9 INTRODUÇÃO
Atualmente é costume encontrar em muitas bancas de jornal, pilhas e prateleiras entulhadas com pequenos livros de material reciclado e preços irrisórios, ou grandes coleções mais refinadas, de capa dura e papel de melhor qualidade; obras que em sua maioria pertencem a um subgênero literário. Quem nunca ouviu falar da tão conhecida Série Negra? Ou da famosa rainha do crime? Ou as misteriosas e enigmáticas aventuras do excêntrico e genial detetive de Baker Street e seu fiel companheiro? Esses são apenas alguns nomes conhecidos entre muitos outros autores, personagens e séries que fazem parte desse universo literário. O chamado “romance policial” exerceu e continua exercendo um grande fascínio na mente dos leitores descompromissados, que nas tardes frias de domingo ou no ônibus para o trabalho escapam de suas rotinas para acompanhar os detetives em suas aventuras repletas de suspense e enigmas, sempre as voltas com um intrigante mistério que ninguém mais consegue solucionar. Contudo, ao noticiar a relação do leitor com esse tipo de literatura, que por tanto tempo tem se mostrado imensamente atrativa, algumas questões se fazem presente: Por que esse tipo de narrativa consegue exercer tal fascínio no leitor? O que é propriamente uma “narrativa policial”? Quais seriam as características básicas que a classificam como gênero, e como se desenvolve essa narrativa? Ao longo das páginas que se seguem tentaremos elucidar essas questões, ou encontrar algumas respostas satisfatórias para as perguntas acima. Para tanto, nos apoiaremos em uma leitura fundamentalmente comparativa e semiológica. No que diz respeito à comparação, vamos estabelecer uma aproximação entre textos de três grandes nomes desse gênero: Allan Poe (o criador desse tipo de narrativa), Conan Doyle e Agatha Christie, a tão conhecida “rainha do crime”. Veremos, através dessa comparação, algumas semelhanças básicas entre as narrativas desses três autores e também, de forma geral, no que elas basicamente se diferem. Já no que diz respeito à análise semiológica, é através dela que será possível entender como a narrativa policial é construída, com seus personagens, tempo, espaço e foco narrativo.
10 O presente trabalho, cujo objetivo é analisar as questões propostas sobre a narrativa policial, será dividido em três partes: Na primeira será estabelecia uma breve discussão a respeito dos gêneros e da narrativa policial enquanto subgênero das categorias de romance e/ou conto. Na segunda parte, será desenvolvida uma breve dissertação a respeito do principal personagem desse estilo de narrativa, ou seja, o detetive; veremos as principais características desse estereótipo e vamos comparar o “herói policial” com o herói clássico, a seguir, fazendo também uma comparação entre os principais detetives dos três autores já mencionados: Dupin, Holmes e Poirot. A terceira parte do presente trabalho será dedicada a uma análise da narrativa policial, veremos como essa narrativa se constitui, quais os seus elementos fundamentais e sua origem. Nessa terceira parte em que tratamos da narrativa, será feita novamente uma comparação entre os textos dos autores citados, novamente com o intuito de averiguar as possíveis semelhanças e diferenças. Desse modo, abordaremos a narrativa policial segundo a classificação de gênero e segundo a sua constituição: personagens e trama. A partir de então, já tendo estabelecido de forma geral a proposta deste ensaio, passaremos a seguir para uma breve discussão no que diz respeito aos gêneros literários a fim de saber como a narrativa policial se enquadra nesse esquema classificatório.
11 1. O GÊNERO “POLICIAL”
Antes de passarmos ao estudo da narrativa policial propriamente dita, é preciso entender primeiramente sua classificação na categoria de gênero, ou mais especificamente, subgênero literário. Cumpre inicialmente tecer algumas palavras sobre a questão dos gêneros literários, e ver como a trama “policial” se enquadra nessa classificação. A respeito da origem do conceito de gênero como maneira de dividir e classificar os diversos tipos e formas na qual a literatura se manifesta, a teórica Angélica Soares alega o seguinte:
“A denominação de gêneros literários, para os diferentes grupamentos das obras literárias, fica mais clara se lembrarmos que gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. E o que se vem fazendo, através dos tempos, é filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda é mostrar como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária.” 1
Assim, com o passar dos séculos os diversos gêneros vêm servindo de classes ou categorias a qual filiar as obras literárias, ou, o nascimento e origem da obra pode dar início a uma nova modalidade literária. Retornando a antiguidade clássica, ou mais especificamente, aos filósofos Platão e Aristóteles, é possível perceber que estes foram os primeiros a teorizar sistematicamente a literatura no ocidente; a eles remonta a tripartição clássica dos gêneros, embora seja alegado que esse mérito não cabe exclusivamente a Aristóteles, e sim aos estudiosos que o seguiram.
“Parece, na verdade, que foram os sucessores de Platão e de Aristóteles que, por meio de uma leitura ‘moderna’ dos escritos antigos, contribuíram para o estabelecimento de uma distribuição ternária dos gêneros... Essa divisão, atribuída indevidamente a Platão e/ou a Aristóteles, vai impor-se como um princípio intangível para o romantismo alemão e, especialmente, para os irmãos Schlegel. Sobretudo Friedrich, que reteve, no comecinho do século XIX, três ‘formas’: A lírica, a épica e a dramática; que se distinguem por sua maior ou menor subjetividade (respectivamente nomeadas ‘subjetiva’, ‘subjetiva-objetiva’ e ‘objetiva’) introduzindo até mesmo, além do mais, uma prioridade histórica para a epopéia. Depois deles, Hölderlin, Schelling, Goethe 1
SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7.ed. São Paulo: Princípios, 2000.
12 e Hegel retomaram o esquema ternário que, com diversas nuanças, expandiu-se amplamente durante todo o século XIX e até mesmo durante o século XX.” 2
Ao que tudo indica a tripartição clássica, independente de ter sua origem em Aristóteles ou seus sucessores; foi, durante muitos séculos, a base dos estudos literários, expandindo-se até o século XX. Contudo, essa tripartição dos gêneros baseada na questão da “maior ou menor subjetividade” foi aos poucos se tornando incapaz de conter todos os novos e diferentes tipos de literatura que iam surgindo. A divisão dos gêneros em três partes iniciais: Épico, lírico e dramático; sofre algumas modificações e ampliações com o passar do tempo. Dessa forma, o gênero épico, ou seja, aquele da poesia que se destinava a cantar os feitos da nação e seus heróis, cujos exemplos mais famosos são a Ilíada, a Odisseia, a Eneida e Os Lusíadas; deu origem ao que hoje chamamos de romance, ou ao menos é o que lhe corresponde.
“O romance vem a ser a forma narrativa que, embora sem nenhuma relação genética com a epopéia (como nos demonstram as teses mais avançadas), a ela equivale nos tempos modernos. E, ao contrário da epopéia, como forma representativa do mundo burguês, volta-se para o homem como indivíduo. Não tendo existido na Antigüidade, essa forma narrativa aparece na Idade Média, com o romance de cavalaria, já como ficção sem nenhum compromisso com o relato de fatos históricos passados. No Renascimento, aparece como romance pastoril e sentimental, logo seguido pelo romance barroco, de aventuras complicadas e inverossímeis, bem diferente do romance picaresco, da mesma época. É, no entanto, em D. Quixote, de Cervantes, que podemos localizar o nascimento da narrativa moderna que, apresentando constantes transformações, vem-se impondo fortemente, desde o século XIX, quando — quase sempre publicada em folhetins — se caracterizou sobretudo pela crítica de costumes ou pela temática histórica. Estas chegam até nossos dias, juntamente com as narrativas que, nos moldes impressionistas, são calcadas no fluxo de consciência e nas análises psicológicas, ou as que optam por uma forma de realismo maravilhoso ou de ficção-ensaio.” 3
Desse modo, embora segundo a autora, as teses mais atuais alegam que não exista uma ligação primordial entre a epopeia e o romance, ainda assim, este gênero surgido na idade média é o equivalente atual da poesia épica. E dês de seu surgimento como romance de cavalaria, retratando a vida e os costumes da nobreza, sofreu grandes desenvolvimentos até a contemporaneidade. Alguns elementos básicos do romance, as vezes camuflados, as vezes evidentes, são: o enredo, as personagens, o espaço, o tempo 2
3
STALLONI, Yves. Os Gêneros Literários. Trad. Flávia Nascimento. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Difel, 2003. (SOARES, 2000. p. 42,43)
13 e o foco narrativo. O gênero lírico teve seu surgimento também na antiguidade, contudo, enquanto a poesia épica se destinava a cantar os feitos e sentimentos da polis; o canto frequentemente acompanhado da flauta ou da lira, surgia para expressar sentimentos mais individuais: cantigas de ninar, de lamento pela morte de alguém, ou cantares amorosos. O gênero lírico preservou a antiga musicalidade dos instrumentos que o acompanhavam, contudo, essa musicalidade foi se manifestando através dos recursos linguísticos capazes de preservá-la mesmo na forma escrita, através de recursos como rima, repetição de fonemas, refrão, repetição de versos, etc. Embora existam traços líricos na expressão épica, esse gênero aborda fundamentalmente a expressão poética. Algumas formas fixas da poesia lírica são: a balada (canto de caráter narrativo, geralmente destinado a contar uma única e simples história), a elegia (canto de luto e/ou de tristeza), a ode (poemas destinados ao canto e louvor de assuntos variados: amor, prazeres, filosofia, etc.), o soneto (poema composto de quatorze versos, geralmente divididos em dois quartetos e dois tercetos, e de assuntos diversos), etc. O gênero dramático se divide em tragédia e comédia, e dizia respeito as composições destinadas a serem representadas nos teatros, e que, podemos dizer, se estendeu na modernidade para a TV e o cinema. A tragédia foi sistematicamente analisada por Aristóteles em sua obra Poética. Seguindo os moldes do romance, chegamos à novela, um gênero intermediário (em termos de extensão) entre o romance e o conto. A novela, embora seja menor em extensão ao romance, possui, no entanto, todos os elementos estruturadores deste (também em número menor). Segundo Angélica Soares, pela economia de extensão e dos elementos constituintes, o enredo é construído de forma unilinear, e a ação se predomina sobre as análises e descrições; e são selecionados os momentos de crise, ou seja, aqueles que impulsionam rapidamente a narrativa para o final. Ainda, segundo a autora, em uma novela bem estruturada, os momentos de clímax e desfecho são coincidentes. De acordo com Soares:
“Têm aparecido como mais apropriadas à novela as situações humanas excepcionais que, não sendo apresentadas como um flash (o que constituiria um conto), se desenvolvem como um corte na vida das personagens, corte este explorado pelo narrador em intensidade, ao contrário do romance, que se estende por um longo período ou até por uma vida inteira.O predomínio da ação que, muitas vezes, favorece a construção dialogada, dá à novela uma feição dramática, ao contrário do conto, que se aproxima da poesia. Não mais estruturada através da moldura ou enquadramento dos episódios, como na novela toscana típica (Decamerão, de Boccaccio), ela hoje pouco se diferencia
14 do romance; até porque muito perdeu ele, em extensão, nestes tempos televisivos.”4
Desse modo, segundo a autora, atualmente com a nova configuração do gênero romance, que perde em extensão de modo a se adaptar a uma sociedade mais econômica e de modo de vida mais veloz, se torna difícil fazer uma distinção segura entre esses dois gêneros: romance e novela. Ainda, como um desenvolvimento subsequente dado gênero épico, ou do romance; chegamos ao menor gênero em termos de extensão: o conto. Contudo, embora o conto seja um gênero advindo do romance, se diferencia deste e da novela por possuir características próprias. De uma forma geral, o que vimos até agora foi um esboço da tripartição clássica dos gêneros e o desenvolvimento dos gêneros por ela abarcados. Desse modo, podemos dividi-los na seguinte linha: Épico – Epopeia > romance > novela> conto. Lírico – Canto acompanhado de instrumentos > poesia: ode, soneto, balada, elegia, etc., e outras formas livres. Dramático – Tragédia, comédia, drama, diálogo, auto, etc. Entretanto, é possível observar que essa tripartição clássica foi se tornando bastante limitada à medida que novos gêneros surgiram. Temos p. ex. as fábulas, os contos de fadas, as crônicas, os ensaios, a narrativa policial, etc. Cada um desses gêneros contendo suas próprias características particulares, não incluídas na tripartição clássica. Frente ao surgimento dessas novas formas literárias, foi preciso uma reformulação da questão dos gêneros, e muitos teóricos e filósofos defenderam uma forma mais flexível de classificação e sistematização da literatura. Com o surgimento de conceitos revolucionários no campo da crítica literária, como o dialogismo e a polifonia, de Bakhtin; a intertextualidade, de Julia Kristeva, e outros; o que podemos observar atualmente é que uma obra não obedece mais a características rígidas e, assim como existe um hibridismo entre os gêneros textuais, passa a ocorrer também um hibridismo no que diz respeito aos gêneros literários. Dessa forma, atualmente, uma obra pode ter características de dois ou mais gêneros simultaneamente.
4
(Op. Cit. p. 55, 56)
15 A partir dessa pequena visão a respeito da tripartição clássica dos gêneros, já se tornou possível notar que a narrativa policial, como o próprio termo indica, pertence ao gênero épico, e as categorias de romance, novela e conto. Classificada como narrativa em prosa, e de acordo com a extensão, a trama “policial” pode assumir qualquer uma das formas já mencionadas, por exemplo, Poe escreveu suas narrativas policiais em forma de contos; Conan Doyle o fez como contos e novelas; já Agatha Christie escreveu contos, novelas e romances policiais. Dessa forma, os critérios de “narrativa em prosa” e extensão, não são suficientes para enquadrar totalmente a narrativa policial enquanto gênero. Para isso é preciso considerar outro critério, a classificação segundo a temática da obra. Partindo desse critério, é possível encontrar a categoria de subgênero, na qual as obras podem continuar sendo classificadas. Desse modo, um romance é uma narrativa em prosa de grande extensão, e pode continuar sendo dividido nos subgêneros de romance de terror, como os de Stephen King; romance de thriller, como os de Sidney Sheldon; de suspense, como os de Dan Brown; de vampiros como os de Anne Rice; e finalmente, entre muitos outros subgêneros, o romance policial, como os de Agatha Christie. A mesma subdivisão vale para os outros gêneros: novela e conto. Desse modo, existem os contos de terror, de suspense, de aventuras, de erotismo e os policiais, dentre tantos outros. O criador da chamada narrativa policial foi o escritor e crítico norte americano Edgar Allan Poe. Poe estabeleceu um “padrão” que depois seria seguido de perto por diversos outros autores, o que contribuiu para consolidar a narrativa policial como gênero. A respeito dos fatores que contribuíram para o surgimento da narrativa policial, a teórica Sandra Lúcia, afirma o seguinte:
“Antes de começarmos a pensar nos contos policiais criados por Poe, vamos nos deter um pouco no que estava acontecendo por volta de 1840 quando Poe cria o gênero. Pois as condições de sua época influenciam grandemente os textos de Poe e propiciam a ele a invenção do gênero. Vamos pensar estas condições esquematicamente: 1º) Quando hoje o jornaleiro deixa todo dia o jornal em nossa casa, ou alguém da família ao sair para comprar pão o traz, raramente nos damos conta de que o hábito da leitura cotidiana de jornais peta classe média não é coisa tão velha e imutável assim. Foi no século XIX que surgiram na Europa os jornais populares de grande tiragem (apesar de a imprensa ter surgido em meados do século XIII). Esses jornais em algumas seções criam e valorizam o chamado "fato diverso": dramas individuais, via de regra banais, ou então crimes raros e aparentemente inexplicáveis. O desafio do mistério aliado a um certo prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça violada que requer então reparos, suo basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na leitura deste tipo de narrativa. Satisfazendo esses prazeres e, ao mesmo tempo, habituando certo tipo de público á leitura
16 regular dessas narrativas, esses jornais criam condições para o surgimento e divulgação de narrativas outras que de alguma forma lidam, trabalham, se articulem sobre os mesmos elementos ou elementos semelhantes aos que são articulados por estas narrativas de jornais populares, entre elas o romance policial.”5
Dessa forma, o surgimento dos jornais de grande tiragem e da preferência do público por leituras que hoje seriam classificadas como “sensacionalistas” e casos aparentemente inexplicáveis, foi, segundo a autora, o primeiro fator que contribuiu para a criação da narrativa policial. Ainda, segundo Reimão, outro fator foi a organização das grandes cidades. Segundo isso, a autora declara:
“O novo público criado pelos jornais de grande tiragem habita um novo espaço: as cidades industriais. As cidades industriais, produtos da Revolução Industrial estarão bastante presentes no romance policial Logo as primeiras narrativas policiais localizarão o crime no lugar onde ele aparecerá mais freqüentemente: a cidade. As fachadas, as multidões humanas, os labirintos de ruas serio, quase sempre, personagens mudos constantes nas narrativas policiais. 3º) Outra coisa que raramente questionamos é sobre a origem da policia: parece ter sempre existido, mas, na realidade, surgiu no século XIX. É no século XIX que se desenvolverá a polícia, na acepção contemporânea do termo. No início do século XIX, os policiais franceses eram recrutados entre os ex-condenados e um de seus chefes era o ex-condenado mais famoso de todos — Vidocq (1775-1857) —, que em 1828 lança suas memórias. Memórias estas importantes do ponto de vista dos primórdios da narrativa policial, pois será em oposição a este tipo de investigador que Poe criará seu detetive Dupin. Vidocq, assim como os policiais do início do século, sendo um ex-contraventor, conhece por dentro o mundo dos crimes e os investiga empiricamente, convivendo com os criminosos, e através dessa convivência é que este policial constrói suas investigações e chega a desvendar os crimes que lhe são apresentados.”6
Sendo assim, os outros dois fatores que entram em consideração no surgimento desse tipo de literatura é a organização do espaço nas grandes cidades movimentadas, que frequentemente era o cenário dessas narrativas; e o surgimento de uma instituição social bem estruturada e denominada “polícia”. Desse modo, nas grandes cidades é que ocorre os crimes, e cabe a polícia, e seus investigadores, solucioná-lo. Contudo, como solucioná-lo? Através de um método bem conhecido: “4º) Se pensarmos no mundo das idéias, o que aconteceu de mais marcante no século XIX, e que terá, veremos mais a frente, um papel decisivo na proposta literária de Poe e na criação de seu detetive Dupin, foi o Positivismo. O Positivismo, um dos últimos movimentos 5 6
REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é Romance Policial. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. P. 12. (Idem. P. 12, 13.)
17 filosóficos a obter grande divulgação, repercussão e aceitação fora do círculo dos especialistas, tinha como crença básica, como pressuposto fundamental, a afirmação de que os fenômenos são regidos por leis. Essas leis existiriam tanto ao nível do mundo natural quanto do orgânico e do universo humano. Uma das conseqüências dessas concepções positivistas é a crença de que o espírito humano está submetido a leis como qualquer outro fenômeno, e a teoria da associação de idéias, já existente anteriormente, conhecerá seu desenvolvimento maior, especialmente com John Stuart Mill. A crença em que a mecânica mental obedece a certos princípios gerais e em que quem dominar estes princípios saberá usá-los em cada cadeia de idéias, de cada homem particular, estava em plena voga.”7
Assim, as circunstâncias daquela época ofereciam um cenário, um público, a matéria de interesse e as circunstâncias propícias para seu desenvolvimento fictício. A sociedade estava se organizando em cidades industriais, nas quais começaram a surgir as grandes imprensas e seus jornais, nessas cidades ocorriam os crimes que eram noticiados nesses jornais e lidos por um público ávido de notícias sinistras e casos difíceis de solucionar; houve também o surgimento da instituição conhecida como “polícia”, e a ela cabia investigar e solucionar os crimes; por fim, estava em voga a filosofia positivista que previa que todas as coisas, inclusive os pensamentos e ideias obedeciam a certas leis, que se conhecidas, poderiam ser usadas para conhecer os mesmo; essa filosofia oferecia um bom método de investigação que, se não foi adotado na prática, pelo menos o foi na ficção, pelo detetive Dupin. Desse modo, foi nesse senário e com todos esses fatores e circunstâncias que Allan Poe deu origem ao que ficou conhecido como narrativa policial.
7
(Idem. P. 13,14.)
18 2. DETETIVE
Talvez, para aqueles leitores menos aficionados pela literatura “policial”, nomes como Dupin, Poirot, Mis Marple, Parker Pine e tantos outros sejam relativamente desconhecidos. Contudo, mesmo esses hão de concordar que não é preciso ser um entusiasta da literatura do gênero para conhecer o famoso detetive Sherlock Holmes, cujas aventuras já figuraram em tantos livros, filmes e animações; o mesmo que, com seu companheiro Watson divide um sobrado na Baker Street 221B em Londres.
“É provável que os leitores mais críticos, aqueles que têm um contato menos ingênuo com a obra de ficção, achem curioso e até engraçado que muitos leitores de Conan Doyle reservem um espaço de sua viagem turística à visita a Baker Street, número 221 B, na esperança de ali encontrar os aposentos, o laboratório e os velhos livros de Sherlock Holmes. Esses amantes da ficção policial, que leram e releram cada uma das aventuras do herói, acreditam realmente na existência de uma pessoa chamada Sherlock Holmes, um ser humano muito especial, que viveu todas as apaixonantes peripécias relatadas por um “outro ser humano”, o caro Watson. Não encontrar esse número em Baker Street é uma decepção. Mas não tão forte que possa apagar a ilusão da existência de Holmes. Para os leitores fiéis, isso não passa de mais um truque genial do brilhante detetive.Mas não há motivo para riso. Ao menos não há motivo para esse riso de desdém,característico dos que nunca tiveram dúvida de que Watson e Sherlock são apenas criações de Conan Doyle.” 8
Sim, Sherlock Holmes é um caso de personagem que adquiriu tanta fama a ponto de ofuscar seu próprio criador, Sir Arthur Conan Doyle, e mesmo ser considerado por muitos como uma pessoa real. Aqui não nos cabe entrar em uma discussão a respeito do conceito de personagem, e suas implicações teóricas, o que pode ser encontrado na obra acima citada. Se o personagem não existe fora das páginas ou se o termo “pessoa” não se presta a uma possível conexão com a definição de personagem é uma discussão mais ampla, e não caberia nessas breves páginas. Veremos, por outro lado, o como é o personagem, dentro de suas páginas; e mais especificamente falando, o personagem central da narrativa policial, ou seja, o detetive. Partindo do pressuposto de que o personagem, sendo ou não uma pessoa, é construído através de um referencial observável, ou seja, de pessoas; e assim, carrega no universo ficcional os mesmos 8
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. P. 9.
19 elementos que as pessoas carregam no universo real, é possível observar que, embora o personagem não seja propriamente o reflexo de uma pessoa, assim como a ficção não é o reflexo da realidade; é, contudo, uma representação, e como tal, ainda obedece a certos princípios – uns mais outros menos. E como aqui estamos tratando de um personagem bastante específico, o detetive; vamos nos limitar a seu estudo. É certo que o “detetive”, embora não sendo uma pessoa real, é uma representação desta (na acepção clássica de detetive que estamos abordando. Uma vez que, considerando outras definições atuais, é possível observar detetives cachorros, bebês, robôs e toda uma série de seres investigadores que não necessariamente se enquadram nesse aspecto.), sendo construído segundo suas referências. Desse modo, podemos dizer que o detetive obedece a um critério tradicional de gênero: masculino, feminino; possui características pessoais, costumes, conhecimentos e método de investigação; entre outros aspectos. Serão esses os fatores que tentaremos analisar em três dos maiores personagens da narrativa policial: Dupin, Holmes e Poirot. Notando em quais eles se aproximam e onde existe um distanciamento. Em Os Crimes da Rua Morgue, somos pela primeira vez apresentados ao detetive C. Dupin, que aparece com seu companheiro narrador, o qual, após realizar uma breve louvor à capacidade analítica do ser humano, finalmente descreve o encontro com seu futuro amigo.
“Residindo em Paris, durante a primavera e parte do verão de 18..., travei ali conhecimento com um Sr. C. Augusto Dupin, jovem cavalheiro de excelente e ilustre família. Em consequência duma série de acontecimentos desastrosos, ficara reduzido a tal pobreza que a energia de seu caráter sucumbira aos reveses, tendo ele deixado de frequentar a sociedade e de esforçar-se em recuperar sua fortuna. Graças à condescendência de seus credores, mantinha-se ainda de posse dum resto de seu patrimônio, com cuja renda conseguia, com rigorosa economia, prover-se do necessário, sem cuidar de coisas supérfluas. Tinha na verdade um único luxo: os livros, que, em Paris, podem ser adquiridos a baixo custo. Nosso primeiro encontro se deu numa escura livraria da Rua Montmartre, onde o acaso de estarmos à procura do mesmo livro, notável e raro, nos fez entrar em estreitas relações. Via-mo-nos frequentemente. Interessou-me intensamente a pequena estória de família que ele me contou, com toda aquela sinceridade característica do francês, quando se trata de si mesmo. Causou-me também admiração a vasta extensão de suas leituras e, acima de tudo, empolgaram-me a alma o intenso fervor e a vívida frescura de sua imaginação. Procurando em Paris certas coisas que me interessavam, vi que a convivência com tal homem seria para mim tesouro inapreciável. E isso mesmo, francamente, lho disse. Resolvemos por fim morar juntos durante minha permanência em Paris e, como minha situação financeira era muito melhor que a dele, a mim coube a despesa de alugar e mobiliar, num estilo adequado à um tanto fantástica melancolia de nossos caracteres, uma velha e grotesca casinha, quase em ruínas, há muito desabitada, em virtude de
20 superstições de que não indagamos, e situada em solitário recanto do bairro de São Germano.”9
Podemos observar que C. August Dupin é um cavalheiro de “excelente família, vasta leitura e vívida imaginação”. Fatores que claramente distinguem o indivíduo de intelecto mais desenvolvido, no que diz respeito a contextualização da obra. Logo narrador e detetive tornam-se amigos e passam a dividir a mesma residência. O narrador se adapta aos hábitos excêntricos do detetive e estabelecem uma boa relação. A partir de então o detetive, auxiliado por seu companheiro passa a se engajar nas investigações resolvendo os casos mais intrincados; investigações essas que são documentadas pelo companheiro narrador. Esse foi o modelo de Poe, ao escrever “Os Crimes da Rua Morgue”; modelo seguido bem de perto por Conan Doyle em “Um Estudo em Vermelho”, primeiro caso de Sherlock Holmes. “Minha situação financeira tornou-se alarmante. Compreendi que ou deixava a metrópole e me mudava para algum lugar no campo ou teria que alterar por completo meu estilo de vida. Escolhida a última alternativa, decidi deixar o hotel e me instalar num lugar menos caro e pretensioso. No mesmo dia em que cheguei a essa conclusão, estava no Bar Criterion quando alguém bateu no meu ombro. Virando-me, reconheci Stamford, um jovem que havia sido meu cirurgião-assistente em Barts. É uma sensação extremamente agradável para uma pessoa solitária ver um rosto amigo em meio ao isolamento londrino. Nos velhos tempos, Stamford não fora um amigo intimo, mas, agora, eu o saudava com entusiasmo e ele, por sua vez, parecia encantado em me encontrar. Na exuberância daquela satisfação, convidei-o a almoçar comigo em Holborn e, juntos, tomamos um carro. - Mas o que você andou fazendo, Watson? - perguntou, sem disfarçar seu espanto, enquanto sacolejávamos pelas congestionadas ruas de Londres. Está magro como um sarrafo e escuro como uma noz. Fiz um relato sucinto de minhas aventuras e, tão logo acabara de contá-las, chegamos ao nosso destino. - Coitado! - ele disse, compadecido, depois de ouvir minhas desgraças. - E o que você vai fazer agora? - Procurar um lugar para morar - respondi. - Meu problema é conseguir acomodações confortáveis por um preço razoável. - Estranho - observou meu companheiro. - Você é a segunda pessoa que me diz isso hoje. - E quem foi a primeira? - perguntei. - Um sujeito que trabalha no laboratório químico do hospital. Estava se lamentando, esta manhã, por não encontrar ninguém com quem pudesse dividir as despesas de um ótimo apartamento que encontrou, mas demasiado caro para ele. - Fantástico! - exclamei. - Se ele, de fato, quer alguém para dividir a casa e as despesas, sou a pessoa indicada. Prefiro ter um companheiro a morar sozinho.”10 9
POE, Edgar Alan. Ficção completa, poesia e ensaios. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1986. Pg. 67. 10 DOYLE, Sir Arthur Conan. Um Estudo em Vermelho. Trad. Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM, 2008. Pg. 23.
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Aqui Watson inicia a narrativa contando suas desventuras na Índia como médico do exército, sua ruína financeira e a necessidade de se mudar para um lugar econômicamente mais viável, e por necessidade (mais do que por afinidade, como no caso de Poe), resolve dividir um imóvel com Holmes. Se em Poe, o narrador (abastado) encontra Dupin (em dificuldades financeiras) em uma livraria; Watson, por sua vez, encontra Holmes em um laboratória médico, em meio a uma experiência científica, ambos em dificuldades financeiras resolvem dividir o apartamento por conveniência. E assim como o narrador de Poe, Watson logo se impressiona com as habilidades analíticas de Holmes,e o processo ocorre da mesma forma: o narrador se adapta aos hábitos excêntricos do detetive, que logo se engaja em investigações com o auxílio de seu companheiro (que nesse caso tem mais participação ativa do que o de Dupin) que passa a ser o documentador das aventuras. Como em Os Crimes da Rua Morgue, no Estudo em Vermelho o detetive é descrito pela ótica do companheiro narrador, que relata suas impressões a respeito desse, como um cinegrafista que se aproxima de alguém e lhe dá um close. “Não era difícil conviver com Holmes. Era um sujeito sossegado e com hábitos muito regulares. Era raro encontrá-lo em pé depois das dez da noite e, invariavelmente, quando eu levantava pela manhã, já tinha tomado café e saído. As vezes, passava o dia no laboratorio químico; outras, na sala de dissecação, e havia ocasiões em que dava longas caminhadas às partes mais baixas da cidade. A energia de Holmes, quando mergulhava no trabalho, era insuperável. Mas, depois, sobrevinha-lhe uma reação e ele passava os dias estirado sobre o sofá da sala, sem articular uma palavra e sem mover um músculo da manhã à noite. Nesses períodos, percebia uma expressão tão vaga e onírica em seus olhos, que teria suspeitado do uso de algum narcótico, se a sobriedade e a correção de sua vida não me impedissem de pensar tal coisa. À medida que as semanas passavam, meu interesse por ele e a curiosidade pelos objetivos de sua vida cresciam cada vez mais. Ele próprio, com sua aparência, chamava a atenção do observador mais casual. Media em torno de um e oitenta de altura, mas era tão magro que dava impressão de ser ainda mais alto. Seu olhar era aguçado e penetrante, a não ser naqueles períodos de torpor a que já me referi. O nariz, fino e adunco como o de um falcão, dava ao semblante um ar de vivacidade e decisão. Também o queixo, quadrado e proeminente, caracterizava-o como homem de determinação. Suas mãos estavam sempre manchadas com tinta e produtos químicos, mas seu toque era muito delicado, conforme pude observar inúmeras vezes, enquanto ele manipulava seus frágeis instrumentos de alquimista. (...) Holmes não estudava medicina. Ele próprio, em resposta a uma pergunta, confirmara a opinião de Stamford a esse respeito. Tampouco parecia ter freqüentado qualquer curso que lhe tivesse dado um título em ciência ou qualquer outro crédito que garantisse sua entrada no mundo acadêmico. No entanto sua dedicação a certos estudos era notável e, embora limitado a temas excêntricos, seu conhecimento era de extensão e minúcias extraordinárias. Suas observações me deixavam impressionado.”11 11
(Idem. Pg. 27)
22
Desse modo as impressões do narrador e a descrição do personagem principal é realizada, tanto em Poe quanto em Doyle. Contudo, Agatha Crhistie parece não seguir a mesma linha de apresentação. Embora o narrador de O Misterioso Caso de Styles, obra em que o detetive belga aparece pela primeira vez, seja também amigo deste, e realize a narrativa assim como os outros “fiéis escudeiros”; um documentador “oficial” do caso, Aghata Crhistie parece não seguir essa linha, uma vez que, Ercule Poirot, na maioria das obras que protagoniza, geralmente trabalha sozinho, ou com “companheiros” diversos, não tendo um parceiro definitivo, como Holmes e Dupin. “O intenso interesse despertado no público pelo que ficou conhecido na época como o "Caso Styles" está, de certa forma, esquecido. Todavia a opinião pública ainda dá certa atenção ao assunto; eu tenho pedido tanto para meu amigo Poirot quanto para a família, para que pudesse escrever um relato sobre a história. Isto, nós acreditamos, silenciará os rumores sensacionalistas que ainda persistem. (...) Lembrome de um homem na Bélgica, uma vez, um famoso detetive, ele que despertou esse interesse em mim. Ele era um sujeito brilhante, afirmava que para cada tipo de caso havia um método a ser empregado. Meu sistema é baseado no dele, só que eu estou muito mais longe de ser promovido. Ele era um homem muito divertido, grande humorista, mas absurdamente talentoso e inteligente. (...)Poirot era um homem extremamente baixinho. Não deveria ter mais do que 1,60m, mas tinha seu orgulho próprio e andava de cabeça erguida. Sua cabeça tinha o exato formato de um ovo, mas ele nunca ligou para isso. Tinha um estilo militar; a limpeza de suas roupas era de invejar, acredito que causaria mais dor nele uma mancha de sujeira do que um tiro. Este homenzinho esquisito, que mancava um pouco, foi na sua época um dos melhores membros da polícia Belga. Como detetive tinha um talento extraordinário, conseguindo resolver casos complexos e emaranhados.”12
Poirot se diferencia dos outros dois detetives em vários aspectos: não possui um aspecto físico longilíneo, característica da intelectualidade, e tão pouco um desapego (ainda que involuntário) dos bens materiais, indício do homem devotado à ciência e não à posse. É, pelo contrário, de situação abastada, tendo ficado muito rico com os casos que resolvia; não pelo simples prazer intelectual, como Dupin. Por ser rico não precisa dividir um imóvel com outra pessoa, como nos dois casos anteriores. É descrito em muitas obras de Christie como estando em viagem de férias ou simplesmente hospedado em hotel ou casa de amigos. Não é excêntrico como Dupin e Holmes, embora seja mais vaidoso e egocêntrico do que ambos. E, diferente dos anteriores, rompendo com o paradigma de Poe, já fez parte da polícia (um fator importante) e possui um método de investigação diferenciado, como veremos mais a frente. 12
CRHISTIE, Agatha. O Misterioso Caso de Styles. Trad. Sylvio Monteiro. São Paulo: Ed. Círculo do Livro,2000.
23 Uma observação pertinente a respeito do principal personagem da narrativa policial é a sua característica de herói. De acordo com Aristóteles em sua obra Poética, o herói é o protagonista da arte dramática e da epopeia, e é superior ao ser humano comum e mediano, no que diz respeito ao caráter, força e inteligência. Tomando como exemplo o tão conhecido herói clássico Édipo, podemos observar esses fatores. Édipo é superior a seus compatriotas no que diz respeito ao caráter (pois tenta a todo custo evitar seu fatídico destino, de matar o próprio pai e desposar sua mãe); é também superior no que diz respeito a força (consegue matar os ladrões e também o rei e seus servos na estrada); e a inteligência (vence a esfinge graças ao intelecto superior, conseguindo decifrar o enigma e forçando o monstro a se atirar no mar). O herói da narrativa policial se aproxima do herói trágico em um aspecto, o do intelecto superior. O detetive não é completamente superior ao ser humano normal e mediano, nem em caráter (uma vez que, mesmo sendo muitas vezes nobre, sua nobreza não é tal que esteja além das possibilidades de um homem normal; não é um aspecto do detetive que salta aos olhos), e nem em força (principalmente nos casos de Dupin e Poirot; quanto a Holmes, este domina o boxe e o baritsu, e tem a fama de bom lutador, contudo, não o suficiente para o colocar acima do homem normal), no entanto, no que diz respeito a inteligência o herói moderno se aproxima do clássico. “Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós, ocupados com os próprios pensamentos, havia já uns quinze minutos que nenhum dos dois dizia uma só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras: “- A verdade é que ele é mesmo um sujeito muito pequeno e daria mais para o Théâtre des Variétés.” Não pode haver dúvida alguma a respeito - respondi, inconscientemente , e sem reparar, a princípio (tão absorto estivera em minha meditação), a maneira extraordinária pela qual as palavras de meu companheiro coincidiam com o objeto de minhas reflexões. Um instante depois dei-me conta do fato e meu espanto não teve limites. “- Dupin - disse eu, com gravidade -, isto passa as raias de minha compreensão. Não hesito em dizer que estou maravilhado e mal posso dar crédito a meus sentidos. Como é possível que soubesse você que eu estava pensando em...” Aqui me detive, para certificar-me, sem sombra de dúvida, se ele realmente sabia em quem pensava eu. “- Em Chantilly - disse ele. - Por que parou? Não estava você justamente a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à representação de tragédias?” Era esse precisamente o assunto de minhas reflexões. Chantilly era um antigo sapateiroremendão da Rua São Diniz, que, fanático pelo teatro, atrevera-se a desempenhar o papel de Xerxes, na tragédia de Crébillon, do mesmo nome, tendo por isso merecido críticas violentas. “- Diga-me, pelo amor de Deus - exclamei -, qual foi o processo... se é que há algum... que o capacitou a sondar o íntimo de minha alma.” Eu estava, na verdade, mais surpreso do que desejava parecer. “- Foi o fruteiro - respondeu meu amigo quem levou você à conclusão de que o remendador de solas não tinha bastante altura para o papel de Xerxes et id genusomne.”(e para nenhum de sua classe N.T.) “- O fruteiro?! Você me assombra! Não conheço fruteiro de espécie alguma.” “- O homem que lhe deu um encontrão quando entramos nesta rua, há talvez uns quinze minutos.” Lembrei-me então que, de fato, um fruteiro, carregando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase me derrubara
24 acidentalmente, quando havíamos passado da Rua C*** para a avenida em que nos achávamos. Mas o que tivesse isso que ver com Chantilly é o que eu não podia compreender. Não havia em Dupin uma partícula sequer de charlatanice. “- Vou explicar - disse ele -, e, para que você possa compreender tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo curso de suas meditações, desde o momento em que lhe falei até o do encontrão com o tal fruteiro. Os elos mais importantes da cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro.” Há bem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de sua vida, procurado divertir-se; remontando os degraus pelos quais atingiram certas conclusões particulares de suas idéias. Esta ocupação é, não poucas vezes, cheia de interesse e o que a experimenta pela primeira vez fica admirado diante da aparente distância ilimitada e da incoerência que há entre o ponto de partida e a chegada. Qual não foi, pois, o meu espanto, quando ouvi o francês falar daquela maneira, e não pude deixar de reconhecer que ele havia falado a verdade. Continuou: “Estávamos conversando a respeito de cavalos, se bem lembro, justamente antes de deixar a Rua C***... Foi o último assunto que discutimos. Ao cruzarmos na direção desta avenida, um fruteiro, com um grande cesto sobre a cabeça, passando a toda pressa à nossa frente, lançou você de encontro a um monte de pedras, empilhadas no lugar onde estão consertando o calçamento. Você pisou em uma das pedras soltas, escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu aborrecido ou contrariado, resmungou uma palavras, voltou-se para olhar o monte de pedras e depois continuou a caminhar em silêncio. Não estava particularmente atento ao que você fazia, mas é que a observação se tornou para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. Você manteve os olhos fixos no chão, olhando com expressão mal-humorada os buracos e sulcos do pavimento (de modo que você continuava pensando ainda nas pedras), ate' que alcançamos a pequena Travessa Lamartine, que foi calçada, a título de experiência, com tacos de madeira solidamente reajustados e fixos. Ali, sua fisionomia se iluminou e, percebendo que seus lábios se moviam, não tive duvida em que você murmurava a palavra" estereotomia", termo demasiado pedante que se aplica a essa espécie de calçamento. Sabia que você não podia dizer consigo mesmo a palavra "estereotomia" sem vir a pensar em átomos e portanto teorias de Epicuro. Como não faz muito tempo que discutimos este assunto, lembro-me haver mencionado quão singularmente, embora muito pouco notado , as vagas conjeturas daquele nobre grego tinham tido confirmação com a recente cosmogonia nebular, e vi que você não que não erguesse os olhos para a grande nebulosa de Órion, coisa que eu esperava , você não deixaria de fazer. Você olhou, pois, para cima e tinha então a certeza de haver acompanhado estritamente o fio de suas idéias. Naquela crítica ferina que apareceu a respeito de Chantilly, ontem, no Musée, o satirista, fazendo algumas maldosas alusões à mudança de nome do remendão ao calçar coturnos, citou um verso latino, a respeito do qual temos tantas vezes conversado. Refirome ao verso: Perdidit antiquum litera prima sonum. (a antiga palavra perdeu sua primeira letra N.T.) Eu havia lhe explicado a você que este verso aludia a Órion, que antigamente se escrevia Urion, e, por causa de certa mordacidade ligada a esta explicação, estava eu certo de que você não poderia tê-la esquecido. Era, portanto, bem claro que você não deixaria de combinar as duas idéias de Órion e Chantilly. Que você as havia combinado vi pela espécie de sorriso que lhe pairou nos lábios. Pensou na imolação do pobre remendão. Até então estivera você a caminhar meio curvado, mas naquele momento você se endireitou, ficando bem espigado, a toda a altura. Certifiqueime então de que estivera pensando na pequena estatura de Chantilly. Neste ponto, interrompi suas meditações para observar que, como, de fato, era ele um sujeito muito baixo, o tal Chantilly daria melhor para representar no Théâtre des Variétés.”13
13
POE, Edgar Alan. Ficção completa, poesia e ensaios. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1986. Pg. 70.
25 A citação acima é um exemplo do método de raciocínio utilizado por Dupin em suas investigações. O mesmo método é utilizado pelo detetive Sherlock Holmes, tanto para desvendar seus casos quanto para, em muitas ocasiões, também deduzir os pensamentos de Watson de modo a deixa-lo com a impressão de seu companheiro possuir alguma habilidade paranormal (até Holmes lhe explicar o processo, semelhante ao de Dupin) tal o refinamento da técnica de Sherlock. Apenas Poirot se diferencia um pouco dos demais quanto a metodologia de investigação, cuja base é mais fundamentada na psicologia do que na “ciência da dedução”. É interessante notar que a metodologia de investigação utilizada por Dupin e Holmes, assim como Poirot (em alguns casos), se deve a um fator sociocultural que contribuiu para o surgimento da narrativa policial. Quanto a esse fator, a teórica Sandra Lúcia (1983. Pg. 13, 14) afirma que no final do século XIX uma das linhas de pensamento mais influentes, e também filosofia em voga era o positivismo, desenvolvido pelo francês August Conte, onde se afirmava que todos os fenômenos da natureza são regidos por leis bem definidas; sejam esses eventos físicos ou psicológicos, e, por consequência, o conhecimento dessas leis seria suficiente para explicar qualquer fenômeno observado. Baseado nessa filosofia, e utilizando a já desenvolvida teoria da associação de ideias (Aristóteles e Hume) como lei dos fenômenos do pensamento; Alan Poe dá a seu detetive Dupin uma ferramenta de investigação desenvolvida e acurada, que lhe permite desvendar os mistérios mais intrincados, baseando-se sempre na “lei” da associação de ideias e da “dedução”. O método de Holmes é bem semelhante ao de Dupin, embora Doyle tenha afirmado que este lhe foi ensinado por um de seus professores de medicina, e se baseia quase que exclusivamente em silogismos. Quanto a Hercule Poirot, como dissemos, este se diferencia dos outros no que diz respeito ao sistema de investigação, assim como em outras coisas. Poirot, por já ter sido detetive da polícia belga, investiga como um “detetive”, utilizando principalmente os métodos da polícia, ainda que, graças a seu intelecto muito mais elevado, para ele esse método seja bem mais efetivo do que para os outros policiais, conseguindo assim, por vias diferentes, os mesmos resultados de Dupin e Holmes; desvendar os casos mais intrincados. Quanto ao método principal de Poirot, embora este também utilize em alguns casos o mesmo método de Dupin e Holmes, pois, segundo o próprio “cada tipo de caso exige um método de investigação diferente”; se baseia principalmente no processo de recolher o depoimento dos suspeitos, analisando, durante esse procedimento, o comportamento e as contradições encontradas nos depoimentos,
26 eliminando por um processo de exclusão os menos prováveis de terem cometido o crime, até que reste apenas o culpado. “- Madame, tenho sua permissão para uma pequena reunião na sala? Isso se faz necessário para que fatos sejam esclarecidos. (...) -messieurs, mesdames; como todos sabem eu fui convocado pelo Sr.John Cavendish para investigar este caso. Eu examinei o quarto da falecidaque, por ordem médica, havia ficado trancado; portanto eu o encontreiexatamente como estava na noite da tragédia. Eu encontrei: 1) um fragmentode um material verde; 2) uma mecha no carpete, ainda úmida; 3) uma caixa vazia de comprimidos de brometo. (...) - Olhando para os fatos psicologicamente, cheguei a uma conclusão que achei estar correta. (...)Demonstrando pequena ansiedade ele retira do bolso três pequenos pedaços de papel. - Uma carta escrita pela própria mão do assassino, mes amis! Nela está claro que a Sra. Inglethorp, avisada a tempo, poderia ter escapado. Como aqui está, a Sra. Inglethorp sabia que corria perigo mas não sabia como corria perigo. Frente à um silêncio mortal Poirot juntou os pedaços de papel e, limpando a garganta, leu: "Querida Evelyn: Você deve estar ansiosa por não ter ouvido nada. Está tudo certo, só que será atrasado em uma noite. Você sabe que é bom de uma vez por todas a mulher morta e fora do caminho. Ninguém associará o crime a mim. Aquela idéia sua sobre o brometo foi uma cartada de mestre! Mas devemos ser muito cuidadosos, um passo em falso..." - Aqui, meus amigos, a carta termina. Sem sombra de dúvidas o autor foi interrompido, mas aqui está claro a sua identidade. Nós todos conhecemos esta letra e... Um grito de indignação cortou o silêncio dos espectadores: - Seu Demônio! Como você conseguiu isso?!! Uma cadeira foi derrubada. Poirot apenas virou-se para o lado e disse: Messieurs, mesdames, - disse Poirot explodindo de orgulho - apresento-lhes o assassino: Alfred Inglethorp! (...)- A Sra. Inglethorp não está em casa, então ele se senta para escrever para sua cúmplice que, pensa ele, está apavorada pelo não-sucesso de seus planos. Provavelmente a Sra. Inglethorp retorna antes do esperado, e ele é pego de surpresa; esconde o pedaço da carta na gaveta de sua mesa e a tranca. Ele teme que se permanecesse na sala teria de abri-la de novo, e assim a Sra. Inglethorp descobriria tudo. Então ele sai e vai caminhar pelo campo, nem sonha que a Sra. Inglethorp irá abrir sua gaveta e assim descobrir o documento incriminativo. - Mas isso, pelo que nós sabemos, foi justamente o que aconteceu. A Sra. Inglethorp lê a carta e fica horrorizada ao saber que seu marido e Evelyn Howard planejavam sua morte. A frase do brometo nada significou para ela. Ela sabia que corria perigo, mas nem fazia idéia de onde ele estava. Ela decide não dizer nada a seu marido, senta e escreve ao seu advogado para que venha vê-la na manhã seguinte; decide destruir o testamento, mas mantém a carta fatal.”14
Desse modo, podemos observar que o método de Poirot, se baseia mais na análise psicológica do que na dedução baseada em pistas físicas, embora esta trabalhe em conjunto com a psicologia. Por utilizar vários métodos de investigação, o detetive de Christie parece não ser tão positivista, e alegar que o pensamento é baseado em leis rígidas das quais apenas seu conhecimento é suficiente para desvendá-lo. Pelo contrário, 14
CRHISTIE, Agatha. O Misterioso Caso de Styles. Trad. Sylvio Monteiro. São Paulo: Ed. Círculo do Livro, 2000. Pg. 73.
27 Poirot, principalmente ao longo de seu desenvolvimento em obras posteriores, se diferencia cada vez mais de Dupin e Holmes, tomando consciência de que a psicologia humana é muito mais complexa do que uma simples cadeia de associação de ideias. Outro fator importante a se considerar no que diz respeito a construção do personagem é o fato de todos serem detetives, contudo, nem Dupin, nem Holmes e Poirot são policiais, embora, novamente Poirot se diferencie dos anteriores por já ter pertencido à polícia belga. A esse respeito, Sandra Reimão acrescenta: “Outra coisa que raramente questionamos é sobre a origem da policia: parece ter sempre existido, mas, na realidade, surgiu no século XIX. É no século XIX que se desenvolverá a polícia, na acepção contemporânea do termo. No início do século XIX, os policiais franceses eram recrutados entre os ex-condenados e um de seus chefes era o ex-condenado mais famoso de todos — Vidocq (17751857) —, que em 1828 lança suas memórias. Memórias estas importantes do ponto de vista dos primórdios da narrativa policial, pois será em oposição a este tipo de investigador que Poe criará seu detetive Dupin. Vidocq, assim como os policiais do início do século, sendo um ex-contraventor, conhece por dentro o mundo dos crimes e os investiga empiricamente, convivendo com os criminosos, e através dessa convivência é que este policial constrói suas investigações e chega a desvendar os crimes que lhe são apresentados.” 15
Isso explica o fato de nenhum dos detetives consagrados na literatura policial ser membro efetivo da polícia, pois seguindo a trilha de Poe, Dupin e os outros detetives estabelecem um contraponto ao policial dos primórdios dessa instituição, que na verdade era um ex-criminoso. Os detetives não precisam pensar como os criminosos e nem conviver com os mesmos para estabelecerem suas linhas de investigação; posto que são heróis, de habilidades acima do ser humano comum e mediano, se apoiam em um método muito mais efetivo e em seu raciocínio e intelecto muito mais desenvolvido do que o do policial comum. Compreendendo as cadeias do pensamento geral, compreendem também a psicologia do criminoso sem precisar conviver com o mesmo, assim como Édipo não precisou conviver com a esfinge para decifrar seu enigma. A partir do que foi dito podemos estabelecer algumas considerações gerais a respeito do principal personagem da narrativa policial: o detetive. Inicialmente constatamos que esse é um personagem de uma literatura baseada nos primórdios do jornalismo sensacionalista, e por isso aborda justamente os casos trágicos e enigmáticos que atraiam a atenção da maioria dos leitores: roubos e 15
REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é Romance Policial. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. P. 12.
28 assassinatos grotescos (como observado em Os Crimes da Rua Morgue). O detetive é justamente o personagem que desvenda o mistério e encontra o culpado, por isso, estabelece o contraponto com o detetive real, que era recrutado dentre ex-criminosos e convivia com os mesmos e com contraventores para desenvolver sua investigação, que era muitas vezes falha e ineficaz; suscetível de erro por sua falha metodológica. Por isso, não sendo policial, o detetive da narrativa policial necessita de um método de investigação que seja diferente do utilizado pelo policial vulgar, e é justamente a filosofia positivista (em voga na época do surgimento de tal literatura) que irá fornecer o método, baseado em leis rígidas e funcionais, cuja compreensão possibilita a explicação dos fenômenos por elas regidos. Essas são as características gerais desse cativante personagem que, com poucas variações (como as observadas em Dupin, Holmes e Poirot), permanece basicamente o mesmo. Tendo analisado, ainda que de forma breve, o principal personagem da narrativa policial, vamos passar agora a uma visão geral do que é essa narrativa propriamente dita e de suas principais características.
2. O Caso.
Nas três narrativas apresentadas, que se referem aos primeiros casos dos detetives que analisamos, podemos observar os seguintes aspectos: 1°. O narrador inicia a história a partir de seu próprio trajeto até o momento do encontro com o detetive (característica presente em geral na narrativa em que o detetive é apresentado); 2°. O
29 narrador faz um relato do crime, ou seja, descreve o momento em que o enigma é apresentado ao detetive (aspecto presente na maioria das narrativas policiais); 3°. O narrador faz um relato da investigação e da solução apresentada pelo detetive no desfecho da obra. Quanto ao primeiro aspecto, observamos que nas três narrativas vistas anteriormente, é exatamente isso o que acontece. Em Os Crimes da Rua Morgue, o narrador anônimo descreve sua ida para Paris e o encontro com Dupin em uma livraria, a empatia surgida entre ambos e a mudança para a residência do detetive (que se encontrava em dificuldade financeira), a amizade e os hábitos que surgem dessa convivência, e por fim a apresentação do enigma. Em Um Estudo em Vermelho acontece o mesmo; Watson descreve suas experiências como médico militar no Oriente, sua ruina financeira e ida para Londres, o encontro com um amigo em um bar, o mesmo que apresenta-o a Holmes, a empatia surgida entre este e Watson e a mudança para Baker Street 221 B, um relato da convivência e dos hábitos excêntricos de Holmes e por fim a apresentação do enigma. Já em O Misterioso Caso de Styles; Hastings, o narrador, deixa a clínica onde estava internado e hospeda-se na casa da família de um antigo amigo, descreve as pessoas e os relacionamentos conturbados devido as circunstâncias do momento, fala sobre sua vocação para detetive e a influência de um Belga em sua escolha de profissão, continua o relato dos acontecimentos até o encontro casual com Poirot e a descoberta de que este também conhece as pessoas envolvidas nos acontecimentos, por fim ocorre a tragédia e tem início a investigação. Apenas a terceira narrativa, embora seja a primeira obra de Christie e também a primeira na qual o detetive Poirot é apresentado, não segue as anteriores; embora o narrador também inicie a história com um breve relato de sua própria trajetória, o que ocorre em seguida não é o encontro com o detetive, e sim um relato dos fatos que precedem o crime. As outras narrativas da “Rainha do Crime”, principalmente as que relatam as aventuras do detetive Poirot, costumam seguir essa linha, onde o enigma não é apresentado logo de início. Até agora é possível perceber que o 1° fator não diz respeito ao gênero da narrativa policial, ou seja, não é um aspecto característico desse tipo de narrativa, e sim um acontecimento casual (diz respeito apenas as narrativas na qual o detetive é apresentado). Porém, os 2° e 3° fatores realmente são características do gênero policial. Com relação a isso, o crítico Tzvetan Todorov afirma:
30 “Já houve várias tentativas de precisar as regras desse gênero; mas a melhor característica global nos parece ser a que nos dá Michel Butor em seu romance L’emploi du temps. George Burton, autor de numerosos romances policiais, explica ao narrador que ‘todo romance policial se constrói sobre dois assassinatos; o primeiro, cometido pelo assassino, é apenas a ocasião do segundo no qual ele é vítima do matador puro e impune, do detetive’, e que ‘a narrativa... superpõe duas séries temporais: os dias do inquérito, que começam com o crime, e os dias do drama que levam a ele’. Na base do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar para descrevê-lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do crime e a história do inquérito.”16
É exatamente o que acontece na narrativa policial, ou “de enigma”, como o próprio autor classifica. Percebemos isso de maneira mais marcante nas narrativas de Christie e Doyle, onde a história do crime e a do inquérito estão claramente delimitadas, principalmente em Um Estudo em Vermelho, onde ocorre um recorte temporal afim de explicar as circunstâncias que levaram ao crime. Quanto a essa divisão da narrativa em duas histórias, Todorov continua: A primeira história, a do crime, terminou antes de começai a segunda. Mas que acontece na segunda? Pouca coisa. As personagens dessa segunda história, a história do inquérito, não agem, descobrem. Nada lhes pode acontecer: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive. Não se pode imaginar Hercule Poirot ou Philo Vance ameaçados por um perigo, atacados, feridos, e ainda menos, mortos. As cento e cinquenta páginas que separam a descoberta do crime da revelação do culpado são consagradas a um lento aprendizado: examina-se indício após indício, pista após pista. O romance de enigma tende assim para uma arquitetura puramente geométrica: Murder on the Orient Express (Agatha Christie), por exemplo, apresenta doze personagens suspeitas: o livro consiste em doze, e de novo doze interrogatórios, prólogo e epílogo (isto é, descoberta do crime e descoberta do culpado). Essa segunda história, a história do inquérito, goza pois de um estatuto todo particular. Não é por acaso que ela é frequentemente contada por um amigo do detetive, que reconhece explicitamente estar escrevendo um livro: ela consiste, de fato, em explicar como essa própria narrativa pode ser feita, como o próprio livro é escrito. A primeira história ignora totalmente o livro, isto é, ela nunca se confessa livresca (nenhum autor de romances policiais poderia permitir-se indicar ele mesmo o caráter imaginário da história, como acontece na literatura). Em compensação, a segunda história deve não só levar em conta a realidade do livro, mas ela é precisamente a história desse livro. Podem-se ainda caracterizar essas duas histórias dizendo que a primeira, a do crime, conta “o que se passou efetivamente”, enquanto a segunda, a do inquérito, explica “como o leitor (ou o narrador) tomou conhecimento dela”.17
Observamos esse fato no início das três narrativas analisadas, onde o narrador claramente reconhece estar “relatando” ou “documentando” os eventos ocorridos. Como disse Todorov, a primeira história (a do crime), desconhece o livro, ou seja, é um evento 16
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006. Pg. 95,96. 17 (Idem. Pg. 96, 97.)
31 tido a priori como não-ficcional. Podemos dizer isso com base nas circunstâncias observadas a respeito do surgimento desse gênero, baseado em notícias sensacionalistas de jornais; ou seja, relatos não ficcionais. Desse modo, o que o narrador faz é publicar o crime ocorrido (primeira história) e escrever um livro relatando todo o inquérito que levou a solução e captura do culpado (segunda história), tendo autoridade para tal, devido a sua amizade com o detetive, e conhecimento/participação no inquérito. Sandra Lúcia Reimão concorda com Todorov, quando afirma: No romance enigma, a primeira história (a do crime não estando imediatamente e presente no livro, as investigações (e a narrativa) começam após o crime, presente na narrativa através da narração dos personagens diretamente envolvidos nele; a segunda história (a do inquérito ou investigação) é o espaço onde os personagens, especialmente o detetive e o narrador, não agem, mas simplesmente detectam e investigam uma ação já consumada. Essas características de cada uma das duas histórias, nessa dupla história, presentes em Poe, serão, sem dúvida, a estrutura básica de todo o romance enigma-clássico, estrutura que enfatizará, em última instância, não o próprio crime (primeira história), mas a forma de apreensão do detetive sobre uma ação passada, a forma de investigação, de condução do inquérito (segunda história). É nesse espaço da ambiguidade, entre o real ausente (o crime) e a presença do insignificante (o inquérito insignificante, já que não existe "em si", mas apenas em função de um determinado crime),que se construirá a narrativa policial clássica. Encontramos, também, no chamado romance enigma, assim como nos contos policiais de Poe, uma das consequências básicas dessa estrutura: imunidade do detetive. Uma vez que os personagens da segunda história, a do inquérito, não agem, mas apreendem sobre uma ação passada, e que as narrativas são elaboradas em forma de memória, via de regra, pelo amigo ou memorialista do detetive central, diminuem, em princípio, as possibilidades de o detetive morrer ou sofrer grandes danos no desenrolar da narrativa.18
Desse modo, temos na narrativa policial duas histórias distintas. A primeira (do crime) que é re-contada pelo narrador, é uma história “real” e ao mesmo tempo ausente, pois a narrativa inicia apenas após os eventos ocorridos. A segunda (a investigação) é documentada pelo narrador no livro que este escreve, a fim de esclarecer os fatos e indicar como o mistério foi solucionado pelo detetive; é, como afirmam Todorov e Reimão, apenas o processo de aprendizado. Esses aspectos tornam possível o seguinte esquema, semelhante ao de Reimão: 1 ª. história Crime: ausente, real. Principais personagens: 18
vítima
2ª. historia Investigação: presente, processo de aprendizado. criminoso detetive narrador
REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é Romance Policial. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. Pg. 23, 24.
Conteúdo:
ação (o crime)
Tomada de consciência da ação em todos os seus aspectos (o inquérito)
32 Desse modo, temos um esquema geral da estrutura da narrativa policial clássica, que, como diz Todorov, tem uma forte tendência à “arquitetura puramente geométrica”. E percebemos que nas três narrativas observadas, com uma ou outra variação, tanto Poe, quanto Doyle e Christie tendem a seguir essa geometria.
Considerações finais
Nas breves linhas deste trabalho, percebemos que a popularidade da narrativa policial se deve a um interesse mórbido pela tragédia e o mistério, que parecia ser um fator de grande influência nas populações citadinas, cuja leitura habitual era as matérias sensacionalistas sobre crimes violentos e não solucionados; preferência essa que não mudou muito dês de o século XIX até os dias atuais. Este foi um dos fatores decisivos para o surgimento do subgênero policial. Outros fatores contribuíram fortemente para a criação do principal personagem desse subgênero: o detetive. Vimos que este, é um investigador, embora não seja policial; se aproxima do herói clássico por sua habilidade mental acima do comum; seu método de investigação se baseia na filosofia positivista, nas regras de associação de ideias e silogismo; o detetive é praticamente imune uma vez que a narrativa, quando
33 relatada pelo narrador, já é um fato passado, ou seja, apenas um processo de “apropriação dos fatos”, posto que a “ação” já ocorreu. Essas características foram vistas em três dos maiores detetives da literatura: Dupin, Holmes e Poirot. Outro fator de grande importância na narrativa policial é o narrador. Observamos que essa narrativa ocorre sempre pelo ponto de vista do narrador, que é uma espécie de biógrafo ou documentador oficial do caso, e se confessa sempre um escritor que, pela sua proximidade do detetive (companheiro, amigo, etc.) e participação no inquérito, pode relatar os fatos exatamente como aconteceram. Esta necessidade ocorre uma vez que o mistério deve ser mantido até o final da narrativa pela necessidade do suspense, por isso o leitor não deve conhecer inteiramente o processo mental do detetive e nem a solução do mistério até o momento que este é revelado pelo investigador. Fato pelo qual o narrador, embora sagaz e de posse das mesmas pistas, nunca é mais ou tão quão esperto quanto o detetive. Ademais, o narrador exerce a função de “câmera”, que acompanha o detetive durante o inquérito, é como os olhos do leitor. Já, no que diz respeito à narrativa propriamente dita, percebemos que ela tende a obedecer a uma estrutura regular. Em geral é composta por duas histórias: a que trata do crime e a do inquérito, e são duas histórias distintas, como ressaltamos na obra de Doyle: “Um Estudo em Vermelho”. Inicialmente o narrador comenta a sua relação com o detetive ou algum episódio desta, em seguida é apresentado ao investigador o enigma que este deve resolver (em geral um crime que já ocorreu, um assassinato ou um roubo), e logo em seguida ocorre o inquérito, ou a investigação, onde as pistas são encontradas e analisadas sucessivamente, até que o investigador esteja de posse da real solução do mistério e apresente o culpado. Esta leitura a respeito da narrativa policial, embora breve, abordou os principais aspectos desse subgênero tão popular. Embora existam tantos autores conhecidos e detetives consagrados, tomamos como exemplo apenas os três citados, por julgarmos serem os mais renomados, sobretudo Holmes; assim como as três obras, por serem as primeiras nas quais esses detetives aparecem. Contudo, essa análise ainda pode ser estendida e aprofundada em outra ocasião mais propícia, pois julgamos dar apenas poucos passos em direção a essa literatura tão rica e fascinante: a policial.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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