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Índice O autor Capítulo 1 — Polêmicas e paradoxos Capítulo 2 — A caminhada de um solitário Capítulo 3 — Sociedade Soc iedade versus natureza Capítulo 4 — As peripécias da desigualdade Capítulo 5 — Liberdade e igualdade Capítulo 6 — Repercussões O autor A reportagem que transcrevemos abaixo foi publicada pelo jornal Folha de S. Paulo do dia 5 de agosto de 1987, com o título "Morre aos 50 anos o filósofo Salinas Fortes". Nela podese sentir a corrente de energia que Salinas captava e transmitia, e que está presente nas páginas deste livro. livro. Morreu ontem aos 50 anos, pouco depois da zero hora, o professor Luiz Roberto Salinas Fortes, do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Salinas, como era conhecido na universidade, onde lecionava Ética e História da Filosofia desde 1965, sofreu um enfarto do miocárdio. O corpo foi velado das 12 às 16h no salão nobre do prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, de onde foi conduzido para Araraquara (273 km a noroeste de São Paulo), sua cidade natal. O enterro está previsto para as 9h de hoje. "A grande descoberta do Salinas foi desmontar uma interpretação sobre Rousseau que durava três séculos", dizia Marilena Chauí, 45, professora de Filosofia da USP, visivelmente emocionada no velório. "Ele mostrou que tanto o Rousseau político quanto o literato são uma única pessoa", explicava, referindo-se à tese de livre-docência de Salinas, batizada de "Paradoxo do
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Índice O autor Capítulo 1 — Polêmicas e paradoxos Capítulo 2 — A caminhada de um solitário Capítulo 3 — Sociedade Soc iedade versus natureza Capítulo 4 — As peripécias da desigualdade Capítulo 5 — Liberdade e igualdade Capítulo 6 — Repercussões O autor A reportagem que transcrevemos abaixo foi publicada pelo jornal Folha de S. Paulo do dia 5 de agosto de 1987, com o título "Morre aos 50 anos o filósofo Salinas Fortes". Nela podese sentir a corrente de energia que Salinas captava e transmitia, e que está presente nas páginas deste livro. livro. Morreu ontem aos 50 anos, pouco depois da zero hora, o professor Luiz Roberto Salinas Fortes, do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Salinas, como era conhecido na universidade, onde lecionava Ética e História da Filosofia desde 1965, sofreu um enfarto do miocárdio. O corpo foi velado das 12 às 16h no salão nobre do prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, de onde foi conduzido para Araraquara (273 km a noroeste de São Paulo), sua cidade natal. O enterro está previsto para as 9h de hoje. "A grande descoberta do Salinas foi desmontar uma interpretação sobre Rousseau que durava três séculos", dizia Marilena Chauí, 45, professora de Filosofia da USP, visivelmente emocionada no velório. "Ele mostrou que tanto o Rousseau político quanto o literato são uma única pessoa", explicava, referindo-se à tese de livre-docência de Salinas, batizada de "Paradoxo do
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Espetáculo (Política e Poética em Rousseau)", defendida em 1983. Nos últimos meses, Salinas, que também trabalhou como jornalista, estava reescrevendo a tese para publicá-la em forma de livro. Teatro e filosofia Antes de derrubar um mito que perdurou por três séculos, na análise de Chaui, Salinas viveu alguns momentos importantes dos anos 60 e 70 — o existencialismo, o teatro Oficina e a experiência da repressão política (ver abaixo trecho da autobiografia "Retrato Calado" escrita no período 75/77 em Paris). Estudante da Faculdade de Direito da USP, onde se diplomou em 1960, Salinas foi ator da primeira montagem do Oficina, "A Ponte", de Carlos Queiroz Telles, em 1958. Longe do palco, acabou se tornando uma espécie de ideólogo do Oficina, fermentando entre os atores discussões filosóficas que não costumavam freqüentar o meio teatral. "O Oficina, antes de ser um grupo de teatro, era um grupo de discussão filosófica", lembra o jornalista e analista econômico Marco Antonio Rocha, 51, ator do Oficina nos anos 60. "E o principal formulador dos debates era o Salinas . " Como professor da USP, onde se tornou bacharel em Filosofia em 1964, Salinas iniciou em 1965 uma série de três estágios que fez na França. De 65 a 67, estudou em Rennes, onde começou a pesquisa que desembocaria em sua tese de doutorado —"Teoria e Prática na Obra de Jean-Jacques Rousseau", Rousseau", defendida em 1974, 1974, e que result res ultou ou no liv ro "Rousse "R ousseau: au: da Teoria à Prática", editado pela Afica em 1976, ainda em catálogo. De 75 a 77, aproveitou-se de uma bolsa na École de Hautes Études et Sciences Sociales, de Paris, para fugir de "veladas perseguições da repressão militar", como diz Rubens Rodrigues Torres Filho, 45, professor de Filosofia da USP. Em 78 ele voltaria à mesma escola para um semestre de estágio. Não era a primeira vez que Salinas sentira a intolerância do regime militar — em 1970 foi preso duas vezes, uma no Dops e outra no DOI-Codi. "Numa das vezes ele ficou 24 horas em um 'paude-arara', passou a ter problemas vasculares e flebite, o que resultou na amputação de um dedo do pé", recorda Chauí. Nesse estágio na França, Salinas trabalhou com o filósofo Claude Lefort, de quem traduziu para o português o livro "Formas da História", editado pela Brasiliense em 1979 e fora de catálogo. Considerado um grande tradutor do francês, realizou, ainda, a versão de "A Imaginação", de Jean-Paul Sartre, publicada em 1964 e esgotada, esgotada, e de "A Lógica Lógica dos S enti dos", dos" , de Giles Gile s Dele uze, edita ed itada da em 1974 1974 pela pela Persp Perspec ectiva tiva e esgotada. Ligado ao existencialismo quando o movimento estava em voga nos anos 60, Salinas, junto com o professor Fausto Castilho, ciceroneou Sartre no Brasil em 1968. O livro "Sartre no Brasil — Conferência de Araraquara", editado pela Paz e Terra em 1981, que está em sua segunda edição, é um outro trabalho do Salinas como tradutor. "O Iluminismo e os Reis Filósofos", uma obra de iniciação publicada pela Brasiliense em 81 e esgotada, mostra outra faceta do domínio que Salinas tinha da filosofia francesa. "Ele encontrou uma linguagem para o público leigo sem rifar o rigor", analisa Torres Filho. Rigor e invenção "Em seu trabalho filosófico ele sabia conjugar muito bem o rigor com a invenção", define Ant oni o Can dido, did o, 70, professor professor aposentado aposentado da USP e amigo de Salinas desde quando ele era garoto. "Ele era um talento filosófico, um talento como escritor e tradutor", diz Gérard Lebrun, 57, professor do departamento de Filosofia da USP. "O Brasil e a Universidade perdem um dos seus mais sérios investigadores em História da Filosofia", acredita Celso Favaretto, 46, professor da Faculdade de Educação da USP. O rigor que Salinas imprimia às suas pesquisas filosóficas, uma herança de professores como Bento Prado Jr., Gilda de Melo e Souza e Ruy Fausto, foi uma das vertentes que o conduziu à abordagem original sobre Rousseau. "Não era uma questão de reabilitar Rousseau. Ele ia ao texto e encontrava material para reflexão", diz Torres Filho. A esse rigor, ainda segundo Torres Filho, Salinas unia frieza e emoção. "Ele conseguia que a Filosofia fosse um instrumento de leitura do presente", afirma Franklin Leopoldo e Silva, 39, chefe do Departamento de Filosofia da USP. A partir da idéia de representação — um conceito comum no mundo poético e político —, Salinas organizou neste ano, junto com o professor Milton Meira do Nascimento, um colóquio sobre o Congresso constituinte, que resultou no livro "A Constituinte em Debate", editado pela Sofia Editora. No livro, Salinas assina dois ensaios —"Democracia, Liberdade e Igualdade" e "Rosa de Luxemburgo e a Constituinte de 1917". Salinas deixou dois filhos — André, 21, do seu casamento com Ana Maria Cerqueira Leite, e Marina, 6, com Maria Alice Rufino. "O magricela sorri dentro do elevador. Sorri o magricela, irônico, dentro do elevador. O sorriso irônico acompanha o pequeno grupo no qual, obviamente contrafeito, desempenho o papel de paciente ao longo do trajeto tortuoso pelos corredores que ligam a sala da recepção da Ordem Social ao pequeno compartimento usado como câmara de tortura, alguns andares acima no velho edifício do largo General Osório. Antes de chegar ao destino então ignorado, iludo-me, embalo-me com a esperança de que o cortejo só vai me acompanhar até uma cela, onde, como pouco antes me assegurara um dentre os eficientes agentes de segurança, na pior das hipóteses, ficarei 'detido', como se diz, por alguns dias, tal como como — espero — ocorre ocorrera ra da d a outra vez, na OB AN, de d e onde onde há alguns meses fora liberado l iberado depois de dez dias de detenção. Mas as coisas agora seriam bem diferentes e logo, logo seria dado ao protagonista que vos fala, a ocasião única, o privilégio imerecido de vir a conhecer o famoso instrumento de tortura já há muitos anos corriqueiramente utilizado por nossas forças
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policiais em toda a vastidão do território nacional. Só quando chegamos percebo, de repente, o que me espera e entendo o sorriso. É que o tal do magricela nervosinho e gozador me mandara carregar, envolto em jornais, para disfarçar, nada mais, nada menos do que o aparelho de choque a cujas iluminações, dali a pouco, paudiararizado, viria eu a ser submetido graciosamente. O grupo explode em gargalhadas quando o pacote é desembrulhado, deixando a descoberto aquela sorte de pequeno realejo, cubo de madeira com uma manivela pendurada de um dos lados. E eu, atônito, catatônico, arremessado de repente em meio ao inferno, transferido de súbito para esta dimensão nova onde tudo se passa velozmente, embora dure uma eternidade e embora se propague pela eternidade afora. Cessados os efeitos da piada, o mesmo frenético funcionário ordena: — Tira a roupa!!! — Como, por quê?... — Tira a roupa! — vocifera. Fera. — Mas, por que, será mesmo preciso?... A insólita pergunta tem como efeito imediato irritar o tira que, redundante, exclama ainda: — Tira a roupa, porra!" (Retrato Calado, São Paulo, ed. Marco Zero, 1988.) "Rousseau, o bom selvagem" é um livro póstumo. Foi escrito com a intenção original de apresentar a iniciantes o pensamento do filósofo suíço. Este propósito levou-nos a incluir a obra na coleção "Prazer em Conhecer", fato que a engrandece. (Nota do Editor)
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Rousseau é, por excelência, o autor sobre o qual todo mundo se julga apto a discutir, sem se dar ao trabalho de er de fato sua obra. Quem fez essa observação, por volta de 1912, foi o filósofo francês Henri Bérgson (1859-1941). Ainda hoje muito se discute acerca de Rousseau, como ocorreu em 1750, data da publicação de seu primeiro livro — Discurso sobre as ciências e as artes
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— e mais ainda depois que ele foi transformado no principal profeta dos
revolucionários franceses do século XVIII, a começar pelo próprio Robespierre (1758-1794), chamado " O incorruptível ", que foi o grande líder da Revolução Francesa. Desde então Rousseau não cessou de provocar uma acalorada controvérsia. Associado definitivamente ao destino da Revolução Francesa, o filósofo desperta o ódio de alguns e a veneração de outros. Nessas condições, uma multidão de idéias preconcebidas dificulta o trabalho daqueles que se dispõem a ir ao encontro de seus textos. Mas novas dificuldades nos esperam, numerosas dúvidas nos assaltam. Como classificar essa vasta obra? Estaríamos diante de um texto filosófico propriamente dito? Há quem duvide, já que, na sua aparência, ele não tem muito a ver com obras tradicionalmente classificadas como "filosóficas", pois Rouss eau cultivou os gêneros mais variados. Logo depois de seu primeiro livro, ele compôs uma ópera, intitulada O adivinho da aldeia. Escreveu, mais tarde, dois dicionários: um de música e outro de botânica. Em sua juventude, aventurou-s e pelo terreno do teatro, escrevendo a peça Narciso ou O amante de si mesmo. Bem mais tarde, escreveu um romance, J úlia ou A nova Heloísa, um diálogo à maneira de Platão, e o livro de Confissões à maneira de santo Agostinho. [Platão (428-348 a.C.): filósofo grego, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, é autor de diálogos filosóficos, particularmente a República, o Fedro, o Fédon. Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, teólogo e filósofo. Obras principais: A cidade de Deus, Confissões.] O próprio livro Emílio ou Da educação talvez a mais importante de suas
obras, parece gozar de um estatuto híbrido, anfíbio: começa como um sisudo tratado de pedagogia e acaba como um romance de amor. Como se isso não bastasse, o recurso constante ao paradoxo e uma aparente variação no pensamento não comprometeriam a unidade dessa obra ou sua coerência? Com efeito, são muito freqüentes as teses inusitadas e muitas parecem idéias opostas ou até contraditór ia s. "P refir o ser home m de paradoxos a ser homem de preconceitos" — dizia Rousseau. De fato, todos os seus textos estão repletos de frases chocantes, de teses esdrúxulas, pouco comuns, que já no seu tempo indispunham contra ele o leitor impaciente. Um exemplo? Tal é a eloqüência com que Rousseau investe contra a civilização e suas conquistas, que ele ficou visto por boa parte de seus leitores — a começar pelo ilustre Voltaire, que contra ele logo se posicionou — como um intolerável detrator das Luzes e defensor da barbárie, querendo apenas escandalizar. O século XVIII é chamado de Século das Luzes graças ao notável movimento de idéias de que foi palco e que se costuma designar por Iluminismo ou Ilustração, devido à sua entusiasmada valorização dos poderes da razão humana. A grande Enciclopédia, editada por Diderot e d'Alembert em Paris e cuja publicação se estende por mais de vinte anos, é a imagem mais completa do espírito filosófico da época. Daí a designação "enciclopedistas" atribuída aos filósofos do século XVIII. Ao ler o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, depois de tê-lo recebido das mãos do próprio Rousseau, Voltaire escreveu com ironia ao autor: "Nunca se empregou tanto espírito em querer nos tornar bichos. A gente fica com vontade de andar de quatro ao ler vosso livro". Voltaire (1694-1778), cujo nome verdadeiro era François Marie Arouet, era filósofo, p oeta, dra maturgo e um dos principais nomes do século XVIII. Dezoito anos mais velho do que Rousseau, era por este
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considerado o grande mestre de sim geração Outros comentadores acreditaram ver uma contradição entre as teses desse Discurso sobre a desigualdade e a obra intitulada Do contrato social. Na primeir a, o autor parece defender um individualismo radical, fazendo da sociedade a fonte dos males de que padec e o homem. N a s e g u n d a , a o contrário, parece def ender um coletivis mo, à medida que promove, por exemplo, a idéia da excelência da pátria e do interesse coletivo, que deve prevalecer sobre o interesse individual. A distância entre ambos parece tão grande que Émile Faguet, p r of es s or e c r ít ic o francês do século XIX, se espa ntava: "O Contrato social é um trata do do Estado déspota escrito por um anarquista". Se não temos necessidade, aqui, de aderir aos paradoxos de Rousseau, podemos, ao menos, acompanhá-lo no repúdio aos pr econceitos. Embora reconhecendo as dificuldade dessa obra e a ambigüidade de um texto que não tem a nitidez e 1: nearidade dos tratados filosóficos convencionais, não fiquemos com a idéia superficial de que nos achamos diante de um simples caluniador da cultura, de um defensor das trevas ou de um "profe ta dark antiiluminista". É mais correto considerá-lo como o crítico ou o pré-crítico das Luzes, muitas vezes até excessivo em su polêmica, mas também especialmente clarividente. Se alguma autoridade nos é necessária, fiquemos com a d grande filósofo Emmanuel Kant, que era um admirador de Rousseau e o chamou de "Newton da moral". Kant dizia ser necessário lê-lo várias vezes, pois só depois de termos deixado de nos seduzi pela magia de seu belo estilo, é que podíamos de fato apreciar profundidade de seus pensamentos. [Emmanuel Kant (1724-1804; filósofo alemão do século XVIII, autor da Crítica da razão pura Isaac Newton (1642-1727), matemático, físico, astrônomo e filósofo britânico. Em 1687, formulou a teoria da atração universal entre os corpos.] Quanto às contradições e incoerências, passemos a palavra Rousseau: Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre nos mesmos princípios: sempre a mesma moral, a mesma crença, as mesmas máximas e, se quiserem, as mesmas opiniões. (Carta a Beaumont)
Por que não abrir para ele, logo de início, um crédito de confiança? T extos selecionados
Os fundamentos Na Carta a Beaumont, Rousseau se defende das acusações de impiedade e irreligião, lançadas pelo arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, ao censurar o livro Emílio através de uma condenação solene, um mandemento, datado de 20 de agosto de 1762. Nessa carta, Rousseau também resume, em várias passagens, os princípios centrais de sua filosofia. O princípio fundamental de toda moral sobre o qual raciocinei em todos os meus escritos e que desenvolvi neste último com toda a clareza de que era capaz, é de que o homem é um ser naturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. Fiz ver que a única paixão que nasce com o homem, a saber, o amor de si, é uma paixão em si mesma indiferente ao bem e ao mal, que não se torna boa ou má a não ser por acidente e segundo as circunstâncias nas quais se desenvolve. Mostrei que todos os vícios que se imputam ao coração humano não lhe são naturais; disse a maneira segundo a qual eles nascem; segui, por assim dizer, sua genealogia e fiz ver como, pela alteração sucessiva de sua bondade natural, os homens se tornam afinal o que são.
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Expliquei ainda o que entendia por essa bondade original, que não parece deduzir-se da indiferença ao bem e ao mal, natural ao amor de si. O homem não é um ser simples; ele é composto de duas substâncias. Se nem todo mundo está de acordo com isso, nós dois, o senhor e eu, estamos e tentei prová-lo aos outros. Isso provado, o amor de si não é mais uma paixão simples, mas tem dois princípios, a saber: o ser inteligente e o ser sensitivo, cujo bem-estar não é o mesmo. O apetite dos sentidos tende ao do corpo e o amor da ordem, ao da alma. Este último amor, desenvolvido e tornado ativo, traz o nome de consciência, mas a consciência não se desenvolve e não age a não ser com as luzes do homem. É somente por essas luzes que ele chega a conhecer a ordem e é somente quando a conhece que a consciência o leva a amá-la. A consciência é, pois, nula nohomem que nada comparou e que não viu suas relações. Nesse estado, o homem só conhece a si mesmo; ele não vê seu bemestar oposto nem conforme ao de ninguém; não odeia nem ama nada; limitado exclusivamente ao instinto físico, é nulo, é animal; foi o que fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade. [Ambição] Quando, por um desenvolvimento, de que mostrei o progresso, os homens começam a lançar os olhos sobre seus semelhantes, começam também a ver suas relações e as relações das coisas, a adquirir idéias de conveniência, de justiça e de ordem: o belo moral começa a tornar-se sensível, e a consciência age. Então eles têm virtudes, e se também têm vícios, é porque seus interesses se cruzam e sua ambição desperta à medida que suas luzes se estendem. Mas enquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes, os homens são essencialmente bons. Eis o segundo e stado. Quando, afinal, todos os interesses particulares agitados se entrechocam, quando o amor de si posto em fermentação se torna amor-próprio, tornando o universo inteiro necessário a cada homem, torna-os todos inimigos natos uns dos outros e faz com que ninguém encontre seu bem a não ser no mal de outrem. Então a consciência, mais fraca do que as paixões exaltadas, é abafada por elas e não fica na boca dos homens mais do que uma palavra feita para se enganarem mutuamente. Cada qual finge então sacrificar seus interesses aos do público, e todos mentem. Ninguém quer o bem público a não ser quando concorda com o seu; assim, esse acordo é o objeto do verdadeiro político que busca tornar os povos felizes e bons. Mas é aqui que começo a falar uma língua estranha, tão pouco conhecida do leitor quanto de vós. Eis, monsenhor, o terceiro e último termo, para além do qual nada resta a fazer, e eis como o homem, sendo bom, os indivíduos tornam-se malvados. É a buscar como seria preciso fazer para impedi-los de assim se tornar que consagrei meu livro. Não afirmei que na ordem atual a coisa fosse absolutamente possível, mas afirmei de fato e afirmo ainda que não há, para chegar ao fim buscado, outros meios além daqueles que propus. * * * * *
Tenho grande vontade, senhor, de adotar aqui meu método ordinário e de dar a história de minhas idéias como resposta a meus acusadores. Acredito não poder melhor justificar tudo o que ousei dizer a não ser dizendo ainda tudo o que pensei. Assim que estive em condições de observar os homens, olhava-os fazer e os escutava falar; depois, vendo que suas ações não se pareciam com seus discursos, buscava a razão dessa dissemelhança e encontrava que ser e parecer, sendo para eles duas coisas tão diferentes quanto agir e falar, esta última diferença era a causa da outra e tinha ela própria uma causa que me restava buscar. Encontrava essa causa na nossa ordem social, que, em todos os pontos contrária à natureza que nada destrói, tiraniza-a sem cessar e a faz sem cessar reclamar seus direitos. Segui essa contradição em suas conseqüências e vi que ela explicava sozinha todos os vícios dos homens e todos os males da sociedade. De onde concluí que não era necessário supor o homem malvado por sua natureza, quando era possível marcar a origem e o progresso de sua maldade. Essas reflexões me conduziram a novas pesquisas sobre o espírito humano considerado no estado civil e eu encontrava que então o desenvolvimento das luzes e dos vícios se fazia sempre na mesma proporção, não nos indivíduos, mas nos povos — distinção que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais foi capaz de conceber.
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Nasci enfermiço e doente; custei a vida a minha mãe, e meu nascimento foi a primeira das minhas infelicidades.
É nesse tom melodramático, tão ao gosto de Rousseau, que ele se refere, em suas autobiográficas Confissões, ao seu nascimento e à morte da mãe como conseqüência do parto. Nascido a 28 de ju nh o d e 1 7 12, em G e n eb r a , filho de Isa a c Roussea u e d e Suzanne Bernard, Jean-Jacques, segundo filho do casal, ficará marcado pelo acontecimento trágico. O recém-nascido Jean-Jacques foi entregue aos cuidados de uma tia, Suzanne Rousseau, que, ajudada pelo pai dele, encarregou-se de sua primeira educação. Seu irmão, François, sete anos mais velho, depois de abandonar a casa paterna em 1721, nunca mais deu notícias à família. Do pai, relojoeiro de profissão e cidadão orgulhoso, Jean-Jacques herdou a veneração pela mãe, o respeito pela cidade natal e a paixão pelos livros. A insuperável saudade da esposa fazia Isaac Rousseau pedir ao filho, de apenas seis anos de idade, que lesse em voz alta, antes de dormir, velhos romances da biblioteca da mãe, religiosamente conservados. Aos oito anos, servindo-se da biblioteca paterna, Rousseau lê historiadores e moralistas, particularmente o escritor grego Plutarco (50-125 d.C.), autor de Homens ilustres.
Em 1722, em conseqüência de um violento desentendimento com um capitão da reserva, Isaac Rousseau deixou Genebra e foi morar em Nyon, também na Suíça. Jean-Jacques, com dez anos, ficou sob a tutela do tio Bernard e, com o primo Abraham, foi enviado como pensionista em casa do pastor Lambercier, em Bossey, nas cercanias de Genebra. Até sua saída definitiva da cidade natal, em 1728, ele se entediava nos lugares em que era colocado como aprendiz, inclusive no ateliê de um mestre gravador com o qual, surpreendido lendo às escondidas durante o período de trabalho, desentendia-se freqüentemente. Num domingo, depois de ter saído a passeio com amigos pelos arredores da cidade, ao voltar encontrou fechadas suas portas e decidiu, então, tentar a vida mundo afora. Tinha apenas dezesseis anos de idade. Este foi o início de sua vida nômade. Tendo obtido uma carta de recomendação do padre de Confignon, dirigiuse a Annecy, na França, onde pediu proteção e asilo a madame de Warens, personagem que teve influência decisiva sobre ele: "Esta época de minha vida decidiu o meu caráter". Madame de Warens, protestante de origem, recentemente convertida ao catolicismo, matinha, graças ao auxílio de Vitor-Amadeu II, duque de Sabóia e rei da Sardenha, uma espécie de pensão para jovens desencaminhados, aos quais, além de catequizar, dava abrigo. JeanJacques, também protestante de origem, tornou-se logo o seu predileto, e não apenas se converteu ao catolicismo como passou a nutrir por ela uma paixão que, embora intensa, nunca deixou de ser platônica. Sob a pr oteção de "Maman", como a apelidou, Jean-Jacques entregou-se aos estudos, complementando sua formação de autodidata. É nessa época que desponta e se firma também a sua outra grande paixão e primeira vocação: a música. Nesse período, Jean-Jacques fez pequenas viagens, inclusive com uma rápida passagem por Paris, mas sempre retornando a Annecy, para perto de "Maman", e depois para Chambéry, para onde ela se mudou. Aqui começa, desde minha chegada a Chambéry até minha partida para Paris em 1741, um intervalo de oito ou nove anos durante o qual minha vida
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foi tão simples quanto doce. Confissões - Livro II
Em 1734, por um curto período, foi a Besançon, onde estudou composição musical com o abade Blanchar. De volta a Chambéry, onde se instalou com madame de Warens em uma casa de campo chamada Charmettes, sofreu um acidente quando se dedicava a experiências de Física, e quase ficou cego. Foi, então, a Montpellier para se submeter a um tratamento médico. Ao retornar, uma enorme desilusão o esperava: sua querida "Maman" estava vivendo maritalmente com um jovem suíço. Profundamente ferido, decidiu ir embora, apesar de madame de Warens insistir em que ficasse, garantindo-lhe que todos os seus direitos se conservavam. Jean-Jacques dirigiu-se primeiro a Lyon, onde foi preceptor durante um ano. Depois, carregando consigo numerosas cartas de recomendação e um projeto de inovação da notação musical, foi tentar a sorte na capital.
Em Paris, as primeiras obras (1741-1754) Não se passou mu ito temp o até qu e, gr aças às recomenda ções de que dispunha, Rousseau conseguisse que a Academia de Ciências tomasse conhecimento de seu projeto, em relação ao qual parecia nutrir grande expectativa. Mas a Academia não o julgou favoravelmente. Rousseau dava lições de música para sobreviver. Ao mesmo tempo travou relações com algumas das personalidades mais influentes do então efervescente mundo cultural parisiense. Freqüentou madame Dupin, o teatrólogo Marivaux e o escritor Fontenelle. Tornou-se amigo de Diderot, que já era um escritor conhecido embora ainda não se tivesse dedicado à grande empreitada de sua vida: a organização e edição da Enciclopédia francesa. Essa obra é o monumento intelectual do Século das Luzes, no qual melhor se materializa a verdadeira revolução cultural, já em curso antes da chegada de Rousseau. Paris era a grande metrópole européia, o epicentro das novas idéias. Era ali que se forjavam os instrumentos ideológicos de que a burguesia, classe em ascensão, se serviria na investida contra os privilégios feudais da aristocracia em decadência. Ali se fixou o destino do escritor Rousseau. Antes disso, porém, ele permaneceu por mais de um ano em Veneza como secretário da embaixada francesa, voltando a Paris depois de um desentendimento com o embaixador. Em 1745, conheceu Thérèse Levasseur, com a qual, embora sem nutrir grande paixão, viveu de 1749 até o fim da vida, chegando a ter cinco filhos. Rousseau os abandonou, um a u m, em um orfanato parisiense, alegando não ser capaz de educá-los por falta de condições econômicas. O fato não apenas foi fonte incessan te de remorsos para ele, como também muito explorado mais tar de por seus inimigos. É também desse período sua primeira ópera: As musas galantes. Em 1749, o importante filósofo e matemático d 'Alembert, colaborador de Diderot na direção da Enciclopédia, convidou Rousseau — e ele aceitou — a escrever para essa obra os verbetes sobre música. Nesse mesmo ano, depois de provocar escândalo nos meios conservadores e devotos, com sua Carta sobre os cegos, Diderot ficou aprisionado durante três meses no castelo de Vincennes, nos arredores de Paris. Por ocasião de uma de suas visitas ao amigo, Rousseau leu no jornal Mercure de France o enunciado da questão proposta pela
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Academia de Dijon para o prêmio de "Moral" do ano de 1750. Profundamente instigado pela questão — "Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes" — ele compôs imediatamente um texto que ficou famoso, a Prosopopéia de Fabrício. Fabrício foi um cônsul romano entre 282 e 278 a.C. e ficou célebre por sua simplicidade de costumes. Em sua Prosopopéia (figura de retórica que significa "personificação"), Rousseau empresta a palavra a Fabrício e, por seu intermédio, lamenta a corrupção de costumes que, a seu ver, é característica da civilização. Mostrou-o a Diderot, que o encorajou a dar seqüência a suas idéias e a participar do concurso; nasceu assim o primeiro Discurso, que obteve o primeiro prêmio.
Escritor da moda Logo publicado, o Discurso explodiu como uma bomba, transformando seu autor em escritor da moda. Fugindo do sucesso — sua incontornável timidez dificultava a freqüência aos salões da aristocracia, onde triunfavam seus colegas enciclopedistas — Jean-Jacques entregou-se, solitário, a um ofício que, pelo resto da vida, assegurou sua sobrevivência copista de partituras musicais. Ao mesmo tempo em que polemizava com autores que se lançaram à refutação de seu Discurso, compôs outra ópera, O adivinho da aldeia. Representada em 1752 em Fontainebleau perante o próprio rei Luís XV, obteve sucesso total. Impressionado, o rei o convocou para uma audiência, prometendo-lhe uma pensão. Atacado por um acesso de inibição, JeanJa cques não compa receu e, em conseqüência, perdeu a pensão. Seus amigos, especialmente Diderot, começaram a se impacientar diante de suas esquisitices e de sua desatenção às conveniências mundanas. Ainda em 1752, Rousseau provocou novamente uma polêmica enorme, ao escrever a Carta sobre a música francesa, em que exalta a música italiana e critica a francesa. Publicou ainda uma peça teatral escrita na juventude, Narciso ou O amante de si mesmo, acompanhada de um importante prefácio. A Academia de Dijon, em 1753, forneceu nova ocasião para a elaboração de outra obra de envergadura: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, com o qual concorre também ao prêmio da Academia. Dessa vez, não obteve o primeiro lugar. O novo Discurso, porém, é incomparavelmente superior ao primeiro, em importância. Em dezembro desse mesmo ano, ferida pelas críticas de Rousseau, a Ópera de Paris retira a permanente que lhe concedera.
Cidadão de Genebra Acompanhado por Thérèse, nosso autor se distanciou de Paris: pela primeira vez, depois da sua "fuga", retornou a Genebra. Calorosamente recebido em 1754, abjurou o catolicismo e foi reintegrado solenemente tanto na religião protestante quanto em sua condição de cidadão genebrino. No ano seguinte, de retorno a Paris, entregou aos editores o manuscrito do Discurso sobre a desigualdade, ornamentado por uma inspirada Dedicatória a Genebra, redigida durante a viagem e assinada: J.-J. Rousseau, cidadão de Genebra. Publicado, esse novo Discurso reacendeu as paixões polêmicas. Rousseau o enviou a Voltaire, pois o considerava o grande mestre de sua geração. Voltaire não
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apreciou o livro e o comentou sarcasticamente. A resposta de Rousseau, por sua vez, foi bastante polida, mas a partir daí as relações entre ambos, até então amenas, embora distantes, converteram-se em hostilidade aberta. No ano seguinte retornou a Paris, protegido por uma das grandes estrelas dos salões, madame d'Epinay, instalou-se em uma residência chamada L'Ermitage, situada em Montmorency, nos arredores de Paris. Uma série de mal-entendidos contribuiu para opô-lo cada vez mais a seus ex-amigos filósofos, também chegados a madame d'Epinay, com a qual ele acabou por se desentender, sendo obrigado a mudar de casa. Foi aí, em meio às dificuldades crescentes de relacionamento com os antigos companheiros, que produziu outras de suas obras mais imp ortantes. Em 1758 redigiu a Carta a d'Alembert sobre os espetáculos, que contém uma crítica contundente ao teatro francês e marca propriamente sua ruptura definitiva com Diderot e os enciclopedistas. Aí também redigiu J úlia ou A nova Heloísa, Do contrato social e Emílio ou Da educação.
Exílio e perseguição Logo depois de impresso na Holanda, em 1762, Emílio foi condenado pelo Parlamento de Paris à fogueira, e seu autor à prisão. Aconselhado e auxiliado por amigos que permaneceram fiéis, decidiu fugir. Foi para a Suíça, onde imaginou que seria bem acolhido. Mas estava muito enganado. Da pequena aldeia de Môthiers-Travers, onde se instalou, também foi obrigado a fugir depois que camponeses enfurecidos ameaçaram depredar a "morada do ímpio". Em 1766 refugiou-se na Inglaterra a convite do filósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776), autor dos Ensaios sobre o entendimento humano. Enquanto isso, no continente, suas obras continuavam sendo hostilizadas pelas autoridades civis e eclesiásticas, protestantes e católicas. O Contrato social, também publicado em 1762, foi condenado em Genebra e Emílio foi queimado em praça pública, em Paris. Considerado ofensivo à religião católica, foi condenado também pelo arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont. Voltaire escreveu contra Rousseau uma violenta sátira intitulada Carta do Sr. Voltaire ao Dr. J . -J . Pansofo. A partir de então, sob o ferrão da perseguição, começaram a acentuar-se seus sentimentos persecutórios e ele acabou por se indispor também com Hume, imaginando-se alvo de uma grande conspiração internacional comandada pelos filósofos. Em 1767 voltou à França, instalando-se provisoriamente em Trye. Desejoso de voltar a Paris, depois de acalmados os ânimos contra ele, escreveu ao ministro Choiseul, que lhe concedeu a utorização para voltar. Instalado em um pequeno apartamento da rua Platrière, decidiu escrever as Confissões para defender-se de seus acusadores. Esse texto foi lido por ele mesmo no salão de madame de Egmont, mas a reação do público foi de indiferença. Dedicando-se sempre à cópia de partituras musicais, escreveu várias obras, dentre elas os Diálogos, nos quais faz novamente sua defesa, e Devaneios de um caminhante solitário, texto em prosa poética que contém algumas de suas mais belas páginas. Nos últimos anos de vida, dedicou-se com intensidade crescente a outra pa ixão antiga: a botânica. Desde o retor no a Par is, sua saúde e a inflamação da bexiga, de que sofreu por toda a vida, pioraram consideravelmente. A 2 de julho de 1778 morreu subitamente, em
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circunstâncias não inteiramente esclarecidas. Em 1793, depois da Revolução Francesa, a Convenção, órgão revolucionário máximo, decidiu a solene transferência dos r estos mortais de Rousseau da ilha de Choupos, onde fora enterrado, para o Panteão de Paris, monumento dedicado aos heróis da pátria. Obras
Desta relação omitimos as peças de teatro — com exceção da principal — assim como as obras musicais. 1750 — Discurso sobre as ciências e as artes. O autor rejeita a idéia de que o Renascimento das artes e das ciências — que se costuma datar dos séculos XV e XVI — tenha contribuído para o aperfeiçoamento moral dos homens. Defende a tese da influência perniciosa do cultivo das artes e das ciências sobre os costumes. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural. 1755 — Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. A desigualdade de condições que se observa entre os homens em nossa sociedade não é natural ao homem, mas decorre da própria evolução social, especialmente a partir da instituição da propriedade privada. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural. 1756 — Cartas sobre a Providência. Polêmica de Rousseau com Voltaire a respeito da interferência da Providência Divina nos assuntos humanos e a propósito do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755. Não há tradução para o português. 1758 — Carta a d'Alembert sobre os espetáculos. Resposta de Rousseau ao verbete da Enciclopédia sobre Genebra, redigido por d'Alembert, que propõe a introdução naquela cidade de um teatro nos moldes franceses. Rousseau rejeita a idéia e critica o teatro francês, apontando os malefícios que sua introdução acarretaria para a República de Genebra. Obras completas, Ed. Globo. 1761 — J úlia ou A nova Heloisa. Cartas trocadas entre dois personagens — Júlia e Saint-Preux — ligados por uma paixão poderosa, mas separados pelos preconceitos. Não há tradução. 1762 — Do contrato social. Uma comunidade autêntica é aquela na qual a vontade geral, extensão da vontade dos cidadãos livres, é a autoridade soberana. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural. Emílio ou Da educação. Acompanhando desde a infância a formação de um personagem imaginário, Emílio, Rousseau reconstitui a imagem do homem natural, critica a instituição pedagógica vigente e assenta as bases de uma nova educação. Publicado em português pela Difusão Européia do Livro. 1763 — Carta a Christophe de Beaumont — Resposta ao arcebispo de Paris que condenou o Emílio. Não há tradução. 1764 — Cartas escritas da montanha. Resposta de Rousseau às Cartas escritas do campo, do procurador-geral genebrino Tronchin, na qual ele se defende das acusações contra o Contrato e o Emílio. 1765 — Projeto de Constituição para a Córsega. A pedido de Buttafucco, personagem importante na política da ilha de Córsega, Rousseau se faz de legislador. 1768 — Dicionário de música. 1772 — Considerações sobre o governo da Polônia. A convite de nobres poloneses surretos, Rousseau propõe um projeto de reforma do governo e das leis polonesas, aplicando os princípios do Contrato. Publicado em edição bilíngüe pela Brasiliense.
Obras publicadas postumamente: 1782 e 1790 — Confissões. Penetrante estudo autobiográfico ou auto-analítico. 1782 — Devaneios de um caminhante solitário. 1790 — Diálogos. Rousseau juiz de J ean-J acques. 1805 — Cartas sobre a Botânica. 1924 a 1937 — Correspondência geral. 20 volumes. Ensaio sobre a origem das línguas. Estudando a origem e a evolução das línguas, Rousseau investiga também a evolução da música. Escrito por volta de 1759. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.
Os textos selecionados deste livro foram retirados das edições brasileiras. Os não editados em português são de responsabilidade do autor. (NE)
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Cronologia 28 de junho de 1712 — Nascimento de Rousseau, em Genebra, Suíça. 1714-1727 — Na Inglaterra, reinado de Jorge I. Criação do parlamentarismo moderno, baseado no poder da maioria. 1715 — Morte de Luís XIV, que representou o auge do absolutismo na França. 1719 — Publicação do Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, que ilustra algumas idéias que serão retomadas por Rousseau. 1722 — Jean-Jacques passa a estudar na casa do pastor Lambercier. 1723 — Fim da regência do duque de Órleans e início do reinado de Luís XV na França. 1728 — Rousseau foge de Genebra, encontra a madame de Warens em Annecy, França, e converte-se ao catolicismo. 1741 — Rousseau chega a Paris. 1745 — Jean-Jacques liga-se a Thérèse Levasseur, sua companheira de toda a vida e com quem teve cinco filhos. 1749 — O filósofo redige o Discurso sobre as ciências e as artes, publicado no ano seguinte. 1752 — Apresentação da ópera O adivinho da aldeia perante Luís XV, que convida Rousseau para uma audiência, a que o filósofo não comparece. A Enciclopédia é condenada pela primeira vez. 1754 — O filósofo visita Genebra e abraça de novo o protestantismo. Publica o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 1756 — Rousseau passa a morar nos arredores de Paris. Começa a escrever o romance Júlia ou A nova Heloísa, publicado em 1761. Início da Guerra dos Sete Anos, entre França e Inglaterra. 1760 — Inicia-se na Inglaterra a era do maquinismo e da grande indústria. 1762 — Recém-publicados, o Emílio e o Contrato social são condenados pelas autoridades francesas e suíças. Rousseau busca refúgio em várias localidades européias e acaba estabelecendo-se, em 1766, na Inglaterra, com David Hume. 1767 — Estabelece-se em Paris. 1774 — Começa o governo de Luís XVI. 1776 — Independência dos EUA. Rousseau escreve os Devaneios de um caminhante solitário, publicado em 1782. 2 de julho de 1778 — morre Rousseau, e é enterrado na ilha de Choupos. Durante a Revolução Francesa, em 1793, seus restos mortais são colocados no Panteão de Paris, dedicado aos heróis da pátria. 1789 — Começa a Revolução Francesa. Entrada em vigor da Constituição americana, que segue inspiração rousseauniana. Conjuração Mineira, no Brasil, cujos participantes utilizaram especificamente as obras de Rousseau.
T extos selecionados
Autoconhecimento Uma dimensão relevante da obra rousseauniana é o autoconhecimento, que se exprime especialmente nas Confissões, nos Diálogos e nos Devaneios. Nessas obras, Rous - seau voltase a si mesmo e tenta compreender-se, buscando acompanhar, especialmente nas Confissões, a gênese de sua carreira literária e de seus males. Nota-se como se reproduz na tentativa de auto-interpretação, de conhecimento de si, o mesmo esquema — um "natural" bom corrompido pela vida em sociedade — que vimos atuando em outros planos. Os dois textos foram extraídos respectivamente dos livros I e VIII das Confissões.
[Quem sou!] Lanço-me em uma empreitada que nunca teve nenhum exemplo e cuja execu ção não terá imitador algum. Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem serei eu mesmo. Apenas eu. Sin to meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum daqueles que vi; ouso acreditar que não sou feito como nenhum daqueles que existem. Se não valho mais, ao menos sou outro. Se a natureza fez bem ou mal em quebrar c molde no qual me lançou, é sobre o que não se pode julgar a não ser depois de eu ser lido. Que a trombeta do Juízo Final soe quando quiser; virei com este livro na mão apresentarme diante do soberano juiz. Direi altivamente: eis o que fiz, c que pensei e o que fui. Disse o bem e o mal com a mesma franqueza. Não cale nada de mal, nada acrescentei de bom, e se me ocorreu empregar algum ornamento indiferente, foi apenas para preencher um vazio
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ocasionado por minha falt e de memória; eu pude supor verdadeiro o que eu sabia ter podido sê-lo, jamais c que sabia ser falso. Mostrei-me tal qual fui, desprezível e vil quando o fui, bom generoso, sublime, quando o fui: desvelei meu interior tal como tu próprio o vis. te. Ser eterno, reúna à minha volta a inumerável multidão de meus semelhantes que escutem minhas confissões, que gemam de minhas indignidades, que se ruborizem com minhas misérias. Que cada qual descubra, por sua vez, seu coração aos pés de teu trono com a mesma sinceridade; e, depois, que um só te diga, se ousar: fui melhor do que este homem (...) [O primeiro Discurso] Neste ano de 1749, o verão foi de um calor excessivo. Contam-se duas léguas de Paris a Vincennes. Sem condições para pagar fiacres, às duas horas da tarde eu ia a pé quando estava só e ia depressa para chegar mais cedo. As árvores da estrada, sempre desbastadas à moda da região, não davam quase sombra alguma e freqüentemente, esmagado de calor e de cansaço, eu me estendia no chão não podendo mais continuar. Eu procurava, para moderar meus passos, ler algum livro. Um dia peguei o Mercure de France e, enquanto andava, percorrendo-o com os olhos, topei com a seguinte questão proposta pela Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte: Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar os costumes. No instante dessa leitura vi um outro universo e me tornei um outro homem. Embora eu tenha uma lembrança viva da impressão que recebi, os detalhes me escaparam desde que os depositei em uma das minhas quatro cartas ao Sr. de Malesherbes. (...) O de que me lembro bem distintamente dessa ocasião é que, chegando a Vincennes, eu estava numa agitação que era quase delírio. Diderot percebeu; eu disse a causa e li para ele a Prosopopéia de Fabrício, escrita a lápis sob um carvalho. Ele me exortou a desenvolver minhas idéias e concorrer ao prêmio. Eu o fiz, e a partir desse instante eu me perdi. Todo o resto de minha vida e de minhas infelicidades foi o efeito inevitável desse instante de desvio. Meus sentimentos se alçaram com a mais inconcebível rapidez ao tom de minhas idéias. T odas as minhas pequenas paixões foram esmagadas pelo entusiasmo da verdade, da liberdade, da virtude, e o que há de mais espantoso é que essa efervescência se manteve em meu coração durante mais de quatro ou cinco anos a um grau tão alto talvez quanto o tenha jamais estado no coração de um outro homem.
Os Espetáculos No século XVIII a arte do teatro passa por uma extraordinária expansão e discute-se muito sobre as virtudes do teatro, se ele é ou não uma boa escola de moral e bons costumes e a ele os philosophes dão grande importância. Na sua famosa Carta a d'Alembert sobre os espetáculos, Rousseau toma partido em relação ao teatro e condena o teatro à francesa, examinando a questão dos espetáculos a partir de uma ótica eminentemente política. Os dois trechos seguintes são extraídos dessa longa Carta: Perguntar se os espetáculos são bons ou maus em si mesmos é formular uma questão muito vaga; é examinar uma relação antes de ter fixado os termos. Os espetáculos são feitos para o povo e é somente por seus efeitos sobre ele que se pode determinar suas qualidades absolutas. Pode haver espetáculos de uma infinidade de espécies; há de povo a povo uma prodigiosa diversidade de costumes, de temperamentos, de caracteres. O homem é uno, confesso-o; mas o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos, pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que não se deve mais procurar entre nós o que é bom aos homens em geral, mas o que é bom para eles em tal tempo ou em tal país. Assim, as peças de Menandro, feitas para o teatro de Atenas, estavam deslocadas no de Roma; assim, os combates de gladiadores, que, sob a república, animavam a coragem e o valor dos romanos, não inspiravam, sob os imperadores, ao populacho de Roma, mais do que o amor do sangue e a crueldade: com o mesmo objeto oferecido ao mesmo povo em diferentes tempos, ele aprendeu primeiro a desprezar sua vida e, depois, a brincar com a de outrem. (...) [Festas públicas] Como! Não deve haver, então, nenhum espetáculo em uma república? Ao contrário, deve haver muitos. É nas repúblicas que eles nasceram, é em seu seio que os vimos brilhar com um verdadeiro ar de festa. A que povos convém melhor reunir-se freqüentemente e formar entre si os doces laços do prazer e da alegria do que àqueles que têm tantas razões para se amar e para permanecer para sempre unidos? Já temos várias dessas festas públicas; tenhamos mais ainda e só ficarei mais encantado. Mas não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas em um antro obscuro; que os mantêm temerosos e imóveis no silêncio e na inação; que não oferecem aos olhos mais do que clausuras, pontas de ferro, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade. Não, povos felizes, não são estas as vossas festas! É em pleno ar puro, é sob os céus que deveis vos reunir e vos entregar ao doce sentimento de vossa felicidade. (...) Mas quais serão, afinal, os objetos desses espetáculos? O que é que se mostrará neles? Nada, se quiserem. Com a liberdade em toda parte, onde reina a afluência o bem-estar também reina. Plantai no meio de uma praça um mastro coroado de flores, reuni em torno o povo e tereis uma festa. Fazei ainda melhor: dai os espectadores em espetáculo; tornai-os eles
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próprios atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, a fim de que todos sejam melhor unidos...
O segundo Discurso, que trata da desigualdade, tão mal rece b i d o p o r Voltaire, é entusiasticamente saudado por um dos grandes p ens a dor es do s éc u lo X X , C la u de L é vi S tr a u ss ( na s c ido e m Bruxelas, 1908), como o livro que fundou a antropologia o c i d e n t a l . O q u e é e n t ã o o h omem segundo o autor do Discurso? Tomemos a tese central. Segundo mostra nossa experiência cotidiana, os homens
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são maus, inimigos uns dos outros, buscando o tempo todo a melhor forma de tirar partido, ou de fazer mal ao semelhante. Teria então razão o filósofo inglês Thomas Hobbes, ao dizer que "o homem é o lobo do homem" e vive em guerra permanente com seus semelhantes? [Hobbes (1588-1679), autor do Leviatã, conduziu a filosofia política a um momento elevado de reflexão.] Rousseau concorda em certo sentido, mas se permite introduzir uma correção no ensinamento de Hobbes. Os homens são maus, mas não intrinsecamente, não enquanto portadores dos atributos da espécie homem. A essência, a natureza do homem é essencialmente boa; o que vemos diante de nós é uma degradação, uma degenerescência dessa natureza originária, em si mesma límpida e rica em potencialidades. Deformado, o homem de hoje pouco tem a ver, a não ser talvez a mera aparência, com o homem selvagem ou com os homens da Antigüidade clássica, os gregos e os romanos. Como explicar essa alteração? Em que consiste a corrupção? Para penetrar no conteúdo das teses de Rousseau sobre o homem, vamos antes recorrer ao Emílio, a última de suas "grandes obras". Segundo Rousseau, para melhor apreender a ordem entreseus escritos, é necessário começar pelos últimos, pois só nestes é que ele chega até os princípios fundamentais de seu "sistema". Referindo-se à própria obra, Rousseau escreveu: Eu tinha sentido desde minha primeira leitura que estes escritos caminhavam em uma certa ordem que era preciso encontrar para seguir a cadeia de seu conteúdo. Acreditei ver que esta ordem era inversa à de sua publicação e que o autor, elevando-se de princípio em princípio, não tinha atingido os primeiros a não ser em seus últimos escritos. Era preciso, pois, para caminhar por síntese, começar pelo final. E foi o que fiz, atendo-me primeiro ao Emílio.
Uma profissão de fé No Emílio, inserido no corpo de seu livro IV (ao todo são cinco livros), há um opúsculo famoso: Profissão de fé do vigário de Sabóia. Texto notável e autônomo no interior do livro, ele pode ser lido assim como uma espécie de Discurso do método de Rousseau. [O Discurso do método foi escrito pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) que é considerado o fundador do nacionalismo moderno.] Na Profissão de fé, tomando posição com relação a várias questões filosóficas tradicionais, o autor nos expõe os princípios mais gerais sobre os quais se fundamenta o conjunto das suas proposições sobre o homem. O problema de que parte Rousseau é o mesmo de Descarte: sobre o que de sólido é possível apoiar nossas certezas e nossa idéias sobre as coisas? Mas ele adotou um caminho totalmente d verso para resolvê-lo. Para Rousseau as evidências serão de ordem diferente daquelas em que se apóia seu colega do século anterior Para Descartes as bases são apenas intelectuais; o critério para avaliar a certeza de uma idéia é a clareza e distinção. Rousseau reclama outro critério de certeza: age como os empiristas, que valorizam as evidências e a experiência dos sentidos. [O principal representante do empirismo é o inglês John Locke (1632-1704).] Mas tomando um caminho diferente dos empiristas, Rousseau convoca uma dimensão do homem para além do intelecto e dos sentidos é preciso levar em conta o homem em sua totalidade, como coração, como sensibilidade moral:
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Trazendo, pois, em mim o amor da verdade no lugar de toda filosofia, e por método uma regra fácil e sim pies que me dispensa da vã sutileza dos argumentos, reto mo, pois, a partir dessa regra o exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aqueles aos quais na sinceridade de meu coração eu não poderia recusar o meu consentimento; co mo verdadeiras, todas aquelas que me parecerão ter um ligação necessária com estas primeiras e deixar todas a outras na incerteza, sem rejeitá-las nem admiti-las e sem me atormentar em esclarecê-las quando não levam a na da de útil para a prática.
Nesse texto, assistimos a um duplo deslocamento no modo tradicional de tratar as questões filosóficas. Em primeiro lugar, a atividade de conhecimento não é mai deixada com exclusividade ou ao puro intelecto ou às impressões sensíveis. No conhecimento acha-se comprometido o homem na sua totalidade e, portanto, ta mbém o seu sent imento e suas "paixões". Trata-se, pois, de uma recusa do intelectualismo e do racionalismo... Em segundo lugar, também o âmbito da investigação sofre uma alteração. As questões sobre as quais podemos exercer nossa curiosidade dizem respeito à esfera da "prática", aos nossos deveres e à nossa conduta. Antecipando-se a Kant, Rousseau partiu da convicção de que é limitada a capacidade humana de conhecimento. Orgulhoso, o homem quer "tudo penetrar, tudo conhecer" e se esquece de perguntar em primeiro lugar pela potência de sua faculdade de conhecer: Pequena parte de um grande todo, (..) somos bastante vãos para querer decidir o que é este todo em si mesmo e o que somos em relação a ele.
Então, o que é possível conhecer? Até onde podemos nos aventurar? Guia-nos uma bússola segura, fornecida por nossa própria natureza: trata-se do "interesse", palavra tomada no sentido mais amplo possível e que inclui a dimensão moral. Tudo aquilo que diz respeito à nossa sobrevivência, ao nosso bem-estar e à nossa conduta em relação aos semelhantes, é suscetível de ser conhecido com segurança. As questões que realmente interessam e são dignas de nossa atenção não são, pois, questões puramente especulativas, sem relação com a prática da vida e que só alimentam um delirante orgulho ou uma pretensão descabida.
Ordem e caos Com base nesse método, Rousseau chega a algumas verdades fundamentais. Em primeiro lugar, partindo da observação do universo que o circunda, chega à idéia de Deus, concebido como uma causa primeira que move o universo e anima a natureza: Quanto mais observo a ação e a reação das forças da natureza agindo umas sobre as outras, mais acredito que de efeitos em efeitos é preciso sempre remontar a alguma vontade como primeira causa, pois supor um progresso das causas ao infinito é não supor nenhum.
Existe, pois, uma causa primeira do universo, ao que se convencionou chamar de Deus, uma vontade criadora. Rousseau se utiliza aqui da tradicional prova da existência de Deus percebida através dos efeitos de sua ação. Só que, na sua perspectiva, a prova vem reforçada pela aceitação do coração.
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A partir daí, poderá ser estabelecida uma segunda verdade relativa à natureza. Como o universo que nos circunda mostra-se harmonioso, como um vasto conjunto de correspondências e simetrias, devemos concluir pelo caráter inteligente da causa que o produziu: "Se a matéria movida me mostra uma vontade, a matéria movida segundo certas leis me mostra uma inteligência".
Ao contrário das pretensões da metafísica, não há como penetrar mais além na natureza mais profunda dessa realidade primeira. Mas também não há motivo para se inquietar com isso, uma vez que tal aprofundamento nada acrescenta à nossa conduta na vida. O que importa reter a partir dessas verdades primeiras é a idéia do universo como uma ordem inteligente, como uma vasta cadeia de seres que se interligam e onde cada um ocupa um lugar bem preciso, que melhor se coaduna com os desígnios impenetráveis, da boa vontade inteligente, criadora do todo. Voltando-se, em seguida, para o próprio homem, Rousseau coloca o pr oblema de saber qual a posição destinada a esse ser particular nest a vasta cadeia da ordem universal. E aqui um primeiro choque ou um grande espanto nos espera. O universo físico nos impressiona pela constante regularidade, pela inalterável harmonia reinante entre as partes componentes do todo. O exemplo mais notório disso são os coordenados movimentos astronômicos. Bem diferente, porém, é o espetáculo das coisas humanas, em que domina a mais completa desordem: O quadro da natureza não me oferecia senão harmonia e proporções, o do gênero humano não me oferece senão confusão e desordem! O concerto reina entre os elementos, e os homens estão no caos! Os animais são felizes, só o seu rei é miserável! Ó sabedoria, onde estão tuas leis? Ó Providência, é assim que reges o mundo? Ser benfazejo, que foi feito do teu poder? Vejo o mal sobre a terra.
Observe-se que Deus é também "bondade". Num trecho anterior, Rousseau junta ao nome de Deus as idéias de inteligência, de potência, de vontade, às quais reuniu a bondade, sua conseqüência necessária. Como explicar a existência do mal, se o Criador é bondade? É nesse ponto que se estabelecerá a terceira verdade fundamental. Em termos bastante tradicionais e em contraste com o materialismo em voga no seu século, Rousseau afirma a liberdade do homem. [Os materialistas, que negam a existência de Deus, afirmam a matéria como a única causa e única realidade substancial. No século XVIII, além de Diderot, os principais defensores do materialismo foram Helvétius e o barão d'Holbach .] Não há verdadeira vontade nem verdadeira ação sem uma liberdade, que é seu princípio eficiente. E é esse atributo distintivo do homem que, se por um lado é motivo de orgulho, por outro responde pela própria existência do mal sobre a Terra. Se há desordem, se há caos é porque os homens são livres e p odem fazer um uso ou abuso da liberdade que os leva a exorbitar, a ir para fora ou para além da órbita normal que lhes é própria. Logo no primeiro parágrafo do Livro I do Emílio, Rousseau escreve: "Tudo é bem, saindo das mãos do autor das coisas; tudo degenera entre as mãos do homem". O próprio homem, portanto, é o responsável último pelos seus males. Estes, por outro lado, são definidos como um desregramento, como desordem ou caos,
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por contrast e com a ordem universal, que é essencialmente o bem ou o supremo valor. É nesse âmbito que se inscreve a tragicomédia humana. Mas estamos ainda diante de uma resposta muito geral. Quais seriam, mais precisamente, os mecanismos responsáveis pelos desvios, os fatores que propiciam esse abuso que o homem faz de sua liberdade?
A marcha da contradição Essa primeira incursão pelo universo dos textos rousseaunianos permite-nos perceber que o problema do homem ocupa um papel central em sua filosofia. Mas se nos limitássemos à leitura dessas idéias, ficaríamos em um plano abstrato e deixaríamos de levar em conta o elemento fundamental a partir do qual a alteração da essência do homem será entendida como um processo rico em contradições e cheio de dinamismo: trata-se da sociedade. É a contradição dinâmica entre natureza e sociedade que comanda o processo e as dificuldades do convívio forçoso com seus semelhantes, que levará o homem a entrar em contradição com suas disposições naturais. É na perspectiva dessa contradição primordial que veremos esse pensamento na plenitude do seu vigor. É a partir daí que perceberemos a novidade dos objetos de estudo a que ele se propõe e dos novos terrenos de investigação que inaugura: a questão da sociedade e a questão da história. Ao lado de Montesquieu, Rousseau foi considerado precursor da Sociologia pelo sociólogo francês Émile Durkhein (1858-1917). De fato, nosso filósofo chama a atenção de modo inusitado para o problema das relações sociais entre os homens, para a questão da sociabilidade e da complexidade da vida social ou para a lógica inscrita na sua trama de relações. Por outro lado, a questão da história passa a adquirir um estatuto e uma dignidade filosófica, embora não tenha atingido ainda a clareza que teve mais tarde com Kant e com Hegel (1770-1831) este filósofo alemão criou a moderna concepção de dialética e foi autor sobretudo da Grande Lógica, Fenomenologia do Espírito e Princípios do Direito.
Rousseau não procedeu a uma investigação abstrata sobre os atributos que constituem o homem. Ele interpretou a evolução desde os primórdios da humanidade até os dias de hoje. O que interessa desvendar é a lógica própria ao desenvolvimento dos homens através de sua história. Trata-se de uma investigação "arqueológica", que buscará reconstituir estágios perdidos na evolução do homem para definir como era ele em seus primórdios e como teriam ocorrido as alterações. Teremos a reconstituição dinâmica e dra mática que oporá um "esta do de natur eza" a um "esta do de sociedade" e recriará imaginariamente os sucessivos cenários intermediários que conduziram de um termo a outro. Rousseau trabalhou segundo um esquema dicotômico — estado de natureza ou estado de sociedade — que o aproximou muito mais dos filósofos políticos do que dos metafísicos. Ele se aproximou de Hobbes e dos jurisconsultos da Escola do Direito Natural (Hugo Grotius, Samuel Puffendorf, Barbeyrac, Burlamaqui, Wollf). O filósofo pretendeu imaginar como seria o homem antes da passagem para a vida em sociedade, para saber distinguir entre aquilo que ele deve a seu próprio fundo primitivo e natural, e aquilo que ele recebeu artificialmente ou deve ao livre — e, portanto, falível — uso das suas faculdades. Vejamos como se faz essa reconstituição do homem natural.
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Os dois discursos A ocasião para o desenrolar pleno do novelo foi fornecida por uma circunstância bastante convencional. A Academia de Dijon formulou uma grave questão para o seu Concurso de Moral do ano de 1753: "Qual é a fonte da desigualdade entre os homens? Ela é autorizada pela lei natural?" Questão, como vemos, que parece ter sido feita sob medida para Rousseau, que alguns anos antes havia ganho o primeiro prêmio em concurso promovido pela mesma academia. Provocado por essas questões, Rousseau desenvolveu suas teses em dois Discursos de dimensões e importância desiguais. A essas obras aplica-se a inversão entre a ordem lógica e a ordem cronológica: o primeiro Discurso, sobre a ciência e as artes, redigido e publicado alguns anos antes do segundo, é apenas um desenvolvimento deste; as teses expostas no primeiro Discurso abordam apenas um aspecto derivado de uma questão muito ampla que somente no segundo ganhou o aprofundamento devido. Aqui o autor refere-se aos dois textos: Se só o [primeiro] Discurso de Dijon excitou tantos murmúrios e causou escândalo, o que teria acontecido se eu tivesse desenvolvido desde o primeiro instante toda a extensão de um sistema verdadeiro mas aflitivo, do qual a questão tratada neste [segundo] Discurso não é senão um corolário?
O curioso é que o primeiro Discurso, apesar do prêmio conquistado, é julgado severamente pelo próprio autor, que o considera carente de lógica e de ordem e, dentre as suas obras, "a mais fraca de raciocínio". Por que então ela provocou tanto escândalo, despertando intermináveis polêmicas e celebrizando o seu autor logo no início da carreira? A explicação está em que a tese defendida foi pouco palatável nesse século tão orgulhoso de seus progressos e do refinamento de seus costumes. Inesperadamente, eis que Rousseau investe com eloqüência e ousadia contra esse "preconceito favorável" que seus contemporâneos têm a respeito de si mesmos. Para o filósofo, não foi positiva a influência das Luzes ou dos progressos nas artes e nas ciências a partir do Renascimento. Não é verdade, diz, que os homens mais cultivados ou as nações em que as artes e as ciências mais se aprimoraram sejam necessariamente melhores do ponto de vista moral. Nesse segundo Discurso é feito um virulento ataque contra a civilização: o excesso de ciência e arte acaba por corromper o homem, tornando-o hipócrita, acentuando e generalizando seu egoísmo, jogando uns indivíduos contra os outros e, nessa corrida insaciável por mais comodidades, levandoos a se enredar em uma cadeia infernal de relações de submissão. Nascidas do orgulho humano e da humana ociosidade, as ciências e as artes acabam por consolidar esses vícios, ensinando aos homens não o cumprimento de seus deveres, mas a se enganarem mutuamente e melhor dissimularem suas intenções puramente egocêntricas. O principal resultado de todo o processo civilizatório consiste assim numa cisão entre a região do ser e a do parecer. Os homens aparentarão, urbana e polidamente, todas as virtudes sociais para melhor perseguir, por debaixo do pano, seus objetivos puramente egoístas ou para melhor suplantar seus
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rivais na eterna luta pela satisfação do seu amor próprio exclusivista. Questionando nesses termos o papel das ciências e das artes, Rousseau estabelece uma correlação necessária entre elas e a decadência dos costumes.
A radicalização da questão Desafiado mais tarde por uma nova questão, Rousseau aprofundou essa crítica da civilização. Depois de se referir aos princípios expostos no primeiro Discurso, prossegue: Logo tive ocasião de desenvolvê-los inteiramente numa obra de maior importância; pois foi, acredito, neste ano de 1753 que apareceu o programa da Academia de Dijon sobre a origem da desigualdade entre os homens. Impressionado diante dessa grande questão, fiquei surpreso por ter essa Academia ousado propô-la; mas, já que ela tivera essa coragem, podia eu muito bem ter a de tratá-la e foi o que fiz.
Nessas condições — como diz um comentador, comparando as duas questões e as duas respostas — "de um enunciado a outro o problema se aprofunda", pois a "colocação em questão atinge a sociedade como tal, o recurso à história se generaliza, o critério de juízo torna-se universal", de tal maneira que o "segundo problema radicaliza o primeiro". O segundo Discurso é considerado uma apresentação circunstanciada e raciocinada da convicção que o primeiro Discurso proclamava com mais calor do que clareza. Como se deu essa radicalização? É o fato da desigualdade existente entre os homens que se propõe então como objeto de meditação. A desigualdade é, com certeza, uma marca tão saliente em nossa civilização que não dá para escondê-la. Em primeiro lugar, os homens são diferentes, vivendo sob condições variadas e formando povos distintos, com costumes e línguas próprios. Mas há, no interior de cada sociedade, uma diferença muito mais notável, a que se denomina desigualdade. Por exemplo: alguns são ricos e ostentam grande fortuna; outros são pobres e até miseráveis. Há os que gozam de muitos privilégios, de direitos exclusivos — como os nobres — simplesmente em virtude de terem nascido dentro de uma determinada família. Há, ainda, alguns que desempenham as mais altas funções de mando e pesam sobre as decisões de interesse global, enquanto a outros — em geral a grande maioria — está reservado o papel passivo de "governados". Estamos pois, diante de um fato crucial em nossas sociedades. Um fato dotado de valor estratégico do qual dependem todos os outros. Como diz Rousseau: "A primeira fonte do mal é a desigualdade". Trata-se de um fato "natural" ou, ao contrário, será a desigualdade algo historicamente contingente, que poderia não ter existido? Seriam os homens desiguais por natureza, como pretendia Aristóteles (para quem alguns nasciam para comandar e outros para obedecer)? De acordo com Rousseau, a desigualdade não é um fato natural, ela não é "autorizada" pela lei natural. Considerado em sua condição natural, o homem não mantém relações de desigualdade com seus semelhantes. A desigualdade, portanto, é socialmente produzida no decorrer da evolução histórica da humanidade. É até possível marcar o momento de sua aparição e determinar sua causa com precisão. O que Rousseau fez nesse Discurso foi traçar a gênese da desigualdade, mostrar como ela se formou pouco a
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pouco através de diferentes etapas, qual sua origem e como tudo isso se relaciona com os demais fatos e fenômenos característicos da vida em sociedade.
Objeto e método Precedido por três importantes escritos introdutórios — dedicatória, prefácio e exórdio — o "corpo" do Discurso divide-se em duas partes nitidamente separadas. Completando argumentações em alguns pontos cruciais, temos dezenove notas de rodapé, algumas bastante longas, nas quais são melhor explicita das algu mas idéias principais. Os dois escritos introdutórios cumprem função similar: o prefácio, escrito depois de concluída a obra, funciona como uma avaliação geral; o exórdio anuncia os desenvolvimentos posteriores. Em ambos se fixa a questão, definindo-se o objeto do Discurso e se determina qual o método seguido. O objeto é o estudo do homem. Para Rousseau, é preciso ir até a essência do homem para poder julgar sua condição atual. Em ambos os textos, conhecer o homem em sua natureza essencial é ir além do existente daquilo que está historicamente dado, e ir em busca de um estado inexistente. Seguindo os jurisconsultos da Escola do Direito Natural e de Hobbes, o filósofo fala em estado de natureza, concebido como uma condição pré-social, primitiva e originária. Mas nosso autor faz uma crítica importante aos seus predecessores quanto a seu método. De acordo com Rousseau, eles não foram suficientemente radicais, e se detiveram a meio caminho na tentativa de reconstituir a condição pré-social. Ao transportar para o homem primitivo atributos pr óprios do homem que vive em socieda de, emb or a pensando qu e desenham o retrato do homem natural, estão construindo uma projeção de si mesmos. Sem perceber, pintam o seu auto-retrato. Quase todos, diz Rousseau,. "falando sem cessar em carecimento, avidez, opressão, desejos e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tiraram da sociedade" e, "falando do homem selvagem", estavam pintando "o homem civil". Era necessário mudar o procedimento. Deixemos de lado, propõe o autor, os livros pretensamente científicos ou os fatos pretensamente estabelecidos e voltemo-nos sobre nós mesmos. Guiados pelo princípio crítico da radicalidade que postula o primitivo como o Outro absoluto em relação ao homem civil, façamos um esforço para superar o fascínio narcísico pela imagem do próprio ego. Meditando sobre as "primeiras e mais simples operações da alma humana" — cujos vestígios ainda carregamos em nós —, busquemos reconstituir a imagem perdida do primeiro homem. Na primeira parte do Discurso, o autor se dedicou justamente à reconstrução hipotética desse estado primitivo, enquanto na segunda buscou acompanhar o processo que conduz até o estado atual. T extos Selecionados
Moral e Religião Os textos seguintes fazem parte da Profissão de fé do vigário de Sabóia. Depois de ter assim deduzido, da impressão dos objetos sensíveis e do sentimento interior que me induz a julgar as causas segundo minhas luzes naturais, as principais verdades que me
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importava conhecer, resta-me procurar que máximas devo tirar disso para minha conduta e que regras devo prescrever me para realizar meu destino na terra, segundo a intenção de quem nela me colocou. Sempre seguindo meu método, não tiro essas regras dos princípios de uma alta filosofia, mas as encontro no fundo de meu coração escritas pela natureza em caracteres indeléveis. Basta consultar-me acerca do que quero fazer; tudo o que sinto ser bem é bem, tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência. E é somente quando negociamos com ela que recorremos às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos os cuidados é o de si mesmo; no entanto quantas vezes a voz interior nos diz que, fazendo nosso bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e lhe resistimos; ouvindo o que diz a nossos sentidos, desprezamos o que diz a nossos corações; o ser ativo obedece, o passivo comanda. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. Será de espantar que amiúde essas vozes se contradigam? E que linguagem cumpre então ouvir? Vezes demais a razão nos engana, temos mais do que o direito de recusá-la; mas a consciência não engana nunca; ela é o verdadeiro guia do homem: está para a alma como o instinto pai a o corpo; quem a segue obedece à natureza e não receia perder-se. Este ponto importante, continuou meu benfeitor, vendo que eu ia interrompê-lo: deixai que eu me detenha um pouco mais em esclarecê-lo. Toda a moralidade de nossas ações está no julgamento que temos de nós mesmos. Se é verdade que o bem seja bem, é preciso que se ache no fundo de nossos corações como em nossas obras, e a primeira recompensa da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondade moral está de conformidade com a nossa natureza, o homem não pode ser são de espírito nem bem constituído senão à medida que é bom. Se não o é, e o homem é naturalmente mau, não o pode deixar de ser sem se corromper, e a bondade não passa nele de um vício contra a nature za. Feito para prejudicar seus semelhantes, como o lobo para esganar sua presa um homem humano seria um animal tão depravado quanto um lobo piedoso; somente a virtude nos deixaria remorsos. Reflitamos, meu jovem amigo. Examinemos, pondo de lado qualquer interesse pessoal, a que nos levam nossas inclinações. Que espetáculo nos agrada mais, o dos tormentos ou o da felicidade alheia? Que nos é mais agradável fazer e nos deixa uma impressão mais confortadora por o ter feito, um benefício a um ato de maldade? Por quem vos interessais em vossos teatros? São os crime que vos dão prazer? São os autores punidos que vos arrancam lágrimas? Tudo nos é indiferente, dizem, à exceção de nosso interesse; mas, ao contrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos em nossas penas: e mesmo en nossos prazeres, nós nos sentiríamos demasiado sós, demasiado miseráveis se não tivéssemos com quem os partilhar. Se não há nada de moral no coração do homem, de onde lhe vêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esse arroubos de amor pelas grandes almas? Esse entusiasmo da virtude, que relação tem com nosso interesse particular? Por que desejaria ser Catão rasgando as entranhas, de preferência a César triunfante? Tirai de nossos corações esse amo ao belo e tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas vis paixões abafaram em sua alma estreita esses sentimentos deliciosos; aquele que, à força de se concentrar em si, chega a não amar senão a si mesmo, não tem mais transportes, seu co ração gelado não palpita mais de alegria; uma doce ternura não umedece mais seus olhos; não aprecia mais nada; o infeliz não sente mais, não v ive mais; já está morto.
[Solidariedade] Mas, por grande que seja o número dos maus na terra, há poucas almas tornadas insensíveis, fora de seu interesse, a tudo o que é justo e bom. A iniqüidade só satisfaz à medida que nos aproveitamos dela; no restante, ela quer que c inocente seja protegido. Se vemos na rua ou num caminho qualquer um ato de violência e de injustiça, de imediato um movimento de cólera e indignação se ergue do fundo de nosso coração e nos leva a tomar a defesa do oprimido: mas um dever mais forte nos retém, e as leis nos tiram o direito de proteger a inocência. Ao contrário, se presenciamos algum ato de clemência ou de generosidade, que admiração, que amor nos inspira! Quem não se diz: gostaria de fazer o mesmo? Importa-nos certamente muito pouco que um homem tenha sido mau ou justo há dois mil anos; e, no entanto, o mesmo interesse nos afeta na história antiga, tal qual se tudo se passasse em nossos dias. Que me importam os crimes de Catilina? Tenho medo de ser sua vítima? Por que então tenho dele o mesmo horror que teria se fosse meu contemporâneo? Nós não odiamos os maus apenas porque nos prejudicam, odiamo-los porque são maus. Não somente queremos ser felizes, como queremos a felicidade alheia, e quando essa felicidade não custa nada à nossa, ela a aumenta. Temos enfim, independentemente de nossa vontade, piedade dos desgraçados; quando somos testemunhas de seu mal, sofremos. Os mais perversos não podem perder inteiramente essa tendência que, amiúde, os põe em contradição consigo mesmos. O ladrão que despoja os transeuntes ainda é capaz de cobrir a nudez do pobre; e o mais feroz dos assassinos ampara um homem que desfalece. Fala-se do grito dos remorsos, que pune em segredo os crimes ocultos e os põe tantas vezes em evidência. Em verdade, quem dentre nós não ouviu nunca esta voz importuna? Falamos por experiência; e desejaríamos abafar esse sentimento tirânico que nos dá tanto tormento. Obedeçamos à natureza, e veremos com que doçura ela reina, e que encanto encontramos, depois de a ter escusado, em darmos um bom testemunho de nós mesmos. O mau teme a si
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próprio e de si foge; alivia-se jogando-se fora de si; deita em derredor olhares inquietos e busca um objeto que o distraia; sem a sátira amarga, sem a zombaria insultante, estaria sempre triste; o riso de escárnio é seu único prazer. Ao contrário, a serenidade do justo é interior; seu riso não tem maldade e sim alegria; carrega-lhe a fonte em si mesmo; está tão alegre sozinho como numa roda; não tira seu consentimento dos que se aproximam dele, e sim lhos comunica.
[J usti stiça inata] ta] Deitai os olhos em todas as nações do mundo, percorrei todas as histórias. Em meio a tantos cultos inumanos, e estranhos, em meio a essa prodigiosa diversidade de costumes e de caracteres, encontrareis por toda parte as mesmas idéias de justiça e de honestidade, as mesmas noções do bem e do mal. O antigo paganismo engendrou deuses abomináveis, que teríamos punido aqui como celerados, e que só ofereciam para quadro da felicidade supremos crimes a se cometerem e paixões a se satisfazerem. Mas o vício, armado de uma autoridade sagrada, descia em vão de seu ambiente eterno, o instinto moral rejeitavao do coração dos humanos. Celebrando as orgias de Júpiter, admirava-se a continência de Xenócrates; a casta Lucrécia adorava a impudica Vênus; o intrépido romano sacrificava ao medo; invocava invocava o deus que mutilou seu pai e morria sem murmurar murmurar nas mãos do dele; as mais desprezíveis divindades foram servidas pelos maiores homens. santa voz da natureza, mais forte que a dos deuses, fazia-se respeitar na terra, parecia relegar ao céu o crime com os culpados. Há portanto no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude de acordo com o qual, apesar de nossas próprias máximas, julgamos boas ou más nossas ações e as alheias e é a esse princípio que chamo consciência. Encarando o ponto a que eu chegara como o ponto comum de que partiam rodos os crentes para chegar a um culto mais esclarecido, não encontrava nos dogmas da religião natural senão os elementos de qualquer religião. Eu considerava essa diversidade de seitas que reinam sobre a terra e que se acusam mutuamente de mentira e de erro; eu me perguntava: qual a boa? Cada qual me respondia: a minha. Cada qual dizia: só eu e meus partidários pensamos certo; todos os outros erram. E como sabeis que vossa seita é a boa? Porque Deus o disse. E quem vos disse que Deus o disse? Meu pastor que o sabe muito bem. Meu pastor disse-me de acreditar assim e assim acredito: ele assegura-me que todos os que dizem de outra maneira mentem, e eu não os escuto. Como, eu pensava, não é a verdade uma só? E o que é verdade para mim pode ser falso para vós? Se o método de quem segue o bom caminho e o de quem se perde é o mesmo, que mérito tem ou que erro comete um mais do que outro? Sua escolha é efeito do acaso; imputar-lha é iniqüidade, é recompensar ou punir por ter nascido n ascido em tal ou qual país. Ousar dizer que Deus nos julga assim é ultrajar ultrajar sua justiça. ju stiça.
[Religiões] Ou todas as religiões são boas e agradáveis a Deus, ou, se há alguma que ele prescreva aos homens e os castigue por desconhecê-la, ele lhe deu sinais certos e manifestos para ser distinguida e conhecida como a única verdadeira. Esses sinais são de todos os tempos e de todos os lugares, igualmente sensíveis a todos os homens, grandes e pequenos, sábios e ignorantes, europeus, índios, africanos, selvagens. Se houvesse uma religião na terra, fora da qual só houvesse pena eterna, e que em qualquer lugar do mundo um só mortal de boa-fé não fosse impressionado por sua evidência, o deus dessa religião seria o mais iníquo e o mais cruel dos tiranos. Procuramos então sinceramente a verdade? Não concedamos nada ao direito do berço nem à autoridade dos pais e dos pastores, mas submetamos ao exame da consciência e da razão tudo o que nos ensinaram desde a infância. Podem gritar-me: submete tua razão; o mesmo pode dizer-me quem me engana: preciso de razões para submeter minha razão. Toda a teologia que posso adquirir de mim mesmo pela inspeção do universo, univers o, e pelo bom emprego de minhas faculdades, limita-se ao que vos expliquei aqui. Para saber mais cumpre recorrer a meios extraordinários. Tais meios não podem ser a autoridade dos homens, porquanto nenhum homem sendo de espécie diferente da minha, tudo o que um homem conhece naturalmente eu também o posso conhecer, e outro homem pode enganar-se tanto quanto eu; quando acredito no que diz, não é porque o diz e sim porque o prova. O testemunho dos homens não é portanto senão o de minha própria razão e nada acrescenta aos meios naturais de conhecer a verdade, que Deus me deu.
Crítica da Vida em Sociedade A política e a vida em sociedade ocupam um lugar central em todo o pensamento de Rousseau. Como diz o filósofo nas Confissões, tudo se prende "radicalmente à política". O modo como os homens vivem em sociedade e se relacionam uns com os outros e o modo como eles governam
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ou regulam seus negócios e assuntos comuns é decisivo sob todos os pontos de vista e determina sua felicidade ou infelicidade. Os textos que seguem são extraídos do Discurso sobre a desigualdade, do Contrato social, do Emílio e da Carta a d'Alembert sobre os espetáculos. [Desigualdade] O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não n ão pertence a ninguém!" ning uém!" Grande é a possibil possibilidade idade,, porém, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao a o ponto de não poder poder mais mais permanecer permanecer como como eram, pois essa idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazerem-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais longe ainda e esforcemo-nos por ligar, de um único ponto de vista, em sua ordem mais natural, natural, essa lenta sucessão de a contecimentos e de conheciment os(...)
[Acordos] Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças o de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de to dos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o direito do mais forte e o d primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que o dignificam(.. Não é possível que os homens não tenham, afinal, refletido sobre tão miserável situação e as calamidades que os afligiam. Os ricos, sobretudo, com certeza logo perceberam quanto lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujos gasto só eles pagavam e na qual tanto o risco da sua vida como o dos bens partícula res eram comuns. Aliás, qualquer que fosse a interpretação que pudessem da às suas usurpações, sabiam muito bem estarem estas apoiadas unicamente num direito precário e abusivo e que, tendo sido adquiridas apenas pela força, est. mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem que pudessem lamentar-se. Os enriquecido só pela indústria não podiam basear sua propriedade em melhores títulos. Por mais que dissessem: "Fui eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com meu trabalho", outros poderiam responder-lhes: "Quem vos deu as demarcações por que razão pretendeis ser pagos a nossas expensas, de um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmãos irmãos perece e sofre a necessidade necessidade do que tendes a mais e que vos v os seria necessário um consentimento ex prenso e unânime do gênero humano para que, da subsistência comum, vos apropriásseis de quanto ultrapassasse a vossa?" Destituído de razões legítimas para justificar-se e de forças suficientes para defender-se, esmagando com facilidade um particular, mas sendo ele próprio esmagado por grupos de bandidos, sozinho contra todos e não podendo, dados os ciúmes mútuos, unir-se com seus iguais contra os inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, forçado pela necessidade, acabou concebendo o projeto que foi o mais excogitado que até então passou pelo espírito humano. Tal projeto consistiu em empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, fazer de seus adversários seus defensores, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes outras instituições que lhe fo sem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural. Com esse desígnio, depois de expor a seus vizinhos o horror de uma situação que os armava, a todos, uns contra os outros, que lhes tornava as posses tão onerosas quanto o eram suas necessidades, e na qual ninguém encontrava a segurança, fosse na pobreza ou na riqueza, inventou facilmente razões especiosas para fazer com que aceitassem seu objetivo: "Unamonos", disse-lhes, "para defendei os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna" (...)
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[Direito político] O direito político está ainda por nascer, e é de se presumir que não nascerá nunca. Grotius, o mestre de todos os nossos sábios na matéria, não passa de uma criança e, o que é pior, de uma criança de má-fé. Quando ouço erguerem Grotius às nuvens e cobrirem Hobbes de execração, vejo como poucos homens h omens sensatos lêem ou compreendem compreendem tais autores. autores. A verdade é que seus princípios são exatamente semelhantes; eles só diferem quanto a expressões. Diferem também pelo método. Hobbes apóia-se em sofismas, e Grotius nos poetas; o resto élhes comum. O único moderno em condições de criar essa grande e inútil ciência fora o ilustre Montesquieu. Mas ele teve o cuidado de não tratar dos princípios do direito político; contentou-se com tratar do direito positivo dos governos estabelecidos; e nada no mundo é mais diferente do que esses dois estudos. Entretanto quem quer julgar sensatamente os governos, como existem, é obrigado a reunir ambos: é preciso saber o que deve ser para bem julgar o que é. A maior dificuldade para esclarecer essas importantes matérias está em interessar um particular em discuti-las, em responder a estas duas perguntas: que importa? e que posso fazer? Pusemos nosso Emílio em condições de responder a ambas. (...) Antes de observar, é preciso criar regras para as observações; é preciso uma escala para as medidas que tomamos. Nossos princípios de direito político são essa escala. Nossas medidas são as leis políticas de cada país.
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omo seria então o homem natural? Há, no homem, uma parte inata, que nasce com ele, que pertence a seu fundo natural. Há também outra parte adquirida, produ zida no decorrer de sua evolução e em decorrência dela. C o m o d i s t i n g u i r u ma da o u t r a ? Para responder a essas questões e reconstituir o retrato do homem em estado natural, "tal como deve ter saído das mãos da natureza", Rousseau considerou três aspectos na primeira parte do segundo Discurso. O homem será retratado p rimeiramente do ponto de vista físico, em seguida do ponto de vista metafísico (palavra usada no sentido etimológico de "além do físico") e, finalmente, do ponto de vista moral. Primeiro pergunta-se como poderia ser o homem do ponto de vista da conformação de seu corpo e de suas condições puramente materiais de vida. Em seguida, sobre as qualida des ou atributos de sua "alma" e, afinal, sobre suas qualidades "psíquicas" (como diríamos hoje) relativas à sua conduta diante dos semelhantes.
Do físico ao metafísico Do ponto de vista físico, Rousseau vê o homem primitivo dotado de um corpo vigoroso, menos forte do que alguns animais, porém mais ágil do que outros e, no conjunto, organizado de maneira "vantajosa". Do ponto de vista de suas condições de vida, ele o vê submetido a necessidades bastante elementares, encontrando, por exemplo, seu "leito ao pé da mesma árvore" que lhe fornece a refeição. Necessidades poucas e pouco esforço para a sua satisfação: eis a condição primitiva. Rousseau imagina o homem primitivo disperso ao longo da terra. Poucos e espalhados pela vastidão do planeta, os homens quase não mantêm entre si alguma espécie de contato. Achamo-nos diante de um animal comparável aos outros, que vive em uma "solidão na abundância". Ele vive em estado de isolamento e sem ter necessidade de recorrer a qualquer esforço para arrancar de uma natureza pródiga os frutos necessários à sua sobrevivência. É somente quando ultrapassamos esse nível material e tentamos penetrar no interior do homem qu e começamos a discernir as características que lhe são específicas e o distinguem dos outros animais. Tradicionalmente, a racionalidade do homem é considerada como a sua diferença específica, aquilo que qualifica esse animal de maneira exclusiva, distinguindo-o dos demais. Rousseau não negará que o homem pensa, mas atribuirá à sua Razão um estatuto diferente do tradicional. A capacidade de conceber idéias sobre as coisas não se acha dada em sua plenitude; desde o início ela só se const ituirá ao longo de um pr ocesso laborioso. No homem primitivo, essa Razão de que tanto nos orgulhamos e essa inteligência de que tanto dependemos só se encontram em estado "virtual", como algo que ainda não se manifestou plenamente e que necessita de estímulo para se "atualizar", ou passar de uma condição como de sono para a plena vigília. Quais seriam então as características realmente distintivas do homem? Rousseau vê duas: a liberdade e a perfectibilidade. Ora, o que significa dizer que o homem é livre? Esta é a terceira verdade fundamental a que nos conduz a Profissão de fé. Já no Discurso
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essa qualidade aparece como um atributo humano por excelência. No caso do animal, que atu a de acordo c om u m mecanis mo fixo, é co mo se a natureza fizesse as suas operações. Livre, porém, o homem concorre com a natureza. O animal não pode afastar-se da "lei que lhe é prescrita, mesmo quando seria vantajoso fazê-lo"; já o homem, dado seu poder de escolha, pode transgredir as leis, "mesmo em seu prejuízo": A natureza comanda a todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma sensação, mas ele se reconhece livre para aquiescer ou para resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma...
A liberdade é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que revela nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos. Mas há ainda outra característica distintiva do homem que, combinada à sua liberdade, vai levá-lo para longe da condição animal. É a faculdade de se aperfeiçoar: a perfectibilidade. Essa faculdade, diz nosso autor, "com a ajuda das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside entre nós tanto na es pécie quanto no indivíduo, ao passo que um animal é, no fim de alguns meses, o que será durante toda a vida, e sua espécie, ao término de mil anos, será o que ela era no primeiro ano desses mil anos". A fixidez da espécie e do indivíduo no reino animal contrapõe-se à capacidade humana de variação. Capaz de adquirir conhecimentos e de aprimorar ou sofisticar seu equipamento básico —por exemplo, inventar a linguagem — o homem é um ser peculiar que pode não apenas aquiescer ou não às prescrições da natureza, mas, além disso, pode se autocriar, construir para si mesmo uma segunda natureza, distante da primeira. E é fácil perceber que essa faculdade "quase ilimitada" é a grande fonte, ao lado da liberdade, de todas as infelicidades do gênero humano. Graças à perfectibilidade o homem se afasta cada vez mais da tutela da natureza e acaba por desviar-se, aventurando-se por caminhos que lhe serão funestos.
Amor de si e compaixão Até aqui a "alma" humana foi considerada em relação às suas faculdades, por assim dizer, superiores, tal como eram qualificadas pela filosofia desde Platão: a Razão e a vontade livre. Agora, Rousseau volta-se para a consideração da energia propulsora, daquilo que faz o homem agir. Quais seriam os apetites, os impulsos, os desejos primordiais, em uma palavra, as paixões primitivas do homem? Ao lado de sua inteligência potencial e da sua vontade livre, os homens são ainda dotados de disposições que os impulsionam em determinadas direções. É para atender às determinações de suas paixões que o homem age. Rousseau analisa a alma humana seguindo a mesma analogia que vemos sintetizada de maneira tão precisa num verso do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744): "Se a razão é uma bússola, as paixões são os ventos." Que ventos conduzem, então, o homem primitivo?
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São duas, segundo Rousseau, as paixões primitivas, que levam o homem a agir. Em primeiro lugar, "meditando sobre as mais simples operações da alma", é possível distinguir no homem um instinto de autoconservação que o leva a buscar invariavelmente aquilo que lhe parece capaz de garantir sua persistência na vida e evitar aquilo que lhe pode ser prejudicial: é o "amor de si". Conceito central em toda a filosofia de Rousseau, o amor de si se contrapõe ao "amor-próprio", sentimento ausente no coração do homem primitivo e que é uma perversão do amor de si originário. Ao lado do amor de si, há outro combustível natural da ação. É o que Rousseau chama de pitié ou compaixão. É nessa paixão primitiva que reside a fonte de todas as futuras virtudes sociais. Posteriormente desenvolvida, uma vez consumado o laço social, ela se transformará na consciência ou no instinto moral. Capacidade de sair de si e de se identificar com o outro é por sua presença em nós que podemos, livrando-nos de nosso egoísmo de civilizados, nos lançar na reconstrução da imagem do homem primitivo: Há (...) um outro princípio (...) que, tendo sido dado ao homem para amenizar, em certas circunstâncias, a ferocidade de seu amor-próprio ou o desejo de se conservar, antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata em ver sofrer seu semelhante.
(Aqui se nota certa imprecisão na terminologia. Em seguida, Rousseau apresenta uma nota em que distingue rigorosamente o amor de si do amor próprio.) A compaixão que vemos até mesmo nos animais, e que não se confunde com o instinto de sociabilidade, leva cada indivíduo não a uma associação ativa com o outro, mas a evitar causar-lhe um sofrimento que repercutiria sobre si mesmo. Assim como o amor de si leva à conservação do indivíduo, a pitié, faculdade de compartilhar o sofrimento alheio, é uma espécie de instinto de conservação mútua da espécie. Ao lado dessas duas paixões centrais, o autor considera outra: o instinto de reprodução, ou impulso sexual. Sem desenvolver especialmente a questão, Rousseau postula que, no estado primitivo, esse sentimento é puramente físico. Nada vincula um indivíduo de um sexo a outro a não ser o puro impulso momentâneo que, uma vez satisfeito, leva novamente cada qual para seu lado e restitui o isolamento anterior. É só com o desenvolvimento dos vínculos sociais que esse sentimento, refinado, será acompanhado de preferência e exclusividade e estará na origem de um vínculo constante. Mas é também somente com a passagem para a sociedade que ele adquirirá uma extraordinária intensidade, constituindo-se também na ocasião para tensões e conflitos inteiramente ignorados até então. Eis, pois, traçado o retrato por inteiro do homem natural. Vivendo ociosamente e espalhado pela vastidão do planeta, cada indivíduo terá com outro da mesma espécie contatos raros e passageiros. Não há como falar em sociedade ou associação entre esta multiplicidade dispersa de existências solitárias. Não há, também, como falar em desigualdade, já que todos, vivendo sob condições praticamente idênticas, não têm nem mesmo possibilidade de
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desenvolver aquelas diferenças — de forças, de habilidade, de idade — que seriam de fato naturais, mas só poderão se exercer depois de abandonada a inércia dessa condição primitiva. Temos respondida uma primeira parte da pergunta formulada pela Academia de Dijon. De acordo com a reconstituição da condição primitiva, Rousseau, conclui que a desigualdade não é autorizada pela lei natural. Resta indicar a fonte das desigualdades: é o que foi feito na segunda parte deste segundo Discurso.
Antes e depois da propriedade Fixado esse grau zero na evolução da espécie, cabe agora reconstituir o processo ambivalente de transformações que, mediante a ação da perfectibilidade, conduzirá a um desenvolvimento brilhante das faculdades humanas e, ao mesmo tempo, a uma perversão de suas disposições primitivas. De uma condição de integração com a natureza circundante e de independência de seus semelhantes, o homem evoluirá para uma situação de independência da natureza e de dependência em relação a outro homem. Ao longo desse processo veremos, sob os pontos de vista físico, metafísico e moral, o retrato já traçado sofrer uma desfiguração gradativa até se ajustar às aparências do civilizado. Por que o homem primitivo deixa seu útero, por que abandona seu paraíso? É preciso supor a atuação de fatores externos a essa condição ou a atuação de um acaso catastrófico que produz a alteração do estado de equilíbrio anterior. (Imaginemos a ocorrência de grandes inundações ou tremores de terra que, ao mesmo tempo em que alteram as condições de vida na região, levam a uma nova correlação entre os homens.) Colocando obstáculos à sua sobrevivência e aproximando os homens uns dos outros, a catástrofe cósmica funcionaria como desencadeadora de todo o processo. Sob o estímulo dessas novas condições ambientais e em resposta a elas, o mecanismo da perfectibilidade foi acionado e os indivíduos encontraram a ocasião propícia para o despertar de suas potencialidades. Eliminada a abundância primitiva, o indivíduo passou a ser abandonado às próprias forças e sob o aguilhão das dificuldades de sobrevivência, viu-se obrigado a um trabalho por meio do qual tentou extrair do meio circundante os bens necessários que outrora eram gratuitamente colocados à sua disposição. Entre o puro estado de natureza e o atual estado de civilização — os dois termos de que agora dispomos — resta definir os graus intermediários que marcaram momentos particularmente significativos nessa caminhada. Quais seriam? Rousseau fixou a origem da desigualdade dividindo a linha da evolução em dois segmentos de iguais dimensões. "O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil". A instituição da pr oprieda de pr ivada: eis o momento inaugural da sociedade e a primeira fonte das desigualdades. Assim é que, antes desse momento inaugural, temos um primeiro período que conduz do puro estado de natureza até a sociedade e depois teremos um novo período no qual se fixam as diferentes etapas da evolução da sociedade. Tanto nesse antes quanto nesse depois serão fixados três graus principais que corresponderão, em cada período, a
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três grandes revoluções.
O primeiro período Nesse primeiro período, o homem ainda não atingiu o esta do propriamente social, mas, já afastado do equilíbrio estático primitivo, resvalou para uma condição na qual é empurrado gradativamente para a sociedade. É o período que alguns comentadores propõem que se denomine estado de natureza histórico, que não deve ser confundido com o estado de natureza descrito na primeira parte.
Surgidas então as primeiras dificuldades, o indivíduo deve recorrer à própria iniciativa ou exercitar sua criatividade para aprender a vencê-las. A altura das árvores, por exemplo, ou a concorrência dos outros animais, levou-o a exercícios corporais. As condições climáticas — os longos invernos ou os longos verões — levaram-no a uma nova indústria: alguns inventaram a pesca, e outros, em condições diferentes, a caça. Se considerarmos a figura do próprio homem, vamos perceber alterações. Ao animal limitado às puras sensações que era o primitivo puro, vemos su ceder um indivíduo novo, que já é capaz de estabelecer relações entre as coisas e que já se acha dotado de uma espécie de reflexão ou "uma prudência maquinal que lhe indica precauções as mais necessárias à sua segurança". Surge, portanto, um conhecimento maior de si mesmo e concomitante conhecimento maior de seu semelhante enquanto tal. Finalmente, quanto às relações entre os homens, com base nas observações que o indivíduo agora é capaz de fazer sobre seu semelhante, criamse as condições para a instauração de um verdadeiro vínculo. Na condição anterior, o que predomina va era a ausência de vínculos. Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, ele se encontrou em estado de distinguir entre as ocasiões raras em que o interesse comum devia fazê-lo contar com a assistência de seus semelhantes e aquelas mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou, quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não obrigava ninguém e só durava tanto quanto a necessidade passageira que a reunira.
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Este é então o primeiro momento neste período e pode ser definido como o das associações livres: nele vemos o esboço ou o germe de uma sociedade. Mas ainda nos achamos muito longe de um vínculo social efetivo, já que a ligação, além de descompromissada, é inteiramente fugaz, esgotando-se com a própria realização do objetivo para o qual se estabeleceu. Daí por diante, com base nos desenvolvimentos anteriores, os progressos se acumularão e darão lugar a uma nova revolução e a uma segunda etapa. Trata-se a princípio de uma revolução técnica: a construção de cabanas. Ela é concomitante e correlativa a uma mudança no vínculo social: graças às condições materiais constituídas pela construção de cabanas, criam-se as famílias. À dispersão, que comandava o relacionamento até mesmo entre pais e filhos, sucederá um vínculo mais duradouro entr e indivíduos qu e passam a compartilhar de um mesmo espaço de habitação. Novas "luzes" e novos sentimentos — como o amor conjugal e o amor paterno — vão compondo um novo figurino humano. A terceira etapa será caracterizada como a da sociedade começada. Levadas por circunstâncias fortuitas e vivendo numa permanente vizinhança, as famílias acabam por se reunir e formar bandos mais permanentes e, afinal, uma nação particular, unida por costumes e não por regulamentos e leis. Esse momento de juventude do mundo, que corresponde mais ou menos ao grau em que chegou a maioria dos povos selvagens que nos é conhecida, constitui a época mais feliz e melhor para o homem, já que se situa em um justo meio entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de nosso amor-próprio. Reconstituindo assim o primeiro segmento, já vemos instalado o processo de diferenciações, mas não ainda a desigua ldade. Sua origem só se dará a partir de agora.
Transição para o estado civil É com a introdução da propriedade que esse estado de juventude será destruído. E começa a ser elaborada a idéia de propriedade, de que algo me pertence com exclusividade, de que poss o dispor de algo em condições absolutas, com exclusão de todos os demais. Estas também me excluem da posse e do uso dos bens de qu e se ima gina m proprietários. A noção de proprieda de nã o é uma idéia inata que acompanha o homem desde os tempos primitivos, mas é uma idéia adquirida, resultante de um aperfeiçoamento das "luzes". A partir de determinado momento, os homens que nada possuíam de seu e tudo partilhavam no seio da tribo, passaram a manter sob seu domínio exclusivo os frutos de seu trabalho ou a terra que trabalham. Enquanto se dedicavam a uma economia de subsistência que não necessita do concurso uns dos outros, os selvagens viviam não só felizes como se bastavam a si mesmos e ignoravam a propriedade. Essa situação não pôde persistir diante do aparecimento de novos obstáculos ou da acumulação de novas "luzes". Uma nova revolução tecnológica teve lugar: a invenção da agricultura e a da metalurgia. O ferro e o trigo é que "civilizaram os homens e
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perderam o gênero humano". Da invenção dessas artes, medianteas quais se intervém de maneira insuspeitada no curso dos processos naturais, brotou como conseqüência inevitável a divisão do trabalho e a propriedade privada, "pois desde que foram necessários homens para fundir e forjar o ferro, foram necessários outros homens para nutrir aqueles". Para subsistir, os indivíduos passaram a depender do trabalho alheio. O novo vínculo se constitui mediante a troca dos produtos que são objeto de uma apropriação exclusiva. Mas é também dessa apropriação excludente que as disparidades vão se nutrir e a partir dela é que poderão fortalecer-se as desigualdades, apoiadas nas próprias variedades ambientais e nas diferenças naturais entre os proprietários. Alguns, por exemplo, serão capazes de acumular mais riquezas do que outros. São essas transformações, conseqüência da apropriação privada dos meios de produção e dos frutos do trabalho, que exigirão e conduzirão inevitavelmente ao ingresso propriamente dito na sociedade civil. Esse momento de transição é caracterizado por Rousseau em termos próximos aos de Hobbes, como um "estado de guerra" generalizado, que ameaça a própria sobr evivência da humanidade. (Para Hobbes, esse estado de guerra é um estado natural.) Com a instituição da propriedade privada e conseqüente desigualdade, cria-se entre ricos e pobres um estado permanente de desavença e uma verdadeira "luta de classes". (Rousseau na() utilizou essa expressão.) Elevava-se entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante, um conflito perpétuo que não terminava a não ser por meio de combates e de assassínios. A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de guerra: o gênero humano, envilecido e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às aquisições infelizes que fizera, e trabalhando somente para sua vergonha, para o abuso das faculdades que o honram, pôs-se a si mesmo nas vésperas de sua ruína.
Para pôr fim a essa guerra generalizada e impedir a ruína, surge entre os homens a idéia de um acordo, um "pacto social", que estabeleça leis e regulamentos que todos se obriguem igualmente a respeitar. Eis então instituída a sociedade. Eis constituída uma ordem social que, acima dos interesses antagônicos, deverá resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitui a guerra pela paz social. Isso, ao menos, teoricamente. Na realidade, a instituição de uma ordem legal, ao mesmo tempo em que promove a paz, legitima a propriedade privada e dá respaldo às desigualdades existentes. A partir daí e seguindo o mesmo mecanismo já apontado, mais duas etapas caracterizam a evolução das relações sociais e conduzem até o ponto em que nos encontramos: Se seguirmos o avanço das desigualdades nessas diferentes revoluções, verificaremos que seu primeiro termo se constituiu no estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição do governo é o segundo termo; o terceiro e último termo é a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o
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estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e de fraco, pela segunda; pela terceira, o de senhor e escravo, que é o último grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o governo ou o aproximem da instituição legítima.
Ao término dessa genealogia vemos como o autor responde de maneira sistemática e completa à questão sobre a desigualdade. Mas ele vai além da questão e propõe uma complexa hipótese teórica a respeito da gênese e do desenvolvimento das relações sociais. Mostrando como os progressos da desigualdade são concomitantes e correlativos aos progressos da vida em sociedade, Rousseau nos fornece uma teoria da sociedade e uma visão da história. Agora podemos apreciar melhor o sentido das críticas de Rousseau à civilização: o progresso das "luzes", o aumento das desigualdades e a corrupção das paixões primitivas são partes de um só processo. O "amor próprio", paixão que acaba por pr edominar no homem civilizado, é a grande criação, considerando-se o ponto de vista moral. É essa paixão destruidora que responde, em última instância, pelo estado de verdadeira alienação, de sa ída de si e da própria órbita que caracterizará a vida na sociedade "civilizada". Transformando-se em verdadeiro "furor de se distinguir", essa paixão leva o civilizado a prezar acima de tudo as honrarias, a reputação e a opinião alheia. Retomando uma fórmula expressiva do filósofo: enquanto o selvagem "vive em si mesmo", o "homem sociável", sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais.
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T extos selecionados
Desigualdade natural ou política Nos trechos seguintes, vemos operando, de maneira mais pormenorizada, a mesma lógica que opõe incessantemente os termos natureza e sociedade. Estamos sempre às voltas com a idéia de um fundo original constitutivo do homem e da corrupção e da alteração que lhe é imposta ao longo do tempo pela consolidação das ligações sociais entre os homens. Os textos são extraídos do
Discurso sobre a origem da desigualdade. Deixando de lado, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens como eles se fizeram, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação, e outro nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes. Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário nela imiscuir o da sociabilidade, parecem-me decorrer todas as regras do direito natural, regras essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer com outros fundamentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega a ponto de sufocar a natureza. ******* (...) É do homem que devo falar e a questão que examino me diz que vou falar a homens, pois não se propõem quest ões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que me convidam a fazê-lo, e não ficarei descontente comigo mesmo se me tornar digno de meu assunto e de meus juízes. Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vári os privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles. Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a resposta estari a enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam vale m ne cessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que procuram a verdade. De que se trata, pois, precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeament o de prodígios o forte pôde resol ver-se a ser vir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real. Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou até lá. Uns não hesitaram em supor no homem, nesse estado, a noção do justo e do injusto, sem preocupar-se em mostrar que ele deveria ter essa noção, nem que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural,
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que cada um tem, de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando inicialmente ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o governo, sem se lembrar do tempo que deveria decorrer antes que pudesse existir entre os homens o sentido das palavras autoridade e governo. Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil. Não chegou mesmo a surgir, no espírito da maioria dos nossos, a dúvida quanto a ter existido o estado de natureza, conquanto seja evidente, pela leitura dos livros sagrados, que, tendo o primeiro homem recebido imediatamente de Deus as luzes e os preceitos, não se encontrava nem mesmo ele nesse estado e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhes deve todo filósofo cristão, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se tenham encontrado no estado puro de natureza, a menos que não tenham tornado a cair nele por causa de qualquer acontecimento extraordinário — paradoxo bastante difícil de defender e completamente impossível de provar. Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão. Não se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste assunto, como verdades históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem e semelhantes àquelas que, todos os dias, fazem nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer que, tendo o pró prio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da Criação, são eles desiguais porque assim o desejou; ela não nos proíbe, no entanto, de formai conjeturas extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria transformado o gênero humano se fora abandona do a si mesmo. Eis o que me perguntam e o que me proponho a examinar neste Discurso. Interessando meu assunto ao homem em geral, esforçar-me-ei por em pregar uma linguagem que convenha a todas as nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares para só pensar nos homens a quem falo, supor-me-ei no Liceu de Atenas, repetindo as lições de meus mestres, tendo os Platões e os Xenócrates como juízes e o gênero humano como ouvinte. Ó, homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, ouve-me; eis tua história como acreditei tê-la lido não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza, que jamais mente. Tudo o que estiver nela será verdadeiro; só será falso aquilo que, sem o querer, tiver misturado de meu. Os tempos de que vou falar são muito distantes; como mudaste! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que vou descrever de acordo com as qualidades que recebeste, e que tua educação e teus hábitos puderam falsear, mas não puderam destruir. Há, eu sei, uma idade em que o homem individual gostaria de parar; de tua parte, procurarás a época na qual desejarias que tua espécie tivesse parado. Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz posteridade maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de retrogradar. Tal desejo deve constituir o elogio de teus primeiros antepassados, a crítica de teus contemporâneos e o temor daqueles que tiverem a infelicidade de viver depois de ti.
[Instinto e liberdade] (...) Até aqui levei em consideração somente o homem físico; esforcemo-nos por encará-lo, agora, em seu aspecto metafísico e moral. Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro, por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, freqüentemente se afasta dela. Assim, um pombo morreria de fome perto de um prato cheio das melhores carnes, e um gato sobre um monte de frutas ou de sementes, embora tanto um quanto outro pudessem alimentar-se muito bem com o alimento que desdenham, se fosse atilado para tentá-lo; assim, os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade ainda fala quando a natureza se cala. Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto, e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do
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que entre um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica.
[Perfectibilidade] Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre diferença entre homem e animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação: é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e — enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto — o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, fonte de todos os males do homem, seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranqüilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original. O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez, compensado do que lhe falta por faculdades capazes de a princípio supri-lo e depois elevá-lo muito acima disso, começará, pois, pelas funções puramente animais. Perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não querer, desejar e temer serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos. ******* Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando essas palavras num sentido físico, se considerem como vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderia chamar de mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza. Sem nos afastarmos do senso comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos fazer de uma tal situação e desconfiar de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados; ou se suas virtudes são mais proveitosas do que funestos seus vícios; ou se o progresso de seus conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se causam mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não estariam, na melhor das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a esperar de ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a receber tudo daqueles que nada se obrigam a lhe dar.
[Hobbes] Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a
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virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes serviços que não crê dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui com razão relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietário do universo inteiro. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas de direito natural, mas as conseqüências, que tira das suas, mostram que o toma num sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os princípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era, conseqüentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz justamente o contrário por ter incluído, inoport unamente, no desejo de conservação do homem selvagem a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram as leis necessárias. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o homem selvagem é uma criança robusta. Mesmo que se concordasse com ele, que se concluiria? Que, sendo esse homem, quando robusto, tão dependente dos outros quanto quando fraco, não haveria espécie alguma de excessos a que não se entregasse; que bateria em sua mãe quando tardasse muito a dar-lhe o peito, que estrangularia um de seus irmãos mais moços quando o incomodasse, que morderia a perna de um semelhante quando estivesse ferido ou perturbado. Constituem, porém, duas suposições contraditórias ser, no estado de natureza, robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente e, antes de ser robusto, se emancipa. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impede também de abusar de suas faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his cognitivo virtutis.
[Piedade] Há, aliás, outro princípio que Hobbes não percebeu: é que, tendo sido dado ao homem, em certas circunstâncias, suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou o desejo de conservação antes do nascimento desse amor, tempera, com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante, o ardor que consagra ao seu bem-estar. Não creio ter a temer qualquer contradição, se conferir ao homem a única virtude natural que o detrator mais acirrado das virtudes humanas teria de reconhecer. Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes são dela alguns sinais perceptíveis. Sem falar da ternura das mães pelos filhinhos e dos perigos que enfrentam para garanti-los, comumente se observa a repugnância que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do h orrível espetáculo que o impressiona. Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das abelhas forçado a reconhecer o homem como um ser compassivo e sensível, sair, no exemplo que nos dá, de seu estilo frio e sutil para oferecer-nos a imagem patética de um homem aprisionado que descobre lá fora uma besta feroz arrancando um filho do seio de sua mãe, estraçalhando com os dentes assassinos seus fracos membros e rasgando com as unhas as entranhas palpitantes dessa criança. Que agitação tremenda não experimenta essa testemunha de um acontecimento pelo qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústias não sofre com esse espetáculo, sem poder levar socorro algum à mãe desfalecida ou à criança moribunda! Tal o moviment o puro da natureza, anterior a qualquer refl exão; tal a força da piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir, porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se e chorar por causa das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu inimigo, como o sanguinário Sila, tão sensível
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aos males que não tinha causado, ou aquele Alexandre de Fers, que não ousava assistir à representação de uma tragédia, temendo que o vissem chorar com Andrômaca e Príamo, enquanto ouvia sem emoção os gritos de tantos cidadãos que, por sua ordem, eram degolados cada dia.
Mollissima corda Humano generi dare se natura fatetur, Quae lacrymas dedit. "A natureza, dando-lhe lágrimas, reconhece que deu ao gênero humano corações muito ternos." Juvenal, Sátira XV, verso 131. Mandeville compreendeu muito bem que, com toda a sua moral, os homens jamais passariam de uns monstros se a natureza não lhes tivesse conferido a piedade para apoio da razão; não compreendeu, no entanto, decorrerem somente dessa qualidade todas as virtudes sociais que quer contestar nos homens. Com efeito, que são a generosidade, a clemência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie humana em geral? Até a benquerença e a amizade são, bem entendidas, produções de uma piedade constante fixadas num objeto especial, pois desejar que alguém não sofra não será desejar que seja feliz? A ser verdadeiro que a comiseração não passa de um sentimento que nos coloca no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civil, que importará tal idéia para a verdade do que digo, senão para dar-lhe mais força? A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação deve ser infinitamente mais íntima no estado de natureza do que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo; separa-o de quanto o perturba e aflige. É a filosofia que o isola; por sua causa, diz ele, em segredo, ao ver um homem sofrendo: "Perece, se queres; quanto a mim, estou seguro". Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranqüilo do filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar um seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que se assassina. O homem selvagem de modo algum possui esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimentode humanidade. Nos motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente.
Surge a sociedade Até agora nos foi mostrado o homem tal como é essencialmente, em seu estado original, antes das alterações por ele sofridas uma vez abandonada essa condição primitiva. A seguir, Rousseau nos mostra as sucessivas alterações que ocorrem a partir do momento em que as relações sociais se estabilizam. O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, sua primeira preocupação a de sua conservação. As produções da terra forneciam-lhe todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles. Como a fome e outros apetites o fizessem experimentar sucessivamente novas maneiras de existir, houve um que o convidou a perpetuar sua espécie, e essa tendência cega, desprovida de qualquer sentimento do coração, não engendrou senão um pacto puramente animal; uma vez satisfeita a necessidade, os dois sexos não se reconheciam mais e o próprio filho, assim que pôde viver sem a mãe, nada mais significava para ela. Essa foi a condição do homem nascente; essa foi a vida de um animal limitado inicialmente às sensações puras que, tão-só se aproveitando dos dons que a natureza lhe oferecia, longe estava de pensar em arrancar-lhes alguma coisa. Mas logo surgiram dificuldades e impôs-se aprender a vencê-las; a altura das árvores, que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que procuravam nutrir-se deles, a ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a própria vida, tudo o obrigou a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se encontraram em sua mão. Aprendeu a dominar os obstáculos da
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natureza, a combater, quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. (...)
!Primeiras ligações] Tudo começa a mudar de aspecto. Até então errando nos bosques, os homens, ao adquirirem situação mais fixa, aproximam-se lentamente e por fim formam, em cada região, uma nação particular, una de costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas, sim, pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de, afinal, engendrar algumas ligações entre as famílias. Jovens de sexo diferente habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro, exigido pela natureza, logo induz a outro, não menos agradável e mais permanente, pela freqüentação mútua. Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente, adquirem-se idéias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se verem, não podem mais deixar de novamente se verem. Insinua-se na alma um sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso; com o amor surge o ciúme, a discórdia triunfa e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano. À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência. ******* Descobrindo e seguindo, desse modo, os caminhos esquecidos e perdidos que levaram o homem do estado natural ao estado civil, restabelecendo, com auxílio das posições intermediárias que acabo de assinalar, aqueles que o tempo premente me fez suprimir ou a imaginação não me sugeriu, qualquer leitor atento deverá impressionar-se com o espaço imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão de coisas que encontrará a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política, que os filósofos não podem resolver. Compreenderá que o gênero humano de uma época não sendo o gênero humano de outra, esta é a razão por que Diógenes não encontrava um homem, pois ele procurava entre seus contemporâneos o homem de uma época já passada. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e com a liberdade, porque se encontrava deslocado no seu século e o maior dos homens simplesmente surpreendeu o mundo que deveria ter governado quinhentos anos antes. Em uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas, alternando-se insensivelmente, mudam, por assim dizer, de natureza; por que nossas necessidades e nossos prazeres mudam de objeto com o decorrer dos tempos; por que, desaparecendo gradativamente o homem natural, a sociedade só oferece aos olhos do sábio uma reunião de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas relações novas e não têm nenhum fundamento na natureza. [O selvageme o civilizada] O que a reflexão nos ensina a esse propósito a observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade, e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se
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sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um caraíba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente, ao horror de uma tal vida que freqüentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. Tal, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes. Não cabe no meu assunto mostrar como de uma tal disposição nasce tamanha indiferença pelo bem e pelo mal, com tão belos discursos sobre a moral; como, reduzindo-se às aparências, tudo se torna artificial e representado, seja a honra, a amizade, a virtude, freqüentemente mesmo os próprios vícios com os quais por fim se encontra o segredo de se glorificar; como, em uma palavra, perguntando sempre aos outros o que somos e não ousando jamais interrogar-nos a nós mesmos sobre esse assunto, em meio a tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, só temos um exterior enganador e frívolo, honra sem virtude, razão sem sabedoria e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado não ser esse, em absoluto, o estado original do homem e que unicamente o espírito da sociedade e a desigualdade, que ela engendra, é que mudam e alteram, desse modo, todas as nossas inclinações naturais. Esforcei-me por expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, quanto possam essas coisas deduzir-se da natureza do homem unicamente pelas luzes da razão e independentemente dos dogmas sagrados, que dão à autoridade soberana a sanção do direito divino. Conclui-se dessa exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis. Conclui-se, ainda, que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não ocorre, juntamente e na mesma proporção, com a desigualdade física — distinção que determina suficientemente o que se deve pensar, a esse respeito, sobre a espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira por que a definamos, uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta o necessário.
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ão há dúvida de que uma visão como a de Rousseau sobre a história humana é profundamente negativa. Pois o que é, afinal, esse longo processo de evolução senão a gênese de nossos vícios e dos nossos males e a nossa história, senão um movimento de queda, tal como no relato bíblico? Expulso do Paraíso, o homem está condenado a ser o lobo do homem. Todo esse pessimismo histórico, pelo menos, salva o homem e sua natureza essencial. O próprio homem enquanto homem é absolvido ao término de todo esse laborioso exame crítico. Ao pessimismo histórico contrapõe-se um otimismo antropológico. Significa então que nem tud o está perdido? De fato, se é ao mau uso da liberdade humana no convívio com os semelhantes que podemos atribuir o desvio constatado, não será possível tentar um recomeço, construir uma nova história? Não seria possível, ao menos em teoria, imaginar uma sociedade diferente, conceber outros pactos, outras instituições sociais, outras leis, outras formas de governo, outras relações de produção que conduzissem o homem a um reencontro consigo mesmo? É para algumas dessas questões que, depois da parte negativa da sua obra, Rousseau se viu impelido. Do esforço para resolvê-las brotaram algumas outras obras-primas, e o século XVIII viu surgirem algumas das instituições filosóficas que mais decisivamente marcaram a história política do Ocidente. No ano de 1762 foram publicadas, e logo anatematizadas pelas autoridades do Antigo Regime, as duas outras obras principais de Rousseau, nas quais, depois da crítica demolidora, ele se consagra às propostas de reconstrução: o Contrato social e o Emílio. De dimensões diferentes, elas abordam aspectos diferentes do problema. No Contrato, o problema é a organização política global da sociedade; o Emílio trata das possibilidades pedagógicas de livrar um indivíduo da corrupção circundante. As duas perspectivas se articulam e se completam.
O direito político O Contrato é um "pequeno tratado" extraído de uma obra bem mais vasta que se intitularia Instituições po]íticas, com a qual o autor diz ter sonhado a vida toda, mas que não chegou a completar e acabou por destruir, dela conservando apenas esse pequeno extrato. Provocando muita repulsa e grande controvérsia, e após ter sido proibido em Paris e queimado em Genebra, o livro não cessou de ampliar sua influência, ganhando sucessivas edições e acabando por se converter no grande evangelho dos revolucionários de 1789. Dividido em quatro partes — que o autor chamou de "livros" — o Contrato tem como subtítulo: "Princípios do direito político". Nele encontramos uma determinação da essência da sociedade política justa e eficaz, uma caracterização de suas formas principais e uma definição das leis essenciais do seu funcionamento. Quais os princípios, os critérios fundamentais a
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partir dos quais podem ser avaliados e julgados os governos, a conduta dos governantes e as relações dos homens entre si em uma sociedade? Se o grande problema das sociedades que temos diante de nós é a desigualdade e a opressão, a questão agora poderia ser formulada assim: "Em que condições é possível existir uma sociedade na qual se realize o máximo de liberdade e o máximo de igualdade?". Esses dois valores, porém, só se explicitarão depois. No início do Contrato o problema é definido em termos diferentes: Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as
leis como podem ser. Os "princípios do direito político" serão assim um instrumento de medida que nos permitirá avaliar as sociedades políticas existentes. No primeiro livro, constituído de nove capítulos , é definida essa regra fundamental. Nos livros subseqüentes é mostrado como a regra funciona, ou como são extraídas conseqüências quanto à estrutura ou ao funcionamento do corpo político. Este é um problema análogo ao do segundo Discurso: assim como antes se procurava determinar a essência do homem para bem julgar a respeito de seu "estado presente", pretende-se agora captar a essência da sociedade política para bem julgar a respeito das sociedades existentes. Mas atenção: Rousseau não se dedica apenas ao problema teórico da justiça, mas está preocupado em ver de que modo justiça e utilidade podem ser conciliadas. Não se trata de ver em termos ideais como seria uma sociedade concebida segundo a justiça, mas de conciliá-la com o plano do interesse, sabendo-se que os homens, tais como são, governam-se pelo princípio da utilidade ou do amor de si. Não se trata de conceber uma sociedade apenas segundo os imperativos do "dever ser" ou da moral pura, mas uma sociedade humanamente viável que sintetize de maneira harmoniosa as exigências da justiça com as exigências materiais de bem viver.
O poder político em questão "O homem nasceu livre", lemos no início do Contrato. Mas "por toda parte ele se acha sob grilhões". Essa contradiçã o é o motor principal da investigação. Posta agora em termos políticos, ela continua operando por meio do jogo entre dois termos que se contrapõem: a natureza, definida como espaço de liberdade, e a sociedade, denunciada como uma vasta r ede, uma ampla teia de relações de dependência. "Como se deu essa mudança? Ignoro-o. O que é que pode torná-la legítima? Eu acredito poder resolver essa questão". Uma problemática preliminar: como explicar esse fato, à primeira vista chocante, da dependência generalizada? Em que condições é possível conceber uma dependência legítima? O que legitima uma autoridade política? Qual é o fundamento do poder político? Sob que títulos poderá uma autoridade exigir respeito? Sob que títulos a obediência a uma autoridade política pode ser justificada? Questões explosivas que se renovam desde os albores do pensamento político e que, desde o século XVII, adquiriram aguda intensidade. Com efeito, é a partir do século anterior ao de Rousseau, em particular com Locke, que começam a se questionar radicalmente as bases do poder político: é o "assalto contra o absolutis mo". A autoridade
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monárquica, que até então parecia impor-se naturalmente, deve agora ser fundada na Razão. Mesmo em um autor como Hobbes, que não pode ser classificado entre os campeões do anti-absolutismo, é radical o questionamento das bases do poder à medida que ele postula uma convenção primeira capaz de justificar a obediência de um conjunto de indivíduos a determinadas regras de convivência. Rousseau seguiu o esquema do "contratualismo", mas introduziu grandes novidades na concepção desse pacto fundador da sociedade política. De acordo com Rousseau, a ordem social é descontínua em relação à ordem natural: ela "não vem da natureza", mas está "fundada em convenções". Nesse primeiro livro do Contrato, o filósofo tenta justificar essas proposições iniciais, mostrando como a sociedade não provém da natureza e quais as convenções sobre as quais se funda. Rousseau refuta diferentes teses que tentam apoiar a autoridade seja na família, seja na força ou sobre um suposto direito de escravidão. (As teses que tentam naturalizar a obediência ou a autoridade política são refutadas por Rousseau nos capítulos II, III e IV do Livro I.) Detenhamo-nos agora na idéia rousseauniana da convenção primitiva: em que termos a concebeu? Embora acompanhe os contratualistas, ele introduz modificações.
O pacto primitivo Os autores costumam distinguir dois momentos no pacto ou até mesmo dois pactos: de associação, mediante o qual os pactuantes concordam em fazer parte de uma mesma sociedade; de submissão, em que as partes concordam em se submeter a um mesmo governo. Rousseau elimina essa segunda idéia, deixando de conceber a instituição de um governo segundo o esquema contratual e fala apenas em um pacto, o de fundação da sociedade. Esse pacto constituinte é o ato pe]o qua] um povo é um povo, aquilo que faz com que um povo se diferencie de um agregado caótico de indivíduos. É no cap ítulo VI do Livro I, centro de todo o tratado, que são fixados os termos do pacto. Supondo que os homens atingiram um estágio de evolução no qual já não podem dispensar o auxílio dos semelhantes, Rousseau formula o problema em termos de uma conju gação de esforços que não venha a ser prejudicial à liberdade, este dom natural que nos define como homens. O problema se resume em "encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um unindo-se a todos não obedeça contudo senão a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes". Em que termos terá de ser estipulado tal pacto para que essas exigências, aparentemente contraditórias, venham a ser igualmente atendidas? Um tal contrato terá de ter como cláusula central: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. O que significa isso? Como, de uma alienação, ou entrega total a outrem, poderá resultar a liberdade? Aqui, a formulação rousseauniana inova radicalmente. A entrega de si e de seus bens e a submissão total não serão estipulados em favor de um outro indivíduo que viria a se constituir na autoridade política, árbitro encarregado por todos de dirimir os conflitos.
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Esse despoja-mento se fará em favor da própria comunidade como um todo. Esse é um ponto essencial, em relação ao qual toda a atenção é pouca, pois essa inovação fará toda a originalidade do pacto rousseauniano. Segundo os termos desse pacto, cada associado concorda em se colocar "sob a suprema direção da vontade geral". Vontade geral... Eis anunciado e enunciado pela primeira vez um conceito-chave. Quando concordamos em nos submeter, todos os outros pactuantes concordam também em se colocar sob a direção, suprema, não de uma vontade alheia, mas da vontade coletiva da própria comunidade, daquela vontade que visa acima de tudo ao interesse coletivo. É somente a autoridade da comunidade como um todo e as leis que dela emanam que devem ser reconhecidas como politicamente legítimas: eis o que estipula a cláusula do pacto. Falar em suprema direção da vontade geral é outra maneira de defini-la como a autoridade soberana. Esse outro conceito-chave da filosofia política, que Rousseau também buscou em Hobbes, embora lhe conferindo um estatuto radicalmente novo, logo aparecerá: o capítulo VI define como é o soberano. Mais adiante, a soberania é definida como o "exercício da vontade geral". Haverá autêntica comunidade quando a vontade geral prevalecer soberana e invariavelmente diante dos interesses individuais eventualmente conflitantes. O soberano deixa de ser identificado com a figura do monarca: passa a ser a própria comunidade, surgida em função do pacto. Eis definida a regra suprema que Rousseau se propunha a buscar. A vontade geral é esse critério último, a partir do qual deverá ser julgada, ordenada e conduzida toda a vida coletiva. Suprema regra de administração, é ela que deve prevalecer em quaisquer circunstâncias. É ela que deverá orientar o comportamento de todos os associados no cumprimento de suas respectivas e diferenciadas funções sociais e políticas até agora ainda não discriminadas.
Dicionário político Com o pacto, cria-se uma nova realidade. Rousseau procede à cerimônia de batismo desse recém-nascido corpo coletivo e convencional fixando, ainda no capítulo VI, alguns dos termos principais do seu vocabulário político. Encontramos no último parágrafo do capítulo um pequeno dicionário político rousseauniano, onde termos usuais, mas ambíguos e equívocos, ganham uma extrema precisão técnica: A partir desse momento, no lugar da pessoa particular de cada contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos a assembléia tem de votos, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública que assim se forma pela união de todos os outros tomava outrora o nome de cidade e toma agora o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando é passivo, de soberano quando é ativo, e potência, comparando-a a seus semelhantes. Em re]ação aos associados, eles tomam coletivamente o nome de povo e se chamam em particular cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do Estado.
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Como vemos, a mesma entidade é nomeada por três séries de três termos que a definem segundo pontos de vista diferentes. Do ponto de vista, por exemplo, do cientista político, a comunidade pode ser dita: cidade, república ou corpo político. Pelos seus membros, ela é chamada de: estado, soberano, potência. Finalmente, considerando-se o conjunto dos associados que a compõem, eis outros três nomes diferentes: povo, cidadãos e súditos. Através dessa sutil rede terminológica, acha-se não apenas batizada, mas determinada a comunidade política na complexidade de suas relações, ou se acha ordenada a multiplicidade de relações que os elementos constitutivos desse todo mantêm entre si. Falar em "república" ou "corpo político", por exemplo, é o mesmo que se referir à comunidade regida pela vontade geral soberana. Passando para o lado dos indivíduos integrantes do todo, podemos designar essa comunidade como sendo o povo e falar, no lugar de soberania da vontade geral, em soberania do povo. Em suma: uma república é o corpo político no qual o soberano é o povo.
Com essa nomenclatura, termos do vocabulário político usual, marcados por pr ofunda ambigüida de e inteir amente ga stos, ganham uma pr ecisão quase matemática. Mas sobretudo a própria doutrina política sofre uma revolução notável. Inflamado por sua ousadia teórica e por sua paixão democrática, Rousseau desaloja a soberania do seu lugar tradicional, não só na teoria dos doutos, mas na prática dos tiranos e na imaginação dos ingênuos, transferindo-a para o povo. Não tardará para que o eco de um tal gesto se faça ouvir na dimensão turbulenta e profunda dos acontecimentos históricos. Não contente em atr ibuir a soberania ao povo, nosso autor também forneceu dessa entidade uma definição rigorosa. O que é povo? Povo, diz o cidadão de Genebra, é o conjunto dos cidadãos designados enquanto formam uma comunidade. Mas o que é um cidadão?
Cidadania e autonomia O cidadão, diz o dicionário, é o associado considerado "participante da autoridade soberana". O que significa isso? Se nos lembrarmos das condições do pacto, veremos claramente que a vontade geral soberana, ou o corpo coletivo, é composto por todos aqueles que nele têm voz. Da formação dessa vontade coletiva devem participar, com voz e voto, todos os associados. Na acepção rigorosa do termo, é cidadão aquele que produz a vontade coletiva, mediante sua atuação legislante. Essa vontade é uma resultante do conjunto das vontades dos associados. Não uma soma de suas vontades enquanto indivíduos que visam apenas a seu interesse particular, mas uma expressão da vontade de cada indivíduo quando imbuído do interesse coletivo e visando ao bem comum. É somente nessas condições que os indivíduos que se entregam à comunidade serão tão livres quanto antes. Submetendo-se enquanto súditos à vontade geral, os membros da associação se submeterão à sua própria vontade enquanto cidadãos que participam da formação da vontade coletiva. Somos livres, diz Rousseau, quando nos submetemos à "lei que nós próprios nos prescrevemos" (Livro I, capítulo VIII). Submetendo-me à vontade geral, submeto-me, por conseguinte, à minha própr ia vontade:
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"A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não estar submetido à de outrem". Kant retoma essa idéia e batiza com o termo autonomia (do grego autós — próprio — e nomos — lei) a liberdade no plano moral. À idéia de autolegislação contrapõe-se a noção de heteronomia, condição em que a vontade é determinada por algo que lhe é exterior. Mas a entidade política, criada com o pacto, pode ser designada ainda por outr o nome que aparece freqüentemente em todo o restante da obra. É o termo pátria, sinônimo de corpo político, e que o designa de um ponto de vista afetivo. Uma comunidade autêntica é uma pátria cujos modelos constantes são, além de Genebra, a cidade de Esparta e a República de Roma. Desse ponto de vista, o cidadão é o indivíduo cuja paixão predominante é o amor a pátria. Ao contrário, deixa de haver comunidade e pátria, quando o interesse privado comanda e a paixão predominante dos indivíduos passa a ser o amor-próprio.
Contra o filósofo-Rei A partir dessa regra — a vontade geral — e de sua "suprema direção", será deduzida uma série de conseqüências, ao mesmo tempo em que se enriquece o dicionário político aqui elaborado. Fixada a regra, cabe perguntar: por meio de que mecanis mos e de que expedientes poderá, em uma sociedade qualquer, cumprir-se o exercício da vontade geral? É da contradição entre a vontade geral e as dificuldades da vida coletiva que surgem os novos problemas e a nova dimensão de questões. Aos homens — sendo falíveis e corruptíveis, tendendo a usar mal sua liberdade e se perdendo pelos descaminhos do amor-próprio — torna-se difícil a realização dos valores. A comunidade artificial, dado o fato de não ser um hiperorganismo dotado de coesão absoluta como o organismo animal, está permanentemente ameaçada de corrosão, já que é formada pelos particulares que a compõem, os quais tendem permanentemente à auto-afirmação exclusiva. Voltamos, assim, a nos defrontar com a contradição fundamental entre o indivíduo natural e as exigências da vida coletiva: todo indivíduo é, ao mesmo tempo, homem e cidadão. Ele estará permanentemente dilacerado entre as imposições desses dois opostos. Num pla no abstrato, considerando a socieda de em geral e não esta ou aquela, encontram-se diferentes dificuldades na manifestação da vontade geral. A primeira delas é que, não sendo identificável à vontade de um organismo vivo, a vontade geral precisa ser fixada através de um conjunto de leis escritas. Mediação necessária entre a vontade e sua efetivação, a lei é definida como a declaração expressa da vontade geral. Por outro lado, a elaboração das leis em qualquer sociedade é uma tarefa bastante complexa; além de reclamar de seu executor a capacidade de se elevar a um ponto de vista universal, deve ser capaz de abranger a vida coletiva em sua vertiginosa multiplicidade de relações. A elaboração das leis exige "luzes" especiais. Raramente esclarecido, na maior parte das vezes, o povo só assume sua verdadeira identidade por obra da pedagogia das instituições e, portanto, no término do processo. Necessita, assim, de guias, de líderes, verdadeiros parteiros capazes de assisti-lo na tarefa de dar à luz sua própria vontade, de traduzi-Ia por um sistema de leis. Os intérpretes competentes
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dos anseios populares são necessários, e o democratismo de Rousseau não o leva a uma cegueira em relação à realidade das condições de existência do povo e de suas possibilidades. Esse guia é chamado de "legislador", a cuja conceituação é dedicado todo o capítulo VII do Livro I. Os grandes modelos de legislador são Moisés, (do povo hebreu), Licurgo (de Esparta) e Numa Pompílio (2° rei legendário de Roma). Segundo Rousseau, para esses verdadeiros filósofos que devem ser os legisladores, não será reivindicado nenhum poder dentro do Estado, ao contrário do ideal do rei-filósofo, reavivado pelo Iluminismo. (Ver, de nossa autoria, O Iluminismo e os reis-filósofos, Brasiliense.) O legislador não tem, ou não deve ter, nenhum direito legislativo e o povo mesmo não pode, ainda quando o quisesse, despojar-se desse direito incomunicável, porque, segundo o pacto fundamental, só a vontade geral pode obrigar os particulares e não podemos nunca nos ass egurar de que uma vontade particular é conforme à vontade geral senão depois de tê-la submetido aos sufrágios livres do povo.
Admitir a necessidade de mediação desse redator das leis não significa renunciar ao princípio da soberania popular.
Governo e desgoverno Os dois últimos livros do Contrato são dedicados ao funcionamento do corpo político. A questão central é: "por meio de que mecanismos o corpo político assegura sua autoconservação?". Se tomarmos como modelo o organismo individual, que dispõe de diferentes instrumentos — órgãos, membros, sentidos — para assegurar sua sobrevivência e reprodução, poderíamos indagar quais seriam os instrumentos de que o "organismo político" dispõe para sua autoconservação. Aqui Rousseau raciocina diretamente inspirado na comparação com o indivíduo livre. Para que um agente livre possa agir, é preciso que tenha vontade de agir. Mas ele também necessita de forças para isso; por exemplo, que suas pernas estejam aptas a levá-lo até o objeto do querer. Além da vontade, é possível distinguir no corpo político a força. Ao lado de um poder legislativo, que pertence soberanamente ao povo, cabe distinguir um poder executivo, encarregado da mera execução da vontade soberana. Esse poder nosso filósofo designa pelo nome de governo. Que é, pois, o governo? Governo, diz Rousseau, é "um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quanto política" (capítulo I do Livro III). Esse corpo intermediário é denominado "suprema administração"; não é um poder supremo dentro do Estado, mas é um poder encarregado de uma função hierarquicamente inferior e submetida à autoridade soberana. Os membros do governo, governantes ou príncipes, são definidos como meros funcionários do soberano. Essa caracterização do poder executivo como uma instância subordinada dentro da comunidade política é também uma das grandes teses novas de Rousseau. [É verdade que já o teólogo italiano Marsílio de Pádua (1275-1343) estabelecera, embora sem a mesma sistematicidade, a distinção entre poder
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legislativo soberano e poder executivo subordinado em seu livro Defensor da paz.]
Ao lado da determinação da soberania como atributo pertencente ao conjunto dos cidadãos e em estreita vinculação com ela, essa definição de governo ocupa o lugar central em torno do qual se articula toda a construção do Contrato. O governo não se confunde com o soberano e, na instituição do governo, não prevalece o modelo do contrato. Trata-se de uma função subordinada. Os governantes serão instituídos por determinação do soberano, ou seja, por um ato de livre escolha dos cidadãos reunidos. Definida a função executiva, Rousseau define as formas de governo tão debatidas desde Platão e Aristóteles. Rousseau segue a distinção aristotélica entre as três formas de governo: a monarquia (governo de um só), a aristocracia (governo de alguns) e a democracia (governo de todos). Importante: para o filósofo, essas três formas só são consideradas legítimas quando o governo opera como executante da vontade coletiva, e não da própria vontade. Quando isso não ocorre, temos a degeneração do corpo político, consumada através da usurpação do poder legislativo por parte do poder executivo. É este, aliás, o risco permanente da vida política. Para o mecanismo dessa degenerescência do corpo político Rousseau dedica os capítulos finais do Livro III. Às três formas legítimas de governo correspondem três formas degeneradas: a democracia degenera em ociocracia (governo de massa), a aristocracia em oligarquia e a monarquia em tirania ou despotismo. Note-se qu e aqui "democracia" é vista apenas como uma das três formas legítimas de governo; não é um termo que designa a substância mesma do Estado.
Contra a representação Aqui também prevalece uma visão "pessimista"; a tendência à usurpação, no limite, é incontornável e acaba por conduzir à degradação até mesmo o corpo político mais bem constituído — como Esparta ou Roma. Inevitável, essa degeneração pode ser, no máximo, retardada, e cabe ao político tentar fazê-lo. Como deve ele proceder? Aqui Rousseau enfrenta um dos temas mais importantes para o pensamento político da sua época e também da atualidade: a representação. Para contrabalançar o poder dos governantes, imaginou-se (sobretudo Locke e Montesquieu) a constituição de uma Câmara de Deputados cujos membros, representantes do povo e incumbidos de fazer ouvir a vontade dele, poderiam neutralizar e contrabalançar o poder dos governantes. Com seu Parlamento, a Inglaterra apresentava-se como o grande modelo histórico daquilo que posteriormente convencionou-se chamar de democracia representativa. Rousseau investiu veementemente tanto contra o modelo inglês quanto contra os teóricos defensores da representação. Segundo nosso autor, a instituição parlamentar é um engodo e acaba por afastar ainda mais o povo do exercício da soberania, a seu ver inalienável e indivisível e, por conseguinte, não pode ser representada. A partir do momento em que elege representantes, o povo deixa de ser livre, já que seus representantes, dotados de poder decisório, acabarão invariavelmente por decidir em causa pr ópria sob a aparência de estarem legislando em favor do povo.
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O único remédio possível contra a tendência à usurpação, embora também não propicie a cura definitiva, é a presença constante do soberano, a reunião freqüente do povo em praça pública. Confiante na participação direta nos assuntos públicos, Rousseau propõe a realização periódica de assembléias que reúnam o conjunto dos cidadãos, seja para decidir sobre questões graves, seja para vigiar a atuação dos governantes. Tais assembléias renovariam permanentemente, em um processo de criação contínua, o momento da constituição da comunidade, de forma a adaptá-la a situações não previstas e a realidades novas.
A chama comunitária O último livro do Contrato trata das condições de permanência no tempo da chama viva da comunidade. O problema não é mais considerado do ponto de vista abstrato e estritamente político-institucional. A partir do exemplo concreto da Roma republicana são estudados os alicerces do edifício político: a dimensão moral ou afetivo-ideológica. Rousseau refere-s e a ela como a região da "opinião"ou dos "costumes e das crenças do povo", que "formam a verdadeira constituição do Estado" e constituem os elementos mobilizadores da ação do povo, sua energia motora. São passadas em revista várias instituições políticas da história romana: os sufrágios, as eleições, os comícios, o tribunato, a ditadura e a censura. Todos esses procedimentos são avaliados em função de sua eficácia para a manutenção dos costumes patrióticos, a conservação do espírito público. Esse ideal de saúde coletiva, uma das questões mais importantes debatidas ao longo do século, é o tema do penúltimo capítulo do Contrato. Nele, Rousseau trata das relações entre religião e política e propõe uma religião civil. Fazendo uma severa crítica ao cristianismo, tanto por sua intolerância quanto por ser uma religião funesta ao espírito cívico (já que divide o homem entre sua pátria real e um outro mundo espiritual), o filósofo propõe a idéia de um culto religioso à própria pátria cujos artigos de fé — "não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade" — seriam fixados pelo soberano e teriam como principal objetivo sacramentar o pacto social. Os dogmas positivos dessa religião seriam: a existência de Deus, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos maus e, principalmente, a santidade do contrato social. O mais importante, porém, é o dogma negativo, isto é, o repúdio à intolerância. Sempre que uma religião no interior do Estado se afirmar como o único caminho para a salvação, o soberano estará ameaçado, os padres serão os verdadeiros senhores, e os reis, seus funcionários.
A idéia de uma religião civil, se obteve uma notável repercussão durante a Revolução Francesa, foi e continua sendo rejeitada por muitos leitores de Rousseau que a vêem como uma manifestação injustificada de xenofobia, uma perigosa exaltação do mito nacional. Em favor de Rousseau, é preciso observar que sua religião, além de se opor à intolerância, respalda um patriotismo que não pode, de forma alguma, ser confundido com os nacionalismos expansionistas que fizeram tantos estragos em nosso século.
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Fazer o homem ou o cidadão Quais são as possibilidades históricas de realização do ideal político exposto no Contrato? O que é possível fazer concretamente? Como passar da realidade social corrompida, que temos diante de nós, para a sociedade concebida segundo os valores da liberdade e da igualdade? As respostas de Rousseau estão longe de ter a clareza das que formulou para as questões anteriores. Mas dispomos de algumas pistas. Em um famoso texto, logo no início do Emílio, ele declara: "É preciso optar entre fazer um homem ou fazer um cidadão; não se pode fazer a mbos ao mesmo tempo". Junto com essa disjuntiva, o autor nos propõe, com notável concisão, uma importante chave para se decifrar a articulação entre o Contrato e o Emílio. Bertrand de Jouvenel, estudioso contemporâneo do pensamento de Rousseau, comentou essa passagem: O que está perdido está perdido; é preciso salvar aquilo que é salvável. Ora, o que é que é salvável? Na grande sociedade corrompida, é o indivíduo. E Rousseau escreve o Emílio. Na pequena sociedade que não está ainda muito avançada em direção à perdição, é a própria sociedade. E Rousseau escreverá sobre o governo de Genebra, sobre a constituição da Córsega e sobre a reforma da Polônia (Rousseau trata do governo de Genebra em Cartas escritas da montanha).
É na perspectiva dessa disjunção — que propõe soluções apropriadas para momentos e situações distintas — que o problema da realização do ideal político ou do ideal pedagógico rousseauniano ganha sua localização adequada. E é, por outro lado, o quadro histórico fornecido pelo segundo Discurso que fornece o solo real sobre o qual se desenha a alternativa. Nessas condições, não se deve tomar a idéia de comunidade que decorreria das páginas do Contrato como algo a ser aplicado em quaisquer circunstâncias de tempo e de lugar. É somente em condições muito especiais que o ideal resultante da regra da vontade gera l poderá passar para a prática. A rigor isto só é possível em pequena s comu nida des e no momento de sua "juventude", quando ainda não se implantou o irreversível processo de corrupção, de que o agigantamento das nações e das cidades é sintoma inequívoco. Ao contrário do que imaginavam os revolucionários de 1789, não seria possível esperar que uma grande sociedade corrompida, como a França do século XVIII, pudesse transformar-se na virtuosa Esparta mediante uma revolução regeneradora. Dos povos que lhe são contemporâneos, o único que Rousseau julga capaz de ser organizado segundo o imperativo da vontade geral é a ilha da Córsega, para a qual redigiu um projeto de constituição. Mesmo a Polônia, esse grande Estado para o qual Rousseau foi também chamado a legislar, não era inteiramente "legislável" ou absolutamente conformável aos princípios do direito político. Por isso o pr ojeto de refor ma pr oposto nas Considerações — texto importante que complementa as teses abstratas
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do Contrato — busca uma permanente adaptação às circunstâncias. O que é salvável nas grandes sociedades corrompidas é o indivíduo ou alguns indivíduos que tenham a sorte de permanecer um pouco à sua margem. Emílio, esse personagem de ficção, simboliza esse indivíduo. Posto desde o nascimento em contato íntimo com a natureza, tomando-a sempre como guia, ele é educado para conviver e suportar a vida em uma grande sociedade corrompida, onde já não há perspectivas de salvação global porque já não tem nem leis, nem pátria, nem corpo político. Toda sua educação, caracterizada como "educação negativa", visa a mantê-lo imune aos vícios circundantes. É bem-sucedida a educação que conseguir fazer o indivíduo em formação acompanhar a "marcha da natureza", reprimida pela marcha enlouquecida das educações vigentes. Além de ser um tratado pedagógico crítico, o Emílio é também um tratado sobre a bondade natural do homem, ao reconstituir as etapas naturais de formação do indivíduo humano, assim como o Discurso o fez em relação à espécie.
Escrita e música Cabe uma última observação sobre alguns aspectos não secundários, mas menos explicitados. Além das incursões nos domínios da Antropologia política, do Direito político e da Pedagogia, Rousseau também se aventurou em outros gêneros. E eis-nos diante de um novo paradoxo: como entender que alguém que tanto criticou os malefícios das artes se dedique com tanto apetite ao cultivo da arte da escrita, que ele manipula com maestria ímpar, a ponto de ocupar um dos primeiros postos na galeria dos escritores franceses de todos os tempos? Encontraremos tanto no prefácio à peça teatral Narciso quanto no prefácio a A nova Heloísa, os elementos para uma resposta. De acordo com esses textos, o recurso à arte da escrita justifica-se pelo fato de que, vivendo em uma sociedade já corrompida pelas artes e ciências ou por um mau emprego do saber, aquele que se propõe como restaurador dos valores naturais não tem outro expediente senão o de usar a linguagem própria do século, tentando fazer o remédio a partir do próprio mal. A escrita e a arte da escrita ocupam um lugar central e constituem um tema de importância primordial para nosso autor. Mais do que a escrita, a forma especial de comunicação, é a própria linguagem que merece por parte do autor uma atenção constante. No segundo Discurso, ao desenhar o retrato do homem natural, não deixa de inserir uma longa digressão sobre um dos problemas mais debatidos pela filosofia no século XVIII: a origem das línguas. Como teria o homem adquirido a linguagem? Esse problema se confunde com o da própria origem da sociedade, já que, diz Rousseau, a linguagem é tão necessária à constituição de um vínculo social quanto a sociedade é necessária para a invenção da linguagem. O problema é tão i mportante para R ousseau que a ele foi dedicado um tratado especial, Ensaio sobre a origem das línguas, onde também se fala da imitação musical. Desde sua publicação póstuma, esse importante estudo atrai a atenção dos estudiosos do problema da linguagem. Nele o autor procede com relação à linguagem de forma análoga à que adotou ao tratar da desigualdade. Vemos as línguas se diferenciando segundo um jogo de opostos: de um lado, temos línguas que falam mais ao coração, mais persuasivas e mais
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próximas da natureza; de outro, línguas mais artificiais e que se dirigem mais à Razão. A evolução das línguas é vista como uma degradação da força de persuasão; do grito natural até as linguagens mais abstratas como a das matemáticas, elas acompanharão a trajetória da perfectibilidade e da decadência. Como o título do tratado sugere, essa genealogia das línguas é complementada por uma genealogia da música, indissoluvelmente ligada à pr imeira. Assim como a viva voz e a poesia ocupam um lugar proeminente com relação à escrita e à prosa, também a música está no primeiro lugar entre as artes. Escritor genial e músico não desprovido de talento, é mediante o recurso a essas duas linguagens — a escrita e a música — que Rousseau busca incessantemente uma compensação para as frustrações da vida social e para o "inferno" da comunicação com os outros. É com a ajuda terapêutica desses diferentes veículos de expressão (que de alguma forma se unem na prosa musical de seu último livro, Os devaneios do caminhante solitário) que, cada vez mais isolando-se do convívio humano, como o homem primitivo, Rousseau realiza imaginariamente um simulacro de felicidade, e conquista sua precária integridade.
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T extos selecionados
Do contrato social (trechos) "Objeto deste primeiro livro" O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão. Se considerasse somente a força e o efeito que dela resulta, diria: "Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la". A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções. Tratase, pois, de saber que convenções são essas. Antes de alcançar esse ponto, preciso deixar estabelecido o que acabo de adiantar.
Livro I, capítulo 1 "Do pacto social " Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria. Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos; sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes." Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. As cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modificação as tornaria vãs e sem nenhum efeito, de modo que, embora talvez jamais enunciadas de maneira formal, são as mesmas em toda a parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos os lugares, até quando, violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara àquela. Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os demais. Ademais, fazendo-se a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto possa ser e a nenhum associado restará algo mais a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como não haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada qual, sendo de certo modo seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo de todos; o estado de natureza subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.
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Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem. Se se separar, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: "Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo". Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado. Esses termos, no entanto, confundem-se freqüentemente e são usados indistintamente; basta saber distingui-los quando são empregados com inteira precisão. Livro I, capítulo VI
"Do governo em geral" Toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção: uma moral, que é a vontade que determina o ato, e outra física, que é o poder que a executa. Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me levem até lá. Queira um paralítico correr e não o queira um homem ágil, ambos ficarão no mesmo lugar. O corpo político tem os mesmos móveis. Distinguem-se nele a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder executivo. Nada nele se faz, nem se deve fazer, sem o seu concurso. Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e não pode pertencer senão a ele. Fácil é ver, pelo contrário, baseando-se nos princípios acima estabelecidos, que o poder executivo não pode pertencer à generalidade como legisladora ou soberana, porque esse poder só consiste em atos particulares que não são absolutamente da alçada da lei, nem conseqüentemente da do soberano, cujos atos todos só podem ser leis. Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que a reúna e ponha em ação segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva à comunicação entre o Estado e o soberano, que de qualquer modo determine na pessoa pública o que no homem faz a união entre a alma e o corpo. Eis qual é, no Estado, a razão do governo, confundida erroneamente com o soberano, do qual não é senão o ministro. Que será, pois, o governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto é, governantes, e o corpo em seu todo recebe o nome de príncipe. Têm muita razão aqueles que pretendem não ser um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um povo se submete a chefes. Isto não passa, de modo algum, de uma comissão de um emprego, no qual, como simples funcionários do soberano, exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositários, e que pode limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver. Sendo incompatível com a natureza do corpo social, a alienação de um tal direito é contrária ao objetivo da associação. Chamo, pois, de governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder executivo, e de príncipe ou magistrado o homem ou o corpo encarregado dessa administração. Livro III, capítulo I
"Dos abusos do governo e da sua tendência a degenerar" Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o governo despende um esforço contínuo contra a soberania. Quanto mais esse esforço aumenta, tanto mais se altera a constituição, e, como não há outra vontade de corpo que, resistindo à do
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príncipe, estabeleça equilíbrio com ela, cedo ou tarde acontece que o príncipe oprime, afinal, o soberano e rompe o tratado social. Reside aí o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, tende sem cessar a destruí-lo, assim como a velhice e a morte destroem, por fim, o corpo do homem. Há duas vias gerais pelas quais um governo degenera, a saber: quando ele se contrai, ou quando o Estado se dissolve. O governo se contrai quando passa do grande para o pequeno número, isto é, da democracia para a aristocracia e da aristocracia para a realeza. Tal a sua inclinação natural. Se retrocedesse do pequeno número para o grande, poder-se-ia dizer que ele se afrouxa, mas esse progresso inverso é impossível. Com efeito, um governo não muda de forma senão quando seu mecanismo já gasto o deixa muito enfraquecido para poder conservar sua forma. Ora, se ele ainda mais se afrouxasse, distendendo-se, sua força tornar-se-ia totalmente nula e ele haveria, ainda menos, de subsistir. É preciso, pois, reforçar e contrair o mecanismo à medida que for cedendo; caso contrário, o Estado, que ele sustenta, tombaria em ruínas. De dois modos pode dar:se o caso da dissolução do Estado. Primeiro, quando o príncipe não mais administra o Estado de acordo com as leis e usurpa o poder soberano. Dá-se, então, uma mudança notável que consiste em contrair-se não o governo, mas o Estado; quero com isso dizer que o grande Estado se dissolve, que se forma outro dentro dele, composto unicamente de membros do governo, o qual, em relação ao resto do povo, não passa de senhor e tirano. Desse modo, no momento em que o governo usurpa a soberania, rompe-se o pacto social e todos os simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, estão forçados, mas não obrigados a obedecer. Acontece também o mesmo caso quando os membros do governo usurpam isoladamente o poder, que não devem exercer senão enquanto corpo, o que não é menor infração das leis e produz desordem ainda maior. Têm-se então, por assim dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado, não menos dividido do que o governo, perece ou muda de forma. Quando o Estado se dissolve, o abuso do governo, qualquer que seja, toma o nome de anarquia. A distinguir-se: a democracia degenera em ocIocracia, a aristocracia em oligarquia; acrescentarei que a realeza degenera em tirania, mas essa palavra é equívoca e exige explicação. No sentido vulgar, um tirano é um rei que governa com violência e sem levar em consideração a justiça e as leis. No sentido preciso, um tirano é um particular que se arroga a autoridade real, sem ter direito a isso. Assim os gregos entendiam a palavra tirano; aplicavamna indiferentemente aos bons e maus príncipes, cuja autoridade não fosse legítima. Desse modo, tirano e usurpador são duas palavras perfeitamente sinônimas. A fim de dar nomes diferentes a coisas diferentes, chamo tirano ao usurpador da autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. O tirano é aquele que se intromete, contra as leis, a governar segundo as leis; o déspota é aquele que se coloca acima das próprias leis. Assim, um tirano pode não ser um déspota, mas um déspota é sempre um tirano. Livro III, capítulo X
"Da morte do corpo político" Tal é a tendência natural e inevitável dos governos, mesmo dos mais bem constituídos. S e Esparta e Roma pereceram, que Estado poderá durar para sempre? Se quisermos formar uma instituição duradoura, não pensemos, pois, em torná-la eterna. Para ser bem sucedido não é preciso tentar o impossível, nem se iludir com dar à obra dos homens uma solidez que as coisas humanas não comportam. O corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento e traz em si mesmo as causas de sua destruição. Mas um ou outro podem ter uma constituição mais ou menos robusta e capaz de conservá-lo por mais ou menos tempo. A constituição do homem é obra da natureza, a do Estado, obra de arte. Não depende dos homens prolongar a própria vida, mas depende deles prolongar a do Estado pelo tempo que for possível, dando-lhe a melhor constituição que possa ter. O mais bem constituído chegará a um fim, porém mais tarde do que outro, se algum acidente imprevisto não determinar seu desaparecimento antes do tempo.
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O princípio da vida política reside na autoridade soberana. O poder legislativo é o coração do Estado; o poder executivo, o cérebro que dá movimento a todas as partes. O cérebro pode paralisar-se e o indivíduo continuar a viver. Um homem torna-se imbecil e vive, mas, desde que o coração deixa de funcionar, o animal morre. O Estado de forma alguma subsiste pelas leis, mas sim pelo poder legislativo. A lei de ontem não obriga hoje, mas o consentimento tácito presume-se pelo silêncio e presume-se que o soberano confirma incessantemente as leis que, podendo, não ab-rogou. Tudo o que uma vez declarou querer, quererá sempre, a menos que o revogue. Por que, então, se confere tanto respeito às antigas leis? Justamente por serem antigas. Deve-se crer que só a excelência das vontades antigas poderia conservá-las por tão longo tempo. Se o soberano não as tivesse reconhecido como constantemente salutares, ele as teria revogado mil vezes. Eis por que, em todo Estado bem constituído, as leis, longe de se enfraquecerem, ganham continuamente nova força; o preconceito da antiguidade as torna cada dia mais veneráveis, enquanto, onde as leis ao envelhecer se enfraquecem, isso prova não haver mais poder legislativo e não mais estar vivendo o Estado.
Livro III, capítulo XI
"Dos deputados e representantes" Desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir com sua bolsa a servir com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da ruína. Se lhes for preciso combater, pagarão tropas e ficarão em casa; se necessário ir ao conselho, nomearão deputados e ficarão em casa. À força de preguiça e de dinheiro, terão, por fim, soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la. É a confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse do ganho, é a frouxidão e o amor à comodidade que trocam os serviços pessoais pelo dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para aumentá-lo à vontade. Dai ouro, e logo tereis ferros. A palavra finança é uma palavra de escravos, não é conhecida na pólis. Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos fazem tudo com seus braços e nada com o dinheiro; longe de pagar para se isentar de seus deveres, pagarão para cumpri-los por si mesmos. Distancio-me bastante das idéias comuns, pois considero as corvéias menos contrárias à liberdade do que os impostos. Quanto mais bem constituído for o Estado, tanto mais os negócios públicos sobrepujarão os particulares no espírito dos cidadãos. Haverá até um número menor de negócios particulares, porque a soma da felicidade comum fornecendo uma porção mais considerável à felicidade de cada indivíduo, restar-lhe-á menos a conseguir em seus interesses particulares. Numa pólis bem constituída, todos correm para as assembléias; sob um mau governo, ninguém quer dar um passo para ir até elas, pois ninguém se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que a vontade geral não dominará, e porque, enfim, os cuidados domésticos tudo absorvem. As boas leis contribuem para que se façam outras melhores, as más levam a leis piores. Quando alguém disser dos negócios do Estado: Que me importa?, pode-se estar certo de que o Estado está perdido. A diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados, as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação. É o que em certos países ousam chamar de Terceiro Estado. Desse modo, o interesse particular das duas ordens é colocado em primeiro e segundo lugares, ficando o interesse público em terceiro. A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser, seus representantes; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz mostra que merece perdê-la. A idéia de representantes é moderna; vem-nos do governo feudal, desse governo iníquo e absurdo no qual a espécie humana só se degrada e o nome de homem cai em desonra. Nas antigas repúblicas, e até nas monarquias, jamais teve o povo representantes, e não se conhecia essa palavra. É bastante singular que em Roma, onde os tribunos eram tão reverenciados, não se tenha sequer imaginado que eles pudessem usurpar as funções do povo
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e que, no meio de tão grande multidão, nunca tivessem tentado decidir por sua conta um único plebiscito. Pode-se julgar, no entanto, qual o embaraço que às vezes a multidão causava, pelo que aconteceu no tempo dos Gracos, quando uma parte dos cidadãos deu seu sufrágio do alto dos telhados. Onde o direito e a liberdade são tudo, os inconvenientes nada são. No seio desse povo prudente, tudo era colocado em sua medida certa: deixavam seus litores fazer o que seus tribunos não teriam ousado; não temiam que os litores quisessem representá-los. No entanto, para explicar como os tribunos algumas vezes o representavam, basta conceber como o governo representa o soberano. Não sendo a lei mais do que a declaração da vontade geral, claro é que, no poder legislativo, o povo não possa ser representado, mas tal coisa pode e deve acontecer no poder executivo, que não passa da força aplicada à lei. Tal fato leva-nos a ver que, se examinarmos bem as coisas, muito poucas nações possuem leis. De qualquer modo, é certo que os tribunos, não tendo qualquer parcela do poder executivo, jamais puderam representar o povo romano baseando-se nos direitos de seus cargos, mas somente usurpando-os do senado. Entre os gregos, tudo o que o povo tinha de fazer, fazia-o por si mesmo; encontrava-se freqüentemente reunido na praça. Residia num clima ameno, não era de modo algum ávido, os escravos executavam seu trabalho e sua grande ocupação era a liberdade. Não possuindo mais as mesmas vantagens, como conservaríamos os mesmos direitos? Vossos climas mais agressivos vos impõem maiores necessidades; seis meses por ano, a praça pública não é suportável; vossas línguas insonoras não podem fazer-se ouvir ao ar livre; preferis o vosso ganho à vossa liberdade, e temeis muito mais a miséria do que a escravidão. Quê! A liberdade só se mantém com o apoio da servidão? Talvez. Os dois excessos se tocam. Tudo o que, de qualquer modo, não está na natureza, apresenta seus inconvenientes; a sociedade civil mais do que todo o resto. Tais posições infelizes estabelecem-se naqueles lugares em que só se pode conservar a própria liberdade a expensas da de outrem, e onde o cidadão só pode ser perfeitamente livre quando o escravo é extremamente escravo. Essa era a situação de Esparta. Quanto a vós, povos modernos, não tendes escravos, mas o sois; pagais a liberdade deles com a vossa. Acreditais certo enaltecer essa preferência; nela encontro mais covardia do que humanidade. De modo algum entendo, por tudo isso, que se devem possuir escravos, nem que seja legítimo o direito de escravidão, uma vez que demonstrei o contrário; fálo somente das razões pelas quais os povos modernos, que se crêem livres, têm representantes, e porque os povos antigos não os tinham. De qualquer modo, no momento em que um povo se dá representantes, não é mais livre; não mais existe. Examinando tudo cuidadosamente, não vejo como seja doravante possível ao soberano conservar entre nós o exercício de seus direitos, salvo se a pólis for muito pequena. Mas, se for muito pequena, será subjugada? Não. Logo adiante demonstrei como se pode reunir o poder exterior de um grande povo à polícia fácil e à boa ordem de um pequeno Estado. Livro III, capítulo XV
Emílio O tema da educação ocupa também um lugar central e a ele é dedicado especialmente o tratado intitulado Emílio ou Da educação. Surgido no mesmo ano do Contrato, esta é uma das suas grandes obras. Mas Rousseau não se ocupou apenas com a educação "doméstica" ou com a educação do indivíduo: ao lado dela, ele distingue a educação cívica, formadora do cidadão.
[Os Amanham-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem nascesse grande e forte, seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles servir-se. Ser-lhe-iam prejudiciais, impedindo os outros de pensar em assisti-lo e, abandonado a si mesmo, ele morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades. Deplora-se o estado da infância; não se vê que a raça humana teria perecido se o homem não começasse sendo criança. Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos d e juízo. Tudo o que não temos ao
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nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação. Essa educação nos vem da natureza ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas. Cada um de nós é, portanto, formado por três espécies de mestre. O aluno em quem as diversas lições desses mestres se contrariam é mal-educado e nunca estará de acordo consigo mesmo; aquele em quem todas visam aos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai sozinho a seu objetivo e vive em conseqüência. Somente esse é bem-educado. Ora, dessas três educações diferentes, a da natureza não depende de nós; a das coisas só em certos pontos depende. A dos homens é a única de que somos realmente senhores e ainda assim só o somos por suposição, pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras e as ações de todos os que cercam uma criança? Sendo, portanto, a educação uma arte, torna-se quase impossível que alcance êxito total, porquanto a ação necessária a esse êxito não depende de ninguém. Tudo o que se pode fazer à força de cuidados é aproximar-se mais ou menos da meta, mas é preciso sorte para atingila. Que meta será essa? A própria meta da natureza; isso acaba de ser provado. Dado que a ação das três educações é necessária à sua perfeição, é para aquela sobre a qual nada podemos que cumpre orientar as duas outras. Mas talvez esta palavra natureza tenha um sentido demasiado vago; é preciso tentar defini-lo com exatidão. A natureza, dizem-nos, é apenas o hábito. Que significa isso? Não há hábitos que só se adquirem pela força e não sufocam nunca a natureza? É o caso, por exemplo, do hábito das plantas cuja direção vertical se perturba. Em se lhe devolvendo a liberdade, a planta conserva a inclinação que a obrigaram a tomar; mas a seiva não muda, com isso, sua direção primitiva; e se a planta continuar a vegetar, seu prolongamento voltará a ser vertical. O mesmo acontece com as inclinações dos homens. Enquanto permanecemos no mesmo estado, podemos conservar as que resultam do hábito e que nos são menos naturais. Mas desde que a situação mude, o hábito cessa e o natural se restabelece. A educação não é certamente senão um hábito. Mas não há pessoas que esquecem e perdem sua educação e outras que a conservam? De onde vem essa diferença? Se devemos restringir o nome de natureza aos hábitos conformes à natureza, é de se poupar este galimatias. Nascemos sensíveis e desde nosso nascimento somos molestados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam. Mal tomamos, por assim dizer, consciência de nossas sensações e já nos dispomos a procurar os objetos que as produzem ou a deles fugir, primeiramente segundo nos sejam elas agradáveis ou desagradáveis, depois segundo a conveniência ou a inconveniência que encontramos entre esses objetos e nós, e, finalmente, segundo os juízos que fazemos deles em relação à idéia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece. Essas disposições se estendem e se afirmam à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; mas, constrangidas por nossos hábitos, elas se alteram mais ou menos sob a influência de nossas opiniões. Antes dessa alteração, elas são aquilo a que chamo em nós a natureza.
O Cristianismo A seguir destacamos dois trechos do capítulo VIII do Livro IV do Contrato. Dizem que um povo de verdadeiros cristãos formaria a sociedade mais perfeita que se poderia imaginar. Contra essa suposição só vejo uma grande dificuldade — uma sociedade de verdadeiros cristãos não mais seria uma sociedade de homens. Afirmo até que essa suposta sociedade, com toda a sua perfeição, não seria nem a mais forte, nem a mais duradoura, pois, à força de ser perfeita, faltar-lhe-ia coesão, estando seu vício destruidor na sua própria perfeição. Cada um desempenharia seu dever, o povo estaria submetido às leis, os chefes seriam justos e ponderados; os magistrados, íntegros e incorruptíveis; os soldados desprezariam a morte, não existiria nem vaidade, nem luxo. Tudo isso está muito bem, mas passemos adiante.
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O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu, não pertencendo a pátria do cristão a este mundo. É verdade que ele cumpre o seu dever, mas o faz com uma indiferença profunda quanto ao bom ou mau sucesso de seus trabalhos. Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, pouco lhe importa se tudo vai bem ou mal cá embaixo. Se o Estado está florescente, dificilmente ousa gozar da felicidade pública, teme orgulhar-se da glória de seu país; se o Estado perece, bendiz a mão de Deus que pesa sobre seu povo. Para que fosse pacífica a sociedade e para que se mantivesse a harmonia, seria preciso que todos os cidadãos, sem exceção, fossem igualmente bons cristãos, mas se, por infelicidade, encontrar-se entre ele um único ambicioso, um único hipócrita — por exemplo, um Catilina, um Cromwell —, certamente esse único faria tábua rasa de seus piedosos compatriotas. A caridade cristã não permite facilmente que se pense mal do próximo. Desde que ele, por qualquer artimanha, aprenda a arte de impor-se e de apoderar-se de uma parte da autoridade pública, será um homem constituído em dignidade — Deus quer que o respeitem. Logo mais, ei-lo uma potência — Deus quer que ele seja obedecido. O depositário desse poder abusa? — é o açoite com o qual Deus pune seus filhos. Toma-se como obrigação de consciência expulsar o usurpador: ter-se-á de perturbar a calma pública, usar de violência, verter sangue — tudo isso não condiz com a doçura do cristão e, depois, que importa ser livre ou escravo neste vale de misérias? O essencial é alcançar o paraíso, e a resignação não passa de mais um meio para isso.
(Servidão)
Sobrevém uma guerra estrangeira, os cidadãos marcham sem dificuldade para o combate, nenhum deles pensa em fugir; cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; melhor sabem morrer do que vencer. Que importa sejam vencidos ou vencedores? A Providência não sabe, melhor do que eles, o que lhes convém? Pode-se imaginar o partido que um inimigo orgulhoso, impetuoso e apaixonado pode tirar desse estoicismo! Colocai-lhes à frente esses povos generosos a quem devora o amor ardente da glória e da pátria, suponde vossa república cristã à frente de Esparta e de Roma: os cristãos piedosos serão dominados, esmagados, destruídos, antes de conseguirem tempo de se dar conta, ou, então, deverão sua salvação somente ao desprezo que o inimigo lhes dedicar. A meu ver, foi um belo discurso o dos soldados de Fábio — eles não juraram morrer ou vencer, juraram voltar vencedores e cumpriram seu juramento. Jamais cristãos teriam feito semelhante juramento, pois acreditariam estar tentando a Deus. Engano-me ao aludir a uma república cristã, pois cada um desses dois termos exclui o outro. O cristianismo só prega servidão e dependência. Seu espírito é por demais favorável à tirania, para que ela cotidianamente não se aproveite disso. Os verdadeiros cristãos são feitos para ser escravos; sabem-no e não se comovem absolutamente, porquanto esta vida curta pouco preço apresenta a seus olhos. (...) Deixando de parte, porém, as considerações políticas, voltemos ao direito e fixemos os princípios sobre esse importante ponto. O direito, que o pacto social dá ao soberano sobre os súditos, não ultrapassa, como já o disse, os limites da utilidade pública. Os súditos, portanto, só devem ao soberano contas de suas opiniões enquanto elas interessam à comunidade. Ora, importa ao Estado que cada cidadão tenha uma religião que o faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se ligam à moral e aos deveres que aquele que a professa é obrigado a obedecer em relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem que o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos nesta vida.
Ensaio sobre a origem das línguas (trechos) A palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si — não se sabe de onde é um homem antes de ter ele falado. O uso e a necessidade levam cada um a aprender a língua de seu país, mas o que faz ser essa língua a de seu país e não a de um outro? A fim de explicar tal fato, precisamos reportar-nos a algum motivo que se prenda ao lugar e seja anterior aos próprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira instituição social, só a causas naturais deve sua forma. Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e
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semelhante a ele próprio, o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso. Tais meios só podem provir dos sentidos, pois estes constituem os únicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre outro. Aí está, pois, a instituição dos sinais sensíveis para exprimir o pensamento. Os inventores da linguagem não desenvolveram esse raciocínio, mas o instinto sugeriu-lhes a conseqüência. Limitam-se a dois os meios gerais por via dos quais podemos agir sobre os sentidos de outrem: o movimento e a voz. A ação do movimento pode ser imediata, no tato, ou mediata, no gesto. A primeira, encontrando seu limite no comprimento do braço, não pode transmitir-se à distância, mas a outra alcança tão longe quanto o raio visual. Restam, pois, somente a vista e o ouvido como órgãos passivos da linguagem entre homens dispersos. Apesar de serem as linguagens do gesto e da voz igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para exprimir-se. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço! Nossos gestos nada significam além de nossa inquietação natural, mas não é desses gestos que desejo falar. Só os europeus gesticulam quando falam; dir-se-ia que toda a força de sua linguagem reside nos braços e acrescentam-lhe ainda a dos pulmões, de nada lhes servindo tudo isso. Enquanto um francês se agita e martiriza o corpo dizendo muitas palavras, um turco tira por um momento o cachimbo da boca, diz a meia-voz duas palavras e esmaga-o com uma sentença. Depois aprendemos a gesticular, esquecemo-nos da arte das pantomimas, pelo mesmo motivo por que, possuindo muitas belas gramáticas, não entendemos mais os símbolos dos egípcios. O que os antigos diziam com maior vigor não exprimiam com palavras, mas com sinais. Não o diziam, mostravam-no. Abri a História Antiga e a encontrareis cheia desses meios de convencer os olhos, que nunca deixam de produzir efeito mais seguro do que o de todos os discursos que se poderiam colocar em seu lugar. O objeto oferecido antes da palavra acorda a imaginação, excita a curiosidade, mantém o espírito em suspenso e na expectativa do que se vai dizer. Observei que os italianos e os provençais, entre os quais comumente o gesto precede o discurso, encontram assim um meio de fazer-se ouvir melhor e até com mais prazer. Entretanto a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale. Tarqüínio, Trasíbulo, decepando os botões de papoula, Alexandre apondo seu selo à boca do favorito, Diógenes passeando diante de Zenão, não falavam melhor do que com palavras? Qual o conjunto de palavras que teriam exprimido tão bem as mesmas idéias? Dario, com seu exército na afia, recebe do rei dos citas uma rã, um pássaro, um rato e cinco flechas. O mensageiro entrega silenciosamente o presente e parte. O terrível discurso foi compreendido, e Dario só se preocupou em alcançar, com a maior rapidez possível, seu país. Substituí esse sinais por uma carta — quanto mais ameaçadora for, menos intimidará. Não passaria de uma fanfarronada da
qual Dario só teria de rir. Quando o levita Efraim quis vingar a morte de sua mulher, não escreveu às tribos de Israel; dividiu-lhe o corpo em doze pedaços, que enviou a elas. À horrível visão, empunharam rapidamente as armas, gritando todos a uma só voz: — Não! nunca tal coisa aconteceu em Isracl, desde o dia em que nossos pais saíram do Egito até hoje. E a tribo de Benjamin foi exterminada. Em nossos dias, o assunto, transformado em arrazoados, em discussões, até mesmo em brincadeiras, arrastar-se-ia e permaneceria impune o mais tremendo dos crimes. O rei Saul, voltando da lavoura, também despedaçou os bois de seu arado e serviu-se de um sinal semelhante para fazer Israel socorrer a cidade de Jabés. Os profetas dos judeus, os legisladores dos gregos, oferecendo freqüentemente ao povo objetos visíveis, falavam-lhe melhor com esses objetos do que o teriam feito com longos discursos, e o modo pelo qual Ateneu conta como o orador Hipérides fez absolver a cortesã Frinéia, sem alegar em sua defesa uma única palavra, constitui ainda uma eloqüência muda, cujo efeito, em todos os tempos, não é raro. Assim se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. Não há uma pessoa que não reconheça a verdade do juízo de Horácio a tal respeito. Compreende-se mesmo que os
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discursos mais eloqüentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores. Temos coisa totalmente diversa, contudo, quando se trata de comover o coração e inflamar as paixões. A impressão sucessiva do discurso, que impressiona por meio de golpes redobrados, proporciona-vos emoção bem diversa da causada pela presença do próprio objeto, diante do qual, com um só golpe de vista, tudo já vistes. Suponde uma situação de dor perfeitamente conhecida: vendo a pessoa aflita, dificilmente vos comovereis até o pranto; dailhe, porém, tempo para dizer-vos tudo que sente, e logo vos desmanchareis em lágrimas. Assim, as cenas de tragédia conseguem efeito. Somente a pantomima, sem o discurso, deixarvos-á quase tranqüilos, e o discurso, sem o gesto, arrancar-vos-á lágrimas. As paixões possuem seus gestos, mas também suas inflexões. aue nos fazem tremer. e essas inflexões a cuja voz não se pode fugir penetram por seu intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não queiramos, os movimentos que as despertam e fazendo-nos sentir o que ouvimos. Concluamos que os sinais visíveis tornam a imitação mais exata e que o interesse melhor se excita pelos sons. (...)
"Como degenerou a música"
À medida que a língua se aperfeiçoou, impondo-se a si mesma novas regras, insensivelmente perdeu algo de sua antiga energia e substituiu o cálculo dos intervalos pela delicadeza das inflexões. Foi assim, por exemplo, que aos poucos se aboliu a prática do gênero enarmônico. Quando os teatros se apresentaram mais regularmente, só se cantou em modo prescrito e, à medida que se multiplicavam as regras de imitação, a língua imitativa se enfraquecia. Tendo o estudo da filosofia e o progresso do raciocínio aperfeiçoado a gramática, excluíram também da língua aquele tom vivo e apaixonado que a princípio a tornara tão cantante. Desde os tempos de Menalípides e de Filóxeno, os sinfonistas, que a princípio eram mantidos por poetas e só executavam sob sua direção e, por assim dizer, sob seu ditado, tornaram-se independentes, e dessa libertação é que a música se lastima tão amargamente numa comédia de Ferécrates, em trecho citado por Plutarco. Assim, a melodia, começando a não permanecer tão intimamente ligada ao discurso, insensivelmente tomou uma existência à parte e a música se tornou mais independente das palavras. Cessaram, então, também, pouco a pouco, esses prodígios que produzira quando não passava de acento e de harmonia da poesia e que lhe dava, sobre as paixões, o império que, depois, a palavra deixou de possuir sobre a razão. E, desde que a Grécia se encheu de sofistas e de filósofos, não conheceu mais nem poetas, nem músicos célebres. Cultivando a arte de convencer, perdeu a de comover. O próprio Platão, enciumado de Homero e de Eurípedes, difamou um e não pôde imitar o outro. Logo a servidão juntou sua influência à da filosofia. A Grécia sob grilhões perdeu aquele fogo que só anima as almas livres e não encontrou mais, para louvar seus tiranos, o tom com o qual cantara seus heróis. A mistura dos romanos enfraqueceu ainda mais o que restava de harmonia e de acento na linguagem. O latim, língua mais surda e menos musical, fez mal à música ao adotá-la. O canto empregado na capital pouco a pouco alterou o das províncias. Os teatros de Roma prejudicaram os de Atenas. Quando Nero ganhava prêmios, a Grécia deixara de merecê-los e a mesma melodia, dividida entre duas línguas, conveio menos a uma do que à outra. Por fim, aconteceu a catástrofe que destruiu os progressos do espírito humano sem afastar os vícios que eram obra sua. A Europa, inundada de bárbaros e subjugada por ignorantes, perdeu ao mesmo tempo suas ciências, suas artes e o instrumento universal tanto de umas quanto de outras, isto é, a língua harmoniosa e aperfeiçoada. Esses homens grosseiros, engendrados pelo norte, habituaram insensivelmente todos os ouvidos à rudeza de seus órgãos: sua voz, dura e destituída de acentuação, era ruidosa, sem ser sonora. O imperador Juliano comparava o falar dos gauleses ao coaxar das rãs (...) Esse canto ruidoso, juntando-se à inflexibilidade do órgão, obrigou esses recém-chegados e os povos subjugados que os imitaram a alongar todos os sons para fazer-se compreendidos. A articulação penosa e os sons reforçados concorreram também para expulsar da melodia qualquer sentimento de medida e de ritmo. Como a passagem de um som a outro era sempre a mais difícil de pronunciar, não se podia fazer nada melhor senão deter-se em cada um deles o mais que se podia, ampliá-lo e levá-lo a produzir o maior ruído possível. O canto logo passou a ser somente uma seqüência aborrecida e lenta de sons arrastados e gritados,
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sem doçura, cadência e graça, e, se alguns sábios afirmavam a necessidade de observar-se no canto latino as longas e as breves, é certo pelo menos que se cantaram os versos como se fossem prosa e não mais se cuidou de pés, de ritmo ou de qualquer outra espécie de canto medido. Despojado de qualquer melodia e formado unicamente pela força e pela dureza dos sons, o canto sugeriu por si mesmo, finalmente, o meio de tornar-se ainda mais sonoro com o auxílio das consonâncias. Várias vozes, incessantemente arrastando em uníssono sons de uma dureza ilimitada, encontraram por acaso 21- guns acordes que, pelo reforço do ruído, passou a lhes parecer agradável — assim se iniciou a prática do descanto e do contraponto. Ignoro durante quantos séculos os músicos giraram em torno de questões inúteis suscitadas pela ignorância do efeito conhecido de um princípio. O leitor mais infatigável não suportaria, em Jean de Muris, o palavrório de oito ou dez capítulos para saber se, no intervalo de oitava dividido em duas consonâncias, é a quinta ou a quarta que deverá ficar no grave e, quatrocentos anos depois, ainda encontramos em Bontempi não menos tediosas enumerações de todos os baixos que devem comportar a sexta em lugar da quinta. A harmonia, no entanto, tomou insensivelmente a direção que a análise lhe prescrevia, até que por fim a invenção do modo menor e das dissonâncias introduziu aquele elemento arbitrário de que está cheia e que somente o preconceito nos impede de perceber. Esquecida a melodia e voltando-se inteiramente a atenção do músico para a harmonia, aos poucos tudo se dirigiu para esse novo objeto. Os gêneros, os modos, a escala, tudo enfim adquiriu novos aspectos e as sucessões harmônicas passaram a regular o movimento das partes. Tendo o movimento usurpado o nome de melodia, não se pôde com efeito desconhecer nessa nova melodia os traços da mãe e, tornando-se assim gradativamente harmônico nosso sistema musical, não é de admirar que o acento oral com isso tenha sofrido e a música perdido quase toda a sua energia. Eis como o canto aos poucos se tornou uma arte inteiramente separada da palavra, da qual se origina, como as harmônicas dos sons determinaram o esquecimento das inflexões da voz e como, por fim, limitada ao efeito puramente físico do concurso de vibrações, viu-se a música privada dos efeitos morais que produzira quando era a voz da natureza.
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difícil acompanhar em toda a sua riqueza e amplitude a repercussão de uma obra que encontrou um eco profundo em toda a posteridade e até hoje continua viva, como fonte permanente de inspiração. A presença desse pensamento verdadeiramente inovador se faz sentir não apenas no plano das idéias e das teorias, como também se impõe como idéia-força de seu tempo, marcando definitivamente a avassaladora onda política revolucionária que tomou conta das três últimas décadas do século XVIII.
Na pol í ti ca A influência do pensamento político de Rousseau, contido especialmente no Discurso sobre a desigualdade e no Contrato social, não se manifestou apenas na Revolução Francesa. Também é notável a presença inspiradora das principais teses republicanas c igualitárias de Rousseau na guerra de independência norte-americana. É visível a influência das idéias do Contrato sobre a Declaração de Independência, a qual, redigida por Thomas Jefferson (1743-1826) e proclamada a 4 de julho de 1776, marca a ruptura revolucionária com a metrópole e constitui uma verdadeira "declaração dos direitos dos cidadãos americanos". São também dignos de nota, embora menos conhecidos, os reflexos dessas idéias sobre as constituições que cada uma das treze ex-colônias inglesas, convertidas em estados confederados, elaboraram na ocasião. Isso é particularmente observável na Constituição do Estado de Massachusets, redigida por John Adams (1735-1826), cujos artigos reproduzem quase literalmente passagens do Contrato.
Quanto à Revolução Francesa de 1789, é tão grande o prestígio das idéias de Rousseau entre seus grandes líderes como Marat (1743-1793), Robespierre (1758-1794) e Saint-Just (1767-1794), assim como sua notável disseminação entre o povo em geral, que é justo considerá-lo como o seu grande "profeta". O Clube dos Jacobinos, um dos principais instrumentos dessa revolução da burguesia, ao qual pertenceu o próprio Robespierre, proclama solenemente Rousseau como "modelo e guia nos seus trabalhos", em declaração pública de 1794. O filósofo também influenciou a ala revolucionária mais radical liderada por Babeuf (1760-1797), chefe da Conspiração dos Iguais. Durante o inverno de 1790, ficaram famosas as conferências do a bade Fauchet sobre o Contrato, que atraíam uma multidão entusiasmada de ouvintes. As edições do Contrato, relativamente poucas até 1789, intensificaram-se de forma extraordinária a partir daí. Identificado com a R evolução, Rousseau despertou ódios e paixões ao longo do século seguinte e até hoje. Criticado por liberais como Benjamin Constant (1767-1830) e Émile Faguet, mais tarde ele foi acusado de coletivista e até autoritário. Contraditoriamente foi tachado de anarquista pelos conservadores, a exemplo do pensador francês tradicionalista
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Maurice Barrès (1862-1923). Em nosso século a presença rousseauniana continua atuante: Fidel Castro, líder da Revolução Cubana de 1959, gostava de declarar que combateu a ditadura de Batista "com o Contrato social no bolso". Parafraseando o escritor russo Léon Tolstói (1828-1910), também outro grande admirador e seguidor de Rousseau, podemos dizer que seu pensamento, ao invés de envelhecer com o transcurso do tempo, rejuvenesce cada vez mais.
Na filosofia No plano propriamente filosófico, veremos como a repercussão desse pensamento é igualmente aguda. A começar pelo filósofo Emmanuel Kant, a obra de Rousseau é vista como um verdadeiro marco na história das idéias. É o que verificamos numa passagem de um dos seus escritos: Newton foi o primeiro a discernir ordem e regularidade em combinação com grande simplicidade, onde antes dele os homens encontravam desordem e diversidade sem relação. Desde Newton os cometas seguem órbitas geométricas. Rousseau foi o primeiro a descobrir, entre as formas variáveis que assume a natureza humana, a essência profundamente oculta do homem e as leis secretas de acordo com as quais a Providência é justificada por suas observações. Fragmentos VIII, 630
Referindo-se à conceituação de Estado, presente no Contrato, Hegel diz: Rousseau teve o mérito de estabelecer um princípio que, não somente em sua forma (..) mas também em seu conteúdo, é um pensamento e, a bem dizer, o pensamento nele mesmo, pois que coloca a vontade como princípio do Estado. Princípios da Filosofia do Direito, § 258 Dada a importância da reflexão sobre a constituição do social e de sua gênese histórica na obra de Rousseau, é possível afirmar que ele não apenas está nas origens do pensamento sociológico como fornece os
elementos para a grande revolução teórica realizada por Hegel (1770-1831) e por Karl Marx (1818-1883), que colocam em bases inteiramente novas o estudo da história social dos homens. Já Friedrich Engels (1820-1895), em sua obra Anti-Dühring, via elementos do método dialético — que fora sistematizado por Hegel — já na genealogia exposta no Discurso sobre a desigualdade. Segundo Rousseau, a evolução da humanidade, caminha na base da contradição entre termos opostos. Se avançamos até nosso século e sem esquecer o debate político atual em torno da questão da democracia, que coloca o pensamento rousseauniano novamente na ordem do dia, acompanhemos LéviStrauss, que no artigo "J.-J. Rousseau, fundador das ciências do homem" ressalta com precisão toda a importância de Rousseau para o pensamento antropológico:
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Rousseau não se limitou a prever a etnologia: ele a fundou. Em primeiro lugar, de maneira prática, escrevendo esse Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, que coloca o problema das relações entre a natureza e a cultura e onde podemos ver o primeiro tratado de etnologia geral; e, em seguida, no plano teórico, distinguindo, com uma clareza e uma concisão admiráveis, o objeto próprio do etnólogo, do moralista e do historiador. Quando se quer estudar os homens — afirma Rousseau — é preciso olhar perto de si; mas para estudar
o homem é preciso aprender a levar sua vista para longe; é preciso primeiro observar as diferenças para descobrir as propriedades. (Ensaio sobre a origem das línguas)
O caminhante solitário Apresentamos dois textos extraídos dos Devaneios do caminhante solitário. O primeiro é da "primeira caminhada"— termo usado por Rousseau para qualificar as divisões da obra — e o segundo faz parte da "sétima caminhada". As "caminhadas" dessa obra inacabada são em número de dez. [Resignação] Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão próximo, amigo, companhia. O mais sociável e o mais amável dos humanos dela foi proscrito por um acordo unânime. Procuraram nos refinamentos de seu ódio que tormento poderia ser o mais cruel para minha alma sensível e quebraram violentamente todos os elos que me ligaram a eles. Teria amado os homens a despeito deles próprios. Eles só conseguiram se furtar a minha afeição deixando de sê-lo. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, nulos, afinal, para mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado deles e de tudo, o que sou? Eis o que me falta procurar. Infelizmente esta pesquisa deve ser precedida de um exame da minha posição. É uma idéia pela qual é preciso necessariamente que eu passe para chegar deles até mim. Após quinze anos e até mais que me encontro nessa estranha posição, ela me parece ainda um sonho. Imagino sempre que uma indigestão me atormenta, que tenho um pesadelo e que vou acordar entre meus amigos, aliviado da minha dor. Sim, sem dúvida, sem o perceber devo ter dado um salto da vigília ao sono, ou antes, da vida para a morte. Arrancado não sei como da ordem das coisas, eu me vi precipitado em um caos incompreensível em que não percebo absolutamente nada e, quanto mais penso em minha situação presente, menos posso compreender onde estou. Oh! como teria podido prever o destino que me esperava? Como posso concebê-lo até mesmo hoje quando a ele estou entregue? Podia eu no meu bom senso supor que, um dia, eu, o mesmo homem que era, o mesmo que sou ainda, passaria, seria tido sem a menor dúvida por um monstro, um envenenador, um assassino, que me tornaria no horror da raça humana, no joguete da canalha, que toda a saudação que me fariam os passantes seria a de escarrar sobre mim, que toda uma geração, de comum acordo, se divertiria enterrando-me ainda vivo? Quando se deu essa estranha revolução, tomado de surpresa, senti-me a princípio transtornado. Minhas agitações, minha indignação mergulharam-me num delírio que não precisou de menos de dez anos para se acalmar e, nesse intervalo, tendo caído de erro em erro, de engano em engano, de tolice em tolice, forneci com minhas imprudências aos diretores de meu destino outros tantos instrumentos que eles habilmente puseram em ação para fixá-lo irremediavelmente. Debati-me por muito tempo tão violenta quanto inutilmente. Sem habilidade, sem perícia, sem dissimulação, sem prudência, franco, aberto, impaciente, arrebatado, debatendo-
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me, não fiz outra coisa senão deixar-me enlaçar ainda mais e dar-lhes continuamente novos poderes, que não negligenciaram. Sentindo, afinal, todos os meus esforços inúteis e me atormentando inutilmente, tomei a única decisão que me restava: submeter-me à minha sorte, sem mais resistir contra o destino. Encontrei nessa resignação a compensação a todos os meus males, pela tranqüilidade que ela me traz e que não podia aliar-se ao trabalho contínuo de uma resistência tão penosa quanto infrutífera.(...)
[Botânica] A coletânea de meus longos sonhos apenas começou e já sinto que chega ao fim. Uma outra distração lhe sucede, me absorve e me tira até mesmo o tempo de sonhar. Entrego-me a ela com um entusiasmo que chega às raias da extravagância e que a mim mesmo faz rir quando reflito no assunto; mas não deixo de a ela me entregar, pois na situação em que me encontro não tenho outra regra de conduta a não ser a de seguir, em tudo, minha inclinação sem constrangimento. Nada posso contra meu destino, tenho somente inclinações inocentes e todos os julgamentos dos homens sendo, de agora em diante, inexistentes para mim, a própria sabedoria quer que, no que permanece ao meu alcance, faça tudo o que me agrada, seja em público, seja a sós, sem outra regra senão a minha fantasia, sem outra medida além das poucas forças que me restaram. Eis-me, portanto, reduzido a meu feno como alimento e à botânica como ocupação. Já velho, tomara por ela o primeiro gosto na Suíça, junto ao Dr. d'Ivernois e herborizara bastante bem, durante minhas viagens para adquirir um conhecimento passável do reino vegetal. Mas, tendo-me tornado mais do que sexagenário e sedentário em Paris, as forças começando a me faltar para as grandes herborizações e, aliás, entregue o suficiente à minha cópia de música para não ter necessidade de outra ocupação, abandonara essa distração que não me era mais necessária: devolvera meu herbário, vendera meus livros, contente por rever, algumas vezes, as plantas comuns que encontrava ao redor de Paris em minhas caminhadas. Durante esse intervalo, o pouco que sabia desapareceu quase completamente de minha memória e bem mais rapidamente do que levara para se fixar. De repente, com mais de sessenta e cinco anos, privado da pouca memória que tinha e das forças que me restavam para percorrer o campo, sem guia, sem livros, sem jardim, sem herbário, eis-me possuído de novo por essa loucura, mas com mais ardor ainda do que tive quando a ela me entreguei pela primeira vez; eis-me seriamente ocupado com o sábio projeto de aprender de cor todo o Regnum vegetabile, de Murray, e de conhecer todas as plantas conhecidas da Terra. (...) Não procuro justificar a decisão que tomo de seguir essa fantasia; acho-a muito razoável, persuadido de que, na situação em que me encontro, entregar-me aos divertimentos que me agradam é uma grande sabedoria e mesmo grande virtude: é a maneira de não deixar germinar em meu coração nenhum fermento de vingança ou de ódio, e, para encontrar ainda em meu destino algum gosto por uma diversão, é preciso seguramente ter um natural bem depurado de todas as paixões irritantes. Isso significa vingar-me de meus perseguidores à minha maneira, não poderia puni-los mais cruelmente do que sendo feliz apesar deles. Sim, sem dúvida, a razão me permite, me prescreve mesmo entregar-me a toda inclinação que me atrai e que nada me impede de seguir; mas ela não me ensina por que essa inclinação me atrai e que atrativo posso encontrar em um vão estudo feito sem proveito, sem progresso e que, embora sendo um velho, tonto, já caduco e pesado, sem facilidade, sem memória, me reconduz aos exercícios da juventude e às lições de um escolar. Ora, é uma extravagância que gostaria de explicar a mim mesmo; parece-me que, bem elucidada, ela poderia lançar alguma nova luz sobre esse conhecimento de mim mesmo, a cuja aquisição consagrei meus últimos lazeres. Algumas vezes, pensei com bastante profundidade, mas raramente com prazer, quase sempre contra minha vontade e como à força: o devaneio me descansa e me diverte, a reflexão me cansa e me entristece; pensar foi sempre para mim uma ocupação penosa e sem encanto. Algumas vezes meus devaneios acabam pela meditação, mas mais freqüentemente minhas meditações acabam pelo devaneio, e durante tais divagações minha alma vagueia e plana no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que ultrapassam qualquer outro gozo.