C e n t r o d e T r a d i ç õ e s P o p u l a r e s P o r t u g u e s a s
Encantamentos, ncantamentos, milagres e outros out ros prodígios pro dígios Os anim anim ais das noss as lendas lendas
Maria de Lourdes Cidraes
Lisboa 2013
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Encanta Encantamentos, mentos, milagres e outro s pr odígios Os animais animais d as noss as lendas lendas
Maria de Lourdes Lourdes Cidraes (CTPP / FLUL) De todos os géneros da narrativa tradicional a lenda é o que tem suscitado maior discussão teórica, não existindo, ao contrário do que se verifica com o romanceiro e o conto, tipologias internacionalmente aceites ou catálogos gerais, mas apenas de âmbito
nacional ou regional. No entanto, alguns parâmetros parece parece serem consensuais: - género narrativo - estrutura simples ou mesmo fragmentária da narrativa - carácter extraordinário dos acontecimentos acontecimentos narrados - localização da acção no tempo e no espaço - afirmação da veracidade ou da verosimilhança da história narrada Características que podem ser sistematizadas numa definição, necessariamente redutora porque não considera as inúmeras variações e desvios que caracterizam um género literário de fronteira, difícil de delimitar sobretudo em relação ao conto: A lenda é uma narrativa breve, em que são narrados acontecimentos extraordinários, apresentados como verdadeiros ou verosímeis e situados no espaço e no tempo.
A esta definição base podem ainda ser acrescentados acrescentados outros traços definidores: - predomínio da função informativa sobre a intenção doutrinária ou moral - utilização de procedimentos de atestação de veracidade: discurso na 1ª pessoa, datação e referências geográficas precisas e identificação da fonte da informação, geralmente um parente próximo ou um vizinho. - dupla origem, popular e erudita, tornando-se difícil determinar o processo evolutivo: tradicionalização de narrativas de origem não popular incluídas em crónicas, textos hagiográficos, etc., ou apropriação, pelo texto escrito, de narrativas orais e tradicionais. As diferenças entre narrativas que compõem o corpus vastíssimo das lendas portuguesas justificam a sua divisão em grandes categorias, com características
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antologias já publicadas, prefere-se actualmente uma classificação temática, já ensaiada por Alda e Paulo Soromenho e por Fernanda Frazão 1 e adoptada nas duas bases de dados de literatura oral portuguesa, o Arquivo das Lendas Portuguesas ( APL), do Centro de Estudos Ataíde de Oliveira (C.E.A.O.) da Universidade do Algarve, já em consulta online 2, e o Arquivo Digital de Literatura Oral e Tradicional Tradicional (ADLOT) do Centro de Tradições
Populares Portuguesas “Prof. Manuel Viegas Guerreiro” (CTPP) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em preparação 3. As grandes categorias das lendas portuguesas (classificação do ADLOT): 1 – Lendas sagradas
Uma das mais importantes categorias do lendário português, as lendas sagradas abrangem o vastíssimo corpus das lendas cristãs que relatam episódios da vida de Cristo, da Virgem e dos Santos e a sua intervenção no mundo dos homens, manifestada em inúmeros milagres e aparições e ainda em fenómenos extraordinários associados a imagens milagrosas e à construção de ermidas, igrejas e mosteiros. O seu grande número e difusão e o registo familiar e afectivo das narrativas traduzem uma relação de proximidade característica da religiosidade popular. Pela sua natureza devocional e religiosa e por se inserirem na esfera do sagrado e estarem associadas a uma religião, distinguem-se das outras lendas de seres e forças sobrenaturais, que se agrupam na categoria seguinte. Devem igualmente incluir-se nesta categoria narrativas lendárias referentes a outras religiões, nomeadamente cultos pré-cristãos. Contudo, embora a tradição oral portuguesa conserve vestígios desses cultos, muito raramente se organizam em pequenos núcleos narrativos que dificilmente podem ser considerados lendas. 2 – Lendas de forças e seres sobrenaturais
O
medo
do
desconhecido
e
a
necessidade
de
explicar
fenómenos
incompreensíveis incompreensíveis dominaram desde sempre a imaginação dos homens. Neles enraízam o sentimento religioso e a crença em divindades temidas ou tidas por protectoras, mas também a crença numa grande diversidade de seres e forças sobrenaturais – monstros, gigantes, diabos, fantasmas, sereias, mouras encantadas, etc.. A sua diversidade e permanência e o grau de crença que mantém justificam a sua elevadíssima presença na literatura tradicional portuguesa.
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apresentados como verídicos e situados no tempo e no espaço. Podem evocar grandes vultos da história nacional e acontecimentos que pelo seu carácter extraordinário entraram no imaginário da nação, como Nuno Álvares Pereira e a batalha de Aljubarrota ou D. Sebastião e o desastre de Alcácer Quibir, ou recordar figuras e episódios ligados à história das populações locais, sendo, nestes casos, frequentemente de natureza etiológica, explicando a origem de um monumento, de um topónimo, de uma linhagem familiar, etc.. 4 – Lendas etiológicas
Agrupam-se nesta categoria as narrativas lendárias que procuram explicar a origem do Homem e do Universo, dos animais e das plantas, dos astros e de outros fenómenos naturais, de um costume de origem desconhecida, dos nomes de lugares e povoações, etc.. 5 – Lendas iconográficas
Incluem-se nesta categoria as lendas associadas a representações iconográficas na área da heráldica (escudo nacional, armas de cidades e vilas, brasões de famílias) ou da emblemática religiosa e ainda aquelas que procuram interpretar um registo iconográfico de significação desconhecida. O texto das lendas, que engloba todas as versões e variantes conhecidas, apresenta uma estrutura narrativa simples e um pequeno número de personagens. Entre estas surgem os animais que, e ao contrário do que se verifica nas fábulas e nos contos de animais, não desempenham a função de protagonistas mas de adjuvantes ou
oponentes de outras personagens, homens, deuses ou demónios. Que animais povoam as nossas lendas? Podemos distinguir dois grandes grupos: 1 - Bestiário fantástico 2 - Animais da fauna de Portugal Portugal (domésticos e selvagens) selvagens) Note-se a ausência de animais exóticos em narrativas que se caracterizam pela sua inserção no espaço, delimitado, no corpus das lendas em análise, ao território de Portugal continental e aos arquipélagos da Madeira e dos Açores. 1
Bestiário fantástico
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no mundo que o cerca: estranhos seres híbridos, dragões com rosto humano e serpentes com cabeça ou cabeleira de mulher (Lenda da Casa das Figuras, A Mulher-cobra, Lenda da cobra com cabeça de mulher , …), um cão gigantesco que ninguém sabe de onde
surge ou uma cabra com olhos de fogo, ambos encarnações do demónio que vêm surpreender os homens em lugares desertos e assombrados (O medo do Alto do Piloteiro, A cabra que tinha olhos de fogo), e ainda, restritos ao imaginário regional e conservando
um razoável grau de credibilidade, o Cavalum da Madeira, que invade o espaço da noite abrindo as suas imensas asas negras ( Lenda do Cavalum ,) e a Zorra Berradeira da serra algarvia, que ninguém consegue descrever e desperta o temor no coração daqueles que escutam o seu berro tremendo ( Lenda da Zorra de Odelouca ), ser fantástico que Carlos Porfírio, pintor e etnógrafo nascido em Silves, imaginou num dos seus quadros sobre os encantamentos do Algarve.
Fig. 1 A Zorra Berradeira Carlos F. Porfírio 1962 Museu de Faro
Raramente reconhecemos nas nossas lendas, evocados apenas num número restrito de narrativas quase esquecidas na tradição oral, os antiquíssimos animais míticos que povoam o imaginário universal e que remetem para antigas crenças pagãs e judaicocristãs: a serpente de sete cabeças, símbolo do perigo que ameaça o homem que ousa enfrentar o desconhecido e que a tradição clássica representou na mítica Cila, guardiã da entrada do Oceano Atlântico, a infeliz ninfa transformada em terrível monstro de mortíferas cabeças, vingando a sua desdita com a destruição dos navios que se aproximassem do
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terrível combate celestial, lançando-a para os abismos da Terra, confronto tantas vezes representado na arte cristã, desde as iluminuras dos Beatus medievais e das esculturas dos pórticos das igrejas românicas – onde a serpente/dragão figura como defensor da entrada no espaço espaço sagrado do templo cristão – até aos inúmeros retábulos espalhados espalhados por capelas e altares de toda a cristandade. S. Miguel é aquele que protege o povo de Deus do mal e do pecado e aquele que virá virá pesar as almas, separando os justos dos pecadores no final dos tempos 4. Em Portugal podemos destacar, pela sua qualidade artística, os notáveis óleos da igreja do Mosteiro de Tarouca, do grande pintor Vasco Fernandes, e da igreja do Menino Deus, de André André Gonçalves, pintor régio de D. João V 5.
Fig. 2 S. Miguel Vasco Fernandes Séc. XVI Igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca
Fig. 3 S. Miguel André Gonçalves c. 1730 Igreja do Menino Deus de Lisboa
Uma curiosíssima lenda açoreana recupera o episódio bíblico da luta do Arcanjo contra o Demónio, transladando-a para a época moderna e para a ilha que de S. Miguel tomou o nome: andando D. Pedro IV a caçar, montado no seu cavalo branco e de lança na mão, perseguindo um animal que o atraía para um inesperado precipício, o Arcanjo S. Miguel apareceu milagrosamente e agarrando as rédeas da montada do rei deteve a sua infernal correria, assim vencendo, de novo, o Demónio que tomara aquele disfarce animal
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toponímica que explica o curioso nome de um lugar situado próximo de Santa Bárbara, no distrito de Ponta Delgada, o vale do Salto do Cavalo. A tradição açoreana acrescenta ainda que a estátua de S. Miguel, que se encontra hoje face à Câmara Municipal da capital da ilha, teria sido encomendada pelo monarca em acção de graças pelo seu salvamento. Nesta escultura, o Arcanjo enverga vestes “à romana”, convenção artística recorrente na época. A posição de descanso, de espada apontada para o chão, a ausência de qualquer representação do Diabo afastam a estátua de Ponta Delgada da iconografia tradicional do Arcanjo que apenas é identificado por duas grandes asas, podendo-se colocar a hipótese de um eventual aproveitamento de uma escultura anterior 6
.
Fig. 4 Estátua de S. Miguel Ponta Delgada Açores
Nos textos bíblicos, a Serpente e o Dragão têm idêntico significado simbólico enquanto figurações do Demónio. É sob a forma de um monstro híbrido, com corpo de
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lendas portuguesas (Lenda da serpente de sete cabeças ). No entanto, a cobra é um animal que invade o espaço das lendas de forças e seres sobrenaturais , quase sempre como forma aparente de encantados ou metamorfose de outras entidades sobrenaturais, frequentemente sob o aspecto de um ser híbrido, ostentando, tal como num interessante desenho de Francisco Holanda sobre as idades do mundo
8
, cabeça ou cabeleira
feminina, assim se sublinhando a duplicidade atribuída à mulher, descendente de Eva, a A moura da Ponte Ponte de Aradeira, Aradeira, A cisterna da Torre Torre de Dona Chama, …). grande sedutora ( A
Este significado demoníaco da serpente, que a exagese bíblica estendeu à mulher descrita como instrumento de perdição, persiste no imaginário popular, reforçado pelo medo generalizado que este animal inspira. Reconhecemo-lo em crenças mantidas ao longo dos tempos e em contos tradicionais que reflectem esses instintivos temores. Contudo, e ao contrário de outros encantamentos em animais igualmente repugnantes ou temidos como o sardão gigante, a zorra berradeira ou o cão gigantesco, raramente encontramos esta conotação demoníaca nas lendas de cobras. Efectivamente, se a mulher-cobra pode surgir excepcionalmente como emanação do mal ( O Pego da carriça ) A mulher-cobra), ela é, quase sempre, apresentada ou como sua involuntária agente ( A
enquanto vítima de um trágico destino de que pretende libertar-se, procurando apenas, com sedutoras promessas, conseguir o fim do seu encantamento. As lendas de mouras encantadas em cobras constituem o núcleo central desta classe de lendas. O beijo proposto pela serpente como exigência de desencantamento não é um amplexo de morte mas prova qualificadora que permite a revelação da realidade que se oculta sob as formas aparentes e o acesso ao amor, simbolizado pela bela moura, e ao conhecimento, representado pelos tesouros recebidos ( A mina de Dona Mirra, A mina de Bolideira, O rochedo da moura, … ).
No corpus lendário português, encontramos ainda a serpente com asas , de dimensões extraordinárias, que se caracteriza por uma ambivalência significativa,
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A tradição oral da região de Leiria conserva duas curiosas versões da lendária luta de S. Jorge contra o Dragão 9. Todos conhecemos a bela narrativa, acrescentada tardiamente à hagiografia do santo, em que o jovem oficial romano, que foi martirizado no tempo de Dioclesiano, teria enfrentado sozinho, com a sua lança e o seu cavalo branco, o terrível dragão que assolava a região de Silene, na Líbia, dizimando os rebanhos e exigindo da população o terrível tributo de uma donzela. A sorte recaiu sobre a filha do rei e é o valoroso oficial romano quem vai salvar a princesa, numa aventura em que sagrado e profano se sobrepõem e que se tornará tema recorrente na arte europeia, tanto no Oriente, onde S. Jorge, “o mártir”, desde cedo foi santo de particular devoção, como nos reinos cristãos do Ocidente. Talvez uma das mais belas representações na pintura ocidental seja o óleo quinhentista do pintor florentino Paolo Uccello
10
. Nesta lenda
conjugam-se os dois significados simbólicos do dragão: a besta aniquilada pelo herói, isto é, o Mal (ou o paganismo), vencido pelo Bem (ou a Igreja de Cristo), mas também o vigilante guardião de um tesouro que é preciso conquistar. A vitória sobre o dragão é uma prova qualificadora que o herói tem de vencer no árduo caminho do seu próprio aperfeiçoamento. Tal como se verifica com a lenda açoreana de S. Miguel Arcanjo, as duas narrativas lendárias recolhidas na Beira Litoral (Lenda de S. Jorge e o Dragão e Lenda do monstro de Aljubarrota), constituem dois interessantes exemplos de apropriação nacionalista de
uma conhecida tradição do imaginário cristão. Em ambas a acção é transferida para os campos de Aljubarrota. Na primeira, o combate dá-se no tempo do domínio romano na Península Ibérica. O herói comanda as legiões estacionadas no ocidente da antiga Lusitânia onde um gigantesco dragão assolava os campos atacando os soldados. E tal como na lenda original, o santo guerreiro, montado no seu cavalo branco, vai enfrentar sozinho o monstro, matando-o com a sua lança. Na segunda lenda, a acção decorre no reinado de D. João I, no mesmo local, o campo de Aljubarrota, onde se vai travar a grande
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lança o dragão prostrado a seus pés.
Fig. 5 . S. Jorge e o Dragão Autor desconhecido Escultura de pedra Séc. XIV Ermida de S. Jorge Aljubarrota
Apesar da imagem do dragão ser recorrente na arte portuguesa, são raríssimas as representações que se reportam a narrativas tradicionais, à excepção dos exemplos que foram referidos, a estátua de S. Miguel de Ponta Delgada e a escultura de Aljubarrota. De notar que, em ambos os casos, a sua associação a lendas da tradição oral constitui uma interpretação popular que se afasta, seguramente, da intenção devocional ou gratulatória dos respectivos encomendantes encomendantes.. Um caso particularmente interessante de associação de um baixo relevo a uma narrativa tradicional diz respeito à original decoração da empena da conhecida “Casa das Figuras” da Horta do Ourives, em Faro 12.
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A estranheza das figuras e o desconhecimento do seu significado deram origem a uma lenda que Leite de Vasconcelos apresenta como exemplo de narrativa iconográficointerpretativa. A população local interpretou o baixo-relevo como uma história de castigos
ou punições divinas: culpada de ter morto dois filhos de peito, uma mulher foi condenada a amamentar duas serpentes. Esta leitura, que pode remeter para antigos costumes, traduz igualmente a crença popular, ainda hoje viva, o perigo das cobras virem roubar o leite das mulheres. Desconhece-se o programa iconográfico original, provavelmente proposto pelo encomendante da obra e proprietário da Horta do Ourives, o desembargador Veríssimo Veríssimo de Mendonça Manuel, talvez já com a colaboração do seu neto, Manuel Mascarenhas de Figueiredo Manuel, que tinha dezassete anos à data da morte do avô e que fez decorar, anos mais tarde, a “Torre da Horta dos Cães”, conhecida hoje como Celeiro de S. Francisco, que fora igualmente mandada construir pelo desembargador. desembargador. Uma legenda aposta ao baixo-relevo da “Casa das Figuras” poderá dar-nos algumas pistas sobre a sua significação: Qolfin; Bois Marinos; Alaca lansada as feras; Mostros da Merica; Qolfin. Ou seja: Golfinho; Bois Marinhos ; Alaca lançada às feras; Monstros da América ; Golfinho 13
No entanto, como vemos, a sua leitura é difícil e a mensagem obscura. Sugere a existência de um núcleo narrativo, a história de uma personagem feminina que é lançada às feras. Contudo, a única figura humana, que parece amamentar duas serpentes, tem uma atitude protectora que pode fazer-nos pensar numa divindade feminina, talvez ligada à fertilidade. Tratar-se-à de uma narrativa mitológica ou apenas de uma história lendária? Ou poderá ser antes uma alegoria da América? Hipótese que pode ser sugerida pela referência a “Mostros da Merica” (Monstros da América), que parece ser sinónimo de
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regeneração e mediadores de salvação, parece poder aludir a travessias marítimas e viagens de descoberta. É sob a forma de um golfinho que Apolo alcança as margens de Crisa e é montado num golfinho que Vasco da Gama é representado na Carta do Índico e Extremo Oriente de Bartolomeu Velho (1561) 16.
A hipótese “americana”, indiciada nas alusões ao espaço marítimo e à América na legenda da “Casa das Figuras”, torna-se mais plausível se tivermos em conta as relações do seu proprietário com a nobre família algarvia dos Mascarenhas, com antigas ligações às terras do Brasil, orgulhando-se mesmo de ter como antepassado o célebre “Caramuru” 17
. Uma análise comparativa com a decoração em massa encomendada, na segunda
metade do séc. XVIII, para a ”Torre da Horta dos Cães” pelo neto do desembargador e onde figura o Adamastor representado como um índio, parece trazer novos argumentos a esta leitura da enigmática composição da Horta do Ourives. Os traços, aparentemente negróides, da figura central podem corresponder à falta de conhecimento directo da fisionomia do índio ou funcionar apenas como indicador de exotismo, dispensando o recurso às plumas, emblema da iconografia renascentista da América, que estão presentes no Adamastor da “Torre “Torre da Horta dos Cães” 18. Trata-se obviamente, de uma hipótese de interpretação que só a descoberta do programa iconográfico original poderá, ou não, validar, mas que traduz os mesmos sentimentos de estranheza e curiosidade que terão dado origem à lenda popular recolhida, no final do séc. XIX, da tradição oral do distrito de Faro.
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Fig. 7 “A porca de Murça” Escultura em granito Praça central de Murça
Independentemente da tradição que lhe está associada, a grande porca de pedra é hoje reconhecida como emblema identitário da vila de Murça, figurando no seu brasão.
2 - Animais da fauna de Portugal (domésticos e selvagens) Se o bestiário fantástico é pouco recorrente nas nossas lendas, são pelo contrário, numerosas e diversificadas as espécies de animais domésticos e selvagens que encontramos nestas narrativas: o cavalo, a mula e o burro, o touro, o boi e a vaca, o carneiro e a ovelha, a cabra, o porco, o cão e as aves de capoeira; e, de entre os animais selvagens: o lobo, o urso e o veado, cobras, lagartos e sapos, morcegos, peixes, insectos insectos
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homens. Surgem antes em situações extraordinárias ou ao serviço de entidades e forças sobrenaturais, benfazejas ou malévolas. m alévolas. A descolagem descolagem das suas representações em relação ao plano referencial, e assim a abertura de um segundo nível de significação da ordem do simbólico, não pode ser dissociada da natureza e dos conteúdos das diversas categorias de lendas. Delas dependem, ao contrário da distribuição indiferenciada do bestiário fantástico, a escolha dos animais que nos são apresentados e as funções e características que lhes são atribuídas. Nas lendas históricas , o cavalo ocupa um espaço privilegiado. Duplo do cavaleiro, participa das suas qualidades, força e valentia. O cavalo do herói guerreiro deixa a sua marca prodigiosa na rocha, como o cavalo de Afonso Afonso Henriques na batalha de Ourique ( O monte de S. Pedro das Cabeças ). A Basílica Real de Castro Verde consagra aquela que é
talvez a mais interessante representação do monarca português enfrentando os mouros na batalha de Ourique, montando o seu poderoso cavalo de guerra (fig. 9)
19
.
Em lendas que se integram simultaneamente na categoria lendas sagradas , o cavalo aparece como instrumento de ajuda e protecção divina: montado num cavalo branco, Santiago desce dos céus a combater ao lado dos cristãos ( O cavalo branco montado por S. Tiago, O castelo do mau vizinho ). Estas narrativas lendárias, recolhidas
no norte de Portugal, têm certamente uma remota origem erudita, associada ao culto do Apóstolo e à peregrinação a Santiago de Compostela, tendo importado da Galiza a
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Fig. 8 Santiago combatendo os mouros P M P c. 1730 Basílica Real, Castro Verde
Fig. 9 Afonso Henriques na Batalha de Ourique P M P c. 1730 Basílica Real, Castro Verde
A presença do cavalo repete-se em várias narrativas histórico/sagradas: graças à intervenção de S. Bartolomeu, os cavalos dos mouros detêm-se milagrosamente perante uma barreira invisível (S. Bartolomeu e os mouros ) e por vontade de Nossa Senhora, o cavalo de D. Fuas Roupinho suspende o seu galope sobre o abismo para onde o atraíra o
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Há diversas versões desta conhecida tradição milagrosa, como a Lenda da Senhora do Salto , em que um cavaleiro, fugindo ao diabo que o enganara sob a
aparência de uma lebre, consegue saltar, prodigiosamente, para a outra margem de um profundo rio, ultrapassando a apertada garganta conhecida pelo nome de “ Inferno”. E tal como na lenda da Nazaré, ficaram gravadas na rocha as marcas das ferraduras do cavalo, que se podem observar perto da capela erguida em honra da Senhora do Salto, no magnífico local que hoje é demandado por devotos e turistas atraídos pelas festas que se realizam no 1º domingo de Maio ou pela beleza agreste da paisagem:
Fig. 11 Senhora do Salto Rio Sousa Aguiar de Sousa
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Este episódio é recordado na arca tumular do monarca, que se encontra na igreja do antigo mosteiro de Odivelas mandado construir como ex-voto gratulatório pelo milagre alcançado: A tradição popular situa este extraordinário acontecimento em lugares tão diversos como Monte Real, no distrito de Leiria, e Baleizão, no Baixo Alentejo. Na margem da ribeira que corre perto desta povoação ainda hoje se aponta, gravada na rocha, a marca das patas do grande animal. Na igreja
matriz guarda-se
um óleo muito deteriorado, proveniente
da igreja de S.
Pedro de Pomares mandada construir
por D. Dinis, onde
é recordado este lendário episódio
21
.
De notar que o
desenho do urso, semelhante a um grande cão, testemunha que o ingénuo artista que o pintou já não conhecia as formas de um animal selvagem praticamente extinto nessa 22
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narrativas tradicionais. Duas raras excepções são a lenda histórico/etimológica que atribuí à valentia e ao incitamento de um cão a conquista de Alenquer Alenquer aos mouros, Lenda O Alão quer!, e a Lenda da Dama Pé de Cabra , incluída no Livro de Linhagens do Conde D.
Pedro e glosada em textos literários, onde o enorme cão de D. Diogo Lopes, senhor da Biscaia, é morto pela pequena podenga negra de sua mulher, a dama com pés de cabra que é, obviamente, o próprio o diabo. Nesta lenda, de origem erudita, o carácter sobrenatural dos acontecimentos sobrepõe-se, contudo, à informação histórica, devendo incluir-se, paralelamente, na sub-classe “histórias do diabo”, comum às lendas do sobrenatural e aos contos maravilhosos.
É igualmente excepcional nas lendas históricas a presença da serpente, animal tão frequente nas lendas de forças e seres sobrenaturais , particularmente nas lendas de mouras encantadas. Uma interessante narrativa, de origem erudita como a maioria das lendas históricas, registada numa crónica castelhana medieval
23
e recordada no
Romanceiro, é a impressionante lenda O Túmulo do Conde , constitui um raro exemplo da
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Fig. 15 Arca tumular Igreja de Castro de Avelãs
Fig. 16 Leões de pedra (portão da entrada) Igreja de Castro de Avelãs
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tardiamente se tradicionalizaram. Note-se que a categoria lendas históricas é aquela que apresenta menor número de textos e também aquela que conserva uma menor vitalidade na tradição oral, à excepção das lendas toponímicas, e um menor grau de credibilidade. Poucos recordam estas “antigas histórias” que já não são objecto de crença. Hoje em dia verifica-se, em boa hora, um esforço generalizado de recuperação e conservação deste património imaterial, reconhecido como herança cultural de uma região ou de uma comunidade local. Nas lendas sagradas , enraizadas numa forte crença religiosa e assim dispensando as fórmulas de atestação de veracidade recorrentes nas outras categorias de lendas, a indeterminação espacio/temporal dos milagrosos acontecimentos narrados tende a suprimir as balizas cronológicas e a alterar as coordenadas do espaço. A natureza das narrativas – episódios bíblicos ou histórias de aparições e outros milagres – é determinante na escolha dos animais que nelas desempenham a função de emissários da vontade divina e de adjuvantes nas numerosas intervenções de Cristo, de
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Vicente na pintura portuguesa encontra-se hoje no Museu de Óbidos, proveniente da antiga Igreja de S. Vicente da Gafaria.
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Merceana
Uma pequena burrinha consegue pôr a salvo a sagrada família na sua fuga para o Egipto, atravessando áridos descampados ou subindo íngremes encostas, como nas deliciosas lendas O Penedo da Pegadinha e As pegadas da burrinha ou Santa Maria da Pedra de Mua. A acção é situada no território de Portugal e os sinais da passagem da
burrinha são assinalados em diversos lugares. Na última lenda, situada no Cabo Espichel,
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No Milagre de Santo António e a mula , ou Milagre Eucarístico , uma mula, privada de comida durante três dias, recusa a aveia que lhe apresentam indo ajoelhar-se perante a custódia empunhada pelo pregador franciscano, com este prodígio se operando a conversão de um rico mercador. mercador.
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Uma cena semelhante é incluída na iconografia de S. Gonçalo de Amarante. Mas agora os peixes, que emergem das ondas, são os mesmos a que o santo dera de novo vida, depois de pescados, comidos e reduzidos a cabeça e espinhas. Os peixes podem ainda surgir em lendas sagradas/etiológicas que atribuem a um acto milagroso algumas características invulgares destes animais, como é o caso do linguado que ficou com a boca ao lado em castigo de ter troçado de Nossa Senhora (Porque é que o linguado tem a boca torta ).
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Senhor Jesus da Piedade, Elvas
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espaço proibido para desencantar uma bela princesa moura e receber em paga uma
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referências ao local e ao tempo da acção e pela identificação de testemunhas oculares,
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e a Mata do Urso.
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históricas, como encarnação do diabo nas lendas de forças e seres
sobrenaturais e
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