INTRODUÇÃO À BÍBLIA [Clique em ÍNDICE ÍNDICE]]
William Barclay
Tradutor e digitador: Carlos Biagini Título original: INTRODUCING THE BIBLE The Bible Reading Fellowship Edición Conjunta De Casa Unida De Publicaciones. S. A. Apartado Posta197-Bis 06000 México, D. F. México.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 2 WILLIAM BARCLAY (1907-1978) obteve o Mestrado em Artes e o Doutorado em Divindades na Universidade de Glasgow, Escócia, e na Universidade de Marburgo, Alemanha. Por muitos anos foi ministro da Trinity Church of Scotland , Igreja Trindade da Escócia. Comunicou as cadeiras de Divindades e Crítica Bíblica na Universidade de Glasgow. Como expositor da Bíblia alcançou uma grande popularidade na GrãBretanha, por sua inigualável habilidade para combinar a erudição e exemplos que têm a virtude de esclarecer incógnitas não resolvidas por uma grande maioria de estudiosos. De William Barclay também apareceram em português: O Novo Testamento comentado, Palavras Gregas do Novo Testamento, A Carne e o Espírito . Em Introdução à Bíblia, o Dr. William Barclay propõe ao leitor submergir-se nesse mundo maravilhoso de história, literatura e sabedoria, que é a Bíblia. A intenção é ajudar o leitor a descobrir as riquezas que a Bíblia encerra para sua vida. O autor dá testemunho do valor da Bíblia como livro inspirado estabelece uma guia confiável para o estudo como os textos bíblicos alcançaram a posição de Escritura Sagrada, e explica a importância e a situação dos livros Apócrifos. Mas, acima de tudo, o Dr. William Barclay apresenta a Bíblia como a palavra de Deus que não perde sua vigência com o passar do tempo Para o Dr. Barclay o estudo bíblico constitui um das provocações mas desafiantes em nossos dias Por um lado, o ativismo ocidental ocidental arrasa com o tempo destinado à meditação, por outro, a Bíblia foi livro de cabeceira mas não obsoleto, de estudo sério e constante. Este escrito surge em resposta a essa provocação e é desejo do autor aplainar o caminho às pessoas que não têm estudos de teologia.
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ÍNDICE APRESENTAÇÃO ORAÇÕES PARA O ESTUDO BÍBLICO PREFÁCIO CAP. I - UM LIVRO ANTIGO CAP. II - DESENVOLVIMENTO DO ANTIGO TESTAMENTO CAP. III - DESENVOLVIMENTO DO NOVO TESTAMENTO CAP. IV - OS APÓCRIFOS CAP. V - COMO ESTUDAR A BÍBLIA CAP. VI - O LIVRO INSPIRADO BIBLIOGRAFÍA
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APRESENTAÇÃO A Bíblia, que da Reforma do século XVI deixou de ser o livro de uns poucos para converter-se no Livro para todos, é paradoxalmente um livro relativamente desconhecido. Embora seja o livro que mais tem sido se traduzido e difundido, há aspectos de seu conteúdo e de seu transformar histórico que, até agora, foram a província dos especialistas. A literatura que em torno da Bíblia se gerou através dos séculos, embora vasta e altamente informativa, não esteve ao alcance do leitor médio. Tal é o caso, por exemplo, dos estudos que sobre o desenvolvimento histórico do texto e cânon da Bíblia existem: não se têm escrito pensando no leitor médio da Bíblia, nem buscaram responder às interrogantes que esse mesmo leitor médio se expõe como resultado de uma leitura cuidadosa da Bíblia. Portanto, bem recebido é um livro como Introdução à Bíblia, do Dr. William Barclay, que definitivamente deve preencher um notável vazio na literatura portuguesa sobre texto e cânon da Bíblia. Em suas páginas, o autor conduz o leitor até as mais remotas origens do texto bíblico, e o faz com magistral simplicidade pedagógica. Nos seis capítulos que integram este livro, o leitor se informa a respeito do desenvolvimento histórico do Antigo Testamento, a partir da Reforma do rei Josias (621 a.C.) e até o Concílio da Jâmnia (90d.C). Igualmente o leitor pode seguir o rastro da história do Novo Testamento, dos primeiros escritos do apóstolo Paulo (49-62 d. C.) até a Epístola de Atanásio (367 d. C.). Um tema que tem ocupado os eruditos bíblicos, e preocupado aos crentes simples, é o da presença no cânon bíblico dos chamados Livros Apócrifos, ou Deuterocanônicos. O autor aborda o tema com singular erudição e clareza, sinalizando abertamente os problemas que esta questão expõe e manifestando, ao mesmo tempo, seu próprio sentir, que é resultado de sua própria reflexão e avaliação destes livros e da evidência histórica.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 5 O Dr. William Barclay é amplamente conhecido na Grã-Bretanha e no mundo como expositor da Bíblia, o mesmo que como escritor e radiodifusor. Seu evidente interesse pela comunicação o levou a combinar a erudição com a simplicidade, de modo que seu estilo é ao mesmo tempo informativo e ameno. No presente livro, expressa sua convicção de que a Bíblia deve ser não só lida mas também estudada. "A Bíblia", diz-nos, "é um livro difícil, porque provém de diferentes linguagens e civilizações e aborda os temas mais acidentados... Como toda obra suprema, recebemos mais da Bíblia quanto mais esforço investimos nela". A versão em português de Introdução à Bíblia contribui grandemente para destacar o claro estilo do original inglês. Esperamos que os leitores da Bíblia em nossos países de portuguesa desfrutem da leitura deste livro, e que a informação que aqui está recolhida os conduza a um maior e mais profundo conhecimento da Bíblia e do Senhor da Bíblia. Tradução e adaptação para a BIBLIOTECA TEOLÓGICA, vol. 4. Carlos Biagini
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ORAÇÕES PARA O ESTUDO BÍBLICO A oração do salmista era: “Abre meus olhos, e olharei as maravilhas de sua lei” (Sl. 119:18). Ó Deus e Pai Nosso: Ao estudar Tua palavra, abre nossos olhos e ilumina nosso entendimento. Conceda que nossa mente possa conhecer Tua verdade e nosso coração possa sentir Teu amor. E logo confirma e fortalece nossa vontade para que saiamos para viver o que aprendemos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. Ó Deus, Ajuda-nos a estudar Tua palavra. Não só para saber mais de nosso bendito Senhor, mas também para conhecê-Lo. Não só para aprender a respeito dEle, senão para nos encontrarmos com Ele. Que não só cresçamos em conhecimento, mas também o nosso amor aumente. Que não só O amemos com o coração, mas também Lhe obedeçamos com a vida. De tal modo que, ao conhecê-Lo, e amá-Lo, e obedecê-Lo, possamos também dizer: Para mim o viver é Cristo. Isto o pedimos confiados em Teu amor. Amém.
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PREFÁCIO Começo agradecendo ao Companheirismo de Leitura Bíblica e à Associação Internacional de Leitura Bíblica por me haver outorgado o privilégio e a responsabilidade de escrever este livro. Levo treze anos de dar classes de Bíblia numa congregação e vinte e cinco na universidade, e, por isso, agradeço a oportunidade de pôr por escrito as coisas, como creio que são, e de escrever algumas técnicas de estudo bíblico. Vivemos numa época particularmente favorável ao estudo bíblico. Nunca antes existiram tantos e tão bons materiais auxiliares de estudo. Durante muito tempo se escarneceu dos teólogos por causa da nebulosa linguagem que os caracterizava. É um fato que muitos deles escreviam só para impressionar seus colegas. Mas existe hoje o desejo fresco de comunicar a teologia ao leigo, mais que ao erudito na matéria. Existe um maior desejo de comunicar-se, como há tempo não o houve. Além disso, existe hoje, e isto é mais importante, a disposição de sentar-se para estudar juntos, o que é algo inusitado. Hoje vemos a católicos e protestantes estudar juntos a Bíblia. Há nova simpatia entre conservadores e liberais, entre fundamentalistas e radicais. Ninguém abandona sua posição ou convicção, mas todos estão dispostos a juntar-se para conversar, mesmo quando não estejam de acordo. E não faltaram ocasiões em que o diálogo lhes permitiu descobrir que não estão tão distanciados como criam estar. Eis aqui uma nova situação que oferece um grande potencial. Agostinho Birrel costumava dizer que cada estudante deveria ler obrigatoriamente obras com as quais estivesse em total desacordo Igualmente, o estudo bíblico é mais proveitoso num grupo misto, onde há grande variedade de pontos de vista, que numa piedosa reunião de mentes afins. Os desacordos podem ser o melhor estímulo para o pensamento e a motivação para novas descobertas, visto que mal
Introdução à Bíblia (William Barclay) 8 poderemos estar seguros numa posição que ainda não tivemos que defender. Outra nova atitude no público consiste em ver a Bíblia como livro de estudo e não de simples leitura. Nosso venerável sistema de ler um capítulo diário, e só lê-lo, tem caído em desuso. E nosso clássico grito de guerra, de que o melhor intérprete da Bíblia é a própria Bíblia, não pode mais ser aceito. A Bíblia é um livro difícil, porque provém de diferentes linguagens e civilizações e aborda os temas mais acidentados. Por isso, deve aproveitar-se toda ajuda que facilite seu estudo. Como toda obra suprema, recebemos mais da Bíblia quanto mais esforço investimos nela. Este livro não tem o propósito de ganhar adeptos à minha maneira de pensar, mas sim de ajudá-los a pensar. É meu desejo e oração que estas páginas capacitem o povo a entender melhor a Bíblia, a amá-la mais, e a que por meio dela possa encontrar-se mais claramente a Jesus Cristo. William Barclay
Universidade do Glasgow, Escócia.
Introdução à Bíblia (William Barclay) CAPÍTULO I
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UM LIVRO ANTIGO O título do primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster é "Das Sagradas Escrituras". No próprio princípio deste documento básico para a Igreja da Escócia estabelece-se que os livros da Bíblia "foram dados por inspiração de Deus como nossa regra de fé e prática". Segue explicando a confissão que a autoridade das Escrituras "depende totalmente de Deus" e são, portanto, "a palavra de Deus". Acrescenta mais adiante que "nas Escrituras se expressa todo o conselho de Deus sobre tudo o que é necessário para sua própria gloria, a salvação do homem, a fé e sua prática, ou, pode deduzir-se delas por boa e necessária consequência, e às quais nada se deve acrescentar em nenhum tempo embora sejam novas revelações do Espírito ou simples tradições humanas", e que as Escrituras constituem a última corte de apelações em toda controvérsia religiosa. Tal é a posição que se dá à Bíblia. Desde o primeiro momento esta se destaca por uma posição extraordinária. A Bíblia começou a ser escrita faz uns três mil anos e sua parte mais recente foi escrita faz uns mil e oitocentos anos, não obstante isso, a Igreja a reconhece como sua autoridade definitiva e inapelável. Em certo sentido, tal posição da Bíblia é única. É verdade que existem ainda livros muito antigos, mas nenhum deles é visto como autoridade definitiva e inapelável. Nossos médicos já não nos aplicam tratamentos segundo Galeno ou Hipócrates; os arquitetos deixaram que lado as diretrizes do Vitrúvio; os agricultores esqueceram os ditames de Varrão; e os astrônomos já não se guiam pelos estudos de Ptolomeu. Estas obras continuam ainda sendo lidas, mas como etapas, não como a meta do caminho; são interessantes, e são lidas como curiosidades, mas não como autoridades. Entretanto, embora a Bíblia tem livros mais
Introdução à Bíblia (William Barclay) 10 antigos que qualquer de tais obras, para o cristão continua sendo a regra suprema de fé e prática. Em outro sentido, existem certos paralelos. Enquanto houver quem leia poesia, haverá quem lê Homero; enquanto houver quem estuda filosofia, haverá quem estuda Platão e Aristóteles; enquanto houver quem se interessa na ética da "boa vida", haverá aqueles que buscam a Epicteto e a Marco Aurélio; enquanto houver quem ama a beleza, haverá quem esquadrinha os estatutos de Praxiteles. As coisas não se descartam simplesmente por serem antigas. Muitos produtos da antiguidade encontram-se entre as mais valiosas posses da humanidade. Não obstante, não há livro que pretenda ter a autoridade absoluta que a Bíblia reclama para si; nenhum outro livro declara, como a Bíblia, que não há nada mais que lhe acrescentar, como o afirma a Confissão de Fé de Westminster. O que, pois, de especial tem este livro? 1. A Bíblia possui tal beleza intrínseca que, à margem de outras coisas, tão somente isso a transforma numa obra imortal da literatura. Com apenas repassar umas breves linhas a pessoa sente encolher-lhe o coração perante o encanto de suas palavras: As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo desprezado (Ct. 8:7). Saul e Jônatas, queridos e amáveis, tanto na vida como na morte não se separaram! Eram mais ligeiros do que as águias, mais fortes do que os leões (2Sm 1:23). Então, o rei, profundamente comovido, subiu à sala que estava por cima da porta e chorou; e, andando, dizia: Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho! (2Sm. 18:33).
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Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. Falai ao coração de Jerusalém, bradai-lhe que já é findo o tempo da sua milícia, que a sua iniquidade está perdoada (Is. 40:1-2). Jamais terão fome, nunca mais terão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima (Ap. 7:16-17).
Seria fácil encher a metade deste livro com passagens semelhantes. Cada um de nós tem suas próprias passagens e versículos com sua inescapável beleza, estampados indelevelmente na memória. Se fosse apenas questão de beleza, a Bíblia teria já direitos indisputáveis à grandeza. Coleridge opinava que o estudo constante da Bíblia livraria a todos de cair na vulgaridade de estilo. Não importa qual seja a fé que se professe ou não professe, ninguém pode pretender ter adquirido uma sólida educação até ter lido este monumento literário. Longino, retórico grego, escreveu uma das obras cimos de crítica literária, intitulada Do Sublime. Para o Longino, a suprema qualidade do escritor era a sublimidade. Uma moeda que cai ao solo costuma deixar escapar um tinido, que denuncia a qualidade de sua liga metálica; Longino expressou de maneira inimitável que o sublime é o retintim da alma. Ainda o mundo não encontrou outro livro que possua a sublime qualidade da Bíblia. Certamente a Bíblia é credora à grandeza por sua beleza indiscutível. Mas, em certo sentido ao menos, isto catalogaria a Bíblia como um luxo e não como uma das necessidades essenciais da vida. Assim que para nos explicar a singularidade que a Bíblia reclama que temos que ir para além da beleza.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 12 II. A Bíblia é indispensável como texto de história. Seu fundo são os movimentos históricos dos grandes impérios do Oriente Médio: Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Sem a Bíblia a história do Oriente Médio careceria de importantes dados. Certo, a história para os judeus não corresponde ao conceito que dela tem o historiador profissional. Na história bíblica se mede a estatura dos personagens pela obediência ou desobediência a Deus. Por exemplo, do rei Asa diz-se que aos olhos de Jeová "fez o que era reto" (1Rs 15:11), e do rei Jeorão que "fez o que era mau" (2Rs 3:2). A Onri de Samaria são dedicadas apenas umas quantas linhas, para dizer que fez o que era mau aos olhos do Senhor (1Rs 16:25-28); entretanto, a história secular vê a Onri como um dos reis mais destacados, politicamente falando. O historiador bíblico dedica mais tempo em nos falar de Elias e Eliseu que ao fundo dos acontecimentos de impacto mundial. Às manobras do rei Acabe para apoderar-se da vinha de Nabote é dedicado todo um capítulo (1Rs 21). Tudo isto é certo, mas sem os historiadores e profetas do Antigo Testamento nosso conhecimento histórico do Oriente Médio ficaria incompleto. Como texto da história a Bíblia ocupa um lugar proeminente Mas é preciso repetir que isto não basta. A Bíblia não se ocupa só do tempo, mas também da eternidade. Assim que devemos ir para além a fim de ver no que reside sua singularidade. III. Do ponto de vista linguístico, a Bíblia tem primordial importância. Constitui o monumento supremo do hebraico clássico; ali se encontra toda sua primitiva literatura nacional, e toda a literatura hebraica. Ainda mais importante do ponto de vista linguístico, é que o Novo Testamento vem a ser o único exemplar escrito no grego popular que se falou durante o primeiro século. Abordaremos o tema mais adiante, mas brevemente adiantaremos alguns detalhes. Quando
Introdução à Bíblia (William Barclay) 13 Alexandre Magno conquistou o mundo antigo, levou consigo a língua grega que, obviamente, não podia ser o grego clássico da Idade de Ouro. Tratava-se de um dialeto simplificado chamado Koiné , ou seja o grego comum, que normalmente não teria espaço na literatura helênica. O único caso existente do Koiné escrito é o Novo Testamento. Os linguistas gregos chegaram a afirmar que, se o Novo Testamento chegasse, por alguma razão, a perder seu valor religioso, seguiria não obstante sendo uma das obras mais importantes da linguística universal. Isto, novamente, é insuficiente. Embora haja um livro que seja o paraíso dos linguistas, isso não garante que sirva de entrada a um paraíso superior. IV. A Bíblia é indispensável como tesouro de sabedoria ética. A antiguidade contava com um gênero literário denominado Literatura Sapiencial. Tratava-se de sabedoria prática, capaz de ensinar ao homem a triunfar na vida honestamente. O livro de Provérbios é o exemplo perfeito: onde quer que a seja lido, encontra orientação prática para a vida, escrita em estilo vivaz e inesquecível. Filho meu, não rejeites a disciplina do SENHOR, nem te enfades da sua repreensão. Porque o SENHOR repreende a quem ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem. Feliz o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire conhecimento; porque melhor é o lucro que ela dá do que o da prata , e melhor a sua renda do que o ouro mais fino. Mais preciosa é do que pérolas, e tudo o que podes desejar não é comparável a ela. O alongar-se da vida está na sua mão direita, na sua esquerda, riquezas e honra. Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas, paz (Pv. 3:11-17). Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento. Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? Um pouco
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para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade, como um homem armado (Pv . 6:6-11).
Dificilmente errará o caminho quem oriente sua vida com os provérbios. Quanto ao Novo Testamento, Paulo sempre termina suas cartas oferecendo conselhos extremamente práticos, e até os não cristãos costumam dizer que, se aceitássemos e praticássemos os ensinos do Sermão da montanha, teríamos o céu na terra. Não há dúvida de que a Bíblia constitui uma guia incomparável a uma vida melhor, e uma mina inesgotável de bons conselhos. Infelizmente, a vida nos ensina que os bons conselhos por si mesmos não melhoram ninguém. Se assim fosse, faz muito que seríamos perfeitos. Se quisermos descobrir o caráter único da Bíblia, não devemos nos conformar com a afirmação de que a Bíblia é uma fonte incomparável para nos ensinar a viver bem. V. Aproximamos-nos mais à questão medular quando afirmamos que a Bíblia é um livro excepcionalmente eficaz. A. M. Chirgwin incluiu em seu livro The Bible in Modern Evangelism (A Bíblia na evangelização atual), um capítulo ao que intitulou "Lucros", do qual extraímos os seguintes casos No Brasil vivia um senhor Antônio de Minas, a quem seu amigo vinha importunando para que comprasse uma Bíblia. Por fim a comprou, mas ali mesmo jurou que a queimaria tão logo chegasse a sua casa. Na casa o fogo estava apagado; mas em seu afã de queimar a Bíblia tornou a acendê-lo. Antes de lançar a Bíblia ao fogo, abriu-a para facilitar a combustão. Por um momento ficou aberta no Sermão da montanha. Seu
Introdução à Bíblia (William Barclay) 15 olhar deteve-se ali. As palavras tinham algo magnético. Perdeu a noção do tempo, e leu e leu durante toda a noite. Amanhecia quando, posto em pé, declarou: "Creio". Um nova-iorquino de uma gang acabava de sair do cárcere e se encaminhava para reunir-se com sua antiga turma para planejar um ataque. Ao chegar à Quinta Avenida aproveitou a oportunidade para "surrupiar" um transeunte. Escapuliu-se até o Parque Central para examinar o despojo e, para seu desencanto, encontrou-se sendo um flamejante possuidor de um Novo Testamento. Como sobrava tempo livre, começou a lê-lo despreocupadamente: mas logo a leitura o absorveu. Horas depois compareceu perante seus comparsas, cantou-lhes o que acabava de ler, e ali mesmo rompeu com eles e com seu passado criminal. Um colportor atravessava à meia-noite um bosque siciliano quando foi assaltado por um facínora com arma na mão. O assaltante lhe ordenou acender uma fogueira e queimar os livros que levava. O vendedor de Bíblias pediu permissão para ler em alta voz fragmentos dos livros antes de queimá-los. Começou com o Salmo 23, seguiu com a história do Bom Samaritano, e logo com o Sermão da montanha. De outra Bíblia leu o hino do amor. Em cada caso o bandoleiro comentava: "Este é um bom livro: não o queimaremos. Dá-me aqui". Finalmente, não foi queimado um único livro, embora o salteador os levou todos. Anos depois, ambos voltaram a encontrar-se. O ex-salteador de caminhos era agora um ministro de Jesus Cristo. "Graças aos seus livros", ele disse ao colportor. Esta é uma amostra mínima do que a Bíblia pode fazer. Aqui temos um livro poderoso, operante, eficaz e dinâmico. Este dado nos aproxima mais ao seu segredo. Se um livro operar mudanças assim, então pode ser qualificado com toda justiça como único.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 16 VI. Aqui chegamos ao miolo da questão; ao porquê de este livro antigo continuar sendo sempre pertinente e poderoso. A Bíblia é quase a única coisa imutável. As leis e os costumes mudam, e em certa medida muda também a moral. Por exemplo, nas primeiras páginas do Antigo Testamento não aparece objeção alguma à poligamia patriarcal. Em parte a religião mesma muda também. Por exemplo, a religião judia se baseava-nos sacrifícios sangrentos, mas isso já não faz parte de nossa religião. A única coisa invariável são as relações pessoais. Enquanto a gente siga sendo gente, as relações pessoais seguirão sendo as mesmas. O amor e o ódio, a lealdade e a traição, a amizade e a inimizade permanecem sempre. Sobre isto é o que trata a Bíblia: das relações entre homem e homem, entre homem e mulher, mas sobretudo, entre o homem e Deus, e entre Deus e o homem. Por isso a Bíblia é antiga e moderna ao mesmo tempo. Vejamos um exemplo, simples e encantador: Jacó teve que servir sete anos para que Labão lhe permitisse casar-se com sua filha. " Assim, por amor a Raquel, serviu Jacó sete anos; e estes lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava" (Gn. 29:20). Histórias e situações
como estas jamais passarão na moda, enquanto houver homens e mulheres. A Bíblia permanece sempre nova porque não se enfoca apenas em leis, regras e regulamentos, mas principalmente em homens e mulheres, e em suas relações mútuas e em suas relações com Deus. A Bíblia é o livro do amor dos uns pelos outros. e do amor por Deus o qual é eterno. VII. Isto nos leva a última e suprema razão que faz da Bíblia um livro único e sempre indispensável. A esta razão teremos oportunidade de voltar repetidamente. Só na Bíblia podemos encontrar a Jesus Cristo. Virtualmente, não existe outra fonte de informação sobre a vida, palavras e ensinos de Jesus. Sem a Bíblia só contaríamos com recursos vagos e opiniões abstratas, o que está intimamente relacionado com nosso ponto anterior. Só em Cristo e através de Cristo, as relações com nossos
Introdução à Bíblia (William Barclay) 17 semelhantes são relacionamentos de amor. Só nEle e por meio dEle podemos ter relacionamento com Deus. Sendo tão antiga, a Bíblia é sempre aplicável porque trata das imutáveis relações pessoais entre os homens, entre o homem e a mulher, e entre os homens e Deus. É sempre indispensável porque nela encontramos o retrato da única pessoa no céu e na terra em quem tais relações alcançam sua perfeição. VIII. Concluiremos com algo expresso pela Confissão de Fé de Westminster , com a qual começamos. Depois que a confissão deixou estabelecido que a Bíblia contém tudo o que é necessário para nossa salvação, acrescenta: "Entretanto nossa persuasão e completa convicção de que sua verdade é infalível e sua autoridade divina, provêm da obra interior do Espírito Santo, quem dá testemunho ao nosso coração com a palavra divina e por meio dela". E acrescenta: "reconhecemos que é necessária a iluminação interna do Espírito de Deus para a compreensão salvífica de tudo o que se revela em Sua palavra" A doutrina dos judeus sobre o Espírito era muito singela mas abrangia tudo. Para eles o Espírito tinha duas funções: revelar a verdade de Deus aos seres humanos e capacitá-los a reconhecer essa verdade. Assim que, para entender e apropriar-se totalmente do significado da palavra de Dias, os homens necessitam que o Espírito habite em seu coração. Isto significa simplesmente que a leitura bíblica deve ir sempre unida à oração. Bem faremos em nos aproximar à Bíblia com a oração do George Adam Smith nos lábios: Deus todo-poderoso e misericordioso, que deste a Bíblia como revelação de Teu grande amor aos homens, e de Teu grande poder e vontade de nos salvar. Concede-nos que seu estudo não seja em vão por causa da dureza e despreocupação de nosso coração, mas sim por meio dela sejamos confirmados no arrependimento, animados na esperança, fortalecidos para o serviço, e saturados com o verdadeiro conhecimento de Teu filho Jesus Cristo. Isto o pedimos confiados em Teu amor. Amém.
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DESENVOLVIMENTO DO ANTIGO TESTAMENTO Começaremos a estudar o processo de integração até o ponto em que a Bíblia ficou completa. Dito tecnicamente, estudaremos a formação do cânon das Escrituras. O cânon das Escrituras é a lista de livros aceitos pela Igreja Cristã como sua regra escrita de fé: é a lista dos livros "oficiais" da Igreja, e que a Igreja considera como autoridade definitiva para a relação de sua própria história e para a formação de sua vida e doutrina. A palavra cânon em si é muito interessante. Provém da voz semítica kaneh, cano. Um cano reto pode servir de regra para traçar linhas retas. Por isso cânon veio para significar regra, embora não para traçar linhas retas, senão para levar uma vida reta. O cânon vem a ser a regra que serve para determinar o que é o correto em qualquer circunstância. A regra tem também tem marcas para medir as linhas que traça, o que confere outro significado à palavra cânon. Tais marcas ou gradações se convertem numa lista Por exemplo, o cânon da missa é a lista daqueles a quem se lembra na missa. O cânon das Escrituras é, pois, a lista dos livros que a Igreja reconhece como sua autoridade Mas uma lista, neste sentido e uso, contém livros aos quais algo lhes foi feito: foram incluídos na lista, mas estes mesmos livros afetam a tudo o mais: tornam-se a regra para julgar todas as coisas. De modo que, a Igreja foi a que definiu o cânon ou livros da Bíblia. A Igreja existiu muito antes de que existisse a Bíblia; em tal sentido, pode afirmar-se que não foi a Bíblia a que fez a Igreja, mas foi a Igreja que fez as Escrituras. A Igreja primitiva carecia de Novo Testamento,
Introdução à Bíblia (William Barclay) 19 pois estava ocupadíssima em escrevê-lo. Por outro lado, os livros bíblicos não são volumes comuns que sofrem passivamente o que lhes possa suceder. São obras ativas, com poder para guiar e dirigir a vida e a obra da Igreja. Estudemos como se integrou a lista de livros que a Igreja reconhece como autoridade, e que logo se tornaram os documentos fundamentais da fé cristã. Se na atualidade pedirmos uma Bíblia numa livraria receberemos um só volume: um livro. Mas ao abri-lo encontraremos várias listas de livros do Antigo e do Novo Testamento. Normalmente se adjudicam 39 livros ao Antigo Testamento e 27 ao Novo, para um total de 661ibros. Isso quer dizer que, ao comprar um exemplar da Bíblia, estamos na realidade adquirindo toda uma biblioteca dentro de duas capas. E se investigarmos com algum detalhe esta biblioteca portátil, acharemos que para escrevê-la foram requeridos, pelo menos, mil anos e que seus livros foram sendo redigidos nos dias do mundo antigo, da remota Babilônia até a Roma dos Césares. Se tivéssemos vivido então, jamais teríamos cometido o erro de ver a Bíblia como um só livro, pela simples razão de que o próprio livro, tal como hoje o conhecemos, ainda não existia. Na antiguidade, as obras literárias se escreviam em rolos. Nosso livro atual, primeiro chamado codex ou códice, veio aparecendo para o segundo século de nossa era. Os livros do Antigo Testamento foram escritos em couros; os do Novo Testamento começaram a ser escritos em papiros manufaturados com cana do rio Nilo. Este cana é uma variedade de junco que chega a crescer em maior altura que um homem e é mais grosso que um punho humano. A polpa do junco se cortava em lâminas que se acomodavam cruzadas ao longo sobre outras colocadas em longitude, eram umedecidas, calcadas, e logo se poliam com pedra pedra-pomes, até que ficava uma substância
Introdução à Bíblia (William Barclay) 20 de cor café parecida com o papel. A palavra Bíblia procede do vocábulo grego biblos. No princípio chamava-se biblos ao junco para papiro. Logo o próprio papiro foi chamado biblos. Depois biblos chegou a significar o rolo de papiro já escrito, até que se fixou o nome de biblos para designar o livro. O papiro pode durar indefinidamente se for conservado seco, embora vá ficando cada vez mais quebradiço. O papiro não era barato. Cortava-se em folhas de 25 x 20 cms. As folhas mais comuns custariam o equivalente a US$ 0.03 dólares e as mais finas a US$ 0.15 dólares cada uma. Os preços poderiam parecer baixos, mas é preciso considerar que o salário do trabalhador equivalia a uns US$ 0.06 dólares diários. As folhas de papiro se uniam até formar uma banda longa à qual se aderia um rolo de madeira em cada extremo. Ao ir lendo, a tira se desenrolava com uma mão e se enrolava simultaneamente com a outra As colunas de escritura tinham de 6.2 a 7.5 centímetros de largura. Durante o período intermediário que vai desde o desaparecimento do rolo à aparição do livro ou códice, os livros eram imprimidos em papiro. Mas o comum era escrever em pele de bezerro, também conhecida como virtulina charta. O pergaminho tinha tomado seu nome de Pérgamo, seu principal centro manufatureiro, e por isso também era chamado pergaméné carta. O papiro e o pergaminho têm a vantagem de ser muito duráveis, mas em conjunto representavam uma dupla desvantagem para os antigos: I. O rolo não podia ser usado sem ser desenrolado. Portanto, o rolo não podia ter mais de 9 metros de comprimento, onde quase não caberia, digamos, o evangelho de Lucas, ou o de Mateus, ou Atos dos Apóstolos. Por isso era impossível para os antigos conceber a qualquer dos dois testamentos bíblicos como um só livro. O Antigo ou o Novo Testamento
Introdução à Bíblia (William Barclay) 21 teriam representado toda uma coleção muito custoso de rolos escritos. Ainda na primeira etapa do códice teriam sido necessários três ou quatro volumes para conter o Novo Testamento devido ao tipo de encadernação Para os antigos, a Bíblia era toda uma biblioteca, e eles estavam conscientes disso. II. A segunda desvantagem eram os altos custos do papiro e do copiado. A unidade de medida para o trabalho copiado era o stichos (stichoi no plural). Se o stichos teria sido contado como uma linha, não seria possível pagar, pois ficaria ao arbítrio do copista a quantidade de palavras que copiaria numa linha. O stichos tinha como base o hexâmetro típico de Homero, que constava de 16 sílabas. Portanto, o pagamento ao copista se calculava em stichoi. Há um manuscrito do Novo Testamento que data do século VI, chamado o Códice Claramontano, que anota o número de stichoi de cada livro. Por exemplo, Mateus tem 2.600, Lucas 2.900, Atos 2,600, Romanos 1.040, Colossenses 251, 2 João 20, e Apocalipse 1.200. O imperador Diocleciano fixou a tarifa por decreto. Segundo isto, copiar 100 stichoi custava entre 20 e 25 denários, aproximadamente uns US$ 0.06 dólares, ou seja US$ 1.65 dólares por cada cem linhas copiadas. Copiar um exemplar de São Mateus, por exemplo, custaria US$ 40.00 dóla res mais o custo de papiro. Estes custos tão elevados se mantiveram assim até a aparição da imprensa. Só até então apareceu a Bíblia num só volume. O qual significou que antes disso só contadas pessoas podiam possuir a Bíblia completa. Vejamos agora como se formou a biblioteca divina do Antigo Testamento até tomar sua forma atual. Os judeus dividiam seus textos sagrados em três seções: a Lei, os Profetas e os Escritos. Tal classificação se remonta ao ano 180 a.C. Jesus Ben Siraque escreveu originalmente no hebraico um livro sapiencial que hoje conhecemos como Eclesiástico. Quarenta e oito anos
Introdução à Bíblia (William Barclay) 22 depois seu neto, então vivia no Egito, traduziu-o ao grego considerando que era obra valiosa e digna de ampla difusão. No Prólogo que lhe escreveu faz referência aos ensinos da Lei, os Profetas e sucessores. Repete a referência à Lei e aos Profetas e "aos outros livros de nossos pais". A Lei é constituída pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo. Levítico, Números e Deuteronômio, conhecidos também como o Pentateuco, que em grego significa cinco rolos. Os Profetas são divididos em duas seções. Primeiro, os Profetas Anteriores, que abrangem os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. contavam-se como quatro livros, pois 1 e 2 de Samuel e 1 e 2 de Reis consideravam-se um livro cada um. Nós vemos estes livros como históricos, mas para os judeus eram proféticos, devido em parte porque tratam a respeito de grandes profetas como Elias e Eliseu e, em parte, porque para os judeus Deus se revela na história tanto ou mais que nas palavras humanas. Em seguida colocava-se a seção de Profetas Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze chamados profetas menores: Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, e Malaquias. O nome de menores não se deve a que sejam considerados inferiores ou menos profetas, mas ao fato de que suas profecias são menos extensas que as dos três primeiros. E visto que os doze menores sejam classificados como um só livro, os Profetas Posteriores eram contados também como quatro. Os Escritos são na realidade uma coleção miscelânea que se classificava de diversas maneiras. Uma delas incluía, primeiro, três livros poéticos: Salmos, Provérbios e Jó; segundo, os cinco megilloth (rolos), cada qual relacionado com um dos grandes festivais judeus,
Introdução à Bíblia (William Barclay) 23 como segue: o Cantar dos Cantares, alegorizado até relacioná-lo com a libertação do Egito, associava-se com a Páscoa e era lido no oitavo dia da festa. Rute se relacionava com o Pentecostes (ou seja a celebração da colheita de frutos), por tratar-se de um idílio durante a temporada de colheitas; lia-se no segundo dia do Pentecostes. Lamentações era lido em 9 de Abe, aniversário da destruição do templo de Salomão. Eclesiastes era lido no terceiro dia da Festa dos Tabernáculos, quando se comemorava a peregrinação pelo deserto: Durante esta celebração o povo abandonava seus lares e viviam ao ar livre, em choças de ramagens. A leitura do Eclesiastes tinha como objetivo enfatizar que se devia lembrar a Deus no meio da prosperidade material. O livro de Ester era lido na Festa de Purim, a que servia de razão e justificação. Estes cinco megilloth eram os únicos Escritos que se liam na sinagoga, e só nas celebrações mencionadas. Terceiro, havia um livro profético, o de Daniel. Finalmente vinham dois livros históricos, Esdras-Neemias considerados um só e Crônicas. Todos estes livros contavam como 24 para os judeus, cifra a que chegavam porque os classificavam assim: cinco livros da Lei; quatro livros dos Profetas Anteriores (1, 2 Samuel e 1, 2 Reis contavam como dois livros); quatro livros dos Profetas Posteriores (considerando os 12 como um); onze livros dos Escritos (Esdras-Neemias e os dois de Crônicas vistos como um só livro) . Agora detalharemos como foi que adquiriram caráter de Escritura cada uma destas três seções do Antigo Testamento.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 24 A Lei, para o judeu, era e continua sendo o mais importante do mundo; é o eixo do culto na sinagoga e a essência de toda verdadeira religião. A palavra lei não é a mais adequada em nosso idioma, porque tem uma conotação extremamente legalista. Mas a Lei judaica vai muito além das regras, regulamentações, proibições e mandamentos. Torah é como se chama no hebraico, e significa instrução mais que lei. A Torah vem sendo essa instrução que Deus comunica aos homens e que, ao obedecê-la estes, permite-lhes encontrar vida neste mundo e no vindouro. Sustentavam os judeus, que a Lei tinha sido criada antes do próprio mundo, e que Deus tinha consultado a Lei antes de criar o mundo. Afirmavam que com o advento pleno do reino de Deus os Profetas e os Escritos feneceriam, mas a Lei permaneceria para sempre. Sustentavam, além disso, que Deus tinha entregue literalmente e de própria mão toda a Lei a Moisés, e que ao principiar cada dia Deus apartava um tempo para estudar a Lei. Tinham o propósito de que a infância judaica "gravasse em sua alma" a Lei. Desde a infância eram instruídos nela, e foram muitos os judeus que preferiram morrer antes que perjurar dela, pois a consideravam nada menos que a própria palavra de Deus. A Lei, pois, era o centro de tudo; e embora o resto das Escrituras ocupava um lugar proeminente, contudo as tinham como um simples comentário da Lei. Esta er lida versículo por versículo, primeiro no hebraico, e logo era traduzido ao idioma da congregação. Como chegou a ocupar a Lei uma posição tão elevada? A seguir trataremos de reconstruir este processo. E embora seja uma reconstrução mais que fatos comprovados, ajusta-se aos fatos e é aceita pela maioria dos eruditos veterotestamentários. Existe um ponto de partida com relação à Lei, e bem dramático por certo. A religião judaica encontrava-se em condição bastante lastimosa. Depois que morreu o bom rei Ezequias, sucederam-no Manassés e Amom, os quais eram pouco menos que pagãos (1Rs 21) E cujos
Introdução à Bíblia (William Barclay) 25 reinados combinados se prolongaram durante mais de meio século, deixando ao judaísmo em seu mais sob nível. Então, no ano 621 a.C.; subiu ao trono o jovem Josias e fez o reto aos olhos de Jeová". Entre outras coisas, Josias iniciou a reparação e reconstrução do abandonado Templo, e foi então quando o sacerdote Hilquias encontrou o livro da Lei na Casa do Senhor. Quando o rei e o povo leram a Lei, foram movidos ao arrependimento e à reforma, e foi assim como este livro veio a ser para eles a palavra mesma de Deus (1Rs 2223). Indiscutivelmente tratava-se do livro do Deuteronômio escrito por um profeta e sacerdote nos lôbregos dias de Emanasse e Amom, quando não havia liberdade de expressão, e o escondeu no Templo para que a seu tempo fora encontrado. Aqui se inicia o movimento inteiro. Por assim dizer, é a primeira vez que se canoniza um livro e se transforma em palavra de Deus para o povo de Deus. Além disso, foram recuperados outros fragmentos da Lei que se acrescentaram à coleção e foram tidos em alta estima. Entre eles estava a mais antiga exposição da Lei, também conhecida como o livrinho da Aliança, em Êxodo 34. Recuperaram, além disso, o próprio livro da Aliança, quer dizer, as condições que o povo havia aceito quando Deus o tomou como Seu povo e lhes prometeu que Ele seria o seu Deus. Isto se encontra em Êxodo 20:22-23:33, e em sua forma atual se remonta por ano de 900 a.C. Posteriormente, em meados do século VI a.C. foi acrescentada outra grande seção. A própria essência do judaísmo se acha na expressão; "Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo" (Lv. 19:2). Assim surgiu o chamado Código de Santidade. A expressão "santo". neste sentido significa "diferente". Deus é o ser excelsamente diferente, o absolutamente diferente, como também tem sido chamado. O povo de Deus, do mesmo modo, deve ser diferente: não viverá como o resto das
Introdução à Bíblia (William Barclay) 26 nações, e aceitará o fato de que é um povo destinado a ser diferente. E o sumário da vida diferente que deve levar, encontra-se no Código de Santidade em Levítico 17-26. Aqui temos, pois, as grandes seções da Lei; a voz de Deus que agora chega de maneira mais completa e direta ao Seu povo. Trata-se do antigo livrinho da Aliança. e1libro da Aliança mesmo (Deuteronômio) e o Código de Santidade. Gradualmente vai-se integrando a Lei. Aqui é onde convém destacar algo que já vai emergindo, e é que não houve ninguém que se assentou a escrever intencionalmente um livro das Escrituras. Os livros que logo se formaram nas Escrituras, durante anos e séculos tinham vindo fortalecendo e ajudando o povo. Através das centúrias tinham demonstrado ser, nem mais nem menos, a palavra de Deus; por seus próprios méritos tinham estabelecido seu próprio direito a ser reconhecidos como a palavra de Deus à humanidade. O que depois constituiu as Escrituras não era nada novo para então, mas sim o tempo lhes tinha dado sua identidade como tais. Mas no Pentateuco temos algo mais que leis e instrução. Todo o material da Lei contido no Pentateuco está localizado dentro do contexto de uma narração que parte da criação do mundo até a entrada à terra prometida. Dentro desta narração sucedem alguns fenômenos extremamente interessantes. Ao estudá-la, descobrimos que se trata de um verdadeiro composto procedente de diversas fontes. Tradicionalmente é considerada como obra de Moisés, mas dali a pouco fica claro que houve outros participantes em seu desenvolvimento. A lista dos reis de Edom, que aparece em Gênesis, vem prolongada pela seguinte expressão: "São estes os reis que reinaram na terra de Edom, antes que houvesse rei sobre os filhos de Israel." (Gn. 36:31). Saul foi o
Introdução à Bíblia (William Barclay) 27 primeiro rei de Israel, e viveu séculos depois de Moisés; pelo que mal poderia este fazer referência a rei algum de Israel. Gênesis 14:14 conta que Abraão perseguiu os seus inimigos "até Dã". Mas Dã não recebeu este nome até o tempo dos Juízes, depois da época de Moisés. Em Gênesis 21:34 e 26:14-18 menciona-se os filisteus, mas estes não aparecem senão muito tempo depois de Moisés, ao redor do 1200 a.C. A maior abundância, Deuteronômio 34:1-8 narra a morte de Moisés. E é extremamente improvável que Moisés tenha relatado sua própria morte! Assim como é indubitável que Moisés foi o grande legislador de Israel, é indisputável também que nos primeiros cinco livros do Antigo Testamento "colocou a mão" mais alguém que o próprio Moisés. Encontramos neles mais de uma narrativa e de um escritor. Há outros indícios de que se trata de uma narrativa com acrescentados. Frequentemente se acham duas narrações do acontecimento. Há duas crônicas da fundação de Berseba, uma relacionada com Abraão e outra com Isaque (Gn. 21:31 e 26.:33). Há duas histórias de como Betel obteve seu nome: segundo uma, Jacó a nomeou a caminho de Padã-Arã; segundo a outra, quando voltava de Padã-Arã (Gn. 28: 19; 35:15). Relata-se de duas maneiras a expulsão de Agar e Ismael: numa, o fato sucede antes do nascimento da criança (Gn 16:6-16); e na outra, depois do nascimento de Ismael (Gn 21:9-21). Há duas versões da história da criação. Numa, o homem é criado ao terminar todo o processo criativo, quando o mar e os continentes, as plantas, os animais e as aves já tinham sido criados. Segundo esta versão o homem e a mulher foram criados simultaneamente (Gn. 1). Na outra (Gn. 2), o homem é criado no princípio do processo, logo o jardim, os animais e as aves, e logo a mulher é feita da costela do varão.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 28 No relato do dilúvio se entretecem duas histórias sobre a arca. Numa delas entram sete casais de cada animal; na outra entram um par de cada um (Gn. 7:2-3; 7:8-9). Ao longo do Gênesis podem perceber-se duas versões, duas fontes e dois relatos lado a lado. O compilador do último formato é tão honesto, tão respeitoso de suas fontes, que quando conta com duas delas inclui ambas. Agora, em algumas ocasiões nota-se algo mais nesta compilação. O hebraico tem duas palavras para designar a Deus: Elohim e Iahweh ou Yahweh. A última tem grande interesse e importância, pois é similar à palavra Jeová, que é sua forma mais comum. No original hebraico não existem letras vocais, só consoantes; não foi senão até muito depois quando se acrescentaram pequenos sinais vocálicos sob as consoantes para indicar a pronúncia adequada. O nome de Deus se representa com as quatro consoantes hebraicas YHWH, que os judeus jamais se atrevem a pronunciar, por considerar que o nome de Deus é muito sagrado para ser articulado. Existe também a palavra Adonai, que significa Senhor. Os judeus tomaram as vogais de Adonai, e as anexaram às quatro consoantes sagradas YHWH de onde obtiveram a forma Jeová. Assim que a palavra Jeová compõe-se das letras YHWH soletradas com as vogais hebraicas da palavra Senhor, mas a forma genuína é Iahweh ( Yahweh), impronunciável por ser tão sacrossanta. Nas versões inglesas do Antigo Testamento, Elohim é traduzido simplesmente como Deus, mas YHWH é traduzido Senhor, em versais e versaletes. Como em Gênesis 2:4-5.6. Ao examinar cuidadosamente estes antigos manuscritos, encontramos que em algumas seções se chama Deus, Jeová ou Jeová Deus, conforme proceda no original do Elohim ou Iahweh. Por exemplo, no princípio da Bíblia, no primeiro relato da criação, provém de Elohim e se chama Deus (Gn. 1:1-
Introdução à Bíblia (William Barclay) 29 3), conquanto no segundo relato da criação é mencionado como Jeová Deus (Gn. 2:4-24). No relato da arca, onde os animais entram em casais simples, o mandato é dado por Deus ( Elohim) (Gn. 7:9), e em que entram sete casais (7:1-2), por Jeová. De modo que, no princípio da Bíblia encontramos duas fontes entretecidas, numa das quais chama-se a Deus Elohim e em outra em que se chama Iahweh, que se traduz respectivamente como Deus e Jeová. Com o tempo, ambas as fontes chamam a Deus Jeová, Senhor, pois na fonte que começa chamando Elohim a Deus, achamos o conhecido relato em que Moisés descobre que Deus Se chama Jeová ("Eu sou aquele que sou". Ex. 3:13-16), que é a lição que Moisés recebe no misterioso incidente da sarça incandescente (Êx. 3:1-6). Fica, pois, de relevo que a Lei, o Pentateuco, não surgiu por geração espontânea. Levou-se séculos para gerá-lo. Constitui a essência destilada da voz de Deus à humanidade - de palavra e fato – através dos tempos. Aqui se concentra a voz de Deus em seu percurso pelos séculos: primeiro o livrinho da Aliança, seguido do livro maior da Aliança; logo Deuteronômio, logo o Código de Santidade, e finalmente o relato dos atos de Deus pelos homens, compilado por dois escritores distintos. Posteriormente tomam forma e se entretecem ambos os relatos com tal honestidade que nada se omite nem se muda; e, finalmente, culmina nessa maravilhosa amálgama de lei e história que, para os judeus, continua sendo a palavra de Deus, sem paralelo na terra. Mas fica pendente responder: Quando deixou a Lei de ser um simples livro maravilhoso para converter-se nas Escrituras? Quando deixou de ser um livro para converter-se na Bíblia? O que equivale a perguntar: Quando a seção mais antiga da Bíblia começou a ser considerada definitivamente como a palavra de Deus? Há três indicações que nos ajudam a fixar tal data.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 30 I. Uma das grandes datas foi quando se traduziu ao grego o Antigo Testamento, crônica que deixamos para o Capítulo IV. No momento nos interessa somente a data em que apareceu a Septuaginta, que é como foi chamada a tradução grega do Antigo Testamento. Indubitavelmente trata-se de uma data importante. A esfera do Antigo Testamento ficou limitada só aos hebreus enquanto se manteve nesse idioma, mas quando foi traduzido ao grego converteu-se na posse de todo o mundo. A tradução teve lugar durante o reinado de Ptolomeu II, chamado Filadelfo, que reinou no Egito do ano 285 aos 246 a.C. A princípio só se traduziu a Lei, a única coisa que os judeus contemporâneos consideravam Escritura Sagrada. Isto nos permite asseverar que para o ano 270 a.C. a Lei certamente era considerada Escritura. Poderíamos remontar-nos ainda mais atrás? II. Até o dia de hoje, os samaritanos não aceitam como Escritura todo o Antigo Testamento, mas unicamente a Lei, o Pentateuco. O que significa que se segregaram do resto da nação quando a Lei era já Escritura, mas ainda não o era o resto do Antigo Testamento. Tal separação teve lugar aproximadamente no ano 400 a.C. Portanto, já para esta data a Lei era considerada como a palavra de Deus. III. Lendo Neemias 8-10, achamos que o escriba Esdras lê ao povo "o livro da Lei", e que o povo o aceita como a Lei de Deus e como lei para suas vidas. O qual sucedeu à volta do exílio. Daí em diante, os judeus seriam para sempre o Povo do Livro, e esse livro seria o livro da Lei. Isto também sucedeu pelo ano 400 a.C. Tudo indica que a Lei converteu-se em Escritura e ficou estabelecida como a palavra de Deus aos homens quatrocentos anos antes que Jesus viesse ao mundo como homem. Podemos, pois, dar por sentado, que a Lei, o Pentateuco, ou os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foram considerados como Escritura desde ano 400 a.C.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 31 Durante quase 2.400 anos os homens acharam a palavra de Deus nos livros da Lei. E deve haver algo excepcional num livro que guiou a humanidade durante séculos e milênios. Lembremos agora que começamos a história da formação do Antigo Testamento apontando que os judeus o dividiram em três seções: a Lei, os Profetas e os Escritos. Já vimos como a Lei foi compilada e se converteu em Escrituras para o ano 400 a.C., assim que agora concentraremos nossa atenção nos Profetas. Embora já vimos que para o judeu a Lei era sem comparação a parte mais importante das Escrituras, para a maioria dos atuais eruditos bíblicos os Profetas ficariam acima da Lei. Para a maioria de nós talvez constituam a coisa mais preciosa do Antigo Testamento, com exceção dos Salmos. Vejamos como os Profetas chegaram a ser também a palavra de Deus. Conforme vimos, os Profetas foram divididos em Anteriores e Posteriores. Os Anteriores compreendem os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Desconhece-se absolutamente quem escreveu estes livros. Nem sequer lhes foram adjudicados títulos tradicionais, tais como se adjudicaram a Moisés todos os livros da Lei. Mas a tradição judaica credita a Josué como o autor do livro deste nome, a Samuel como autor dos livros de Juízes e Samuel, e a Jeremias como autor dos livros dos Reis. Segundo o cômputo judaico, estes quatro livros foram terminados entre os séculos VI e V a.C. Poderia parecer estranho que se classifique como livros proféticos os compreendidos por nós entre os livros históricos, mas para isso existem duas razões. Primeira, estes livros falam dos grandes profetas que agiram antes de aparecerem os profetas literários; os profetas não literários, como Samuel, Natã, Elias e Eliseu, certamente dirigiram material profético. Segundo, os judeus levavam a história muito a sério. Consideravam que os eventos históricos revelavam nada menos que
Introdução à Bíblia (William Barclay) 32 Deus em ação; para eles, a história era o cenário da atividade de Deus, e criam que Deus falava mediante os eventos históricos, os quais demonstravam a veracidade da mensagem profética. A história, enfim, para eles era a voz de Deus que, através das centúrias, proclama que o bem espera os justos e aos ímpios os espera o desastre. Parecia-lhes perfeitamente natural considerar profética à história, pois a viam como uma manifestação do governo de Deus. Ao considerar os Profetas Posteriores, os grandes nomes proféticos, é conveniente ter em mente um esquema cronológico enquanto os lemos, e conhecer o fundo histórico de seus escritos. Os primeiros destes profetas foram Amós e Miqueias, que apareceram a meados do século VIII, quando se aproximava a invasão da Palestina pelos assírios, e quando o reino de Samaria foi destruído para sempre em 722 a.C. Ambos os profetas sublinham a nota que do princípio ao fim constituirá a mensagem profética e o próprio coração de sua mensagem. Tal mensagem se sintetiza na bem conhecida expressão: proclamação do monoteísmo ético. O que significa isto? Comecemos pela palavra monoteísmo. O homem creu em Deus de três maneiras. A primeira delas se conhece como politeísmo. Polloi, em grego, significa muitos: theos, Deus ou um deus. Assim que politeísmo é a palavra que descreve a religião que tem muitos deuses. Este tipo de religião foi praticada pelos antigos gregos e romanos, e incluía Zeus, Apolo, Ateneu e Afrodite, entre outros deuses. É a fase dos muitos deuses. Segundo, o henoteísmo é a etapa em que se crê num só deus válido para um grupo, mas sem excluir os deuses dos demais. Considerava-se que cada país tinha um deus cuja influência se limitava ao território nacional, e ninguém negava que os deuses de outros países fossem
Introdução à Bíblia (William Barclay) 33 igualmente reais e poderosos dentro de sua esfera de influência. Isso o compreendeu Jefté quando perguntou aos amonitas: "Não é certo que aquilo que Quemos, teu deus, te dá consideras como tua possessão? Assim, possuiremos nós o território de todos quantos o SENHOR, nosso Deus, expulsou de diante de nós" (Juí. 11:24). Aqui podemos notar que Yahweh era o único Deus para os hebreus, sem prejuízo de que Quemos fosse igualmente real para os amonitas. Nesta etapa cada nação tinha o seu próprio deus, e era o único verdadeiro para eles, mas isso não negava nenhum direito aos deuses de outras nações. Por último está a fé monoteísta: só há um Deus de todos os seres humanos; Deus deste universo e de qualquer outro universo existente ou por existir. Esta foi a mensagem inicial dos profetas: há um Deus e só um, e Israel deve ser-lhe fiel. Coisa nada fácil. Visto que cria-se que cada nação possuía seu próprio deus, quem chegava a um país estrangeiro levava. por assim dizê-lo, seu próprio deus e lhe construía ali um santuário. Isto foi o que sucedeu com Salomão, quando Israel se converteu em grande potência política: vieram as alianças estrangeiras que, com frequência, eram afiançadas casando o rei de um país com uma princesa do país aliado. Isso fez Salomão, e as princesas estrangeiras trouxeram os seus próprios deuses e deusas, contaminando assim a verdadeira religião com tantas crenças falsas (1Rs. 11:1-8). O monoteísmo parece algo perfeitamente natural na atualidade; mas naqueles dias constituía uma grande descoberta, que cabia aos profetas preservar. Mas estes grandes profetas não só ensinavam o monoteísmo, mas também o monoteísmo ético. Atualmente religião e moralidade andam de mãos dadas. Mas, por estranho que pareça, na antiguidade iam de mãos dadas religião e imoralidade. Citaremos três exemplos. Na antiguidade,
Introdução à Bíblia (William Barclay) 34 quando alguém fundava uma cidade, levantava os primeiros alicerces e seus portais sobre o corpo sacrificado de seu próprio filho (1Rs. 16:34), No culto do deus Moloque se sacrificavam crianças (2Rs. 23:10). O culto de Baal era um culto à fertilidade; considerava-se que os baalins faziam crescer as sementes e maturavam as vinhas. Viam o sexo como a mais potente fonte de fertilidade. Por isso se somavam aos templos de baales muitas sacerdotisas que eram realmente prostitutas consagradas. O ato sexual, realizado com elas, constituía um ato de adoração. Estas "sacerdotisas" eram as prostitutas cúlticas condenadas por Oseias (4:14) . Os profetas tiveram que ensinar as pessoas que nem o mais elaborado ritual do mundo pode substituir a castidade pessoal, a justiça social e o amor para com o homem e para com Deus. A profecia de Amós foi considerada como "um clamor de justiça social", e um dos versículos bíblicos mais citados é o de Miqueias (6:6-8) onde se diz que Deus não quer sacrifícios senão que façamos justiça, amemos a misericórdia e nos humilhemos perante Ele. Isto constitui atualmente parte de nossa religião, mas foram sensacionais descobertas em tempos dos primeiros profetas. Foram eles os grandes monoteístas éticos, cujo tema era que há um só Deus, e que os verdadeiros sacrifícios são a castidade, a misericórdia e a fidelidade. No mesmo século VIII a.C. surgem dois dos grandes profetas antigos, que trazem consigo suas próprias ideias predominantes. Vimos que o grande clamor de Amós e Miqueias é sua insistência na justiça social. Mas Oseias é, acima de tudo, o profeta do amor. Ao falar de Deus, Oseias fala de si mesmo. Deus lhe ordenou tomar uma mulher da rua. fazê-la sua esposa, e tratá-la com amor. Mas ela abandonava o lar e voltava para sua vida passada; cada vez que ela voltava para casa, o profeta a recebia com um amor que jamais se deu por vencido. Oseias apresentava um argumento vivo: Se um homem pode amar assim, quanto mais pode Deus amar?
Introdução à Bíblia (William Barclay) 35 Vimos, pois, a Miqueias e Amós com seu enfoque na justiça social e a Oseias com sua ênfase no amor. Mas ainda falta um dos grandes profetas do século VIII. O livro de Isaías conta com três seções, a primeira das quais, capítulos do 1 a139, pertence ao mesmo período. Isaías foi um aristocrata, amigo de reis, e a nota dominante de sua mensagem é a santidade. "Santo, santo, santo, é o SENHOR dos Exércitos" (Is. 6:3). Isaías sempre confronta os homens com o Deus santo, e sempre insiste em que nada pode substituir a justiça e o amor. Toda a cadeia de sacrifícios, novilúnios, sábados e preces são inúteis em si mesmas: Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas (Is. 1:10-17).
De modo que, cada um dos grandes profetas do século VIII tem seu tema dominante: Amós e Miqueias, a justiça social; Oseias, o amor; Isaías, a santidade. Ao lê-los é muito conveniente ter em mente o tema pessoal de cada um. Nos séculos VII e VI a.C. houve outro grupo de profetas que proclamaram a palavra de Deus à luz do momento que viviam, sempre interpretando seu momento histórico à luz do propósito de Deus. No ano 627 a.C., Sofonias viu na invasão cita proveniente do Este, o princípio do juízo que Deus tinha preparado para os assírios, moabitas, filisteus e também para Judá. Interpretou-a como advertência de que o Dia do Senhor estava perto. Simultaneamente, Naum ocupava-se em predizer graficamente a queda de Nínive. No momento pareceu como se Deus fosse intervir espetacularmente na história, mas o que sucedeu foi que surgiu outra grande potência: Babilônia. É então quando Habacuque questiona por escrito a causa da tardança de Deus, ao ver que as tiranias não faziam mais que suceder umas após outras.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 36 Surgiram então dois dos maiores profetas, que descobriram o que teria que resgatar a religião judaica do colapso. Coube a Jeremias viver a queda de Jerusalém às mãos dos babilônios, no ano 586 a.C., enquanto que Ezequiel viveu com o povo o exílio em Babilônia, onde sonhava com uma nova ordem das coisas no futuro. Mas a maior contribuição que forneceram ambos os profetas foi estabelecer que a religião não só é de caráter nacional, mas também pessoal, e ainda mais que isso. Resulta-nos atualmente difícil compreender que precisaram transcorrer vários séculos para que o indivíduo emergisse como tal. Com antecedência, os seres humanos não se viam como indivíduos, mas sim como membros de um grupo, quer fosse a tribo, a família ou a nação a que pertenciam. Bom exemplo disto encontramos no Antigo Testamento em relação ao pecado de Acã. Apesar de que Deus tinha ordenado a destruição de todo o despojo na guerra com Jericó, Acã reservou algo para si. As consequências resultaram desastrosas para toda a nação Quando se descobriu que Acã era o culpado, tomaram junto com "seus filhos, suas filhas, seus bois, seus asnos, suas ovelhas, sua tenda e tudo o que tinha" e tudo isto foi destruído totalmente (Js. 7:1-26). O castigo recaiu sobre o grupo e não só sobre o indivíduo Na Austrália podemos ainda encontrar algo semelhante. Os aborígenes australianos são considerados entre os grupos mais primitivos que restam no mundo. Não faz muito ainda, se fosse perguntado a um deles seu nome, respondia com o nome de sua tribo: "Pertenço a tal tribo. ..." Quando alguém se vê como parte de um grupo, ao sobrevir um desastre nacional também se vem a rivalidade a fé. Mas quando se descobre que a relação com Deus não depende da pertinência a um grupo, senão de que se é uma pessoa, então a relação individual com Deus prevalecerá acima de todo conflito ou catástrofe coletiva Isto é precisamente o que descobriram Jeremias e Ezequiel: que o indivíduo
Introdução à Bíblia (William Barclay) 37 está com relação a Deus não por ser judeu mas por ser pessoa. Foi assim como descobriram a religião pessoal que, como toda grande descoberta, foi algo simples mas como poucos, de suma importância. Surgiu por então o novo poderio persa, sobre o qual a segunda seção de Isaías tem algo extraordinariamente importante a dizer. Esta seção abrange os capítulos do 40 ao 55. Ciro, o caudilho persa, não só não tinha intenção de libertar os judeus do jugo babilônio, mas também é improvável que tivesse ouvido falar de Yahweh, ou que lhe desse alguma importância em caso de que assim teria sido. Mas Ciro ocupava um lugar no plano e propósito de Deus, e Deus Se refere a ele dizendo que "Ele é meu pastor e cumprirá tudo o que me apraz". Deus ungiu a Ciro e o toma pela "mão direita" (Is 44:28; 45:1). Ciro teria que libertar os judeus. Embora não o soubesse, ele era só um instrumento nas mãos de Deus. Eis aqui uma verdadeira filosofia da história: toda a história está nas mãos de Deus, e até quem jamais tenha ouvido falar de Deus pode, sem o saber, ser servo e instrumento dEle. Com uma fé assim qualquer um pode enfrentar o mundo. Nesta porção de Isaías encontramos a figura do Servo Sofredor, que tanto influiria no pensamento neotestamentário e até no do próprio Jesus. A figura do Servo Sofredor culmina em Isaías 53, onde este é ferido por nossas rebeliões e moído por nossos pecados (v. 5). O perfil completo do Servo Sofredor encontra-se nos chamados Quatro Cânticos do Servo (Is 42:1-4: 49:1-7; 50:4-9; 52:13–53:12). Observe-se que os verbos-chave de Isaías 53, até o versículo 10, estão no tempo pretérito. É porque descrevem a alguém que o profeta sabe que sofreu, mais que alguém que devia vir. É verdade que às vezes o profeta estava tão seguro de seu anúncio que se referia a Ele como algo já efetuado, embora Isaías 53 não deveria ser lido dessa maneira.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 38 Segundo Isaías 53, quem é aquele que sofre? Esta pergunta sempre tem fascinado e evitado os eruditos. Parece-me que quem melhor trata o tema é C. R. North, em seu livro The Suffering Servant in Deutero-Isaiah (O Servo Sofredor em Deutero-Isaías) North relata que S. R. Driver, eminente estudioso do Antigo Testamento, pensava escrever um comentário sobre Isaías, mas desistiu de fazê-lo perante o emaranhado labirinto de interpretações que existem em torno do servo. Será este servo o próprio Isaías, quem segundo a tradição judaica sofreu o martírio e foi sepultado na tumba de um criminoso? Assim parece tê-lo pensado o eunuco etíope (At 8:34). Ou se referirá a Jeremias, quem se vê a si mesmo como "manso cordeiro, que é levado ao matadouro" (Jr. 11:19)? Ou será Joaquim descrito pela tradição judaica como aquele que se entregou a Nabucodonosor em sacrifício para salvar Jerusalém da destruição (2Rs. 24:8-20)? Ou, em vez disso, refere-se a Zorobabel, quem depois de jogar papel preponderante no exílio desaparece misteriosamente da narração (Ag. 1:1, 12, 14; 2:21-23; Zac. 4:6-10)? Ou, é o Servo a própria nação de Israel, que sofre em redenção por seus pecados e os do mundo? Não sabemos. Mas o que sabemos, sem lugar a dúvida, é que a figura do Servo Sofredor se realizará absolutamente em Cristo. Em todo o Novo Testamento Jesus vai sendo identificado com o Servo Sofredor (At. 3:13; 3:26; 4:27,30: 8:26-35; Mt. 8:14-17; 12:14-21; Lc. 22:37; 2Co. 5:21; 1Pe. 1:19; 2Pe. 22:25). Nenhuma figura do Antigo Testamento se acha tão incrustada no Novo, como esta do Servo Sofredor do Segundo Isaías. Encontramos, depois que Assíria e Babilônia passam à história, que uma nova potência mundial aparece no cenário. Trata-se da Pérsia, a quem cabe a vez de dominar os acontecimentos. Para os judeus isto se reveste de grande importância, pois os persas lhes permitiram retornar a Jerusalém depois do cativeiro em Babilônia. E a fins do século VI e
Introdução à Bíblia (William Barclay) 39 durante o século V se apresentam Ageu e Zacarias, animando-os a reconstruir o Templo em ruínas e a tratar de restaurar a glória perdida. Também se encontra ali Obadias, quem recrimina a Edom porque permaneceu indiferente perante a escravidão dos judeus. Além disso, está Joel, quem anima o povo em momentos difíceis, assim como Malaquias os estimula a restaurar o ardor de uma fé que tinham deixado esfriar. Quando a devoção decaiu, o povo tratou de substituir a Deus com cultos inferiores e ofertando o mais barato e comum ao seu alcance (Ml. 1:6-14). E quando o desânimo e o desespero reinam., Malaquias trata de avivar em seus corações o fogo da devoção. Resta mencionar o livro do profeta Jonas. Embora pequeno, é um dos mais grandiosos do Antigo Testamento, porque demanda dos judeus o abandonar seu exclusivismo. Chama-os a levar a palavra de Deus aos gentios, a alegrar-se quando eles também aceitam a mensagem de salvação, e a crer que mesmo Nínive pode ser salva igualmente, se ela se arrepender. No Antigo Testamento Jonas é o livro missionário por excelência e, talvez, um dos últimos, pois provavelmente data do século IV a.C. Agora nos cabe perguntar quando foi que os livros proféticos deixaram de ser meras joias da literatura devocional para fazer parte das Escrituras. I. Cabe aqui a mesma observação que fizemos a respeito de outros livros do Antigo Testamento. Muito antes de que fossem parte integral da Escritura já eram conhecidos, utilizados e amados. Já tinham demonstrado o seu poder para iluminar a mente, e para consolar e fortalecer o coração, o que lhes valeu um lugar nas Escrituras.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 40 Foi durante o exílio quando as obras dos profetas chegaram a ser conhecidas e amadas, em virtude de duas razões: anunciaram a sorte que aguardava o pecador, o desobediente e aquele que abandona o caminho de Deus para seguir seus próprios caminhos. Isto se cumpriu ao pé da letra e agora o povo conhecia de sobra o que esperava a uma nação que desatendia a voz de Deus. Cumpriu-se o anúncio dos profetas, mas a mensagem profética não terminou ali. Assim como tinham proclamado uma mensagem de condenação para o desobediente proclamavam também outra mensagem de esperança para o penitente. E os judeus estavam convencidos de que assim como se cumpriu a condenação, também veriam realizar a esperança. Em seu livro How to Read the Bible (Como ler a Bíblia), F. C. Grant assinala o processo seguido pela mensagem profética: a) Seus pecados estão por encontrar você: é seguro que a justiça lhe sobrevirá ... logo. b) Embora o castigo de Deus seja severo, Ele continua preocupado por aqueles a quem castiga, pois o Seu propósito não é aniquilar, mas antes, salvar. c) Nesta última hora, antes de que o juízo o alcance, arrependa-se! Se você o fizer, Deus suspenderá a ameaça de castigo e restaurará ao seu favor. d) Deus, quem certamente conhece tudo o que tem que passar, sabe também que há de sobreviver um pequeno remanescente de arrependidos, à maneira do toco de uma árvore. Destes brotos ele poderá levantar de novo a nação ou família da Aliança, que tenha escolhido. Ou seja, que a mensagem profética se compunha de ameaça e promessa em partes iguais, de catástrofe e resgate de meia-noite e amanhecer. Os judeus, pois, liam e estudavam os profetas e deles recebiam fortaleza; sabiam que se tinham razão quanto ao juízo, tinham
Introdução à Bíblia (William Barclay) 41 também razão quanto à anunciada restauração. Nos dias de maior tribulação acharam esperança profética. II. Mas houve outro fator que contribuiu para outorgar lugar destacado a esta literatura profética. Era considerada um grande exemplo de uma voz que tinha sido silenciada para sempre. Já não havia quem dissesse: "Assim diz o Senhor". Como dizia nostalgicamente o Salmista: "Já não vemos os nossos símbolos; já não há profeta; nem, entre nós, quem saiba até quando" (Sl. 74:9). Pelo menos na época de Zacarias, já se considerava um enganador a quem pretendia ser profeta: "Quando alguém ainda profetizar, seu pai e sua mãe, que o geraram, lhe dirão: Não viverás, porque tens falado mentiras em nome do Senhor; seu pai e sua mãe, que o geraram, o traspassarão quando profetizar" (Zc. 13:3). E até nos Apócrifos se lê: "Foi esta uma grande tribulação em Israel, qual não tinha havido desde o dia em que não mais aparecera um profeta no meio deles" (1Mc 9:27, Bíblia de Jerusalém). E acrescenta, à eleição de Simão como príncipe e sumo sacerdote, que isso era "até que surgisse um profeta fiel" (1Mc. 14:41, BJ). Esperariam, pois, "à espera de que viesse algum profeta que se pronunciasse a esse respeito" (1Mac. 4:46, BJ). A princípios do século IV a.C. os profetas já pertenciam ao passado esplendoroso, cuja voz se apagou para sempre, o que lhes outorga uma grandeza inigualável. III. Só é possível deduzir a partir de quando as profecias eram consideradas parte das Escrituras. No segundo livro dos Macabeus 2:13, diz-se que Neemias "tinha reunido uma biblioteca e posto nela os livros dos reis, dos profetas e os de Davi e as cartas dos reis sobre as ofertas". Sempre foi parte da tradição judaica que Esdras teve grande participação na formação da coleção escriturística. Embora simples tradição, bem poderia ser que para então, 400 a.C., os escritos proféticos estivessem já colecionados e organizados.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 42 Há, entretanto, algo que nos poderia dar uma pista razoável. Evidentemente o livro de Daniel é profético, pois prediz o futuro. O estranho é que os judeus nunca o classificaram entre os livros proféticos, mas sim entre os Escritos. Isto indicaria que Daniel apareceu quando a lista dos profetas foi enclausurada, pois de outra maneira ele teria sido incluído nela. Visto que o livro de Daniel deve datar-se para o ano 165 a.C, poderíamos assumir como provável que, para então, já se tinha fechado a lista de nomes dos profetas. De modo que, existe a possibilidade de que os profetas tenham sido considerados como Escritura ao redor do ano 200 a.C. O Antigo Testamento foi integrando-se lentamente e ganhando a aceitação irrefutável por causa de ser muito evidente sua inspiração. Para o ano 400 a.C. a Lei já era considerada Escritura Sagrada e provavelmente para o ano 200 a.C. os Profetas formavam par com a Lei. Só resta que vejamos como alcançaram a mesma posição os Escritos e neles focaremos agora nossa atenção. Vimos que os Escritos constavam de onze livros: Salmos, Provérbios, Jó, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Rute, Lamentações, Ester, Esdras-Neemias, Crônicas e Daniel. Os Escritos não constituem um grupo unificado e homogêneo como os da Lei e os Profetas. Mais parece uma coleção miscelânea que se chegou a ver como livros isolados. Nunca alcançaram a posição dos outros dois grupos. Alguns se liam em algumas ocasiões especiais na sinagoga mas não de maneira regular e sistemática como a Lei e os Profetas. Quando os judeus falavam de suas Escrituras tinham em mente a Lei e os Profetas. Cristo declarou que não tinha vindo para destruir a Lei e os Profetas, e sim para cumpri-los (Mt. 5:17), sustentou que a Lei e os Profetas residem no princípio de fazer aos outros como queremos que nos façam a nós (Mt 7:12). A Lei e os Profetas antecediam a vinda do Reino (Lc. 16:16), foram precisamente Moisés e os Profetas os que Cristo explicou e
Introdução à Bíblia (William Barclay) 43 interpretou a caminho de Emaús (Lc. 24:27), e são eles os que se leem na sinagoga (At. 13:15). Se alguma outra seção for acrescentada às Escrituras no Novo Testamento, essa seção é a Lei, os Profetas e os Salmos (Lc. 24: 44). Nos Escritos há um pouco de tudo. Em How Came the Bible? (Como Veio a Bíblia?), E. J Goodspeed os divide assim: Discussão filosófica da religião: Jó e Eclesiastes; Lamentos: Lamentações; Cantos de amor: Cantares; Relatos: Rute e Ester; História sacerdotal: Crônicas. Em How to Read the Bible (Como ler a Bíblia), F. C. Grant distingue neles: Poesia: Jó, Salmos, Cantares e Lamentações; Sabedoria: Eclesiastes e Provérbios; Narrações: Ester e Rute; Profecia: Daniel; História: Esdras- Neemias e Crônicas. Os Escritos constituem a literatura religiosa de toda uma nação, e nela foram ganhando seu lugar, não como um todo, mas sim ocupando seu lugar um por um. Mas antes teríamos que nos perguntar como é que alcançaram a categoria de Sagradas Escrituras. Vimos visto que a partir do século IV a.C. os judeus tinham a convicção de que a voz de Deus havia cessado. O que equivaleria a dizer que qualquer livro posterior a Esdras não tinha possibilidade de incorporar-se às Escrituras por estar fora do período considerado de inspiração direta. Os rabinos chegaram a uma conclusão bastante estranha a este respeito
Introdução à Bíblia (William Barclay) 44 Se o autor de um livro era conhecido, mas se sabia que o que tinha escrito caía fora do período de inspiração, então sua obra não podia ser incluída na lista de Escritura Sagrada. Isto sucedeu com o livro Eclesiástico, que é um livro formidável e cuja omissão do cânon foi lamentada por muitos. Foi escrito por Jesus Ben Siraque, ao redor do ano 180 a.C. e traduzido ao grego por seu neto em 132 a.C. Tanto o autor como a data eram conhecidos, e portanto foi eliminado do cânon. Por outro lado, os rabinos sustentavam que se o livro era de autor desconhecido e tinha suficiente validez religiosa para aspirar ao cânon, então podia ser-lhe lhe atribuído qualquer das figuras consagradas dentro do período de inspiração. Em consequência, visto que ninguém sabia quem tinha escrito Rute, foi atribuído a Samuel, Lamentações a Jeremias, Provérbios e Eclesiastes a Salomão, Jó a Moisés, Cantares a Salomão (ou pelo menos ao período de Ezequias). Todos os Salmos se adjudicaram a Davi, mesmo quando a metade do livro diz muito claramente: "Aqui terminam as orações de Davi, filho de Jessé" (Sl 72:20). Esdras e Neemias foram atribuídos a Esdras, quem adquiriu uma posição única na tradição judaica. Os rabinos afirmavam que "A Torah foi esquecida por Israel até que Esdras veio de Babilônia e a restabeleceu". Acrescentavam que, se a Lei já não tivesse sido dada por Moisés, Esdras teria sido o indicado para recebê-la. Já retomaremos o lugar de Esdras na tradição. Realmente foi muito afortunado que os rabinos judeus tenham encontrado a maneira de preservar estes livros, pois de outra maneira poderiam ter desaparecido. Agora assomamos ao processo que conduziu a que estes Escritos fossem reconhecidos como Escrituras canônicas, e logo os consideraremos um por um. Há cinco evidências fragmentárias que se combinam para nos proporcionar a data.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 45 I. Já mencionamos a citação em 2 Macabeus 2:13, que fala da biblioteca fundada por Neemias e de como colecionou os livros sobre os reis, os profetas e os escritos de Davi. Se for possível considerar esta data como histórica, então podemos afirmar que Neemias começou a colecionar os Salmos e assim pôs a base para essa seção das Escrituras que depois foi conhecida como os Escritos II. Também fizemos referência ao prólogo que escreveu o neto de Jesus Ben Siraque quando traduziu ao grego o livro escrito por seu avô. Em tal prólogo faz menção aos grandes e ricos tesouros de instrução e sabedoria transmitidos pela tradição, incluindo a Lei e os Profetas e os livros de seus seguidores. Fala de como seu avô tinha estudado a Lei, os Profetas e os livros de nossos antepassados. Fala da Lei, os Profetas, e outros livros. Nunca emprega o termo de Escritos para designá-los, mas é evidente que para ele havia uma adição à Lei e os Profetas, quer dizer, uma terceira seção das Sagradas Escrituras. III. Deste modo mencionamos que Lucas 24:44 fala de que Jesus, depois da Ressurreição, explicou aos Seus discípulos o que a Lei, os Profetas e os Salmos diziam dEle. IV. No livro apócrifo 4º. de Esdras, que nas edições dos livros apócrifos aparece como 20 de Esdras, há um relato (Capítulo 14) extremamente fictício da obra de Esdras. Para então já se perdeu a Lei e Esdras tinha sido designado por Deus para restaurá-la. Segundo este relato, Esdras foi levado a um campo, junto com outros cinco homens, e ali lhe deu de beber, numa cálice, um líquido que ardia como fogo. Durante quarenta dias e quarenta noites, Esdras ditou sem parar aos cinco escribas até completar noventa e quatro livros. Então, segue a lenda, o Altíssimo lhe disse: "Publica os vinte e quatro livros que escreveu primeiro e deixa que todos os leiam, sejam dignos ou não de lêlos. Mas conserva os setenta que escreveu por último, para dá-los aos
Introdução à Bíblia (William Barclay) 46 sábios de seu povo". Certamente, esta é só uma lenda; mas o importante é que este livro foi escrito na segunda metade do século I de nossa era, quando as Escrituras judaicas constavam já de 24 livros, que é a cifra que inclui os Escritos. Para essa data os Escritos formavam já parte das Escrituras. V. Ao redor do ano 100 de nossa era, Josefo, o historiador judeu, opinou que os livros judeus ficavam já fixados e estabelecidos, sem que nenhum livro pudesse ser tirado nem acrescentado. Tudo isso concorda, pois também se reconheceu que no ano 90 d.C. os rabinos fixaram finalmente o conteúdo das Escrituras no Concílio da Jâmnia, perto de Jope. Foi então quando os Escritos se consideraram completos Ao lembrar a variada miscelânea que representam os Escritos, não é de surpreender-se saber que nem todos eles se tornaram Escrituras com a mesma rapidez e unanimidade. Alguns deles jamais foram postos em tela de dúvida, como os Salmos, que constituíam o hinário e o livro de orações do templo. Estavam intimamente relacionados com a adoração e liturgia do santuário. Cada dia da semana cantava com seu salmo especial, com um comentário rabínico que explicava sua relação com esse dia. O Salmo 24 era lido no primeiro dia da semana. "Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém", que comemorava o primeiro dia da criação, "quando Deus possuía o mundo e o governava". O Salmo 48 correspondia ao segundo dia. "Grande é o SENHOR e mui digno de ser louvado", porque no segundo dia da criação "Deus dividiu suas obras e reinou sobre elas". O Salmo 82 era o do terceiro dia da semana: "Deus está na reunião dos deuses", "porque nesse dia apareceu a terra onde está o Juiz e os que são julgados. O Salmo 94 era para o quarto dia: "Ó SENHOR, Deus das vinganças ", "porque no quarto dia
Introdução à Bíblia (William Barclay) 47 fez Deus o sol, a lua e as estrelas, e será vingado naqueles que os adorem". Para o quinto dia tinham o Salmo 81: "Cantai de júbilo a Deus, força nossa", "pela variedade de animais criados nesse dia para louvar o nome de Deus". O Salmo 93 era para o sexto dia: "Reina o SENHOR", "porque nesse dia Deus terminou Suas obras e fez o homem e o Senhor estabeleceu Seu domínio sobre todas as Suas obras". Para o sétimo dia, no sábado, lia-se o Salmo 92: "Bom é render graças ao SENHOR e cantar louvores ao teu nome, ó Altíssimo", "porque o sábado simboliza o dia em que, depois da dispensação de seis mil anos, Deus reinará sobre tudo, e Sua glória e Seu serviço encherão toda a terra com ações de graças". Os Salmos ocupavam lugar supremo na adoração pública e na devoção particular. Seu lugar nas Escrituras jamais foi disputado. Os cinco rolos ou megilloth, relacionados com os grandes festivais e comemorações, tinham seu lugar assegurado embora, como logo veremos, alguns foram recusados. Os livros de Crônicas, Jó, Esdras Neemias e Daniel tinham seu próprio lugar visto que deles lia o sumo sacerdote na véspera do Dia do Perdão, que é a principal comemoração no calendário religioso judaico. Os livros recusados foram principalmente três: o Cantares, pois a menos que seja convertido em alegoria, o que nunca foi a intenção do original, é um apaixonado poema de amor de carne e osso e, na realidade, um dos grandes poemas de amor da literatura universal. Eclesiastes entrou em disputa devido ao seu pesaroso pessimismo. Sua mensagem é: vive a vida ao máximo, porque nada há para além da morte que o reino das sombras (Ec 9: 10). A objeção contra Ester foi que, por raro que pareça, nunca é mencionado o nome de Deus nele embora seja a justificação do Purim, festa que comemora a vitória de
Introdução à Bíblia (William Barclay) 48 Mardoqueu sobre Hamã, mas que não se encontra entre os festivais prescritos pela Lei. Mas depois do Concílio da Jâmnia todos estes questionamentos e dúvidas ficaram calados. Aqui temos, pois, como sob a direção e providência de Deus o Antigo Testamento chegou ao seu estado atual. Terminaremos com três apontamentos: I. O Antigo Testamento compõe-se de livros que passaram pela prova dos anos antes de que poderiam ingressar no âmbito sagrado das Escrituras. Ninguém se sentou para escrever um livro com a intenção de que logo resultasse Escritura Sagrada. Antes, o livro foi escrito e se entregou à humanidade e no tempo. No transcurso de anos e séculos os homens chegaram a amar e a pôr o seu coração nesse livro, que Deus utilizou para Seus propósitos. E assim chegou o dia em que o livro chegou a ser reconhecido nada menos que como mensagem de Deus. Se temos permissão poderíamos acrescentar que estes livros alcançaram a posição de Escrituras Sagradas segundo o princípio da sobrevivência dos mais aptos. Cada livro foi resultando tão efetivo e tão claramente usado por Deus que inevitavelmente foi reconhecido como parte integrante da Bíblia. II. Tenhamos presente que para escrever o Antigo Testamento foram necessários vários séculos, do século VIII a. C. ao século II a.C. Consideremos isto em termos da história contemporânea. Equivaleria a um livro que se começou a escrever no século XIV e fosse terminado no século XX. Este é um tema que abordaremos depois, mas fica fácil ver a diferença entre o mundo dos anos 1300 e o dos anos 1900. Seiscentos anos são muito tempo, com mais razão dez séculos.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 49 III. Além disso, o Antigo Testamento começou a creditar-se como Escrituras Sagradas em 621 a.C, quando se achou o Deuteronômio, e terminou no Concílio da Jâmnia, no ano 90 de nossa era. Quer dizer, que se necessitaram mais de 700 anos para integrar o Antigo Testamento como cânon sagrado. As raízes do Antigo Testamento são, pois muito profundas.
Introdução à Bíblia (William Barclay) CAPITULO III
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DESENVOLVIMENTO DO NOVO TESTAMENTO Atualmente o Novo Testamento consta de 27 livros: quatro evangelhos, um livro de história eclesiástica, vinte e uma cartas e um Apocalipse. Encontramos pela primeira vez este formato do Novo Testamento no ano 367 de nossa era. O grande bispo Atanásio costumava enviar ao povo uma carta pastoral cada Domingo de Ressurreição. Aproveitou a ocasião em 367 para fazer saber aos cristãos quais eram os livros que podiam ler com a aprovação da Igreja. Com esse motivo fez uma lista que foi a primeira que se fez dos livros do Novo Testamento. Isto significaria que foram necessários mais de três séculos para completar o Novo Testamento. Desde o princípio a fé cristã foi a fé de um livro. O judaísmo foi o berço do cristianismo e o centro do judaísmo judaísmo é a sinagoga. A igreja igreja cristã primitiva não tinha intenção alguma de apartar-se do ancestral culto judaico. Encontramos a Pedro e a João caminho ao Templo para orar (At. 3:1). Vemos que Estêvão e Paulo iniciam sua carreira de pregadores debatendo na sinagoga (At 6:8-10; 9:20-21). O culto na sinagoga girava em torno da leitura das Escrituras. Tal era sua razão de ser. Começava com a recitação do credo do judaísmo e logo se ofereciam algumas preces. Terminava com uma homilia do rabino ou de algum visitante distinto. Mas no centro do culto estava a leitura bíblica que era para o que o povo se congregava. Quando foram fechadas as portas da sinagoga aos cristãos e não puderam continuar adorando ali, levaram consigo o estilo cúltico da sinagoga. Ainda mais, levaram-se consigo o Livro da sinagoga. Nesses primeiros dias da igreja primitiva ainda não se tinha escrito o Novo Testamento. Não foi o Novo Testamento o que produziu a Igreja, mas sim foi a Igreja a que produziu o Novo Testamento. Assim que, no
Introdução à Bíblia (William Barclay) 51 princípio, nos cultos dominicais de então era lido o Antigo Testamento em geral na versão grega dos Setenta (Septuaginta), que se denotava com os números romanos LXX. O Antigo Testamento, pois, foi o livro dos primeiros dias da Igreja, Igreja, e dele se lia e se citavam passagens. passagens. Por exemplo o sermão de Pedro no dia do Pentecostes que abrange 27 versículos de Atos 2:14-40, contém dez versículos do Antigo Testamento, como segue: At. 2:17-21, tira-se de Joel 2:28-32; At. 2:2528, do Salmo 16:8-11; At. 2:34-35, do Salmo 110:1, etc. O sermão de Paulo em Antioquia (At. 13:16-41) abrange 26 versículos, nove dos quais provêm do Antigo Testamento: do versículo 16 ao 22 22 apresenta-se um resumo histórico do Antigo Testamento até os dias de Davi; o versículo 33 corresponde ao Salmo 2:7; o 34 foi tomado de Isaías 55:3; o 35 do Salmo 16:10; o 41, de Habacuque 1:5, e o 47 de Isaías 49:6. O Antigo Testamento constituiu o livro sagrado da igreja primitiva. Para compreender como surgiu o Novo Testamento vejamos primeira a ordem em que foi escrito. Talvez o mais interessante de tudo seja descobrir que a primeira coisa que se escreveu do Novo Testamento foram as cartas de Paulo. Calcula-se que estas foram escritas entre os anos 49 e 62 de nossa era. As cartas de Paulo foram precisamente isso: cartas, escritas em sua maioria com relação a alguma situação local ou temporal Algo andava mal em Tessalônica ou Corinto, Corinto, por exemplo, e Paulo Paulo lhes escrevia para corrigir a situação. F. C. Grant acerta quando afirma que "Se tivesse havido telefone então, certamente Paulo o teria utilizado. Mas nesse caso jamais teríamos tido nenhuma carta escrita por ele! Quando Paulo escrevia para corrigir algo em Tessalônica, Galácia ou Corinto, não o fazia como escritor, mas sim como pastor. E é preciso levar em conta que ele escreveu muito antes da invenção da imprensa.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 52 Suas cartas foram cartas manuscritas, pois a máquina de escrever era desconhecida: escritas como originais e sem cópia, para corrigir questões locais e temporais que andavam mal. Certamente, Paulo tratava situações locais e temporais à luz da verdade eterna, mas suas cartas não eram outra coisa senão cartas, e nada há tão temporal, local ou passageiro como uma carta. É imprescindível, pois, lembrar que nunca Paulo teve a intenção de publicar suas cartas, como o entendemos hoje editorialmente. Trataremos agora de reconstruir como o Novo Testamento chegou a ser parte da Sagrada Escritura. Não é algo comprovado, mas se ajusta aos fatos conhecidos. Comecemos por precisar que, em sua maior parte, as cartas do Apóstolo eram guardadas na igreja recipiente e só ali. Não se publicavam como livros, e sim eram enviadas como cartas. Como é que foram resgatadas, recuperadas e, finalmente, publicadas? O livro de Atos provavelmente foi pela primeira vez publicado ao redor do ano 90. Por estranho que pudesse parecer, se só tivéssemos contado com o livro de Atos, jamais nos teríamos informado de que Paulo tinha escrito cartas. Nos Atos não se mencionam absolutamente. Possivelmente o que aconteceu foi que ao se publicar os Atos dos Apóstolos, compreendeu-se de repente quão extraordinário personagem tinha sido Paulo. Subitamente Paulo cobrou vida e, então, cada igreja que conservava alguma de suas cartas deu-se conta do tesouro que tinha. Foi assim como se buscaram, juntaram-se e colecionaram suas cartas, para logo as compartilhar, com o que se converteram em posse de toda a Igreja, e não simplesmente a correspondência de algumas congregações locais. Podemos dar por sentado que o que revelou a grandeza de Paulo foi a publicação dos Atos assim como o que iniciou o movimento para reunir suas cartas. Para o ano 90 ainda não se consideravam as cartas
Introdução à Bíblia (William Barclay) 53 de Paulo como parte das Escrituras, mas constituíam já um dos tesouros mais apreciados da Igreja Vemos, pois, que as cartas paulinas foram escritas entre os anos 49 a 62, e que possivelmente se redescobriu toda sua grandeza ao publicar o livro de Atos no ano 90. Enquanto isso, o que sucedia com o resto do Novo Testamento e, especialmente, com os evangelhos? Em geral, as datas para os evangelhos atuais são as seguintes: de 65 a 70, para São Marcos; de 80 a 90 para Mateus e Lucas, e o ano 100 para João. Como é que demoraram tanto em escrever-se e em constituir-se em livros canônicos da Igreja? O que foi o que conduziu, em última instância, a que fossem postos por escrito. I. Em primeiro lugar, o cristianismo primitivo surgiu em meio de uma civilização não literária. Veio ao mundo séculos antes de que se inventasse a imprensa, quando se desconhecia a produção maciça de livros de hoje e, portanto, a pessoa não podia ter nem uma ideia do que tudo isto significava. Tal era especialmente o caso do judaísmo. Os rabinos se opunham categoricamente a escrever seus ensinos: "Não ponha nada por escrito", diziam. A memória do bom aluno e do bom mestre "é como uma cisterna bem emplastada que nunca perde uma só gota". Também é possível que resistissem a escrever porque parecesse que o escrito buscasse competir com a autoridade das Escrituras. Portanto, só as Escrituras se mantinham por escrito; qualquer outro ensino era transmitido verbalmente. Mishnah é
o que poderíamos considerar como os comentários e amplificação das leis do Antigo Testamento. É a aplicação do Antigo Testamento a casos particulares, e não se pôs por escrito até o século III d.C. Um resumo moderno da Mishnah ocupa algo mais de 800 páginas. Os rabinos conservavam tudo isto de cor, pois no mundo antigo a palavra escrita não ocupava o lugar que agora tem. Papias, por exemplo, quem
Introdução à Bíblia (William Barclay) 54 foi um dos principais recopiladores de informação na igreja primitiva, escreveu: "Não creio que o que provém de livros possa me ser tão proveitoso como o que procede da voz viva e permanente”. Jamais poderia considerar-se como literária a etapa inicial da Igreja, à maneira das etapas que sucederam a invenção da imprensa. Ao menos no Oriente, berço do cristianismo, era muito mais natural transmitir todo o conhecimento e ensino verbalmente que por escrito. II. É preciso considerar, além disso, o fato de que o primeiro impacto do cristianismo foi entre as classes mais pobres e incultas. "Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; – escreve São Paulo aos coríntios – "visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento" (1Co. 1:26). Foi entre os pobres, os marginados e os escravos, onde primeiro causou o evangelho maior efeito. A princípios do século III um filósofo pagão, chamado Celso, acusou o cristianismo de atrair só o pobre, o ignorante e o inculto. Dizia Celso que a atitude e convite cristão era: "Ninguém que seja culto se aproxime, nem o sábio nem o sensitivo, pois a todos eles os consideramos maus; mas se há alguém ignorante, insosso ou inculto, se alguém for tolo, aproxime-se de mim sem temor… é só ao torpe, ao caipira ao grosseiro e ao escravo, à criança e à mulher a quem quiser, e puder persuadir." A comunidade cristã primitiva nem lia livros nem os produzia. III Mais adiante veremos que existiam, então, métodos para produzir livros, que prenunciavam a produção em massa. Mas que mercado teria havido para as possíveis publicações cristãs? Os materiais para escrever não eram nada baratos. Escrevia-se numa substância proveniente da planta do papiro, que se produzia em folhas de 25 x 20 cms. A folha mais barata custava US$ 0.03 dólares e a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 55 de melhor qualidade era vendida entre US$0.08 e US$0.10 cada uma. Se considerarmos que o salário que se pagava então era de US$ 0.06, compreenderemos que uma só folha de papiro era mais cara que a média do salário mínimo. A esse preço, pouquíssimas pessoas eram as que podiam dar-se ao luxo de comprar todo um livro. Vimos também no Capítulo II que copiar livros não era nada barato. Evidentemente o custo das Escrituras ficava fora do alcance da maioria dos cristãos, e inclusive das igrejas Os custos de produção bastavam para impedir o desenvolvimento de algo equivalente à nossa literatura cristã. IV. Durante a vida dos apóstolos havia pouca demanda de livros. Os apóstolos e seus associados imediatos eram livros vivo nos quais estava escrita a mensagem cristã. Por ter sido testemunhas presenciais, enquanto eles vivessem não haveria necessidade de ter livros. V. Possivelmente o fator que menos estimulava a produção de livros era a crença generalizada de que a Segunda Vinda era iminente. Basta ler o capítulo 7 de Primeira de Coríntios, por exemplo, em que Paulo desalenta casamentos num mundo que, segundo se cria, aproximava-se rapidamente ao seu fim. Visto que a Segunda Vinda estava às portas, não havia tempo nem justificação para andar escrevendo livros, pois o fim do mundo podia ocorrer de um momento para outro. Fatores como estes foram os que principalmente retardaram o desenvolvimento da literatura cristã. Mas, inevitavelmente, chegou um momento em que sua função se tornou algo indispensável. I. A morte dos apóstolos e das demais testemunhas presenciais pôs fim à época em que a mensagem era passada verbalmente. Para o ano 70, do grupo apostólico provavelmente só João restou vivo. Havia, pois, que
Introdução à Bíblia (William Barclay) 56 assentar os fatos tal como tinham sucedido. Era dificilmente natural que a palavra escrita ocupasse agora o lugar de "a voz viva e permanente". Eusébio cita o relato de Irineu de como foram escritos os evangelhos. Segundo Irineu, depois da morte de Pedro e Paulo, "Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito aquelas coisas que Pedro tinha pregado; e Lucas, auxiliar de Paulo, registrou num livro o evangelho que Paulo tinha declarado". O escrito teria que ocupar agora o lugar da voz viva. A época das testemunhas presenciais era coisa do passado; agora começava a da página escrita. II. Quando o cristianismo transpôs as fronteiras da Palestina, e particularmente ao fazer contato com a cultura e civilização romana, penetrou numa sociedade literária, onde o livro era parte da vida. Havia em Roma livrarias em cujos pilares se anunciavam os livros mais recentes. Estas livrarias também serviam como centros de reunião da sociedade culta. Os editores romanos utilizavam mão de obra de escravos para produzir seus livros, empregando até cinquenta ou cem escravos para tomar ditado simultâneo. Certamente, não faltavam os erros, mas este ditado em massa permitia copiar e produzir livros mais baratos e com maior rapidez. Por exemplo, o primeiro livro de Marcial constava de 119 epigramas em 700 linhas de verso; copiado desta maneira era vendido em cinco denários, uns US$ 0.40 dólares. Logo que o cristianismo saiu da Palestina para inserir-se no mundo da cultura e da literatura, encontrou-se num ambiente afeito aos livros, onde logo o relato cristão também teria que ser escrito. III. O cristianismo foi desde seus inícios uma religião missionária. E, tendo a todo um mundo por evangelizar, obviamente os missionários não podiam permanecer por muito tempo no mesmo lugar. Portanto, precisavam deixar aos novos conversos em cada lugar uma constância escrita da mensagem que lhes tinham comunicado. E a tarefa do missionário, até o dia de hoje, continua sendo primordialmente a de
Introdução à Bíblia (William Barclay) 57 produzir constância escrita do relato cristão mesmo quando isto implica a criação de um novo alfabeto. Uma religião missionária está quase obrigada a converter-se em religião literária. IV. À medida que a Igreja foi crescendo e se desenvolvendo também foram chegando pessoas com ideias estranhas e até perigosas. Dito de outra maneira, não demoraram para surgir as heresias. Em tal situação, era indispensável que a Igreja contasse com um livro "oficial" que uniformizasse o relato da vida e ensinos de Jesus. Isto foi provido pelo Novo Testamento e especialmente os evangelhos. V. Já vimos como a suposta iminência da Segunda Vinda retardou a aparição da literatura cristã. Mas, ao não efetuar-se tal acontecimento, a Igreja começou a certificar-se que se encontrava numa situação mais ou menos permanente na qual o escrito tinha uma razão de ser e era verdadeira necessidade. A produção de material escrito transformou-se em necessidade natural da Igreja. Chegados a este ponto na reflexão sobre os evangelhos, surge uma pergunta. Já vimos que houve considerável demora na aparição do evangelho escrito. Jesus tinha sido morto ao redor do ano 30, e o primeiro evangelho escrito não saiu à luz até os anos 65 ou 70 aproximadamente. De modo que, o que sucedeu durante esses trinta e cinco ou quarenta anos em que não havia escritos sobre a vida e ensinos de Jesus? Será que durante esse tempo o relato da vida e ensinos de Jesus foi perdendo em exatidão e ganhando em exagero? Esta é uma pergunta natural, à luz de nosso século; mas no século 1 as coisas eram diferentes. Para começar, a memória dos antigos era muita mais retentiva que a nossa. Devia sê-lo. Poderia afirmar-se que a página impressa,
Introdução à Bíblia (William Barclay) 58 particularmente a do livro barato ou facilmente acessível, tendeu a eliminar a memória mnemônica. A pessoa que na antiguidade queria reter alguma história ou fatos precisos, não tinha mais remédio que memorizá-los, pois os livros eram escassos e caros. Xenofonte conta que Nicerato dizia: "Meu pai ansiava ver-me crescer como homem de bem, e para este fim me obrigou a memorizar todo Homero de modo que ainda hoje sou capaz de repetir, de cor, toda a Ilíada e a Odisseia”. As obras citadas contêm 24 livros cada uma com médio de 500 linhas por livro. Tal façanha retentiva era algo que os jovens gregos cultos realizavam como parte de sua educação. Se na atualidade quisermos desfrutar de alguma passagem ou nos referir a ela, buscamo-la num livro; antes, quando havia poucos livros ou não existiam, tudo se armazenava na memória. Numa época em que a memória era prodigiosa, não havia perigo de que os conhecimentos se esquecessem ou se distorcessem. Mas simultaneamente operava um processo, corolário inevitável de toda memória retentiva: o que se memoriza tende a estereotipar-se. O mesmo relato tende a repetir-se de maneira idêntica, o que se observa no modo que têm as crianças de apreciar os contos. Quando a criança gosta de um conto, sempre é preciso repetir-se o conto da mesma maneira, pois não aceita desvios no relato que conhece e ama. Da mesma maneira, os evangelhos foram adquirindo certas formas estereotipadas. O que em tempos recentes originou um método de estudar os evangelhos que se denominou Crítica das Formas Literárias. Seu objetivo é descobrir em que forma circulou a tradição cristã antes que se escrevessem os evangelhos. Os eruditos chegaram a identificar cinco formas diferentes em que os relatos evangélicos refletem estereótipo. I. Em primeiro lugar encontramos os chamados paradigmas, aforismos ou histórias declarativas. Trata-se de fragmentos da tradição,
Introdução à Bíblia (William Barclay) 59 cuja razão de ser é a de preservar alguma declaração de Jesus. Aqui a história é secundária, os detalhes são escassos e tudo o que importa é o que Jesus disse. Vejamos dois exemplos. O relato em Marcos 2:23-28 existe somente para emoldurar a expressão de Jesus: "O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado". O relato em Mateus 9:10-13 existe para preservar o aforismo de Jesus: "Não vim a chamar justos, mas sim pecadores". Tais relatos não existem pelo próprio relato, mas pelo paradigma ou expressão central que contêm. A expressão vem a ser uma joia engastada no relato. II. Há relatos chamados contos curtos (do alemão Novellen) que falam de alguma cura efetuada por Jesus. Todos eles seguem o mesmo formato. Começam com uma declaração a respeito da doença, seguem com o relato da cura, e terminam referindo-se às consequências da cura. Um exemplo simples é o relato da cura da sogra de Pedro (Mc 1:29-31): (l) Identifica-se o mal: "A sogra de Simão achava-se acamada, com febre"; (2) relata-se a cura: "Então, aproximando-se, tomou-a pela mão; e a febre a deixou"; (3) consequência ou resultado: "passando ela a servilos". Quase todos os relatos dos milagres de Jesus mostram esta ordem. Assim foi como o estilo da narração ficou estereotipado antes de que fosse escrito. III. Encontram-se tais epigramáticos e memoráveis de Jesus que carecem de contexto. Todas as histórias declarativas surgem de algum incidente: as declarações são sentenças ou frases soltas de Jesus. Quase a totalidade do Sermão da montanha está formado de tais declarações. IV. Chegamos a duas palavras que aplicamos em sentido técnico. A primeira delas é lenda que, neste sentido, não põe em tela de juízo a historicidade do evento a que se refere. A lenda é um relato que se refere
Introdução à Bíblia (William Barclay) 60 a algum personagem ou lugar que se considere santo ou destacado, e que se conta com propósitos morais ou religiosos. Neste sentido, tecnicamente os relatos sobre o nascimento e infância de Jesus se classificam como lendas. V. A segunda palavra que aplicamos em sentido técnico é a de mitos. Lembremos mais uma vez que o termo técnico mito não ajuíza a veracidade do relato. Os gregos usaram a palavra mythos para referir-se a qualquer relato sobre temas celestiais ou eternos, narrado em termos de objetos terrenos ou temporais. Neste sentido, os relatos sobre a tentação e a transfiguração (Mt. 41-11; 17:2-8) classificam-se tecnicamente como mitos porque falam de figuras celestiais e eternas em circunstâncias de espaço e tempo. Clichês como estes foram os que rapidamente se adotaram para os relatos evangélicos no período que vai da vida de Jesus, aqui na terra, ao momento em que os evangelhos como hoje os conhecemos, foram escritos. E algo que não devemos passar por alto é que estes relatos se repetiram, vez após vez, na pregação e instrução dos recém-chegados à comunidade cristã. Isto é importante, porque tais relatos jamais foram propriedade particular, por assim dizer, mas de domínio público. Se a forma do relato sofria alguma variação, imediatamente a assembleia queria conhecer a causa. Os relatos repetiam-se uma e muitas vezes, e sua exatidão era vigiada tanto pela memória do relator como pela memória da Igreja. Assim como os relatos não provinham de um só indivíduo, tampouco dependiam da memória de uma só pessoa. No princípio foram possessão da comunidade: continuamente se pregavam e ensinavam, e continuamente o povo os escutava. Quando os relatos evangélicos se repetem constantemente a indivíduos e a grupos se reduz grandemente a possibilidade de que sejam distorcidos ou falsificados. A veracidade dos evangelhos não é garantida por um só indivíduo, mas pelo testemunho unânime da Igreja.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 61 Todo isso nos coloca diante de um fato ainda mais importante com relação aos evangelhos. Primariamente não se trata de documentos fundamentalmente históricos, pois não eram vistos como meras biografias de Jesus. De fato, constituíram o material para a pregação da igreja primitiva. Quanto ao propósito de seu evangelho, João nos diz: "Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" (Jo 20:31). Não se trata de redigir a vida de Jesus, pois não achamos nos evangelhos muitas características biográficas. Por exemplo, em nenhum evangelho se descreve a aparência física de Jesus, e mesmo com todos os evangelhos não é possível traçar cronologicamente sua vida neste mundo. Diz-se que há duas maneiras de escrever uma história. Uma, é seguir os acontecimentos cronologicamente, dia a dia, hora após hora, evento após evento, em ordem estrita, tratando de abranger tudo sem omitir detalhe. Outra maneira consiste em selecionar incidentes e episódios que sirvam como janelas para aparecer à mente e ao coração do personagem descrito. Este último método é o que usaram os redatores dos evangelhos. Não pretendem seguir a Jesus passo a passo e dia após dia. Escolhem entre o que disse e fez, para nos abrir escotilhas que nos permitam aparecer em sua mente e coração. A diferença entre ambos métodos é a que há entre uma foto e um retrato. A fotografia mostra uma reprodução detalhada da pessoa; no retrato, o artista capta e faz ressaltar algumas de suas características dominantes. A foto reproduz exatamente o aspecto externo; a pintura trata de revelar o caráter íntimo, assim como a mente e o coração Os evangelhos, pois, não são biografias nem fotografias, mas sim intentos para revelar a mente, o coração e o caráter de Jesus. E isto não como algo interessante ou como simples contribuição histórica, senão para que o leitor possa captar a mente de Deus em Jesus Cristo. Os
Introdução à Bíblia (William Barclay) 62 evangelhos não são meras descrições de Jesus, mas sim convites para crer nEle como o Filho de Deus. Até aqui mencionamos os evangelhos e qual é o seu objetivo, e as cartas de Paulo. No Novo Testamento temos também as cartas de Tiago e Pedro, Judas e João. Entre os evangelhos e as cartas está o livro de Atos. Poderia dizerse que este é o livro mais importante do Novo Testamento, pois sem ele desconheceríamos a história da igreja primitiva, exceto o que poderíamos adivinhar ou deduzir das cartas. Até se três dos evangelhos se perdessem, contudo, ficaria um que nos daria algum esboço de Jesus. Mas sem Atos toda a história inicial da Igreja se veria envolta em densas trevas. De passagem, é inapropriado chamar este livro de "Os Atos dos Apóstolos". Os únicos apóstolos que se mencionam são Tiago, cuja morte é mencionada numa só frase (12:2); Pedro, João (que sempre anda com Pedro e nunca fala), e Paulo. Seria melhor chamá-lo "Livro de Homens Apostólicos". No manuscrito grego não aparelhe o artigo "os" nem antes de "Atos" nem antes de "Apóstolos". O livro não pretende ser um relato completo. O que faz é abrir-nos uma série de janelas através das quais possamos contemplar eventos significativos na história da igreja primitiva Atos nos diz três coisas: Em primeiro lugar, como se estendeu a Igreja e, acatando as ordens de Jesus, como sua mensagem partiu de Jerusalém a toda a Judeia, a Samaria, e até os confins do mundo (At 1:8). Em segundo lugar, diz-nos como este assombroso movimento se iniciou com apenas cento e vinte pessoas (At 1:15), e como tudo isso foi obra do Espírito Santo (At 1:8). O primeiro grande relato nos fala da
Introdução à Bíblia (William Barclay) 63 vinda do Espírito Santo no Pentecostes (At 2). Daí em diante, o Espírito Santo é Aquele que vai ditando cada avanço da igreja cristã. Foi o Espírito quem aconselhou a Filipe que me aproximasse do etíope (At 8:29); quem indicou a Pedro que recebesse a comissão da parte de Cornélio (At 10:19); quem auspiciou a saída de Paulo e Barnabé, de Antioquia rumo à primeira viagem missionária (At 13:2); quem guiou a Igreja para que aceitasse em seu seio os gentios (At 15:28); e quem guiou os passos de Paulo desde a Ásia Menor até a Europa (At 16:7). Na realidade, Atos é o livro dos Atos do Espírito Santo. Em terceiro lugar, Atos nos diz qual foi a mensagem da igreja primitiva. Aqui temos um resumo dos discursos de Pedro (At 2:14-36; 3:12-26, 4:8-12,4:24-30); de Estêvão (At 7:2-53), e de Paulo (At 13:1641,14:15-17,17:22-30). Embora não se trata de reproduções taquigráficas, não há razão para duvidar que nos dão a substância dos sermões aos primeiros cristãos. Por eles nos inteiramos da essência da mensagem cristã: I. Raiou uma nova era mediante a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. II. A vida inteira de Jesus, mas particularmente a Sua morte e ressurreição, são o cumprimento da profecia. III. Cristo voltará para julgar os vivos e os mortos. IV. Portanto, é preciso arrepender-se e receber o perdão e o dom do Espírito Santo. V. Quem não se arrepende, colherá as consequências de sua rejeição.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 64 Nestes discursos há algo de suma importância para nós. Os primeiros pregadores nunca deixavam de mencionar a Ressurreição. Alguém disse: a Ressurreição "foi a estrela no firmamento do cristianismo primitivo". E surpreendentemente, em tais sermões não se estabelece relação alguma entre a morte de Jesus e o perdão dos pecados À igreja primitiva estava totalmente embargada com a fé proveniente da Ressurreição e da experiência no Espírito. W. O. Davies o explica, dizendo que ainda não adquiria plena consciência da cruz, ou seja, o "fato crucial" (o fato decisivo) da cruz, como o chamou P. T. Forsyth. A interpretação da cruz chegaria à Igreja através da mente e do coração prodigiosos de Paulo. No Novo Testamento há um livro – nem evangelho nem carta – que é também um dos livros mais desconcertantes. Nós o conhecemos como Apocalipse, ou Revelação. Embora nos seja tão estranho, e no Novo Testamento é único em seu gênero, entretanto, era um tipo de livro muito comum na época em que se escreveram os livros do Novo Testamento. Os judeus dividiam o tempo em duas eras: a era presente tão má que não pode ser reformada, e que está destinada à destruição; em contraste, estava a era vindoura, a era dourada – segundo se cria – quando tudo será como Deus quis que fosse; quando os bons entrarão em sua alegria, e os maus serão destruídos. Mas surge a pergunta: Como haveria uma era para se transformar na outra? Como se transformaria o mal desta era na glória da era por vir? Nos dias do Novo Testamento os judeus estavam já convencidos de que a mudança jamais seriam realizadas por meios humanos nem através de um processo de reforma. Só poderá efetuar-se com a total destruição desta era e o nascimento da nova que seria a Era de Deus. Como, então, teria lugar a mudança? Pois a mudança teria lugar no dia do Senhor, quando o mundo atual e tudo que nele há seria desintegrado e seria destruído, e haveria
Introdução à Bíblia (William Barclay) 65 um juízo final, e quando do caos surgiria um novo mundo, que virá a ser o mundo de Deus, criado de novo para o povo de Deus. Isto deu lugar a toda uma série de livros, cada um sob o título de Apocalipse. Esta palavra significa tirar o véu, revelar. Seu propósito era descrever os eventos terríveis dos últimos dias e o terror do juízo, assim como a idade de ouro que estava por chegar. Naturalmente que estes livros eram inteligíveis só para os iniciados que conheciam a "chave", visto que descreviam coisas nunca antes vistas nem ouvidas e nem sequer imaginadas. Muitos destes livros sobreviveram porque quanto mais escura era a história dos judeus, e mais dura sua sorte, e mais opressiva sua escravidão e subjugação, com maior ardor sonhavam com a chegada do dia em que Deus invadiria a história, e se efetuaria a dramática mudança e se iniciaria a nova era. A maioria destes "apocalipse" são livros judaicos, mas o nosso é um espécime de literatura apocalíptica cristã, razão pela qual é para nós o livro mais difícil de entender do Novo Testamento. Lembremos, entretanto, que apesar de nos ser tão estranho, este era um gênero literário bastante comum em tempos neotestamentários. Em seu formato atual, pois, o Novo Testamento compõe-se dos quatro evangelhos, Atos, cartas de Paulo, Tiago, Pedro, João, Judas e outros, e o Apocalipse. A maioria dos eruditos concorda que foram necessários uns setenta anos para que fosse escrito. Possivelmente o primeiro livro que se escreveu tenha sido a carta aos Gálatas, pelo ano 49, e possivelmente a segunda carta de Pedro tenha sido a última, ao redor do ano 120. Já vimos que, depois de escrito, o Novo Testamento não assumiu sua forma atual até o ano 367. Agora observaremos alguns marcos proeminentes no caminho rumo à integração do Novo Testamento. Os grandes passos rumo à definição
Introdução à Bíblia (William Barclay) 66 do conteúdo do Novo Testamento deram-se como consequência dos erros que alguns hereges trataram de introduzir na Igreja. O primeiro destes foi Marcião, opulento armador do Sinope, no Mar Negro, quem se estabeleceu em Roma pelo ano 140. Marcião era gnóstico, termo que deriva de uma palavra grega que significa "conhecimento". Os gnósticos eram dos mais perigosos hereges que a Igreja confrontou. Propunham-se explicar a existência do bem e do mal. Sua tese básica era que dos tempos mais remotos tinham existido dois elementos: a matéria e o espírito; a matéria e Deus. Os gnósticos criam que a matéria não tinha sido criada, mas sim era uma substância original que sempre tinha existido e que tinha servido de baseie para a formação do mundo. Esta matéria era essencialmente má, e o Espírito era essencialmente bom. Isto significava que, desde o princípio, o mundo tinha sido feito de um material defeituoso. Isso explicava a angústia, o pecado, o sofrimento e a dor. O material do mundo era mau. Isto significava que o Deus verdadeiro, que é espírito e todo bom, não podia ter tocado absolutamente a matéria e, portanto, não era responsável pela criação. Segundo os gnósticos, o que sucedeu é que Deus foi colocando uma série de emanações, ou éons, cada uma delas cada vez mais distante de Deus. À medida que se afastavam, cada emanação ia ficando mais ignorante de Deus, e no final da escala havia uma emanação, não só ignorante, mas também oposta totalmente a Deus. Precisamente esta emanação remota, ignorante de Deus e hostil tinha criado o mundo. Daí a crença gnóstica de que todas as coisas criadas, incluindo o corpo, eram essencialmente más. Toda matéria era má e só o espírito era bom. Mas os gnósticos foram ainda mais além. Sustentavam que o criador, a emanação remota, ignorante e hostil era o Deus do Antigo Testamento, e que o Deus verdadeiro, o Deus do Espírito, é o Deus do Novo Testamento. A consequência lógica foi que os gnósticos rejeitaram
Introdução à Bíblia (William Barclay) 67 completa e totalmente o Antigo Testamento, por ser o livro do Deus remoto, ignorante e hostil. Além disso, isso implicava expurgar o Novo Testamento de todas as suas referências ao Antigo Testamento. Assim que de todos os livros cristãos, Marcião conservou só uma versão censurada de Lucas. Mas como, ao mesmo tempo, para Marcião São Paulo era um herói, conservou as cartas paulinas como seus livros mais sagrados. Marcião tinha interpretado mal o ataque de Paulo à Lei, como um ataque contra o Antigo Testamento. Assim como o Antigo Testamento constava da Lei, dos Profetas e dos Escritos, o livro "cristão" de Marcião consistia do livro (expurgado) de Lucas e dos escritos do apóstolo Paulo. A Igreja viu-se na necessidade de apresentar uma resposta. O ataque marcionita colocou a Igreja diante de duas obrigações. Primeira, definir sua atitude perante o Antigo Testamento (o qual Marcião descartava em sua totalidade) e, segunda, definir quais eram os livros do Novo Testamento. A Igreja não só não rejeitou, mas também confirmou, sua fé no Antigo Testamento. Existem também indícios de que se deu à tarefa de definir o cânon do Novo Testamento. Há uma lista de livros do Novo Testamento formulada ao redor do ano 170, conhecida como o Cânon Muratoriano por seu descobridor. O princípio encontra-se ligeiramente mutilado, mas é fácil de ver qual era seu conteúdo: os quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), Atos dos Apóstolos, as cartas de Paulo na ordem peculiar de: Coríntios, Efésios, Filipenses, Colossenses, Gálatas, Tessalonicenses e Romanos aos quais acrescenta as epístolas pastorais a Timóteo, a Tito e a carta a Filemom. Inclui também a carta de Judas e a primeira e segunda cartas de João e o Apocalipse. Conta ademais com a sabedoria de Salomão e, não sem vacilação, com um segundo Apocalipse, o de Pedro. Uma das surpresas é que omite a Primeira Carta de Pedro. Outros livros omitidos: Tiago, Segunda de Pedro, Terceira de João e Hebreus, que foram
Introdução à Bíblia (William Barclay) 68 também os que mais demoraram em tomar seu lugar no cânon do Novo Testamento de maneira firme e inquestionável. Isso nos permite apreciar que, pelo fim do século II, o Novo Testamento já estava a caminho de adotar sua forma definitiva. Deixaremos de momento a história da forma que finalmente tomou o Novo Testamento, para nos referir a outra pergunta: Como terminou o processo de redação do Novo Testamento? Por que e quando chegou a igreja cristã à conclusão de que não se escrevessem mais livros para o Novo Testamento? Ou, mais precisamente:Quando e por que decidiu a Igreja que a lista de livros sagrados estava já completa e que não se deviam acrescentar mais? Isto também sucedeu por influência de um herege. Para o fim do século II apareceu em cena um homem chamado Montano, convencido de que os princípios originais da Igreja tinham baixado de nível. Registrou que Jesus tinha anunciado que o Espírito deveria renovar em verdade e poder a Igreja. O quarto evangelho estabelecia que Jesus havia dito: "Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; ... porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar" (Jo. 16:12-14). Jesus tinha prometido que viria o Espírito Santo, o Paracleto, o qual desenvolveria e completaria Sua mensagem, por assim dizer. O caso é que Montano apareceu declarando que ele era o Paracleto prometido, e que se propunha dar aos homens a nova revelação prometida por Jesus. Certamente isso foi um problema para a Igreja que resolveu opinando que a revelação de Deus já tinha sido dada e completada, e que a revelação em seu sentido mais amplo tinha terminado. Declarou a Igreja que já tinham sido escritos todos os livros sagrados que deviam escrever-se, e que as Escrituras Sagradas encontravam-se completas Como dissesse Tertuliano, não sem amargura, quem posteriormente se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 69 converteu ao montanismo, que o Espírito Santo tinha sido esquecido dentro de um livro. De qualquer maneira, declarou-se enclausurado o cânon do Novo Testamento. A Igreja opinou que seria certo de nunca acabar se em cada oportunidade alguém ia apresentar-se trazendo uma nova revelação. Deveria estabelecer-se uma data para a revelação total, que julgaria a todas as demais revelações. Decidiu-se, pois, que tinha chegado o tempo de já não escrever mais revelações. Isto não significava que já não se cresse no poder revelador do Espírito Santo. A diferença estava em que, durante os primeiros tempos, o Espírito Santo tinha capacitado os homens para que escrevessem os livros sagrados da religião cristã; e, nos últimos dias, o Espírito Santo os tinha capacitado a entender, interpretar e aplicar o que tinha sido escrito. Que requisitos tinha que preencher um livro para ingressar na lista suprema de livros sagrados da Igreja? O dilema era se um livro era apostólico ou não (escrito por um apóstolo ou alguém do grupo). Pelo que tocava aos evangelhos, Mateus e João foram escritos por apóstolos; Marcos e Lucas preencheram os requisitos, pois considerava-se que Marcos era discípulo e intérprete de Pedro, embora Lucas fosse considerado como aquele que tinha posto por escrito o evangelho pregado por Paulo. Pela mesma razão terminou por adjudicar-se a Paulo a carta aos Hebreus. Era bem sabido que Paulo não tinha sido precisamente seu autor. Como Orígenes o expressou em frase memorável: "Quem escreveu a carta aos Hebreus, só Deus sabe". Paulo se destacou por suas cartas. A carta aos Hebreus era tão valiosa que a Igreja tinha que conservá-la como um de seus livros sagrados. Assim que para lhe dar a posição requerida foi acrescentada às cartas de Paulo. Existia uma boa razão para fazer da autoridade apostólica a pauta de aceitação de qualquer livro como sagrado e normativo para a Igreja. O cristianismo é uma religião histórica, pois toma sua origem e poder de uma pessoa histórica, Jesus de Nazaré. Assim que, tudo o que se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 70 precisava era estabelecer uma cadeia ininterrupta de evidências que conduzisse até Ele. O mundo estava cheio de histórias de deuses que morriam e ressuscitavam. A única maneira de garantir que o evangelho não era um relato de tantos, era relacioná-lo com uma testemunha presencial capaz de dizer: "Sei que isto é verdade porque o vi com meus próprios olhos". A insistência na autoridade apostólica teve uma consequência interessante. Em termos gerais, parece estranho que a Igreja tenha conservado quatro diferentes evangelhos, pois isto pode dar lugar a situações incômodas. Por exemplo, o quarto evangelho consigna o incidente da purificação do Templo no começo do ministério de Jesus, conquanto os outros três o têm no final. O fato de que haja quatro evangelhos com frequência gera problemas de harmonização. Por volta do ano 180, alguém chamado Taciano fez um experimento para harmonizar os evangelhos no Diatessaron, que literalmente significa "Através dos quatro". Arranjou para incluir quase tudo usando tesouras e cola. Um fragmento do Diatessaron diz assim: Era o dia da preparação; e amanhecia para o sábado (Lc. 23:54); e ao chegar a noite na preparação, ou seja no dia anterior ao sábado (Mt.27:57; Mr.15:42) chegou um homem que era membro do concílio (Mt 27:57; Lc. 23:50), e era de Arimateia, uma cidade da Judeia, cujo nome era José (Mt. 27: 57; Lc. 23:50), bom e justo, que era discípulo de Jesus, só que secretamente por temor aos judeus (Mt. 27:57; Lc. 23:50; Jo. 19:38). E esperava o reino de Deus (Lc. 23:5I). Este homem não tinha consentido com o propósito deles (Lc. 23:51). Certo, o Diatessaron de Taciano não foi redigido muito artisticamente, mas era de esperar-se que os quatro evangelhos ficassem entrelaçados numa só narração. Isso foi impedido pela esmagadora importância do testemunho apostólico. Os evangelhos foram escritos por
Introdução à Bíblia (William Barclay) 71 apóstolos ou homens apostólicos e, portanto, era de maior importância conservá-los tal como estavam que tratar de harmonizá-los. Tanto que Irineu chegou a escrever sobre a existência de quatro evangelhos: "Tal como o mundo em que vivemos tem quatro esquinas e há quatro ventos universais, e como a Igreja está esparramada por toda a terra, e como o evangelho é pilar e base da Igreja e o fôlego de vida, era de se esperar que tivesse quatro pilares que respirem imortalidade por cada lado e reavivem a vida dos homens. É, pois, evidente que o Verbo, arquiteto de todas as coisas, quem está entronizado sobre os querubins e mantém juntas todas as coisas, tendo sido manifestado aos homens, deu-nos o evangelho em forma quádrupla, mas mantendo-o unido por um Espírito". Assim foi como afinal se sustentou que era tão natural que houvesse quatro evangelhos como há quatro pontos cardeais. Foi assim como os evangelhos e as cartas assumiram seu lugar como livros da Igreja; e o confirmaram quando se começaram a ler no culto público da Igreja. Com o correr do tempo, ficaram estabelecidos definitivamente ao fazer parte de cada culto de adoração. Completaremos nosso relato acrescentando outra observação. Houve um período em que a posição de alguns livros não era muito segura. Dois grandes eruditos da igreja primitiva empreenderam investigações sobre o conteúdo das Escrituras cristãs. O primeiro deles foi Orígenes, que viveu de 182 a 251. Em seu tempo já ocupavam lugar indiscutível os quatro evangelhos, as cartas de Paulo, incluindo Hebreus, Primeira de Pedro e de João assim como o Apocalipse. Orígenes chegou a supor que Pedro tinha deixado outra carta, mas o disse como algo de natureza duvidosa. Conhecia a Segunda e Terceira cartas de João, mas, segundo Orígenes, nem todos as consideravam genuínas. E jamais menciona a Tiago nem a Judas.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 72 O segundo erudito foi Eusébio da Cesareia, o grande historiador eclesiástico que viveu de 270 a 330. Eusébio agrupou em três classes os livros da Igreja: os aceitos universalmente, os que estavam em disputa e os espúrios. Universalmente aceitos eram os quatro evangelhos e os Atos, as cartas de Paulo, incluindo Hebreus, 1 de João e 1 de Pedro. O Apocalipse estava entre os aceitos e os disputados. Os livros em disputa eram Tiago, Judas, 2 de Pedro, e 2 e 3 de João. Acrescentava que 2 de Pedro carecia de aceitação geral, mas como a tantos tinha sido de proveito, possivelmente fosse Escritura Sagrada. Acrescentou que para muitos a carta de Tiago era espúria, e que são poucos os escritores primitivos que a mencionam. A lista de Eusébio era praticamente idêntica à lista de Orígenes. Chegamos à última etapa quando encontramos, pela primeira vez, os livros do Novo Testamento listados como os conhecemos hoje. Tratase da carta de Atanásio, já mencionada, emitida no Domingo de Ressurreição de 367. Como marca toda uma época, vamos citar a passagem-chave dessa carta: carta: Não deve haver vacilação alguma em voltar a citar os livros do Novo Testamento, pois eles são: quatro evangelhos, segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João. Estão, além disso, os Atos dos Apóstolos e as chamadas sete epístolas universais dos apóstolos, como segue: uma de Tiago e duas de Pedro, logo três de João seguidas por uma de Judas. Além do anterior, há quatorze epístolas do Apóstolo Paulo, postas na seguinte ordem: a primeira é aos Romanos, logo duas aos Coríntios e depois destas as epístolas aos Gálatas e logo aos Efésios. Além disso as epístolas aos Filipenses e aos Colossenses, e duas aos Tessalonicenses e a epístola aos Hebreus. E em seguida duas cartas a Timóteo e uma a Tito, e a última a Filemom. Além disso, também o Apocalipse de João.
Aqui temos pela primeira vez o Novo Testamento tal como agora o conhecemos.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 73 Assim que para o ano de 367 já se completou o Novo Testamento e o cânon estava fechado. Nunca mais teria que ser mudado. Entretanto, vale a pena ver o que Lutero tem a dizer sobre este tema. Atualmente as atitudes dos reformadores nos parecem incrivelmente livres e radicais. Assumiam liberdade absoluta com relação ao lugar que outorgavam a certos livros. Lutero tinha sozinho uma pedra de toque, que expressou com sua habitual e vívida violência: "Aquilo que não ensina a Cristo, não é apostólico", embora Pedro ou Paulo o tenham dito. E, ao contrário, aquilo que prega a Cristo é apostólico embora nos venha de Judas, Anás, Herodes ou Pilatos. Lutero colocava em lugar supremo certos livros e a outros em lugar secundário. O Novo Testamento conta de vinte e sete livros. Na página titular de sua própria tradução do Novo Testamento, Lutero imprimiu e numerou 23 deles; logo, no final e num pequeno grupo à parte, sangrados mas sem numeração alguma colocou a Tiago, Hebreus, Judas e Apocalipse. Segundo ele, Tiago era "uma epístola de palha porque nada se encontra ali da natureza do evangelho". Ensina a justificação pelas obras, em contraposição a Paulo, e nada tem a dizer sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus, nem sobre o Espírito Santo. Em três porções de Hebreus, nos capítulos 6,10,12 diz-se que não pode haver arrependimento depois do batismo o qual, para Lutero, está em flagrante contradição com os ensinamentos dos evangelhos e de Paulo. Judas não lhe parece mais que um extrato de 2 de Pedro; de fato está incluída principalmente em 2 de Pedro. Quanto a Apocalipse, Lutero opina: "Considero que não é nem apostólico nem profético... meu espírito não pode aceitá-lo". E acrescenta: "Ele me guiou pelos livros que apresentam a Cristo puro e claro... Afinal de contas, nele, Cristo não é nem ensinado nem reconhecido”.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 74 Os princípios de Lutero estavam completamente claros. Em seu Prefácio ao Novo Testamento, escreve algo que temos que copiar integralmente: O Evangelho de João e as epístolas de Paulo, especialmente a de Romanos, e a primeira epístola de Pedro são verdadeiramente o miolo e a medula de todos os livros... Neles não encontra a descrição de muitos milagres de Cristo, e sim, descrito magistralmente, acha como a fé em Cristo vence o pecado, a morte e o inferno, e nos comunica vida, justiça e salvação. Esta é a verdadeira natureza do Evangelho... Se tivesse que prescindir das obras de Cristo, ou de Sua pregação, prescindiria de Suas obras antes que de Seus ensinos, pois as obras não me ajudam, mas Suas palavras dão vida, como Ele mesmo o diz... Agora. João tem pouco a dizer sobre as obras de Cristo, mas muito sobre Sua pregação. Portanto, o Evangelho de João é o evangelho único, tenro, genuíno e principal, muito acima e a grande distância dos outros três quanto se refere à preferência. Da mesma maneira, as epístolas de Paulo e Pedro ultrapassam em muito aos outros três evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas. Numa palavra, o evangelho de João e sua primeira epístola, as epístolas de São Paulo, especialmente Romanos, Gálatas e Efésios, e a primeira epístola de Pedro são os livros que mostram a Cristo e nos ensinam tudo o que é necessário e bom crer, embora jamais visse nem ouvisse nenhum outro livro ou doutrina.
Lutero não vacila em traçar distinções entre os livros do Novo Testamento. Deixa também claramente estabelecido que sua preferência é de caráter pessoal. No final de sua Introdução a Tiago, Lutero escreve: "Portanto não posso pô-lo entre os livros principais, embora nem por isso impedirei que alguém o faça e o ponha onde melhor lhe pareça e estime, pois nele há muito de bom".
Introdução à Bíblia (William Barclay) 75 Para Lutero, todos os livros do Novo Testamento são santos, mas dentro do Novo Testamento demarca uma espécie de Lugar Santíssimo, de livros onde se pode achar a Cristo sobre todas as coisas. Esta é, pois, a história de como nosso Novo Testamento chegou a ser o que é. E, embora para Lutero e outros muitos eruditos, há entre eles livros mais amados e preciosos que outros, durante os últimos mil e seiscentos anos não lhe foi subtraído ou agregado nenhum outro livro.
Introdução à Bíblia (William Barclay) CAPÍTULO IV
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OS APÓCRIFOS Estudamos o desenvolvimento do Antigo Testamento e do Novo. Mas falta ver outro grupo de livros que constituem o que hoje se conhece como Livros Apócrifos. Frequentemente são publicados junto com o Antigo e o Novo Testamento. Não podemos dizer que sejam universalmente reconhecidos como parte da Bíblia, tal como o são os dois testamentos. Mas tampouco podemos passá-los por alto, pois para a Igreja Católica Romana são parte integral da Bíblia e para a Igreja Anglicana são, pelo menos, considerados como livros sagrados e proveitosos pois formam boa parte do lecionário eclesiástico. Comecemos por examinar o significado da palavra "apócrifos", plural que provém da palavra grega apokryphon, que se aplica às coisas que é preciso conservar secretas e escondidas. A palavra aplica-se a três tipos diferentes de livros, ou informação. I. Aplicava-se a livros extremamente difíceis, muito santos ou muito sagrados para o uso comum. Como já vimos, II Esdras (IV de Esdras) 14:19-48 relata como Esdras restaurou os livros sagrados que tinham sido queimados e destruídos durante o exílio. O relato é legendário, mas revela o lugar que ocupava Esdras na mentalidade popular e, além disso, arroja luz sobre o significado original da palavra apokryphon. Esdras teve a seu cargo o reescrever a Lei que se perdeu. Foi-lhe ordenado que tomasse cinco escribas capazes de tomar ditado rapidamente. Saíram a campo aberto onde Esdras recebeu um cálice "cheio de algo semelhante à água mas de cor de fogo". Esdras o bebeu e começou a ditar. E assim o fez por quarenta dias durante os quais se ditaram e escreveram noventa e quatro livros. Então o Altíssimo disse a Esdras: "Dá a conhecer os primeiros vinte e quatro livros e permite que
Introdução à Bíblia (William Barclay) 77 os leiam tanto os dignos como os indignos. Mas conserva os setenta livros escritos por último para os dar aos sábios dentre seu povo, pois neles está o impulso do entendimento, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento". Segundo isto, os vinte e quatro livros são o Antigo Testamento. Não nos é dito o que eram os outros livros, mas o caso ilustra o fato de que por então se costumava manter em segredo alguns livros, os quais se escondiam do povo. O significado primário da palavra Apócrifos é secretos, ou seja, muito sagrados e elevados para o uso comum. II. Mas atualmente a palavra Apócrifos tem um significado totalmente oposto. Quando nos referimos hoje a uma história apócrifa, queremos dizer que é fictícia. Um relato apócrifo é o contrário de uma narração verídica. Aplica-se a lendas que se tecem em torno de personagens distinguidos. Neste sentido, a palavra Apócrifos descreve algo antes negativo que positivo. III. Mas quando os livros que agora nos ocupam são qualificados de Apócrifos significa que não são para a leitura pública nem para o culto público, embora nada impede que sejam lidos na intimidade do lar para a instrução e o proveito pessoais. Esta é a acepção mais generalizada entre os protestantes de hoje em dia. A Igreja Católica se abstém totalmente de qualificá-los como Apócrifos, pois os considera total e verdadeiramente Escritura Sagrada. Mas a generalidade das igrejas protestantes os aceitam com a denotação de livros de valor secundário, reconhecidamente úteis, mas nunca ao para dos livros que sem discussão são Escritura Sagrada. Vejamos, pois, em primeiro lugar, o que livros se consideram Apócrifos. Trata-se de quatorze ou quinze livros: 1 Esdras 2 Esdras (também conhecido como IV de Esdras) Tobias Judite
Introdução à Bíblia (William Barclay) Adições ao livro de Ester Sabedoria de Salomão Eclesiástico, ou Sabedoria de Jesus Ben Siraque Baruque Carta de Jeremias Oração de Azarias e Cântico dos Três Jovens Susana Bel e o Dragão Oração de Manassés 1 de Macabeus 2 de Macabeus
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Esta lista abrange 15 livros, mas às vezes a Carta de Jeremias se inclui no último capítulo de Baruque, com o que se reduzem a quatorze. Estes quinze livros estão compreendidos em diversos tipos e classificações. I. As adições a livros do Antigo Testamento. Temos as adições a Ester. Tal como aparece no Antigo Testamento, neste livro não se menciona uma só vez o nome de Deus nem se cita um só caso de alguém que ore. Todas as adições a Ester, menos uma, mencionam o nome de Deus, e numa delas é mencionado nove vezes em nove versículos, conquanto em outras se mostra a Ester e a Mardoqueu fazendo oração. Tais adições foram desenhadas com o intento de prover o que faltava no livro original. A oração de Azarias, o Cântico dos Três Jovens, Susana, e Bel e o Dragão, são adições ao livro de Daniel. Azarias é o nome hebraico de Abede-Nego, e tanto a Oração como o Cântico estão nos lábios dos três jovens quando estavam no ardente forno de fogo. A oração é considerada como uma das preces de louvor mais grandiosas do mundo: Bendigam ao Senhor, sol e lua, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, estrelas do céu, cantem em sua honra eternamente.
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Bendigam ao Senhor, todas as chuvas e o orvalho, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, todos os ventos, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, fogo e calor, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, frio e calor, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, orvalho e geada, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, gelo e frio, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, geladas e neve, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, dias e noites, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, luz e escuridão, cantem em sua honra eternamente. Bendigam ao Senhor, relâmpagos e nuvens, cantem em sua honra eternamente. Bendiga, terra, ao Senhor, canta em sua honra eternamente (Daniel deuterocanônico 3:62-74, Dios Habla Hoy).
As outras duas adições a Daniel desfrutam de prestígio próprio. Seu propósito é mostrar a sabedoria de Daniel, e são talvez as duas histórias de detetives mais antigas na literatura universal. Dorothy Sayers as incluiu no princípio de sua antologia Omnibus of Crime (Coleção de obras detetivescas), publicada em 1929. Susana é o relato de uma mulher bela, e virtuosa. Dois anciãos judeus se apaixonam carnalmente por ela. Um dia de verão, Susana anuncia a suas duas faxineiras que deseja banhar-se no lago do jardim. Os anciãos se ocultam atrás dos matagais e, enquanto Susana se banha, saltam sobre ela e tratam de seduzi-la. Mas como ela os rechaça, eles a ameaçam, se não aceder a seus desejos, acusando-a de que estava no jardim nos braços de seu amante. Diante da sua firmeza, eles passam a acusá-la, e é declarada culpada, pois os anciãos eram conhecidos e respeitados. Surge então Daniel, quem solicita que se efetue um novo juízo, coisa que lhe é concedido. Separadamente, Daniel examina os
Introdução à Bíblia (William Barclay) 80 anciãos, fazendo-lhes a mesma pergunta: "debaixo de que tipo de árvore viu você a Susana nos braços de seu amante?". O primeiro responde: "debaixo de uma castanheira"; o outro responde: "debaixo de um carvalho". Com o que imediatamente se evidencia a falsidade da história e Susana sai vindicada. Assim que este relato é um relato exercido em acareação legal. Em Bel e o Dragão há dois relatos. Bel era o deus supremo dos babilônios. Mas Daniel insiste perante o rei que Bel é só um ídolo sem vida. "Como é então – demanda o rei – que Bel consome a vasta quantidade de comida que lhe é deixada todas as noites no templo?". Ocorre que cada noite era-lhe deixado no templo doze porções de farinha refinada, quarenta ovelhas e 227 litros de vinho. Mas Daniel sabia que os sacerdotes tinham um acesso subterrâneo ao templo. As ofertas se depositavam perante o altar e se arrebitavam as portas até o dia seguinte, ficando o templo deserto durante a noite. Daniel, pois, passa a cobrir secretamente todo o piso do templo com cinza fina. Dito e feito: na manhã seguinte a comida tinha desaparecido, e os sacerdotes demandam a morte de Daniel. Mas este chama a atenção do rei para os rastros deixados por homens, mulheres e crianças que aparecem no piso do templo. Desta maneira se descobre o engano dos sacerdotes e Bel fica desacreditado para sempre. Não há dúvida de que nunca houve a intenção de tomar estes relatos como algo histórico. Um escritor os qualificou de "novelas moralistas" e ainda hoje se encontram entre os melhores contos curtos da literatura mundial. II. Nesta lista encontram-se dois magníficos relatos. Tobias: a encantadora narração da viagem que empreende Tobias na companhia do anjo Rafael, disfarçado de homem, e de seu cachorrinho. Não falta um cruento drama em torno de Judite. Em dias de perigo para sua pátria, esta atravessa o campo inimigo, engana a seu chefe, o general assírio
Introdução à Bíblia (William Barclay) 81 Holofernes, leva-o a crer que poderá seduzi-la, embriaga-o, corta-lhe a cabeça e a leva a seu acampamento colocada numa bolsa. Uma das cenas mais fascinantes do mundo dramático! Talvez Shakespeare conhecia e amava estes relatos, pois chamou suas filhas Susana e Judite! III. Existem duas volumosas obras didáticas pertencentes à chamada Literatura Sapiencial. Neste tipo de literatura a palavra Sabedoria não se refere à sabedoria filosófica ou intelectual, mas ao tipo de sabedoria prática para o bem viver perante Deus e perante os homens. A Sabedoria de Salomão foi escrita a fins do primeiro século a.C. ou na alvorada do século I da era cristã. Trata-se de um livro extenso que contém algumas passagens magníficas, dentre as quais escolhemos uma que consola aos que estão em transe de morte: A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá. Ao olhos dos insensatos parecem morrer; sua partida foi tirada como uma desgraça, sua viagem para longe de nós domo um aniquilamento, mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Deus os colocou à prova e os achou dignos de si. (Sabedoria 3:1-5, Bíblia de Jerusalém).
Este livro é atribuído a Salomão, cujo nome é supremo com relação à verdadeira sabedoria. Outro dos grandes livros apócrifos sapienciais se intitula a Sabedoria de Jesus Ben Siraque, melhor conhecido como o Eclesiástico. Foi escrito no hebraico ao redor do 180 a.C. Meio século depois o neto do autor o traduziu ao grego, enquanto estava no Egito. O Eclesiástico contém muitas passagens memoráveis, a mais famosa das quais é sua seção de louvor a personagens distinguidos (Capítulos 44-50). Particularmente renomada é a introdução a tal seção (44:1-9a, 14:15, Dios Habla Hoy):
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Vou fazer o elogio dos homens bons, nossos antepassados de épocas diversas. O Altíssimo lhes concedeu grandes honras e os engrandeceu desde há muito tempo. Reis que dominaram a terra, homens famosos por suas grandes ações, conselheiros cheios de sabedoria, profetas que podiam ver tudo, chefes de nações cheios de prudência, governantes de visão profunda, sábios pensadores que escreviam livros, poetas que dedicavam suas noites ao estudo, compositores de canções, segundo as normas da arte, autores que puseram por escritos seus provérbios ... homens ricos e de muita força, que viveram tranquilamente em seus lares. Todos eles receberam honras de seus contemporâneos e foram a glória do seu tempo. Alguns deixaram um nome famoso que será conservado por seus herdeiros. E há outros a quem ninguém lembra mais, que terminaram quando terminou sua vida, que existiram como se não tivessem existido ... Seus corpos foram enterrados em paz, e sua fama durará por todas as idades. A assembleia celebrará sua sabedoria, e o povo proclamará o seu louvor.
É precisamente no Eclesiástico onde se encontra o famoso tributo aos médicos (38:1-4, 7, 8,13-14, Dios Habla Hoy): Respeita ao médico por seus serviços, pois também a ele o instituiu Deus. O médico recebe de Deus sua ciência, e do rei recebe seu sustento. Graças aos seus conhecimentos, o médico desfruta de prestígio e pode apresentar-se perante os nobres. Deus faz com que a terra produza substâncias medicinais, e o homem inteligente não deve desprezá-las ... Com estas substâncias, o médico acalma as dores e o farmacêutico prepara os seus remédios. Assim não desaparecem os seres criados por Deus, nem falta aos homens a saúde ... Há momentos em que o êxito depende dele, e ele também se encomenda a Deus, para poder acertar no diagnóstico e aplicar os remédios eficazes.
Ali mesmo se encontra outra famosa passagem em que Deus sustenta que só o parado pode chegar a ser um grande erudito e mestre, e que a sabedoria não está ao alcance dos trabalhadores do mundo. Mas tendo dito isso, oferece um alto elogio dos trabalhadores (38:31-34, Dios Habla Hoy):
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Todos eles são operários que trabalham com suas mãos, e cada um em seu ofício é um perito. Sem eles não seria possível a vida em sociedade, ninguém viveria nem ninguém viajaria. Entretanto, ninguém os convidará a governar o povo, nem sobressairão na assembleia. Não formam parte de nenhum tribunal, nem entendem de assuntos de justiça. Não demonstram instrução nem capacidade para julgar, nem entendem de provérbios. Mas eles contribuem para a estabilidade do mundo, ocupando-se em seus trabalhos de artesãos.
A Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico são dois grandes livros na verdade. A Igreja os conheceu e valorizou desde seus inícios, e animou o povo de Deus a que os lesse. Não são poucos os que prazerosamente os incluiriam no cânon das Escrituras. IV. Entre os Apócrifos há vários livros que narram acontecimentos históricos. Um deles é I Esdras, que vem sendo um repasse de 2 Crônicas, Esdras e Neemias. Sua única passagem adicional deu origem ao conhecido provérbio: "Grande é a verdade e suprema sobre todas as coisas”. Os outros dois livros históricos são I e II de Macabeus. Sua importância estriba em que relatam de ângulos distintos, a famosa luta libertária em que se distinguiu Judas Macabeu. Lutero opinava que I Macabeus "não é digno de ser incluído entre os livros das Escrituras”. V. Há um destes livros que poderíamos classificar como livro de orações: a Oração de Manassés. Segundo os historiadores hebreus, Manassés foi um dos piores monarcas (2Rs. 21:1-18; 2Cr. 33:1-20). Reinou durante 55 anos e foi achado culpado de empregar "as práticas abomináveis" dos nativos pagãos. Levantou altares a Baal, rendeu culto a "todo o exército dos céus", ofereceu o seu filho em sacrifício, e se rodeou de magos e adivinhos. Também levantou uma imagem de Asera em pleno Templo e derramou sangue inocente. Por sua causa, os babilônios seriam desatados contra Judeia, o templo seria destruído e o
Introdução à Bíblia (William Barclay) 84 povo levado em cativeiro (2Rs. 24:3). O cronista relata que o próprio rei esteve exilado temporariamente e que os assírios "aprisionaram com correntes a Manassés, e preso com cadeias o levaram a Babilônia". Estando no cativeiro, Manassés se arrependeu de todos os seus maus caminhos, clamou a Deus, e Deus o trouxe de novo a Jerusalém. Deus ouviu sua prece e recebeu sua petição (2Cr. 33:10-19). Esta Oração de Manassés supõe-se que foi a que o rei elevou a Deus na amargura do desterro. O propósito desta obra de uma página é mostrar que até para um Manassés pode haver perdão, se ele se arrepender diante de Deus. Eis aqui umas linhas dessa prece: Pequei, ó Senhor, eu pequei e conheço minhas transgressões. Ardentemente te rogo: perdoa-me, ó Senhor, perdoa-me! Não me destruas em minhas transgressões! Não te ires para sempre comigo nem me causes nenhum mal: não me condenes aos abismos da terra. Porque tu, ó Senhor, és o Deus dos que se arrependem E em mim manifestas tuas bondades pois, sendo eu tão indigno, tu me salvarás por tua grande misericórdia, e eu te louvarei continuamente todos os dias de minha vida. Porque todas as hostes celestiais cantam o teu louvor e tua é a glória para sempre. Amém.
Aqui se expressa a confiança de que até o pior dos pecadores pode salvar-se sob condição de arrepender-se. VI. Dois destes livros estão dentro da sucessão profética. O primeiro deles é Baruque, escrito provavelmente no primeiro século de nossa era, cuja redação se adjudica a Baruque, secretário de Jeremias (Jr 36:4). Às vezes se acrescenta a Carta de Jeremias como um sexto capítulo de Baruque. Esta carta é uma áspera denúncia contra a idolatria. Deve provir da época em que os judeus foram tentados e convidados a compartilhar a idolatria com seus vizinhos. Aponta os artífices fabricantes de ídolos: "Povo que toma o ouro e faz coroas para as cabeças de seus deuses, como o fariam para uma garota amante de andarse adornando". Às vezes os sacerdotes furtam o ouro que pode gastar-se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 85 até em lupanares. O pó do templo se acumula sobre os ídolos e é preciso sacudi-los e limpá-los. Sobre eles posam os morcegos, as andorinhas, as aves e os gatos. Para mobilizar é preciso carregá-los, pois carecem de pés próprios. Se os baixar, inclinam-se e caem e é preciso tornar a levantá-los. "A ninguém podem salvar da morte, nem livrar o fraco do forte. Não podem dar vista ao cego, nem ajudar a quem estiver em apuros". Aqueles que os fabricam são mortais; como podem manufaturar deuses? Se o templo se incendiar, os sacerdotes podem fugir mas os deuses só podem ser queimados irremediavelmente. Não valem mais que o espantalho no jardim. Neste panfletinho bombardeia-se a idolatria com um ridículo que continua sendo efetivo. VII. Resta-nos finalmente um livro apocalíptico: II Esdras, também conhecido como IV Esdras. Já vimos que a literatura apocalíptica referese aos espantosos últimos dias, quando esta era e toda sua maldade serão destruídas, quando o Dia do Senhor virá e nascerá a nova era do reino de Deus. Será uma era de destruição e desintegração total. Como vimos, tais livros apocalípticos "descrevem o indescritível" e falam de coisas nunca antes vistas, ouvidas ou concebidas por seres humanos. Só são inteligíveis para os iniciados e, nisso, IV Esdras não é uma exceção. A Lutero lhe pareceu tão grotesco que nem sequer se tomou o trabalho de traduzi-lo e, em sua linguagem característica, comentou que o tinha arrojado ao Rio Elba! II Esdras demorou bastante tempo para ser escrito. O miolo do livro encontra-se nos capítulos 3 a 14, que se supõe serem sete revelações que Esdras recebeu em Babilônia. Esta parte foi escrita em aramaico, em torno do ano 100 de nossa era, e logo traduzida ao grego. De ambas as versões subsistem só dois ou três versículos, pois as duas se perderam. Só contamos com a versão latina. Para o ano 150 de nossa era, um cristão anônimo e desconhecido acrescentou os capítulos 1 e 2 em grego.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 86 E no ano 250, outro cristão desconhecido acrescentou os capítulos 15 e 16. Sempre se soube que algo faltava entre II Esdras 7:35 e 7:36. Em 1874 apareceu o texto latino destes versículos, e se inseriu no texto. A seguir incluímos um breve exemplo do Capítulo 5, das visões neste estranho livro: Surge o sol de repente à meia-noite e a lua durante o dia. Da madeira emanará sangue e a pedra deixará ouvir a sua voz: as nações serão afligidas e teremos chuva de estrelas.
Este é um livro que hoje em dia tem pouco ou nada que nos dizer. Repassamos os livros Apócrifos, e agora deveríamos nos perguntar de onde procedem e o por quê de sua posição duvidosa. Em resposta à primeira pergunta, diremos que os livros Apócrifos aparecem na versão grega do Antigo Testamento, conhecida como a Septuaginta, mas não no original hebraico. O Antigo Testamento foi traduzido ao grego no Egito durante o reinado de Ptolomeu, Filadelfo II, que abrangeu desde o 285 a 246 a.C. O Egito era o lugar adequado para esta tradução porque então contava com mais de um milhão de judeus, muitos dos quais jamais tinham estado em Palestina. Em sua maioria tinham esquecido ou desconheciam totalmente o hebraico, pois só conheciam o grego. Usualmente se designa a Septuaginta com o número romano LXX, que foi o número de seus tradutores. A Septuaginta é um dos livros mais importantes do mundo porque pôs o Antigo Testamento ao alcance de todos quando o grego era o idioma universal e só uns quantos sabiam hebraico. Com o tempo, a Septuaginta serviu de base para verter o Antigo Testamento ao latim, pelo que o primeiro Antigo Testamento em latim teve o mesmo formato da versão grega. Vejamos o que sucede ao alinhar os livros do Antigo Testamento na ordem de aparição nas distintas versões no hebraico, grego, latim, inglês.
Introdução à Bíblia (William Barclay) Hebraico
Septuaginta
Latim
A Lei
As Leis
Livros Históricos
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Os Profetas
As Hist orias
Josué Juízes 1 e 2 Samuel I e II Reis Isaías Jeremias Ezequiel Oseias Joel Amós Obadias Jonas Miqueias Naum Habacuque Sofonias Ageu Zacarias Malaquias
Josué Juízes Rute 1 e 2 Reis (=1 e 2 Samuel
Os Escritos
Salmos Provérbios Jó Cantares de Salomão Rute Lamentações Eclesiastes Ester Daniel Esdras Neemias 1 e 2 Crônicas
87 Inglês
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Almeida Revista e Atualizada
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio
Introdução à Bíblia (William Barclay) 88 De imediato se pode apreciar a grande diferença nas listas que provêm do hebraico, grego, latim, inglês (e português) com relação aos livros que contêm ou não contêm, assim como quanto à ordem em que se apresentam. Estas listas deixam também claro que a mais inclusiva é a da Septuaginta, ou Antigo Testamento em grego. Inclui livros que nem sequer se encontram nos Apócrifos oficiais, por exemplo III e IV Macabeus, as Odes, e os Salmos de Salomão. Por que é isto assim? Vimos visto que para os judeus palestinos os livros sagrados são vinte e quatro livros e nada mais; seu cânon está fechado. "Se alguém – declaravam os rabinos – recebe mais de vinte e quatro livros, introduz confusão em sua casa". Segundo a lei judaica, era ilegal carregar qualquer coisa no sábado, e estabelecia que se uma casa fosse incendiava, somente podiam tirar-se dela os vinte e quatro livros e nada mais. Por outro lado, os judeus alexandrinos aplicavam um critério mais amplo, visto que consideravam que todo livro inspirador era inspirado. Assim que, no princípio, houve duas versões do Antigo Testamento: a versão limitada dos judeus palestinos e a versão inclusiva dos judeus de fala helênica; e os livros adicionais na versão grega são precisamente os Apócrifos. E considerando que então havia mais pessoas que utilizavam o Antigo Testamento em grego que no hebraico, chegou um momento em que estes livros adicionais foram amplamente recebidos. Acaso teremos chegado a uma etapa na qual houve dois antigos testamentos, um curto, no hebraico, e outro mais amplo, em grego? Na realidade os livros Apócrifos contêm material muito abundante. Bruce Metzger o expressa estatisticamente: Seções Antigo Testamento
Novo Testamento Apócrifos
Livros 39 27
14‐15
Capít 929
Versículos 23.214
260
7,959 1
6,081
Introdução à Bíblia (William Barclay) 89 Acaso contamos com uma forma oficial do Antigo Testamento que contém entre um quinto e um quarto mais material que o do Antigo Testamento no hebraico? A resposta é sim e não. A princípio podemos ver que os Apócrifos encontram-se numa posição curiosamente ambígua: nem são completamente Escritura Sagrada, nem tampouco não o são. Várias coisas devem destacar-se: I. Não existe uma só menção de que o cânon tenha sido ampliado. Embora os escritores gregos conheceram, amaram e utilizaram os Apócrifos, nunca em momento algum puseram em tela de dúvida o cânon hebraico das Escrituras nem, por indício, listaram-lhe jamais acrescentado algum. II. Os livros que se incluem na Septuaginta e os que não se incluem variam até certo ponto. Por exemplo, IV Esdras não aparece na Septuaginta pois, como vimos, não existe na versão grega. Em algumas versões aparece a Oração de Manassés e em outras não. Alguns manuscritos da Septuaginta incluem III e IV Macabeus, e às vezes até um Salmo 151. Nem sequer se fixou quantos são os livros adicionais. III. Filo, alto erudito dos judeus alexandrinos, tratou de enlaçar o pensamento judaico com o grego. Filo provinha da área onde nasceu a Septuaginta, embora sua obra ele a realizou muito depois, precisamente quando o Novo Testamento começava a tomar forma. Sua produção consistiu em comentários e exposição das Escrituras. E, embora Filo conhecesse os Apócrifos e os valorizasse, nunca os citou como Escritura Sagrada. IV. Como todos os escritores neotestamentários falavam o grego, tinham como Bíblia a Septuaginta Grega e não o Antigo Testamento no hebraico. Era a que conheciam e citavam; apesar disso, nunca citam os
Introdução à Bíblia (William Barclay) 90 livros Apócrifos, e menos como se tivessem caráter de Escritura Sagrada. Todo o anterior demonstra a peculiar situação intermediária que ocupam os Apócrifos, os quais eram utilizados e estimados, mas sem que chegassem a ser plenamente considerados como Escritura. Também se nota uma grande ambivalência no emprego destes livros. Nos primeiros pais da Igreja nota-se atitudes encontradas, como era de esperar-se. Os eruditos que sabiam hebraico – bem poucos e dispersos por então – geralmente rejeitavam os Apócrifos Apócrifos como Escrituras, embora os que só entendiam grego ou latim tinham a tendência a aceitá-los por havê-los recebido com seu Antigo Testamento. Por isso achamos que para Jerônimo – quem se estabeleceu por um tempo na Palestina para familiarizar-se com o hebraico – e para Orígenes, ambos reputados como os intelectuais supremos do mundo antigo, estava bem claro que os Apócrifos não eram parte das Escrituras, embora os pais Tertuliano e Agostinho, desconhecedores do hebraico, aceitavam-nos como escriturísticos. Esta situação, entretanto, estava menos clara do que parece à primeira vista. Depois de listar os livros do Antigo Testamento, Jerônimo pôde dizer e disse: "Tudo o que não estiver incluído nesta lista deve ser considerado apócrifo. Portanto, a Sabedoria, também conhecida como de Salomão, o livro de Jesus Ben Siraque, assim como Judite e Tobias... não estão no cânon". Entretanto, quando chegou o momento, a pedido dos bispos ele os traduziu e incluiu na Vulgata, versão da qual foi tradutor, e que chegou a ser e continua sendo a Bíblia da Igreja Católica Romana. Como erudito, Jerônimo tinha rejeitado os livros Apócrifos, mas como eclesiástico, aceitou-os. Quanto a Agostinho, em sua obra Da Doutrina Cristã incluiu no Antigo Testamento a Judite, Tobias, I e II Macabeus, Eclesiástico e a Sabedoria. Entendeu Jerônimo em que não
Introdução à Bíblia (William Barclay) 91 estavam nas Escrituras hebraicas e que logicamente não deveriam ser incluídos -se, mas lhe preocupava o efeito que podia ter sua exclusão na mente do povo comum, que por tanto tempo os tinha empregado e amado. Para ele significava mais a tradição eclesiástica que o critério do erudito. Orígenes procedeu de maneira semelhante. Em torno do ano 240, Júlio o Africano, bispo de Emaús em Palestina, discutia com ele que visto que Susana não aparece na Bíblia hebraica, não se devia considerála Escritura Sagrada. Ninguém melhor que Orígenes podia saber e aceitar isto como erudito bíblico que era, mas o refutou aduzindo que a Igreja Cristã sempre havia aceito estes três livros para edificação. Acrescentou também que a Igreja não ia podar suas leituras para acomodar-se aos judeus, e que a tradição imemorial constituía autoridade suficiente para poder ler os Apócrifos. Orígenes lembrou a Júlio que a própria Bíblia (Dt. 19:14) ordenava não tirar os limites fixados em tempos passados. Sempre existiu uma tensão entre a erudição crítica e a tradição eclesiástica, em que a tradição sempre saiu triunfante. Rufino estabeleceu uma distinção entre livros canônicos e eclesiásticos, e entre estes últimos incluiu os livros de Sabedoria, Eclesiástico, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. Não eram, pois, livros canônicos mas da Igreja. Jerônimo chegou a introduzir outra distinção mais que permaneceu por longo tempo e que segue ainda vigente em alguns lugares. Explicou Jerônimo que Eclesiástico e Sabedoria eram livros que a Igreja lia "para edificação do povo, mas não para provar as doutrinas da Igreja". Achamos, pois, que durante os primeiros séculos os judeus não tiveram dúvida alguma: só os vinte e quatro livros no hebraico deviam ser considerados se Escritura. No Antigo Testamento grego havia muitos livros mais, porém os livros adicionais jamais foram levados em conta
Introdução à Bíblia (William Barclay) 92 no mesmo nível dos livros hebreus. A Igreja os conhecia, utilizava-os, e estimava e não os abandonaria, mas nem por isso lhes daria a mesma posição outorgada aos livros hebraicos do Antigo Testamento. Testamento. Desta maneira chegamos ao lugar dos Apócrifos na Bíblia inglesa. Na versão de Wycliffe, que é a mais antiga nessa língua, os Apócrifos encontram-se esparramados por todo o Antigo Testamento. Deve-se a que Wycliffe não traduziu do hebraico mas da Vulgata Latina, cuja distribuição adota. Mas entre os tradutores ingleses houve outra influência que pesou muito mais em seu ânimo, e que levou a assinalar os Apócrifos o mesmo lugar que ocupam regularmente nas edições protestantes da Bíblia. Em 1534 Lutero completou a tradução da Bíblia ao alemão, e ele não se baseou na versão latina, antes na original grega e hebraica. Por isso na tradução luterana alemã os Apócrifos aparecem numa seção, segregados entre ambos testamentos, sob o título de Apócrifos, ou seja, livros que não estão no mesmo nível das Escrituras Sagradas, "mas que são úteis e bons para ser lidos". Lutero não traduziu 1 e 2 Esdras Esdras (IV Esdras) e explicou que os tinha jogado jogado no Rio Elba, e ao referir-se a eles no prefácio a Baruque acrescentou que "não contêm absolutamente nada que a pessoa não possa encontrar mais facilmente em Esopo e até em livros mais corriqueiros". A posição que Lutero outorgou aos Apócrifos dentro da Bíblia veio a ser a que logo foi adotada pelas igrejas protestantes. Quando aparecem na Bíblia inglesa, sempre vêm em seção à parte, entre o Antigo e o Novo Testamento. A primeira Bíblia inglesa completa foi a de Coverdale em 1535, quem seguiu o exemplo de Lutero com diferenças mínimas. Caverdale imprimiu uma tradução de 1 e 2 Esdras mas sem incluir a Oração de Manassés; e em sua primeira edição colocou Baruque depois de Jeremias. Na de 1537 trasladou Baruque junto a outros Apócrifos, e assim permaneceu dali em diante. Vale a pena reproduzir, por ser interessante, a introdução de Coverdale aos livros Apócrifos.
Introdução à Bíblia (William Barclay)
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Estes livros, bom leitor, chamados Apócrifos, não têm entre os doutos a mesma reputação que as demais Escritura... e o principal motivo é este: neles encontram-se muitos lugares que parecem repugnantes à verdade aberta e manifesta dos outros livros da Bíblia. Entretanto, não os coloquei juntos com a intenção de desprezá-los, ou porque os tenha em menos ou os considere falsos, pois não sou capaz de comproválo. Entretanto, eu não duvidaria de que, se lhes cotejasse com o resto da Escritura aberta (tendo em conta o tempo, lugar e circunstância em cada caso) não pareceriam contraditórios nem ter sido concebidos em falsidade ou perversidade. Certamente, a cara de um homem não pode ver-se tão bem na água como num espelho limpo; nem pode apreciarse tão claramente em água revolta ou em movimento, como na água tranquila. Estas e muitas outras passagens escuras da Bíblia foram imperfeitamente agitadas e misturadas com tantas opiniões humanas, cegas e ambiciosas, ao grau que nublaram a vista dos simples de maneira tal que, enquanto não sejam consideradas nos outros lugares da Escritura, só poderá se vista à luz que a cobiça queira vê-los. Mas quem quer que sejas, que lês as Escrituras, deixa que o Espírito Santo te ensine, e permite que um texto venha e te explique outro texto. No que se relaciona aos sonhos, visões e sentenças escuras e incompreensíveis para ti, entrega-os a Deus e não os convertas em artigos de fé: quer dizer, não baseies neles doutrina alguma. Simplesmente te deixa guiar pelo texto claro, e o Espírito de Deus (que é seu autor) guiará a toda a verdade.
De fato Coverdale admite o caráter secundário dos Apócrifos, mas ao mesmo tempo insiste em que têm um lugar e valor se forem empregados adequadamente. A versão do Thomas Matthew, que apareceu em 1537, marca a seguinte data de interesse histórico nos Apócrifos ingleses. Matthew continuou o costume de colocar os Apócrifos entre ambos testamentos, e distingue-se por ser a primeira Bíblia inglesa que inclui a Oração de Manassés, traduzida da Bíblia francesa do Olivetano.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 94 Depois vem a declaração sobre os Apócrifos que aparece na Bíblia de Genebra, produzida na capital suíça por reformadores britânicos que deixaram seu país perseguidos pela rainha Maria. Estavam dirigidos por William Whittingham, casado com uma irmã de João Calvino. Trata-se de uma das mais famosas bíblias inglesas, e nem sequer a aparição da Authorized Version (Versão Autorizada) conseguiu deslocá-la na época. Desde sua aparição em 1560, até 1630, imprimiram-se não menos de 200 edições da Bíblia de Genebra, em sua totalidade ou só do Novo Testamento. Esta foi a Bíblia de Shakespeare e de John Bunyan, do exército de Cromwell e dos Pais Peregrinos. A Bíblia de Genebra veio a ser uma das mais destacadas bíblias em inglês. Como sempre, inclui os Apócrifos entre os dois testamentos, embora com uma exceção bem rara. Coloca a Oração de Manassés entre 2 Crônicas e Esdras, e no Índice se lê: "A Oração de Manassés. Apócrifo". À margem da mesma Oração há uma nota que explica: "Esta Oração não está no hebraico, mas sim se traduziu do grego". Não se sabe o motivo pelo qual a Oração de Manassés recebeu um trato diferente ao dos demais Apócrifos. A Bíblia de Genebra apresenta sua própria declaração a respeito: Estes livros que vêm em ordem depois dos Profetas e antes do Novo Testamento, chamam-se Apócrifos: isto é, livros que não se receberam por consentimento unânime para ser lidos e explicados publicamente na Igreja, nem tampouco serviram para demonstrar nenhum ponto da religião cristã, salvo na medida que tinham o consenso das demais Escrituras chamadas canônicas para confirmar o mesmo ou antes, sobre as que estavam fundadas. Mas foram recebidos como procedentes de homens piedosos, para ser lidos em bem do avanço e promoção do conhecimento da história, e para instrução nos costumes piedosos. Tais livros declaram que em todo tempo Deus teve especial cuidado por sua Igreja e não a deixou inteiramente desprovida de mestres e meios para confirmá-la na esperança do prometido Messias; e também para testificar que essas calamidades que Deus enviou à sua Igreja, foram de acordo com sua providência, que tinha sido ameaçada tanto por seus profetas como pela destruição de seus inimigos e para prova de seus filhos.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 95 Bem como seus predecessores, os tradutores da Bíblia de Genebra consideraram valiosos os livros Apócrifos, mas valiosos dentro de seus próprios limites. Na Versão Autorizada, os Apócrifos encontram-se sem nota nem comentário, entre ambos testamentos. Assume-se que tal é o seu lugar e não fazem falta explicações. Mas Bruce Metzger assinala algo digno de menção sobre a Versão Autorizada com relação aos Apócrifos. As referências marginais da Versão Autorizada são relativamente poucas, e no Antigo Testamento há 102 referências aos Apócrifos e 11 no Novo Testamento. Na Versão Autorizada os Apócrifos são ainda parte integral totalmente. Pareceria como se os Apócrifos se estabeleceram à maneira de apêndice do Antigo Testamento, e como livros honoráveis embora não totalmente inspirados. Mas a situação teria que mudar. A atitude para com os Apócrifos sempre foi berço de emoções encontradas. Os protestantes se opunham a eles sobre a base de que a Igreja Católica era sua verdadeira proprietária. Mediante eles, era possível justificar coisas abomináveis à fé protestante. Os reformadores se negaram a aceitá-los, embora pudessem ser citados em apoio de doutrinas que lhes pareciam anátema. E em termos gerais, os Puritanos sempre desconfiaram de documentos que, pretendendo ser sagrados e inspirados, eram adições às Escrituras. Valeria a pena, entretanto, trazer para colação uma experiência que relata João Bunyan em sua autobiografia Graça abundante para o primeiro dos pecadores. Pelo ano de 1652, Bunyan atravessou por um período de profundo abatimento espiritual. "Certo dia – contava ele – depois de passar muitas semanas oprimido e decaído, estando quase prestes a entregar o espírito e todas as minhas esperanças de voltar a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 96 recuperar a vida, esta sentença caiu pesadamente sobre meu espírito: Note nas gerações passadas e olhe: Terá havido alguém que, havendo confiado no Senhor, tenha ficado decepcionado? Isso aliviou e alentou
grandemente minha alma, pois imediatamente me veio a explicação: Começa desde o princípio do Gênesis e lê até terminar o Apocalipse, e olhe se pode achar alguém que tenha ficado decepcionado depois de ter confiança no Senhor . Assim que ao voltar para casa tomei a Bíblia para
ver se podia encontrar essa declaração, sem duvidar que a acharia, pois a tinha tão fresca e com tal força e consolo em meu espírito que até parecia que me falava". Continua dizendo: "Bem, busquei-o sem poder achála (eram os dias quando não havia concordâncias). Só que permanecia em mim... Continuei assim por mais de um ano sem poder localizá-la mas, finalmente, ao aparecer nos livros Apócrifos, encontrei-a em Eclesiástico 2:10". Parece como se Bunyan quase se desculpasse por encontrar algo útil nos Apócrifos! E segue narrando: "Isto, em certo modo, afligiu-me a princípio, mas como para então eu tinha adquirido uma maior experiência do amor e a bondade de Deus, já não chegou a me preocupar tanto. Especialmente quando considerei que, embora não estava nesses textos que chamamos Santos e Canônicos, entretanto, como esta sentença era a soma e substância de muitas das Promessas, era meu dever tomar seu consolo. E abençoo a Deus por essa palavra porque foi de Deus para mim". "Essa palavra – acrescenta – "ainda às vezes refulge perante meu rosto" É uma história significativa, a história de um homem quase temeroso de receber ajuda dos livros Apócrifos. Assim que, ao menos em certos lugares, avançava o fluxo contra os Apócrifos, e os editores começaram a imprimir a Bíblia sem eles. Damonos conta de que isto começou por conta dos editores, pois frequentemente encontramos os livros Apócrifos anunciados no Índice mas sem as páginas correspondentes aos Apócrifos, e tendo saltado a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 97 numeração respectiva entre ambos testamentos. Fez-se, pois, difícil achar uma Bíblia com os Apócrifos. A tendência atual é diferente. Na Introdução aos Apócrifos da Revised Standard Version (Versão Padrão Revida), na sentença final há uma citação do Frank C. Porter: "O interesse histórico do homem moderno... é pôr em seu verdadeiro lugar os Apócrifos como documentos significativos de uma era muito importante na história religiosa". E a New English Bible (Nova Bíblia Inglesa) inclui uma tradução moderna destes livros. (Em espanhol, Dios Habla Hoy faz outro tanto). Por último, devemos nos perguntar: o que é, então, que como leitores podemos dizer sobre os Apócrifos? Em seu livro What Books Belong in the Bible? (Que livros devem estar na Bíblia?) , F. V. Filson o expressa de maneira contundente e convincente, ao sustentar que os livros Apócrifos não formam parte das Escrituras. Apresenta uma série de argumentos em apoio de sua opinião. 1. Está absolutamente convencido de que jamais houve a intenção de considerá-los como Escritura Sagrada. Nunca existiu um cânon da Septuaginta, o Antigo Testamento grego, como o houve para o Antigo Testamento hebraico. Nunca se fixou o número de livros acrescentados à a Septuaginta, e variou com muita frequência. Os livros acrescentados nunca, em nenhum tempo, receberam um lugar oficial como se fez com os livros do Antigo Testamento hebraico. Nunca, em nenhum tempo, foram citados por Jesus. Nunca são citados nos sermões da igreja primitiva, por exemplo nos quais se mencionam nos Atos. Ninguém os citou como parte das Escrituras durante a era apostólica. O fato é, simplesmente, que onde quer que se empregava o hebraico, o que se considerava como Escritura era o Antigo Testamento no hebraico. Na igreja primitiva ninguém afirmou jamais, nem sequer sugeriu, que se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 98 tivessem acrescentado livros extras ao Antigo Testamento. O lugar que esses livros ocuparam na Igreja se deveu unicamente ao uso e a prática. Eram utilizados, mas nunca sob o conceito de autoridade em que se tinha os livros hebraicos. II. Não existe um período na história da Igreja, nem sequer no período posterior, em que foram aceitos unânime e indiscutivelmente, tal como o vimos na Igreja Católica Romana. Sempre houve dúvida para com eles e uma interrogação contra eles. E não podem fazer parte das Escrituras da Igreja livros cujo lugar foi sempre controvertido. III. Os Apócrifos nada têm para acrescentar ao pensamento religioso nem à crença da Igreja. Neles não se encontra nada que não esteja contido, e contido melhor, no Antigo Testamento. Nada têm para acrescentar aos livros que foram e são aceitos universalmente. IV. No caso dos livros do Antigo Testamento, sua inspiração é evidente por si mesma, mas no caso dos Apócrifos, isto não é assim. Como dissesse Filson, já citado: "aceitamos como Escritura o Antigo Testamento por confissão pessoal e coletiva de que estes escritos, quando o Espírito Santo os "faz presentes, falam-nos a palavra indispensável de Deus com poder efetivo". E isto é precisamente o que os Apócrifos não fazem. A maneira mais segura de descobrir o caráter secundário dos Apócrifos é, simplesmente, lendo-os. Isso permite experimentar a diferença entre eles e os livros que, sem lugar a dúvida, são Escritura. O Dr. Filson nem sequer permite uma posição intermediária: "Não são a Escritura" – afirma ele – "e não têm direito inerente a uma posição de transigência que na prática os trate como às Escrituras, enquanto se mantém a ficção de que carecem de influência ou categoria doutrinal".
Introdução à Bíblia (William Barclay) 99 Mas mesmo sustentando que os Apócrifos carecem de direito a ser considerados Escritura Sagrada, dista muito de dizermos que devemos ou podemos descartá-los totalmente. Eles possuem sua própria importância e lugar. I. Para começar, ocupam um lugar na literatura. Contêm alguns dos grandes relatos deem o mundo e formam parte da literatura universal com a qual toda pessoa culta deve estar familiarizada. Os Apócrifos exerceram influência sobre a literatura, a arte e a música. Bruce Metzger, no capítulo que intitula “The Pervasive Influence of the Apocrypha” (“A penetrante influência dos Apócrifos”), de seu livro Introduction to the Apocrypha (Introdução aos Apócrifos), esboça a influência que estes exercem em muitas esferas e cita um surpreendente exemplo disso. Foram certas expressões dos Apócrifos que impulsionou Colombo à descoberta da América”! Um famoso escritor do século XV chamado Pierre d´Ailly, reconhecido erudito e arcebispo de Cambrai, escreveu o livro Ymago Mundi (A imagem do mundo), que inclui um capítulo “De quantitae terrae habitabilis” (“Sobre a quantidade de terra habitável”). Baseado em 2 Esdras (4 Esdras) 6:42, 47, 50, 52, o autor sustenta que seis sétimas partes do globo são terra firme e só uma sétima parte é mar. A primeira página desta obra diz assim: “No terceiro seu dia ordenou às águas que se reunissem na sétima parte da terra; secou seis partes de e as conservou assim como algumas delas fossem plantadas e cultivadas e foram de serviço para ti”. Isto permitiu a d´Ailly argumentar que, visto que a terra é uma esfera, e visto que só um sétimo dela é mar, o oceano entre a costa ocidental da Europa e a costa oriental da Ásia “Não pode ser de grande largura” e com vento favorável poderia navegar-se em poucos dias. Isto é exatamente o que Cristóvão Colombo se propôs demonstrar. Na biblioteca do Colombo havia um exemplar da obra d´Ailly, anotado de própria mão pelo marinho genovês. E isto foi o
Introdução à Bíblia (William Barclay) 100 que impulsionou Colombo a empreender a viagem e o que finalmente persuadiu os vacilantes soberanos a lhe financiar sua expedição, visto que havia um livro sagrado que assegurava que o mar não cobria mais de uma sétima parte do planeta e podia ser navegado facilmente! II. Os Apócrifos ocupam um lugar na literatura moral do mundo. Nunca perderá atualidade o conselho moral que nos brindam Sabedoria e Eclesiástico. III. Os Apócrifos contêm um material histórico indispensável, por exemplo, a história da luta dos Macabeus pela libertação dos judeus. IV. Mas a suprema utilidade dos Apócrifos é que tendem uma ponte entre o Antigo e o Novo testamentos. Nessa ponte cabem trezentos anos, dos quais saberíamos bem pouco de outra maneira. Ir do Antigo ao Novo Testamento equivale a saltar do século XVI ao XIX. A grande aplicação dos Apócrifos é que nos proporcionam o ambiente político, cultural, ético e religioso dos contemporâneos de Jesus Cristo e, portanto, ajudam-nos a entender melhor o Novo Testamento. Não se pode pôr em tela de duvida a importância que têm os livros apócrifos e nenhum estudante da Bíblia pode dar-se ao luxo de desconhecê-los.
Introdução à Bíblia (William Barclay) CAPÍTULO V
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COMO ESTUDAR A BÍBLIA Em todo este capítulo darei como fato que quem deseja envolver-se no estudo bíblico é cristão ou, pelo menos, gostaria de ser. Teremos presente a pessoa que deseja ampliar seus conhecimentos e aprofundar e enriquecer sua vida e experiência cristãs com o estudo bíblico. Partiremos da afirmação de Armínio quando disse que "A Igreja é aquela comunidade que reconhece nas Escrituras a palavra de Deus" Certamente que é preciso estudar a Bíblia como se faz com qualquer outro livro. Para isso devemos apelar a todo o rigor e o arranjo acadêmico. Devemos nos aproximar da Bíblia com a mesma disposição de trabalho com que um estudante aproxima-se a qualquer dos grandes livros do mundo. Mas aqui há também outro aspecto não menos importante. Certamente é preciso estudar a Bíblia com os métodos com que se estuda qualquer livro elevado, mas é igualmente certo que a Bíblia não se estuda com o propósito com que se estuda qualquer outro livro. O livro comum se estuda para buscar informação ou instrução, por interesse ou prazer, como livro de texto ou como tarefa; mas a Bíblia foi escrita para que o leitor possa achar a vida e encontrar a Deus. Aelfrico, um dos primeiros tradutores da Bíblia, escreveu ao redor do ano 1000 de nossa era, uma nobre passagem sobre o que para ele significa a Bíblia. Quem quer que deseje ser um com Deus deve ler as Sagradas Escrituras vez após vez, pois quando oramos falamos a Deus e quando lemos a Bíblia é Deus quem nos fala. A leitura da Bíblia produz um nobre benefício ao leitor: ela o faz mais sábio ao informar sua mente e o conduz da vaidade do mundo ao amor de Deus. A leitura das Escrituras é, na verdade, uma ocupação honorável e contribui
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grandemente para purificar a alma. Pois assim como o corpo se nutre com o alimento natural, assim também o mais sublime do homem, isto é, sua alma, alimenta-se com as palavras divinas, segundo o Salmista: “Quão doces são ao meu paladar as tuas palavras! Mais que o mel à minha boca”. Ditoso, pois, aquele que lê as Escrituras e converte as palavras em ações. Todas as Escrituras foram escritas para nossa salvação, e por meio delas obtemos o conhecimento da verdade. O cego tropeça mais que aquele que tem vista; da mesma maneira, aquele que ignora os preceitos das Escrituras ofende mais frequentemente que quem os conhece.
I. Portanto, o primeiro é que o leitor acuda reverentemente à Bíblia. Seu dever é começar a leitura com oração. Lutero dizia, a respeito de quem estuda as Escrituras, que “seu primeiro dever” é começar com uma oração de tal natureza que Deus, em Sua grande misericórdia, possa lhe conceder “a verdadeira compreensão de suas palavras”. O Salmista orava “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119:18), e bem poderíamos empregar a oração que muitos de nós aprendemos e amamos: Bendito Senhor, Tu que fizeste possível que todas as Escrituras fossem escritas para nosso ensino, concede que as ouçamos, leiamolas e as marquemos, e as aprendamos, e as digiramos de tal maneira que, pela paciência e consolo da palavra santa, possamos abraçar e conservar a bendita esperança de vida eterna que nos deste em Jesus Cristo nosso Senhor.
Não estaria mal que por um momento considerássemos o conceito que os judeus tinham do Espírito. Segundo os judeus, o Espírito exerce uma dupla ação: traz a verdade de Deus aos homens, e igualmente importante os capacita para que a reconheçam ao vê-la. Isto significa que o Espírito que moveu os escritores sagrados a escrever seus livros, é o mesmo Espírito que nos capacita a estudar e interpretá-los.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 103 Vejamos agora como o Espírito abriu as páginas da Bíblia a um dos maiores cristãos de todos os tempos. Em 1545 Lutero relata como quando jovem odiava até a própria palavra justiça. Para ele, esta palavra significava que Deus, em justiça, sempre está preparado para castigar o injusto e o pecador. A palavra o aterrava. Nunca antes pôde compreender a relação que há entre as duas metades de Romanos 1:17: “porque no evangelho a justiça de Deus se revela pela fé e para fé, como esta escrito: ‘Mas o justo pela fé viverá’.” Passava dias e noites meditando em torno deste texto; e então começou a compreender que a palavra justiça significava que Deus, em Sua misericórdia, justifica o homem por meio da fé. Dito simplesmente, começou a entender que a justiça de Deus não é a justiça com a que Ele nos ameaça mas sim a justiça que nos oferece e nos outorga. Lutero escreve a seguir: A esta altura me senti totalmente renascido e como se tivesse transpassado o portal aberto do paraíso. Num instante o significado total das Escrituras parecia ter mudado. Logo repassei de cor as escrituras e reuni analógicos de outras palavras; tais como a obra de Deus, que significa que a obra que Deus realiza em nós; a virtude de Deus, que significa a virtude mediante a qual nos faz poderosos; a sabedoria de Deus, a salvação de Deus, a glória de Deus. Dali em diante, meu amor pela muito doce expressão justiça de Deus chegou a ser tão grande como o ódio que antes lhe tinha professado. É assim como esta passagem de Paulo se tornou realmente a porta do Paraíso.
Num deslumbrante brilho de luz reveladora, o significado da passagem brilhou sobre Lutero, e o significado o conduziu, não ao conhecimento mas sim ao paraíso, ao compreender que tudo o que é de Deus é para quem tem fé. Estudar as Escrituras com reverência conduz à iluminação mediante a ação contínua do Espírito de Deus. Vejamos outro exemplo. Lutero e Erasmo foram duas grandes figuras da Reforma, mas tinham grandes diferenças entre si. Erasmo era o gramático, o filólogo. Podia identificar o significado de uma palavra e
Introdução à Bíblia (William Barclay) 104 desentranhar a gramática de uma passagem, no que era inigualável; mas até aí chegava. Negava-se a enredar-se com a definição teológica. Mas Lutero começava onde Erasmo terminava. Não apenas perguntava: O que significa isto?, mas sim acrescentava a pergunta: O que significa para mim? Erasmo definiu o significado de penitência: "uma mudança de mentalidade e o reconhecimento do próprio pecado, depois de ter sofrido um dano e de ter identificado o erro". Até ali chegou, e dali prosseguiu Lutero, quem disse, e disse bem, que tal mudança e reconhecimento não podem efetuar-se "sem mudança nos sentimentos e no amor". Para poder ver os erros passados é necessário reorientar antes os próprios afetos. Dali partiu Lutero para afirmar certeiramente que tal mudança de sentimentos e amor só pode efetuar-se pela graça de Deus. Ninguém pode mudar-se a si mesmo; a graça tem que fazê-lo. Logo empreendeu Lutero o terceiro passo e declarou que a penitência é "uma transformação de mérito e sentimentos efetuada pela graça" o que, acrescentou, constitui a tradução de metanoia, penitência. Aqui temos, pois, a diferença: Erasmo tomou a palavra penitência na atitude de quem busca defini-la para adornar um dicionário; Lutero tomou no espírito de quem quer achar a salvação de sua própria alma e a de seus semelhantes. Ambos são necessários: o gramático e o teólogo, o filólogo e o evangelista. Mas para verdadeiramente estudar as Escrituras como cristão, é preciso achegar-se a elas nessa atitude reverente que, acima da precisão gramatical, busca e encontra a graça de Deus. II. A segunda regra para estudar a Escritura é que resulta melhor fazê-lo em comunhão com a Igreja. Isto não significa eliminar o estudo bíblico pessoal. Mas a Segunda Carta de Pedro o deixa bem claro: "conhecendo primeiro isto, que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação" (2Pe. 1:20, Tradução Brasileira). Para estudar sabiamente a Escritura, devemos fazê-lo dentro da tradição da Igreja.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 105 Simplesmente, isto é também o mais razoável. Ninguém começa a estudar medicina como se ninguém a tivesse estudado antes dele. Começa por entrar na sabedoria, as descobertas e logros de todos os seus antecessores. Se alguém embarcar no estudo de qualquer ramo científico, começa por aprender o que até esse momento se obteve nesse ramo. Seria néscio e arrogantemente néscio por certo, se ao estudar uma passagem da Escritura deixássemos de lado tudo o que a erudição e a piedade do passado nos legaram a respeito. É evidente que toda aprendizagem começa numa comunidade de aprendizagem, e que a aprendizagem cristã deve começar na igreja cristã. Lutero asseverou que o estudo da Escritura é possível somente para o cristão. Acertadamente sustentou que para estudar uma obra proveitosamente, a experiência do leitor deve corresponder, ao menos em certo grau, com a experiência do escritor. Estimava que qualquer compreensão da Escritura ficava condicionada a que o estudante conhecesse Cristo, "o sol e a verdade na Escritura", do qual se fala através da Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento. "Quanto mais profundamente se compreenda a Cristo" – disse Schwartz em sua Tradução bíblica – "mais profunda será a compreensão da Escritura". O cristão estuda as Escrituras tanto porque conhece Cristo como porque quer conhecê-Lo mais. Lutero sempre sustentou que a Vulgata Latina, ou seja a Bíblia traduzida por São Jerônimo, não era uma boa tradução porque Jerônimo a traduziu sozinho; com o que tinha perdido a promessa de Cristo de que, onde quer que se reúnem dois ou três em Seu nome, Ele está no meio deles (Mt. 18:20). O estudo bíblico dentro do companheirismo cristão é muito mais rico que aquele que faz-se isolado e por si mesmo. Temos, pois, três princípios. Primeiro, que ninguém pode achar a verdade por si mesmo. Segundo, que nenhum esforço humano conduz a nada sem o Espírito e a graça de Deus. Terceiro, que nenhuma conclusão é válida se a esta se chega à margem da comunhão com a Igreja.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 106 III. Quem estuda a Bíblia deve fazê-lo com toda honestidade. Isto é, irá à Bíblia para buscar e encontrar a verdade, e não para tratar de demonstrar algo sobre o qual já tem uma ideia própria. Já é comum e quase normal utilizar a Bíblia como arsenal de textos-pretextos para demonstrar a validez de ideias preconcebidas. Pode utilizar-se a Bíblia para encontrar nela o que se quer encontrar: para ouvir o eco da própria voz, em lugar de escutar a voz de Deus. Em certa ocasião, Tyndale disse que aqueles que estudavam com sacerdotes e monges chegavam à Bíblia "armados com princípios falsos que os impedem de entender as Escrituras". Por sua vez, Armínio observou que "nada obstrui mais a investigação da verdade que o comprometer-se previamente com verdades parciais". Isto quer dizer que nem sequer Deus pode ensinar a quem se aproxima à Bíblia trazendo já suas próprias conclusões. Em seu livro How to Read the Bible (Como ler a Bíblia), F. C. Grant relata como um antigo rabino satirizou certa vez a seu rival dizendo dele: “Quando o rabino Eliézer prega, a primeira coisa que faz é dizer ‘Escritura, cala-te enquanto eu interpreto’.” Hugh Pope, em Versões inglesas da Bíblia, menciona a Gardiner quando disse que "a Escritura é uma flor pura e doce, de onde as aranhas recolhem veneno e as abelhas mel... aproxime-se a ela com doutrina sólida e você a achará confirmada. Vai a ela infectado de opiniões maliciosas, e então torce mais seu conteúdo a fim de sustentá-las". Ao estudar a Bíblia, asseguremo-nos de que escutamos a Deus e não o eco de nossa própria voz. IV. Se formos nos aproximar honestamente da Escritura, isto implica uma coisa: implica especialmente que nos aproximaremos de toda a Escritura. Fazendo-o com mentalidade seletiva, até pode chegarse a sustentar posições opostas. Por exemplo, Eclesiastes 9:10: "Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem
Introdução à Bíblia (William Barclay) 107 conhecimento, nem sabedoria alguma". Isto pode ser utilizado para demonstrar que não há vida para além da morte. 1 Coríntios 15:19: "Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens". Este versículo pode empregar-se para remover a crença de uma vida depois da morte, cortando assim o nervo vital da fé cristã. Se citarmos a lei de olho por olho e dente por dente, do Antigo Testamento (Êx. 21:24; Lv. 24:20; Dt. 19:21), poderíamos sustentar a aplicação da pena máxima para os criminosos. Por outro lado, poderíamos apelar ao tal por Cristo sobre dar a outra face e amar os nossos inimigos (Mt. 5:39,44) para sustentar que nenhum castigo retributivo tem lugar numa sociedade cristã. Se citarmos a Mateus 25:46: "E irão estes ao castigo eterno, e os justos à vida eterna" poderíamos sustentar que, depois da morte, alguns vão à alegria eterna e outros ao eterno castigo pelo juízo de Deus. Mas, apoiados em João 12:32: "E eu, se for levantado da terra, a todos atrairei a mim mesmo", da mesma maneira poderíamos sustentar que todos se salvam. O açoite, pois, de toda a discussão teológica é a atitude de parcialidade e discriminação para dirigir as Escrituras, a qual se assume só para citar e mencionar o que se ajusta ao próprio ponto de vista, ou coincide com a posição própria; ao mesmo tempo que deliberadamente se descarta todo o material do outro ponto de vista. Por isso, argumentando e discutindo sobre a base de citações de textos bíblicos jamais se poderá conseguir nada. Ao estudar a Bíblia é necessário que apliquemos a totalidade da Escritura ao nosso problema e pensamento. Devemos encarar o problema, não à luz de algum texto ou série de textos, mas sim à luz da mente total e o caráter de Jesus Cristo, tal como o conhecemos; assim como à luz da mente e coração do Deus que é o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Aproximar-se honestamente da Bíblia é aproximar-
Introdução à Bíblia (William Barclay) 108 se à totalidade dela e não só a uma seleção dela, segundo nossa conveniência. V. Ainda mais, é importante que nossa entrega ao estudo das Escrituras seja total. Jesus disse que devemos amar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa alma e com todas as nossas forças (Lc. 10:27) e assim é como devemos estudar a Bíblia. Sempre houve e sempre haverá pessoas que consciente ou inconscientemente, desconectam sua mente ao começar o estudo das Escrituras. F. C. Grant, em seu livro Como ler a Bíblia, narra a experiência de um amigo dele. Dissertava este sobre como estudar o Antigo Testamento, e como, às vezes, este é difícil de entender. Ao terminar a conferência pediu a palavra uma jovem atrativa e inteligente, para replicar: "Você não necessita que alguém lhe diga como ler a Bíblia. Abra-a onde quer que, leia três versículos, ponha em branco a mente, e o Espírito Santo fará o resto!” Segundo ela, não se necessita a inteligência; a única coisa necessário para o estudo bíblico é a mente. De modo que, alguns suspeitam fortemente da razão humana, ou "a prostituta do diabo" de que fala Lutero. Mas Lutero, como tantos outros grandes pregadores, era apaixonado, e cheio de entusiasmo e convicção. Tinha a tendência a enfatizar certo aspecto de um argumento segundo o momento; pelo que quase sempre é inseguro tomar alguma de suas afirmações como se fosse algo definitivo, a menos que se comprovou o oposto previamente. Lutero pode argumentar corretamente que, para estudar a Bíblia, é preciso ter algo mais que o simples intelecto. Sustenta que há uma diferença entre a sabedoria humana e a sabedoria divina, e que a compreensão da Palavra de Deus está fora do alcance do poder e o intelecto humanos. Bem pôde ele dizer: "Oferece a Deus o teu coração vazio e te será revelada a verdade".
Introdução à Bíblia (William Barclay) 109 Lutero pode alegar cabalmente que o intelecto é inadequado para entender a Palavra de Deus, e que pode ser o maior estorvo do ser humano. Bastaria sopesar algumas de suas citações: "A razão é a prostituta do diabo e nada pode fazer além de envergonhar e degradar tudo o que Deus faz". A fé fere de morte esta razão humana, e com ela mata a besta que nem o céu, nem a terra, nem todas as coisas criadas podem destruir". "A razão é incapaz de reconhecer justamente a deidade de Deus e de atribuí-la como Sua, embora em justiça só a Ele pertence. A razão sabe que Deus existe. Mas o que não sabe é a quem chamar propriamente Deus ... Assim é como a razão fica perante Deus à maneira do cego que segue a sua fortificação e comete erros garrafais e sempre erra o alvo, chamando Deus ao que não é e sem poder chamar Deus a quem sim é". Ninguém se expressou com mais desprezo pela razão humana que Martinho Lutero. Mas há outro aspecto que, expresso por Lutero, é perfeitamente razoável. Certo, as Escrituras foram dadas pelo Espírito e só podem ser entendidas pelo Espírito. Só o Autor das Escrituras é capaz de interpretálas. "Mas a mensagem do Espírito se transmite por meio da linguagem". "As palavras são veículos do pensamento: são como o santuário onde se encontra a verdade de Deus". E para achar o significado das palavras, para extrair o sentido do tema, a razão deve aplicar o pensamento mais rigoroso, o estudo mais intenso, a aplicação mais extenuante. Aqui é onde entra a razão humana. É preciso aplicar a razão para entender o dado da mensagem do Espírito. Conquanto a devoção capta a mensagem do Espírito por meio da graça, a erudição terá que se esforçar para extrair o significado das palavras em que a mensagem se expressou. Por isso Melâncton escreve em seu Encomium Eloquentiae (O Elogio da Eloquência): "Não creio estar errado quando opino que o santo pode ser esquadrinhado mercê à destreza do talento humano. Há algo no santo que ninguém pode ver jamais, a menos de que o mostre Deus: e não se nos pode revelar a Cristo sem que o Espírito Santo nos ensine...
Introdução à Bíblia (William Barclay) 110 Mas à parte da profecia deve conhecer o significado das palavras, pois nelas se escondem os mistérios divinos como num santuário. Porque de que serve murmurar conjuros mágicos que ninguém entende? Não equivaleria a tentar contar uma história a um surdo? A mente humana precisa esforçar-se a fim de entender e comunicar a mensagem do Espírito. O próprio Lutero disse que as Escrituras ensinam vida eterna e que, precisamente por esta razão, não podem entender-se sem o Espírito. Por isso é preciso orar para receber iluminação, orientação e entendimento. “Mas Deus concederá entendimento só a quem persevera no estudo das próprias palavras e medita sobre o significado que lhes conferiu o Espírito Santo”. Assim se estabelece a interação entre o Espírito de Deus e a mente humana. O Espírito ajuda a todo aquele que se esforça por ajudar-se a si mesmo. Deus não alimenta o homem como se alimenta um bebê. Quanto mais se contribua à Bíblia, mais se recebe dela. Quando a graça e guia do Espírito encontram-se no estudo, a dedicação intensa e o esforço de uma mente consagrada, então as Escrituras abrem os seus tesouros. A pessoa precisa oferecer-se com toda sua mente e coração à totalidade das Escrituras. VI. Antes de entrar em detalhes assinalaremos um último ponto geral sobre nossa atitude perante as Escrituras. O estudo das Escrituras tem como propósito conduzir à ação. Frequentemente ouvimos falar de círculos de discussão; mas se o trabalho de um círculo termina em discussão, algo anda muito mal; deve terminar em ação J. A. Bengel tinha anotado em seu Novo Testamento um famoso dístico (poema de 2 linhas) latino: Te totum applica ad textum; Rem totam applica ad te.
O que se poderia parafrasear como "Aplique-se todo você ao estudo da Escritura e logo se aplique todo o resultado de seu estudo".
Introdução à Bíblia (William Barclay) 111 E como assinala Lutero, afinal de contas não estamos tratando com os regulamentos de um livro, mas com os mandamentos de uma pessoa, Jesus Cristo. Como disse Lutero a João Staupits numa carta: "Porque os mandamentos de Deus adquirem doçura quando compreendemos que não só são para ler-se em livros, mas nas feridas do muito doce Salvador". Ao estudar em grupo a palavra de Deus, não deveríamos fazê-lo para desfrutar de uma prazenteira discussão, senão para achar a vontade de Deus para nós e, tendo-a achado, não deveríamos nos limitar a saber, mas também a obedecer. Referimo-nos à atitude no estudo. Passemos agora a considerar a técnica de nosso estudo. Devemos esclarecer primeiro que nosso propósito, do princípio ao fim, é o de achar o significado da Bíblia. Embora isto soe relativamente fácil, é neste ponto onde a tarefa de estudar, frequentemente se complicou e foi concebida erroneamente. Os antigos sábios judeus costumavam dizer que a Escritura tem quatro significados. Primeiro vem Peshat , que é o simples significado literal. Segundo vem Remez, o significado por alusão, que é ao que chega o estudante quando não toma a passagem como narração simples mas sim como alegoria. Terceiro vem Derash, que significa a aplicação homilética da passagem uma vez que foi estudada com todos os instrumentos ao alcance. E quarto, vem Sod, que é o significado íntimo ao qual só pode penetrar o erudito espiritual. Peshat, Remez, Derash, Sod : as iniciais juntas destas quatro palavras é PRDS. No hebraico não há vocais, só consoantes; as vogais devem ser inseridas especificamente. Como as consoantes da palavra hebraica para Paraíso são PRDS, os antigos eruditos sustentavam que, se um estudante penetrava totalmente nos quatro significados, nesse mesmo momento estaria no Paraíso! Mas cometeram o erro de descuidar o significado simples e literal e se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 112 dedicaram totalmente aos significados alegóricos e profundos, e uma vez que começamos a alegorizar as Escrituras podemos fazê-las dizer qualquer coisa. Eis aqui um exemplo relativamente simples de como costumavam fazer algumas alegorias. Tomemos a passagem do Eclesiastes 9:14-15, que diz: Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens; veio contra ela um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela grandes baluartes. Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou pela sua sabedoria; contudo, ninguém se lembrou mais daquele pobre.
Isto não é mais que uma simples parábola de como as pessoas esquecem o que por eles se faz e incorrem em ingratidão. Agora, uma das crenças básicas dos judeus é que há duas naturezas no homem: uma boa e outra má. A natureza boa impulsiona o homem a fazer o bem, e a natureza má tenta seduzi-lo a pecar. Assim que os rabinos alegorizaram esta parábola: "Uma pequena cidade", isto é o corpo. "Poucos homens nela", isto são os membros do corpo. "Vem contra ela um grande rei", isto é a natureza má, o impulso ímpio. "Assedia-a e levanta contra ela grandes baluartes", estes são os pecados. "acha-se nela um homem pobre, sábio", esta é a natureza boa, o impulso bondoso. "O qual livra a cidade com sua sabedoria", isto é o arrependimento e as boas obras mediante as quais os homens se salvam. "Ninguém se lembrava daquele homem pobre", porque para então domina o impulso ímpio e o impulso bondoso foi esquecido. É assim como uma simples história de ingratidão converte-se numa complicada alegoria sobre a natureza humana. Durante séculos, os eruditos cristãos agiram exatamente igual. Os mestres de gramática latina da Idade Média encerravam em quatro linhas o quádruplo significado das Escrituras: Litera gesta docet; Quid credas, allegoria; Mora
Introdução à Bíblia (William Barclay) lis , quid agat; Quid
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speres, anagogia.
Que poderia ser assim traduzido: O literal diz o que sucedeu; o alegórico, o que deves crer: o moral, o que deves fazer; o anagógico, o que deves esperar.
Schwartz em sua Biblical Translation (Tradução Bíblica) complementa-o assim: "O sentido literal explica os conteúdos históricos; o alegórico esclarece assuntos de fé, revelando a alegoria que se encerra no texto bíblico; o sentido moral indica as regras da conduta humana, e o sentido anagógico trata do futuro a que deve aspirar (a vida vindoura)". O problema esteve no fato de que frequentemente os cristãos se aproximaram da Bíblia como a uma caçada de significados ocultos, e assim se atribuíram significados místicos a relatos simples. Os gregos fizeram o mesmo com Homero, muito antes de que os judeus começassem a fazê-lo com o Antigo Testamento. Consideremos, por exemplo, o que faziam os gregos com seu deus Hermes. Primeiro começaram a dizer que Hermes provinha do verbo erein, falar. Logo acrescentaram que não era preciso considerar o Hermes como pessoa mas sim como símbolo, como alegoria do poder da palavra. Sobre essa base passaram a explicar as várias maneiras em que Hermes pode ser descrito. É chamado o condutor , porque a palavra conduz os pensamentos do homem à alma de seu próximo. É representado com pés alados para figurar as palavras aladas. É chamado o guia das almas porque as palavras levam consolo à alma. É chamado o despertador do sonho porque as palavras movem o homem à ação. Leva uma vara com serpentes enroscadas que representam as naturezas selvagens que são
Introdução à Bíblia (William Barclay) 114 domadas pelas palavras. Assim foi como o deus Hermes foi convertido em alegoria do poder da palavra. É o mesmo que os judeus costumavam fazer. Converteram Sara e Agar nos símbolos da verdadeira sabedoria e da filosofia pagã. A mulher de Ló simbolizava para eles o apego da alma às coisas mundanas, o que produz cegueira para com Deus e Sua verdade. É óbvio que, se as Escrituras forem tomadas assim, pode-se fazê-las dizer quase qualquer coisa. O exemplo mais notório disto é a interpretação que Santo Agostinho faz da parábola do Bom Samaritano e que C. H. Dodd cita em seu livro Parables of the Kingdom (Parábolas do Reino) Um homem descia de Jerusalém a Jericó, o qual simboliza a Adão; Jerusalém é a celestial cidade de paz e de cuja bem-aventurança Adão caiu; Jericó significa a lua e exemplifica nossa mortalidade porque nasce, cresce, míngua e morre. Os ladrões são o diabo e seus anjos. Os que o despojaram de sua imortalidade, deixando-o meio-morto,
pois um homem vive enquanto pode entender e conhecer a Deus, e está morto enquanto que o pecado o consome e oprime, e portanto o considera meio-morto. O sacerdote e o levita que o viram e passaram de largo, representam o sacerdócio e ministério do Antigo Testamento, que em nada aproveitam para a salvação. Samaritano pode ter a derivação hebraica de guardião que, por sua vez, é um significado do próprio Senhor. Enfaixou suas feridas indica a sujeição do pecado. O óleo é o consolo de uma boa esperança, e o vinho é a exortação a trabalhar com espírito fervoroso. A cavalgadura é a carne em que Cristo chegou até nós. Pô-lo em sua cavalgadura é a fé na encarnação de Cristo. A hospedaria é a Igreja, que é onde os viajantes acham refrigério em sua peregrinação de volta ao lar celestial. Outro dia é depois da Ressurreição do Senhor. Os dois denários são os dois preceitos de amor ou, possivelmente, os dois sacramentos. O estalajadeiro é o Apóstolo Paulo. A promessa que faz de pagar tudo o
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que gaste é,
ou seu conselho de celibato ou o fato de que trabalhou com suas próprias mãos para não se tornar em carga de seus irmãos.
Se tal fosse o verdadeiro significado desta parábola não poderia esperar-se que uma pessoa comum o descobrisse jamais por si mesma; resulta deste modo evidente que praticamente não há limite à quantidade de interpretações que poderiam ser tiradas das Escrituras. Na Carta de Barnabé 9:7-9, acha-se outro caso dos extremos a que se pode chegar com a alegorização. Barnabé parte da passagem em Gênesis 17:23, 27. Aprendemos ali a origem da circuncisão e que Abraão circuncidou a todos os varões de sua casa. Cotejando-o com Gênesis 14:14 poderíamos inferir que se trata de trezentos e dezoito varões em total. Na Septuaginta, que é a versão que emprega Barnabé, a quantidade 318 se expressa na ordem dezoito homens e trezentos. Pois bem, em grego as quantidades não se expressam com números mas com letras do alfabeto, que é como se em português o A fosse igual a 1, o B igual a 2, e assim sucessivamente. Agora, em grego as letras para dezoito são o iota, I, que equivale a 10, et, o E longo grego, que equivale a 8. Quer dizer, que 18 é IE que, evidentemente, são as duas primeiras letras do nome IESUS , Jesus. A letra grega para 300 é tau, T, que tem a forma de uma cruz romana, como aquela na qual Cristo foi sacrificado. De modo que, Barnabé interpreta trezentos e dezoito como IE , que representa a Jesus, e o T como símbolo da cruz: portanto, quando Abraão efetuou a primeira circuncisão, fê-lo "olhando antecipadamente ao espírito de Jesus". Este é um método desastroso para interpretar as Escrituras, e deveríamos evitá-lo a todo custo. O significado que buscamos é aquele que teve originalmente para o escritor e não aquele que engenhos subsequentes puseram mais tarde no texto. Até hoje os pregadores apelam à alegoria, embora certamente não com a desviada ingenuidade
Introdução à Bíblia (William Barclay) 116 dos antigos intérpretes, mas de maneira mais restringida. Até o renomado pregador James S. Stewart, em seu livro de sermões The Gates of New Life (Portais à nova vida) tem um sermão baseado em Atos 27:29: "E, receosos de que fôssemos atirados contra lugares rochosos, lançaram da popa quatro âncoras e oravam para que rompesse o dia". Intitula o seu sermão "As âncoras da alma". Chega a dizer que cada alma deve ter quatro âncoras: a de esperança, a do dever, a da oração, e a cruz de Cristo. Vemos como uma simples manobra marinha em meio de um temporal, transformou-se numa alegoria dos apoios da alma na tempestade da vida. O emprego de tal método, mesmo quando usado por tão eminente pregador, parece-nos totalmente injustificado. Nosso propósito deve ser buscar o significado bíblico original. Se nossa tarefa fundamental for a de averiguar o significado das Escrituras, então devemos começar por estudar as palavras. Daremos só duas ilustrações sobre o inspirador que pode resultar o estudo das palavras. Paulo menciona três vezes o penhor do Espírito. A palavra original para penhor é arrabon, que faz parte do vocabulário comercial e de negócios. Um arrabon era parte do preço de compra ou do preço contratado que se pagava adiantado em garantia do pagamento restante. Se uma mulher vendia uma vaca, recebia um arrabon suficiente como garantia de que lhe seria pago o resto. Ou alguém contratava um exterminador de ratos. Os roedores causavam estragos nos vinhedos durante a colheita, assim que o dono do vinhedo adiantava ao mata-ratos uma quantidade como arrabon para que imediatamente se dedicasse a exterminar a praga. Se para a festa da aldeia se contratava a um grupo coral, imediatamente recebiam seu arrabon que garantia o pagamento total depois de sua atuação. O arrabon era a antecipação do preço total que garantia o pagamento completo. Neste sentido Paulo fala do Espírito Santo como o arrabon de Deus. Quer dizer, para o cristão o dom do
Introdução à Bíblia (William Barclay) 117 Espírito Santo é a antecipação da vida celestial e a garantia de que algum dia esta vida chegará em toda sua plenitude. O Espírito Santo é com frequência chamado Consolador. Na Versão Autorizada (inglesa) o Evangelho de João (Jo 14:16,26; 15:26; 16:7) emprega o título de Consolador para descrever o Espírito Santo. Entretanto, poucas há que tenham limitado e truncado tanto a compreensão da verdadeira obra do Espírito Santo como o uso consistente da palavra Consolador. Em grego, a palavra é Partiklétos, que às vezes se translitera diretamente como Paracleto até em nossos hinos. Esta palavra grega Parakletos significa literalmente alguém que foi chamado ao lado de mais alguém. Em grego sempre se decide o significado da palavra segundo o propósito para o qual foi chamada a pessoa. Pode significar alguém que é chamado a apresentar evidência para a defesa, uma testemunha a favor. Pode significar alguém chamado para defender a causa de alguém, um advogado defensor. Pode significar alguém que foi chamado para proporcionar ajuda médica, um doutor. Emprega-se para descrever a alguém que discursa a um exército deprimido e sem espírito de luta quem, por suas palavras e o impacto de sua personalidade, injeta-lhe novo ânimo e valor. Estes exemplos nos permitem apreciar que um parakletos é alguém chamado em ajuda de alguém que tem dificuldades para fazer frente a alguma situação. Assim que, o Espírito Santo é a pessoa através da qual chega a nós a graça e fortaleza de Deus e que nos capacita para fazer frente à vida. Certamente, parte de seu trabalho é consolar, mas só uma parte. Chamar Consolador o Espírito Santo e limitar-se a isso é ter uma perspectiva limitada e sentimentaloide do Espírito, embora no original a palavra esteja cheia de poder e da promessa da habilidade dada por Deus para confrontar e dominar qualquer circunstância da vida.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 118 Como, pois, introduziu-se a palavra Comforter (Consolador) na tradução inglesa da Bíblia? Introduziu-a Wycliffe ao redor de 1586 e ali ficou desde então. Só que nos tempos do Wycliffe era uma tradução perfeita. A palavra comfort se deriva do latim fortis, valente, e originalmente significa alguém que injeta coragem. Tomando dois exemplos da aplicação desta palavra por Wycliffe encontramos Efésios 6:10 que traduz o inglês: " Be ye comforted in the Lord " (Sede confortados no Senhor) e em 1 Timóteo 1:12 o verte "I dou thanks to him who comforted me" (Dou graças àquele que me confortou). Em ambos os casos a palavra grega é endunamoun, cuja raiz é dunamis, poder, de onde provém a palavra dinamite. No tempo de Wycliffe, confortar uma pessoa significava enchê-la com um poder como de dinamite espiritual. O Espírito Santo não deve enxugar nossas lágrimas, mas antes, proporciona-nos poder dinâmico para enfrentar a vida. Assim que, o primeiro passo na técnica de estudo bíblico consiste em assegurar-se do significado da passagem em estudo: a partir da investigação do significado das palavras. Idealmente, isto significa que o grupo de estudo bíblico deve ser guiado por alguém que conheça o hebraico e o grego. Isso seria impossível. Em sua falta, o grupo deveria ter acesso a alguém com tais conhecimentos. Mas até isto resulta impossível. Normalmente, o pastor poderia ser esta pessoa, mas os métodos atuais de preparação pastoral não incluem necessariamente a aprendizagem das línguas originais. Assim que, provavelmente, o grupo tem que depender de comentários fundamentados em tais línguas. Em nossa busca por achar o significado bíblico encontramos outra necessidade. Para nos assegurar o significado de qualquer passagem das Escrituras, precisamos empregar alguma tradução contemporânea. A Versão Autorizada (inglesa) sempre será conhecida e amada como uma das realizações elevadas do idioma, mas existem quando menos três razões que a tornam inadequada para o estudo de hoje.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 119 I. Há passagens que deixaram de ser inteligíveis aos ouvidos contemporâneos ou nos quais com o tempo se alteraram os significados das palavras. O assombroso numa tradução feita em 1611 não é que tais exemplos existam nela, mas que em sua totalidade haja tão poucos. Mas aqui há vários exemplos à cunha: They fetched a compass (Eles
traçaram um compasso) de sete dias de
caminho (2Rs. 3:9). Dali traçamos um compasso (we fetched a compass) chegamos a Régio (At. 28:13). Traçar um compasso significa percorrer um circuito.
Na Versão Autorizada (inglesa) sobrevive uma acepção abandonada e frequentemente equívoca, da palavra prevent (prevenir). Ligaduras do Sheol me rodearam: preveniram-me laços de morte (Sl 18:5). Por que me preveniram os joelhos? (Jó 3:12). E de amanhã minha oração te prevenirá (Sl 88:13). Os moradores da terra de Tema levaram água ao sedento e preveniram com pão ao que fugia (Is. 21:14).
No inglês atual a palavra prevent (prevenir) significa estorvar, impedir, deter alguém que faz algo. Na linguagem de 1611 significa ir adiante, preceder e, portanto, reunir ou encontrar, mas sem traçado de estorvo ou prevenção no sentido atual do termo. A palavra conversation (conversação) tem uma aplicação ainda mais equívoca. Tendes ouvido a respeito de minha conversação em outro tempo no judaísmo (Gál.1:13).
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Sê o exemplo dos crentes em palavra, conversação, amor (1Tm. 4:12). Quem é sábio e entendido entre vós? Mostre pela boa conversação suas obras em sábia mansidão (Tg. 3:13). Sede santos em toda sua maneira de conversação (1Pe. 1:15). Teniendo vuestra conversación honesta entre los gentiles (1Pe. 2:12).
Atualmente, conversação é a maneira de falar de uma pessoa, sua linguagem, seu pensamento. Mas conversação vem do latim conversar que significa subir e baixar, ir e vir, e abrange não só a fala mas também à totalidade da conduta. Nos versículos anteriores não se trata de ter cuidado ao falar, e sim de nosso comportamento total, de nossa vida e conduta. No último versículo resulta duplamente enganoso pois honesta não significa ali dizer a verdade. Em 1611 honesta significava usualmente honorável. Assim que 1Pe. 2:12 significaria realmente: "Em seu contato com o mundo gentil, vede que vossa conduta seja sempre honorável". Fica, pois, claro que em nossa busca do significado bíblico necessitamos uma versão em linguagem atual, não do século XVII. II. A Versão Autorizada (inglesa) tem outra característica digna de menção, que é sua linguagem belíssima embora acompanhada de certo arcaísmo. A linguagem é bela mas não do século XX, e é precisamente a combinação de beleza e arcaísmo o que lhe confere a solenidade e dignidade que a muitos é tão cara. Agora, uma tradução deveria reproduzir não só o significado, mas também a atmosfera do original. Pelo que cabe ao Antigo Testamento, a atmosfera da Versão Autorizada (inglesa) é irreprochável, pois o hebraico ali é clássico, do melhor. Mais pelo que cabe ao Novo Testamento, a situação é muito distinta. O grego neotestamentário é coloquial, do tipo de linguagem que
Introdução à Bíblia (William Barclay) 121 se fala nas ruas durante o Século I. Não se trata de grego clássico. Já assinalamos que, embora o Novo Testamento tenha perdido toda sua importância religiosa, ainda ficaria a primordial importância de ser o único monumento escrito que existe do grego popular do Século I. O que significa que quanto mais solene, elegante, bela e arcaica seja uma tradução do Novo Testamento, pior será a tradução. Não deve soar bela e elegante e solene e antiquada, e sim atual e popular, do tipo de linguagem que se fala em casa e na rua, ou que se lê nos periódicos. Seria pior uma tradução solene, clássica e arcaica do Novo Testamento, pois isso é precisamente o que não é a linguagem do Novo Testamento grego. Qualquer tradução do Novo Testamento deve falar com a pessoa na linguagem vernácula do país; qualquer outra tradução é uma má tradução. Assim que, a Versão Autorizada (inglesa) era apropriada em 1611, mas não hoje. Quando Lutero se referiu à sua própria tradução da Bíblia, afirmou que o tradutor não devia traduzir para quem falassem latim. "Devemos perguntar disto à mãe no lar, às crianças na rua, ao cidadão comum no mercado; observar como movem a boca quando falam, e depois fazer nossa tradução". O essencial para um estudo do significado do Novo Testamento é empregar uma tradução na linguagem de nossa própria geração". III. O terceiro fato sobre a Versão Autorizada (inglesa) é o mais sério de todos. É óbvio que nenhuma tradução pode ser melhor que os manuscritos em que se baseia. Antes da invenção da imprensa, os manuscritos eram copiados à mão e, com o máximo de cuidados, cada cópia manual causava novos erros às cópias sucessivas. Portanto, quanto mais antigo for um manuscrito, maiores possibilidades tem de ser mais correto. Quanto mais próximo estiver ao original e menos forem as
Introdução à Bíblia (William Barclay) 122 diferenças entre a cópia e o original maior será sua precisão. Além disso, quanto mais manuscritos haja disponíveis, maiores serão as probabilidades de que em alguns deles se preservem os textos originais. A Versão Autorizada (inglesa) publicou-se em 1611. Foi tomada de um texto grego, ou seja de um Novo Testamento que em grande parte foi o de Erasmo revisado por Beza e Estéfano. Tal texto grego tinha como base um máximo de dez manuscritos gregos, o mais antigo dos quais datava dificilmente do século X. Isto significa que a Versão Autorizada (inglesa) é tradução de um texto grego do Novo Testamento que resulta bastante inadequado. Não foi culpa dos tradutores nem dos que recolheram o texto empregado. Eles utilizaram o melhor que havia em 1611. Mas desde então fezse todo tipo de descobertas e apareceram muitos manuscritos desconhecidos. Na atualidade contamos com manuscritos procedentes dos séculos terceiro e quarto, os quais podem contar-se por vintenas e até por centenas. Quer dizer, que no século XX conta-se com centenas de manuscritos que são seis ou sete séculos mais antigos que os que serviram de base ao texto grego de onde se traduziu a Versão Autorizada (inglesa). Por mais que amemos a Versão Autorizada como monumento de prosa inglesa; por mais que nossos corações descansem em sua musicalidade e em suas cadências; não podemos menos que reconhecer que já não é uma tradução adequada no século XX. Isso não significa que deixemos de lê-la para propósitos espirituais e devocionais, mas que já não se pode utilizar adequadamente como base para o verdadeiro estudo bíblico. Para estudo (em inglês) sugerimos empregar a Versão Revisada Padrão ou, ainda melhor, a Nova Bíblia Inglesa. Não fazê-lo equivale a fechar os olhos deliberadamente ao novo conhecimento da
Introdução à Bíblia (William Barclay) 123 Palavra que Deus pôs à nossa disposição em nossa época e para nossa geração. Uma vez estabelecido o significado da passagem, com relação às próprias palavras, o seguinte passo é colocá-las dentro de um contexto e ambiente. É impossível entender uma pessoa sem saber algo de seu ambiente e antecedentes. Por exemplo, não podemos entender por que alguém é como é, a menos que conheçamos algo de seu lar, seus pais e sua formação. É importante conhecer que algo sucedeu; mas mais importante ainda é entender por que sucedeu. Para entender isto é necessário conhecer o contexto e os antecedentes do evento. Vejamos dois exemplos disto, um de aspecto geográfico e outro sobre a vida e os costumes. Uma das diferenças supremas entre a antiguidade e a atualidade é a aniquilação da distância. Atualmente, alguém toma o café da manhã em Londres e almoça em Nova Iorque, a mais de 4.800 quilômetros de distância. Nosso mundo atual diminuiu, e seus habitantes levamos uma vida extremamente móvel. Pelo contrário, segundo o que sabemos de Jesus, durante toda Sua vida em Palestina não viajou a mais de 160 quilômetros desde Sua casa. Ao ler a história da criança Samuel (1Sm. 1 e 2), parece como se a criança e sua mãe Ana estivessem muito afastadas. Cada ano ela passa a visitá-lo e leva a nova capa que teceu para ele. Tal parece que Ana empreende toda uma expedição e, entretanto, Ramá onde vivia Ana, está a 27 quilômetros de distância de Siló, que é onde servia Menino Samuel. Ou tomemos o caso do dilúvio, que em Gênesis 6 é visto como evento mundial. Mas para o escritor do relato o mundo se reduz a Mesopotâmia e o Vale do Eufrates. O antigo escritor não tinha a menor ideia da existência de outros continentes como a América, África e Austrália. Para ele, o mundo se limitava à pequena porção que conhecia.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 124 E é um fato histórico indubitável que nessa região teve lugar um dilúvio que destruiu o mundo conhecido pelo escritor de então. Mas não podemos pensar que a palavra mundo tivesse para ele o mesmo significado que o mundo onde 4.800 quilômetros se percorrem numa manhã de viagem. Ainda podemos considerar um exemplo mais detalhado. Na purificação do templo, que é uma das histórias mais impressionantes dos evangelhos, é ameaçadora a imagem de um Jesus lívido de ira e com o látego na mão. Primeiro de tudo, consideremos o Átrio dos Gentios que foi onde teve lugar este incidente. O templo de Jerusalém constava de vários átrios e o acesso a cada um deles era cada vez mais limitado. Qualquer um poderia entrar neste átrio, fosse ou não judeu. Em seguida vinha o Átrio das Mulheres, para além do qual nenhuma mulher podia passar. Entre ambos átrios havia uma parede baixa na qual havia uma placa onde se advertia os gentios que não deviam passar mais adiante, sob pena de morte instantânea. Depois do Átrio das Mulheres vinha o dos Israelitas, para além do qual nenhum leigo podia passar. Finalmente vinha o Átrio dos Sacerdotes, onde estava o grande altar, o candelabro dos sete braços, a mesa dos pães da proposição e o altar do incenso, onde só podiam entrar os sacerdotes. No extremo do Átrio dos Sacerdotes estava o Templo propriamente dito, o lugar Santo e o Santíssimo, onde só o Sumo sacerdote podia entrar, e isso unicamente no dia do Perdão. De modo que, quanto mais perto encontravam-se os átrios do Templo, menos gente podia entrar neles. O incidente da Purificação do Templo teve lugar na área onde os gentios podiam entrar, e que era o único lugar onde podiam adorar e orar. Logo do lugar, consideremos os personagens envolvidos. Em primeiro lugar, os cambistas. Cada varão judeu e prosélito devia pagar de imposto ao Templo meio siclo anual, que seria o equivalente do US$ 0.12 dólares. As mulheres e as crianças estavam isentas. Mas é preciso
Introdução à Bíblia (William Barclay) 125 levar em conta que então o trabalhador percebia diariamente o equivalente a US$ 006 dólares aproximadamente O imposto, pois, significava quase dois dias de salário, o que é muito significativo. Por outro lado, o imposto do Templo devia pagar-se em siclos do santuário ou siclos galileus. Isto se devia a que eram as únicas moedas que não tinham nenhuma efígie real gravada nelas, o que para os judeus representava uma imagem idólatra, especialmente considerando que então havia tantos monarcas a quem se rendia culto como a um deus. Na Palestina circulava ordinariamente todo tipo de moedas provenientes da Grécia, Roma, Fenícia, Egito, Síria, etc. O imposto era pago durante a Festa da Páscoa que atraía judeus de todo o mundo, os quais deviam celebrar a Páscoa e pagar seu imposto. Os peregrinos traziam consigo todo tipo de moedas. Era uma obrigação pagar este imposto, e na Palestina as autoridades do Templo podiam embargar os bens daqueles que não o fizessem. Assim que os visitantes iam aos banqueiros ou cambistas para converter seu dinheiro em siclos. Os cambistas cobravam um maah (equivalente a um centavo e meio americano) mas se a moeda estrangeira era por mais de meio siclo, então lhe sobrecarregavam um maah adicional por lhe dar câmbio. Lembre-se que o maah equivalia à quarta parte de um salário de então. Assim que o visitante devia investir quase dois dias de salário no pagamento do imposto ao Templo, e quase outro meio-dia de salário porque lhe cambiassem suas moedas. Era um despojo colossal em que abertamente se exauria os peregrinos. Anualmente produzia ganhos equivalentes a US$ 13.000 e US$ 15,000 dólares, que seriam somas milionárias na atualidade. A riqueza da tesouraria do Templo era tal que quando Crasso, general romano, saqueou-o no ano 54 a.C., levou-se o equivalente a US$4.100.000 dólares sem deixar exausta essa riqueza. Tal quantidade teria uma capacidade de compra atual equivalente a centenas de milhões de dólares. Os peregrinos, pois, eram vítimas dos cambistas.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 126 Também havia ali os vendedores de pombas. Quase todos os visitantes iam com alguma oferta para o Templo que, para os mais pobres, significava comprar ao menos uma pomba ou um pombinho. Os animais para o sacrifício no Templo deviam estar sem mancha nem defeito, o que era verificado pelos inspetores do Templo. Fora do santuário havia tendas onde se podiam comprar as pombas. Mas o mais certo era que o inspetor lhes encontrasse algum defeito e por isso era menos arriscado comprar dentro do próprio Templo, onde já tinham sido revisadas. Nas tendas de fora se conseguia o par de pombas até pelo equivalente a US$0,03 dólares, porém nas do Templo custavam até US$ 1,12 dólares. Certamente que isto era uma fraude muita mais lucrativa, e por isso as tendas no Átrio dos Gentios eram melhor conhecidas como o Bazar de Anás. Agora podemos compreender melhor a irritação de Jesus. Os pobres peregrinos estavam sendo explorados, e o único lugar onde os gentios podiam adorar, foi convertido num mercado oriental, dominado por gritos, ofertas e alegações por escrito. Também podemos entender por que Anás e companhia odiavam a Jesus, pois os tinha atacado em seus interesses criados. Estes antecedentes mostram a enorme transcendência da Purificação do Templo. Até onde seja possível, cada incidente bíblico deveria ser lido à luz de seus antecedentes, o que frequentemente demanda trabalho e investigação para chegar a entender, mas os resultados valem a pena. Existe outro fato que com frequência joga um papel preponderante em nossa interpretação bíblica, particularmente com referência ao Antigo Testamento. Para o judeu não existiam causas secundárias, pois nos tempos do Antigo Testamento, tudo se atribuía à intervenção direta de Deus. Atualmente, por exemplo, ouvimos um trovão e o explicamos conforme determinadas condições atmosféricas; os judeus se limitavam a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 127 dizer: "Deus trovejou" ou "Deus enviou o trovão". Se alguma praga destruir a colheita, nós o explicamos pelas condições do solo ou a ação das pragas. Os judeus diziam: "Deus enviou a praga". O homem contemporâneo explica as pragas e pestes, referindo-se às condições que as ocasionaram. O judeu dizia: "Deus enviou a praga, a peste". Um exemplo vívido disto encontramo-lo em 2Rs. 19:35,36, que se refere à invasão da Palestina por Senaqueribe, rei da Assíria, quem por então tinha levantado sítio contra Jerusalém. Tudo parecia perdido e a queda da cidade era só uma questão de tempo. Aqui intervêm estes dois versículos: Então, naquela mesma noite, saiu o Anjo do SENHOR e feriu, no arraial dos assírios, cento e oitenta e cinco mil; e, quando se levantaram os restantes pela manhã, eis que todos estes eram cadáveres. Retirou-se, pois, Senaqueribe, rei da Assíria, e se foi; voltou e ficou em Nínive.
Sucede que há outras duas versões sobre este evento histórico. A primeira provém do historiador grego Heródoto, quem relata que o rei da Assíria se retirou porque os ratos roeram as cordas dos arcos e as correias dos escudos de seu exército. O anjo do Senhor, ou os ratos? A terceira versão provém de Beroso, historiador caldeu, quem registra que Senaqueribe foi obrigado a retirar-se porque uma praga dizimou o seu exército. O anjo do Senhor, os ratos, ou uma praga? Poderia ser que a resposta seja: todos eles. Foi uma praga o que ocasionou o retiro armado, assim que Beroso está certo. A praga, especialmente a peste bubônica, é transmitida por ratos e ratões; assim que Heródoto está certo. Não era a vontade de Deus que Senaqueribe e suas hostes conquistassem Jerusalém, assim que o historiador hebreu está certo. Os historiadores pagãos assinalaram causas secundárias da retirada de Senaqueribe; o
Introdução à Bíblia (William Barclay) 128 historiador hebreu eliminou as causas secundárias e adjudicou o fato diretamente a Deus. Quando lermos o Antigo Testamento, lembremos especialmente que tudo se move num mundo cheio da presença de Deus. Tudo o que sucede é atribuído à ação direta de Deus e não à causa secundária. Como resultado, no Antigo Testamento eram considerados como milagrosos muitos eventos dos quais conhecemos sua causa secundária. Bem poderia dizer-se que para o judeu era Deus quem operava, embora nós sabemos mais como é que Deus opera. Ainda existe outro ponto importante sobre a interpretação. Há porções do Antigo Testamento que são poesia, e tratá-los como prosa é mal interpretá-los e tratá-los injustamente. Tomemos Josué 10:12, 13, exemplo sobressalente do que dizemos: Então, Josué falou ao SENHOR, no dia em que o SENHOR entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel; e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeão, e tu, lua, no vale de Aijalom. E o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou de seus inimigos.
Evidentemente temos aqui uma passagem que merece nosso exame mais cuidadoso a fim de alcançar sua correta interpretação. Primeiro, não se pode tomar literalmente, pela simples e suficiente razão de que, de fato, o sol não se move, mas sempre permanece imóvel (em relação à Terra). A Terra é a que se move e, se alguma vez tivesse deixado de mover-se, toda forma de vida teria desaparecido repentina e catastroficamente. Além disso, se algo como isto tivesse acontecido em alguma forma, se em alguma ocasião se pôde dizer que o sol ou a Terra ficaram imóveis, isto teria sido não só um acontecimento de história judaica mas também global, e teria ficado registrado na história de cada
Introdução à Bíblia (William Barclay) 129 nação do mundo. Não é possível tomar esta passagem com acérrimo literalismo. Mas logo surge algo mais. Vemos em Josué 10:13 [Tradução Brasileira] que se trata de uma citação do livro de Jasar, que é mencionado em outra ocasião. Toma Jasar como fonte de grande lamento de Davi pela morte de Saul (2Sm. 1:18). Está, pois, claro que o livro do Jasar era um livro de poesia e seu material era poético. A Versão Revisada Padrão (inglesa) imprime corretamente como poesia o relato de Josué. Assim que, nesta passagem nos fala um poeta que fala do sol ao estilo do poeta do Salmo 19 (5,6), que fala do sol como marido que sai diariamente sai dos seus aposentos e faz seu percurso cotidiano de um extremo ao outro dos Céus. Esta é linguagem poética, que empregamos até na conversação comum. Dizemos, por exemplo, "foi a hora mais longa de minha vida", mas não há hora que passe dos sessenta minutos. Quando nos sentimos felizes, dizemos que "o tempo foi embora voando", embora o tempo em si transcorra sempre ao mesmo ritmo. Não nos preocupemos, pois, tentando encontrar explicações à passagem de Josué. O que significa é que, pela ajuda de Deus, esse dia foi o bastante longo para obter a vitória: que pela graça de Deus se acumularam nele os eventos que deram o triunfo ao povo de Deus. Usamos mal a Bíblia quando tratamos de converter em prosa a beleza de sua poesia. Chegamos agora ao que bem poderia ser o que mais devemos lembrar ao tratar de interpretar a Bíblia. Para escrevê-la, foram necessários mil anos, e cobre um período histórico de quase três mil anos, à parte dos atos pré-históricos. Tomemos mil anos em termos atuais; retrocedamos todo esse tempo, e estaremos aproximadamente no
Introdução à Bíblia (William Barclay) 130 período do Alfredo o Grande. É evidente que a vida e o pensamento naquela sociedade e civilização eram muito diferentes. Com a Bíblia sucede algo muito semelhante. Se a narração bíblica se estender dezenas de séculos, não pode haver nela um só nível de pensamento, religião e ética. O que deve ter é desenvolvimento. Deus só podia dizer à humanidade o que ela podia e queria receber. A mensagem de Deus devia adaptar-se à condição da mente humana quando tal mensagem foi emitido. Se quer ensinar álgebra a um acanhado, não se começa pelo teorema binômico, mas sim se conduz gradualmente a ele. Para ensinar uma criança a tocar piano, não se começa pelos prelúdios e as fugas de Bach, pois são ápices e não elementos musicais. Para ensinar grego, não se começa por Píndaro ou pelos coros de Tosquio, mas se comunica ao aluno o material mais elementar. O mesmo ocorre com a Bíblia. Deus teve que guiar a mente humana de menos a mais, do nível mais baixo ao mais elevado, da penumbra ao deslumbramento. Isso é óbvio, pois se soubéssemos tudo, que necessidade teria tido que grandes profetas e, sobretudo, que Cristo viesse ao mundo? A revelação é sempre um processo contínuo. Em termos gerais, isto é o que se conhece como o princípio da revelação gradual. Por assim dizer, a revelação de Deus foi desenvolvendo-se ao desenvolver-se a capacidade humana para recebêla. Em lugar de uma revelação gradual, seria melhor falar de uma compreensão gradual da revelação. Não é que Deus tenha dosado a revelação como com conta-gotas, mas que Ele sempre ofereceu a verdade em todo o seu esplendor, mas a mente humana não estava capacitada nem disposta a receber mais que uma pequena porção dela. Quando na Bíblia encontramos algo subcristão, não há por que explicá-lo evasivamente nem defendê-lo. Esse algo representa a etapa que a humanidade tinha alcançado até esse momento. Sabemos porque, mais de uma vez, Jesus advertiu: "Ouvistes o que foi dito aos antigos...
Introdução à Bíblia (William Barclay) 131 Eu, porém, vos digo... " (Mt. 5:21, 27, 31, 33, 38, 43). Vivemos isto na prática, porquanto não há possivelmente um só cristão que pratique as leis cerimoniais do Antigo Testamento. Sabemos que em Jesus Cristo todas essas coisas ficaram atrás. Não é que sejam más nem estejam erradas, mas encontravam-se incompletas. Depois de cada uma delas há uma grande lei imutável, e estas leis antigas são captações imperfeitas da verdade. Representam o que os humanos fizeram com essa verdade nessa etapa particular. Na Bíblia encontramos isto repetidamente, mas o ilustraremos considerando primeiro certas práticas religiosas e, segundo, certos princípios religiosos que se desenvolveram posteriormente. I. Consideremos primeiro a resposta à pergunta Como mostro minha religião? tal como se responde nas passagens legais do Antigo Testamento. (a) O judeu deixava ver sua religiosidade abstendo-se de certo tipo de comida. Todos sabem que os judeus não comeriam, nem comem, carne de porco: Também o porco... este vos será imundo; da sua carne não comereis, nem tocareis no seu cadáver. Estes vos serão imundos (Lv. 11:7,8).
(b) Os judeus mostravam sua religiosidade levando suas capas com borlas, seus filactérios ou caixinhas de orações, e colocando a mezuzah, pequeno cilindro de madeira com textos bíblicos, no marco das portas. Os filactérios eram pequenos recipientes de couro que continham partes de pergaminho com textos impressos, e que durante a oração se atavam na fronte e no pulso: Disse o SENHOR a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que nos cantos das suas vestes façam borlas... E as borlas estarão ali para que, vendo-as, vos lembreis de todos os mandamentos do SENHOR (Nm 15:37-39).
Introdução à Bíblia (William Barclay)
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Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração ... Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas (Dt. 6:6-9).
Ainda hoje o judeu se cobre com seu xale com borlas e seus filactérios ao orar; ainda ata a mezuzah à entrada de sua casa ou apartamento. Mas nenhum destes mandamentos são vistos como obrigatórios para o cristão. (c) Acima de tudo, o judeu mostrava sua religiosidade mediante a circuncisão. Era sinal da aliança e de penitência ao povo de Deus. Tanta é sua importância que está escrito: O incircunciso, que não for circuncidado na carne do prepúcio, essa vida será eliminada do seu povo; quebrou a minha aliança (Gn. 17:14),
Mas não há cristão que aceite a obrigação ritual de circuncidar-se. O judeu deixa ver sua religiosidade abstendo-se de certas comidas, adornando-se com certos objetos, fixando certas coisas em sua casa, e circuncidando-se. Ninguém menospreze isto, pois são públicas demonstrações de fé do judeu, e seria bom que os cristãos mostrassem sua fé tão abertamente. Entretanto, os cristãos mostram sua religião da seguinte maneira: Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros (Jn. 13:35).
No Antigo Testamento há maneiras de demonstrar a religião, e todas elas são honoráveis. Adverte-se o fato de que a pessoa deve mostrar sua fé, mas não se alcançou a plena revelação de que a religião deve mostrar-se mediante o amor. Para entender isto era preciso esperar que Jesus viesse.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 133 II. Consideremos a seguir a pergunta: Como protejo minha religião? Como a mantenho a salvo de qualquer infecção que lhe roube sua pureza? Na resposta a esta pergunta encontramos algumas dessas coisas que nos horrorizam só lê-las. Se em tempo de guerra se rende uma cidade, todos os seus habitantes devem ser submetidos a trabalhos forçados. Porém, se ela não fizer paz contigo, mas te fizer guerra, então, a sitiarás. E o SENHOR, teu Deus, a dará na tua mão; e todos os do sexo masculino que houver nela passarás a fio de espada; mas as mulheres, e as crianças, e os animais, e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti; e desfrutarás o despojo dos inimigos que o SENHOR, teu Deus, te deu. ... Porém, das cidades destas nações que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o SENHOR, teu Deus, destruí-las-ás totalmente (Dt. 20:12-17).
Estas instruções foram aplicadas durante o sítio de Jericó, e os resultados foram: Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos (Js. 6:21).
Na guerra contra Amaleque, Samuel transmite a Saul as ordens de Deus: Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos (1Sm. 15:3).
Tudo isto parece, e é, muito sanguinário. Mas lembremos que aqui não havia ódio pessoal, nem sede de sangue, nem havia paixão assassina de matança. Depois de tudo havia algo mais: toda fé estrangeira era um foco de infecção, uma ameaça à pureza do culto a Jeová, e era preciso eliminar tudo o que com isso se relacionasse por razões de pureza e
Introdução à Bíblia (William Barclay) 134 segurança. E assim se expressa claramente, pois as instruções em Deuteronômio concluem com as palavras que mostram a razão por trás disso: para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o SENHOR, vosso Deus (Dt. 20: 18).
O fato é que todas estas nações eram idólatras e, portanto, inimigas de Deus; era preciso suprimi-las para prevenir que suas práticas pagãs infectassem e manchassem a pureza da religião hebraica. Mas quando Jesus vem, traz consigo um novo conceito, que não é já a eliminação dos inimigos de Deus arrebatando-lhes a vida: temos que eliminar sua inimizade mediante sua conversão. Durante a guerra civil norte-americana, acusou-se ao Presidente Abraão Lincoln de ser muito considerado e amável com os estados sulinos. "São seus inimigos – dizia-lhe o povo – e sua missão é destruí-los". Ao que Lincoln replicou: “E não destruo a meus inimigos quando os faço meus amigos?” O Antigo Testamento mostra só a metade da verdade: os inimigos de Deus devem ser destruídos. Mas quando Jesus vem, descobre-nos que a maneira de destruir aos inimigos de Deus é convertê-los em amigos de Deus. III. A terceira pergunta resulta natural: O que é que devo dar a Deus? Que oferta devo lhe apresentar para agradá-Lo? Boa parte do Antigo Testamento fala de ovelhas, cordeiros, bezerros, touros, bois, pombas, pombinhos, veio, farinha e azeite: tudo como parte dos sacrifícios cerimoniais oferecidos a Deus. A teoria subjacente é bem clara. Quem adora diz a si mesmo: "Devo ofertar a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 135 Deus minha possessão mais valiosa", e numa sociedade agrícola isto significa, animais e colheitas que tantos suores custam. Mas até no Antigo Testamento se deixa ver o inadequado de tudo isto. Isaías ouve a voz de Deus, que lhe diz: De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios? —diz o SENHOR. Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando vindes para comparecer perante mim, quem vos requereu o só pisardes os meus átrios? Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação ... Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas (Is. 1:11-13, 16, 17).
Do ponto de vista de Isaías, todo o aparelho de sacrifícios chegou a ser um vasto despropósito. Miqueias disse o mesmo: Com que me apresentarei ao SENHOR e me inclinarei ante o Deus excelso? Virei perante ele com holocaustos, com bezerros de um ano? 7 Agradar-se-á o SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma? Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus. (Mq. 6:6-8).
E em Oseias achamos o que parecesse ser o texto favorito de Jesus: Porque misericórdia quero e não sacrifício (Os. 6:6; Mt. 9:13; 12:7)
Isto deixa claro que Deus nunca quis o sacrifício de animais. Os judeus pensaram justamente o contrário porque nos animais viam suas posses mais valiosas, e estavam dispostos a oferecê-los a Deus. Mas
Introdução à Bíblia (William Barclay) 136 os profetas viram, e mais que ninguém Jesus, quão fora de lugar era o sacrifício de animais. A coisa mais preciosa de uma pessoa é o seu coração, seu próprio ser; coração e ser cheios de amor a Deus e pelo ser humano. Esse é o único dom que Deus espera de nós. Vemos, pois, como no Antigo Testamento se percebe vez após vez uma grande verdade, mas que se percebe de maneira imperfeita. Para sua compreensão total temos que esperar que venha Jesus. Não é que o Antigo Testamento esteja errado. Longe disso, é uma etapa essencial cuja meta é Jesus Cristo. Tomemos agora dois dos grandes conceitos da fé cristã e vejamos como se desenvolveram através da Bíblia até sua culminação em Jesus Cristo. Observemos primeiro o conceito do perdão de nossos inimigos e dos que nos ofendem.
I. No princípio, longe de todo desejo de perdão, aparece um clamor ilimitado de vingança. Gênesis 4:23, 24 é um dos mais antigos fragmentos bíblicos; nele ressoa o clamor de vingança: E disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me; vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete
Lameque alardeia de cobrar vingança por feridas. Matou a quem o feriu e anela cobrar uma vingança que seja setenta vezes sete mais velho que o dano recebido. Esta é a passagem bíblica mais primitiva, sem nenhum conceito de perdão; só o de vingança.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 137 II. A seguinte etapa do Antigo Testamento foi e continua sendo mal interpretada. Frequentemente se diz que o Antigo Testamento crê em "olho por olho e dente por dente", e que esta é "uma das leis mais sanguinárias do Antigo Testamento". Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21:23-25). Se alguém causar defeito em seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem matar um animal restituirá outro; quem matar um homem será morto (Lv. 24:1921). Não o olharás com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé (Dt.19:21).
Qualificar estas leis como sanguinárias é mal interpretá-las totalmente; são precisamente o contrário. Na antiguidade, a vingança ou contenda cruenta era típica da sociedade tribal. Em tais disputas, se alguém feria algum membro de outra tribo, todos os que a ela pertenciam tinham o dever de aplicar a máxima vingança possível contra a tribo do agressor. Desta maneira, uma ferida relativamente ligeira podia conduzir à guerra entre duas tribos, com a conseguinte perda de vidas. As leis citadas antes foram o primeiro intento por estabelecer limites à vingança. Se era preciso vingar-se, era preciso fazê-lo só na medida exata da ferida infligida; assim já não podia provocar uma sanguinária guerra tribal. Esta lei de retribuição precisa foi modificada posteriormente. Suponhamos que alguém perdia por agressão um dente, e que tal dente estava prejudicado: seria injusto romper um dente são do agressor. Ou se
Introdução à Bíblia (William Barclay) 138 o olho ferido estava prejudicado, seria injusto tirar um olho perfeitamente são como retribuição. Assim foi como se chegou a taxar em dinheiro cada ferida, e já não sobre a base de um intercâmbio de feridas. O importante é que aqui aparece um primeiro passo rumo ao controle das vinganças, o que constitui um grande passo na direção correta. III. Na terceira etapa se estimula o perdão sem revanche, mas com certas limitações e sob certas condições. (a) Fomenta-se o perdão, mas só dentro do povo hebreu: Não aborrecerás teu irmão no teu íntimo; mas repreenderás o teu próximo e, por causa dele, não levarás sobre ti pecado. Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR (Lv. 19:17-18).
Isto é suficientemente claro, mas o perdão se limita a seu irmão e aos filhos de seu povo. Não é necessariamente aplicável aos gentios. (b) Estimula-se o perdão porque a vingança corresponde a Deus, e se a causa é justa, o ofendido pode deixar a vingança nas mãos de Deus. Não digas: Vingar-me-ei do mal; espera pelo SENHOR, e ele te livrará (Pr. 20:22).
Observa-se a mesma atitude no livro intertestamentário O testamento dos Doze Patriarcas: Amai-vos uns aos outros de coração: e se um homem pecar contra ti, expulsa o veneno do ódio e fale com ele pacificamente sem manter malícia em sua alma. Se confessar o seu pecado e se arrepende, perdoa-o. Mas se for desavergonhado e persiste em seu mal operar, mesmo assim perdoe-o de coração e deixe a vingança para Deus (O Testamento de Gade 6:3, 7).
Introdução à Bíblia (William Barclay) 139 Certo, chama-se ao perdão, mas Deus será o vingador do bom. (c) No mais comum dos casos convida-se ao perdão para ganhar o favor de Deus. Se o que te aborrece tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber, porque assim amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça, e o SENHOR te retribuirá (Pv. 25:21-22). Quando cair o teu inimigo, não te alegres, e não se regozije o teu coração quando ele tropeçar; para que o SENHOR não veja isso, e lhe desagrade, e desvie dele a sua ira (Pv. 24:17-18).
Mesmo em Lamentações 3:30 se lê: Dê a face ao que o fere; farte-se de afronta
Isso provém do fato de que: Bom é o SENHOR para os que esperam por ele, para a alma que o busca (Lm. 3:25),
O mesmo sucede na passagem de Eclesiástico 28:2: Perdoa o teu próximo o mal que te tem feito, e então serão perdoados os seus pecados quando orares.
E também: Se alguém te quer fazer mal, lhe faça o bem e ora por ele, e então o Senhor te redimirá de todo mal (O Testamento de José 18:2).
Uma das poucas passagens do Antigo Testamento onde não há limite nem condição ao perdão, encontra-se em Provérbios 24:29: Não digas: Como ele me fez a mim, assim lhe farei a ele; pagarei a cada um segundo a sua obra.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 140 De modo que, o Antigo Testamento começa com vingança ilimitada; passa a um intercâmbio de castigos estritamente limitados, e avança ainda mais à demanda de perdão, mas dentro de certos limites e condições. IV. Chegamos finalmente a Jesus e à essência de Seu ensino sobre o perdão, que se encontra no Sermão da montanha: Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste. (Mt. 5:38-48).
Não há limites nem condições; o perdão é absoluto. Há uma recompensa, mas a recompensa consiste em que aquele que perdoa chega a ser como Deus. Disse-o São Paulo: Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou (Ef. 4:32),
O círculo, pois, fechou-se; começa com vingança ilimitada e termina em Cristo com perdão ilimitado. Outra afirmação ao respeito deve ser inequívoca: Julgo meu dever perdoar não segundo o Antigo Testamento, mas segundo o Novo Testamento; não pela lei mas pelo
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141 evangelho; por nenhum outro que não seja Jesus Cristo. Assim que quando alguém nos cite o Antigo Testamento, teremos que lhe esclarecer com franqueza: Essa é a etapa que a humanidade tinha alcançado então; a porção de revelação divina que tinham sido capazes de captar. Mas em Jesus Cristo temos a plena revelação e só dEle tomamos nossas ordens e padrão de conduta.
A segunda grande ideia que devemos considerar é a vida depois da morte. Vejamos como se desenvolve através da Bíblia. I. Inicialmente, os hebreus careciam de uma verdadeira crença referente a uma vida para além. Criam que as almas dos mortos iam ao Sheol ou Hades. O Sheol não era o inferno, mas o lugar para onde iam os mortos. Tratava-se de um território cinza e sombrio, de onde se extraiu tudo colorido, fortaleza e significado. Estava separado tanto de Deus como do homem, e as almas levavam ali uma existência espectral. Não se tratava de extinção vital, mas não era mais que a sombra da vida. Vez após vez surge no Antigo Testamento esta desesperança. Pois, na morte, não há recordação de ti; no sepulcro, quem te dará louvor? (Sl 6:5). Que proveito obterás no meu sangue, quando baixo à cova? Louvar-te-á, porventura, o pó? Declarará ele a tua verdade? (Sl 30:9). Desvia de mim o olhar, para que eu tome alento, antes que eu passe e deixe de existir (Sl 39:13). Pois a minha alma está farta de males, e a minha vida já se abeira da morte. Sou contado com os que baixam à cova; sou como um homem sem força, atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras; são desamparados de tuas mãos. ... Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se
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levantarão para te louvar? Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos? Acaso, nas trevas se manifestam as tuas maravilhas? E a tua justiça, na terra do esquecimento? (Sl 88:3-12). Os mortos não louvam o SENHOR, nem os que descem à região do silêncio (Sl 115:17). Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão (Ec. 3:19-20). Para aquele que está entre os vivos há esperança; porque mais vale um cão vivo do que um leão morto. Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento. ... Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma (Ec. 9:4-10). A sepultura não te pode louvar, nem a morte glorificar-te; não esperam em tua fidelidade os que descem à cova (Is. 38:18). Porque há esperança para a árvore, pois, mesmo cortada, ainda se renovará, e não cessarão os seus rebentos. Se envelhecer na terra a sua raiz, e no chão morrer o seu tronco, ao cheiro das águas brotará e dará ramos como a planta nova. O homem, porém, morre e fica prostrado; expira o homem e onde está? Como as águas do lago se evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono (Jó 14:7-12).
Claramente, no Antigo Testamento encontra-se pouca esperança depois da morte; uma terra de sombras e escuridão, de silêncio, de
Introdução à Bíblia (William Barclay) 143 esquecimento: abandonada por Deus e pelos homens. J. E. McFadyen escreveu em The Message of Israel (A Mensagem de Israel): "Na longa história da religião, há poucos casos tão maravilhosos como os dos seres humanos que, durante séculos, viveram vidas de suprema nobreza, cumprindo os seus deveres e suportando suas aflições sem esperança de recompensa futura; e o fizeram assim porque em todas suas idas e vindas estavam firmemente fincados em Deus. McFadyen acrescenta: "Um erudito norte-americano disse que 'nunca foi possível para o homem, o homem pensante, sobre a única base desta vida, fazer da vida algo que não seja absurdo e carente de sentido'. O Antigo Testamento é uma refutação contundente de tal asserção". A religião hebraica primitiva não cria numa vida real para além da tumba e ao outro lado da morte.
II. Mas no Antigo Testamento isto não para ali. Contém muitas passagens que, ao menos, encaminharam-se rumo à crença na vida depois da morte. Isaías pôde dizer: Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos (Is. 26:19).
Encontramos a mesma convicção em Daniel: Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente (Dn. 12:2-3).
Tracemos o processo e as razões mediante as quais surgiu a verdadeira fé na vida depois da morte.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 144 (a) Quanto maior foi o conceito que se tinha de Deus, maior foi a certeza de que não havia parte do universo fora do ser de Deus. Quando se pensava que Deus era só o Deus da própria nação, e mesmo quando os humanos estiveram dispostos a conceder que cada sua nação visse seu próprio deus, a percepção que se tinha do poder de Deus era muito reduzida. Mas quando se chegou a crer num só Deus, Deus de todos os homens, de todas as nações e de todos os mundos possíveis, já não se pôde evitar o concebê-lo também como o Deus desse mundo que está para além da morte: Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também (Sl 139:7-8).
Uma vez que os homens começaram a crer num Deus de todo o universo, concluíram que esta vida e qualquer outra estão diante da presença de Deus, e o conceito sobre o Sheol tinha que mudar. (b) Às vezes a vaga noção do homem com relação a uma vida vindoura era como um salto na escuridão. Para começar, não se tratava de uma crença estabelecida. Era, antes, como um salva-vidas num mar de aflições, como se aprecia no caso de Jó. Já citamos as palavras de um Jó desesperado; e como se podia desesperar: Tal como a nuvem se desfaz e passa, aquele que desce à sepultura jamais tornará a subir (Jó 7:9).
Mas Jó pressentiu que tudo seria diferente se somente pudesse esperar algo. Como dissesse Galloway: Os enigmas da vida diminuem, ao menos sua frustração, quando achamos repouso ao pensar que este não é o último ato do drama humano. Por isso Moffat traduz assim a
esperança de Jó:
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Morrendo o homem, porventura tornará a viver? Todos os dias da minha luta esperaria, até que eu fosse substituído. Chamar-me-ias, e eu te responderia; terias saudades da obra de tuas mãos (Jó 14:14-15).
De modo que, no coração de Jó estava latente esse desejo: se somente houvesse algo ainda por vir! E, de repente, dá o salto na escuridão: Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros (Jó 19:25-27).
Não se trata de uma doutrina estabelecida, de uma fé raciocinada, nem é parte de um credo. É, antes, o primeiro salto na escuridão para agarrar-se de Deus nesta vida para sempre. (e) A crença na vida vindoura não chega às vezes por este tipo de salto súbito, mas sim através de uma convicção crescente de que existe uma relação, uma conexão, uma amizade, um vínculo essencialmente indissolúvel com Deus, e isto simplesmente porque Deus é Deus. Quem neste mundo tinha encontrado a Deus cria que, visto que Deus é sempre Deus, não podia perdê-lo. Isso é exatamente o que significaria dizer que o amor é imortal, e por isso o Salmista escreve: Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre (Sl 73:2326).
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O SENHOR, tenho-o sempre à minha presença; estando ele à minha direita, não serei abalado. Alegra-se, pois, o meu coração, e o meu espírito exulta; até o meu corpo repousará seguro. Pois não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção. Tu me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente (Sl 16:8-11).
Nestas duas passagens está expressa a confiança de um coração que estabeleceu um contato com Deus, o qual, está convencido, não terminará com a morte. (d) Mas talvez o que mais contribuiu para que os hebreus viessem a crer numa vida para além, foi simplesmente o fato de que, a menos que inserissem outro mundo no esquema das coisas, jamais poderiam cumprir-se as promessas de Deus à nação e ao indivíduo. Houve uma época em que o homem esperou a recompensa e o castigo de Deus no presente. O Salmista dizia: Fui moço e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão (Sl 37:25).
Mas cada vez foi sendo menos possível afirmar isso. O homem bom podia morrer, ou agonizar, às mãos de um cruel perseguidor. O homem de princípios era, e continua sendo, odiado pelo mundo. Israel era o povo escolhido; mas encontrava-se subjugado por assírios, babilônios, persas e romanos. Simplesmente, se não havia outra vida, era impossível crer na justiça ou no amor de Deus. Segundo renomada expressão, o novo mundo estava chamado a corrigir o desequilíbrio do antigo. Foi assim como entre ambos testamentos foi fortalecendo-se esta crença na vida por vir, de tal maneira que os que tinham sido fiéis a Deus pudessem ser premiados e assim se cumprissem as promessas de Deus. Os que temem ao Senhor se levantarão para a vida eterna; sua vida estará na luz e nunca cessará (Salmo de Salomão 3:12).
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Depois disso, quando se cumprir o tempo da vinda do Messias, ele retornará aos céus em glória. E então ressuscitarão todos aqueles que dormiram com sua esperança nele ( Apocalipse de Baruque 30:1).
Visto que o homem de Deus jamais tinha recebido a bênção nesta vida tormentosa, os homens foram levados a crer na vida depois da morte. III. Tudo isto, no melhor dos casos, não passava de ser simples esperança, e não foi até a vinda de Cristo quando esta esperança se tornou certeza. Disse Jesus: Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também. ... porque eu vivo, vós também vivereis (Jo. 14:2,3,19).
Segundo Paulo, para o cristão a segurança da vida vindoura provém de um fato: o Salvador dos cristãos, tendo estado morto, está vivo de novo: Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo (1Co. 15:22).
Em Jesus Cristo, o que tinha sido esperança converteu-se em realidade: a teoria fez-se prática. Temos, pois, visto o desenvolvimento bíblico da crença na vida vindoura a partir do Sheol, cinza e sombrio, até a vida para sempre com o Senhor. E confirmando, quando se trazem para colação as lúgubres passagens veterotestamentários correspondentes à época em que não existia na realidade uma crença na vida vindoura, não é necessário que nos sintamos obrigados a defender ou explicar com evasivas tais passagens. Podemos responder mais uma vez: Sim, isso é o que a humanidade tinha compreendido até então. Mas os cristãos não
Introdução à Bíblia (William Barclay) creem assim. Representa passos no caminho rumo à convicção em Cristo aqui e no para além.
148 da vida
Há uma demanda ainda maior que o estudo da Bíblia nos impõe. Para entender qualquer livro, é preciso tratar de penetrar na mente, no coração, na vida e nas circunstâncias do autor. Devemos tratar de perceber como funciona sua mente e compreender qual é sua perspectiva general do mundo. Isto se aplica à Bíblia e a qualquer outro livro. Devemos tratar de entrar na mente daqueles que a escreveram. O modo mais seguro para interpretar mal a Bíblia é nos aproximar dela com os olhos, com as ideias e os conceitos preestabelecidos do homem ocidental do século XX. Devemos tratar de pensar como se pensava na época e lugar em que se escreveu cada livro. Temos, além disso, que lembrar constantemente o objetivo que perseguiam os escritores bíblicos: mostrar os caminhos de Deus com o homem. Sua meta única era mostrar a vida em termos da soberania de Deus. Seu propósito era exclusivamente religioso. Não pretendiam escrever história, pois não sabiam mais da história como ciência que qualquer de seus contemporâneos. Não escreveram tratados cientistas, pois a ciência que conheciam era tão primitiva como sua época. O que se propunham era mostrar a Deus em ação. Nada há de estranho em tudo isto. Cada qual é perito em algo. Minha mãe nada soube de hebraico nem de grego, nem de teologia, mas jamais conheci uma mulher mais santa. Eu não teria ido a ela para que me traduzisse alguma palavra ou me expusesse alguma doutrina, e sim para renovar minha aprendizagem de como viver na companhia constante de Deus. Assim que, para começar, não vou à Bíblia em busca de história ou ciência, mas em busca de Deus. E O encontro! Vamos, pois, considerar algo do que devemos lembrar, se tivermos que penetrar na mente dos escritores sagrados.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 149 I. Tinham uma diferente concepção do mundo. Para eles a Terra era o centro fixo do universo e o sol saía cada manhã em sua carreira através dos céus (Sl 19:4, 5). Para eles a Terra era como um prato plano sobre as águas, coberto pelo teto sólido do firmamento, através do qual viajam os grandes luzeiros, o sol e a lua, e o qual se abria para deixar cair a chuva (Gn. 1:1-19). O importante, entretanto, não é o que eles criam a respeito da Terra, mas sim o que criam a respeito do homem e de Deus, estando certos de que, fosse como fosse a Terra, depois dela está o poder criador de Deus. II. Tinham um conceito muito diferente da doença. Atribuíam a doença aos demônios ou aos pecados do doente. A doença mental não era a única coisa que atribuíam aos demônios, mas pensavam que qualquer parte do corpo podia ser ocupada e ficar afetada por algum demônio. Criam que atrás de toda doença encontrava-se algum pecado. Nós deixamos de atribuir a doença aos demônios; tampouco a atribuímos ao pecado do próprio doente. Mas, em certo modo, estes pensadores da antiguidade eram peculiarmente modernos. Para dizê-lo em termos atuais, eles criam que a doença era psicossomática. Psyché é a palavra grega para alma e soma para corpo. Dizer que a doença é psicossomática significa que sua causa vai para além do físico; que há também uma causa espiritual. Pode ser que só o efeito, e não a causa, seja físico. O que significa que não basta ver o homem como corpo, mas também possui um espírito, e que o corpo jamais estará são até que o espírito recupere a saúde. Isto é sempre algo mais que uma questão física, e assim o compreenderam, a seu modo, os escritores bíblicos. III. Tinham um modo diferente de pensar, o que é o ponto mais importante e difícil de todos. Em tempos bíblicos, poucos ou talvez nenhum dos hebreus podia discorrer ou argumentar em termos abstratos. Pensavam pictograficamente. Agora, essas imagens mentais eram
Introdução à Bíblia (William Barclay) 150 imagens de sua própria época, eram parte de seu panorama de todos os dias, pela simples razão de que essas eram as únicas imagens que a pessoa de então podia entender. De modo que, nós confrontamos inevitavelmente um fragmento de fato intemporal, mas captada dentro de uma imagem local e temporal. E nossa tarefa, vez após vez, é a de penetrar para além da casca da imagem e até a medula da verdade. Este processo tem um nome que, lamentável e injustamente, converteu-se numa má palavra: desmitologização. O problema com a palavra mito é que significa uma coisa em português e outra muito distinta em grego. Em português um mito é algo irreal, e equivale a dizer que é falso. Mas em grego um mito é um relato que tem como propósito esclarecer a qualquer pessoa alguma verdade difícil ou impossível de expressar na linguagem comum. Mito é uma verdade expressa em imagens. Temos, por exemplo, o famoso mito no sétimo livro da República de Platão. Descreve uma caverna onde há uns homens acorrentados e que só podem ver para dentro. A única coisa que podem ver é a parede diante deles. Atrás deles há um caminho ascendente, depois do qual há a luminosidade de um grande fogo. Sempre há transeuntes neste caminho entre o fogo de fora e as costas dos acorrentados na cova. As sombras das pessoas e das coisas se refletem continuamente na parede que eles têm à frente. Inevitavelmente os prisioneiros chegariam a pensar que as sombras são a realidade, pois estariam totalmente impossibilitados a contemplar os seres e objetos como realmente são. E embora fossem libertados, seria extremamente difícil convencê-los de que as sombras são irreais e que todo o real o é na verdade. Este é um mito desenhado para demonstrar como os homens que se apegam às sombras da vida chegam a ser incapazes de ver as realidades. Este é o conceito grego do mito. Mito é o relato encaminhado a demonstrar, ilustrar e fazer
Introdução à Bíblia (William Barclay) 151 compreender uma verdade que, de outra maneira e expressa em linguagem abstrata, não causaria impacto alguém em ninguém. Cada vez que estudemos a Bíblia nossa tarefa será captar a verdade eterna depois da imagem temporal. Os eruditos do século XX estavam longe de ser os primeiros em reconhecer esta necessidade. Orígenes, o grande mestre, sabia isto perfeitamente e o expressou de maneira clara e enfática nos meados do terceiro século ( De Principiis 1:16): Que homem razoável suporia que o primeiro, segundo e terceiro dias, e a tarde e a manhã, existiram sem o sol, a lua e as estrelas? Quem é tão néscio para crer que Deus, como um camponês, plantou no Éden um jardim onde pôs uma árvore da vida que podia ver-se e tocar-se de maneira que qualquer que provasse de seu fruto com seus lábios mortais obteria a vida? Ou, mais ainda, que pessoa se convertia em participante do bem e o mal por comer do arrancado de uma árvore? E se é dito que Deus passeava durante a tarde pelo jardim e que Adão se ocultou sob uma árvore, não suponho que haja quem duvida que estas coisas figuradamente assinalam alguns mistérios, e que a história seja aparente, mas não literalmente, certa. De modo algum. Os próprios evangelhos estão cheios com este tipo de narrações. Tome-se, por exemplo, o relato do diabo que leva a Jesus ao alto de uma montanha, para lhe mostrar dali os reinos do mundo e sua glória: Quem que raciocine não condenaria ao que ensinam que dali contemplou Jesus os reinos dos persas, citas, índios e partos, e o modo como se glorificava a seus governantes, e que o fez com a visão física, que requer de uma altura maior para sequer ver os terrenos imediatos?
Orígenes começa assinalando que na história da criação diz-se três vezes que houve tarde e amanhã antes de que fossem criados o sol e a lua (Gn. 1:5,8,13,14). O que Orígenes está nos dizendo é que aqui temos uma verdade, mas expressa em imagens. A imagem é a casca; a verdade é o miolo. Repassemos brevemente os três relatos a que se refere Orígenes.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 152 (a) Temos o relato da criação ou, melhor dizendo, os dois distintos relatos da criação. Se for perguntado a qualquer menino esperto o que dizem, em poucas palavras, Gênesis 1 e 2, responderá imediatamente : "Dizem que Deus criou o mundo". Essa é a resposta. Não se pergunta o método de que se valeu para fazê-lo. O miolo é o fato de que o poder criador de Deus está após o universo, e que é responsável por sua existência, independentemente de como se aplicou tal poder criador. (b) Temos o relato da queda do homem em Gênesis 3. De fato, este é o relato da queda de todo ser humano. Vale a penha fazer notar que o nome Adão não é de modo nenhum um nome próprio, mas sim a palavra hebraica que corresponde a homem. Esta é a história de todo homem. Quem a escreveu possivelmente nem sequer conhecia a palavra psicologia, mas jamais se escreveu uma história mais psicologicamente certa que esta. Vejamo-la passo a passo: I. Deus dá uma ordem. II. Nisso intervém a tentação de transgredi-la. O pecado sempre implica que sabemos mais que Deus: consiste em pôr nosso desejo acima da vontade de Deus. III. O mal é atrativo (v. 6). Parece bom e saboroso; arrancá-lo seria obter algo aparentemente proveitoso. O pecado é sempre atrativo: eu seria feliz se tão somente pudesse obter isto. A tentação careceria de poder se o proibido fosse feio e repulsivo. O poder da tentação estriba em que o proibido vê-se atrativo, desejável e vantajoso. IV. Cai em pecado e, então, o primeiro intento é esconder-se (v. 8). Logo que alguém comete pecado, deseja ocultá-lo do próximo, de Deus e, se for possível, até de si mesmo. E não há maior estupidez que pensar que algo possa esconder-se de Deus.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 153 V. Quando se confronta ao homem com seu pecado, por instinto trata de culpar a mais alguém. Adão disse: "Não me culpes, culpa Eva"; e esta não fez senão repetir: "Não me culpes, culpa a serpente". O pecador culpa a todos, menos a si mesmo. Gênesis 3 é um relato que nunca teve o propósito de contar algo que sucedeu em certo momento. É a história do que sucede a Adão, quer dizer ao homem, a você e a mim. (c) Consideremos finalmente a história da tentação de Cristo (Mt. 4:1-11; Lc. 4:1-13). Orígenes tinha razão e é algo que deveria nos fazer pensar: não há montanha alguma da qual se possam contemplar todos os reinos da Terra. Jesus tinha saído ao deserto para decidir como realizaria a tarefa que Deus Lhe tinha encomendado. Apelaria à força, aos meios materiais, ao sensacional, aos acordos, ou à cruz? Esta história não relata um evento externo e visível, mas algo que ocorreria na mente de Jesus. Estava livrando uma batalha com tudo aquilo que queria desviá-lo do que Deus queria que fizesse. Se o leitor o tivesse visto nesse momento, só teria visto um homem sozinho, embora com Deus. Tal como ocorre conosco, a tentação chegou a Jesus, não na carne e de maneira visível, mas no ataque à mente e ao coração. Quando lermos a Bíblia, lembremos sempre que foi escrita por homens acostumados a pensar em imagens. Não há para o que perder tempo discutindo se isto sucedeu física e literalmente assim. Espiritualmente é uma verdade perene; dentro da casca do relato encontramos o miolo da verdade, e por meio dela vivemos. Restam três coisas por acrescentar com relação à leitura e o estudo da Bíblia.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 154 I. Deveríamos estudá-la detalhadamente, mas para aproveitá-la melhor, e, se for possível, também lê-la em porções extensas. Deveríamos ler, por exemplo, todo o Evangelho de São Marcos de uma sentada, e ver o drama em quatro atos desenvolver-se perante nós: preparação, conflito, tragédia e triunfo. Pode ser que às vezes gastemos muito tempo nos detalhes e muito pouco na visão panorâmica e dramática do conjunto. II. Não importa quanto leiamos a Bíblia ou quão devotamente a estudemos, sempre haverá passagens difíceis e que não possamos entender. Diz-se que um homem aproximou-se certa vez de Spurgeon queixando-se de que a Bíblia tinha passagens que não entendia, e que portanto tinha deixado de lê-la. Spurgeon lhe respondeu: "Quando estou desfrutando de um bom peixe e me cabe chegar aos espinhos, não desprezo o peixe; ponho os espinhos de lado, ali as deixo, e sigo desfrutando do peixe". Assim, quando chegarmos a uma porção bíblica que mesmo a estudando não podemos entender, podemos deixá-la de lado e seguir adiante. Chegará o dia em que possamos entendê-la, mas desfrutemos no momento da riqueza ao nosso alcance e com o que podemos continuar. III. Fica muito que dizer sobre a leitura regular e sistemática da Bíblia. Mas direi uma última coisa. Howard Spring, em sua autobiografia, And Another Thing (E algo mais) fala-nos do hábito que adquiriu. Foi em 1940, durante a guerra, quando tudo ia de mal a pior. Descobriu que a ameaça que pesava sobre o país o impedia de concentrar-se quando se sentava ao escritório. Pouco antes alguém lhe tinha obsequiado um exemplar das Meditações de Marco Aurélio; começou a lê-lo e, de algum modo, a galharda e grave filosofia estoica produziu seu efeito. "Daí em diante — escreveu ele — cada manhã formei o hábito de não me sentar ao escritório com a mente inflamada pela crescente incerteza dos tempos, mas sim ficar de pé e ereto
Introdução à Bíblia (William Barclay) 155 enquanto durante meia hora lia a Marco Aurélio. Veio a ser um costume saudável e vitalizador... Desta maneira li duas vezes as Meditações, e para então tinha descoberto que não devia começar o dia me submergindo nos problemas pendentes, fossem quais fossem. Uns quantos momentos de quietude, na companhia de uma mente suprema e tranquila, chegaram a produzir dividendos que invejaria o melhor promotor de negócios. É tão fácil querer começar o dia com uma leitura apressada do periódico ou da correspondência, para logo correr ao trabalho imediato, coisa que agora me parece tola e desnecessária. Equivale a querer tocar o violino sem antes afiná-lo, para logo padecer chiados durante todo o concerto". Mas isso não foi tudo, mas Howard Spring foi mais além: "Depois de ler duas vezes as Meditações — acrescenta — comecei cada dia lendo a Bíblia, e foi durante a leitura deste livro, esquecido durante um quarto de século, quando minha mente captou a suprema importância de um Deus de amor, assim como o amor dos irmãos". Howard Spring encontrou que a leitura diária da Bíblia trouxe serenidade e fortaleza à sua vida, e que através da leitura Deus tomou posses de sua mente. Nós também deveríamos lê-la regularmente. No caso de Howard Spring, sendo autor, ele podia, trabalhar em casa sem ser escravo do relógio. Talvez para quem devemos tomar o trem para chegar ao escritório e temos uma família com a qual conviver, a leitura matinal pode ser impossível ou ao menos extremamente difícil. Mas bem poderia transferir-se esta leitura para a última hora da noite, e assim entregar-se ao descanso meditando em Deus e em Seus caminhos com os seres humanos. Nem sempre é o melhor plano ler a Bíblia precisamente do princípio ao fim. Se adotarmos a leitura regular da Bíblia, seria muito melhor valer-nos de algum esquema de leituras diárias com comentários, como aquele que oferece o Companheirismo de Leitura Bíblica ou a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 156 Associação Internacional de Leitura Bíblica. Assim nossa leitura se veria guiada com explicações das dificuldades da passagem e seus significados, além de que nos faria sentir dentro de um grande companheirismo de leitores ao redor do mundo. A melhor maneira de aproveitar a Bíblia é lê-la com sistema e com ajuda, pois assim receberemos fortaleza para a jornada, sabedoria para a mente e o amor de Deus para nosso coração. Qual versão nos conviria mais? Muitos há que estão preocupados com a grande quantidade de traduções existentes; mas nunca teremos suficientes. Não existe a tradução perfeita capaz de trasladar cabalmente as palavras de uma linguagem a outra. Cada tradução tem algo que oferecer. Por exemplo, lá por 1560, a Bíblia de Genebra era a mais popular (em inglês), mas enquanto isso estava planejando-se a Bíblia dos Bispos como tradução oficial. John Bodley, pai do fundador da famosa biblioteca de Oxford, tinha os direitos de impressão da Bíblia de Genebra, e se perguntava se acaso poderia continuar imprimindo-a quando aparecesse a nova versão. Mas Matthew Parker, Arcebispo do Canterbury, não tinha dúvida alguma. Embora se estava planejando o volume oficial, escreveu que "entretanto, em nada estorvaria, mas sim resultaria muito proveitoso o ter diversidade de traduções e leituras". Ou seja, entre mais versões melhor, para que cada um possa achar o que lhe fale diretamente, e que a luta pela perfeição possa seguir adiante. As traduções podem variar grandemente. Há ou houve uma biblioteca para crianças intitulada Kelly's Keys to the Classics (As chaves de Kelly aos clássicos), cuja tradução é absolutamente literal mas não tem nada de inglês, como poderia apreciar-se em Oedipus Coloneus de Sófocles, em que Édipo é aquele que fala: O dearest son of Aegeus, exemption from old age and death comes to gods alone. But all-powerful Time brings everything else to confusión.
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The strength of the earth decays, the strength of the body decays, faith dies and faithlessness arises and the same spirit no longer exists between friends or between city and city. With some at once and with others later on, what is a source of pleasure becomes bitter, and then again is pleasant .
(Ó o mais amado filho de Egeu, exceto da velhice e a morte vem aos deuses só. Mas o todo-poderoso Tempo traz tudo o mais a confusão. A fortaleza da terra decai, a fortaleza do corpo decai, a fé morre e a infidelidade surge e o próprio espírito deixa de existir entre amigos ou entre cidade e cidade. Com alguns imediatamente e com outros depois, o que é uma fonte de prazer torna-se amargo e logo outra vez é prazenteiro).
Não há dúvida de que o estudante obterá com isso uma boa qualificação, mas a mágica beleza do Sófocles desapareceu. Aqui está a mesma passagem, na tradução do Gilbert Murray: Fair Aegeus' son, only to gods on high Not to grow old is given, nor yet to die, All else is turmoiled by our master, Time. Decay is in earth's bloom and manhood's prime. Faith dies and unfaith blossoms like a flower, And who of men shall find from hour to hour, Or in loud cities or the mores thereof, Or silent chambers of his own heart's love, One wind blows true forever? Soon or late Hate shall be love and love veer back to hate.
(Ó, belo filho de Egeu, dos excelsos deuses só é o não envelhecer, e o não morrer. Em tudo o mais domina o tempo, nosso dono. Tudo morre: as flores, o vigor do homem; morre a fé, mas a infidelidade floresce. Quem pode achar, de um a outro instante, no tumulto de praças e cidades, ou no claustro silencioso do próprio coração, que o vento seja constante? Mais cedo ou mais tarde se torna em amor o ódio, converte-se em ódio o amor).
Aqui ressoa de novo a beleza do grego, o que nos permite apreciar quão distintas podem resultar as traduções.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 158 Mas supondo que achássemos uma boa tradução, por que não teríamos que aferramos a ela? Para o que tantas? Pois existem muitas razões. Nada muda de modo tão rápido e imperceptível como a linguagem, e é preciso lembrar que o Novo Testamento foi escrito na linguagem coloquial do povo comum. Eu não falo como meu filho, nem ele como eu. E, repito, continuamente surgem novas descobertas. Por exemplo, faz meio século existiam mais de 600 palavras neotestamentárias que se catalogavam como "grego bíblico". Na atualidade restam menos de cinquenta. Houve uma contínua descoberta de cartas, títulos de propriedade e outros documentos dessa época. E as palavras que antes eram consideradas raras, resultaram ser de uso popular, pelo que seus significados se estabeleceram com maior precisão. Também se têm descoberto outros manuscritos do Novo Testamento. Atualmente contamos, quando muito, com setenta fragmentos de manuscritos neotestamentários que datam do ano 150 de nossa era. Possivelmente são dois séculos mais antigos que qualquer manuscrito que os eruditos bíblicos tinham a seu alcance faz 75 anos. Nem a linguagem nem a investigação permanecem estáticos. E se a Bíblia é, como cremos, a palavra de Deus, então só poderá ser aceitável a tradução mais exata. A tradução é uma tarefa interminável. Que empregue o estudante da Bíblia todas as traduções que possa encontrar, e que dê graças a Deus por elas.
Introdução à Bíblia (William Barclay) CAPÍTULO VI
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O LIVRO INSPIRADO O que queremos dizer exatamente quando afirmamos que a Bíblia é inspirada? Para dizer de outra maneira: O que temos em mente quando dizemos que a Bíblia é a palavra de Deus? Embora esta não seja uma pergunta fácil de responder, o cristão precisa enfrentá-la, pois de sua resposta dependerá o lugar que ele outorgue à Bíblia em sua vida e em sua fé. No princípio deste livro, afirmamos que não é difícil demonstrar que a Bíblia é um livro único; que tem um efeito singular na vida dos seres humanos. Só acrescentaremos dois exemplos a respeito. Quando Sir Walter Scott estava prestes a morrer, pediu a seu genro Lockhart que viesse ler algo para ele. Por um momento Lockhart pensou em todos os livros que Sir Walter tinha escrito e na grande biblioteca ali em Abbotsford, repleta de cima a abaixo com milhares de volumes; assim que preferiu lhe perguntar: "Do que livro lerei?". O escritor replicou: "Acaso precisa perguntar? Só há um livro". No crepúsculo da vida e perante a alvorada da eternidade, só há um livro possível. Uma das famosas ilustrações em torno da Bíblia é a de Tockichi Ishii. Este foi um renomado criminoso japonês que contava com uma longa cadeia de crimes bestiais. Em seus atos, Ishii mostrava uma brutalidade diabólica e a crueldade do tigre. Não tinha tido escrúpulos para assassinar igualmente a homens, mulheres e crianças. Por fim, foi capturado, condenado à morte, e estava na prisão esperando sua execução. Em essa situação recebeu a visita de duas damas canadenses. Tudo em vão, pois Ishii não queria falar nem responder, e se limitou às contemplar com um olhar de besta feroz. Ao sair, entretanto, as damas lhe deixaram uma Bíblia.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 160 Inexplicavelmente, o criminoso começou a lê-la, e logo já não pôde suspender a leitura. Quando, sem ter interrompido a leitura, chegou à história da Cruz e às palavras de Cristo, "Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem", o coração dele se quebrantou. "Detive-me — declarou depois Ishii — e me senti ferido como se tivesse o coração atravessado por um prego de doze centímetros. Direi que foi o amor de Cristo, ou sua compaixão? Não sei como chamá-lo. A única coisa que sei é que eu cri, e que mudou a dureza de meu coração". Quando chegou a hora de partir ao patíbulo, não era já seu aspecto sério, endurecido, brutal e quase bestial, como antes foi, mas sim em seu rosto resplandecia a serenidade e um sorriso gentil pois, o assassino Tockichi Ishii tinha nascido de novo ao ler a palavra de Deus. Casos assim dissipam toda dúvida quanto à singularidade deste livro. Descrevemos tal singularidade dizendo que é um livro inspirado; que é a palavra de Deus. Às vezes tem-se respondido, dizendo que este livro foi escrito por Deus; que cada palavra, sílaba e letra, que cada página, parágrafo e oração, foram todos traçados pela própria mão de Deus, ou que é a própria palavra de Deus. Tal ponto de vista representa a chamada inspiração verbal. É, na realidade, uma antiga teoria de inspiração, segundo a qual o escritor humano não teve maior intervenção que a que tem a pena do autor ou a máquina de escrever que transcreve este capítulo. No Novo Testamento chamado do Whittingham, precursor da chamada Bíblia de Genebra, justamente se omite da Carta aos Hebreus o nome de Paulo, e se acrescenta uma elucidação: "já que o Espírito de Deus é o autor disto, em nada diminui sua autoridade que não saibamos com que pena o escreveu". Desde esta perspectiva o autor da Epístola, quem quer que tenha sido, não foi mais que uma pena na mão de Deus.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 161 Atenágoras dizia em seus escritos que "Deus move as bocas dos profetas como se fossem instrumentos musicais". Descrevia o Espírito usando os escritores como um flautista que toca a flauta. Justino Mártir o via como o Espírito Santo que desce do céu e se vale de homens como um plectro que tange as cordas do harpa ou a lira. Teófilo de Antioquia fala dos profetas "aqueles que vieram a ser instrumentos de Deus". Clemente de Alexandria vê os escritores sacros como "órgãos da voz divina". Macário explica que assim como o alento fala com sopro através de uma flauta "assim também falou o Espírito através de homens santos e espirituais". Segundo tudo isto, aqueles que escreveram as Escrituras não tiveram que ver com os escritos além do que tem que ver uma pena em mãos de um autor ou um instrumento musical com a música do compositor. Significa que a Bíblia é a palavra de Deus literal e até fisicamente, por assim dizer. Resulta impossível manter esta posição, por várias razões. I. Para começar, existe um fato bem simples. Todos os manuscritos da antiguidade foram escritos à mão e, ao copiá-los, infiltraram-se mudanças e erros. Calcula-se que há 150.000 leituras variantes nos manuscritos gregos do Novo Testamento. É verdade que às vezes trata-se somente de diferenças ortográficas, da ordem das palavras ou da substituição de um sinônimo por outro. É verdade, além disso, que destas 150.000 variantes, menos de 400 afetam o sentido; menos de 50 têm alguma importância, e não existe um só caso duvidoso em relação a algum artigo de fé ou a preceito moral algum. Tudo isso é certo, mas o leitor tem ainda que decidir, por sua conta, qual dos soletrações ou das variantes constituem a palavra de Deus no sentido literal do termo. Poderia dizer-se que a palavra de Deus foi o primeiro manuscrito, tal como saiu da mão do escritor original. Se isto é assim, então o manuscrito original perdeu-se e desapareceu para sempre.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 162 Ponhamos por exemplo a Bíblia em inglês. Para o fim do século XIX, um comitê da Sociedade Bíblica Americana revisou seis edições da Versão Autorizada e encontraram quase 24.000 diferenças entre elas. Certo, as diferenças não eram de maior importância, mas se um livro é a palavra literal de Deus, então as palavras devem permanecer fixas, assim como seu significado, o que não sucedeu com a Bíblia. Teria sido realmente estranho que Deus tivesse ditado o original e logo não tivesse tido o mesmo cuidado para assegurar sua transmissão infalível. II. Adiciona-se o fato de que, quaisquer pessoas que tenham sido os escritores bíblicos, foram muito mais que simples penas nas mãos de Deus, ou instrumentos através dos quais soprou o Espírito Santo. Se tivesse sido assim, teríamos uma Bíblia escrita num estilo uniforme, mas é o caso de que cada escritor do Novo Testamento escreve com estilo próprio. Se a um conhecedor do grego lhe mostra qualquer página do Novo Testamento, e lhe pede que identifique o autor, embora não conheça a passagem assinalada por acaso, poderá facilmente dizer se foi escrito por Marcos ou Lucas, por João ou Pedro, pelo escritor da Epístola aos Hebreus ou por João do Apocalipse. De fato, este último escreve fazendo com frequência caso omisso das regras gramaticais e sintáticas, de modo que seu estilo é inequívoco. Seu grego é tão deficiente que qualquer estudante de hoje sairia reprovado se escrevesse assim. Em nenhum caso foi suprimida a personalidade do escritor, tal como o expressou G. E. Ladd tão acertadamente quando disse que a Bíblia é a palavra de Deus, mas definitivamente em palavras humanas. Em nenhum momento deixou de lado a personalidade dos escritores bíblicos. Uma pena ou um instrumento musical são coisas, mas sem lugar a dúvida os escritores bíblicos jamais deixaram de ter sua própria personalidade. A autonomia dos escritores sagrados se adverte na maneira de relatar o mesmo evento. No caso do endemoninhado gadareno, Mateus (8:28-34) conta-o em sete versículos; Marcos (5:1-20) necessita vinte
Introdução à Bíblia (William Barclay) 163 versículos, e Lucas (8:26-39) o diz em apenas quatorze. Não se encontra os evangelistas escrevendo pelo ditado divino ou de qualquer outro tipo. No que escrevem expressam sua personalidade e fazem as coisas cada quem a seu modo. III. Ainda mais, existem as variantes e diferenças concretas entre evangelho e evangelho. Por exemplo, o incidente da purificação do Templo vem no final dos três primeiros evangelhos (Mt. 21:12-13; Mc. 11:15-17; Lc. 9:45-46), porém no quarto evangelho aparece no princípio do ministério de Cristo (Jo. 2:13-17). Também há o caso das diferentes maneiras em que se registra a mesma expressão. Com frequência, é legítimo explicar as variantes das mesmas expressões de Jesus, aduzindo que Ele as repetiu de diferentes maneiras em diferentes ocasiões. Mas existem certas ocasiões que são exatamente as mesmas, e entretanto as palavras que se registram de Cristo são muito diferentes. Temos, por exemplo, o que Jesus diz nos três primeiros evangelhos depois de Cesareia de Filipe e antes da Transfiguração: Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino (Mt. 16:28). Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus (Mc. 9:1). Verdadeiramente, vos digo: alguns há dos que aqui se encontram que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam o reino de Deus (Lc. 9:27).
É inquestionável que aqui temos três versões da mesma expressão e, se os evangelhos tivessem sido escritos por ditado divino, certamente não haveria três versões diferentes do mesmo.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 164 E vamos ao que Jesus diz sobre Si mesmo no juízo, e que fez inescapável Sua condenação pelos judeus: Jesus, porém, guardou silêncio. E o sumo sacerdote lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que, desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu (Mt. 26:63-64). Ele, porém, guardou silêncio e nada respondeu. Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu (Mc. 14:6162). Se tu és o Cristo, dize-nos. Então, Jesus lhes respondeu: Se vo-lo disser, não o acreditareis; também, se vos perguntar, de nenhum modo me respondereis. Desde agora, estará sentado o Filho do Homem à direita do Todo-Poderoso Deus. Então, disseram todos: Logo, tu és o Filho de Deus? E ele lhes respondeu: Vós dizeis que eu sou (Lc. 22:67-70).
Aqui estão três versões diferentes da mesma expressão. Uma das mais surpreendentes variações dos relatos é que os evangelhos diferem quanto ao tempo em que Jesus foi crucificado. Não há duvida nos três primeiros evangelhos de que a Última Ceia foi a celebração da Páscoa (Mt. 26:17-20, Mc. 14:12-17, Lc. 22:7-14); e que, portanto, Jesus foi crucificado depois da Páscoa. No Evangelho de João não há dúvida que se diz que Jesus foi crucificado antes da Páscoa: primeiro nota-se que os judeus se negam a entrar no salão de juízos de Pilatos, por temor a ser declarados imundos e ficar incapacitados para participar da Páscoa; segundo, repetidamente se chama o dia da crucificação como a véspera da Páscoa (Jo. 18:28; 19:31, 42). Além disso, segundo Marcos, Cristo foi crucificado na hora de terceira —9
Introdução à Bíblia (William Barclay) 165 horas — enquanto em João não se toma a decisão de crucificá-lo até a sexta hora — meio-dia —. É altamente improvável que num ditado divino tivesse havido uma discrepância de tal magnitude. IV. Numa muito raro ocasião pode haver mais erro que variação. Marcos, ao relatar como os discípulos arrancaram espigas das saras, violando assim a lei sabática, mostra a Jesus lembrando aos fariseus o que fez Davi nos dias do sumo sacerdote Abiatar (Mc. 2:26). Tanto Mateus como Lucas omitem este nome (Mt. 12:1-8; Lc. 6:1-5). O sacerdote em questão não foi Abiatar, e sim Aimeleque (1Sm. 21:1-6) filho do Abiatar (2Sm. 8:17). Um equívoco assim é perfeitamente explicável numa mente humana, e não tem importância alguma, mas é algo inconcebível num ditado divino. V. Há ocasiões em que o estudante da Bíblia precisa escolher qual de duas porções da Escritura deve seguir. Isto é especialmente aplicável ao ensino de São Paulo sobre o casamento. Em I Cor. 7 Paulo se refere ao casamento e, em geral, mostra-se contrário a ele. Se eles se casarem, não quer que se separem, mas cada qual cumpra com os deveres e obrigações do casamento. Mas quando Paulo escreveu este capítulo, não considerava que o casamento fosse a melhor opção. É melhor para o homem não tocar em mulher, mas se aprova o casamento como defesa contra a tentação sensual (v. 1,2). É melhor que a pessoa fique sem casar. Mas se não puderem controlar-se, então que se casem, porque é melhor casar-se que arder em paixões (v. 8,9). A atitude principal é que o casamento se justifica para salvar o homem de algo pior! A que se deve esta atitude? A que naquele então, Paulo espera que Jesus Cristo retorne de um momento a outro: poderia vir hoje, amanhã ou numa semana. Portanto, não quer que o homem se distraia no mínimo que seja, mas que se concentre no vindouro fim do mundo.
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O que realmente eu quero é que estejais livres de preocupações. Quem não é casado cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor; mas o que se casou cuida das coisas do mundo, de como agradar à esposa, e assim está dividido. Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Senhor, para ser santa, assim no corpo como no espírito; a que se casou, porém, se preocupa com as coisas do mundo, de como agradar ao marido. Digo isto em favor dos vossos próprios interesses; não que eu pretenda enredar-vos, mas somente para o que é decoroso e vos facilite o consagrar-vos, desimpedidamente, ao Senhor (1Co. 7:32-35).
Paulo escreveu isto ao redor do ano 55 de nossa era, quando ele e toda a Igreja estavam obcecados com a vinda de Cristo. Em vista disso o casamento era uma segunda boa opção, uma das muitas distrações para o breve período de espera. Mas passaram uns oito anos e Paulo escreveu aos Efésios. Mas agora entendia que ele e os crentes viviam numa situação muita mais permanente e, num grandioso capítulo, compara o casamento com a relação entre Cristo e Sua Igreja. Um homem deixa pai e mãe como sua esposa. É "um grande mistério". Quer dizer, é o símbolo de algo esplêndido. O casamento não é outra coisa que o símbolo da relação entre Cristo e Sua Igreja (Ef. 5:21-33). Agora, se me pergunta qual é o ensino de Paulo sobre o casamento, onde buscaria eu a resposta, em Coríntios ou em Efésios? Certamente que em Efésios 5, pois o mestre tem o direito a ser julgado por seus melhores ensinos. Em 1 Coríntios, Paulo realmente diz: "Aos mais digo eu, não o Senhor..." (1Co 7:12) e logo explica: "Com respeito às virgens, não tenho mandamento do Senhor; porém dou minha opinião, como tendo recebido do Senhor a misericórdia de ser fiel" (1Co 7:25). Aqui ele não está escrevendo um ditado divino, mas expressando sua opinião. Com os anos tal opinião mudou, e a doutrina cristã sobre o casamento não se encontra em I Coríntios 7 mas em Efésios 5.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 167 Vimos o suficiente para compreender que o conceito de um livro infalível, ditado divinamente como produto da inspiração, cria mais problemas que os que soluciona. Devemos, pois, traçar outra rota e voltar a começar. I. Se a Bíblia é a palavra de Deus, isso quer dizer que, de algum modo, na Bíblia estabelece-se um contato especial entre Deus e o homem. De algum modo, Deus e o homem encontram-se na Bíblia. O homem que é caracteristicamente aquele que busca, junta-se neste livro com Deus, que é caracteristicamente Aquele que Se revela. Num sentido único, a Bíblia é o ponto de reunião entre o Espírito de Deus e o espírito humano. Esta é a primeira base essencial de qualquer doutrina de revelação e inspiração. II. Isto significa que é preciso encontrar o significado da inspiração na situação humana ou, melhor dizendo, na situação divino-humana. O significado da inspiração deve ser achado na relação que se estabelece entre o Espírito de Deus e a mente do homem. III. Portanto perguntamos, qual é a situação humana? Na situação humana encontram-se dois elementos. O primeiro é que o homem é criação de Deus; e não só isso, mas também, além disso, está feito à imagem de Deus (Gn. 1:27). Isso deveria significar, como registrou Suzanne de Dietrich, que "é a vocação do homem viver numa relação de confiança com Deus". Para dizer de outro modo, Deus não é somente Criador; também é Pai. Mas agora vem o segundo elemento nesta situação humana. Para isso é essencial que o homem nasça livre. A relação entre homem e Deus deve ser o resultado de um convite livre e uma resposta livre. Para citar de novo a Suzanne de Dietrich, "Em toda a criação, o homem é o único que pode dizer 'sim' ou 'não' a Deus". De fato, o homem disse "não"; utilizou sua independência para seguir seu próprio rumo. Esta é a essência da história da queda. O ser humano
Introdução à Bíblia (William Barclay) 168 não alcança compreender que a única verdadeira liberdade e sua única realização verdadeira podem vir unicamente de sua obediência a Deus. Desta maneira o homem coloca-se em situação tal que encontra-se viajando em sentido oposto, buscando a felicidade onde não pode encontrá-la; buscando a liberdade onde não há liberdade, e sua realização onde não existe realização alguma. Isto é o pecado. A situação humana é aquela em que o homem se afasta de Deus para confiar em si mesmo. IV. Visto que Deus é amor ele tem que achar algum meio para normalizar a situação. E não pode fazê-lo intervindo diretamente e de fora. Isto é assim porque a relação entre Deus e o homem deve permanecer livre e espontânea ou não seria uma relação de amor. É portanto, necessário, que Deus apele a meios humanos para resolver a situação. Assim fê-lo, e os meios que empregou para atrair a si aos humanos foram os profetas. É preciso ter presentes duas coisas. O profeta não era tanto alguém que predizia como alguém que proclamava a vontade e o propósito de Deus. A grande função da profecia não é a de predizer, antes, a de proclamar a vontade de Deus e anunciar as consequências que causará o não obedecê-la. Além disso, para os judeus, a palavra profecia tinha um significado muito mais amplo que para nós. Tal como o vimos o estudar o desenvolvimento do Antigo Testamento, os livros históricos eram conhecidos como profecias anteriores; assim que a história é profética. Moisés foi considerado um profeta; portanto, a lei é profética. Toda a Escritura é profética, visto que o profeta é quem traz para os seus semelhantes a voz de Deus. É dizer que, caracteristicamente, o profeta é a pessoa que estabelece a relação entre Deus e o homem; profeta é quem fala a palavra de Deus, é a pessoa inspirada. V. Se isto é assim e se podemos entender precisamente o que é o profeta, teremos avançado muito na compreensão do que significa a
Introdução à Bíblia (William Barclay) 169 inspiração e a palavra de Deus. Suzanne de Dietrich aponta duas características a respeito do profeta. (a) O profeta é a consciência da nação. É "a consciência viva do povo num momento em que todas as demais vozes permanecem caladas". (b) O profeta encontra-se sob o absoluto controle de Deus. Rugiu o leão, quem não temerá? Falou o SENHOR Deus, quem não profetizará? (Am .3:8).
O profeta é alguém que fala porque deve falar. (c) Profeta é quem de maneira especial esteve no conselho secreto de Deus. Certamente, o SENHOR Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas (Am 3:7).
O profeta não expressa uma opinião nem faz uma sugestão. O profeta não se caracteriza pela expressão "eu digo" mas por dizer: "Assim diz o Senhor". E como afirma Wheeler Robinson, esta é a diferença entre o pensamento grego e o hebraico. A verdade para o grego é algo que a mente humana descobre em sua busca; para o hebraico a verdade é algo revelado pelo Espírito de Deus. A típica declaração hebraica é: "Ele te declarou o que é bom" (Mq. 6:8). Não "Você foste capaz de descrever o que é bom", mas "Deus te declarou o que é bom". Podemos ver muito claramente, pois, que o profeta deve escutar antes de falar, é alguém que presta atenção, que entende e que comunica. A única função do profeta é a de restaurar, restaurar, estabelecer, manter e desenvolver a relação entre Deus e o homem. Não é nem cientista nem historiador. Toda sua função tem que ver com a relação entre Deus e o homem.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 170 VI. Agora diremos o mesmo de outra maneira: claramente o profeta deve ser alguém que conhece a Deus. De outra maneira nem sequer pode começar a ser profeta. "O que esta igreja precisa é um homem que conheça a Deus algo mais que de segunda mão", foi o que disse o pai de Thomas Carlyle quando a congregação da qual era ancião buscava um ministro. O profeta conhece a Deus em primeira p rimeira mão. VII. Mas surge imediatamente a pergunta: O que significa conhecer? Acima de tudo, há grande diferença entre saber a respeito de uma pessoa e conhecê-la (knowing about e knowing him, em inglês). No mundo político, social, acadêmico e esportivo abundam as grandes figura, a respeito das quais sabemos algo sem que as conheçamos pessoalmente. Além disso, a palavra conhecer é extremamente elástica. Conhecemos muitas pessoas: sua cara, sua voz, seu nome, seu trabalho, a história de sua vida. Falam oco elas quando os encontramos, e até passamos boa parte do dia com eles. Mas a quantas pessoas conhecemos, em realidade? Quantas pessoas existem em cujas mentes e corações podemos penetrar com simpatia simpatia e compreensão, de modo que saibamos o que pensam e sentem? Este tipo de conhecimento depende de algo mais: depende do amor. Para que haja verdadeiro conhecimento, deve haver amor. O profeta que traz a palavra de Deus, não só deve conhecer a Deus, mas também amá-Lo. VIII. Mas é necessário que avancemos um passo mais. Amar, implica necessariamente obedecer. A prova do amor é a obediência. "Vós sois meus amigos — disse Jesus — se fazeis o que eu vos mando" (Jo. 15:14). Portanto, profeta é alguém que obedece a Deus. Na inspiração existe um elemento moral; aqueles que veem a Deus são de limpo coração (Mt. 5:8). O homem que recebe a bênção, tem limpas as mãos e puro o coração (Sl 24:4,5).
Introdução à Bíblia (William Barclay) 171 Chegamos pois a uma definição aproximada, que nos põe a meio caminho de nossa meta: Um livro inspirado, um livro que é a palavra de Deus, é aquele que efetua uma relação entre Deus e o homem e, portanto, serve de corretivo à situação humana, que se torceu. Está escrito por alguém que conhece a Deus, porque ama a Deus, e cujo amor redundou em obediência, que o capacita a ser instrumento de Deus.
Mas não terminamos ainda, pois há uma linha mais que une-se a esta. Para o judeu a revelação revelação de Deus não era de maneira maneira nenhuma uma revelação em palavras; era uma revelação nos acontecimentos. Para o judeu, a grande revelação de Deus é a história de Israel e, especialmente, sua libertação do jugo egípcio. Deus se revela a si mesmo na história, nos acontecimentos e na ação divina. Qualquer que leia os Profetas, encontrará que grande parte do que dizem não é mais que interpretação dos acontecimentos históricos. O profeta vê a mão de Deus revelar-se no evento; vê no evento o que Deus tem feito e o que Deus quer dizer. Portanto, podemos afirmar com absoluta certeza que Deus Se revela na ação e no evento, e que a Bíblia são os anais e interpretação destes eventos, mais que a própria revelação. A Bíblia é a história de um Deus que age e de homens que interpretam, ou não interpretam, a ação de Deus. E agora chegamos ao topo deste assunto. O evento supremo é Jesus Cristo. Ele é a Palavra. Esta Palavra não é uma página impressa. As palavras de Deus são acontecimentos; Deus fala neles. E portanto, o acontecimento supremo, a revelação suprema, a suprema palavra é Jesus Cristo. No Antigo Testamento a Bíblia nos fala da preparação para a vinda de Cristo; nos evangelhos relata o evento de Sua vinda; nos Atos descreve o resultado desta, e nas Epístolas encontramos as interpretações
Introdução à Bíblia (William Barclay) 172 a respeito de Sua vinda. Para ler corretamente a Bíblia é preciso começar na metade dela, com o acontecimento salvífico de Jesus Cristo; logo, retornar à preparação deste evento, e daí à história da Igreja e às interpretações de tal evento. A suprema importância da Bíblia radica em que nela e só nela encontramos a Jesus Cristo. Sem ela careceríamos de uma recontagem de Sua vida e ensino. Poderia argumentar-se que, embora não tivéssemos a Bíblia, ainda teríamos a tradição da Igreja; mas é a Bíblia a que impede as distorções da tradição. A Bíblia é a pedra de toque; é a garantia de que ninguém pode perverter os fatos ou inventar fatos novos, pois ali está Jesus Cristo. Creio que a Bíblia é a palavra de Deus, porque nela estamos frente a frente com quem, em sentido único, é a Palavra de Deus. Assim que, voltamos para o grande princípio da Reforma em palavras de Lutero: "A verdadeira pedra de toque para provar qualquer livro; é descobrir se enfatizar ou não a proeminência de Cristo. O que não ensina a Cristo não é apostólico, embora o ensinem Pedro ou Paulo. Por outro lado, o que prega a Cristo é apostólico, embora pudesse vir de Judas, Anás, Herodes ou Pilatos". Eis aqui, pois, a prova mais simples: a Bíblia é a palavra de Deus, porque através dela encontramos a Jesus Cristo. Podemos então resumir finalmente nossas conclusões: I. A Bíblia é a palavra de Deus, porque é onde se restaura a relação quebrada entre o homem e Deus. II. A Bíblia é a palavra de Deus, porque foi escrita por pessoas que conheciam a Deus, porque O amavam e obedeciam.
Introdução à Bíblia (William Barclay) 173 III. A Bíblia é a palavra de Deus, porque fala dos fatos salvíficos por meio dos quais Deus Se revela a Si mesmo, e que culminam no evento de Jesus Cristo. IV. A Bíblia é a palavra de Deus porque nela e só nela nos confrontamos com a vida e os ensinos de Jesus Cristo.