Título: Cidadania, Estado e estratos marginalizados: a produção de
status desiguais na sociedade brasileira do século XIX ao XX. Raniery Parra Teixeira 1
Resumo: A pesquisa consistirá em uma análise do desenvolvimento do
conceito de cidadania na sociedade brasileira do século XIX à metade do XX. A delimitação temporal tem como intuito abordar as transformações políticas, econômicas e sociais que ocorreram no país durante esse período. Para compreender as implicações que tais mudanças geraram no desenvolvimento do status de cidadania, pretende- se estudar os conceitos de “cidadão em negativo”, de José Murilo de Carvalho, de “subcidadania” de Jessé Souza e de “cidadania regulada” de Wanderley Guilherme dos Santos, apontando as
formas como os autores concebem a formação da cidadania. A partir do diálogo estabelecido entre esses autores, da compreensão dos conceitos formulados, a pesquisa procurará entender como se estabeleceu a relação entre cidadania e Estado, e se essa relação foi fundamentada na contínua exclusão de estratos marginalizados, fundamentadas em relações de status desiguais. Palavras-chave: cidadania, Estado, estratos marginalizados.
Introdução.
O desenvolvimento do conceito de cidadania esteve relacionado com as necessidades de sanar desigualdades quantitativas e qualitativas dos elementos essenciais da vida social. As desigualdades quantitativas estariam relacionadas ao acesso diferencial a padrões de vida e a determinados bens escassos, alguns prognósticos para minimizar essas desigualdades seriam os benefícios e os direitos compensatórios. As desigualdades qualitativas, por sua vez, seriam expressas através do arcabouço valorativo que orientam as relações sociais, as sociedades tradicionais, por exemplo, fundamentariam sua 1
Estudante da graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.
moral do reconhecimento social pautado no código da honra, enquanto que as sociedades modernas teriam sido orientadas sobre o paradigma da dignidade (SOUZA, 2003). A cidadania é fundamentalmente um método de inclusão social. Historicamente ela representou o surgimento e a celebração do indivíduo enquanto unidade política desvinculado das instituições gremiais e corporativas, cujo início se deu no contexto das revoluções inglesas, do século XVII, na Revolução Francesa e no Bill of Rights , alguns anos antes (SOUKI, 2006, p.41) .
Nesse sentido, o status da cidadania, próprio do mundo moderno, deveria propiciar a inclusão social e poderia possuir como pano de fundo o reconhecimento da dignidade humana em uma determinada comunidade cívica, ou seja, ser capaz de homogeneizar um determinado tipo humano que seja transclassista2. A cidadania poderia ser composta não apenas do reconhecimento da igualdade humana básica no interior de uma sociedade, mas garantir e permitir a participação integral por parte desses indivíduos na comunidade da qual fazem parte, podemos ir mais adiante e dizer que a reivindicação de todos para gozar dessas condições é uma exigência para ser admitido numa participação na herança social, o que, por sua vez, significa uma reivindicação para serem admitidos como membros completos da sociedade, isto é, como cidadãos. (MARSHAL, 1967, p. 62).
Thomas Humphrey Marshall (1967) identifica que a igualdade humana básica em substância e a soma dos direitos formais constituem o status da cidadania. Mas, para se compreender a noção de igualdade social da qual a cidadania se reveste, faz-se necessário compreender como se desenvolveu tal conceito de cidadania e quais seriam os elementos que a compõe. A priori, é possível dividir o desenvolvimento do conceito de cidadania, desenvolvido por Marshall ao analisar especificamente o desenvolvimento da sociedade inglesa moderna, em três elementos, civil, político e social. 2
Souza (2003) afirma que essa homogeneização se dá através de uma generalização da economia emocional típica da burguesia: predomínio da razão, cálculo prospectivo e autoresponsabilidade.
O desenvolvimento dos direitos civis, na sociedade inglesa, teria tido maior expressão no século XVIII e sua composição estaria relacionada com a liberdade individual 3. No âmbito das instituições, o desenvolvimento dos direitos civis esteve relacionado com os tribunais de justiça, que buscavam assegurar os direitos individuais processualmente e fundamentado na noção de igualdade. Já no setor econômico a expressão básica do direito civil seria o direito ao trabalho, entendido como o direito de liberdade e escolha do exercício de determinada profissão, alterando as relações de trabalho na medida em que se passou do trabalho servil para o trabalho livre e, nesse sentido, todos os homens adultos de uma comunidade seriam considerados homens livres. A liberdade individual e a liberdade econômica, aliada com a incorporação dos novos direitos que surgiam durante o período, foram os pilares fundamentais para a formação e consolidação do status de cidadania pertencente a todos os homens da comunidade, Marshall (1967, p. 69) afirma que nas cidades inglesas do século XVIII a noção de “liberdade” era intimamente relacionada com a de “cidadania”.
Os direitos políticos, por sua vez, foram desenvolvidos na medida em que os direitos civis já se afirmavam nos indivíduos substancialmente como status de liberdade no século XIX, porém, afirma Marshall, diferentemente do
que ocorrera com os direitos civis, os direitos políticos não foram a criação de novos direitos, mas a transferência de direitos 4 já gozados por uma parcela da população às novas parcelas que vieram a incorporar a comunidade política. “No século XVIII, os direitos políticos eram deficientes não em conteúdo, mas
na distribuição – deficientes, isto é, pelos padr ões da cidadania democrática” (Marshall, 1967, p. 69). A distribuição dos direitos políticos avançava na medida em que se rompia com os privilégios obtidos por uma classe econômica, Marshall (1967: 70) cita a importância da Lei de Reforma para democratizar a incorporação de novas parcelas aos direitos políticos, porém, em certa medida, os direitos políticos estavam intimamente relacionados com o substrato econômico e, 3
Como por exemplo: liberdade de ir e vir, liberdade de associação, liberdade de imprensa, direito à propriedade e à justiça. 4 Tal como o direito ao voto e o direito de participação e representação política.
portanto, não se apresentavam como direito universal no século XIX. Os direitos políticos começam a se revestir do elemento universal apenas em 1918 através da adoção do sufrágio universal que “transferiu a base dos direitos
políticos do substrato econômico para o status pessoal” (Marshall, 1967, p. 70). Os direitos sociais possuem sua consolidação no século XX. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e do mundo moderno, principalmente a partir do século XVIII, as concepções que viriam a orientar os direitos sociais passaram a perder força na medida em que se valorizava a liberdade individual e a economia competitiva. Nesse sentido, as medidas anteriores a esse período como a Poor Law , que buscava regulamentar as relações trabalhistas na sociedade inglesa, se afirmavam na contramão do que se afirmavam os direitos civis através da noção de trabalho livre. Portanto, a partir do século XVIII e do advento da nova ordem social, pautada pela economia competitiva, os direitos sociais vão se tornando símbolo do que deveria se negar como resquícios da velha ordem. Nesse contexto de consolidação da cidadania, primeiramente entendida através dos direitos civis, os direitos sociais deixaram de ser associados ao status que revestia os homens livres e passaram a serem associados aos indigentes, estes não teriam mais seus direitos civis e políticos, e, portanto, deixariam de serem cidadãos. O estigma associado à assistência dos pobres exprimia os sentimentos profundos de um povo que entendia que aqueles que aceitavam assistência deviam cruzar a estrada que separava a comunidade de cidadãos da companhia dos indigentes. (MARSHALL, 1967, p. 72).
A Factory Acts e a expansão da educação formaram no século XIX as bases pelas quais os direitos sociais viriam a se desenvolver e se afirmar no século seguinte. A legislação fabril permitiu instaurar uma melhor condição de trabalho e redução da jornada dos trabalhadores industriais, mas o direito à proteção trabalhista não era incorporada nessas conquistas visto que fora negada sob a argumentação de que interferia no trabalho livre e não deveria ser atribuídos aos homens adultos considerados cidadãos, sendo assim,
apenas mulheres e crianças eram incorporadas a proteção trabalhista, já que não eram reconhecidos como cidadãos. A obrigação do Estado de garantir a educação primária às crianças possuía, ainda que implicitamente, o sentido de formar homens capazes de compreender as exigências e a natureza da cidadania, “o direito à educação é
um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é molda r o adulto em perspectiva” (Marshall, 1967, p. 73). Pertenceria ao cidadão o direito a ser educado e era necessidade da comunidade política incorporar homens capazes de escolhas, direitos e deveres. Portanto, o direito à educação está para além apenas do direito individual, é o primeiro traço do entrelaçamento do direito individual com a noção de dever social, pois a capacidade individual de fazer uso dos direitos civis implicaria a necessidade de se educar e qualificar os membros da comunidade, “o dever de autoaperfeiçoamento, e de autocivilização é, portanto,
um dever social e não somente individual porque o bom funcionamento de uma sociedade depende da educação de seus membros” (Marshall, 1967, p. 74).
Mas argumenta Marshall (1967), apenas no século XX que os princípios dos direitos sociais passaram a ser associados ao status de cidadania e a ser considerado, tal como o direito civil e político, como direito social do individuo pertencente à determinada comunidade cívica. O que se procurou apontar até o momento foi o desenvolvimento do conceito de cidadania a partir da interpretação de Marshall sobre o caso especifico da sociedade civil inglesa, quais elementos compõe a cidadania, formal e substancialmente, para que seja possível, em um segundo momento, compreender como a cidadania se desenvolveu no Brasil. A escolha por introduzir o tema com a teoria de Marshall se dá pela relevância de sua análise sobre o conceito de cidadania, específica ao modelo inglês, e que serviu de parâmetro para se pensar o desenvolvimento da cidadania em outras sociedades modernas 5. 5
Sendo assim, o uso da análise do autor servirá como orientação e não como simples transposição do esquema como modelo ideal à sociedade brasileira, a importância de sua teoria é expressa por Souki ao afirmar “o modelo de Marshall é um recurso teórico importante e
Ao se debruçar sobre o desenvolvimento do conceito de cidadania na sociedade brasileira é necessário levar em consideração o contexto histórico, a passagem das formas pré-modernas de relações sociais, cujas características estariam fundamentadas no sistema escravocrata, para as relações impessoais do mundo moderno, orientadas pelas instituições - Estado e mercado - e os valores substanciais que orientavam normativamente as relações no interior da comunidade política. Nesse sentido, essa pesquisa buscará, a partir da revisão conceitual de três autores que definem a cidadania no Brasil, apontar como se deu a construção da cidadania no país a partir de algumas inquietações teóricas que permitam considerar: Qual foi o impacto da expansão do Estado e da economia competitiva para a formação do status da cidadania entre os indivíduos? Como se deu a relação entre Estado, cidadania e os grupos marginalizados desse processo? Para responder a essas questões, a pesquisa irá focar nas transformações
do
século
XIX,
compreendendo
as
transformações
significativas do ponto de vista político, econômico e social desse período e metade do século XX, mais especificamente até a década de 60. Os autores e os conceitos utilizados serão: José Murilo de Carvalho e o seu conceito de “cidadãos em negativo”, Jessé Souza e o seu conceito de “subcidadania” e Wanderley Guilherme dos Santos e o conceito de “cidadania regulada”. O desenvolvimento do conceito de “cidadania” no Brasil (séc. XIX até XX).
A passagem do sistema colonial para o Império, no século XIX, trás alguns elementos importantes para se pensar a mudança de paradigma nas relações sociais, principalmente com a importação de duas instituições, mercado6 e Estado, que exercem papel fundamental na reorganização da vida
continua sendo referência para os estudos comparativos do desenvolvimento da cidadania em outros países (Souki, 2006, p. 42)”, ainda que esta pesquisa tente não se utilizar do método
comparativo com relação aos contextos específicos de cada país, considera-se relevante como recurso teórico. As aberturas dos portos eliminou o monopólio comercial da metrópole e permitiu o aumento de troca de mercadorias e aumento de agentes comerciais, vendedores e viajantes europeus, 6
social; tal transformação exigiria teoricamente a transformação das relações pessoais, do sistema colonial, em relações impessoais, regidas por mercado e Estado. Porém, apesar da proclamação de Independência em 1822, da elaboração da Constituição em 1824 e da instauração de um governo monárquico institucional, o elemento mais tradicional e um dos maiores símbolos dos três séculos de colonização, o trabalho escravo, não foi abolido, permanecendo até 1888, ano que antecede a proclamação da República de 1889, como a raiz do sistema econômico do país. É de se considerar que três séculos de colonialismo, com seu alicerce no trabalho escravocrata, tenha deixado heranças coloniais negativas em termos de desenvolvimento de uma civilização moderna, pautada por instituições que possuem valores normativos que regem a vida social, principalmente ao que diz respeito ao reconhecimento substancial da igualdade humana mínima, elemento fundamental para se pensar o paradigma da dignidade nas sociedades modernas. O historiador José Murilo de Carvalho (1996), ao elaborar uma história comparativa por meio da qual se procura mapear elementos que permitam compreender os percursos e as diferentes formas de como a cidadania se desenvolveu historicamente, contribuiu para apreensão dos elementos que seriam singulares à formação da cidadania em solo brasileiro a partir do século XIX. Segundo Carvalho (1996: 1), é possível encontrar na teoria de Bryan S. Turner 7 dois eixos8 pelos quais se desenvolveram as diferentes tradições da cidadania e, desses dois eixos, apresentam-se quatro tipos de cidadania: em um primeiro tipo, houve aquela que surgiu de baixo para cima e se expressou no espaço público, como foi o caso da trajetória francesa, representava através da Revolução Francesa; em um segundo tipo, houve aquela que surgiu de ou seja, altera o quadro urbano da vida social, principalmente no Rio de Janeiro e nas cidades litorâneas. 7
8
Turner, Bryan S. 1990. “Outline of a theory of citizenship”. Sociology, vol. 24, nº 2.
Os dois eixos seriam: primeiro, a cidadania que surge como demanda da sociedade civil e se realiza no Estado, seria o caminho de baixo para cima, ou o inverso, do Estado para a sociedade civil, que seria o caminho de cima para baixo; o segundo eixo teria sua expressão na dicotomia público/privado.
baixo para cima e se desenvolveu primeiramente no espaço privado, como a trajetória norte-americana; em um terceiro tipo, houve a forma em que a cidadania se expressou através da universalização dos direitos individuais e, portanto, no espaço público, seria a trajetória inglesa em que os cidadãos são vistos como súditos após a restauração da monarquia, em 1688; e o quarto tipo, e último, houve a cidadania que se formou de cima para baixo no espaço privado, seria a trajetória alemã, em que a cidadania é um status criado e concedido pelo Estado. Outra distinção apresentada por Carvalho (1996: 2) diz respeito à teoria de Gabriel Almond e Sidney Verba e está relacionada à construção da cidadania da perspectiva da cultura política, sendo essa expressa em três tipos: paroquial, súdita e participativa. A cultura paroquial seria aquela em que no corpo social não há distinção de uma esfera autônoma do sistema político em relação a outras esferas da vida social, as pessoas são compreendidas a partir de sua família ou tribo, estariam representadas nas sociedades primitivas. A cultura súdita possui um sistema político que se apresenta autônomo de outras esferas da vida social, mas as demandas do sistema político são interpretadas como decisões político-administrativas pelos indivíduos, eles não participam das tomadas de decisões, são interpretados como súditos. A cultura participativa, além de possuir a esfera autônoma do sistema político, o relacionamento entre este e as pessoas é complementado por processos decisórios e participação ativa no sistema. A partir dessas distinções, Carvalho (1996: 2) afirma que o Brasil do século XIX teria sido formado por uma cultura estado-cêntrica em que não foi formado pelo espaço público, como no caso francês, e não se expressou de modo universal, como na trajetória inglesa, mas que a trajetória brasileira se formou a partir de uma relação entre Estado e indivíduo em que, ora o Estado coopta esses indivíduos para o seu interior, ora os indivíduos procuram o Estado para atender os seus interesses privados. Nesse sentido, o Brasil do século XIX para o autor expressaria um privatismo em que a cultura política se aproximava mais das descrições da cultura política súdita, quando não paroquial.
Carvalho (1996: 2) trás também outra distinção importante para se pensar a formação dos cidadãos nas Constituições do século XIX, segundo o autor, há pelo menos três expressões desses cidadãos: o cidadão ativo, que é o cidadão participante em que a cidadania foi conquistada de baixo para cima; o cidadão inativo, em que as pessoas se relacionam com o sistema político como súditas e a cidadania é construída de cima para baixo; o não-cidadão, cuja expressão seria o individuo da cultura paroquial. A partir da análise clássica de Marshall (1967) e da contribuição das tipificações apresentadas por Carvalho (1996) torna-se possível tentar compreender a tradição sobre qual a cidadania se desenvolveu no Brasil. Nesse sentido, faz- se necessário abordar os conceitos de “cidadão em negativo”, “cidadania regulada” e “subcidadania” buscando compreender como
se deu a relação entre Estado, cidadania e a parcela da população que foi historicamente colocada à margem na incorporação dos elementos da vida social moderna que passava a orientar o Brasil a partir do século XIX. Na perspectiva de Carvalho (1996) a partir do século XIX a população brasileira passa a se relacionar com o Estado, ainda que de forma precária, transformando paulatinamente a cultura política paroquial para a cultura política súdita, através, principalmente, da cooptação do segundo pelo primeiro, cooptações essas que se expressavam: no processo eleitoral, na incorporação da Guarda Nacional, no alistamento militar e no registro civil. Tais medidas foram, na perspectiva de Carvalho, a representação da cidadania construída de cima para baixo através de incentivos do Estado, mas não passaram despercebidas ao tecido social na medida em que é possível constatar alguns movimentos reativos por parte dessa população, que era incorporada ao campo da cidadania. Para além das ações governamentais que buscavam cooptar os indivíduos para o interior do Estado, Carvalho (1996) também aponta a escravidão, o patriarcalismo e o latifúndio como heranças coloniais que irão deixar marcas significativas na cultura política e no desenvolvimento econômico e político do país do século XIX.
O “cidadão em negativo” de Carvalho é justamente a parcela da
população, que se configurava como maioria populacional, aos quais foram negados o desenvolvimento das potencialidades participativas, sendo a privação do acesso à educação o maior dano a formação da consciência cívica. Sofreram mais duramente as consequências do sistema colonial na medida em que “havia um potencial de participação que não encontrava canais de expressão dentro do arcabouço institucional e que, também, não tinha condições de articular arcabouço alternativo”. (Carvalho, 1996, p. 15).
Os elementos que foram até o momento expostos no contexto do século XIX e com forte influência durante o XX, como escravidão, patriarcalismo e latifúndio serão as bases pelo qual se tentará abordar o desenvolvimento da cidadania, pois se considera que esses elementos possuem determinados valores que orientam as relações de reconhecimento social no interior de uma sociedade. No caso do conceito de Carvalho, o material utilizado para se aprofundar na construção do conceito “cidadão em negativo” e nas relações
historicamente construídas entre Estado e a formação da cidadania e, em contraposição, a negação desse status a uma parcela considerável da população, será o livro “Cidadania no Brasil: o longo caminho” (2008) de José
Murilo de Carvalho. A obra de Carvalho (2008) permitirá, a partir de uma abordagem histórica do desenvolvimento da cidadania, compreender o surgimento dos direitos civis, políticos e sociais, que formam o “status” da cidadania, e como
foram absorvidos pela cultura política popular, compreendendo por popular o estrato da populaç ão “marginalizada” no processo da formação do Estado moderno e do mercado competitivo. O conceito de “subcidadania” de Jessé Souza, exposto em seu livro “A
construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica” (2012) pr ocura compreender os aspectos substanciais
essenciais à formação da cidadania, tal como o reconhecimento da igualdade substancial entre os indivíduos. Nesse sentido, essa pesquisa procurará abordar os elementos que Souza (2012) considera serem relevantes, durante o
período do século XIX e metade do XX, para a construção de um status de subcidadania para uma massa da população brasileira. Entre as consequências têm-se fatores como escravidão, patriarcalismo e as grandes propriedades. Jesse Souza (2012) aborda a formação do poder pessoal, como expressão das duas primeiras formas de dominação, que afetam a relação entre senhor, escravo e dependente - que são formalmente livres e de qualquer cor e a sua posição social era intermediária na medida em que se localizava entre o senhor e o escravo – com a combinação dos escravos e dos dependentes “formou -se, antes, uma “ralé” que cresceu e
vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” (Souza, 2012, p . 121).
Os valores
internalizados por uma sociedade escravocrata, não possuía limites quanto à autoridade pessoal, não havia uma esfera autônoma superior capaz de limitar os desejos e as ações do senhor de terra e escravos e, nesse sentido, a relação se baseava em subordinação sistemática e em uma relação sádica. A importância do século XIX estaria no processo de “reeuropeização” do
Brasil que se fundamentava na importação de suas instituições e valores modernos, Estado e mercado, e que formariam a transição do poder pessoal para o poder impessoal permitindo assim o rompimento com o estatuto colonial e as suas formas de relação, a reeuropeização teve, nesse contexto primitivo, um caráter de reconquista ocidentalizante e de transformação profunda não só de hábitos, costumes e mores, mas também de introdução de valores, normas, formas de comportamento e estilos de vida novos destinados a se constituírem em critérios revolucionários de classificação e desclassificação social (SOUZA, 2012, p. 140).
O ponto para Souza (2012) é que nesse processo houve nas sociedades periféricas e, portanto, no Brasil também, a anterioridade das práticas institucionais e sociais frente às ideias e visões de mundo, processo inverso do que ocorrera nos países europeus e nos EUA. A tentativa de abordar os elementos que Souza (2012) incorpora na sua discussão e na construção de seu conceito irá permear até o período pós-30,
no qual o autor compreende estar em formulação um projeto modernizador autônomo e nacional no país, em que o elemento industrializante assume primazia sobre o processo urbanizador e comercial que marca o século XIX. A finalidade é a de que seja possível compreender esse período histórico e como se deu o desenvolvimento do elemento da igualdade substancial da cidadania na relação entre Estado, cidadania e a “subcidadania”, status que é identificado
a uma: “ralé” de inadaptados às demandas da vida produtiva e social modernas, constituindo-se numa legião de “imprestáveis”, no sentido
sóbrio e objetivo deste termo, com as óbvias consequências, tanto existenciais, na condenação de dezenas de milhões a vida trágica sob o ponto de vista material e espiritual, quanto sociopolíticas como a endêmica insegurança pública e marginalização política e econômica desses setores. (SOUZA, 2012, p. 184).
Enquanto na análise de Souza (2012) encontramos uma preocupação centrada na substancialidade da igualdade que deve estar incorporada no conceito de cidadania enquanto reconhecimento social da dignidade do outro, na análise de Wanderle y Guilherme dos Santos, no livro “Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira” (1987), encontraremos a preocupação
centrada nos aspectos formais e institucionais da construção da cidadania e do seu conceito de “cidadania regulada”.
Os princípios laissez-fairianos ortodoxos teriam orientado a vida econômica e social do país durante a primeira República (1889 até 1930) no país, princípios esses que influenciavam primordialmente o processo da expansão da vida urbana no país e, nesse sentido, formavam um descompasso com o setor agrícola na medida em que esses princípios não eram efetivos para os trabalhadores rurais e não eram válidos nos territórios dos grandes latifúndios. De uma perspectiva institucional, para a análise de Santos (1987) é necessário se ater aos processos como a lei de sindicalização de 1907, que permitia a livre organização do trabalho, pois é a partir desse período e com a forte influência dos imigrantes europeus que haviam vindo trabalhar no país que a força de trabalho começa a gerar suas primeiras formas associativas e
organizativas na vida política e social do país, o que gerou aumento nas demandas sociais, aumento de greves e, em contraposição, aumento da repressão por parte do poder público. Nesse sentido, Santos (1987) aponta que a repressão era uma marca forte e histórica de resposta do poder público às reivindicações sociais. A questão para o autor é que a partir da década de 20 o princípio laissez-faire passou a sofrer seu processo de decadência frente ao processo reivindicatório o que exigiu uma maior distribuição de política social compensatória com o aumento significativo da sindicalização, aliadas a pequenas taxas de crescimento econômico com sucessivas crises e uma elite ideologicamente fechada a alterações no poder político e econômico. Por sua vez, tornava-se indispensável uma mudança na composição da elite, ou, pelo menos, em parte dela, que permitisse a renovação do equipamento ideológico com que se enfrentavam o problema da ordem econômico e social, em primeiro lugar, e, como corolário, que se alterassem as normas que presidiam o processo de acumulação e as relações sociais que aí se davam. (SANTOS, 1987, p. 67).
Nesse sentido, é a partir do ano de 1930 e no processo que Santos (1987) chama de acumulação e diferenciação da estrutura econômica, que o Estado passa a intervir para reestruturar os problemas econômicos do país, principalmente o desenvolvimento industrial, e é justamente nesse período que Santos afirma que o governo passa da esfera da acumulação, característica do período laissez-fairianos, para a esfera da equidade o que permitiria gerar o conceito de “cidadania regulada”. Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em códigos de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal (SANTOS, 1987, p. 68).
A questão para Santos (1987), portanto, não são os valores e as normas internalizadas que permitem o (não) reconhecimento do status de igualdade substancial entre os indivíduos de uma comunidade política para a formação da
cidadania, mas o traço da cidadania regulada que se desenvolve no Brasil estaria intimamente relacionado com a ocupação do indivíduo, ocupação essa que deveria ser reconhecida e definida pela lei. Nesse sentido, a extensão da cidadania estaria fundamentada na regulamentação das profissões e ocupações mais do que nos valores e no reconhecimento do individuo enquanto membro de uma comunidade. Nessa relação estabelecida por Santos (1987) o desenvolvimento da cidadania a partir da década de 30 estaria relacionado à ocupação e a aquilo que o Estado reconhece como cidadão. O autor chama de engenharia institucional o processo pelo qual o Estado dese nvolveu a “cidadania regulada” e disseminou-a pela cultura cívica do país. Nessa relação estabelecida entre cidadania e ocupação o Estado formaria dezenas de pré-cidadãos que por não terem sua ocupação regularizada não seriam reconhecidos pela lei, A implicação imediata deste ponto é clara: seriam pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, que fazem parte ativa do processo produtivo e, não obstante, desempenham ocupações difusas, para efeito legal, assim como seriam pré-cidadãos os trabalhadores urbanos em igual condição, isto é, cujas ocupações não tenham sido reguladas por lei. (SANTOS, 1987, p. 68).
Os elementos que definiriam a cidadania nesse contexto seriam: a sindicalização, que cada vez mais era cooptada pelo Estado; a carteira de trabalho, que o autor afirma ter se tornado a certidão de nascimento cívica do trabalhador; e a regulamentação das profissões, que segregaria os trabalhadores regulamentados dos não regulamentados, “os direitos dos
cidadãos são decorrência dos direitos das profissões e as profissões só existem via regulamentação estatal” (Souza, 1987, p. 69), fundamentava -se
assim uma relação em que o Estado definia quem eram os cidadãos, através de sua profissão. Conclusão. Enfim, esse primeiro esboço buscou traçar o caminho pelo qual seria possível buscar elementos da vida social do século XIX e metade do XX no Brasil que permitissem compreender os processos de construção e desenvolvimento da cidadania. A pretensão é a de esmiuçar o trabalho destes
três autores, a partir de suas diferenças metodológicas, para compreender a expressão da cidadania e, principalmente, compreender os processos de exclusão e marginalização contínuos na relação entre Estado e subalternos, excluídos do processo de formação da cidadania.