MASSA E PODER
ELIAS CANETTI MASSA E PODER
Tradução
Paulo Osório de Castro Jorge Telles de Menezes
A presente edição foi apoiada por
Título original: Mass und Macht
Copyright ©1994 by the heirs of Elias Canetti First published in 1960 by Claassen Verlag Permission granted by Ullstein Buchverlage GmbH Copyright © Cavalo de Ferro, 2014, para a presente edição Revisão: Cláudia Chaves de Almeida Paginação: Finepaper Paulo Osório de Castro é responsável pela tradução das partes: A Massa; A Matilha; Matilha e Religião; Massa e História; As Entranhas do Poder; O Sobrevivente; Elementos do Poder; A Ordem
(com excepção do capítulo final). O capítulo A Dissolução do Espinho e as partes: Transformação; Aspectos do Poder; Dominação e Paranóia; Epílogo; Notas; Bibliografia , foram
traduzidos por Jorge
Telles de Menezes.
ISBN: 978-989-623-158-3
1.ª edição, Junho de 2014 Direitos para língua portuguesa (Portugal) adquiridos por: © Cavalo de Ferro, marca propriedade de Theoria, Lda. Rua das Amoreiras, 72 A 1250-024 Lisboa Quando não encontrar algum livro da Cavalo de Ferro nas livrarias, sugerimos que visite o nosso site w ww.cavalodeferro.com
ÍNDICE
A MASSA Mutação do Receio de Contacto ..................................................13 Massa Aberta e Fechada ...............................................................14 A Descarga .....................................................................................16 O Vício da Destruição ...................................................................18 A Evasão ........................................................................................20 Sentimento de Perseguição .........................................................23 Domesticação das Massas nas Grandes Religiões .......................25 Pânico .............................................................................................27 A Massa Enquanto Anel ...............................................................29 As Propriedades da Massa ............................................................31 Ritmo ..............................................................................................33 Paralisação .....................................................................................37 Lentidão ou a Lonjura do Objectivo ......................................... 44 As Massas Invisíveis........................................................................47 Classificação Segundo a Emoção Principal .................................54 Massas do Acosso ...........................................................................55 Massas da Fuga ............................................................................. 60 Massas da Proibição.......................................................................63 Massas da Inversão ....................................................................... 66 Massas da Festa ..............................................................................71 A Massa Dupla: Homens e Mulheres. Os Vivos e os Mortos ......73 A Massa Dupla: a Guerra ..............................................................79 Cristais de Massa ...........................................................................86 Símbolos de Massa: Fogo. Mar. Chuva. O Rio. Floresta. Cereal. Vento. Areia. Montões. Montes de Pedra. Tesouro ........................ 88
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A MATILHA Matilha e Matilhas ....................................................................... 111 A Matilha de Caça .......................................................................116 A Matilha de Guerra ................................................................... 118 A Matilha de Lamentação ..........................................................124 A Matilha de Multiplicação ........................................................129 A Precisão das Matilhas. A sua Constância Histórica ..............139 A Comunhão ................................................................................135 A Matilha Interior e a Matilha Silenciosa .................................137 As Matilhas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas .........142 Formações de Pessoas entre os Arandas ...................................146 MATILHA E RELIGIÃO Alteração das Matilhas ................................................................153 Floresta e Caça entre os Leles do Kasai ...................................155 Os Despojos de Guerra dos Jivaros ............................................159 As Danças da Chuva dos Índios Pueblo ....................................163 Sobre a Dinâmica da Guerra: O primeiro Morto. O Triunfo.. 166 O Islão como Religião da Guerra...............................................170 Religiões da Lamentação ............................................................172 A Festa de Muharram dos Xiitas ................................................176 Catolicismo e Massa ....................................................................186 O Fogo Sagrado em Jerusalém ...................................................190 MASSA E HISTÓRIA Símbolos de Massa das Nações: Ingleses. Holandeses. Alemães. Franceses. Suíços. Espanhóis. Italianos. Judeus ......................... 203 Alemanha de Versalhes .............................................................. 216 Inflação e Massa ......................................................................... 220 A Essência do Sistema Parlamentar ...........................................226 Distribuição e Multiplicação. Socialismo e Produção ..............229 A Autodestruição dos Xhosas .....................................................232
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AS ENTRANHAS DO PODER Apanhar e Incorporar .................................................................245 A Mão: Sobre a Paciência das Mãos. Dos Exercícios Digitais dos Macacos. As Mãos e o Nascimento dos Objectos. A Mania da Destruição nos Macacos e nos Homens. Os Que Mataram Continuam Sempre a Ser os Poderosos ....................................... 255
Sobre a Psicologia do Acto de Comer ....................................... 266 O SOBREVIVENTE O Sobrevivente .............................................................................275 Sobrevivência e Invulnerabilidade .............................................277 A Paixão da Sobrevivência ..........................................................279 O Detentor do Poder Enquanto Sobrevivente ..........................281 A Salvação de Flávio Josefo ....................................................... 284 Aversão dos Potentados pelos Sobreviventes. Soberanos e Sucessores ......................................................... 294 As Formas da Sobrevivência ...................................................... 299 O Sobrevivente na Crença dos Povos Primitivos ...................... 304 Os Mortos na Condição de «Sobrevividos» ...............................317 Epidemias .....................................................................................330 Sobre a Emoção do Cemitério ..................................................334 Da Imortalidade ..........................................................................336 ELEMENTOS DO PODER Força e Poder ...............................................................................341 Poder e Velocidade ..................................................................... 343 Pergunta e Resposta ................................................................... 345 O Segredo ....................................................................................351 Julgar e Criticar ...........................................................................359 O Poder do Perdão: Graça ..........................................................361
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A ORDEM A Ordem: Fuga e Espinho ......................................................... 365 A Domesticação da Ordem .........................................................370 Repercussão e Medo de Ordenar ...............................................371 A Ordem Dada a Muitos Indivíduos ..........................................373 À Espera de Ordens ...................................................................375 Os Peregrinos à Espera de Ordens em Arafat ..........................378 O Espinho da Ordem e a Disciplina ..........................................379 Ordem. Cavalo. Flecha ................................................................381 Emasculações Religiosas. Os Skopets ......................................... 385 Negativismo e Esquizofrenia ..................................................... 388 A Inversão ....................................................................................391 A Dissolução do Espinho ........................................................... 395 Ordem e Execução.O Carrasco satisfeito ................................. 398 Ordem e Responsabilidade ...........................................................400 A TRANSFORMAÇÃO Pressentimento e Transformação entre os Bosquímanos ............405 Transformações de Fuga. Histeria, Mania e Melancolia ..........411 Autoproliferação e Autoconsumo. A Dupla Forma do Totem ..................................................... 418 Massa e Transformação em Delirium Tremens ...........................432 Imitação e Dissimulação .......................................................................446 A Figura e a Máscara ..................................................................451 A Destransformação ...................................................................456 Proibições da Transformação .....................................................458 Escravatura .................................................................................. 464 ASPECTOS DO PODER Sobre as Posições dos Homens: a sua Relação com o Poder. Estar de Pé. Sentar-se. Estar Deitado. Acocorar-se. Ajoelhar-se .............469 O Maestro.................................................................................... 479 Fama .............................................................................................481 A Ordem do Tempo ................................................................... 482 8
A Corte ........................................................................................ 485 O Trono Crescente do Imperador de Bizâncio ....................... 486 As Ideias de Grandeza dos Paralíticos ...................................... 488 DOMINAÇÃO E PARANÓIA Reis Africanos ............................................................................. 499 O Sultão de Deli: Muhammad Tughlak ....................................516 O Caso Schreber — Primeira Parte ...........................................529 O Caso Schreber — Segunda Parte .......................................... 546 EPÍLOGO A Dissolução do Sobrevivente .....................................................567 ����� ............................................................................................575 ������������ ...............................................................................593
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A MASSA
Mutação do Receio de Contacto Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido. Uma pessoa quer ver aquilo que lhe toca, quer ser capaz de o reconhecer ou, pelo menos, de o situar. Em toda a parte, o homem evita ser tocado pelo desconhecido. Sobretudo de noite ou no escuro, um contacto inesperado pode levar o susto a transformar-se em pânico. Nem mesmo a roupa garante segurança suficiente, já que é tão fácil rasgá-la, já que é tão fácil penetrar até à carne nua, macia e indefesa do agredido! Todas as distâncias que os homens criaram em seu redor foram ditadas por esse receio do contacto. As pessoas encerram-se em casas, nas quais ninguém pode penetrar, e só dentro delas se sentem meio seguras. O medo do ladrão que assalta casas não se reporta apenas aos seus intuitos depredatórios, é também um temor da sua garra irrompendo súbita e inesperadamente do escuro. A mão, feita garra, serve constantemente de símbolo a esse medo. Uma correlação que subsiste em grande medida no duplo sentido da palavra «atacar»1. Nela cabem, simultaneamente, tanto o contacto inofensivo quanto o ataque perigoso, embora algo deste último significado ecoe sempre no primeiro. O nome «ataque», porém, cingiu-se exclusivamente ao mau sentido da palavra. Essa aversão ao contacto tampouco nos deixa quando nos encontramos no meio da multidão. A maneira como nos movimentamos na rua, entre muitas pessoas, em restaurantes, em comboios e autocarros é ditada por esse receio. Mesmo quando estamos muito perto de outras pessoas, e as podemos observar e examinar circunstanciadamente, evitamos, sempre que possível, um contacto com elas. Se fazemos o contrário, é porque alguém nos agrada, e, então, a aproximação dá-se por nossa própria iniciativa. A urgência que se tem nas desculpas por um contacto não intencional, a tensão com que se espera por elas, a reacção veemente, e algumas vezes por vias de facto, que se tem quando não surgem essas desculpas, a aversão e o rancor que se sente pelo «malfeitor» — mesmo que não se possa ter de modo algum a 13
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certeza de que ele o seja —, todo esse complexo de reacções anímicas em torno do contacto com o que nos é estranho prova, pela sua extrema instabilidade e sensibilidade, que se trata mesmo de algo muito profundo, permanentemente desperto e sempre melindroso, de algo que nunca mais abandona o homem, uma vez que este tenha fixado os limites da sua pessoa. Até mesmo o sono, em que se está muito mais indefeso, pode ser perturbado com demasiada facilidade por esse tipo de receio. É só na massa que o homem se pode libertar desse receio do contacto. É a única situação em que esse temor se transforma no seu contrário. Do que se precisa para tanto é da massa compacta , em que um corpo se comprime contra outro corpo, compacta até na sua componente psicológica, porquanto não se repara em quem é que nos «oprime». Assim que alguém se entrega à massa, deixa de recear o seu contacto. No seu caso ideal, todos são iguais uns aos outros. Nenhuma diferença conta, nem sequer a dos sexos. Seja quem for que incomoda alguém, é como se fosse o próprio. É sentido tal como uma pessoa se sente a si própria. Então, de repente, tudo se passa como que no interior dum corpo. Talvez esta seja uma das razões pelas quais a massa procura concentrar-se de forma tão compacta: quer desembaraçar-se o mais completamente possível do receio do contacto em cada indivíduo. Quanto mais fortemente as pessoas se comprimirem umas de encontro às outras tanto mais nitidamente sentem que não têm medo umas das outras. Essa mutação do receio de contacto faz parte da massa. É na sua máxima densidade que o alívio que nela se espalha, e de que ainda se falará noutro contexto, atinge um grau particularmente elevado.
Massa Aberta e Fechada A massa que repentinamente aparece, onde antes não estava nada, é um fenómeno tão misterioso quanto universal. Podem ter-se juntado algumas pessoas, poucas, umas cinco a dez ou doze, não mais. Não está nada anunciado, não se está à espera de nada. De repente, acha-se tudo negro de gente. De todos os lados acorrem outras pessoas, é como se as ruas tivessem um só sentido. Muitos 14
A MASSA
não sabem o que se passou, e, quando lhes fazem perguntas, nada têm a dizer; contudo, têm pressa de estar onde está o maior número de indivíduos. Há uma resolução no seu movimento que se distingue muito bem da habitual curiosidade. O movimento de uns, diz-se, comunica-se aos outros; mas não é só isso: eles têm um objectivo. Este existe, antes mesmo de eles terem encontrado palavras para o descrever: o objectivo é o ponto mais negro, o sítio onde se ajuntou o maior número de pessoas. Haverá muito que dizer sobre essa forma extrema da massa espontânea — que, no ponto em que se forma, no seu verdadeiro cerne, não é assim tão espontânea como parece. Mas em tudo o mais, se nos abstrairmos das cinco ou dez ou doze pessoas de que partiu, é-o realmente. Assim que existe, quer ser constituída por mais . A vontade de crescer é a primeira e a suprema característica da massa. Esta pretende apanhar todo aquele que esteja ao seu alcance. Quem quer que tenha figura humana pode juntar-se a ela. A massa natural é a massa aberta : não existe mesmo nenhum limite ao seu crescimento. Ela não reconhece casas, portas nem fechaduras; aqueles que se trancam perante ela são-lhe suspeitos. Neste caso, o adjectivo «aberta» tem de entender-se em toda a sua acepção, pois ela está aberta em toda a parte e em todas as direcções. A massa aberta existe enquanto crescer. A sua desagregação tem início assim que ela deixa de crescer. Pois a massa desagrega-se tão repentinamente como se gerou. Nessa forma espontânea, ela é uma formação delicada. A sua abertura, que lhe torna possível o crescimento, é ao mesmo tempo o seu perigo. Está sempre vivo, nela, um pressentimento da desagregação que a ameaça. Procura escapar-lhe através de um rápido incremento. Enquanto pode, vai absorvendo tudo; mas, porque absorve tudo, tem necessariamente de se desagregar. Em contraste com a massa aberta, que pode crescer até ao infinito, que está em toda a parte e, por isso mesmo, reivindica um interesse universal, encontra-se a massa fechada . Esta renuncia ao crescimento e tem principalmente em vista a duração. O que nela se nota em primeiro lugar é o limite . A massa fechada fixa-se. Cria o seu sítio, na medida em que se delimita; o espaço, que ela preencherá, está-lhe atribuído. É comparável a um vaso, em que se despeja um líquido: sabe-se quanto líquido lá entra. Os acessos a esse espaço estão contados, não se pode 15
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penetrar nele de qualquer maneira. O limite é respeitado. Pode ser feito de pedra, pode consistir em sólida alvenaria. Talvez seja necessário um acto especial de admissão; talvez, para entrar, se tenha de pagar determinados direitos. Desde que o espaço esteja suficientemente preenchido, não se deixa entrar mais ninguém. Mesmo que esteja a transbordar, o essencial continua sendo a massa compacta dentro do espaço fechado, à qual não pertencem, em rigor, aqueles que se encontram do lado de fora. O limite impede um crescimento desordenado, mas também dificulta e retarda a dispersão. Aquilo que é sacrificado em termos de possibilidade de crescimento ganha-o a massa no plano da estabilidade. Fica protegida de influências exteriores, que lhe poderiam ser hostis e perigosas. Mas, muito especialmente, conta com a repetição . É graças à perspectiva da repetição que, de cada vez, a massa se consola com a sua própria dissolução. O edifício está à sua espera, é por sua causa que ele ali está e, enquanto ali estiver, eles reunir-se-ão da mesma maneira. O espaço pertence-lhes, mesmo que esteja na maré vaza, pois, no seu vazio, lembra o tempo da maré cheia.
A Descarga O fenómeno mais importante que se desenrola no seio da massa é a descarga . Antes disso, a massa não existe propriamente, é a descarga que, realmente, a constitui. É o momento em que todos aqueles que dela fazem parte se libertam das suas diferenças e se sentem como iguais . Entre essas diferenças, há que pensar, sobretudo, nas que são impostas do exterior, distinções de categoria, de classe e de posses. Os homens, enquanto indivíduos, estão sempre conscientes dessas distinções, que pesam seriamente sobre eles e os obrigam, com muita severidade, a distanciar-se uns dos outros. O homem situa-se num lugar determinado, seguro, e, com eficazes gestos jurídicos, afasta de si tudo quanto dele se acerca. Tal como um moinho de vento sobre uma vasta planície, ele aí está, expressivo e agitado, e até ao próximo moinho não há nada. Toda a vida, tal 16
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como ele a conhece, está fundada em distâncias: a casa, em que ele se fecha à chave a si próprio e aos seus haveres, o emprego, que ele ocupa, a posição, a que ele aspira — tudo isso serve para criar distâncias , para as consolidar e ampliar. A liberdade de qualquer movimento mais profundo de um para outro fica coarctada. Os impulsos, tanto num sentido como no outro, perdem-se como na areia dum deserto. Ninguém pode chegar à proximidade do outro, nem à altura do outro. Hierarquias firmemente estabelecidas em todos os sectores da vida não permitem a ninguém tocar no que está mais acima, nem descer, a não ser na aparência, até ao que está mais abaixo. Em diferentes sociedades, essas distâncias encontram-se reciprocamente contrabalançadas de modos diversos. Em algumas, põe-se ênfase nas diferenças de origem, noutras, nas de actividade ou de riqueza. Não vem a propósito, aqui, especificar essas hierarquias. O essencial é que elas existem em toda a parte, que em toda a parte se implantam na consciência dos homens e determinam de forma decisiva o seu comportamento para com os outros. A satisfação de se estar, na hierarquia, mais acima do que outros não compensa a perda de liberdade de movimentos. Nas suas distâncias, o ser humano entorpece e entristece. Vai carregado com esses fardos e não sai do mesmo sítio. Esquece-se de que foi ele quem os impôs a si próprio e anseia por se libertar deles. Mas como há-de ele libertar-se sozinho? Fosse o que fosse que ele fizesse para tanto, e até por muito resoluto que fosse, encontrar-se-ia perante outros que fariam malograr os seus esforços. Enquanto estes se aferrarem às suas distâncias, ele não consegue acercar-se deles minimamente. Só todos juntos se podem libertar dos fardos que são as suas distâncias. É precisamente isso que acontece na massa. Com a descarga , são suprimidas as separações, e todos se sentem iguais . Nesse aperto, em que mal há espaço entre eles, em que corpos se comprimem de encontro a corpos, cada um está tão próximo do outro como de si próprio. O alívio daí resultante é enorme. É por causa desse momento feliz, em que ninguém é mais , em que ninguém é melhor que o outro, que os homens se tornam massa. Mas o momento da descarga, que é tão desejado e tão ditoso, contém em si o seu próprio perigo. Padece de uma ilusão fundamental: os homens, que de repente se sentem iguais, não se tornaram 17
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realmente iguais, nem para sempre. Regressam às suas casas separadas e deitam-se a dormir nas suas camas. Conservam os seus haveres e não renunciam aos seus nomes. Não rejeitam os seus parentes. Não fogem à sua família. Só no caso de con versões a sério é que as pessoas saem das suas antigas alianças e entram numa nova. Tais associações, que, por sua natureza, só podem admitir um número limitado de membros e têm de assegurar a sua estabilidade por meio de duras regras, designo-as eu como cristais de massa. Da sua função ainda se falará pormenorizadamente. A própria massa, contudo, desagrega-se. Sente que se desagregará. Receia a desagregação. Só pode subsistir se o processo da descarga tiver continuação com novas pessoas, que vêm ter com ela. Somente o acréscimo da massa impede aqueles que dela fazem parte de voltar para trás, arrastando-se sob o peso dos seus fardos.
O Vício da Destruição Fala-se muitas vezes no vício da destruição próprio da massa. É a primeira coisa que nela salta à vista, e é inegável que ele se encontra em toda a parte, nos mais diversos países e civilizações. É, na verdade, comprovado e reprovado, mas nunca é, realmente, explicado. De preferência, a massa destrui casas e objectos. Como se trata, muitas vezes, de coisas frágeis, tais como vidraças, espelhos, vasos, pinturas, loiças, tende-se a crer que é justamente essa fragilidade dos objectos que incita a massa à destruição. É verdade, com certeza, que o ruído da destruição, o quebrar da loiça, o tilintar das vidraças contribuem consideravelmente para o regozijo que isso dá: são os vigorosos sinais vitais de uma nova criatura, os gritos de um recém-nascido. O facto de ser tão fácil provocá-los aumenta a sua popularidade, tudo grita juntamente com um e com outro, e o tilintar é o aplauso das coisas. Uma necessidade especial desse tipo de barulho parece existir no início dos acontecimentos, quando ainda não se é excessivamente 18
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numeroso e pouco, ou mesmo nada, aconteceu. O barulho promete aqueles reforços que se espera obter e é um presságio feliz quanto aos acontecimentos que estão para vir. Mas seria um erro crer que, em tudo isso, o factor decisivo é a facilidade da destruição. Houve quem se atirasse a esculturas de pedra dura e não descansasse antes de estarem mutiladas e irreconhecíveis. Os cristãos destruíram as cabeças e os braços de deuses gregos. As imagens dos santos foram apeadas por reformadores e revolucionários, por vezes de alturas em que semelhante operação era um perigo de vida, e, muitas vezes, tão dura era a pedra que se procurava despedaçar que apenas se ficou a meio caminho do objectivo pretendido. A destruição de imagens que representam algo é a destruição de uma hierarquia que já não se reconhece. Atenta-se contra as distâncias universalmente estabelecidas, que são visíveis para todos e válidas em toda a parte. A sua dureza era a expressão da sua permanência: existiam desde há muito tempo, pensa-se que desde sempre, verticais e inamovíveis, e era impossível alguém acercar-se delas com intuitos hostis. Agora, estão derrubadas e destroçadas. A descarga consumou-se nesse acto. Contudo, nem sempre vai tão longe. A destruição do tipo habitual, de que se falou a princípio, mais não é do que um ataque a todos os limites . As vidraças e as portas pertencem a casas, são a parte mais fraca da respectiva delimitação para o exterior. Uma vez arrombadas portas e janelas, a casa perdeu a sua indi vidualidade. Qualquer um pode, então, entrar nela à vontade, nada nem ninguém, lá dentro, está protegido. Nessas casas, porém, estão geralmente metidas, é o que se julga, aquelas pessoas que procuram separar-se da massa, ou seja, os seus inimigos. Agora, aquilo que os separava está destruído. Entre eles e a massa não há nada. Podem vir cá para fora e juntar-se a esta. Também se pode ir lá buscá-los. Mas há mais do que isso. O próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ultrapassa os limites da sua pessoa. Sente-se aliviado, porque estão abolidas todas as distâncias que o obrigavam a refluir sobre si próprio e o encerravam em si próprio. Ao serem-lhe tirados de cima os fardos da distância, ele sente-se livre, e a sua liberdade é a transgressão desses limites. Aquilo que lhe acontece, a ele, deve também acontecer aos outros; ele espera 19