[an error occurred while processing this directive] Para além da soberana crueldade, uma utopia possível
Sérgio Telles
Resenha de Jacques errida, !stados"da"alma da psican#lise " $ impossível para além da soberana crueldade, S%o Paulo, !scuta !ditora, &''(, (') p*
!m +ulho de &''', Paris, (&' psicanalistas de diversos países, pertencentes -s mais variadas correntes e institui./es reuniram"se num grande encontro chamado 0!stados 1erais da Psican#lise0* !sse nome deriva de epis2dio da hist2ria 3rancesa, dos momentos que antecederam a Revolu.%o, quando o rei convoca uma assembléia, chamada de 0!stados 1erais0, onde representantes da sociedade d%o conta do que nela ocorre* !la se trans3orma na 4ssembléia 5onstituinte, que ali+a o pr2prio rei do poder, detonando o gatilho da Revolu.%o*
67"se que a denomina.%o do encontro tem amplas resson8ncias políticas*
$s 0!stados 1erais0 s%o um desdobramento natural do espa.o transinstitucional 05on3rontation0, criado por René 9a+or e que, por (' anos :(;<="(;>=?, teve importante papel no ambiente 0psi0 3ranc7s*
9omento culminante deste encontro em Paris 3oi a con3er7ncia pronunciada por Jacques errida, errida, reconhecidam reconhecidamente ente o mais importante importante @l2so3o @l2so3o da atualidade, atualidade, cu+a obra é intimamente ligada - psican#lise e muito di3undida pela grande mídia internacional sob o r2tulo da 0desconstru.%o0, construto te2rico que causa grande pol7mica ainda ho+e nos campi norte"americanos*
$ tema central desta con3er7ncia " agora publicada " é o problema do mal e suas mani3esta./es nas rela./es humanas e suas organiAa./es sociais*
errida considera inicialmente como é inelut#vel a eBist7ncia do mal na humanidade, sendo irrealístico querer neg#"lo ou suprimí"lo* C necess#rio contar com ele e saber en3rent#"lo* Se, em tempos anteriores, o mal era compreendido em termos religiosos, isso n%o mais é possível* Da atualidade, o Enico discurso capaA de en3rent#"lo, dimension#"lo e entend7"lo é o discurso psicanalítico* Freud mostrou como o mal que eBiste na ess7ncia do homem é conseqG7ncia de uma das puls/es que regem seu destino, é mani3esta.%o de T8natos, a puls%o de morte, que se evidencia em nível individual ou inter"relacional como sado"masoquismo :no praAer em 3aAer so3rer, no praAer em so3rer? e, como n%o poderia deiBar de ser, se in@ltra em suas organiAa./es e institui./es sociais, como o !stado, sob a 3orma de uma puls%o de poder, que se eBerce como crueldade e soberania* !Bemplo cabal da crueldade soberana do !stado é a pena de morte, contra a qual errida tem publicamente lutado* iA erridaH 0Se h# um discurso que poderia, ho+e em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto pr2prio, esse é o que se chama, de mais ou menos um século para c#, psican#lise0:p*;?*
! é +ustamente aí, onde se esperaria a contribui.%o 3undamental da psican#lise para en3rentar esse problema que desde sempre aIige a humanidade, que errida constata a aus7ncia da psican#liseH ela se omite*
!ssa omiss%o 3aA errida ressaltar uma quest%o 3undamentalH se h# uma grande resist7ncia do mundo - psican#lise :o que é conhecido por todos, n%o é nenhuma novidade?, é preciso reconhecer que ela " por sua veA " resiste ao mundo e a si mesmo*
$ mundo levanta contra a psican#lise o generaliAado a3errar"se a uma concep.%o da realidade humana centrada na consci7ncia, da qual decorre " por eBemplo " a idéia de soberania* !ssa soberania, conceito t%o carregado de sentidos +urídicos e políticos re3erentes ao 3uncionamento autnomo do estado, de seu poder 0sem limites0 e 0independente0, diA respeito a uma vis%o do ser humano que presume autonomia e onipot7ncia da pessoa ou dos grupos sociais por ela compostos, como o !stado* !les :pessoa ou !stado? goAariam de liberdade, haveria o primado da vontade eg2ica e da intencionalidade consciente* !ssa concep.%o se articula em modelos positivistas da ci7ncia, nas elocubra./es acad7micas, hermeneuticas e @los2@cas, levando a 0conceitos e pr#ticas arcaicas do ético, do +urídico e do político0 :pg* (K?, ainda totalmente dominados pela l2gica consciente que n%o leva em considera.%o a descoberta 3reudiana do inconsciente* Seria, pois, uma concep.%o insustent#vel depois do aparecimento da psican#lise* iA erridaH 0Tal soberania, o primeiro gesto da psican#lise teria sido o de eBplic#"la para dar conta
de sua inelutabilidade, ao mesmo tempo pro+etando desconstruir sua genealogia " que também passa pelo assassinato cruel0 :p*(*
Se o mundo resiste 3orte e persistentemente - psican#lise, erguendo contra ela as concep./es baseadas na consci7ncia como a soberania, os modelos positivistas e espiritualistas, os aBiomas meta3ísicos da ética, do direito e da política, ela n%o toma o 0primeiro gesto0 mencionado acima, n%o as 0desconstr2i0 como deveria* !mbora reconhecendo os aspectos arcaicos e equivocados destas concep./es resistenciais que o mundo lhe o3erece, a psican#lise n%o se disp/e - luta, n%o a analisa e 0essa resist7ncia é também uma resist7ncia a si pr2pria0 :pg (* Lsso porque, diA errida, a psican#lise resiste ao mundo e a ela mesma* iA eleH 0:***? :h#? a resist7ncia ao mundo de uma psican#lise que resiste a si pr2pria, que se dobra em si mesma para resistir, se assim posso diAer, para se inibir ela mesma, de maneira quase auto"imunit#ria0* :p*()?
Da verdade é contra essa psican#lise que resiste ao mundo e que se inibe a si pr2pria que responde, de certa 3orma, a convocat2ria dos 0!stados 1erais0, o que d# ao encontro de Paris seu de@nitivo recorte político :p*(?*
Da atualidade, vivendo a sociedade grandes trans3orma./es geradoras de perpleBidades, muito se esperaria do pensamento psicanalítico e é +ustamente ai quando se evidencia seu sil7ncio* iA erridaH 0S%o muitas as coisas a prop2sito das quais, se n%o me engano, a psican#lise como tal, em seus discursos estatut#rios e autoriAados, mesmo na quase totalidade de suas produ./es, ainda pouco disse ou quase nada teve a diAer de original* Lsso onde é dela que se espera a resposta mais especí@ca, na verdade a Enica resposta apropriada0 :p*(;?*
5omo um eBemplo de que nem sempre 3oi assim, o autor lembra 05onsidera./es atuais sobre a guerra e a morte0 e 0Porque a guerraM0, títulos de Freud de (;( e (;=&* !ste Eltimo é uma correspond7ncia trocada entre Freud e !instein, a convite da institui.%o precursora da atual $rganiAa.%o das Da./es Nnidas :$DN?, a impotente 0Sociedade das Da./es0, que, -quela altura, inutilmente tentava impor uma paA mundial* Daquela correspond7ncia, ambos, Freud e !instein, estabelecem o irreversível da puls%o de morte, da crueldade e da necessidade de se de3rontar com ela, do saber lidar com ela* ! é +ustamente aí, ao 3alar da 0crueldade0, ou se+a, das repercuss/es sociais da puls%o de morte, de sua import8ncia nas guerras e na destrutividade, que a argumenta.%o de Freud, se revela 0ao mesmo tempo a mais política e, em sua l2gica, a mais rigorosamente psicanalítica0 :pg <(?*
4o en3atiAar como Freud, ao 3aAer declara./es eBtremamente políticas, n%o abre m%o do rigor analítico, pelo contr#rio, utiliAa"o para entender a política, errida tenta destruir a resist7ncia que tem sido mantida pelos psicanalistas, que, em nome da neutralidade e do comportamento cientí@co, advogam como incompatível qualquer enga+amento político da psican#lise*
Para errida, é claro que as idéias psicanalíticas, que se organiAam numa l2gica pr2pria, devem contribuir para o advento de uma nova ética, um novo direito e uma nova política* !las traAem elementos imprescindíveis e valiosos para a compreens%o e a resolu.%o dos novos problemas que a sociedade e a hist2ria n%o param de produAir em 3un.%o dos desenvolvimentos técnico"cientí@cos e das crises econmico"sociais, geradores de traum#ticas guerras, popula./es em migra./es 3or.adas, conIitos étnicos, abusos policiais e militares, novas con@gura./es da 3amília humana, etc*
!m sua correspond7ncia com !instein, aqui eBtensamente comentada por errida, Freud aconselha a n%o se alimentar ilus/es 3rente a irrevog#vel eBist7ncia das puls/es de 2dio e destrui.%o* C preciso lev#"las sempre em conta e saber lidar com elas de 3orma indireta, sem ter a pretens%o de eBtirp#"las, como alguns regimes utopicamente plane+aramH 0Se a puls%o de poder ou a puls%o de crueldade é irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios :***? ent%o nenhuma política poder# erradic#"la0 :p*=?*
Freud salienta que n%o h# direito sem poder :3or.a, viol7ncia?, como atesta 09acht und Recht0, primeiro título pensado por Freud para aquele seu teBto* !stabelece, assim, a di3eren.a entre a 3or.a :ou a viol7ncia? necess#ria para a cria.%o e a imposi.%o da lei, e a crueldade " que pertence a outro domínio*
Oembra Freud ainda que, além da irrevog#vel realidade humana da puls%o de morte, h# outra realidade que n%o pode ser ignorada " a também irrevog#vel desigualdade inata dos seres humanos, que os divide em duas classeH por um lado, as massas dependentes por outro, os líderes que as comandam* Realisticamente, Freud diA que esses líderes devem ser treinados " psicanaliAadosM " para que possam eBercer da 3orma mais adequada o poder, sem aceder - tenta.%o da crueldade*0Seria, pois, necess#rio educar uma camada superior de homens de espírito independente, capaAes de resistir - intimida.%o e cuidadosos da verdade,
para que diri+am as massas dependentes* 5laro que o !stado e a Lgre+a tendem a limitar a produ.%o de tais espíritos0 :p*<
errida aponta duas vertentes signi@cativas e problem#ticas para o advir do novo tempo, dessa 0progressividade e racionalismo desassombrado0, das 0novas OuAes para nosso tempo0 :p*<*
4 primeira leva em conta que a psican#lise n%o pode condenar, reprimir ou censurar a agress%o e a destrutividade, por sab7"las constitucionais e ter por ob+etivo sua compreens%o e an#lise, cabendo assim a outros campos " a +usti.a, a ética e a política " este eBercício, que " entretanto " deve ser praticado levando em conta o saber psicanalítico*
iA eleH 0C nesse lugar di3ícil de cingir :***? que a trans3orma.%o por vir em ética, direito e política deveria levar em conta o saber psicanalítico :o que n%o quer diAer que se busque nisso um programa?0 :p* <;">'?* Por outro lado, é necess#rio que a comunidade analítica passe a se interessar pela coisa pEblica, especialmente pelo direito, a+udando"o a elaborar as modi@ca./es em suas leis, para melhor eBercer sua 3un.%o regulamentadora dos novos e inesperados problemas produAidos por uma sociedade em permanente evolu.%o*
4 segunda é a import8ncia do enga+amento dos psicanalistas na luta contra a guerra e a crueldade dos estados* 5omo Freud en3atiAa, n%o se pode negar as dualidades pulsionais, sem as quais a vida n%o poderia eBistir* 9as ao a@rmar isso, Freud luta pelo direito de viver* ! ao de3end7"lo, implicitamente condena a guerra e a pena de morte enquanto eBpress%o da crueldade do estado soberano* Freud sustenta que o paci@smo tem raíAes org8nicas, constitucionais* !ssa a@rma.%o, que pode surpreender a alguns, é conseqG7ncia l2gica da eBist7ncia da irre3ut#vel puls%o de morte :puls%o agressiva ou destrutiva?, com a qual somos todos dotados de 3ormas di3erentes e cu+o mane+o teremos de praticar de 3orma singular*
errida, ao en3atiAar, mais uma veA, a absoluta necessidade da presen.a dos conhecimentos psicanalíticos nas 3ormula./es e na pr#tica da política, da ética e da +usti.a, sublinha a radical estranheAa da puls%o de morte ou agressiva, que desa@a toda e qualquer economia, desde a macroeconomia dos estados, passando pela micro"economia doméstica, até chegar ao que Freud chama de economia psiquicaH 0 Pode"se acreditar que a economia é desa@ada pela especula.%o dita mitol2gica
sobre a puls%o de morte e sobre a puls%o de poder, portanto sobre a crueldade, como sobre a soberania* Da puls%o de morte :**? pode"se recohecer, com e3eito, uma apar7ncia de aneconomia :aus7ncia de economia?* ! o que é mais aneconmico, dir"se"#, do que a destrui.%oM ! do que a crueldadeM0 :p*>=?*
errida termina sua con3er7ncia estabelecendo tr7s tare3as a serem assumidas pelos 0!stados 1erais0, com o intuito de estabelecer no 3uturo um novo período iluminista, uma nova 4u3Qlrung onde o saber psicanalítico é imprescindível*
4 primeira tare3a, 0constatativa0 :da ordem do saber te2rico? , é 3aAer com que a psican#lise n%o se a3aste dos outros saberes e neles atueH 0:***? a psican#lise poderia no 3uturo levar seriamente em considera.%o, para ter nisso uma conta rigorosa, como Freud prescrevia, ele pr2prio, a totalidade do saber, em particular saberes cientí@cos que a mantem - borda do psíquico supostamente puro :***?, mas também as muta./es técnocientí@cas que lhes s%o insepar#veis0 :p*>*
4 segunda, 0per3ormativa0 :da ordem do 3aAer possível?, 0a psican#lise tem de tomar suas responsabilidades, inventar ou reinventar seu direito, suas institui./es, seus estatutos, suas normas, etc* Suponho que voc7s :os que participam dos !stados 1erais? este+am aqui por isso0 :p*>*
4 terceira e Eltima, errida poeticamente apela para que n2s psicanalistas trancendamos os impositivos constatativos e per3ormativos e invistamos num 0para além0, acreditemos na possibilidade deste 0para além0 que se con@gurar# na medida em que o saber psicanalítico possa ser integrado nos diversos campos que organiAam a vida em sociedade : o +uridico, o político e o ético?*
5aso esse 0impossível0 se torne possível, seria o advento daquilo que chama de 0a democracia que est# por vir0, seria a realiAa.%o de uma utopia possível*
urante muito tempo, se diAia que o uso da psican#lise para a compreens%o dos 3enmenos sociais seria um erro metodol2gico, uma redu.%o descabida, um equívoco " na melhor das hip2teses " ing7nuo* Tal ditame vinha tanto da pr2pria psican#lise, como de uma sociologia que supervaloriAava o econmico* $ que errida diA, com todas as letras, é que, atualmente, n%o é possível propor qualquer pro+eto de compreens%o sociol2gica e antropol2gica, qualquer 3ormula.%o ética,
+urídica ou política, sem levar em conta o saber psicanalítico* !, para tanto, a psican#lise n%o deve se omitir*
4o creditar grande esperan.a no acontecimento dos 0!stados 1erais0 para o 3uturo n%o s2 da psican#lise :quando 3aA quest%o de reconhecer o mérito de René 9a+or e !liAabeth Roudinesco na sua consecu.%o?, o autor eBplicitamente critica as institui./es o@ciais que supostamente deveriam representar a psican#lise, mas que se perdem em estéreis +ogos de poder intra"institucional e eBtra"institucional* !sse é o problema de toda e qualquer institui.%o e, no caso da institui.%o psicanalítica mais o@cial, a LP4 :Lnternational Pscoanalitic 4ssociation?, o problema se instalou com o pr2prio Freud, na medida em que autoriAou a 3orma.%o de um 5omit7 Secreto que e3etivamente detinha ao poder dentro da associa.%o que se inaugurava e que se propunha democr#tica*
Por essa raA%o, errida nos conclama a inventarmos novos modos de agruparmo" nos, modos que nos a3astem da psicologia do grupo e da revivesc7ncia do 3antasma 3amiliar, possibilitando a cria.%o de um 0para além0 da institui.%o* C esse o sonho dos 0!stados 1erais0*
C neste sentido que diA taBativamente erridaH 0Tanto quanto aquela do 5omit7 secreto, a cena da LP4 é essencialmente incompatível com uma idéia de !stados 1erais0 :p*K&?*
Resenha publicada na revista P!R5NRS$, no* &< " &o* semestre &''(
Sergio Telles !"mailH setellesuol*com*br