FILOSOFIA E PSICOLOGIA: AS DIFICULDADES DE UMA INTERFACE
João de Fernandes Teixeira Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Carlos
Capítulo 3 do livro “Psicologia: Novas direções no Diálogo com outros campos do saber. Antonio Virgílio Bittencourt Bastos Nádia Maria Dourado Rocha Editora Casa do Psicólogo, 2007 Também disponível na página www.filosofiadamente.org
“Na psicologia há métodos experimentais e confusão conceitual” L. Wittgenstein
Falar das interfaces interfaces entre psicologia psicologia e filosofia filosofia não é tarefa tarefa fácil. fácil. Tanto uma como outra out ra mais mais se apres apresen enta tam m como como agre agrega gados dos de saber saberes es onde onde se mesc mescla lam m mo mode delo loss e metáforas oriundos de outras ciências do que como disciplinas autônomas. Quando o saber filosófico mais próximo da psicologia – a contemporânea filosofia da mente – aborda temas psicológicos como a natureza da mente e da consciência a utilização destes modelos e metáforas torna-se mais conspícua, e com ela, a aproximação entre psicologia, neurociência e filosofia. Ciência e filosofia convergem na filosofia da mente que, ao contrário do saber filo filosó sófi fico co trad tradic icio ional nal,, mist mistur uraa análi análise se conc concei eitu tual al com com resu result ltad ados os empí empíri rico cos. s. Este Este empréstimo inevitável força-nos uma indagação fundamental: teremos chegado, finalmente,
2 a uma situação de diálogo, diálogo, com parceiros parceiros definidos ou estaremos estaremos ainda presenciando presenciando uma mescla indistinguível de conhecimentos? Em outras palavras, terá a psicologia, afinal, adquirido uma real cidadania científica, desvencilhando-se da “enciclopédia filosófica” – que conglomerava ou subordinava todo o conhecimento sob a filosofia, chamando, por exemplo, a física de “filosofia natural”. Poderá a psicologia sair da enciclopédia filosófica da mesma maneira que o fizeram a física, a química e a biologia ao se tornarem disciplinas autônomas? Não se trata, aqui, ao modo positivista, de supor a possibilidade de uma ciência sem pressupostos filosóficos, mas de perguntar pela possibilidade da psicologia se desenvolver, como diria Heidegger 1, “contornando o incontornável”, para se tornar uma ciência, da mesma maneira que hoje podemos fazer biologia sem perguntarmo-nos o que é a vida ou fazer física sem nos questionarmos acerca da essência última da matéria. É isto que nos permite hoje, falar de uma filosofia da física ou uma filosofia da biologia onde nos indagamos pelos fundamentos e pressupostos destas disciplinas sem, entretanto, que estes se confundam com as próprias disciplinas das quais o filósofo fala. Esta é, sem dúvida, uma pergunta ampla e fundamental; uma pergunta pela natureza do objeto da psicologia que teria, historicamente, oscilado entre as idéias de mente, de cérebro e de comportamento. Uma pergunta cuja resposta definitiva ultrapassa o escopo deste trabalho, mas para a qual podemos contribuir com uma primeira aproximação: por não definir seu objeto, defenderemos que a psicologia ainda é dependente da “enciclopédia filo filosó sófi fica ca”” e, mais mais preci precisa same ment nte, e, da heranç herançaa cart cartes esia iana na ou crip cripto to-ca -cart rtes esia iana na2 – o cartesianismo dissimulado. É este que constitui a história secreta dos pressupostos da psicologia; uma longa história da qual podemos aqui focalizar brevemente apenas alguns momentos fundamentais: as terapias (a psicanálise, a terapia cognitivo-comportamental e a psicossomática) a psicologia (e a ciência) cognitiva e, e , finalmente, a neurociência cognitiva. cogn itiva. I
1
Esta não é, na verdade, a expressão autêntica do pensamento heideggeriano. Adaptei-a para os propósitos específicos deste ensaio. 2 O cripto-cartesianismo cripto-cartesianismo é uma expressão cunhada por Bennett & Hacker (2003) para designar o modo específico da herança cartesiana na neurociência cognitiva contemporânea. Falaremos dela na terceira parte deste ensaio.
3 A psic psicol ologi ogiaa nasce nasce de um parado paradoxo xo:: expli explicar car cien cienti tifi ficam cament entee a natur naturez ezaa da experiência subjetiva quando esta precisou ser desterrada do discurso do conhecimento para que este se erguesse em ciência – o mundo da ciência moderna iniciado por Descartes. A modernidade é o primeiro passo em direção a um mundo desencantado, onde se obliteram as figuras míticas e os heróis, para dar lugar a uma concepção de universo apoiada na metáfora do relógio à qual se seguiu a mecânica newtoniana e as explicações físicas baseadas no conceito de força. O melhor representante desta metáfora é o relógio, pois ele nos remete às idéias de interação mecânica (causal) entre partes (peças) e de precisão na contagem (e divisibilidade) do tempo. Mas nesta concepção de mundo não há lugar nem para a vida nem para a mente. A exclusão das causas psíquicas do domínio da ciência é herdeira da dicotomia entre mente e corpo (que mais tarde tornou-se dicotomia entre mente e cérebro) proposta por Descartes no século XVII. Ele foi o pai da medicina moderna ao separar o físico do mental. O físico é o mensurável e orgânico. O mental não tem dimensão, peso ou espacialida espacialidade. de. Ao fundar a medicina, medicina, Descartes excluiu a possibili possibilidade dade de uma psicologia psicologia científica. Tratar da interação entre mente e corpo tornou-se impossível na medida em que o psíquico não pode ser causa de nenhum fenômeno no mundo material. A passagem entre o físico e o mental – a verdadeira dimensão do problema mente-corpo - não nos é cognitivamente acessível no mundo cartesiano. A solução proposta por Descartes era atribuir a um órgão, qual seja, a glândula pineal, a função de interface entre a mente e o corpo, mas esta era uma solução inaceitável, pois não explicava ainda como e porque algo físi físico co poder poderia ia ter ter um dupl duploo pape papel. l. Uma Uma psic psicol olog ogia ia cart cartes esia iana na torn tornaa-se se,, assi assim, m, um umaa psicofísica, ou seja, o estabelecimento de uma correlação entre o físico e o mental – a mesma correlação que encontraremos na psicossomática contemporânea entre grupos de doenças orgânicas e perfis psicológicos. Versões Versões sofistic sofisticadas adas de uma psicofísica psicofísica cartesiana cartesiana podemos encontrar, encontrar, ainda hoje, na neurociência cognitiva. Basta ver os trabalhos de Libet (1985) que comparam o tempo de disparo de uma reação eferente com o tempo de seu registro consciente. Em vez de medir correlações entre sensações e estados mentais podemos agora, graças à sofisticação de nossa instrumentação, medir o tempo de impulsos cerebrais. O paradoxo das conclusões de Libet começam a surgir quando ele deriva deste resultado uma teoria determinista do
4 compor comporta tame ment ntoo – ou seja seja,, usand usandoo um arca arcabou bouço ço conce conceit itual ual carte cartesi sian anoo deri deriva va um umaa conclusão francamente anti-cartesiana, qual seja, a de que somos controlados pelos nossos cérebros. A psicossomática também se deriva de uma visão cartesiana, como apontamos acima. Mas antes de abordá-la precisamos falar de um outro filho pródigo do universo de Descartes que a precedeu no tempo: a psiquiatria. A psiquiatria surge antes da psicologia nas formas do chamado tratamento moral. Pinel e Tuke, os criadores desta nova disciplina médica tentaram definir as primeiras nosologias e as primeiras técnicas para a cura dos insanos. O tratamento moral era uma destas, senão a principal: tratava-se de trazer o doente mental para um controle social e moral; a cura significava “reinculcar-lhe os sentimentos de depen dependê dênci ncia, a, humil humilda dade de,, culp culpa, a, reco reconhe nheci cime ment ntoo que que são são a arma armadu dura ra mo mora rall da vida vida familiar” (Foucault, 1968). O tratamento moral não era nem mental nem físico, submetia-se o doente a duchas ou banhos para refrescar seus espíritos ou ele era colocado numa máquina rotatória que girava, para que o curso de seus espíritos demasiadamente fixos numa numa idéia idéia delira delirante nte fosse fosse recolo recolocad cadoo em movime movimento nto e re-enc re-encont ontras rasse se seus seus circui circuitos tos naturais. A literalidade destas metáforas “refrescar a cabeça” ou “colocar as idéias no lugar” reflete o pano de fundo sobre a qual a psiquiatria nascente surgia: a separação cartesiana entre mente e corpo como um problema não resolvido. Ora, Ora, terá terá este este proble problema ma sido sido resolv resolvido ido na psiqui psiquiatr atria ia contem contempor porâne ânea? a? Existe Existe,, atualmente, uma tensão implícita entre as práticas da psiquiatria organicista e a utilização de diferentes psicoterapias para o tratamento de distúrbios psíquicos. Esta tensão reflete, sem dúvida alguma, a separação cartesiana. O fenômeno endêmico da depressão parece acentuar ainda mais este tipo de conflito, que surge ora de forma aberta, ora de forma camuflada. De um lado existem aqueles que defendem a utilização de fármacos como instrumento para alívio do desconforto psíquico (que se tornaria evitável) e de outro, aquel aqueles es que iden identi tifi ficam cam esta esta prát prátic icaa com “a [subs [substi titu tuiç ição ão]] da cami camisa sa-d -dee-fo forç rçaa e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa”.3 Nos últimos anos há pesquisas sugerindo que o uso complementar destas duas estratégias tem levado a resultados mais rápidos, mais eficientes e mais duradouros no tratamento da depressão. Neste caso, o conflito estaria superado, não fosse a ausência de 3
Ver Roudinesco, 2000, p. 21.
5 uma justificação justificação científica, científica, para além de uma simples simples constatação constatação estatísti estatística, ca, do porque a utilização conjunta destas duas estratégias leva a melhores resultados, evitando, inclusive, a recidiva freqüente. Este tipo de discurso parece, entretanto, traduzir mais um mal-estar entre, de um lado, os defensores da biopsiquiatria e de outro os defensores das talking cures
do que propriamente propriamente uma crença na possibili possibilidade dade de uma conciliação conciliação de estratégi estratégias as
de tratamento. Ora, esta questão não se situa num patamar unicamente científico nem tampouco pode ser decidida pela constatação estatística da superioridade de uma estratégia sobre a outra. Sua formulação correta revela-nos um problema filosófico – a questão da natureza da causação mental - e que é
neste terreno que ela deve ser primordialmente discutida, ou seja,
como uma variante do problema mente-corpo ou do problema da passagem entre o físico e o mental. talking g cures cures – seja O prob probllema ema das das talkin sejam m elas elas psic psican anal alít ític icas as ou cogni cogniti tivo vo--
comportamentais - está na ausência de uma teoria da causação mental. Em outras palavras, a desconfiança, e no limite até a rejeição das psicoterapias pela biopsiquiatria reside no fato de não ter sido formulada, até o momento, uma hipótese consistente acerca de como estas práticas práticas podem afetar/modific afetar/modificar ar a atividade atividade cerebral. cerebral. Estranhamen Estranhamente, te, encontramos encontramos nos trab trabal alho hoss de neur neurob obió iólo logos gos emin eminen ente tess como como Damá Damási sioo (199 (1996) 6) o recon reconhe heci cime mento nto da existência de uma causalidade psíquica, ou seja, de que estados mentais podem afetar o funcio funcionam nament entoo cerebr cerebral, al, mas nenhuma nenhuma justi justific ficati ativa va de como como isto isto se daria daria4. Ou seja, nenhuma explicação inteligível da passagem entre o físico e o mental, o que situaria esta explicação num patamar além das correlações entre sessões psicoterápicas e modificações cerebr cerebrais ais poster posterior iores es consta constatad tadas as por tom tomogr ografi afiaa ou fMRI fMRI (Resso (Ressonânc nância ia Magnét Magnética ica Funcional). Nos últimos anos o problema da causação mental readquiriu grande espaço no cenário da filosofia da mente (Kim, 1997, 1998, Velmans, 2002). Tratamentos como o biofeedback ,
as terapias holísticas e outras formas de intervenção mental sobre pacientes
afetados por distúrbios psíquicos têm provado que a filosofia da mente enfrenta um 4
“A tristeza e a ansiedade podem alterar de forma notória a regulação dos hormônios sexuais, provocando não só mudanças no impulso sexual , mas também variações no ciclo menstrual. A perda de alguém que se ama profundamente, mais uma vez um estado de um processamento cerebral amplo, leva a uma depressão do sistema imunológico a ponto de os indivíduos se tornarem mais propensos a infecções e, em conseqüência direta ou indireta, mais suscetíveis a desenvolver determinados tipos de câncer. Pode-se morrer de desgosto, tal qual na poesia” (Damásio, 1996).
6 problema de duas mãos: não se trata apenas de mostrar como o cérebro pode produzir a mente, mas como esta pode, por sua vez, afetar o cérebro. O efeito placebo, por exemplo, seria um exemplo típico desta forma de intervenção, embora alguns sustentem que a administração do placebo diminui apenas a dor e não os distúrbios orgânicos que a produzem.5 Não há dúvida que a medicação psiquiátrica amortece a angústia e que a intervenção farmacológica encontra-se plenamente justificada quando há risco de suicídio ou iminência de uma situação de violência. A questão que permanece, contudo, é a de porque esses remédios mostram-se, com freqüência, insuficientes para conter uma recidiva ou até mesmo insuficientes para conter crises agudas pelas quais o paciente pode passar – crises que só são evitadas se a sua administração for conjugada com a psicoterapia. Neste caso, resta-nos perguntar que tipo de coadjuvante torna-se a psicoterapia no tratamento psiquiátrico, examinando brevemente como a psicanálise e as terapias comportamentais lidam com o problema da causação mental, a principal herança cartesiana. Psicanalistas tradicionais responderão que só a talking cure desloca os sintomas para depois efetivamente suprimí-los e, assim fazendo, restaura ao paciente a dignidade de sujeito, o retornar à primeira pessoa ou à descoberta do desejo antes ocultado pela despersonalização. O mérito da psicanálise estaria precisamente em deixar de “tratar os pacientes como organismos à deriva, ao sabor das leis naturais” (Schiller, 2003). Embora reconhecendo um papel privilegiado para a causação mental como base das talking cures o ataque de psicanalistas à utilização de recursos farmacológicos parece inconsistente com os próprios escritos de maturidade de Freud, nos quais ele defendia abertamente o sonho de tratar as angústias e outros distúrbios através de medicação, ao afirmar, no Esboço de Psicanálise
, que “o futuro talvez nos ensine a agir diretamente com a ajuda de algumas
substâncias químicas, sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho psíquico [...] Por ora dispomos somente da técnica psicanalítica”.6 5
Velmans (2002), p. 5 Interessante notar, não apenas o compromisso materialista assumido nesta passagem como também um compromisso com o materialismo eliminativo assumido em passagens de O inconsciente e em Para além do afirma que “as deficiênc deficiências ias de nossa descrição descrição do psiquismo psiquismo decerto decerto princípi princípio o do prazer prazer onde Freud afirma desapareceriam se já estivéssemos em condições de substituir os termos psicológicos por termos da fisiologia ou da química”. O materialismo eliminativo é a doutrina que sustenta a provisoriedade da psicologia e a sua progress progressiva iva substitui substituição ção pela neurociên neurociência cia a medida medida em que os termos termos da chamada chamada folk psychology forem substituídos por termos neurocientificos. Esta passagem de Freud poderia com certeza ser atribuída ao casal Churchland, os pioneiros do materialismo eliminativo na filosofia da mente contemporânea. Contudo, Freud 6
7 Poderíamos afirmar que a psicanálise ataca a tradição cartesiana ao tentar mostrar que o mental não é co-extensivo com o consciente. Mas aqui estaríamos encontrando uma (ou mais uma) ambigüidade na obra freudiana: a psicanálise enfrenta o problema da interação mente-cérebro e da causação mental sem resolvê-lo ao sustentar que um sintoma pode se modificar a partir de uma interpretação. O sujeito se definiria pela sua história individual, seja ela consciente ou não. O vivido não teria representação neurológica ou, mesmo que a tenha, ela pouca diferença faz para a remoção de um sintoma. Tudo se Eternal Sunshine of the Spotless Mind passaria como no filme recente de Michel Gondry, Eternal
(Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, EUA, 2004) onde se sugere a possibilidade de apagar memórias traumáticas por uma intervenção neurológica. Como observa um psicanalista brasileiro famoso7, se fizéssemos uma operação neurológica para nos livrar de um trauma, continuaríamos nos lembrando de porque fizemos tal operação operação: no limite, não pode poderí ríam amos os,, por por este este méto método, do, li livr vrar ar-n -nos os do trau trauma ma.. Ou seja seja,, não não é a repr repres esen enta taçã çãoo neurológica da memória traumática que importa para o psicanalista (e nem tampouco para o paciente, neste caso) mas sua dimensão enquanto experiência vivida (o que é na verdade sugerido sugerido por Gondry Gondry como conclusão conclusão de sua obra cinematográ cinematográfica) fica).. Entre o vivido (a experiência individual) e o neurológico haveria um abismo intransponível – uma versão do abismo cripto-cartesiano. Outra ambigüidade da obra freudiana é identificada por alguns de seus exegetas que sustentam a existência de uma clivagem entre “antes” e “depois” de 1920. Haveria o Freud médico e neurólogo neurólogo (que hoje se procura procura recuperar recuperar através da neuropsicaná neuropsicanálise lise de Solm Solms, s, que arrepia os lacanianos) lacanianos) e o Freud da tópica tópica cerebral cerebral abstrata, mais adiante caminhando caminhando para uma teoria da cultura, deixando para trás a neurociência como lócus privilegiado para a explicação psicológica. A crítica veemente à neuropsicanálise parece se voltar contra ela mesma: quanto mais a psicanálise tenta garantir sua cidadania como disciplina autônoma, mais ela parece perder lugar no cenário científico pós-moderno. A tentativa de garantir um espaço próprio para o discurso psicanalítico fora das ciências duras se traduz, sutilmente, um sucedâneo da distinção cartesiana entre mente e corpo na forma de uma diferença abissal entre natureza e cultura. Na forma como ela é freqüentemente colocada ela acaba por nos remeter a uma parece ter sempre evitado enfrentar abertamente o problema mente-cérebro ao longo de sua obra. 7 A referência é a Caligaris (2004)
8 distinção entre biológico e simbólico que se parece à intransponibilidade entre o físico e o mental de que nos falava Descartes. Curiosamente, muitos antropólogos posteriores a Freud tentaram buscar algo parecido com a “glândula pineal de Descartes”, ou seja, algum tipo de liga ligaçã çãoo entr entree a natu nature reza za e a cult cultur uraa que que serv servis isse se de inte interf rfac acee para para supe supera rarr essa essa intransponibilidade: esse seria o papel da interdição do incesto em Levy-Strauss e do aparecimento do cemitério humano em Vercors.8 Voltemo-nos agora, brevemente, para as psicoterapias cognitivo-comportamentais. Esta Estas, s, embo embora ra não não excl exclui uindo ndo tota totalm lmen ente te a inte interv rvenç enção ão farm farmac acol ológi ógica ca,, atri atribue buem m impl implic icit itam ament entee gran grande de peso peso à pala palavr vraa como como inst instru rume ment ntoo para para busc buscar ar a corr correç eção ão da representação do ambiente por parte do sujeito. No caso da depressão, onde elas são mais usadas, trata-se de fazer com que o sujeito livre-se dos chamados “pensamentos negativos automáticos” (PNAs). Ou seja, a terapia cognitivo-comportamental não pode, tampouco, tratar o mental como epifenômeno, pois é de sua alteração que se espera a modificação do comportamento, que, em seguida alterará o ambiente onde ele ocorre, para que este, fechando o ciclo, retroaja sobre o comportamento e assim por diante. Em outras palavras, os aspectos cognitivos e os aspectos comportamentais do sujeito estariam em mútua interação neste tipo de terapia – embora o modo como esta interação ocorre continue sem explicação. Afinal, será a cognição dependente da mudança talking cure e ao no comp compor orta tame ment ntoo ou vice vice-v -ver ersa sa?? Que peso peso deve deve ser ser atri atribu buíd ídoo à talking
comportamento no ciclo retroativo (operante) que se instaura entre o organismo e o meio ambi ambien ente te?? Para Para o beha behavi vior oris ista ta radi radica call a expl explic icaç ação ão peri perife fera rali list sta, a, base basead adaa nas nas contingência contingências/var s/variáveis iáveis ambientais ambientais teria teria um papel predominante. predominante. Mas é preciso preciso notar que uma leitura cuidadosa da obra de Skinner nos revela que este não considera o mental como epifenômeno a não ser na medida em que sua proposta de uma ciência psicológica visa banir o problema da causação mental e, assim, livrar-se da herança cartesiana. Mas banir não é resolver. A teoria skinneriana ainda precisa ser explorada e completada para que se possa vislumbrar como nela ocorreria a interação entre o físico e o mental. mental.9 A psicos psicossom somáti ática ca – da qual qual promet prometêra êramos mos falar falar - parece parece marcar marcar,, igu igualm almente ente,, contornos para esta discussão: se admitirmos sua cidadania como disciplina científica, não 8
Ver Vercors (1954/1984) Les animaux dénaturés Ver o capítulo “ Notas para uma teoria do pensamento no behaviorismo radical” in Teixeira, J. de F. (no prelo). 9
9 podemos podemos mais apostar na inércia causal do psiquismo. Seu aparecimento aparecimento marca um passo histórico importante na medida em que tenta re-inserir o mental no campo de estudos da medicina que estaria se concentrando quase que exclusivamente na fisiologia e na patologia do corp corpo. o. Mas Mas o desa desafi fioo colo coloca cado do pela pela psic psicos osso somá máti tica ca é bast bastant antee clar claro: o: além além de encontrarmos uma relação causal entre fenômenos mentais (como o fez a psicanálise) e entre fenômenos físicos (como faz a medicina tradicional), é preciso encontrar uma relação causal ou uma passagem entre o mental e o físico. A fundamentação da psico-neuroimunologia apresenta as mesmas dificuldades epistemológicas. Schiller (2003) observa que a medicina tradicional tem freqüentemente incorrido no erro categorial categorial de confundir confundir causa com mecanismo. mecanismo. Por exemplo, diz-se que um aumento da freqüência cardíaca é causado pela produção de adrenalina quando este não passa do mecanismo
que leva à taquicardia. A causa se encontra na esfera psíquica e pode ser um
drama existencial ou uma situação de medo. As causas psíquicas ficam, porém fora do domínio da ciência e nesta medida a intervenção psiquiátrica nos mecanismos bioquímicos da angústia ou da depressão depressão limita-se limita-se quando muito a ser um controle do quadro clínico e não um ataque às suas verdadeiras causas. O mesmo ocorre numa série de outros quadros clínicos cuja correlação com causas psíquicas p síquicas já foi constatada estatisticamente: -
irru irrupç pção ão de de herp herpes es caus causada ada pelo pelo str stres ess, s,
-
ocorr ocorrên ênci ciaa de cânc câncer er de cól cólon on e stre stress ss,,
-
inci incidên dênci ciaa de doenç doençaa card cardía íaca ca e dese desesp sper eran ança ça,,
-
taxa taxa de ataq ataque ue card cardía íaco co e dep depre ress ssão ão,,
-
taxas taxas de sobre sobreviv vivênci ênciaa a câncer câncer de mama mama e partic participa ipação ção em grup grupos os de apoio apoio..
Ora, a exclusão das causas psíquicas é uma das mais legítimas heranças cartesianas. No limite, a obra de Descartes Descartes tornou o projeto de uma psicologia psicologia científica impossível ao excluir a experiência consciente do domínio da ciência – ou do domínio do modelo de ciência que se instaurava no século XVII, inspirado pela física de Galileu. Anos mais tarde quando Wundt se lançou à tarefa de fundar uma psicologia científica tropeçou no paradoxo de ter de fazer uma ciência do psiquismo que ao mesmo tempo excluísse de seu escopo a subjetividade. A solução era distinguir entre a “má” e a “boas” introspecção e eliminar a primeira. Um projeto que tinha, contudo, como pano de fundo, a proposta de conciliar o
10 irreconciliável: a experiência subjetiva com um modelo de ciência que a excluía do mundo por tornar este um domínio exclusivo da física. Não Não é à toa toa que que no sécul séculoo XX encon encontr trar arem emos os um umaa plêi plêiad adee de mo movi vime ment ntos os psicológicos que tentaram, de uma forma ou de outra, superar a herança cartesiana. O behaviorismo de Watson, por exemplo, foi uma tentativa de livrar-se do problema da interação entre mente e cérebro tentando, deliberadamente, ignorar a atribuição de qualquer tipo de estatuto ontológico ao mental. O behaviorismo de Skinner, embora muito diferente do behaviorismo metodológico com o qual é indevidamente confundido, tentará fundar uma psicologia na qual o acesso a estados mentais e estados cerebrais seria mais complicado do que o estudo da história de reforçamento dos indivíduos, além do fato de que a mediação de estados mentais poderia ser prescindível na predição do comportamento. Se por um lado, a psicologia skinneriana deu um passo contra o dualismo cartesiano ao recusar a distinção entre mente e comportamento como sucedânea da distinção mente/corpo ela peca, por outro lado, por não conseguir explicar algumas atividades cognitivas humanas fundamentais, como, como, por exempl exemplo, o, nossa nossa capacid capacidade ade de planej planejar. ar. Como Como podería poderíamos mos,, por exemplo exemplo,, explicar nossa capacidade de projetar uma ponte sobre um rio a partir de contingências de reforço? Ou, como explicar os movimentos que fazemos num jogo de xadrez a partir destas? Não estaríamos tornando a explicação psicológica, neste caso, uma tarefa hercúlea? O supos suposto to “des “desga gast stee hist histór óric ico” o” do beha behavi vior oris ismo mo skin skinner neria iano no teri teriaa leva levado do à insurgência dos cognitivistas que proclamaram a revolução cognitiva e também se auto proclamara proclamaram m os únicos a desenvolver desenvolver uma psicologia psicologia verdadeiram verdadeiramente ente pós-moderna pós-moderna.. Mas teriam estes dado um passo em direção à superação da herança cartesiana? A verdadeira heran herança ça cart cartes esia iana na resi reside de na conc concepç epção ão de caus causal alid idad adee que que ela ela insp inspir ira; a; um umaa noção noção tradicional e senso comum de uma causalidade linear que não nos permite vislumbrar uma saída para a interação mente→matéria, confinando-nos em dois mundos distintos onde as relações causais ocorrem entre mente→mente e matéria→matéria. Ou seja, o problema a ser enfrentado consiste em saber como, dado que para cada estado mental existe um estado físico que o produz, como pode o primeiro (a mente) retroagir sobre o segundo (o cérebro)? Produzi Produzirr esta esta explica explicação ção esclarec esclareceri eriaa – entre entre outras outras coisas coisas - porque porque a psicot psicotera erapia pia é necessária além do tratamento psicofarmacológico no caso de alguns transtornos graves: a talking cure
seria responsável por esta retroação. Mas, para isto, é preciso saber como essa
11 retroação é possível, ou seja, é preciso explicar a possibilidade da existência da causação mental, o que requer, por sua vez, uma teoria robusta das relações entre mente e cérebro. Um primeiro passo nesta direção poderia ser dado pela modificação de nossas próprias idéias cotidianas acerca de causalidade. Mas até agora poucas sugestões neste sentido foram apresentadas pela ciência cognitiva e pela filosofia da mente. causalidade circular circular já Idéias como as de, por exemplo, a existência de uma causalidade
sugerida na física e na neurociência contemporâneas (Freeman, 1999, 1999a) parecem oferecer uma alternativa à visão cartesiana e com isto restaurar a possibilidade de uma interação entre mente→matéria. A causalidade circular pode expressar inter-relações entre níveis em uma hierarquia: um evento de nível superior afeta simultaneamente eventos que um nível inferior gerou e que mantém o próprio evento de nível superior. Esta idéia já é utilizada, por exemplo, na física. Haken (1983) relata o caso no qual os átomos excitados por um laser causam uma emissão de luz e esta, por sua vez impõe ordem nos átomos. No caso caso de nosso nosso cérebr cérebro, o, a causal causalida idade de circul circular ar explica explicaria ria a retroa retroação ção de experiê experiênci ncias as conscientes sobre a base cerebral que as produz. No caso específico que discutimos, ela nos expli explica cari riaa a comp comple leme ment ntar arid idade ade (e a neces necessi sidad dade) e) da asso associ ciaç ação ão entr entree fárm fármaco acoss e psicoterapia: esta seria o evento de nível superior que afeta os eventos que um nível inferior gerou (a modificação cerebral ocasionada pelos fármacos) para manter o próprio evento de nível superior (a modificação da vida mental do paciente). Mas a idéia de causalidade circular ainda é vista com muita desconfiança não apen apenas as por por físi físico coss e psic psicól ólog ogos os como como até até mesm mesmoo pelo peloss próp própri rios os epis episte temó mólo logo goss contemporâneos. Nossa concepção de mundo ainda é próxima, cognitivamente, do universo concebido como relojoaria e da física newtoniana, o que faz com que as idéias cartesianas de causalidade e das relações entre mente e cérebro, explicitamente ou não perdurem até nossos dias. Nunca fomos efetivamente pós-modernos. II
A partir dos anos 30 (no século passado) a metáfora do relógio começa a ser substituída pelo computador como máquina dominante na sociedade – uma máquina que,
12 progressivamente vai se tornando a ferramenta principal para a ciência. Surge uma nova metáfora do universo, baseada no conceito de informação. Esta metáfora culminará, nos anos 60, com a revolução cognitiva e com o aparecimento da inteligência artificial. Ambas seriam novas alternativas para a explicação psicológica na medida em que esta seria obtida pela possibilidade de replicação da vida mental humana (ou aspectos dela) através de programas computacionais. Terá a revolução cognitiva mudado o cenário cripto-cartesiano em que se encontra a psico psicolog logia? ia? Uma primei primeira ra respos resposta, ta, de caráte caráterr geral, geral, é inevit inevitavel avelmen mente te negati negativa. va. A digitaliza digit alização ção pressupõe uma concepção de tempo como um fluxo de instantes instantes – uma idéia cartesiana de onde se deriva o universo binário sobre o qual se baseia a ciência da computação contemporânea. Mas precisamos examinar os modelos cognitivos de mente em maior detalhe para fundamentar esta resposta. Nas décadas de 60 e 70 ocorre uma influência mútua entre ciência cognitiva e neurociência – uma influência que se inicia a partir da concepção do cérebro como um computador (a metáfora computacional) e culmina na idéia da mente como o software do cérebro. A noção de uma inteligência artificial como realização de tarefas por dispositivos que não têm uma arquitetura arquitetura nem uma composição biológica e físico-química físico-química igual à nossa nossa abala profundamente profundamente a idéia de que funções funções cognitivas cognitivas responsáveis responsáveis pelo comportament comportamentoo inteligente dependeriam de características específicas dos cérebros vivos. Esta idéia é fundamentada numa doutrina filosófica subjacente à inteligência artificial e à ciência cognitiva dessa época, qual seja, o funcionalismo. Uma noção intuitiva, mas ao mesmo tempo precisa do que é o funcionalismo nos é proporcionad proporcionadaa por Haugeland (Haugeland, (Haugeland, 1993). Ele nos convida a considerar considerar o que está envolvido em um jogo de xadrez, se são as regras do jogo e a posição das peças no tabuleiro ou se é o material, tamanho, etc de que é feito este último. Certamente são as regras e a posição das peças. Pouco importa se o bispo e o cavalo são feitos de madeira ou de metal, se o tabuleiro é grande ou é pequeno. Em outras palavras, o jogo de xadrez tem uma realidade independente do material que utilizamos para fazer as peças e o tabuleiro. Mas não haveria jogo de xadrez se não dispuséssemos de algum material para representar o tabuleiro, as peças, e as regras. Não podemos suprimir inteiramente o material com o qual construímos um tabuleiro e suas peças, mas podemos variá-lo quase indefinidamente.
13 Ademais, as regras e estratégias do xadrez não serão redutíveis ao marfim se as peças forem desse material, tampouco ao plástico se elas forem de plástico e assim por diante.10 Faça Façamo moss agor agoraa um umaa anal analog ogia ia entr entree jogo jogo de xadr xadrez ez e a ment mente. e. A idéi idéiaa do funcionalista é que a mente não se reduz ao cérebro, da mesma maneira que no jogo de xadrez as regras e estratégias não se reduzem à composição físico-química do tabuleiro e das peças. O cérebro instancia uma mente, mas essa não é o cérebro nem tampouco se reduz a ele. Podemos agora perceber porque os pesquisadores da inteligência artificial apoiaram o funcionalismo, pois se tratava de apoiar a possibilidade de replicação mecânica de segm segmen ento toss da ativ ativid idade ade ment mental al human humanaa por por disp dispos osit itiv ivos os que não têm têm a mesm mesmaa arquitetura nem a mesma composição biológica do cérebro. O aspecto mais interessante do funcionalismo é sua característica não-reducionista, do qual podemos derivar a chamada tese da múltipla instanciação (multiple realizability) . De acordo com esta tese, dois computadores podem diferir fisicamente um do outro, mas iss isso não não im impe pede de que que eles eles pos possam sam rodar odar o mesm mesmoo software. Inve Invers rsam amen ente te,, doi doiss comput computad ador ores es podem podem ser ser idên idênti tico coss do pont pontoo de vist vistaa físi físico, co, mas mas real realiz izar ar tare tarefa fass inteiramente distintas se seu software for diferente. A mesma analogia vale para mentes e organismos: um mesmo papel funcional que caracteriza um determinado estado mental pode se instanciar instanciar em criaturas criaturas com sistemas sistemas nervosos completamen completamente te diferentes. diferentes. Um marciano marciano pode ter um sistema sistema nervoso completamente completamente diferente diferente do meu, mas se ele puder executar as mesmas funções que o meu, o marciano terá uma vida mental igual à minha. Isto é uma conseqüência do materialismo não-reducionista: um rádio (hardware) toca uma software); a música e o aparelho de rádio são coisas distintas, irredutíveis uma a música ( software
outra, embora ambas sejam necessárias para que possamos ouvir uma música. Nunca poderemos descrever o que o rádio está tocando através do estudo das peças que o compõem. Os funcionalistas advogaram que sua tese seria um monismo neutro, que poderia abrigar visões opostas, desde que nenhuma delas fosse reducionista. Não há dúvida de que, neste sentido, o funcionalismo foi uma das grandes novidades da filosofia da mente do século XX. Contudo, a idéia de que a mente seria o sofware do cérebro levou à concepção equivocada de que estes se assemelhariam a idealidades matemáticas desencarnadas e 10
Ver Teixeira, (2000), p. 124, f.f
14 portáteis e não à descrição das transformações de um hardware ao longo do tempo – e foi a partir deste momento que o funcionalismo passou a poder ser visto como um sucedâneo do dualismo dualismo cartesiano cartesiano11. Sua Sua vers versão ão mate materi rial alis ista ta base baseia ia-s -see na token-token identity; que sustenta que alguma instância instância de um tipo mental é idêntica idêntica a alguma instância de um tipo físico, sendo que este pode ser o sistema nervoso de um ser humano, de um marciano ou o hardware
de um comput computado ador. r. Neste Neste senti sentido, do, o funcio funcional nalism ismoo poderia poderia igu igualm alment entee ser
interpretado como uma variante do materialismo – mas seria um materialismo/fisicalismo minimalista.12 A inteligência artificial dos anos 70 herda a teoria clássica da representação que começa no século XVII e parte da pressuposição da estranheza do mundo em relação a mente que o concebe - uma estranheza que resulta de uma caracterização da mente como algo distinto e separado do mundo. Neste sentido, a representação tem de recuperar esse mundo do qual a mente não faz parte; é preciso instaurar uma garantia de correspondência com aquilo que se tornou exterior ou externo, seja ela através de um Deus não-enganador (Descartes) ou das formas a priori da intuição e do entendimento (Kant). A ciência cognitiva dessa época, qual seja, o representacionalismo baseado na inteligência artificial desenvolvida nos laboratórios do MIT, herdou estes pressupostos da teoria clássica da representação. Ela desenvolveu uma visão da cognição e do chamado "model "modeloo comput computaci acional onal da mente" mente" onde ambos ambos são defini definidos dos como como comput computaçõe açõess de representações simbólicas. A idéia de representação mental identificada com símbolo não está tão distante da noção de idéia cartesiana, definida por imagem intelectual ou da semiótica lockeana que concebia as "idéias" como signos. Mas não é apenas a idéia da representação mental identificada com símbolos (ou "imagens intelectuais") que é herdada pela inteligência artificial dos anos 70. Ela herda também - talvez sem perceber ou a contragosto - a pressuposição do ghost in the machine , a mesma mesma press pressupos uposiçã içãoo que fazia fazia com que Descar Descartes tes reconh reconheces ecesse se as lim limit itaçõe açõess dos autômatos, limitações em princípio princípio que os impediriam de vir a ter uma vida mental semelhante a nossa por mais que a tecnologia pudesse avançar. O problema do ghost in the 11
Fodor, por exemplo, chega a afirmar que “o fisicalismo token-token não descarta a possibilidade de máquinas e espíritos desencarnados virem a ter propriedades mentais. “Token physicalism does not rule out the logical possibility of machines and disembodied spirits having mental properties” ((Fodor, 1981, p. 127). 12 Os três últimos parágrafos foram reproduzidos, com modificações, do livro Cérebro e Comportamento: Comportamento: neurociência, computadores e behaviorismo radical ”. ”. Teixeira, J. de F. (no prelo).
15 machine
reaparece nas críticas à inteligência artificial esboçadas no início dos anos 80, sob
a forma do argumento intencional ou o argumento do quarto do chinês13 desenvolvido por J. Searle Searle (1980). (1980). O problema da intencional intencionalidade idade ou do significa significado do como algo indissociá indissociável vel de uma consciência (seja esta resultado de um fantasma oculto ou da atividade biológica dos organi organismo smoss como como queria queria Searle Searle)) não constit constitui ui uma efeti efetiva va crític críticaa à inteli inteligênc gência ia artificial no sentido forte: ele é menos uma ruptura do que a constatação natural dos limites da computação simbólica; um desdobramento natural da tradição cartesiana herdada pela inteligência artificial dos anos 70.14 A construção de sistemas conexionistas nos anos 80 levou os teóricos da ciência cognitiva, num primeiro momento, a supor que esta poderia pura e simplesmente prescindir da idéi idéiaa de repr repres esen enta taçã ção. o. Esta Esta pers perspec pecti tiva, va, entr entret etant anto, o, logo logo se revel revelou ou errô errône nea: a: o conexionismo não prescinde das representações, mas introduz um aspecto convencionalista na maneira de concebê-las, ao propor trocar o modelo de inspiração discursiva, baseado numa metáfora visual (ou semanticamente transparente, para usar a terminologia de Clark, 1989) por um modelo de inspiração matemática onde se constroem representações de representações,
na forma de equações diferenciais que expressam relações entre neurônios
artificiais. Rompem-se possíveis semelhanças entre representação e objeto representado, mas a idéia tradicional de representação é re-instaurada na medida em que se mantém inquestionável a dicotomia entre cognição e mundo. É somente a chamada “terceira onda” da ciência cognitiva, na metade dos anos 90 que procur procuraa desven desvencil cilhar har-se -se defini definiti tivame vamente nte dos pressu pressupos postos tos cripto cripto-car -cartes tesian ianos. os. O protagonista desta nova onda na ciência cognitiva parece ser a nova robótica de Brooks. 13
O argumento do quarto do chinês, formulado por J. Searle consiste basicamente no seguinte:Uma pessoa que só conhece português está em um quarto trancado, e em seu poder essa pessoa tem um texto em chinês e um conjunto de regras de transformação transformação em português, que permite executar operações sobre o texto em chinês. A pessoa trancada no quarto recebe periodicamente novos textos em chinês e com seu conjunto de regras essa pessoa passa a escrever novos textos em chinês. A pessoa na verdade só aplica as regras dadas a ela sem realmente compreender o que está escrevendo. Um observador externo vendo os textos produzidos na sala poderia dizer que a pessoa trancada na sala realmente compreende chinês, o que não é verdade. A idéia de Inteligência Artificial Simbólica é a de que a inteligência resulta do encadeamento adequado de representações mentais, que são símbolos. A sala chinesa de Searle contradiz isso muito bem, por que seguir regras não significa compreender, compreender, da mesma maneira que executar determinadas funções e produzir resultados esperados tampouco significam compreender. 14
Os últimos parágrafos foram reproduzidos, com modificações, do livro Filosofia e Ciência Cognitiva , p.35 ff.
16 Com ela estaríamos retornando ao verdadeiro sentido da inteligência artificial que teria se perdido ao longo da história, qual seja, a de que ela deveria ser uma ciência experimental; um ramo da engenharia e não da matemática. A refl reflex exão ão de Broo Brooks ks sobr sobree a sua sua prát prátic icaa cien cientí tífi fica ca part partee da idéi idéiaa de que que a inteligência artificial precisa retomar suas origens, ou seja, a cibernética, esta disciplina de vida efêmera e injustamente esquecida pela historia da ciência. A cibernética começa pela observação do comportamento e não pelo estudo da cognição entendida como representação simbólica e computações baseadas em regras formais. É esta a estratégia seguida por Brooks no seu laboratório no MIT. Insetos podem apresentar comportamento complexo, sem que para isso seus cérebros tenham que representar regras lógicas. O mesmo podemos afirmar acerca de gaivotas que fazem vôos rasantes para apanhar peixes no mar – certamente seus cérebros não representam regras e equações da balística para evitar que um desses vôos resulte em algum tipo de colisão fatal ou afogamento. Se há representações nestes cérebros, elas são representações implícitas ou encarnações físicas de processos, como é, por exemplo, o caso de uma calculadora de bolso que encarna funções matemáticas – embora suas regras de funcionamento sejam estáticas e invariáveis. Certamente outros hardwares mais flexíveis podem ser formados a partir das interações comportamentais dos organismos/robôs com a complexidade do meio ambiente. Neste caso, estamos diante de hardwares plásticos que podem se modificar a si mesmos nestes processos interativos e este e ste é o verdadeiro sentido da afirmação de que processos/comportamentos podem se transformar em hardwares ou no limite em wetwares. Os trabalhos teóricos de Brooks (1991,1991a, 1991b ) sugerem que as dificuldades enfre enfrent ntad adas as pela pela ciênc ciência ia cogn cognit itiv ivaa são são mu muit itoo mais mais conce conceit itua uais is do que que prát prátic icas as ou tecnológicas. É a ausência da análise conceitual que pode envolver-nos em confusões teóric teóricas as e até mesmo mesmo em pseudo pseudo-que -questõ stões es como como a interp interpret retação ação não-ma não-mater terial ialist istaa do funcionalismo e suas conseqüências. A crítica a um funcionalismo des-cerebralizado pode ter outras conseqüências que não poderemos explorar aqui, como, por exemplo, uma reflexão sobre o estatuto ontológico do que chamamos software e nossa tendência a concebê-lo como entidade matemática com uma existência independente de sua realização físi física ca.. No mesm mesmoo este esteio io,, seri seriaa prec precis isoo rever rever a idéi idéiaa de cogni cognição ção conc conceb ebid idaa como como comp comput utaç ação ão abst abstra rata ta sobr sobree símb símbol olos os – um umaa comp comput utaç ação ão que que aspi aspira ra a um umaa tota totall
17 independência em relação a seu substrato físico, ou seja, a versão contemporânea da mente imaterial cartesiana.
III
Quando afirmamos no início deste trabalho que a psicologia não teria conseguido se tornar independente da “enciclopédia filosófica” quisemos dizer que as teorias psicológicas ainda são, em grande parte, teorias filosóficas , pois a explicação da passagem entre o físico e o mental só pôde, até agora, ser abordada especulativamente. Estas teorias resistem a um critério de falseabilidade na medida em que a psicologia permanece sem um objeto definido e, por vezes, fazem com que seu discurso beire àquele da auto-ajuda. Nos últimos anos (a década do cérebro) a biopsiquiatria e a neurociência cognitiva fizeram com que a psicologia perdesse ainda mais de sua já precária cidadania, tendendo a desfi desfigur gurar ar-s -see em apena apenass um umaa vari varied edad adee de assi assist stênc ência ia soci social al.. A prop propos osta ta de um mapeamento cerebral pela neuroimagem passa a centralizar as pesquisas na neurociência cognitiva, e, com este, surge algo parecido com uma frenologia eletrônica. A mente fina finalm lment entee seri seriaa o cére cérebr bro! o! – proc procla lama maram ram algu alguns ns neur neuroc ocie ienti ntist stas as cogni cogniti tivo voss mais mais entusiasmados e embalados pelo sonho reducionista. Eles não mais procuravam funções cognitivas nas saliências ósseas do crânio, mas nas cintilações dos belíssimos mapas cerebrais produzidos pela fMRI. Pioneiros da neurociência cognitiva, como Gazzaniga (1998), chegaram a vaticinar o fim do próprio conceito de mente e a morte da psicologia. Mais do que isto: a neurociência e a sua parceira, a biologia molecular, passaram implicitamente a se proclamar como fundamento de todas as outras ciências realizando o sonh sonhoo de um umaa ciên ciênci ciaa gera gerall que que abra abrang nger eria ia toda todass as outr outras as,, o tron tronco co mest mestre re do conhecimento na medida que é do cérebro e do DNA de suas células que este emana. O estudo da natureza do pensamento e da consciência – tema central da filosofia e da psicologia ao longo de suas histórias – deixaria de ser da competência exclusiva dos filósofos e psicólogos. O pensamento seria apenas o metabolismo do cérebro. Desta forma, probl problema emass filosó filosófic ficos os seriam seriam progre progressi ssivam vament entee dissol dissolvid vidos os da mesma mesma maneir maneiraa que a dissolução do conceito de mente levaria a psicologia a um fim. Paradoxalmente, os
18 neurocientistas estariam se esquecendo de que se a ciência não fosse independente do cérebro que a produz, as condições de verdade de suas proposições (ou seja, se estas são verdadeiras ou falsas) seriam tão transitórias quanto o é a bioquímica deste... Mas, terá a neurociência cognitiva dado um passo decisivo para superar a herança cartesiana e seus implícitos e sutis pressupostos? Ou estaria ela apenas revivendo um carte cartesi siani anism smoo às aves avessa sas, s, no qual qual a ment mentee é subs substi titu tuíd ídaa pelo pelo cére cérebr bro, o, ou seja seja,, não não eliminando verdadeiramente o dualismo mas apenas revertendo-o? Esta é, sem dúvida, uma ques questã tãoo mu muit itoo comp comple lexa xa para para cuja cuja resp respos osta ta pode podemo moss ofer oferec ecer er apen apenas as algu alguma mass considerações. O mais provável é que a neurociência cognitiva tenha se perdido na sua obsessão pelo mapeamento do cérebro. Uma obsessão que tem como conseqüência a restr restriçã içãoo do lócus da explic explicaçã açãoo psicol psicológi ógica ca uni unicam cament entee ao cérebr cérebroo (inte (interna rnali lismo smo)) excluindo, assim, ambiente e comportamento do escopo da psicologia. Paradoxalmente, neurobiólogos contemporâneos eminentes têm apontado para a necessidade de direcionar a investigação do cérebro na direção contrária, rejeitando o mito do cérebro na proveta, ou seja, do cérebro separado separado do seu ambiente ambiente e do seu corpo em movimento. movimento. Mas, o que será um mapa do cérebro? Que critérios utilizar para construí-lo? Mapear a anatomia do cérebro não é tarefa fácil, afigurando-se como atividade complexa e desafiadora. Hoje em dia, apesar de algumas falhas, os mapas de Brodmann são canonicamente aceitos na neurociência. Os problemas mais graves, contudo, começam a surgir quando se tenta correlacionar áreas cerebrais demarcadas anatomicamente com funç funções ões cogni cogniti tiva vass cons consci cien ente tess – ou seja seja,, quan quando do passa passamo moss da neuro neuroci ciên ênci ciaa para para a neurociência cognitiva. Uma primeira crítica contra este tipo de estratégia metodológica consiste em apontar que esta não nos proporciona uma redução do mental ao cerebral como se pode supor à prime primeira ira vista, vista, mas tão soment somentee o estabe estabelec lecime imento nto de correl correlaçõe ações, s, não entre entre apenas apenas sensações e estados mentais como fazia a psicofísica, mas entre estados mentais e sua representação cerebral (cintilação). Falta, contudo, passar das correlações à relação causal, o que daria a estas últimas a inteligibilidade da relação entre mente e cérebro que se procura com este este tipo tipo de inve invest stig igaçã ação. o. Em outr outras as pala palavr vras as,, o prob proble lema ma cart cartes esia iano no esta estari riaa reaparecendo pela porta dos fundos.15 15
Esta é a discussão acerca da existência ou não de correlatos neurais da consciência. Veja-se a este respeito Chalmers (2000) e seus oponentes Alva Noë e Thompson (2004).
19 Mas não é só aqui que o gênio maligno cartesiano reaparece. A correlação entre área áreass cere cerebr brai aiss e funç funções ões cogn cognit itiv ivas as exig exigee que se assu assuma ma a poss possib ibil ilid idad adee de um umaa divisi div isibil bilida idade de metodo metodológ lógica ica do mental mental – dizemo dizemoss metodo metodológ lógica ica,, poi poiss Descar Descartes tes não acreditava na possibilidade de uma divisão real da mente, embora sustentando que a divisão do complexo em partes simples era componente fundamental do método científico. Ora, será a possibilidade de divisão do mental, mesmo que assumida apenas metodologicamente, uma premissa sustentável? Ou, em outras palavras, podemos assumir a modularidade da ment mentee – mesm mesmoo numa numa vers versão ão mais mais brand brandaa do que aque aquela la sust susten enta tada da por por cien cienti tist stas as cognitivos contemporâneos como Fodor e Pinker? Que critérios estabelecer para relacionar módulos mentais com módulos cerebrais? A dificuldade de mapear a mente no cérebro parece parece mais residir residir em ter de mapear primeiro primeiro o mental para depois correlaci correlacioná-lo oná-lo com representações neurológicas. É muito difícil chegar a um mapeamento unívoco do mental. Esta já era uma dificuldade sentida pelo próprio Gall ao fundar sua frenologia. Gall distinguia vinte e sete capacidades capacidades abstratas abstratas como individuali individualidade, dade, benevolência, benevolência, esperança, esperança, auto-estim auto-estima, a, etc. A neurociência cognitiva parece ter embarcado numa aventura parecida ao tentar construir um mapa correlacionando a mente e o cérebro a partir de instrumentos novíssimos e altamente sofisticados, mas tomando como pressuposto conceitos e entidades psicológicas derivados da psicologia psicologia do século XIX e do senso comum. Tentar encontrar encontrar os correlatos correlatos neurais neurais de entidades tão etéreas como a inteligência, a consciência, a humildade, a desesperança e outros conceitos conceitos formados formados pela nossa linguagem linguagem e que impregnam as teorias teorias psicológica psicológicass pode acabar se tornando uma tarefa tão ingrata quanto tentar fotografar o trópico de capricórnio. Estes termos e entidades são aceitos sem uma análise conceitual prévia. São estas as razões – ou melhor, apenas algumas delas - que impedem a psicologia, mesmo quando apoiada inteiramente na neurociência, de se tornar um corpo científico legitimamente autônomo que possa, então, dialogar com a filosofia para que esta discuta seus fundamentos epistemológicos, da mesma maneira que ocorre com outras disciplinas como a física, a química e outras ciências duras. A maturidade da psicologia – se algum dia esta vier a ocorrer – será atingida não pelo seu desenvolvimento e especialização como foi o caso da física, da química e da biologia. O caminho terá de ser diferente. Para que isto possa acontecer será preciso submeter a psicologia a uma cuidadosa análise conceitual que
20 deverá incluir – sem querer incorrer no trocadilho – uma terapia lingüística. Eliminar a confusã confusãoo conceit conceitual ual é tarefa tarefa essenc essencial ialment mentee filos filosófi ófica. ca. Estran Estranham hament ente, e, será será a própri própriaa filosofia que tornará a psicologia livre da filosofia, colocando-a no caminho da ciência – através de outras alianças da psicologia com a reflexão filosófica que excluam o criptocartesianismo. Mas para isto será preciso que a filosofia também recupere seu lugar ao sol. É preciso que o filósofo reassuma sua posição de fabricante de conceitos . Como observam Deleuze e Guattari (1992) “os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. criam.16 Nas últimas décadas este lugar foi perdido para o marketing , para o design de griffes e para os produtores de virtualidades que povoam as sociedades pós-modernas. Ou, para citar novamente Deleuze e Guattari “como a filosofia, essa velha senhora, poderia alinhar-se com os jovens executivos numa corrida aos universais da comunicação para determinar uma forma mercantil do conceito?”17 Da mesma maneira que a atividade cientifica a criação de conceitos deve ser vista como atividade autônoma e sua utilização como uma mera aplicação possível. Isto quer dizer que, se queremos que a psicologia se torne ciência, após uma análise conceitual cuidadosa, não queremos, por outro lado, que a filosofia se torne ancilla scientia, ou em termos mais prosaicos, que a filosofia se exaura na instrumentalidade de uma ferramenta que a transformaria apenas na faxineira dos cientistas.
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16 17
Ver Deleuze e Guattari, 1992, p. 13. Deleuze e Guattari, 1992, p. 19.
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