J e a n - L u c N a n c y
O INTRUSO
Tradução: Tradução: Pricila Pricila C. Laignier, com a colaboração colaboração de Ricardo Ricardo Parente Parente e Susan ugen!eim Re"isão t#cnica: $luisio Pereira de %ene&es
Paris, Paris, 'ditions alil#e, ())) *+so eclusi"o nas ati"idades da Formação Freudiana ())
Não !/ de 0ato nada mais ignobilmente in1til e su2#r3uo 4ue o 5rgão c!amado coração 4ue # o mais !ediondo meio 4ue os seres 2uderam in"entar 2ara sugar a "ida em mim. $ntonin $rtaud6
1
Em 84, no 5-6, 1948, p.103.
2
Não !/ de 0ato nada mais ignobilmente in1til e su2#r3uo 4ue o 5rgão c!amado coração 4ue # o mais !ediondo meio 4ue os seres 2uderam in"entar 2ara sugar a "ida em mim. $ntonin $rtaud6
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Em 84, no 5-6, 1948, p.103.
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7 intr intrus uso o se intr introd odu& u& 8 0or 0orça ça,, de sur2 sur2rres esa a ou 2or 2or ast1cia, em todo caso sem direito, sem ter sido de sa9da admitido. admitido. ' 2reciso 4ue !aa o intruso no estrangeiro, sem o 4ue ele 2erde sua estrangeiridade. Se ele / 2ossui o direito de entrada e de estada, # es2erado e recebido sem 4ue nada dele ;4ue 0ora de es2era nem 0ora de acol!imento, ele não # mais o intruso, tamb#m não # mais, tam2ouco, o estra estrang ngei eirro. Tam amb# b#m m não não # logi logica came ment nte e ac acei eit/ t/"e "ell nem nem eticam eticament ente e admiss admiss9"e 9"ell eclu ecluir ir toda toda intrus intrusão ão na "inda "inda do estrangeiro. +ma "e& 4ue est/ a9, se ele 2ermanece estrangeiro, durante todo o tem2o em 4ue o 2ermanece, em "e& de sim2le sim2lesme smente nte
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trate mais dela. $col!er o estrangeiro, 4uer di&er tamb#m sua intrusão. 7 mais 0re4uentemente, não se 4uer admitilo: o moti"o do intruso # ele 2r52rio uma intrusão em nossa correção moral *# mesmo um eem2lo not/"el do <2olitically correct=. >ntretanto, ele # indissoci/"el da "erdade do estrangeiro. >ssa correção moral su2?e 4ue se receba
o
estrangeiro
estrangeiridade:
ela
a2agando
4uer,
2ois,
no
4ue
limiar não
o
sua ten!a
absolutamente recebido. %as o estrangeiro insiste e 0a& intrusão. ' isso 4ue não # 0/cil de receber, nem tal"e& de conceber...
4
Recebi *4uem,
nertaram-me um. %eu 2r52rio coração *# toda a discussão do <2r52rio=, ;cou com2reendido A ou então não # nada disso, e não !/ 2ro2riamente nada 2ara com2reender, nen!um mist#rio, nem mesmo uma 4uestão: mas a sim2les e"idBncia de um trans2lante, como de 2re0erBncia di&em os m#dicos A meu 2r52rio coração, 2ois, / esta"a 0ora de uso, 2or alguma ra&ão 4ue nunca 0oi
5
esclarecida. >ra 2reciso, 2ortanto, 2ara "i"er, receber o coração de um outro. *%as 4ue outro 2rograma cru&a"a, então, com meu 2rograma ;siol5gico@ / menos de "inte anos antes trans2lantes não eram 0eitos, e sobretudo não recorrendo 8 ciclos2orina, 4ue 2rotege contra a reeição do enerto. >m "inte anos, # certo 4ue tratar-se-/ de outro enertar, com outros meios. Cru&amos uma contingBncia 2essoal com uma contingBncia na !ist5ria das t#cnicas. %ais cedo, eu estaria morto, mais tarde, seria sobre"i"ente de outro modo. %as sem2re
o
orgEnico,
o
simb5lico,
o
imagin/rio,
nem
desembaraçar o cont9nuo do interrom2ido: 0oi como um
6
mesmo so2ro, dora"ante im2elido atra"#s de uma estran!a ca"erna / im2erce2ti"elmente entreaberta, e como uma mesma re2resentação, a de 2assar al#m da borda, 2ermanecendo na 2onte. Se meu 2r52rio coração me larga"a, at# onde ele seria o u tin!a este coração na borda dos l/bios, como uma alimentação im2r52ria. $lgo como um sobressalto, mas bem sua"e. +m delicado desli&amento me se2ara"a de mim mesmo. >u esta"a ali, era "erão, 2recisa"a es2erar, algo se destaca"a de mim, ou esta coisa surgia em mim, ali onde não !a"ia nada: nada mais 4ue uma
7
tarde, sentindo cada des2rendimento etrassist5lico como a 4ueda do seio no 0undo de um 2oço. Como tornar-se 2ara si uma re2resentação@ > uma montagem de 0unç?es@ > onde desa2arecia, então, a e"idBncia 2otente e muda 4ue sustenta"a tudo isso sem !ist5ria reunida@ %eu coração tornou-se meu estrangeiro: ustamente um estrangeiro 2or4ue ele esta"a dentro. $ estrangeiridade não de"ia "ir de 0ora senão, 2or ter, de sa9da, surgido de dentro. Fue "a&io aberto subitamente no meu 2eito ou na alma A # a mesma coisa A 4uando me disseram: ste branco me ;car/ como o 2ensamento mesmo e seu contr/rio ao mesmo tem2o. +m coração 4ue s5 bate 2ela metade, s5 # 2ela metade meu coração. >u / não esta"a mais em mim. >u / "en!o de al!ures, ou então não "en!o mais. +ma estrangeiridade se re"ela
2resente.
Dora"ante,
ele
des0alece,
e
esta
estrangeiridade me de"ol"e a mim mesmo. <>u= sou, 2or4ue sou doente *
8
in0ectado, est/ en0erruado, r9gido, blo4ueado. %as a4uele 4ue est/ arruinado, # este outro, meu coração. >sse coração dora"ante intruso, ser/ necess/rio etrud/-lo.
9
Sem d1"ida, isso s5 acontece com a condição de 4ue eu o 4ueira e alguns outros comigo. <$lguns outros=: os meus 2r5imos, mas tamb#m os m#dicos, e eu mesmo en;m, 4ue me descubro mais du2lo ou mais m1lti2lo do 4ue nunca. ' 2reciso 4ue todo esse mundo de uma s5 "e&, 2or moti"os a cada "e& di0erentes, concorde em 2ensar 4ue "ale a 2ena 2rolongar a min!a "ida. Não # di09cil de re2resentar a com2leidade do conunto estrangeiro 4ue inter"#m assim no mais "i"o de
isso,
eles
me
dirão
4ue
!a"er/
um
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no ;m do "erão: o 4ue su2?e certa con;ança no 0uncionamento do meu coração e esta lista su2?e escol!as: eles me 0alarão de uma outra 2essoa suscet9"el de ser enertada, mas mani0estamente inca2a& de su2ortar o 4ue se segue medicamente a um enerto, em 2articular os rem#dios a serem tomados. Sei, tamb#m, 4ue s5 2osso ser enertado 2or um coração do gru2o sangu9neo 7I, o 4ue limita as 2ossibilidades. Não colocarei amais a 4uestão: como se decide, e 4uem decide, 4uando um enerto dis2on9"el con"#m 2ara mais de um enertado 2otencial@ Sabe-se 4ue a demanda, a4ui, ecede a o0erta... De re2ente, a min!a sobre"ida est/ inscrita num 2rocesso com2leo tecido de estrangeiros e de estrangeiridades. Sobre o 4ue # necess/rio 4ue !aa um acordo de todos na decisão ;nal@ Sobre uma sobre"ida 4ue não 2odemos considerar de um estrito 2onto de "ista de uma 2ura necessidade: onde iremos busc/-la@ 7 4ue me obriga a me 0a&er sobre"i"er@ >ssa 4uestão se abre num grande n1mero de outras: 2or 4ue eu@ Por 4ue sobre"i"er em geral@ 7 4ue signi;ca m 4ue uma duração de "ida ser/ ela um bem@ >u ten!o agora cin4enta anos: nesta idade s5 se # o"em numa 2o2ulação de 2a9ses desen"ol"idos ao ;nal do s#culo KK... %orrer nesta idade não era nada escandaloso !/ a2enas dois ou trBs s#culos. Por 4ue a 2ala"ra 2or 4ue, e como, não !/ mais
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2ara n5s stou 2ronto 2ara recon!ecer 4ue, mesmo numa 05rmula como
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/ oito anos, terei ou"ido tanto, e terei re2etido tanto eu mesmo, durante as 2ro"aç?es:
a #2oca
de
Descartes,
2elo
menos,
a
!umanidade moderna 0e& do "oto de sobre"i"Bncia e de imortalidade um elemento dentro de um 2rograma geral de la 2rogramou, assim, uma estrangeiridade crescente da la rea"i"ou a estrangeiridade absoluta do du2lo enigma da mortalidade e da imortalidade. 7 4ue as religi?es re2resenta"am, ela a ele"ou 8 2otBncia de uma t#cnica 4ue recusa o ;m em todos os sentidos da e2ressão: 2rolongando o t#rmino, ela e2?e uma ausBncia de ;m: 4ual "ida 2rolongar, com 4ue obeti"o@ Di0erir a morte # tamb#m eibi-la, sublin!/-la. ' 2reciso, somente, di&er 4ue a !umanidade nunca este"e 2re2arada de alguma maneira 2ara essa 4uestão, e
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4ue seu des2re2aro 2ara a morte # a2enas a 2r52ria morte: seu gol2e e sua inustiça.
$ssim, o estrangeiro m1lti2lo 4ue 0a& intrusão na min!a "ida *min!a 2e4uena "ida, es0al0ada, 2or "e&es escorregando num mal-estar 8 beira de um abandono a2enas atordoado não # outro 4ue a morte, ou antes a "ida O a morte: uma sus2ensão do cont9nuo de ser, uma escansão na 4ual
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um coração@ $ coisa ecede min!as 2ossibilidades de re2resentação. *$ abertura de todo o t5ra, a manutenção a2ro2riada do enerto, a circulação etra-cor25rea do sangue, a sutura dos "asos sangu9neos... >ntendo bem 4ue os cirurgi?es declarem a insigni;cEncia desse 1ltimo 2onto: nas 2ontes de sa0ena, os "asos são bem menores. %as isso não im2ede: o trans2lante im2?e a imagem de uma 2assagem 2elo nada, de uma sa9da num es2aço "a&io de toda 2ro2riedade ou de toda intimidade, ou então, ao contr/rio, da intrusão em mim deste es2aço: tubos, 2inças, suturas e sondas.
Fue "ida <2r52ria= # esta 4ue se trata de la não se situa em nen!uma 2arte, nem neste 5rgão cua re2utação simb5lica não cabe mais 0a&er.
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*Dirão: resta o c#rebro. > claro, a ideia de enerto do c#rebro mobili&a, de "e& em 4uando, as crGnicas. $ !umanidade sem d1"ida tornar/ a 0alar disso um dia. $tualmente, admite-se 4ue um c#rebro não sobre"i"e sem o restante do cor2o. >m com2ensação, 2ara ;car s5 nisso, ele sobre"i"eria tal"e& com um sistema inteiro de cor2os estrangeiros enertados.... ida <2r52ria= 4ue não est/ em nen!um 5rgão e 4ue sem eles não # nada. ida 4ue não somente sobre"i"e, mas 4ue "i"e sem2re 2ro2riamente, sob um tr92lice dom9nio estrangeiro: o da decisão, o do 5rgão e o das conse4uBncias do enertar.
De in9cio, o enertar se a2resenta como um restitutio ad integrum: encontraram um coração 4ue bate. $ esse
res2eito, toda a simboli&ação du"idosa do dom do outro, de
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uma
cum2licidade
ou
de
uma
intimidade
secreta,
0antasm/tica, entre o outro e eu, se des0a& muito ra2idamenteQ
2arece,
ali/s,
4ue
o
seu
uso,
ainda
disseminado 4uando 0ui enertado, desa2areça 2ouco a 2ouco das consciBncias dos enertados: / eiste uma !ist5ria das re2resentaç?es do enerto. Colocou-se muita Bn0ase nessa solidariedade, ou mesmo numa 0raternidade, entre os ningu#m 2ode du"idar 4ue este dom ten!a se tornado uma obrigação elementar da !umanidade *nos dois sentidos do termo, nem 4ue institua entre
todos,
sem
outros
limites
4ue
os
das
incom2atibilidades dos gru2os sangu9neos *sem limitaç?es seuais ou #tnicas em 2articular: meu coração 2ode ser um coração de uma mul!er negra, uma 2ossibilidade de rede em 4ue a "idaOmorte # 2artil!ada, na 4ual a "ida se conecta com a morte, onde o incomunic/"el se comunica. >ntretanto,
muito
ra2idamente,
o
outro
como
estrangeiro 2ode se mani0estar: nem a mul!er, nem o negro, nem o ra2a& ou o asco, mas o outro imunol5gico, o outro insubstitu9"el 4ue, no entanto, se substituiu. sso se denomina a
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2ara criar a crença. Não # isto, mas se trata ustamente do 4ue # intoler/"el na intrusão do intruso, e # ra2idamente mortal se não 0or tratado. $
2ossibilidade
da
reeição
instala
uma
du2la
estrangeiridade: de um lado, a do coração enertado, 4ue o organismo identi;ca e ataca como estrangeiro, e 2or outro lado, a do estado em 4ue a medicina instala o enertado 2ara 2rotegB-lo. >la redu& sua imunidade, 2ara 4ue ele su2orte o estrangeiro. >la torna-o, 2ortanto, estrangeiro a si 2r52rio, a esta identidade imunol5gica 4ue # um 2ouco sua assinatura ;siol5gica. / um intruso em mim, e eu me torno estrangeiro a mim mesmo. Se a reeição 0or muito 0orte, ser/ necess/rio me tratar 2ara me tornar resistente 8s de0esas !umanas *o 4ue # 0eito com uma imunoglobulina 2ro"eniente do coel!o e destinada 2ara esse uso
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$ssim, con!ecerei 2or "/rias retomadas o "9rus do &ona, ou o citomegalo"9rus, estrangeiros adormecidos em mim desde sem2re e subitamente des2ertados contra mim 2or conta de uma necess/ria imuno-de2ressão.
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$o menos, # isso 4ue se 2rodu&: identidade "ale 2or imunidade, uma identi;cando-se com a outra. Diminuir uma, # diminuir a outra. $ estran!e&a e a estrangeiridade tornam-se comuns e cotidianas. sso se tradu& 2or uma eteriori&ação constante de mim: ten!o de me a0erir, me controlar,
me
testar.
ombardeiam-nos
com
recomendaç?es diante do mundo eterior *as multid?es, as loas, as 2iscinas, as crianças 2e4uenas, os doentes. %as os inimigos mais "i"os estão no interior: os "el!os "9rus escondidos desde sem2re na sombra da imunidade, os intrusos de sem2re, / 4ue sem2re !ou"e. Nesse 1ltimo caso, não !/ 2re"enção 2oss9"el. %as tratamentos
4ue
des"iam
ainda
no"amente
em
estrangeiridades. Fue cansam, 4ue arru9nam o estGmago, ou então a dor ui"ante do &ona No meio de tudo isso, 4ual
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Fue estran!o euM Não # 4ue me ten!am aberto, !iante, 2ara trocar de coração. %as # 4ue esta !iEncia não 2ode ser 0ec!ada de no"o. *$li/s, como cada radiogra;a mostra, o esterno est/ costurado com 2edaços de ;o de 0erro retorcidos. >stou aberto 0ec!ado. Tem uma abertura 2or onde 2assa um 3uo incessante
de
estrangeiridade:
os
rem#dios
imunode2ressores, os outros rem#dios encarregados de combater certos e0eitos ditos secund/rios, a4ueles e0eitos 4ue não sabemos combater *como a degradação dos rins, os controles reno"ados, toda a eistBncia baseada num no"o registro, escrutada 2or toda a 2arte.
$ "ida
escaneada e relatada em m1lti2los registros dos 4uais cada um inscre"e outras 2ossibilidades de morte.
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', 2ortanto, assim 4ue me torno eu mesmo meu intruso, de todas essas maneiras acumuladas e o2ostas. Sinto isso bem, # muito mais 0orte 4ue uma sensação: nunca a estrangeiridade de min!a 2r52ria identidade, 4ue, no entanto, sem2re me 0oi muito "i"a, não me tocou com esta acuidade. <>u= 2assa a ser com clare&a o inde 0ormal de um encadeamento in"eri;c/"el e im2al2/"el. >ntre eu e eu, sem2re !ou"e um es2aço-tem2o: mas, no 2resente, !/ a abertura de uma incisão, e o irreconcili/"el de uma imunidade contrariada.
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7corre ainda o cEncer: um lin0oma, cua e"entualidade eu nunca !a"ia notado *com certe&a, não a necessidade: 2oucos enertados 2assam 2or isso esta"a assinalada na bula im2ressa da ciclos2orina. Causado 2ela 4ueda da imunidade. 7 cEncer # como a ;gura em2alidecida, encar4uil!ada e de"astadora do intruso. >strangeiro a mim mesmo, e eu mesmo estran!ando-me. Como di&er@ *%as ainda se dis2uta sobre a nature&a e5gena ou end5gena dos 0enGmenos cancer9genos. $4ui tamb#m, de outra maneira, o tratamento eige uma intrusão "iolenta. >le incor2ora uma 4uantidade de estrangeiridade 4uimioter/2ica e radioter/2ica. $o mesmo
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tem2o 4ue o lin0oma corr5i o cor2o e o esgota, os tratamentos o atacam, 0a&endo-o so0rer de in1meras maneiras A e o so0rimento # a relação de uma intrusão e de sua recusa. %esmo a mor;na, 4ue abranda as dores, 2ro"oca um outro so0rimento, o de entor2ecimento e de al!eamento. 7 tratamento mais elaborado nomeia-se
$ baia imunol5gica se torna
etrema, da9 as 0ebres altas, micoses, desordens em s#rie, at# 4ue a 2rodução de lin05citos recomece. Sai-se transtornado da a"entura. Não se recon!ece mais: mas
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Dirigir-se a si mesmo torna-se um 2roblema, uma di;culdade ou uma o2acidade: # atra"#s do mal, ou então do medo, nada mais # imediato A e as mediaç?es cansam. $ identidade es"a&iada de um
>u acabaObo 2or não ser mais 4ue um ;o tBnue, de dor em
dor
e
de
estrangeiridade
em
estrangeiridade.
>ncontramos certa continuidade nas intrus?es, num regime 2ermanente da intrusão: aos rem#dios administrados mais do 4ue cotidianamente e aos controles no !os2ital se
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acrescentam as conse4uBncias dent/rias da radiotera2ia, assim como a 2erda de sali"a, o controle alimentar, a4uele dos contatos contagiantes, o en0ra4uecimento muscular e o renal, a diminuição da mem5ria e da dis2osição 2ara trabal!ar, a leitura das an/lises, o retorno insidioso da mucite, da cEndida ou da 2olineurite, e este sentimento generali&ado de não estar mais dissociado de uma rede de 2recauç?es, de obser"aç?es,
de cone?es
4u9micas,
institucionais, simb5licas, 4ue não se deiam ignorar como a4uelas com as 4uais # sem2re tecida a "ida comum, mas 4ue, 2elo contr/rio, mant#m, de modo e2resso, a "ida incessantemente in0ormada da 2resença dessas redes e da sua "igilEncia. >u 2asso a ser indissoci/"el de uma dissociação 2olimor0a. Sem2re 0oi mais ou menos esta a "ida dos doentes e dos "el!os: mas 2recisamente, não sou nem uma coisa e nem outra. ' o 4ue me cura 4ue me a0eta ou 4ue me in0ecta, # o 4ue me 0a& "i"er 4ue me en"el!ece 2rematuramente. %eu coração tem "inte anos a menos do 4ue eu, e o resto do meu cor2o tem uma d1&ia *no m9nimo a mais do 4ue eu. $ssim reu"enescido e en"el!ecido de uma s5 "e&, não ten!o mais idade 2r52ria e não ten!o mais 2ro2riamente uma idade. $ssim como não 2ossuo mais 2ro2riamente uma 2ro;ssão, sem estar a2osentado. Da mesma maneira 4ue não sou nada do 4ue ten!o de ser *marido, 2ai, a"G, amigo sem sB-lo sob esta condição
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generali&ada do intruso, dos di"ersos intrusos 4ue 2odem a todo o momento ocu2ar meu lugar na relação ou na re2resentação de outrem. De um mesmo mo"imento, o
4ue 4ual4uer interioridade *o nic!o ine2ugn/"el de onde digo
di&erem com muita eatidão, numa con;guração com2leta da morte do deus, 4ue a "erdade do sueito # sua eterioridade e sua ecessi"idade: sua e2osição in;nita. 7 intruso me e2?e ecessi"amente. >le me etruda, ele me e2orta, ele me e2ro2ria. Sou a doença e a medicina, sou a c#lula cancerosa e o 5rgão enertado, sou os agentes imuno-de2ressi"os e seus 2aliati"os, sou a 2onta do ;o de 0erro 4ue sustenta meu esterno e sou este local de ineção costurado 2ermanentemente sobre min!a cla"9cula, tudo como eu / era, ali/s, estes 2ara0usos na min!a anca e esta 2laca na min!a "iril!a. Torno-me como um androide de ;cção cienti;ca, ou então um morto-"i"o, como disse um dia meu ;l!o caçula.
27
Somos, com todos os meus semel!antes cada "e& mais
numerosos(,
e0eti"amente:
o
os
começos
!omem
de
recomeça
uma a
mutação, ultra2assar
in;nitamente o !omem *# o 4ue sem2re 4uis di&er a le se torna o 4ue ele #: o mais terr9"el e mais 2erturbador t#cnico, como S50ocles o designou !/ "inte e cinco s#culos, a4uele 4ue desnaturali&a e re0a& a nature&a, 4ue recria a criação, 4ue a retira do nada e 4ue, tal"e&, a recondu&a ao nada. $4uele 4ue # ca2a& da origem e do ;m.
2
Reúno determinados pensamentos de amigos: Alex falando em alemão de ser “un-
eins” com a Aids, para dizer uma existência cuja unidade de manter na divisão e na discordncia consigo pr!prio, ou "iorgio falando em grego de um bios #ue $ apenas zoé, de uma forma de vida #ue não seria mais #ue a simples vida mantida% Cf , Alex "arcia-&'ttmann, Uneins mit Aids, (ran)furt, (isc*er, +, e "iorgio
Agan.em, Homo Sacer I , /urin, 0inaudi, +1% 2/rad% .ras%
3 4! para
lem.rar os enxertos, suplementos e pr!teses de &errida% 0 a lem.ran5a de um desen*o de 46lvie 7loc*er, “8ean-9uc com um cora5ão de mul*er”%
28
7 intruso não # um outro senão eu mesmo e o !omem ele mesmo. Não # um outro 4ue o mesmo 4ue nunca termina de alterar-se, ao mesmo tem2o aguçado e esgotado, desnudado e su2ere4ui2ado, intruso no mundo assim como em si mesmo, in4uietante 9m2eto do estran!o, conatus de uma in;nidade ecrescenteU.
0ste texto foi pu.licado pela primeira vez como resposta ao convite feito por A.dela*a. ;edde. para participar, em sua revista Dédale, de um número #ue ele intitulava: “A vinda do estrangeiro” 2nº 9-10,
29
Post-scriptum (abril de 2005)
Cinco anos se 2assaram desde a 2rimeira 2ublicação deste teto. Durante este tem2o ultra2assei os de& anos de enerto 4ue me tin!am 2arecido desde o in9cio, como um limite, como o !ori&onte mais distante 4ue, tal"e& A 2ensa"a eu !/ 2ouco A nem mesmo alcançaria. Passado esse limiar, ;co es2reitando *"agamente, 2ara ser sincero as es2eranças de "ida dos enertados, ou então me agrada acreditar 4ue não eistem mais limites e encontro a con"icção de imortalidade 4ue todos n5s com2artil!amos, mas acrescida da segurança de 4uem / ultra2assou ao menos duas "e&es o termo cr9tico. Vs "e&es temo o desgaste de tantos anos de 4u9mica e de um coração 4ue trabal!a em condiç?es delicadas, 8s "e&es o tem2o 2assado me 2arece ao contr/rio uma a2osta de regulação e de longo curso. De
uma
maneira
ou
de
outra,
uma
no"a
estrangeiridade tomou conta de mim. Não sei bem
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eatamente a t9tulo de 4ue sobre"i"i, nem se ti"e "erdadeiramente
os
meios
ou
mesmo
o
direito.
*le / se 0oi 0a& seis meses. Não se enerta o 2Encreas. ' claro, este sentimento a3ora raramente e 0ugidiamente. $ maior 2arte do tem2o, não 2enso nisso, assim como 0re4uento menos o !os2ital *o 4ual, realmente, 2erde a 0amiliaridade 4ue !a"ia ad4uirido. %as, 4uando esse 2ensamento me atra"essa, com2reendo 4ue não ten!o mais um intruso em mim: me tornei um, # como intruso 4ue 0re4uento um mundo no 4ual a min!a 2resença 2oderia bem ser 2or demais arti;cial ou muito 2ouco leg9tima. Tal consciBncia não seria de 0orma banal a4uela de min!a singel9ssima contingBncia@ Ser/ a esta sim2licidade 4ue me recondu& e 4ue me e2?e, no"amente, a engen!osidade t#cnica@ >sse 2ensamento tra& uma alegria singular.
31