainda sustentasse alguns ministros. O fato de a Igreja ter sido separada do Estado por lei civil deixou uma brecha erastiana.1 Em 1836 aconteceu o famoso Groot Trek [Grande Migração] dos distritos orientais para a região atual de Natal, Transvaal e Estado Livre de Orange. A principal razão para a migração foi “governo de menos e governo demais”. As autoridades do Cabo não podiam proteger a população oriental do roubo de gado por parte das aventureiras tribos Xhosa e não permitiam que os fronteiriços recobrassem o gado por si próprios. A política, constantemente alterada da repartição colonial britânica, era influenciada por um calvinista impopular da Sociedade Missionária de Londres, chamado John Philip.2 Ele era impopular entre os colonos por ter muita simpatia para com os negros, mas nem sempre era justo para com os colonos — britânicos e africanos. Mesmo os missionários metodistas não apreciavam seu papel político.3 As posições controvertidas de Philip e os “casamentos mistos” de van der Kemp e James Read provocaram nos africanos uma aversão permanente pelos missionários da LMS. Os pioneiros não apreciavam o fato de ter sido o Calvinismo de Philip o estimulante de seu interesse por assuntos políticos e sociais.4 1
P. B. van der Watt, Die Nederduitse Gereformeerde Kerk 1824-1905 (Pretoria: N. G. Kerk, 1980) 3:44. 2 Van Jaarsveld, Van Riebeeck to Vorster, p. 91. 3 J. Whiteside, The History of the Wesleyan Methodist Church of South Africa (Londres: Stock, 1906), p. 206. 4 A disposição de Philip de crer em acusações contra os brancos certamente foi o seu ponto fraco, porém seu Calvinismo tem sido ignorado pelos historiadores sul-africanos. Cp. Briggs e Wing, The Harvest and the Hope (Johannesburgo: United Congregational Church, 1970),
Quando os pioneiros chegaram a Natal, os missionários da Corporação Americana estavam tentando se estabelecer ali com o fim de evangelizar a turbulenta nação zulu. Francis Owen, da Sociedade Missionária da Igreja, estava estabelecido no quartelgeneral de Dingane, rei dos zulus. Pieter Retief, um dos líderes dos pioneiros ou Trekkers [migrantes] fez um tratado com Dingane para obter uma grande extensão de terra na região central de Natal, para ser ocupada pelos migrantes. Mesmo que ele conhecesse muito bem os costumes das nações negras naquela época, Retief aparentemente não percebeu que a ocupação, do ponto de vista dos negros, não significava a possessão privada, mas apenas uma espécie de vassalagem condicional. Porém Dingane não tinha intenção de permitir que eles ocupassem a terra. Venable, da Corporação Americana, advertiu a Retief sem obter sucesso e, conseqüentemente, Retief e seus seguidores foram massacrados, enquanto Owen e sua família assistiam à cena incrivelmente horrorizados.1 Nos dias seguintes, os rápidos homens de Dingane quase conseguiram expulsar todos os migrantes em Weenen (“lugar de choro”). Alguns meses mais tarde, um comando, sob a liderança de Andries Pretorius, partiu com o fim de punir Dingane por quebrar o tratado. Pretorius e o líder espiritual do comando, Charl Cilliers tinham sido membros da Igreja em Graaff Reinet, onde Andrew Murray, Sr., era o pastor. Por iniciativa de Cilliers, eles fizeram um pacto com Deus prometendo guardar o dia da batalha como um dia anual de ação de graças, se Deus lhes concedesse a vitória. Embora esse pacto fique aquém daquele dos Pactuantes escoceses, que prometeram uma dedicação incondicional para manter a fé reformada na Escócia, é possível que a idéia de pacto tenha se cap. 2. também p. 29. 1 Du Plessis, History of Christian Missions, p. 227.
inspirado na tradição escocesa, através de Murray.1 Em sua providência, Deus lhes deu a vitória naquele belo, porém terrível dia (16 de dezembro de 1838). Esse dia é comemorado anualmente como dia de ação de graças por muitos cristãos sul-africanos, porém outros o consideram uma comemoração racial.2 Apesar da oposição inicial da Igreja do Cabo à migração, essas experiências serviram para fortalecer a relação entre a Igreja e a nação. O caráter nativo e os recursos espirituais da Igreja foram aumentados ainda mais através de quatro fatores: (1) a abertura de um Seminário Teológico em Stellenbosch, (2) a luta contra o Racionalismo na Igreja do Cabo, (3) o reavivamento durante os anos 1860 e o subseqüente movimento missionário, e (4) a Guerra AngloBoer. Por causa da grande influência do Racionalismo nas universidades holandesas, o Sínodo do Cabo decidiu abrir seu próprio Seminário. Não conseguindo atrair homens da Holanda, o seminário finalmente convocou N. J. Hofmeyr e John Murray. Sob a influência destes dois hábeis teólogos tementes a Deus, o Seminário serviu de instrumento para a unificação da Igreja no caráter bíblico geral e no caráter experimental de sua pregação, seu caráter evangélico e seu alvo de pregar a Cristo para toda a África do Sul. Sob a graciosa obra do Espírito Santo, um Calvinismo nativo salvou o povo da África do Sul da indigência espiritual que teria sido o resultado do Racionalismo europeu e do paganismo africano. O Seminário foi aberto em 1859. Com o passar do tempo, jovens ministros que estudaram na Holanda trouxeram com eles a teologia liberal. Nos anos 60 o Sínodo decidiu excluir dois destes do 1
A Aliança “Blood River”, conforme é conhecida, foi condicional, mais alinhada com o juramento do Velho Testamento, mas ambos os tipos incluem uma promessa obrigatória e uma confissão de fé em Deus. 2 Cp. “Verdagmaking teen Geloftedag”, Die Kerkbode (14 de setembro de 1977).
ministério sob acusação de heresia.1 Foram notáveis na disciplina tanto a firmeza do Sínodo como sua dependência, em oração, do Cabeça da Igreja. Por algum tempo a luta continuou na imprensa, na Suprema Corte e no púlpito, mas a piedade aprendida e manifesta dos defensores da fé assegurou a vitória, com a ajuda e misericórdia de Deus.2 Como aluno, Andrew Murray ouviu a William Chalmers Burns e estudantes sul-africanos tiveram contato na Holanda com o Despertamento. À medida que eram recebidos relatórios dos reavivamentos do meio do século na Grã-Bretanha e na América, o povo e os ministros começaram a orar por uma visitação da graça de Deus. Em Paarl, o venerável G. W. A. van der Lingen orou incessantemente. No Domingo de Pentecostes, em 1861, Deus visitou sua congregação de modo notável e muitos foram despertados.3 Também em outros lugares Deus derramou o seu Espírito. Muitos, pela primeira vez, viram a realidade de seu pecado e a suficiência da obra de Cristo pelos pecadores. O reavivamento atingiu jovens e velhos, negros e brancos. Desde aquela época a NGK tem mantido encontros de oração entre o Dia da Ascensão e o Pentecostes. A fé foi reavivada e a missão da Igreja recebeu um estímulo, não apenas dentro das fronteiras da África do Sul, mas também mais além, em Botswana, Zimbabwe, Zâmbia, Malawi e finalmente até a Nigéria. Embora a guerra anglo-boer (1899-1902) tenha trazido uma terrível destruição de vidas e de propriedade,4 ela também trouxe 1
J. J. Kotze e T. F. Burgers. Havia cerca de vinte outros que simpatizavam com o liberalismo, bem como alguns anciãos. 2 N. J. Hofmeyr e Andrew Murray Jr., eram os mais proeminentes. 3 Van der Watt, Nederduitse Gereformeerde Kerk, 3:19. 4 O Conde Kitchener utilizou a tática da terra queimada, semelhante à utilizada na Guerra Civil americana. Embora apenas cerca de 4.000 homens do lado republicano perderam suas vidas, 36.000 mulheres e crianças morreram nos campos de concentração. Cp. van Jaarsveld. Van Riebeeck to Vorster, p. 204.
renovação espiritual em seu rastro. Como uma renovação espiritual não é resultado natural da guerra, ela somente pode ser creditada à graça soberana. Houve reavivamentos nos campos de prisioneiros de guerra nas ilhas de St. Helena, Sri Lanka e nas Bermudas. Vários jovens dedicaram suas vidas ao Senhor. O caráter cristão dos oficiais (embora houvesse exceções) desempenhou um papel importante em determinar a conduta entre os homens. Alguns dos comandos eram simplesmente congregações nas estepes (com ou sem seus pastores). Líderes tais como os generais Koos de La Rey e C. A. de Wet foram combinações notáveis de soldados humanitários e cristãos fiéis. Não apenas o famoso Presidente Paul Kruger, mas também o Presidente M. T. Steyn do Estado Livre de Orange eram cristãos excepcionais. A influência dos líderes cristãos foi igualmente benéfica durante a reconstrução do pós-guerra. A indústria agrícola, as casas, escolas e mesmo as igrejas tinham sido destruídas. A nação necessitava de fé, esperança e amor. O fato de a África do Sul não ter se tornado um país de derramamento contínuo de sangue entre afrikaaners e ingleses, deve ser creditado unicamente à graça de Deus, que capacitou homens e mulheres a perdoarem. Embora certas congregações estivessem divididas quanto a problema com colaboradores, a Igreja sustentou a reconstrução física e espiritual. Escolas particulares foram construídas para contrabalançar a influência da educação inglesa e secular, e a relação entre o povo e a Igreja foi ainda mais consolidada.1 Uma característica importante desse relacionamento íntimo foi a forte influência de líderes “leigos”, parcialmente como resultado de uma falta de ministros, mas, sem dúvida também, devido à importância de diáconos e anciãos nas Igrejas Reformadas. Ninguém negaria que esse Calvinismo leigo tivesse suas fraquezas teológicas. Mas também é possível que a notável ausência de 1
Christian National Schools. Cp. Van der Watt, Nederduitse Gereformeerde Kerk, 3:206.
extremismo (ou “fanatismo”) tradicional entre o povo africaaner possa ser atribuída a essa liderança patriarcal em combinação com ministros hábeis e fiéis. Neste século [20], o africaaner lutou contra diversas forças para manter sua identidade cultural, política e racial, bem como para assegurar sua sobrevivência econômica. Os três líderes mais proeminentes deste século — J. B. M. Hertzog, D. F. Malan, e H. F. Verwoerd — não podem ser descritos como calvinistas, porém a relação entre a Igreja e o povo africano tornou-se perigosamente próxima. O africaaner sentiu que não poderia encarar o futuro sem o apoio da Igreja, porém por volta dos anos 60 muitas pessoas queriam que a Igreja fosse sua Igreja. Se a manutenção da liberdade da Igreja, na sociedade, é parte e contribuição do Calvinismo (conforme foi sugerido na definição), então a NGK chegou bem perto de negar seu caráter calvinista, em 1962. Na Assembléia Geral daquele ano, as propostas que criticavam a política racial do governo foram rejeitadas por causa de algo que parece ter sido um senso de lealdade ao governo.1 As propostas, em si, não se mostraram contrárias às Escrituras.2 Porém “os Concílios podem errar” e a vida total e o testemunho da Igreja fazem um tal julgamento ser prematuro. A sugestão de Angus Holland, de que o africaaner vive espiritualmente num mundo anterior a 1914, pode realmente ser a explicação mais generosa.3 A Igreja estava desoficializada, porém, na mente da maioria, o relacionamento íntimo entre Igreja e povo, voltando até ao século 17, não podia ser destruído. 1
A “Cottesloe Debacle”. Cp. De Klerk, Puritans in Africa, p. 252. Desde aquela época, pelo menos em princípio, muitas destas propostas têm sido aceitas pelo governo. 3 Em seu discurso (até agora) não-publicado, por ocasião do Congresso Calvino para a África em Pretória, 1980: “Pesquisa sobre a Influência de Calvino na Esfera Eclesiástica de Fala Inglesa na África do Sul”. Ele disse que o holandês sul-africano “livrou-se espiritualmente por decreto da Primeira Guerra Mundial, e pode evitar as repercussões de longo prazo”. Porém, cp. nota 57 adiante. 2
A Igreja Reformada na África do Sul (GKSA) De várias maneiras a história da GKSA é paralela à história da NGK, porém sua contribuição distintiva para a preservação e expansão do Calvinismo merece uma atenção especial. Algum tempo após o Groot Trek, a Igreja, no Transvaal, estava organizada separadamente da Igreja do Cabo, eventualmente para formar uma terceira denominação, a NHK.1 Em 1859, a GKSA separou-se da Igreja do Transvaal e, subseqüentemente, foram também organizadas congregações no Cabo. Uma das principais razões para a separação foi a introdução dos assim chamados Hinos Evangélicos da Holanda.2 Ironicamente, alguns destes Hinos eram decididamente não-evangélicos. As Igrejas do Cabo e Transvaal não apenas aceitaram estes Hinos, sem um exame apropriado, mas também os membros que lhes faziam objeção foram tratados de modo arbitrário. Por causa da carência de ministros no Transvaal, a Igreja Cristã Reformada da Holanda enviou Dirk Postma para oferecer assistência àquela Igreja. Sua chegada e sua simpatia para com os conservadores precipitaram uma separação que vinha se intensificando durante anos.3 Há poucas dúvidas de que essa ligação com o “verdadeiro Calvinismo holandês” foi favorável para a Igreja da África do Sul. Além de um interesse especial em Calvino, a principal contribuição da GKSA ocorreu no campo da educação cristã. A Potchefstroom 1
The Nederduits Hervormde Kerk van Afrika. Aceito pela igreja da Cidade do Cabo em 1814. Como o primeiro Sínodo não se reuniu até 1824, o equívoco pode ser entendido, mas não perdoado. 3 Os novos hinos, o grupo liberal na igreja do Cabo e as diferenças culturais entre os ministros da Cidade do Cabo e os membros de distritos mais remotos, tudo isso participou deste processo. O fato de que a NHK naquela época fosse a igreja estatal do Transvaal misturou as questões. 2
University for Christian Higher Education [Universidade Potchefstroom para Educação Cristã Superior] foi modelada segundo a Universidade Livre de Amsterdã e tem feito uma enorme contribuição à educação cristã e à erudição cristã na África do Sul e para além de suas fronteiras. Por causa de sua dimensão menor e de um caráter confessional mais distinto, a GKSA é menos Igreja do povo do que a NGK, porém, mesmo assim, ela o é notoriamente. O Presidente Paul Kruger foi membro fundador da GKSA.
Igrejas Reformadas Inglesas Além da LMS e dos missionários escoceses, os calvinistas de fala inglesa têm sido lamentavelmente escassos na África do Sul. O tricentenário da morte de Calvino foi comemorado na Cidade de Cabo com uma palestra sobre Calvino, feita pelo ministro congregacional William Thompson.1 Os sermões de Spurgeon eram bastante lidos (também em traduções para o holandês) e diversas Igrejas Batistas (inglesas) eram calvinistas em sua doutrina, por volta da virada do século. Durante os anos 1950, Victor Thomas e L. G. Thomas, batistas calvinistas, chegaram da Inglaterra e, desde então, tem havido um reavivamento do Calvinismo entre os sulafricanos de fala inglesa, com uma influência crescente através da Comunidade Evangélica e Reformada. Embora sua ênfase seja dada principalmente a soteriologia, a Declaração Koinonia, de 1977, redigida em cooperação com os calvinistas de fala africaanse, foi uma expressão dramática desse reavivamento em termos de problemas políticos e sociais.
O Calvinismo nas Igrejas Negras 1
Em 1850 Thompson sucedeu a John Philip nesta igreja, que fora fundada por James Read em 1800 como uma “Sociedade Calvinista”. Cp. Briggs e Wing, Harvest and Hope, pp. 29, 105.
Por volta do fim do século 19, a Teologia Sistemática de Hodge ainda era utilizada no Seminário Lovedale por T. D. Philip, filho de John Phi1ip.1 Num sentido geral, a influência reformada tradicional ainda está presente nas Igrejas Presbiteriana e Congregacional. As Igrejas de negros, em comunhão com a NGK e a GKSA, estão mais diretamente sob a influência do Calvinismo, mas, no geral, a totalidade do Calvinismo tem pequena influência sobre as Igrejas negras. Isso pode ser creditado ao declínio geral do Calvinismo, que coincidiu com a segunda metade do “Grande Século” de missões; pode ser creditado à preponderância da influência metodista nas missões sul-africanas, à ausência de um grupo evangélico influente na igreja anglicana (A Igreja da Província da África do Sul) e à associação popular do Calvinismo com a discriminação racial desde 1948.
A Influência do Calvinismo na África do Sul Apesar de seus números, a influência dos cristãos reformados na África do Sul freqüentemente carece da concentração e da eficácia que seu número nos levaria a esperar.2 Uma razão para isso é a característica dos calvinistas de fala africaanse, que tendem a pensar em termos da nação inteira e de todo o país. Essa tendência é parcialmente explicada por sua história, mas também deve ser lembrado que a África do Sul é um país em desenvolvimento. Apesar do caráter internacional do Calvinismo, os calvinistas sempre foram patriotas no melhor sentido do termo.3 Isso fica muito 1
Cp. T. N. S. Gqubule, “An Examination of the Theological Education of Africans in South Africa from 1860 to 1960” (Tese de Ph. D., Grahamstown: Rhodes University, 1977). p. 74. 2 Cerca de 1.5 milhão, dos quais um terço é de negros. 3 A questão, obviamente é: Qual é o melhor sentido? Mesmo os presbiterianos apoiaram os britânicos durante a Guerra Anglo-Boer, em nome do patriotismo. Cp. The Christian Express (1 de outrubro de 1900). Esse fornece um relatório do presbitério da parte leste de Londres.
evidente no apoio dos calvinistas sul-africanos a uma educação cristã geral para todos os grupos populacionais. Isso também ajuda a explicar, em certa medida, seu apoio a uma política racial que se esforçou para resolver os problemas de todos os grupos do país. Porém, uma influência bastante difusa é, necessariamente, uma influência fraca, e ela pode inclusive tornar-se uma influência distorcida. Isso também põe um peso terrível sobre os recursos humanos e financeiros. Após algumas observações sobre a influência do Calvinismo na educação e na política, eu desejo chamar a atenção para sua influência sobre missões e, finalmente, sobre a influência do Calvinismo nas relações raciais da África do Sul.
Educação A maioria das antigas escolas e universidades foi iniciada ou fortemente sustentada por calvinistas. A mais antiga universidade sul-africana para negros, a saber, a Universidade de Fort Hare, fundada em 1916, desenvolveu-se do Lovedale College, que fora fundado em 1841 por calvinistas escoceses. As universidades de Stellenbosch, do Estado Livre e de Potchefstroom foram fundadas por calvinistas, porém somente em Potchefstroom ainda há uma Universidade Reformada. Os calvinistas da África do Sul não possuem nenhuma escola ou colégio cristão gratuito. Vários educadores calvinistas, entretanto, podem ser encontrados nas escolas e nas universidades. A educação negra, em particular, recebeu (e ainda recebe) um considerável apoio de homens e mulheres das Igrejas Reformadas, tanto em nível colegial quanto universitário. Contudo, é possível que o enfoque mais elitista de confinar sua influência a escolas cristãs, teria sido uma estratégia melhor a longo prazo. As Escolas Nacionais Cristãs, que foram iniciadas após a Guerra Anglo-Boer, não mais foram sustentadas depois de a língua africaaner ter reconquistado sua posição nas
escolas estatais. Lovedale foi a primeira escola multirracial na África do Sul, porém, os estudantes brancos diminuíram em número mais para o fim do século 19. Como os calvinistas sul-africanos apoiavam a multiplicação de escolas estatais “cristãs”, para todos os grupos (exceto, naturalmente, os grupos islâmicos e indus), eles não se defrontaram com a questão de escolas cristãs multirraciais desde a “retirada” de Lovedale. Na educação teológica, as Igrejas Reformadas mantiveram a iniciativa e a maioria dos membros e sociedades de pesquisa teológica pertence às Igrejas Reformadas. Eruditos reformados desempenharam também o papel principal na tradução das Escrituras para línguas locais, tais como: africaaner, xhosa, sotho, venda, tswana e shona.
Política O primeiro verdadeiro partido político na África do Sul, a Aliança Africana, foi idealizado por um admirador de Abraham Kuyper, o errático S. J. Du Toit. Seu co-fundador foi J. H. Hofmeyr.1 Durante muitos anos, a Aliança foi capaz de atrair o apoio de afrikaaners e ingleses, com a exceção do grupo imperialista.2 Durante o que se poderia chamar uma breve lua de mel, ela também teve o apoio de negros instruídos, liderados por Tengo Jabavu, que fora educado em Lovedale.3 As raízes tanto do original Partido Sul-Africano como do Partido Nacional, do General Hertzog; podem ser traçadas até a Aliança Africana. Embora os calvinistas tenham apoiado esses partidos, eles não podem ser considerados como partidos políticos cristãos, como o 1
Cp. T. R. H. Davenport, The Afrikaner Bond (Cidade do Cabo: O U P, 1966); D. A. Scholtz. “Ds. S. J. du Toit as Kerkman en Kultuurleier” (Tese de Th. D., Stellenbosch. 1975). 2 Não se deve confundir o Afrikaner Bond com o Afrikaner Broederbond, que veio bem mais tarde. 3 Cp. L. D. Ngcongco, “John Tengo Jabavu”, in Christopher Saunders, Black Leaders in South African History (Londres: Heinemann, 1979) (Jabavu era um metodista).
era o Partido Anti-Revolucionário, na Holanda. O fato de os afrikaaners do norte do Cabo não se insurgirem numa rebelião geral, durante a Guerra (1899-1902), pode ser creditado ao seu respeito pela lei e pela ordem.1 Paul Kruger resistiu à anarquia no Transvaal, baseado na Constituição, apesar do fato de a Constituição daquela época limitar os direitos daqueles que pertenciam à GKSA.2 Novamente, porém, temos de equilibrar isso com a rebelião de 1914,3 bem como com a pouco sábia recusa de Kruger em estender os direitos políticos aos “Uitlanders” do Transvaal. Como eu já observei, a influência geral benévola dos líderes cristãos, durante a reconstrução — que talvez tenha sido a marca mais alta da influência cristã na nação —podemos resumir dizendo que a influência do Calvinismo, na política, sempre estava presente, mas raramente era dominante.4
Calvinismo e Missões: O Triunfo da Graça Já observamos que a Igreja do Cabo estava novamente desperta para ver a necessidade espiritual dos escravos e de outras pessoas de cor, com o reavivamento do Calvinismo na época de H. A. van Lier. 1
Naturalmente, diversos indivíduos entraram na guerra. Isso aconteceu anos antes de Kruger vir a ser presidente; cp. Spoelstra, Die Doppers, p. 209. 3 Essa “rebelião” pretendia ser um “protesto armado não-violento” e as razões eram diversas. A razão direta era a recusa em ocupar o território de outra nação (Alemanha), que obviamente é a atual Namíbia. Mesmo o apartidário ex-presidente M. I. Steyn pode dizer: “Antes se rebelar do que agir injustamente para com uma nação que não nos fez mal algum”. Oberholster en Van Schoor, President Steyn aan die Woord (Bloemfontein: SA Calvinistiese Uitgewers, 1954). p. 191. Cp. F..J. van Jaarsveld, Van Riebeeck to Vorster, p. 236. O General Koos de la Rey também pretendia participar do “protesto armado”, mas foi morto acidentalmente no dia anterior. Tanto Steyn quando de la Rey advertiram contra a guerra de 1899 a 1902, mas ambos batalharam até ao triste fim, tudo isso estava tão próximo de uma “revolução puritana” quanto era de se esperar na África do Sul. 4 Ou, nunca dominante.
2
Entretanto, a vinda de J. T. van der Kemp, em 1799, trouxe a África do Sul para dentro da órbita do movimento missionário moderno. E interessante observar que William Carey propusera que a primeira conferência mundial fosse no Cabo, em 1810. Quando o famoso Henry Martyn visitou o Cabo, em 1806, van der Kemp o presenteou com um Novo Testamento em siríaco.1 Van der Kemp é lembrado principalmente por seu trabalho entre os Khoi-San (hotentotes), porém ele adquiriu uma notoriedade raramente igualada por seu casamento com a filha de uma mulher escrava que fora liberta e por sua predisposição a favor da população de cor. As pobres condições físicas de sua missão, em Bethelsdorp, comparadas com as condições dos moravianos em Genadendal, também foram severamente criticadas em sua época. Seu amor pela população de cor e suas idéias de igualdade são geralmente atribuídas à influência da doutrina do “selvagem nobre”, de J. J. Rousseau.2 Para completar a confusão, a oposição a van der Kemp, por parte dos brancos, freqüentemente tem sido atribuída ao “Calvinismo” destes.3 A preparação de van der Kemp, bem como o solo, clima e as dimensões de Bethelsdorp, fazem as comparações com Genadendal serem injustas, porém, mesmo assim, sua excentricidade é inegável. Seu franco inconformismo, sem dúvida, ofendeu as pessoas, inclusive na Holanda.4 Mesmo um historiador que lhe é simpático reconheceu que suas idéias de igualdade surgiram antes de sua
1
Du Plessis, History of Christian Missions, p. 233. M. T. S. Zeeman diz que “os missionários da LMS aplicaram as idéias de J. J. Rousseau” (“Beleid van Afsonderlike Ontwikkelin Onchristelik?” Die Kerkbode, [25 de fevereiro de 1981]). A referência, obviamente, é a van der Kemp. 3 Jane Sales, Mission Stations and the Coloured Communities of the Eastern Cape (Cidade do Cabo: Balkema, 1975), p. 11. 4 Cp. um incidente relatado por I. H. Enklaar durante a “Oranjefurie” de 1787, in De Levensgesheidenis van J.T. van der Kemp (Wageningen: Veenman, 1972), p. 50. 2
conversão.1 Certamente, as idéias de igualdade não são suficientes para fazer de um deísta um humilde pregador da Cruz.2 Fica claro, a partir do estudo de Enklaar, que van der Kemp era soteriologicamente um calvinista.3 No prefácio a seu comentário de Romanos, ele escreveu que “nunca negara a justiça de Deus ao imputar o pecado de Adão à sua posteridade, nem mesmo na mais negra escuridão de minha incredulidade deísta".4 Seus outros escritos, bem como seu ensino, mostraram que sua motivação foi sua “inesperada conversão no dia 4 de julho de 1791, através da eterna misericórdia do Senhor Jesus Cristo para comigo, um miserável pecador”, como ele diz no mesmo prefácio. Ele foi um pecador salvo pela graça imerecida. A idéia de que seus críticos eram motivados pelo Calvinismo é igualmente de crença geral, e igualmente sem evidência sólida. A revolta em Graf Reinet, em 1795, contra Maynier (que era discípulo de Rousseau!) era pelo menos parcialmente um resultado das idéias da Revolução Francesa,5 e a revolta em Slagtersnek, em 1815, não passava de uma “revolução puritana".6 Slagtersnek mostrou a possibilidade e a realidade da miséria espiritual da qual o
1
Du Plessis, History of Christian Missions, p. 128. Como amigo, professor e descendente de missionários, du Plessis tinha simpatia para com van der Kemp, porém ele aceitou a sugestão de que van der Kemp era motivado por mais do que excentricidade e inconformismo para com o Evangelho, isso é, pelas idéias de Rousseau. 2 Du Plessis enfatiza sua piedade e devoção a Cristo. 3 T.J. van der Watt está tecnicamente correto ao dizer que van der Kemp “não era um reformado”, porque ele era fortemente interdenominacional em sua abordagem e não gostava da autoridade restritiva de Confissões e Sinodos (embora utilizasse um catecismo em Bethelsdorp). Cp. Enklaar, Levensgeschiedenis, cap. 7, sobre seu “alto Calvinismo”. Van der Watt não nega especificamente isso em seu livro Eiesoortigheid en die Sending (Porchefstroom: Pro Rege, 1963), p. 318. 4 Traduzido do holandês. O título do comentário de van der Kemp era De Theodicee van Paulus; Enklaar, Levensgeschiedenis, p. 80. 5 Van Jaarsveld, Van Riebeeck to Vorster, p. 50. 6 Ibid., p. 81.
Calvinismo preservou a maioria dos colonos.1 Van der Kemp foi o primeiro a pregar o Evangelho à nação Xhosa, na África do Sul. Por causa de atritos entre a colônia e os xhosas, van der Kemp não pôde ficar mais do que um ano ali e, subseqüentemente, estabeleceu-se em Bethelsdorp. Mesmo sem o saber, sua pregação trouxe frutos notáveis. O primeiro cristão xhosa, Ntsikana, ouviu a van der Kemp enquanto ainda era moço. Alguns anos mais tarde ele teve a experiência de uma “conversão repentina”, enquanto estava a caminho de uma festa de danças tradicionais.2 A pregação de Ntsikana e especialmente seus hinos peculiares levaram à fundação do Cristianismo entre o povo xhosa. Alguns dos convertidos de Ntsikana também ouviram o Evangelho, pela primeira vez, dos lábios de van der Kemp. A própria conversão de Ntsikana e suas referências, em seus hinos, à soberania de Deus na criação e na salvação enfatizam o poder da graça de Deus.3 Ele fala de Deus como o grande “Caçador de Almas”. A implantação de Igrejas entre os xhosas prosseguiu sob o ministério dos calvinistas escoceses, principalmente da Sociedade Missionária de Glasgow. Os primeiros convertidos foram batizados em 1823. A maioria deles fora conduzida a Cristo por Ntsikana, que morrera em 1820. Fizeram-se tentativas de colocar a língua xhosa na escrita e Ross introduziu uma máquina de impressão, em 1823. Uma das missões iniciadas pelos missionários escoceses foi denominada Lovedale, em honra a John Love, secretário da Sociedade de Glasgow. Também pertence a essa missão calvinista escocesa a honra (na 1
Comer observou em 1815 que as pessoas daquela região estavam menos sequiosas pela Palavra de Deus do que outras mais ao norte. Cp. Spoelstra, Die Doppers, p. 23. 2 A data de sua conversão é incerta. Ele também teve contato com Joseph Williams, da LMS. Cp. B. Holt, Joseph Williams (Lovedale, 1954). 3 Cp. Janet Hodgson, Ntsikana’s Great Hymn (Cidade do Cabo: University of Cape Town, 1980).
providência de Deus) de dar à Igreja o primeiro africano tribal a receber a ordenação protestante, Tiyo Soga.1 O pai de Soga fora indicado por seu rei, Ngqika (ou Gaika), para ouvir a pregação de Ntsikana e, dessa forma, essa família polígama veio a ter contato com o Evangelho. Em 1846, Tiyo foi levado de Lovedale para a Escócia por William Govan, quando a irrupção da “Guerra do Machado” tornou impossível todo trabalho normal. Em Glasgow, Tiyo foi batizado em 1848 e, após alguns anos em casa e novamente de volta a Glasgow, foi ordenado ministro da Igreja Presbiteriana Unida, na Igreja da John Street, em 23 de dezembro de 1856. O trabalho subseqüente de Soga, como ministro do Evangelho, autor de hinos e tradutor da Bíblia, colocou o selo de Deus sobre seu ministério. Ele foi também um monumento à dedicação, fé e fidelidade da primeira geração de missionários, tão freqüentemente criticada mas tão raramente imitada. Soga morreu em 1871, na precoce idade de 42 anos, e foi apenas no final do século que entrou em cena a próxima geração de ministros negros (entre eles John Knox Bokwe). Está além do escopo deste capítulo uma discussão do declínio do preparo ministerial, o rebaixamento do status do ministro negro e as numerosas divisões subseqüentes, pelas quais as Igrejas da África ficaram famosas. Entretanto, deveria ser observado que o declínio do Calvinismo e a ascensão do darwinismo, com sua ênfase no evolucionismo, coincidiu com o declínio do preparo ministerial sul da África (e não somente na África do Sul). A conversão e o preparo de Tiyo Soga, bem como seu ministério frutífero, desmentem a doutrina da evolução. A chamada e os dons de Deus não são dados segundo a raça, mas segundo a graça.2 1
J.E.J. Capitein foi ordenado em Leyden em 1743, e S.A. Crowther em 1845, mas ambos foram escravos durante um período. Tiyo não teve vantagens compulsórias semelhantes. Cp. Donovan Williams, Umfundisi: A Biography of Tiyo Soga (Lovedale, 1979). 2 Niel Gunson crê que alguns missionários anteciparam o “darwinismo social”. Cp. sua obra Messengers of Grace (Melbourne, C U P, 1978), p. 200.
Mesmo assim, a raça não é totalmente irrelevante. Quando a missão Livingstoniana da Igreja Livre foi iniciada em Malawi, James Stewart foi acompanhado por quatro cristãos negros de Lovedale, que eram relacionados com os Angoni de Malawi. Os Angoni, bem como os Abambo que estavam entre os xhosa, eram descendentes de refugiados da terra dos zulus, que fugiram da ira do grande Tshaka, por volta de 1834. Na providência de Deus, os evangelistas da igreja xhosa puderam auxiliar na implantação da Igreja na África Central.1 Já mencionei os calvinistas americanos que iniciaram a Missão Zulu Americana em Natal. Robert Moffat, da LMS, foi utilizado para a conversão de vários chefes e para a implantação da Igreja entre o povo tswana. Ele também traduziu a Bíblia para o tswana. Seu genro, David Livingstone, e outros antes dele, pregou o Evangelho em Botswana e no Zimbabwe, apesar de terríveis dificuldades sofridas entre os makololo e os matabele.2 Os calvinistas franceses fundaram a Igreja no Lesoto.3 Em 1857, o Sínodo do Cabo decidiu iniciar a obra missionária entre as tribos ainda não evangelizadas do Transvaal. Os descendentes de Coenraad de Buys, que se casara com uma mulher negra, também requisitavam um missionário.4 Finalmente, essa obra expandiu-se para Botswana entre os bakgatia, em 1877. Em 1889, T. C. B. VIok e A. C. Murray saíram para estabelecer-se no Malawi Central, em cooperação com as missões escocesas, onde Deus abençoou abundantemente a pregação do Evangelho. Em 1891, A. 1
Cp. R.H.W. Shepherd, Lovedale 1841-1941 (Lovedale, 1942). Du Plessis, History of Christian Missions, Caps. 17, 27. 3 E. Casalis, My Life in Basutoland (Cidade do Cabo: Struík, 1971). 4 G.L. van Heerde, Die Dag van Kleine Dinge (Cidade do Cabo: N. G. Kerk, 1955), p. 20. De Buys vivera com diversas mulheres negras. Em 1800 ele teve um encontro com van der Kemp, que “ensinou-o a orar”. Por volta de 1862 seus descendentes eram completamente pagãos. 2
A. Louw iniciou uma missão no Zimbabwe, perto do quartel-general de um chefe denominado Mugabe. Em 1899, apenas poucos meses antes da irrupção da Guerra Anglo-Boer, o Sínodo da NGK, do Estado Livre de Orange, iniciou uma missão entre as tribos não evangelizadas dos distritos orientais da Zâmbia. A existência de Igrejas Reformadas, escolas, hospitais e faculdades teológicas nestes locais servem de testemunho ao fato de que a graça de Deus triunfou sobre o preconceito racial. A fundação do Comando Auxiliar da Sociedade Missionária é digna de nota. O Comando Germiston, sob o general C. F. Beyers entrou em contato com tribos não-evangelizadas na região norte do Transvaal. Eles foram acompanhados pelo Rev. A. P. Kriel, que, subseqüentemente, fundou o Orfanato Langlaagte. Os homens ficaram tão tocados pela ignorância que o povo tinha do Evangelho, que fizeram um pacto com Deus e entre si (em 10 de outubro de 1900), de que eles sustentariam um missionário entre esse povo assim que fosse possível, após a guerra.1 Esse sustento capacitou a Igreja a enviar um missionário em 1904. Na mesma época, outro missionário, J. de Klerk, foi enviado para o Sri Lanka com o fim de pregar o Evangelho num país onde vários prisioneiros de guerra tinham encontrado seu Salvador durante a guerra. Embora as missões nacionais entre as populações negra e de cor (especialmente na Província do Cabo e no Estado Livre) prosperassem consideravelrnente, o Sínodo do Cabo, de 1857, aceitou o apartheid. Foi permitido aos membros brancos da congregação de Stockenstrõm reunir-se num prédio em separado. Na maioria dos outros lugares, os membros de cor, para todos os propósitos práticos, também tinham cultos em separado. O Sínodo permitiu estes lugares separados de adoração “por causa da fraqueza de alguns”. Duas destas congregações de gente “de cor” 1
Ibid., p. 200.
permaneceram no Sínodo do Cabo, quando todos os que desejassem foram convidados a constituir seu próprio Sínodo, em 1881. Estes, finalmente, tornaram-se a vigorosa N. G. Sendingkerk, contando com congregações maiores ou menores em quase todas as cidades e vilas da Província do Cabo. O relacionamento entre a NGK e a “Sendingkerk” não se estabeleceu satisfatoriamente. Parece que não há nenhuma razão pela qual eles devessem ser dois Sínodos separados. Face à tendência natural do coração humano e ao apartheid que já era um “modo de vida” na África do Sul, o fato de as igrejas locais ter feito alguma obra missionária deve ser creditado à graça de Deus.1 Tudo se deve à glória da graça e Deus, que homens se apresentaram para pregar o Evangelho aos “de cor”, que eles persistiram apesar de inúmeros obstáculos, e que Deus abençoou o seu labor. O bom senso pode também deduzir que as relações entre as raças não são tão ruins quanto geralmente se crê. Porém, mesmo que isso seja verdade, a honra da vida não pertence ao homem, mas a Deus.
Calvinismo e Racismo: O Julgamento da Graça O professor C. W. de Kiewiet afirma que o preconceito racial dos colonos brancos foi “reforçado pela versão do Calvinismo, que recusa a graça plena de Deus aos nativos".2 W. A. de Klerk também acusa o “supralapsarianismo de Dort” e o puritanismo triunfalista.3 A evidência parece ser o fato de que a NGK era uma Igreja 1
Compare com a situação dos Estados Unidos após a Guerra Civil. EI. Thompson, Presbyterians in The South (Richmond: John Knox, 1973) 2:309. 2 C.W. de Kiewiet, The Anatomy of South African Misery (Londres: OUP, 1956), p. 22. 3 Cp. de Klerk, Puritans in Africa.
Reformada (e não luterana, nem metodista) e o fato de que os afrikaaners tendiam a ver um paralelo íntimo entre eles próprios e o antigo Israel, em certos estágios de sua história. Devemos ter em mente as seguintes considerações, quando se afirma que o Calvinismo causou ou fortaleceu a discriminação racial: 1. O preconceito e a discriminação racial é um fenômeno universal no qual coincidem as diferenças baseadas na raça, cultura e religião. 2. A crença de que existe, em algum sentido, uma nação com um propósito dado por Deus, semelhantemente não era restrita a nações calvinistas. A Rússia imperial desenvolveu um “senso de destino” sem o concurso do Calvinismo. 3. Para um povo de um só livro (isto é, a Bíblia) é perfeitamente natural, neste mundo, ver paralelos entre si próprio e Israel. Esse fenômeno também aconteceu com outras tribos na África (e. g., Biafra em 1967) e na Ásia. Além disso, as pessoas por si só muito raramente consideram esse paralelo tão literalmente quanto o supõem os de fora.1 Por alguma razão, somente aos críticos é permitido utilizar a linguagem simbólica. 4. Já tenho sugerido que o Calvinismo sul-africano foi fraco, quando comparado, por exemplo, com o Puritanismo inglês e americano e com o Calvinismo escocês e holandês. Por essa razão, sua influência, sobre a questão, tem sido superestimada. 5. Não está bem claro o que de Kiewiet quis dizer com “a versão do Calvinismo que recusa a graça plena de Deus aos nativos”, mas 1
Isso não nega que cristãos nominais possam ter utilizado o Antigo Testamento para justificar a guerra contra os bosquímanos. Os piedosos, porém, sem praticarem intercâmbios sociais totais, comportaram-se diferentemente. Cp. os registros citados por Spoelstra, Die Doppers, pp. 29-32.
W. A. de Klerk toma o pressuposto de que o supralapsarianismo desempenhou um papel na formação do caráter do africano.1 Mesmo assim, seria difícil encontrar uma confissão reformada que desse menos ênfase à doutrina da eleição do que o Catecismo de Heidelberg, a principal fonte do Calvinismo sul-africano. A “Reprovação” nem é mencionada. O mesmo vale para a Confissão Belga.2 E embora Bogermann, que levou os Protestantes a deixarem o encontro do Sínodo de Dort, fosse um supralapsariano, é de conhecimento geral que os famosos Decretos são infralapsarianos.3 6. Embora os teólogos calvinistas não tenham aprovado os casamentos de van der Kemp e de James Read, seria difícil encontrar um deles que aprovasse a discriminação racial. Já comentamos a atitude de van Lier e Philip. O missionário francês E. Casalis ficou chocado ao perceber que os descendentes dos huguenotes não aprovavam a presença de negros na Igreja.4 William Robertson teve sucesso em manter os convertidos de cor em sua Igreja, apesar de ter sofrido oposição.5 O Sínodo do Cabo concordou relutantemente em permitir que os membros brancos de Stockenstroom se retirassem, obviamente como uma medida temporária.6 Dirk Postma, da GKSA, teve uma enorme luta para convencer alguns de seus membros de que sua atitude era errada para com os negros, mas ele persistiu.7 7. Com relação ao presente século, tenho observado que os três líderes mais influentes dos africanos brancos, com todas suas 1
Cp. de Klerk, Puritans in Africa, p. 143. Após ter escrito uma descrição vivida de Bogerman lançando os arminianos “nas trevas exteriores”, diz ele; “Tal também seria o efeito de Dort sobre a Confissão Reformada dos africanos”. 2 Cp. Pergunta e Resposta 54, Catecismo de Heidelberg e Confissão Belga, seção 16. 3 Cp. Meeter, Writings of Warfield, p. 431. 4 Casalis, My Life, p. 89. 5 Ibid., p. 90. 6 Cp. van der Watt, Eiescontigheid pp. 406-410, para uma discussão do Sínodo de 1857. 7 Ibid., p. 438.
grandes qualidades de liderança e integridade, não podem ser descritos como calvinistas. Pelo fato de Daniel F. Malan ter sido anteriormente um ministro da NGK, sua adesão ao apartheid foi vista como o argumento final em apoio ao fato de que o Calvinismo causara a discriminação racial. Praticamente, não há dúvida de que Malan desejava ser um político cristão e que ele cria que a religião cristã deveria desempenhar um papel decisivo neste país. Teologicamente, entretanto, ele estava muito mais próximo do socialismo cristão do que do Calvinismo tradicional.1 O fato de ele ter chegado ao cargo de Primeiro Ministro pouco depois da Segunda Guerra Mundial, também fez com que ele fosse acusado de ser nazista. Portanto, isso aconteceu de modo tal que ele se opôs vigorosamente contra qualquer sugestão de o Nacional-socialismo ser um possível aliado dos afrikaaners brancos durante o tempo de guerra.2 Ironicamente, e isso é triste de se dizer, havia alguma simpatia para com o Nacional-socialismo na África do Sul, durante os anos 30, mesmo nos círculos reformados. Apesar da evidência que tende a desmentir uma relação direta e causal entre o Calvinismo e a discriminação racial, temos de considerar o apoio da política racial sul-africana por parte de alguns calvinistas. Também, daremos atenção à crítica calvinista dessa política.
O Apoio Calvinista ao Apartheid O apartheid, ou desenvolvimento em separado, pode ser definido como uma política de segregação baseada em diferenças raciais, linguísticas e culturais, objetivando a conseqüente separação da população em estados independentes ou interdependentes, através 1
Cp. Pienaar e Scholtz, org., Glo in u VoIk (Cidade do Cabo: Tafelberg, 1964), p. 14. A maioria dos discursos são relevantes para sua teologia. 2 Ibid., p. 42. Cp. H.D. Thom, Dr. D. F. Malan (Cidade do Cabo: Tafelberg, 1979).
do uso da diferenciação residencial, educacional, política e, de modo limitado, sócio-econômica. Os sul-africanos distinguem entre um “petty apartheid” (apartheid inferior), que indica a discriminação pessoal e social, e o “big apartheid” (grande apartheid), que indica o desenvolvimento agrícola, industrial e educacional dos territórios negros da África do Sul. Apoio qualificado. Eric Walker denominou Philip “um segregacionista convicto” por causa do fato de que ele queria que os negros (e os brancos) tivessem o direito de propriedade de suas terras assegurado.1 Sua crença a respeito da igualdade não o forçou a aceitar a idéia da assimilação total de um grupo pelo outro. No sentido de que o apartheid era uma tentativa de prover (com um certo atraso) essa integridade territorial e a conseqüente integridade cultural, ele tinha o apoio de muitos calvinistas. Por parte dos negros, nada menos do que Tiyo Soga estava profundamente preocupado com a preservação desta integridade cultural e territorial. Donovan Williams denominou Soga de “pai do nacionalismo negro na África do Sul” por essa razão.2 Soga era primeiramente, e acima de tudo, um ministro do Evangelho. Ele entregou sua vida nos trabalhos incessantes pela salvação de seu povo e seria uma injúria à sua memória sugerir que sua lealdade estivesse dividida. Soga era casado com uma moça escocesa (Janet Burnside) e ele abominava a discriminação racial, mas não podia aceitar a idéia de que o povo xhosa devesse ser culturalmente assimilado pelos britânicos, porque ele amava a história, tradições, língua e instituições de seu povo.3 Na medida em que o apartheid defende a retenção e mesmo a expansão do território de um povo, 1
Walker, History of Southern Africa, p. 152. Williams, Umfundisi, p. 128. 3 Embora os filhos de Soga tenham sido enviados à Escócia para seus estudos, ele muito os recomendou para que retornassem ao povo de seus pais, Ibid., pp. 88, 118. Também é interessante que Soga desejasse casar-se com uma cristã negra da América (p. 26). Sobre seu Calvinismo, cp. p. 126 e J.A. Chalmers, Tiyo Soga (Edimburgo:A. Elliot, 1877). 2
ele parece estar relacionado com o Calvinismo liberal de alguém como Woodrow Wilson. Pelo menos, ele não é incompatível com o Calvinismo nessa questão, e como tal tem sido apoiado por calvinistas modernos. O problema da integridade cultural não está definido equitativamente. O particularismo cultural sempre esteve de mãos dadas com a Reforma, pelo menos no uso do vernáculo, na adoração e na tradução da Bíblia. Missionários calvinistas, desde John Eliot e William Carey, sempre estiveram entre os primeiros a utilizar a linguagem vernacular e a traduzir para ela as Escrituras. Apesar da notável unidade teológica do Calvinismo, ele propiciou mais confissões de fé do que o luteranismo, que era mais orientado para o Estado. Mas a unidade intelectual e espiritual do Calvinismo é igualmente importante. Apesar de sua variedade, é sua unidade que faz essas confissões serem reconhecidas como documentos da Reforma. Os calvinistas aceitaram o pluralismo cultural implícito na doutrina do apartheid. Porém, o paganismo latente em cada cultura não recebeu uma atenção suficiente do apoio calvinista ao “apartheid cultural”. Os calvinistas receberam bem a proliferação de escolas estatais para cada grupo cultural, porém a base cristã da escola cultural ainda não foi satisfatoriamente definida. Entretanto, o apoio qualificado ao apartheid está se desviando da ênfase à diversidade para enfatizar a unidade da expressão cultural cristã. Apoio “escolástico”. O Calvinismo sul-africano sofreu um grande revés quando determinados eruditos, ostensivamente, tiveram sucesso em utilizar o conceito de soberania de esferas para justificar a sistemática e legalmente imposta separação das raças.1 O resultado foi que a maioria dos ministros simpáticos a Kuyper e 1
Cp. A.P. Treurnicht, Op die Keper (Cidade do Cabo, 1965).
Dooyeweerd foram efetivamente silenciados onde mais urgentemente eram necessários, a saber, numa crítica corajosa e construtiva ao apartheid. Com um senso de lealdade mal orientado, alguns inclusive integraram as listas em defesa do apartheid.1 Porém, essa defesa estava condenada a ser “escolástica”, no sentido de que ela não suportaria o confronto com os fatos acerca da opressão e das injustiças causadas pela aplicação da política. Ou então, caso fossem confrontados, estes fatos sempre seriam atribuídos a “fraquezas humanas” na aplicação imperfeita de uma boa política. Raramente foi sugerido que o caráter da teoria pudesse ser a razão para sua aplicação errônea. Uma teoria baseada na impecável autoridade de Kuyper não poderia estar errada! Aqui W. A. de Klerk estava correto ao dizer que o Calvinismo contribuiu para o apartheid, embora, como ele próprio indicou, esse não fosse um uso válido do Calvinismo,2 nem mesmo uma aplicação válida do Calvinismo kuyperiano. O verdadeiro Calvinismo, buscando a glória de Deus, não pode transformar uma política humana numa ideologia, Infelizmente, pessoas que se autodenominam calvinistas podem fazê-lo. E quando o apartheid foi propagado como sendo “pela salvação do homem branco na África do Sul”, essa política tornou-se uma ideologia messiânica.
Crítica Calvinista ao Apartheid
Em 1955, B. B. Keet, professor de Teologia Sistemática em Stellenbosch (e ex-aluno de Herman Bavinck), advertiu contra as tendências negativas e separatistas do apartheid, em seu livro Suid 1
Cp. A. B. du Preez, Eiesoortige ontwikkeling tot Volksdiens (Pretoria, 1959). Cp. de Klerk, Puritans in Africa, p. 338. O compromisso do próprio de Klerk não está claro. 2
Afrika Waarheen?1 [Para onde vai a África do Suil?] Ele também fez advertência, dizendo que sua impraticabilidade o tornava um sonho falso. Ele foi uma voz profética, baseada em sólido “bomsenso bíblico”, mas fez pouco progresso contra a maré crescente. Semelhantemente, em Potchefstroom, alguns acadêmicos advertiram contra o perigo de se fazer as tradições humanas mais importantes do que a Palavra de Deus. Uma década mais tarde, o periódico Woord en Daad continuou essa “tradição de Potchefstroom”, de criticismo construtivo. Nos anos 60, C. F. Beyers Naude surgiu com uma forte rejeição do apartheid, conseqüentemente com grande sacrifício pessoal. Os ministros individualmente nunca cessaram de pregar a obrigação do amor para com o próximo negro. Por parte dos ingleses, os ministros presbiterianos, com um novo interesse em Calvino, rejeitaram in toto o apartheid. Douglas Bax via as raízes do apartheid como estando parcialmente na tradicional doutrina calvinista da graça universal.2 A crítica mais importante foi a Declaração Koinonia.3 Esse documento convoca os cristãos brancos da África do Sul para se oporem às tendências do Estado em abusar do poder que lhe é concedido por Deus. Ele também critica a tendência, entre os pastores, negros e brancos, de identificar as aspirações políticas de um determinado grupo com o Reino de Deus. O fato de os calvinistas negros também estarem envolvidos foi um sinal de esperança. Se a graça deve triunfar sobre a raça, todas as raças devem ser incluídas nessa visão. Mesmo assim, embora esse documento reconheça diferenças étnicas e culturais, ele se recusa a fazê-las serem decisivas. Porém, apesar de sua moderação, a declaração foi específica demais e salientou, na sua crítica, os defensores “escolástícos” do “modo de vida tradicional”.
1
B.B. Keet, Suid Afrika Waarheen? (Stellenbosch, 1955). DS. Bax, A Different Gospel (Presbyterian Church of South Africa, Johannesburgo). 3 Publicado no Journal of Theology for South Africa, nº 24 (Setembro de 1978). 2
Conclusão A força do Calvinismo na África do Sul tem sido superestimada por amigos e inimigos. Apesar do fato de o primeiro partido político ter um co-fundador calvinista, o Calvinismo, muito raramente, desempenhou um papel decisivo na política sul-africana. Quando o apartheid, tradicionalmente limitado e patriarcal, foi forjado em uma política de caráter messiânico, o apoio calvinista estava em evidência maior do que a crítica calvinista. Isso foi indigno e era atípico do Calvinismo histórico, mas pode ser explicado parcialmente pelos aspectos bons da estratégia do desenvolvimento em separado. A política do atual governo, de sair da discriminação e de favorecer uma renovação constitucional, deve ser bem-vinda, mas os calvinistas devem levar seu testemunho específico do Reino de Deus e continuar a viver na África do Sul em fé, esperança e amor.1 Porém, a África do Sul é parte da África. Se Warfield está correto ao dizer que Calvinismo é “o nome mais moderno e específico do agostinianismo",2 então o Calvinismo é nativo da África. Na estranha providência de Deus, essa teologia africana esteve ausente da África por mais de um milênio. Quando Tiyo Soga foi ordenado, a África ainda era, em sua maioria, um continente desconhecido. No ano seguinte (1857), surgiram as “Viagens e Pesquisas Missionárias” de Livingstone, que despertaram um interesse maior pela expansão da Igreja na África. Quando em 1857, Soga retornou à África, ele orou: “Deus, Senhor da Verdade, cumpre agora tua promessa e permite que todas as nações do mundo obtenham a salvação. Governa, Senhor Jesus, pois 1
Ao tempo desta segunda edição em português o apartheid já foi abandonado e a África do Sul é governada pelos povos majoritários. Os afrikaaners e o seu Nationale Party estão na oposição (N. do E.). 2 Meeter, Writings of Warfield, p. 412.
a paz somente vem através de ti. Por causa de nossa confusão, o país está sendo destruido. Tem misericórdia de nossa terra e perdoa nossos pecados".1 Perdoa, governa, cumpre tua promessa... A Igreja, na África do Sul, não pode suportar a negligência a essa oração do calvinista negro Tiyo, o filho de Soga!
Epílogo Concluindo, os autores dos diversos capítulos deste livro esperam ter apresentado um retrato claro da influência de Calvino e do Calvinismo no mundo ocidental. Muito mais poderia ter sido dito, pelo acréscimo de detalhes e pela consideração de problemas que têm surgido ao longo dos últimos quatro séculos. Porém, eles acreditam que, nesta forma abreviada, os leitores — sejam eles calvinistas ou não — encontrarão a informação que lhes dará uma perspectiva ampla sobre a influência de um dos maiores cristãos do mundo —, uma perspectiva que pode até modificar suas posições acerca de Calvino e do sistema de teologia bíblica que ele elaborou. Ao tentarmos resumir a influência de Calvino e do Calvinismo apresentada nesta obra, somente podemos reconhecer que essa influência foi tanto bíblica quanto prática. Também somos capacitados a ver o quanto o Calvinismo influenciou o desenvolvimento da cultura do mundo ocidental. Ao mesmo tempo, porém, os capítulos que trouxeram o relato até aos dias de hoje revelam que o Calvinismo tem perdido muito de sua atração e influência em função da aceitação crescente do humanismo secular por parte do mundo. Mesmo assim, sempre existe uma esperança, pois repetidas vezes estes capítulos se encerram, indicando que parece estar acontecendo um reavivamento do Calvinismo no mundo ocidental, apesar de todas as aparentes tendências em 1
Parte de seu famoso hino “Lizalis’idinga lakho”. Cp. Gqubule, “Examination of Theological Education”, p. 33, para as circunstâncias.
contrário. Nesta obra, procuramos homenagear o Professor Paul Woolley que, por muitos anos, ensinou a história do Calvinismo. Mas, também, procuramos explicar o que é o Calvinismo e quais foram seus efeitos práticos na História desde o século 16. Entretanto, acima de tudo, acreditamos que essa obra estimulará os cristãos a uma maior perseverança e diligência em seu trabalho, como cristãos, “unicamente para a glória de Deus”.
SOLI DEO GLORIA
INDICE ANALÍTICO
Capítulo 1 — O Calvinismo Como Uma Força Cultural, p. 11 Tradução de Sabatini Lalli. Atitude positiva do Calvinismo para com a cultura, p. 12; O divino e o humano no Calvinismo, p. 15; O Calvinismo e o governo de Deus através da Lei, p. 21; O Calvinismo e a atividade cultural do homem, p. 28. Capítulo 2 — A Propagação do Calvinismo no Século 16, p. 35 Tradução de Júlia Pereira Lalli Desenvolvimento no final do período medieval e no início dos tempos modernos, p. 36; desenvolvimento no século 16, p. 40. Capítulo 3 — Suíça: Triunfo e Declínio, p. 63 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler O Consensus Tigurinos, p. 68; A Segunda Confissão Helvética, p. 73; Genebra depois de Calvino, p. 74; Relações entre Igreja e Estado, na Suíça, p. 77; A Influência da Teologia de Calvino, p. 77; A Fórmula Consensual Helvética, p. 80.
Capítulo 4 — A Idade de Ouro do Calvinismo na França, p. 87 Tradução de Sabatini Lalli Primeiros mártires no período pré-calvinista, p. 87; organizadores: Simon Dubois e Robert Estienne, p. 91; Martiriologia ou Livro dos Mártires, p. 91; Cartas de Calvino a mártires de Lyon, p. 92; Primeiro Sínodo Nacional da França, Sua Confissão de Fé e Norma de Disciplina, p. 93; Teólogos franceses da primeira geração, p. 97; da segunda geração, p. 99; da terceira geração, p. 100; A pesquisa
filosófica e científica entre os reformados franceses, e sua contribuição à literatura, à poesia, às artes (cerâmica, pintura, escultura, arquitetura e música), p. 102. Capítulo 5 — Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos p. 113 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler A Reforma antes do Calvinismo, p. 113; o Contato de Calvino com os Países Baixos, p. 115; as Igrejas sob a cruz, p. 117; a Igreja num Estado novo, p. 121; Armínio e a Confrontação, p. 124; O Sínodo de Dort, p. 127; Pietismo e Escolasticismo, p. 131; Voetius, p. 133; Missões, p. 136; lluminismo, Revolução e Avivamento, p. 138; Kuyper, p. 141; Antítese ou Acomodação, p. 143. Capítulo 6 — A Igreja Reformada na Alemanha: Calvinistas, uma influente minoria p. 149 Tradução de Sabatini Lalli Três famílias de Credo, p. 157; Confissão de Heidelberg e Confissão de Augsburg, Frederico e Maximiliano, p. 160; Eleição, a maior parte de sua discussão se encontra no Livro III das Institutas, que trata da vida cristã, e não no Livro II, que trata de Deus, p. 162; a Igreja Reformada alijada do Palatinado, p. 163; a contribuição de Brandenburgo à Fé Reformada, p. 164; a Comunidade Reformada de Bremen, p. 165; a Teologia da Aliança, sugestão para um novo começo da Teologia Evangélica, p. 166; Schleiermacher, Barth e Ritschl, p. 167; infl uência do Pietismo Alemão, p. 168. Capítulo 7 — A Reforma Helvética na Hungria p. 171 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Na Década da Desgraça de Mohács, p. 172; As Conseqüências de Mohács, p. 174; Martin Kálmáncsehi Sánta (c. 1500-1557), p. 176; Estêvão Szegedi Kis (1505-1572), p. 179; Gregório Szegedi (m. 1569), p. 182; Peter Mélius Juhász (1536-1572), p. 185; Padrões Confessionais e Confissão Católica ou Debrecenense, p. 189; a
Confissão de Tarcal-Torda (1562-1563), p. 190; A Segunda Confissão Helvética, p. 190; o Catecismo de Heidelberg, p. 191; A Confissão do Sínodo de Csenger, 1570, p. 193; Organização e Governo, p. 194; A Bíblia Húngara, p. 197; Culto e Hinódia, p. 200. Capítulo 8 — Calvino e a Igreja Anglicana p. 209 Tradução de Sabatini Lalli A orientação no que tange à Reforma na Inglaterra, p. 211; Cartas de Calvino ao Duque de Somerset, p. 212; Carta de Bucer a Calvino, p. 221; Carta de Francis Bourgoyne e Calvino, p. 222; Resposta de Calvino no preâmbulo de seu Comentário a Isaías, p. 222; Calvino e o Concílio de Trento, p. 224; Nicolas Des Gallars, emissário de Calvino e pastor da Igreja francesa de Londres, p. 224; outra Carta de Calvino ao Duque de Somerset, p. 225; Carta de Cranmer a. Calvino, p. 225; resposta de Calvino a Cranmer, p. 226; Carta de Calvino a Sir John Cheke, p. 230; morte de Cranmer, p. 231 e 233; Carta de Calvino a Lorde John Grey, p. 232; Carta de Sir John Cheke a Calvino, p. 232; Carta de Calvino a Elizabeth, rainha da Inglaterra, p. 233; Carta de Calvino a William CeciI (Lorde Burleigh), p. 235; John Knox, resultado negativo de uma de suas obras, p. 237; Correspondência entre Calvino e Grindal, p. 239. Capítulo 9 — A Modificação Puritana da Teologia de Calvino p. 245 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Nem todas as Teologias chamadas calvinistas são de Calvino, p. 245; a influência de estudantes ingleses que retornaram de Genebra e da Bíblia de Genebra, p. 246; a distorção do pensamento de Calvino, p. 247; três obras de Beza, p. 249; William Perkins, sua influência e seus escritos, p. 249; Perkins adotou posições de Beza, chamando-as de Calvinistas, p. 255; Perkins e a teologia de Ursinus apresentada como calvinista p. 255; Richard Sibbes e sua contribuição à teologia, p. 259; John Preston, com algumas alterações continua a obra de Perkins, p. 261; Hooker, sua teologia é
o produto final do sistema Beza-Perkins, p. 262; William Ames, discípulo de Perkins, introduziu modificações na teologia de seu mestre, p. 263; a influência de Ames na Assembléia de Westminster, p. 264. Capitulo 10 — A Contribuição do Calvinismo na Escócia p. 267 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler A Escócia antes da Reforma, p. 267; o primeiro Mártir protestante escocês, p. 269; Vitória à vista, p. 270; a Confissão Escocesa, p. 271; o Primeiro Livro de Disciplina, p. 272; a Oposição Cresce, p. 275; a República Piedosa, p. 276; a Liturgia de Knox, p. 278; Educação e Laicato, p. 279; Governo da Igreja, p. 280; o Calvinismo e os Partidários do Convênio, p. 281; o Gosto pela Teologia Polêmica, p. 284; o Calvinismo será Antiestético? p. 285; Mais que um Credo Teológico, p. 289; Calvino e a Cultura, p. 290; Tendências Modernas, p. 291. Capitulo 11 — Origens “Cristãs” da América: A Nova Inglaterra Puritana como um Caso de Estudo p. 297 Tradução de Luiz Alberto Teixeira Sayão A Nova Inglaterra como um Caso-Teste, p. 300; o Impacto Calvinista na Cultura Americana: Princípios Americanos de Governo, p. 307; a Influência Moral do Calvinismo, p. 314; Porque não existem Culturas Cristãs, p. 318. Capitulo 12 — Os Irlandeses—Escoceses na América p. 325 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Os Irlandeses-Escoceses, por que vieram?, p. 326; As Migrações, p. 329; o Impacto dos Irlandeses-Escoceses sobre o Presbiterianismo Americano, p. 332; os Irlandeses-Escoceses na Luta pela Liberdade Religiosa, p. 343 a Comunidade Presbiteriana dos IrlandesesEscoceses, p. 345; Os Irlandeses-Escoceses em Questões Nacionais, p. 348; Sua Influência Política, p. 349; a Educação entre os Irlandeses-Escoceses, p. 351; os Irlandeses-Escoceses na Vida
Econômica da Nação, p. 352. Capitulo 13 — O Calvinismo Holandês na América p. 355 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Primórdios, p. 356; o Catecismo de Heidelberg e as Escrituras nas Escolas da Nova Amsterdã (Nova York), p. 358; Causa da desproporção entre o número de Igrejas e de Ministros na América, p. 358; Preparação de Ministros na América e separação do Presbitério de Amsterdã, p. 359; nova Emigração de Holandeses para a América, p. 363; a Emigração depois da Separação, p. 364; Jornais de Holandeses na América, p. 369; Contra a Escravidão, p. 370; a Atuação política de Scholte, p. 370; Influência dos Ideais da Revolução Francesa na Igreja Reformada da Holanda, p. 371; a Imigração Pós-Doleantie, p. 372; Periódicos Influentes, p. 374. Capítulo 14 — A Influência de Calvino no Canadá p. 381 Tradução de Júlia Pereira Lalli Pedido de Coligny em busca de Liberdade Religiosa na Nova França, p. 381; Decisão de Richelieu de fazer da Nova França um baluarte da ortodoxia católica, p. 382; o Tratado de Utrecht e a imigração protestante, p. 382; Presbiterianos e congregacionalistas se unem e colaboram, p. 383, posição da Igreja da Inglaterra na Nova Escócia, p. 384; o Contingente Reformado no Alto Canadá, p. 386; a Igreja da Inglaterra nos dois lados do Canadá e a Igreja Livre, p. 387; até que pontos batistas e presbiterianos poderiam ser considerados calvinistas em sua teologia, p. 389; a Igreja Unida do Canadá, p. 389; Igrejas Batistas Independentes, sua formação, p. 390; Conflitos de Doutrina, p. 391; a Influência dos Reformados na Educação, no Canadá, p. 392; as leituras dos Jovens Escoceses, p. 393; a Influência dos calvinistas em outras áreas, p. 394; Capítulo 15 — O Impacto do Calvinismo na Australásia p. 401 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Colônia Penitenciária, p. 401; Pioneiros Capelães Anglicanos, p.
402; Calvinismo e lluminismo em confronto, p. 402; Lang e sua concepção política e influência do Iluminismo na Política, da Austrália, p. 403; os Calvinistas e a Educação na Austrália, p. 404; a Educação Secular sobrepuja a Educação Reformada vigente, p. 405; a Alta Crítica na Austrália, p. 408; Barker e outros Defensores da Fé Reformada, p. 409; a Atuação da Igreja Presbiteriana da Austrália Oriental e outros Ramos do Presbiterianismo, p. 411; o Afluxo de Reformados Holandeses na Austrália, e União de Duas Escolas Teológicas, p. 412; Aspecto Nacionalista da Igreja Reformada na Austrália, p. 413; a Igreja Reformada na Nova Zelândia e nas Novas Hébridas, p. 413. Capitulo 16 — O Calvinismo na África do Sul p. 425 Tradução de Vera Lúcia L. Kepler Lampejos do Calvinismo na África do Sul, p. 426; a Igreja Reformada Holandesa, p. 427; a Igreja Reformada na África do Sul, p. 433; o Calvinismo nas Igrejas Negras, p. 434; Educação, p. 435; Política, p. 436; o Calvinismo e Missões: o Triunfo da Graça, p. 437; Calvinismo e Racismo: o Julgamento da Graça, p. 441; o Apoio Calvinista ao Apartheid, p. 443; Crítica Calvinista ao Apartheid, p. 446; Conclusão, p. 447; Epílogo, p. 447. NOTAS - Tradução de Vera Lúcia L. Kepler p. 1