O amor na teoria de Jacques Lacan O gozo pleno, oriundo da mãe, é interditado pelo pai. A partir partir daí, o homem vive uma busca constante por sanar sua incompletude. Cada mulher é uma tentativa, sempre fracassada, de saciar seu desejo primordial.
Walter Cezar Addeo Tão célebre uanto o desabafo de !reud uando perguntou e"asperado # $afinal, o ue uerem as mulheres%$ &' ele realmente não sabia( #, foram duas frases de )acues *acan ao enunciar ue $a rela+ão se"ual não e"iste$ e, finalmente, ue $a mulher não e"iste$. ois parado"os, aparentemente, uma vez ue a humanidade se mantém por intermédio do ato se"ual e as mulheres representam metade da espécie humana. -ara esclarecer essa uestão, teremos de refazer alguns percursos da teoria lacaniana e colocar alguns personagens ficcionais em seu divã a título de ilustra+ão. 'm seu seminrio intitulado A Transfer/ Transfer/ncia, ncia, )acues *acan &0120#0130( far uma belíssima e"egese do te"to conhecido como O banuete, em ue -latão nos apresenta 45crates falando sobre o amor, sobre o desejo e onde encontramos a g/nese de um dos conceitos lacanianos fundamentais para sua teoria # $o objeto a$ # este estranho dispositivo ue arrastar o desejo humano para uma deriva sem fim, mesmo tentando ancor#lo em solu+6es parciais. o ue trata esse dilogo plat7nico% -rimeiramente, ele nos é contado em terceira mão. -latão não estava presente uando os fatos aconteceram. 'le ouve o relato da boca de Apolo do roue, por sua vez, o ouvira de Aristodemo, o ual participara efetivamente do simp5sio oferecido por Agatão. 8esse simp5sio, falaram -aus9nias, 'ri"imaco, Arist5fanes, o pr5prio anfitrião Agatão e finalmente 45crates. Todos Todos falam sobre o amor ue é o tema escolhido para auela noite. Alcibíades faz uma entrada tardia e coloca 45crates numa situa+ão delicada ao revelar a rela+ão amorosa e de admira+ão ue ambos teriam um pelo outro. *acan ir analisar cada uma dessas falas, privilegiando o dilogo final entre 45crates e Alcibíades ue nos apresentar o termo $Agalma:, uma das primeiras formula+6es do ue ser futuramente o $objeto a:. ;nteressa#nos apenas uma em especial. A fala de 45crates, ue na verdade, não seria propriamente dele, pois ele estaria apenas relatando o ue ouvira de iotima
de
m relato psicol5gico sobre a g/nese do amor ue espanta pela arg=cia e modernidade, ao ponto de *acan o recuperar por completo em sua clínica. ?ejamos o relato
" A libertação do desejo conduz à paz interior " LAO-T! iotima conta ue 'ros, o deus do amor, foi gerado no dia em ue nasceu Afrodite, uando os deuses participavam de um banuete. 'ntre eles estava -oros, filho de <étis, também chamado de $o astucioso$, $auele ue tem e"pediente$, ue, completamente embriagado com néctar, entrou no jardim de @eus e adormeceu. 'ste nome, etimologicamente, também remete ideia de uma abertura, uma passagem, uma travessia, enfim, um furo, um vazio. Terminado o jantar dos deuses e apesar de não ter sido convidada, aparece -enia ue veio mendigar restos do festim. -enia é a personifica+ão da pobreza, da car/ncia. 'timologicamente provém de um verbo ue significa $afligir#se$, $trabalhar por necessidade$, $esfor+ar#se com$ e posteriormente também agrega os sentidos de $estar em dificuldade$, $ser pobre$. -enia em sua miséria ao ver -oros embriagado e adormecido desejou ter um filho com ele. eitou#se ao seu lado e concebeu 'ros. 'ros trar consigo as marcas dessa dupla g/nese. e sua mãe -enia, cuja pobreza a define como eterna mendicante, ele herdar uma falta cong/nita e se esfor+ar sempre para obter auilo ue não tem, ou seja, vive sob o emblema de uma car/ncia jamais preenchida, mas ue se esfor+ar por compensar. -ara isso herdou de seu pai -oros a ast=cia e o e"pediente necessrios para tentar conseguir auilo ue não possui.
ros# o deus do amor# nasceu de $enia %car&ncia# pobreza' e $oros %ast(cia') *a dial+tica entre car&ncia e ast(cia mo,e-se o desejo)
essa dialética entre car/ncia e ast=cia move#se o desejo, agita#se 'ros infinitamente. B a matriz l5gica, remota, desse futuro $objeto a$ teorizado por *acan, essa letra ue procura e est sempre no lugar de um $outro$ ue nunca é alcan+ado.0 'm *acan, essa incompletude e car/ncia universalizam#se, atingindo agora toda e ualuer pulsão do desejo.
D 8A4;O, ).. # Cinco li+6es sobre a Teoria de )acues *acan. Eio de )aneiroF )orge @ahar 'ditor,011G, p. 1D
nconsciente Avancemos mais de D mil anos da cena desse anuete para encontrar )acues *acan num dos seus seminrios, denominado O desejo e sua interpreta+ão, em ue ele inicia a conceptualiza+ão do ue chamou inicialmente de $peueno objeto a$, tema ue além de ser um desdobramento do conceito de $o 8ome#do#-ai$ remeteu o inconsciente para uma leitura definitivamente linguística. *acan entender o inconsciente radicalmente estruturado como uma linguagem, e isso ter conseu/ncias sérias tanto na prtica psicanalítica uanto na teoria linguística, abrindo duas frentes de batalha. -or corresponder a um inconsciente entendido como falta, a linguagem, ela mesma, ser para sempre incompleta em sua significa+ão. 'ntre a nomea+ão das coisas e sua significa+ão haver sempre uma sutura mal feita. Assim, nenhum significante comportar um significado completo e irredutível, mas deslizar constantemente por uma cadeia de significantes arbitrrios, sem nunca ter fim. 45 uma atitude comandada pela necessidade pragmtica de comunica+ão é ue pode interromper, barrar esse sentido sempre em aberto do significante e faz/#lo cristalizar#se por algum tempo.
a ser &conforme o lé"ico lacaniano(, colocando no lugar algo sobre o ual o sujeito pode falar. Assim, o sujeito desejante desenvolver certa ast=cia ao tentar aprisionar brevemente esse astuto objeto $a$ em alguma forma transit5ria de satisfa+ão, de gozo. >ma ast=cia destinada sempre a ser uma compensa+ão e ue instaura apenas uma satisfa+ão parcial, metonímica, diante do desejo. -ortanto, uma rela+ão de substitui+ão ue transformar todo $objeto a$, escolhido pelo sujeito desejante, num fantasma. ' a maior fantasmagoria eleita pelo masculino ser o do feminino, visado como objeto de gozo total, impossível de ser completado.
A maior .antasma/oria eleita pelo masculino ser0 o do .eminino# ,isado como objeto de /ozo total# imposs1,el de ser completado 'ste gozo total pertenceria ao desejo pela mãe, interditado e castrado simbolicamente na estrutura+ão do Bdipo uando a crian+a desiste da mãe, da rela+ão incestuosa com essa mulher ue $pertence$ ao -ai e ue lhe é interditada pela *ei do -ai. 'ssa inst9ncia de interdi+ão I o tabu do incesto # é introjetada simbolicamente pela crian+a como uma forma de castra+ão e, imediatamente, na tese lacaniana, esse interdito ue tem raízes antropol5gicas passa a ser denominado de $O 8ome#do#-ai:. Ao introjetar essa *ei do -ai ue proíbe o incesto com a mãe # seu objeto primrio de desejo, de gozo total # a crian+a agora se inscreve na ordem cultural ue emana desse 8ome#do#-ai. *eis normativas ue o definirão como um ser social ue aceitou essa castra+ão para se inserir na ordem da cultura e a uem faltar para sempre esse falo simb5lico ao ual, miticamente, todas as f/meas pertenceram um dia e ue, agora, pertence ao pai ue lhe interdita e o castra com rela+ão mãe e cujas fun+6es ele procurar recuperar parcialmente por meio de $objetos a$ metonímicos. O falo neste conte"to ser sempre o significante de uma falta. 8esse sentido é ue se pode entender a frase de *acan uando diz ue a $rela+ão se"ual não e"iste$. Eealmente, como Jrela+ão total$, como recupera+ão de um $gozo total$, esta rela+ão estar para sempre interditada ao masculino. Aui a mulher se apresenta, radicalmente, como um $inteiramente outro$ para o homem ao ual ele não teria acesso, uma vez ue ela não participa dessa síndrome da castra+ão original, não precisou introjetar uma perda simb5lica abissal para se constituir como sujeito. Komens e mulheres realmente não são iguais na rela+ão se"ual. -ortanto, é essa possibilidade de rela+ão simétrica ue é declarada
ine"istente. Afinal, como j se disse, $o Bdipo produz o homem, não produz a mulher$.G G 4O*'E, Colette # O ue *acan dizia das mulheres. Eio de )aneiroF )orge @ahar 'ditor, D22L, p.0M
A 2ul3er 4ão 5iste B famosa a apropria+ão de *acan do conto de 'dgar Allan -oe intitulado A carta roubada, em ue ele mostra ue assim como o sentido =ltimo dos significantes nunca é alcan+ado, esta carta roubada também tem vrios destinatrios e nenhumN seu conte=do nunca pode ser apropriado inteiramente, mantendo se apenas como uma potencialidade de sentido e, no caso do conto de -oe, uma potencialidade de poder para uem a possui.
#-erto demais. *acan concordaria com o acréscimo. -erto demais, a mulher torna#se ainda mais ine"istente para o masculino.
6is1,el e oculto ;nicialmente, o roteiro cria profiss6es emblemticas ue j definem o ue acontecer com o relacionamento dos amantes. an é um jornalista encarregado da se+ão de obiturios. 'le mesmo conta como os obiturios são redigidos para esconderem sempre a pessoa real. O ue de fato as pessoas foram na vida não importa nos obiturios.
realizado. 8este jogo de espelhos falsos, de miradas falsas, ela é um euívoco desde o início do filme. )ane, desde seu primeiro encontro com an, usa um nome falso # Alice. O relacionamento dos dois j inicia com uma Alice ue não e"iste. B emblemtico ue a primeira frase ue Alice dirige a an, logo no início do filme, seja $Ol estranhoP$. O filme ser justamente sobre esse eterno estranhamento entre homens e mulheres dentro da cultura. A rela+ão deles ser, portanto, um labirinto de apro"ima+6es falsas. 'les estão obcecados em fazer se"o com elas e saber dos detalhes er5ticos uando elas os traem. Claro, tudo temperado com o prete"to de ue as amam acima de tudo. ;sso não impede ue eles atraiam. ' vice#versa.
O 3omem est0 preso à .antasia ori/inal de desejo por todas as mul3eres e por aquela mãe interditada que pertenceu ao $ai m1tico 8esse sentido, é lapidar a cena em ue os dois homens acessam a internet, numa dessas salas de encontros, e um deles finge ue é uma mulher. O namoro virtual logo descamba para uma espécie de se"o virtual. O ue prova ue para o homem basta ue ele tenha uma proje+ão de mulher em sua mente para ue tudo funcione e a rela+ão se"ual se fa+a &daí essa rela+ão, no fundo, ser ine"istente(. Afinal, tudo não passa mesmo de uma fantasmagoria masculina. -ortanto, tanto faz ser uma falsa mulher virtual com uem ele conversa na internet ou uma mulher real ue ele fantasia. Amulhera real não e"iste nunca para o homem. 'st para além de suas possibilidades, uma vez ue ele est preso fantasia original de desejo por todas as mulheres e por auela mãe interditada ue pertenceu ao -ai mítico. Eelaciona#se, então, com suced9neos simb5licos incompletos desse poder do pai. K, portanto, uma impossibilidade ontol5gica de ue esses dois g/neros possam se encontrar realmente. aí a necessidade de uma ret5rica amorosa para ue eles
criem um simulacro de relacionamento.
O masculino estar0 sempre atr0s de um .antasma idealizado de mul3er) *o .eminino que s7 e5iste em sua car&ncia e ,azio) las jamais poderão preenc3er isso Talvez, a cena em ue mais se revele essa fissura entre homem e mulher seja a do clube noturno onde AliceQ)ane faz strip#tease. A figura da stripper é simbolicamente carregada. 'ssa mulher ue se despe completamente para os olhares masculinos estaria, portanto, tão pr5"ima fisicamente dele ue, finalmente, ele poderia dela se apropriar inteiramente. 'ntretanto, nesse momento de apro"ima+ão m"ima é, justamente, uando ela fica mais distante, constituindo#se em simulacro inatingível de desejo e de fantasia. 8o clube, *arr, um dos lados desse uarteto improvvel, pede para v/#la totalmente nua e ainda paga para ue ela e"iba suas partes íntimas, da maneira mais crua. Apro"ima+ão visual m"ima do corpo feminino ue, entretanto, não preenche as frustra+6es e desejos do homem. 'le também paga alto para ue ela lhe diga seu nome verdadeiro. 'la o diz.
em ser o objeto fantasmal deles, encarnando para o homem a significa+ão da castra+ão e, assim, transformarem#se num falo compensat5rio. ' elas sabem disso. -or isso mesmo, fingem ue são as mulheres ue eles pensam ue v/m e amam. Rue uma delas, Anna, introjete essa culpa e impossibilidade de relacionamento real, apenas a faz prisioneira total dessa car/ncia masculina ue na verdade não concerne s mulheres. e certo modo, ela é infeliz porue eles são infelizes com elas e estão a se relacionar sempre com mulheres ine"istentes. -ortanto, a frase de *acan, aparentemente absurda, encontra em Closer sua ilustra+ão. A mulher realmente não e"iste. B a demonstra+ão dessa frase ue pareceu insultuosa s feministas, mas ue, na verdade, revelava o jogo de espelhos falsos na rela+ão do masculino com o feminino. Ambos preenchem momentaneamente e por pouco tempo o vago fantasma ue o $objeto a$ tenta compensar. esses fantasmas é ue cada um # homem e mulher # estão enamorados por algum tempo. 8ão é toa, portanto, ue o filme comece e termine com uma mulher nas ruas envolvida pelos olhares masculinos ue passam. 'sses olhares fugazes e oblíuos as reconstroem muito longe do ue elas realmente são. -erto demais do feminino é sempre muito longe para o masculino. 'ros nunca preencher essa car/ncia, seus objetos de desejo sempre lhe escaparão por algum furo, por algum vazio, por mais ast=cia ue utilize em sua captura. 4omos seres desejastes destinados a incompletude, e é i sso ue nos faz caminhar. *acan j sabia dessa car/ncia do peueno deus 'ros pela voz de 45crates uando retomou o tema do amor nos seus seminrios. -erto demais do desejo é sempre longe demais.
898:4CA OE, )oel # ntrodução à leitura de LacanF o inconsciente estruturado como linguagem. -orto AlegreF Artes <édicas, 0131. ;'< # emin0rio ;F
<;**OT, Catherine # 8obodadd, A 3isteria no s+culo. Eio de )aneiroF )orge @ahar 'ditor, 0133. -*ATO # $O ?anquete$ in Obras completas, Aguilar, 01MD. EO>;8'4CO, 'lisabeth # )acues LacanF esbo+o de uma vida, hist5ria de um sistema de pensamento. 4ão -auloF Cia. das *etras, 011U. !onteF -ortal Ci/ncia e ?ida #httpFQQsociologiacienciaevida.uol.com.br