Marie ~ Dominique Philippe
introdução à filosofia de aristóteles
Tradução: Gabriel Hibon, fj Revisão: Eduardo Loureiro de Araújo
Congregação Congregação São João 1999
Título do original francês: fr ancês:
Introduction Introduction à la philosophie d’Aristote (Collection Sagesse)
Publicado por:
Éditions Universitaires Paris, 1991
Copyright:
© La Colombe, Éditions du Vieux colombier, 1956 © Mame - Éditions Universitaires
Tradução brasileira: brasilei ra:
Congregação São João Rua dos Perdões, s/n Santo Antônio 40030-310 — 40030-310 — Salvador — Salvador — Bahia Bahia Brasil
Copyright da tradução brasileira:
© Mame - Éditions Universitaires
NOTA SOBRE O AUTOR Nascido na França em 1912, o Pe. Philippe, é dominicano. Lecionou na faculdade dominicana de Le Saulchoir e na Universidade Pontifícia de Friburgo, Suíça, de 1939 a 1982. É autor de uma rica obra filosófica em 14 volumes, de cerca de 16 livros de teologia, de centenas de artigos em revistas européias. O principal de sua pesquisa sobre o homem e sobre o Cristo tem como eixo principal a procura das três sabedorias: filosófica, teológica e mística, desenvolvidas em um pensamento original.
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OBRAS DO MESMO AUTOR Obras traduzidas para o português adorarás . Livraria Editora Flamboyant. São Paulo, 1960. * - Um só Deus adorarás. glorificado . Edições Paulinas. São Paulo, 1970.* - O mistério do Cristo crucificado e glorificado. José. Congregação São João. Salvador, 1999 2.* - O mistério de José. Jesus . Congregação São João. Salvador, 1996 2.* - Santo Tomás doutor, testemunha de Jesus. - Carta a um amigo. amigo . Itinerário filosófico. Congregação Congregação São João. Salvador, 1996.* - O manto do matemático. matemático . Congregação São João. Salvador, 1996.* - No coração do amor . Conversa sobre o amor, o casamento e a família. Paulinas 1997. sabedorias. Congregação São João. Salvador, 1998.* - As três sabedorias. Congregação - O amor . Na visão filosófica, fil osófica, teológica e mística. Vozes. 1999
Outras obras de filosofia - Une philosophie de l'être est-elle encore possible? 5 fascículos: I. Signification de la métaphysique. — II. Significations de l'être. — III. Le problème de l'ens et de l'esse (Avicenne et Saint Thomas). — IV. IV. Néant et être (Heidegger et Merleau-Ponty). — V. — V. Le problème de l'être chez certains thomistes contemporains. Téqui. Paris, 1975. - L'être. Recherche d'une philosophie première, première , 2 tomos (o segundo em 2 volumes). (Prêmio Bordin da Académie Française). Téqui. Paris, 1972-1974. sagesse. Téqui. Paris, 1977. Um tomo - De l'être à Dieu. De la philosophie première à la sagesse. com 3 volumes de tópico histórico: I. Philosophie grecque et traditions religieuses. Téqui, 1977. — — II. II. Philosophie et foi. Téqui, 1978. — — III. Philosophie moderne et contemporaine (a ser publicado). - Philosophie de l'art , 2 tomos. Éditions Universitaires, 2 a edição. Paris, 1991 e 1994.
Outras obras de teologia - Le Mystère de l'amitié divine. divine. Luff-Egloff. Paris, 1949. - Mystère de Marie. Marie. Croissance de la vie chrétienne. Fayard. Paris, 1998 3. miséricorde. Saint Paul. Fribourg, 1958 e 1960. 1. L'Immaculée Conception. — - Mystères de miséricorde. Conception. — 2. La Présentation de Marie. — Marie. — 3. 3. L'Annonciation. L'Annonciation. Benoît . La Colombe. Paris, 1961. - Analyse théologique de la Règle de saint Benoît l'Église. Dialogue avec A. Finet. Beauchesne. 1967. - Le Mystère de l'Église. matin. Entretiens sur la Vierge Marie. Le Sarment-Fayard. - L'Étoile du matin. Sarment-Fayard. Paris, 1989. Jean . 2a edição. Saint Paul. Paris, 1995. - Suivre l'Agneau. Retraite sur l'Évangile de Saint Jean. croix. Saint Paul. Versailles, 1996. - "J'ai soif". Entretiens sur la sagesse de la croix. d’offrande. Retraite avec la petite Thérèse. Saint Paul. Versailles, 1997. - L’acte d’offrande. amour. Fayard. Paris, 1998. - Vérité, liberté, amour. Fayard. * Esta
obra pode ser adquirida junto da Congregação São João (R. dos Perdões, S/N, 40030-310 Salvador,
Bahia).
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SUMÁRIO
OBRAS DO MESMO AUTOR
SUMÁRIO PREFÁCIO ..................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................9 A. Notas biográficas.............................................................................................................9 B. A filosofia helênica antes de Aristóteles .......................................................................14 C. Visão de conjunto sobre a filosofia de Aristóteles ........................................................22
I. A FILOSOFIA HUMANA .................................................................................................27 A. FILOSOFIA ÉTICA (filosofia do agir) ............................................................................31 1. A felicidade ..............................................................................................................31 2. O que é a virtude e sua diversidade..........................................................................39 3. O voluntário e o involuntário ...................................................................................42 4. As virtudes éticas .....................................................................................................49 5. As virtudes intelectuais ............................................................................................56 6. Hierarquia das virtudes ............................................................................................60 7. Amor de amizade — Contemplação ........................................................................65
B. FILOSOFIA POLÍTICA ...................................................................................................77 1. Filosofia da família ..................................................................................................79 2. A cidade, comunidade perfeita.................................................................................83
C. FILOSOFIA DA ATIVIDADE ARTÍSTICA (Filosofia do fazer) ........................................93 II. A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS ..............................................................99 A. FILOSOFIA DE O-QUE-É-MOVIDO ..............................................................................105 1. Possibilidade de uma filosofia de o-que-é-movido ( Física, livro I) ......................105 2. A natureza ( Física, livro II) ...................................................................................111 3. O movimento ( Física, livro III) .............................................................................116 4. O primeiro motor ( Física, livros VII e VIII) ..........................................................124 5. Os corpos celestes (Tratado Do céu)......................................................................126
6. Os elementos ..........................................................................................................133 7. Os mistos ................................................................................................................136
B. FILOSOFIA DO VIVENTE E DA ALMA .........................................................................137 1. Os viventes corruptíveis.........................................................................................138 2. Os três graus de vida ..............................................................................................143
III. A FILOSOFIA PRIMEIRA .........................................................................................153 1. Natureza da sabedoria ............................................................................................154 2. Estrutura científica desta sabedoria........................................................................158 3. As aporias (livro B) ................................................................................................161
A. REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O CARÁTER PRÓPRIO DA FILOSOFIA PRIMEIRA ...............................................................................................163 1. Existe uma ciência que estuda o-que-é enquanto é e seus atributos primeiros ......164 2. O primeiro princípio ..............................................................................................167 3. Excelência da filosofia primeira entre os conhecimentos teoréticos .....................172
B. ESTRUTURA CIENTÍFICA DA FILOSOFIA PRIMEIRA: ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS PRÓPRIOS .......................................................................175 1. Procura da substância (livro ) ..............................................................................176 2. Descoberta do ser-em-ato (livro )........................................................................190 3. Propriedade de o-que-é enquanto ser: o uno (livro ) ............................................201
C. SABEDORIA TEOLÓGICA ............................................................................................211 1. Substância separada, eterna, divina (livro ).........................................................211 2. A contemplação .....................................................................................................224
IV. A LÓGICA .....................................................................................................................231 1. O raciocínio dialético: os Tópicos ................................................................................233 2. Os falsos raciocínios: Refutações sofísticas .................................................................235 3. O raciocínio: os Primeiros Analíticos ..........................................................................238 4. A ciência: os Segundos Analíticos ...............................................................................244 5. As enunciações: Da Interpretação ...............................................................................251 6. Os elementos da enunciação: as Categorias ................................................................254
CONCLUSÃO ..........................................................................................................................259 Bibliografia ............................................................................................................................269
índice dos nomes ....................................................................................................................272
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PREFÁCIO
Aristóteles deve ser considerado, se existem, como um dos mestres do gênero humano. G.-W.-F. HEGEL, Lições sobre a história da filosofia, I, 1, 3.
Nessa introdução à filosofia de Aristóteles, queremos apresentar, em traços largos, as diversas orientações da pesquisa do Filósofo, desvelando os pontos de relevo do seu pensamento, e, em apêndice, fornecer uma breve análise de seus vários tratados, para facilitar o seu estudo. Quando o filósofo quer conhecer um outro, não deve primeiro procurar as intuições dominantes do pensamento dele, para depois analisar todo o seu desenvolvimento? E, em último lugar, não deve tentar apreender o cume de sua pesquisa filosófica, especificar até onde sua indagação filosófica penetrou no conhecimento do homem, do universo e mesmo do Ser primeiro? Visto o caráter desta visão de conjunto sobre a pesquisa filosófica de Aristóteles, colocamos de lado, voluntariamente, todas as discussões filológicas e as diversas interpretações filosóficas — desde aquelas dos primeiros discípulos até as dos filósofosfilólogos e historiadores de nossa época, sem esquecer os comentadores árabes e os teólogos latinos da Idade Média, como também os eruditos latinos da Renascença. Evidentemente, essa exposição do conjunto da filosofia de Aristóteles, por elementar que seja, supõe uma certa opção a respeito dessas diversas interpretações; temos disso uma perfeita consciência. Como filósofo, tentamos interpretar Aristóteles, uma vez que ele se apresenta como tal, e como amigo, isto é, procurando compreender o que ele nos diz, em vez
de criticá-lo do exterior: é preciso se deixar formar por um filósofo para compreendê-lo como filósofo e como sábio. Acreditamos que essa démarche é legítima e necessária: para expôr a pesquisa de um filósofo, é necessário filosofar com ele, é preciso necessariamente repensar com ele, esforçar-se por descobrir com ele o que foi como que o centro, o âmago vital de suas reflexões. Quando se trata de penetrar num pensamento tão preciso, tão profundo, tão flexível (tão analógico) quanto o de Aristóteles, isso nos parece ainda mais imprescindível. Com efeito, um filósofo que situa consciente e explicitamente sua pesquisa no nível da experiência que temos das várias realidades, consideradas sucessivamente na sua inteligibilidade própria de operação humana, de devir, de operação vital e de ser, não pode ser compreendido senão quando se capta a ordem íntima do seu pensamento, sua diversidade e sua unidade características. Portanto, trata-se de segui-lo passo a passo na sua pesquisa, podando o mais possível todos os a priori que provêm de filosofias posteriores; estas, rejeitando a experiência primeira das realidades existentes (porque ingênua), fundaram-se sobre idéias, ou sobre um método crítico, ou sobre um método fenomenológico. Provavelmente seja para nós o que é mais difícil de realizar: redescobrir esse olhar simples, «natural», da inteligência sobre as realidades existentes, olhar que nos é dado graças a nossas experiências, implicando as sensações externas. Decerto, o contexto exterior, político, econômico, cultural, mudou bastante desde Aristóteles! No entanto, nossa inteligência, na sua experiência das realidades físicas, permanece a mesma... E todo o esforço de Aristóteles é regressar constantemente a essas experiências e analisá-las para descobrir toda a sua significação profunda. Não entrar nessa démarche de Aristóteles, portanto, arriscaria nos impedir de apreendê-lo na sua originalidade própria. Eis por que quisemos desenvolver o pensamento de Aristóteles segundo a ordem própria de sua pesquisa: Aristóteles se debruçou, primeiro, sobre os problemas da atividade humana, desenvolvendo, assim, uma parte da filosofia que é freqüentemente considerada como secundária. Ela permanece, entretanto, essencial e bastante atual! Aristóteles não para de afirmar que a ordem genética do nosso pensamento é inversa à sua ordem de perfeição. Portanto, para ser fiel ao espírito de sua filosofia, é preciso abordá-la pela filosofia humana. Numa exposição de sua «doutrina» que se quereria sistemática, como foi feito freqüentemente, e como infelizmente ainda se faz, abordaríamos o estudo desses tratados numa ordem diferente: lógica, filosofia da natureza, filosofia primeira, filosofia humana, essa última considerada como uma «aplicação do especulativo ao prático»!... Já que a filosofia de Aristóteles não é, de modo algum, uma filosofia sintética, sistemática, é preciso descobrir a ordem genética de seu pensamento, para captar depois sua ordem de perfeição. E essa ordem de perfeição nos conduz a descobrir a filosofia na sua última pesquisa, no seu último desabrochar de sabedoria. Não é próprio de uma filosofia realista manter essa pesquisa do imperfeito para o perfeito (ordem genética), e tudo retomar na luz do que é descoberto de modo último? Aqui, se trata bem do Ato puro, Deus. Com esse olhar último, esse juízo de sabedoria, o perfeito ilumina o imperfeito e permite conhecê-lo melhor.
INTRODUÇÃO
A. Notas biográficas 1
Foi no primeiro ano da Olimpíada 99 (384 a.C.) que nasceu Aristóteles, em uma antiga colônia grega, na costa oriental da Calcídica de Thrace, em Estagira, cidade onde se falava grego e onde a cultura era essencialmente grega, com certas influências macedônicas. Sua mãe era originária de Cálcis, cidade da ilha de Eubéia. Seu pai Nicômacos, que parece ter vindo de Messênia, era médico célebre: foi chamado à corte de Pelá e foi médico pessoal do rei Amintas III, pai de Filipe. A ele são atribuídos seis livros de iatrika e um de physika. Ele morreu antes de ter o tempo de formar seu filho em sua arte. Depois da morte de seu pai e sua mãe, Aristóteles foi adotado por um certo Proxenes de Atarnéia. Mais tarde, após a morte de Proxenes, em sinal de gratidão, Aristóteles adotará por sua vez o filho de seu benfeitor, Nicanor, a quem dará sua filha em casamento. 2 É bastante difícil apreciar a influência pessoal de Nicômacos e a de sua arte médica sobre a formação do jovem Aristóteles; ademais, a juventude e a mocidade do futuro filósofo são pouco conhecidas. Aos dezoito anos, por volta de 367, Aristóteles chega em Atenas e se inscreve na Academia: torna-se discípulo de Platão. Depois do grande período de seu akmé filosófico (a República, o Banquete), tendo conhecido os fracassos políticos de Siracusa, Platão estava talvez um tanto abatido no seu elã filosófico: é a época em que ele começa a ter sobre sua 1 Vários
estudos foram dedicados à biografia de Aristóteles. Eles detalham o estado das fontes que possuímos para estabelecê-la. Ver, em particular: I. D ÜRING, Aristotle in The Ancient Biographical Tradition; PAUL MORAUX, Les listes anciennes des ouvrages d'Aristote, pp. 323-346; JEAN AUBONNET , trad. de la Politique d'Aristote, Les Belles Lettres, t. I, pp. VII-XCV ; R.-A. G AUTHIER , Éthique à Nicomaque, pp. 5 seg; P IERRE LOUIS, Vie d'Aristote. Ver também E. ZELLER , Die Philosophie der Griechen... 2 O testamento de Aristóteles, conservado por Diógenes Laércio (cf. D ÜRING, op. cit., pp. 35-370), determina esse casamento e lembra o nome de Proxenes.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES obra um certo olhar crítico, que se traduz no seus escritos mais analíticos — Parmênides, Teéteto, O Sofista, O Político... — , por uma preocupação maior de lógica e de dialética. Foi este Platão que Aristóteles encontrou em primeiro lugar... Aristóteles permaneceu na Academia até a morte do Mestre, no ano 348. Durante vinte anos, dos dezoito aos trinta e oito anos, período por excelência da formação intelectual, portanto, ele viveu no ambiente muito complexo desta Escola, onde, apesar das lutas, buscava-se aprofundar as ciências teoréticas e a ciência política e moral, uma vez que, para Platão, essas pesquisas se implicavam reciprocamente. Tudo o que o espírito humano aspira a conhecer, saber, era o objeto de pesquisas assíduas, de discussões intermináveis; tudo o que o homem moral e político podia desejar aprofundar e possuir era procurado com o mesmo interesse e a mesma solicitude. Gostaríamos de ter o retrato do jovem Aristóteles estudante; gostaríamos de saber suas impressões, de conhecer seus entusiasmos a respeito de seu novo mestre; gostaríamos de segui-lo e de ver como seu espírito se formou aos poucos à filosofia. Mas não sabemos quase nada desses longos anos de estudo. Somos reduzidos a conjecturar que ele teve de aprender tudo quanto se ensinava. Por causa de seus primeiros estudos e de suas aptidões naturais, talvez ele fosse particularmente atento às ciências da natureza. Mas Platão, evidentemente, com seu ideal filosófico a um só tempo contemplativo e político, marcou muito provavelmente a inteligência ainda toda fresca do aluno. Parece certo que, enquanto o Mestre ainda vivia, Aristóteles permaneceu na Academia, considerando que ele lhe pertencia plenamente. 1 Podemos até acrescentar que as relações de Platão e de Aristóteles parecem ter sido e ter permanecido muito profundas e muito íntimas. É certo, Platão não fala senão uma vez de Aristóteles em seus diálogos. Mas não se pode interpretar esse silêncio como uma condenação implícita do mestre a respeito do discípulo, já que na maioria dos casos Platão supõe seus diálogos filosóficos anteriores à fundação da Academia. Parece, ao contrário, segundo Filopon e o pseudo-Amônio, que Platão compreendeu o valor excepcional de seu discípulo. Ele o cognominou o «leitor» e «a cabeça da Escola». 2 Ele o considerava como o estudante modelo, de inteligência viva e ardente, que não precisa ser «aguilhonado», mas «moderado». Por seu lado, Aristóteles se apegou, com todo o fervor de sua alma de adolescente, a esse Mestre que ele admirava, estimava e amava. No seu diálogo sobre Eudemo, seu condiscípulo, Aristóteles fala com a maior admiração do mestre deles; e, nos seus primeiros escritos, emprega a primeira pessoa do plural quando 1 Diógenes
Laércio relata que, enquanto Platão ainda vivia, Aristóteles teria fundado uma escola rival da Academia. Um dia, na ausência de Xenócrates e de Espeusipo, teria até criticado violentamente seu antigo mestre e o teria forçado a deixar a Academia. Mas Dionísio de Halicarnasso diz expressamente o inverso. De resto, se Aristóteles tivesse deixado Platão, quando ele ainda vivia, e tivesse querido fundar uma nova escola, a afirmação de Apolodoro seria mentirosa quando afirma que ele ficou vinte anos junto de Platão. Ora, o testemunho de Apolodoro tem historicamente mais valor do que o de Diógenes. Poderíamos ainda notar que Teócrito de Chios censura Aristóteles por ter deixado a Academia depois da morte de Platão e ter se dirigido à Macedônia, o que evidentemente não teria mais sentido se Aristóteles já tivesse rompido com a Academia. 2 Arist... ôs noûs tés diatribés. Cf. DÜRING, op. cit., p. 98, § 6-7; p. 152, § 6-7.
INTRODUÇÃO cita opiniões platônicas. 1 Portanto, ele pensa certamente durante esse período pertencer à Academia. Mas conhecemos aquela linda passagem da Ética a Nicômacos em que, obrigado a tomar posição contra a teoria do Bem-em-si de seu antigo mestre, Aristóteles afirmará: «Melhor vale e até se deve, quando se trata de salvar a verdade, sacrificar também o que nos é íntimo, sobretudo quando se é filósofo. Um e outra [Platão e a verdade] sãos amigos, porém, é sagrado preferir a verdade». 2 O filósofo deve sacrificar seus sentimentos mais pessoais e mais íntimos para salvaguardar na sua integridade os direitos da verdade. Aristóteles, ao preferir a verdade à amizade de seu mestre, propicia-lhe o supremo testemunho de fidelidade. Durante esses vinte anos na Academia, Aristóteles não foi sempre o aluno que escuta o ensino do mestre. Chegou um dia em que ele próprio teve de começar a ensinar. Em que época? Não o sabemos. Geralmente se reconhece que, Platão ainda vivo, o Estagirita já escrevia diversos diálogos, 3 e que ele deu um curso sobre a retórica. 4 Era necessário enfrentar e resistir à escola rival de Isocrates, então florescente. Quando da morte de Platão, seu sobrinho Espeusipo substituiu-o na chefia da Academia. Aristóteles e Xenócrates foram para a Ásia Menor. Ignoramos os motivos dessa partida: rivalidades, necessidade de liberdade maior, suspeição política (Filipe acabava de tomar Olinto), os documentos não dizem nada. Em todo caso, é bem atestado que, depois da morte de Platão, Aristóteles permaneceu em Assos de Trôades (Mísia), junto de Hérmias. Hérmias não era desconhecido de Aristóteles: tinha feito amizade com ele quando da sua estada na Academia. Embora antigo escravo, tinha se tornado o chefe de Assos e da vizinha Atarnéia. Tinha tentado organizar um estado ideal sob o modelo platônico. Nesse lugar, Aristóteles teria aberto uma escola e começado seu primeiro ensino oficial em um meio, de resto, totalmente platonizante. 5
1 Ver Metafísica,
A, 9, 990 b 9-23. W. Jaeger, nos seus estudos sobre a cronologia das obras de Aristóteles, baseia-se sobre essa maneira de falar para descobrir as que pertencem a seu período platônico. Sem forçar demasiado esse argumento, ele nos sugere pelo menos o quanto Aristóteles se tinha integrado na Academia. Cf. W. JAEGER , Aristotle..., p. 167 seg. 2 Op. cit., I, 4, 1096 a 14-17. 3 Segundo Jaeger seria preciso vincular a essa primeira estada em Atenas o Eudemo e o Protréptico, por causa do próprio parentesco doutrinal desses escritos com a teoria de Platão (J AEGER , op. cit ., pp. 39-101). 4 Ver CÍCERO, De Orat ., III, 35, 141; 17, 62; Tusc., I, 4, 7. Sabe-se que Isócrates procurava fazer uma espécie de síntese da Retórica de Górgias do método socrático. Na sua Retórica, Aristóteles frisa a relação que existe entre a retórica, a dialética e a política: «A retórica é como que um rebento ( paraphués) da dialética e da ciência dos costumes que é justo chamar de política. Assim, a retórica se reveste da máscara da política» ( op. cit., I, 2, 1356 a 25-27). Aristóteles não aceita a posição de Isócrates, que degrada fatalmente a política. Para Aristóteles, esta é uma ciência prática, ao passo que «a retórica é uma parte da dialética e é-lhe semelhante (...); nem uma nem outra é uma ciência que estuda algo definido. Elas são, uma e outra, potências capazes de proporcionar argumentos» (op. cit ., I, 2, 1356 a 30-33). 5 Desde a descoberta do Comentário de Dídimo sobre as Filípicas de Demóstenes, essa fundação é historicamente estabelecida. Para W. Jaeger, o peri philosophias de Aristóteles (diálogo perdido de que não sobram senão fragmentos) teria sido como o manifesto do novo Mestre de escola, no qual teria exposto seu programa. Todo esse diálogo, por quanto se pode julgar pelos fragmentos que ficam, permanece muito platônico na sua inspiração geral (W. J AEGER , op. cit ., p. 124 seg.).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES É nessa época que se deveria situar um primeiro esboço da Metafísica. Embora guardando um amor muito grande ao seu mestre, Aristóteles, que nunca aceitou as formas ideais, busca explicitamente elaborar uma nova filosofia, usando um novo ponto de partida: a experiência.1 Aristóteles parece também se dedicar, durante esses anos, a pesquisas biológicas e zoológicas. Observou-se que várias espécies marinhas melhor analisadas pelo Filósofo no seu tratado da História dos Animais são espécies que não existem, de fato, senão nessas regiões. Esses anos de trabalho e de ensino em Assos representam na formação de nosso filósofo como que um período de transição, de libertação intelectual. Platão não está mais presente para parar ou, pelo menos, moderar as ousadias e as inovações audaciosas de seu discípulo... Aristóteles deixou seu amigo por volta do ano 345, provavelmente no momento da destruição de Assos pelos Persas. Hérmias — o próprio Aristóteles nos conta 2 — foi morto numa emboscada por gente vendida aos Persas, mas não sabemos quando exatamente. Depois da morte de Hérmias, Aristóteles desposou sua filha adotiva ou sua sobrinha, Pítias, que lhe deu uma filha. E sabemos que, Pítias morta, ele desposou Herpillis, que lhe deu um filho, Nicômacos, e uma filha. Seu testamento mostra seu apego a suas duas mulheres, prescrevendo que os restos de Pítias sejam reunidos aos seus e, em homenagem à dedicação de Herpillis, cuidando de assegurar seu futuro. 3 De Assos Aristóteles foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, onde se estabeleceu e onde provavelmente proseguiu durante dois anos as pesquisas filosóficas e o ensino. Enfim, por volta de 343, Filipe chamou-o à corte de Pelá, para lhe confiar a educação de seu filho Alexandre, então com treze anos. Aristóteles, então, estava na plena força da idade, em plena efervescência intelectual. Apesar disso, ele deve ter aceito com alegria esse convite que testemunhava tão manifestamente a confiança a ele outorgada. O próprio Platão, que considerava como um dos grandes deveres do filósofo a formação dos futuros legisladores e dos chefes da cidade, não dedicou todo o seu cuidado e toda a sua solicitude para formar em Siracusa uma cidade ideal? Aristóteles, ao ir à corte de Pelá, junto do jovem Alexandre, mostrava-se verdadeiramente discípulo de seu antigo mestre. Não sabemos nada de preciso sobre o ensino e a educação que Aristóteles deu a seu ilustre aluno. O próprio Plutarco não pôde fazer senão suposições. Aristóteles permaneceu na corte até a morte de Filipe (335-334) e até o advento no trono de Alexandre. Retomou, então, a estrada de Atenas. Treze anos transcorreram desde sua 1 Esse novo ponto de
partida não está já presente, implicitamente, nas últimas obras de Platão, durante o período de reflexão crítica? Isso se deveu a influência do jovem Aristóteles, recém-chegado na Academia, propiciando um olhar novo sobre o mundo, ou era uma reação pessoal de Platão descobrindo para a sua filosofia um ponto de partida diametralmente oposto ao primeiro? 2 Inscrição da estátua que ele fez erigir em Delfos ( fragm. 674-675). 3 Cf. DÜRING , op. cit., pp. 35-37.
INTRODUÇÃO partida. A Academia continuava existindo. Xenócrates tinha substituído Espeusipo há quatro anos. Apesar de seu apego a Xenócrates, Aristóteles não voltou à sua antiga Escola. No Norte-Leste de Atenas, num ginásio dedicado a Apolônio Luciano, fundou uma escola, que se chamaria, por essa razão, o Liceu. 1 Frente à Academia, o Liceu desenvolveu um espírito novo, com métodos de pesquisa diferentes. Uma luta aberta começou, então, entre as duas escolas que pretendiam guardar o espírito de Sócrates. Muito rapidamente, a nova escola tomou importância, graças ao gênio de seu fundador e de seus mestres, dentro os quais é preciso citar Teofrasto de Eresos, um velho amigo de Aristóteles, que já o tinha acompanhado na corte de Pelá e que tinha que substituilo à frente do Liceu, Eudemo de Rhodes, Mênon ... Acrescentemos que Antipater, vice-rei de Macedônia, a quem fora confiada a vigilância da Grécia, também teve de favorecer o feliz desenvolvimento da Escola, cobrindo seus gastos, por amizade a Aristóteles. Durante uns doze anos, Aristóteles ensinou no Liceu todas os ramos do saber filosófico, desde a física até a filosofia primeira, sem esquecer a lógica com todas as suas partes e as ciências éticas e políticas. Trabalhou pessoalmente, ao organizar consideráveis pesquisas positivas: desenhos de geografia, coleções de história natural, coletâneas de constituições políticas, modelos geométricos, astronômicos, mecânicos. Tudo isso fazia parte de sua documentação filosófica. Aristóteles tinha uma concepção muito grande e muito vasta de seu plano de trabalho, e as múltiplas obras que chegaram até nós o atestam. Alargando o campo das pesquisas científicas, ele as orientava para alvos específicos. Nos seus trabalhos científicos, ele era secundado por colaboradores com que tinha relações estreitas: Teofrasto compilava e classificava as opiniões dos filósofos anteriores segundo as questões e as matérias de que trataram; Eudemo de Rhodes se dedicava à história das matemáticas; Mênon, à da medicina. A morte de Alexandre, em 323, parou o elã magnífico que Aristóteles tinha imprimido ao Liceu. A Grécia, de novo, aspirava à liberdade. O partido antimacedônico de Atenas se reergueu. Acusaram Aristóteles de impiedade, como já fora feito com Anaxágoras e Sócrates: um certo Eurimedon, ou Demófilo, o acusou de ter prestado à memória de seu amigo Hérmias um culto privado. Aristóteles, notemos, tinha feito erguer uma estátua em Delfo e tinha composto um poema em sua honra: considerou-se esse poema como um pean (um canto propriamente religioso). Para impedir que Atenas «pecasse mais uma vez contra a filosofia», Aristóteles fugiu. Refugiou-se em Cálcis, na ilha de Eubéia. Ele morreu pouco depois, provavelmente nos primeiros meses do ano 322, de uma doença de estômago de que sofria havia tempo. Mal tinha ultrapassado os sessenta e dois anos. Mas durante esses anos tinha feito uma obra imensa, admirável tanto pela amplitude e pela mais variada e mais abundante documentação quanto pela sua penetração e sua precisão científica. 1 Essa
escola foi denomeada «peripatética» em razão do passeio ( peripatos) que ela possuía. Esse passeio, de resto, não era próprio à escola fundada por Aristóteles.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
B. A filosofia helênica antes de Aristóteles Um filósofo como Aristóteles, não esqueçamos, permanece atento a todos quantos filosofaram, quantos buscaram a verdade antes dele; e ele não hesita em assumir nas suas elaborações o que lhe parece precisamente ter atingido a verdade. Dir-se-ia, hoje, que Aristóteles esteve atento ao patrimônio filosófico... É impressionante: a cada vez que aborda uma nova questão filosófica, Aristóteles considera o que seus predecessores disseram sobre esse problema. Se essa dimensão não está ausente de seu trabalho, Aristóteles não a aborda como um historiador, no sentido moderno da palavra, mas como um filósofo que procura a verdade: Aristóteles não é um historiador do pensamento, mas uma testemunha do pensamento filosófico de sua época. Esse pensamento não começou já com Hesíodo? Decerto, Hesíodo expõe seu pensamento segundo um modo muito poético, freqüentemente simbólico, mas há nele uma intenção de busca da verdade. Essa sede de busca da verdade é de fato como a intenção dominante da filosofia grega, da sua origem a seu termo; talvez seja até o que a caracteriza mais. A preocupação de Descartes será a busca da certeza... A de Hesíodo é a busca da verdade. Qual dos dois, na sua intenção, é mais filósofo? Apresentando-se como inspirado das Musas, Hesíodo as faz falar assim no início de sua Teogonia: «Pastores campesinos, tristes opróbrios da terra, que não são senão ventres! Sabemos contar mentiras todas semelhantes a realidades; mas sabemos também, quando queremos, proclamar verdades». 1 Essa preocupação de verdade tem como fruto próprio e como manifestação a busca de uma ordem: «Contem-me essas coisas, ó Musas, habitantes do Olimpo, começando pelo início (ex arkhés), e de tudo isso digam-me o que foi primeiro». 2 Essa ordem concerne a um pensamento freqüentemente mítico, mas a partir do qual Hesíodo quer extrair um conteúdo de verdade. Também se deve notar que ele é o primeiro a ter descoberto uma certa ordem genética — ele procura estabelecer a gênesis, a genealogia dos deuses — , distinguindo-o de uma ordem de perfeição: Zeus é «o pai dos deuses e dos homens, em sua potência, o primeiro, o maior dos deuses». 3 É também interessante notar o duplo olhar «filosófico-poético» desse filósofo ainda tão ligado à matéria, à terra, e tão profundamente religioso: Os trabalhos e os dias nos manifestam como ele olha a família — é o primeiro filósofo da família e do trabalho; e a Teogonia nos desvela seu olhar de «teólogo» procurando os primeiros, as fontes primeiras da genealogia dos deuses e descobrindo os três absolutos além dos quais o sábio não pode descobrir mais nada: «Portanto, antes de tudo foi Abismo ( khaos); e depois, Terra de largos flancos, alicerce segura oferta para o sempre a todos os viventes, e Amor ( Eros), o mais belo 1 Op. cit., vv. 25-27. 2 Ibid ., vv. 114-115. 3 Ibid ., vv. 47-49.
INTRODUÇÃO entre os deuses imortais, aquele que rompe os membros e que, no peito de todo deus e de todo homem, doma o coração e o sábio querer». 1 Esse olhar filosófico ainda tão poético, unindo ainda o logos e o mythos e desvelando, no entanto, realidades tão profundas, tão radicais, é a um só tempo um olhar muito realista e uma projeção psicológica da alma religiosa sobre os deuses. 2 Deixando Hesíodo de lado, geralmente se considera que a filosofia grega começou explicitamente com a escola de Mileto. De fato, os «primeiros físicos», como Aristóteles prefere chamá-los, cujo pensamento não é conhecido senão através de alguns fragmentos, marcaram a filosofia grega dos séculos seguintes. A orientação do fiozinho de água que acaba de jorrar não tem sempre uma grande importância? Tales, Anaximandro, Anaxímenes, esses três pioneiros da pesquisa filosófica, interrogam o universo, o cosmo. Eles procuram de onde ele vem e o que o constitui. A água é o princípio primeiro de todas as coisas; 3 o infinito é o elemento primordial e a origem de tudo; 4 o ar é a substância que explica todo o universo: 5 tais são suas respostas sucessivas. Mas a Escola de Mileto ainda não é Atenas. Não é ainda a Grécia continental, a Grécia no sentido inteiramente próprio da palavra. Paralelamente a esse primeiro foco de estudos e de pesquisas voltadas para o universo físico, vemos aparecer um outro foco de especulação e de reflexão voltadas para realidades mais imediatamente humanas: o dos Pitagóricos, cujas aspirações religiosas e mesmo místicas se unem a autênticas pesquisas científicas de tipo matemático. Aristóteles diz que as pesquisas propriamente especulativas começaram no Egito com os estudos matemáticos: «É no Egito que se constituiram pela primeira vez as artes matemáticas, já que deixavam lazer à casta dos sacerdotes». 6 Se, cronologicamente, este foco é quase contemporâneo ao primeiro, geograficamente ele nasce num lugar todo diferente: a Itália meridional e o Egito. Atenas, situada entre a Ásia Menor, a Itália meridional e o Egito, parece pela própria situação ter sido chamada a harmonizar as influências bastante diferentes desses primeiros centros de pesquisa filosófica. Mas, antes que seja realizada essa harmonia entre tendências de espírito e de mentalidade tão divergentes, haverá lutas, embates terríveis. As oposições tão violentas e de uma índole 1 Ibid ., vv. 116-122. 2 Uma outra passagem
da Teogonia (vv. 154 até 210) é a esse respeito extremamente significativa; ao nos mostrar a primeira cólera, que engendra a revolta da Terra contra o Céu ( Ouranos), Hesíodo não nos desvela o que há de mais radical no coração do homem — a revolta do condicionamento da criatura humana contra seu Criador inflexível, impondo sua vontade sem o consentimento de sua criatura espiritual? Notemos que essa revolta se situa ao nível da fecundidade, que implica a cooperação do Criador e da criatura... 3 Cf. H. DIELS und W. K RANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker , 11 (1), Thales, A, 12-13; B, 3. Tradução brasileira: Os pré-socráticos, Col. Os Pensadores, Abril Cultural, 1973. Trad. francesa: Les Présocratiques, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris 1987. 4 Cf. ibid ., 12 (2), Anaximandros, A, 1, 9, 10, 11, 14, 15 etc.; B, 1, 2, 3. 5 Cf. ibid ., 13 (3), Anaxímenes, A, 1, 4, 5, 6 etc.; B, 1, 2. 6 Metafísica, A, 1, 981 b 23-25.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES tão absoluta, as próprias semelhanças, recônditas mas tão profundas, de um Heráclito e de um Parmênides, não se explicam historicamente, pelo menos em parte, pelo encontro dessas duas inclinações de espírito? Heráclito de Éfeso proclama a um só tempo que «o sábio é separado de tudo», 1 que ele é «uno»,2 e que «a guerra, o combate é o pai de todas as coisas e o rei de todas as coisas...». 3 Pois num fluxo perpétuo, numa incessante mesclagem é que o universo continua a existir. 4 Parmênides de Eléia, num olhar de águia do qual ele próprio afirma ultrapassar o dos mortais, descobre a via da verdade e a distingue da via da opinião. 5 Esta é o conhecimento do do universo, dos seus movimentos e se suas gerações; aquela, ao contrário, é o conhecimento «do que é», 6 isto é, do que é necessário, incriado, indestrutível, pois o que é é completo, imóvel e sem fim. Nunca foi, jamais será, porque ele é agora, todo inteiro e sem descontinuidade.7 Esse grande pensador, o primeiro a ordenar imediatamente todo o pensamento filosófico para «o-que-é» em toda sua pureza original, está como que embriagado por sua descoberta. Ele não vê mais senão «o-que-é» e não pode ver mais nada senão isso. 8 A tradição, simplificando suas doutrinas, olhará Heráclito e Parmênides como os grandes representantes de duas teses radicalmente opostas: a da pura multiplicidade e do movimento incessante, a da unidade indivisível e da fixidez imutável do ser. Heráclito é aquele que não vê senão o fluxo e refluxo do universo, e Parmênides não vê senão a imobilidade e a fixidez do ser uno. Em realidade, ambos, por vias toda opostas, é verdade, chegam ao mesmo resultado: a negação do conhecimento «científico» do universo físico. Não se pode dizer nada de verdadeiro a respeito do universo, uma vez que ele é submetido a uma mudança perpétua, afirma o primeiro. Tudo o que se diz do universo não pode ser senão uma maneira de falar, uma simples opinião humana, declara o segundo, já que, em verdade, não há nenhum movimento; só existe o ser indivisível, imutável.
1 DIELS-K RANZ, op. cit., 22 (12), Herakleitos, B, 108. 2 «Uno é o sábio. Ele conhece o pensamento pelo qual todas as coisas são governadas mediante todas as coisas»
(ibid ., B, 41). Ver também ibid ., B, 32. 3 Ibid ., B, 53. «É preciso saber que a guerra é comum, que a discórdia é o direito e que todas as coisas nascem e morrem segundo discórdia e necessidade» ( ibid ., B, 80). 4 «O que está frio se aquece, o que está quente esfria, o que está úmido seca e o que está ressecado se molha» (ibid ., B, 126); «Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio» ( ibid ., B, 91; cf. ibid ., B, 49a). Ver também ibid ., A, 22. 5 «As éguas que me levam onde o coração pedisse conduziam-me, pois à via famosa me impeliram da deusa, que por todas as cidades leva o homem que sabe. (...)A deusa me acolheu benévola, e na sua a minha mão direita tomou, e assim disse e me interpelou: “(...) não foi funesto destino que te mandou perlustrar esta via (pois ela está fora da senda dos homens), mas Lei divina e Justiça; é preciso que de tudo eu te instrua, do âmago inabalável da verdade bem redonda, e de opiniões de mortais, em que não há fé verdadeira” ...» ( DIELS -K RANZ, op. cit ., 28 (18), Parmenides, B, 1). 6 «Escute, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e, portanto, que não pode não ser; de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha). O outro, que não é e, portanto, que é necessário não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é (pois é termo de nada), nem o dirias» ( ibid ., B, 2). 7 Cf. ibid ., B, 8. 8 «Com efeito, é o mesmo pensar e ser» ( ibid ., B, 3).
INTRODUÇÃO Nem Empédocles nem Anaxágoras, um de Agrigento (na Sicília), o outro de Clazômenas (perto de Esmirna), aceitarão na sua exclusividade essas duas teses opostas. Ao contrário, procurarão fazer uma síntese harmoniosa. Eles introduzirão de novo o problema físico no próprio âmago de sua pesquisa filosófica. Empédocles, ao mesmo tempo que guarda o «uno», o absoluto de Parmênides, quer considerar a realidade física com um olhar mais humilde, com a preocupação de respeitar mais os dados da experiência. 1 Ele tenta reintroduzir, mas de maneira nova, uma explicação filosófica do movimento e da realidade física. Essa tem seu fundamento no fogo, na água, na terra, no ar, que são as «quatro raízes» de tudo. A mesclagem contínua dessas quatro «raízes» que constitui a complexidade do mundo físico e seu movimento sem fim, se faz sob a influência do Amor e do Ódio. 2 Contrariamente a Empédocles, Anaxágoras, o primeiro filósofo a fixar-se em Atenas, quer explicar o universo físico por uma multidão infinita de corpos primeiros. O universo é formado de corpúsculos infinitamente pequenos, que são conformes entre si e que se compenetram3 Em vez do Amor e do Ódio, ele põe o noûs infinito e autônomo, que tem poder sobre todas as coisas. 4 É o noûs que explica não somente a ordem do universo, como também seu movimento.5 Com Empédocles e Anaxágoras, seria preciso citar Leucipo de Mileto para compreender o quanto a pesquisa dos primeiros Jônicos permanece vivente. Esses Gregos não podem deixar de interrogar o universo; procuram surpreender seu mistério. Paralelamente a essa atração permanente pela pesquisa física, a influência pitagórica não para também de crescer. As escolas pitagóricas, de resto, aproximam-se de Atenas. O próprio pitagorismo, representado sobretudo por Filolau e Lísis, parece ter sofrido uma certa influência das diversas filosofias da natureza, notadamente com a nova teoria dos elementos. Mais exatamente, os pitagóricos procuram dar uma explicação do mundo físico através de figuras geométricas e de números. Para eles, o estudo das matemáticas guarda sempre a
1 Certos fragmentos parecem seguir inteiramente a doutrina do
Eleiato: «Eu te direi uma coisa: não há entrada na existência, nem fim na morte funesta, para o que é perecível (...). Nascimento não passa de um nome dado a esse fato pelos homens» (ibid ., 31 (21), Empedokles, B, 8; ver também ibid ., B, 9). Ao mesmo tempo, porém, Empédocles reconhece a realidade de uma espécie de mistura ou mesclagem universal: «Eu vou te anunciar um duplo discurso. Num dado momento, o Um se forma do Múltiplo, num outro, ele se divide e do Um saí o Múltiplo (...). E essas coisas não param de mudar continuamente de lugar, reunindo-se todas em uma, a um determinado momento, pelo efeito do Amor, e levadas em um outro momento em direções diversas pelas repulsões do Ódio...» (ibid ., B, 17). 2 O Amor e o Ódio são um par de contrários inseparáveis, «sendo antes do tempo e eles serão para o sempre» (ibid ., B, 16). Aí se tem uma primeira tentativa de explicação filosófica do movimento que é extremamente interessante. Sendo materiais, as entidades misturadas não podem explicar-se por si próprias: é preciso recorrer a outros princípios que sejam ao mesmo tempo contrários. 3 «Devemos supor que muitas coisas, e de toda espécie, são contidas nas coisas que vão unindo-se, sementes de todas as coisas, com toda espécie de formas, de cores e de sabores (...). Em cada coisa tem uma porção de cada coisa» (ibid ., 59 (46), Anaxagoras, B, 4). 4 Ibid ., B, 12. 5 Ibid ., B, 13.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES prioridade: é dessa ciência que eles esperam a última explicação de todas as coisas, e muito especialmente do mundo celeste e de seu movimento. Não esqueçamos, por fim, que se certos filósofos procuraram um compromisso entre a doutrina de Parmênides e a de Heráclito, mais tarde outros apegaram-se exclusivamente à de Parmênides. De fato, Parmênides fez «escola»: Zenão e Melissos se apresentam como seus fervorosos discípulos. Ao quererem permanecer fiéis à doutrina de seu Mestre, opõe-se a todo pluralismo, especialmente ao de Empédocles e dos pitagóricos. Assim, face a essas duas grandes correntes filosóficas, provindo dos físicos e dos pitagóricos, ergue-se a Escola de Eléia em toda a sua intransigência. Essas três tendências aparecem verdadeiramente como irredutíveis e, de alguma maneira, exclusivas. No que elas têm de mais típico, requerem fixar-se em três ordens de conhecimentos (física, matemática, dialética do um e do ser), que se põem como rivais e que afrontar-se. Evidentemente, há múltiplas interferências: elas se contaminam mais ou menos uma a outra, e dificilmente conservam a pureza própria de sua origem. Cada uma quer, do seu jeito, representar uma visão sintética de todo o universo, de toda a ordem das realidades. E, precisamente, é nisso que elas correm o risco de afrontar-se e de lutar uma contra a outra, em vez de concorrerem ao mesmo alvo: a conquista da verdade. Diante da diversidade dessas tendências, alguns — como ocorre, de resto, em todas a épocas — , incapazes de captar a profundeza e o valor das divergências que separavam essas filosofias, acreditaram possível fazer uma espécie de síntese eclética; esperavam uni-las todas em um novo sistema. Uma tal atitude devia inevitavelmente conduzir a uma decadência filosófica... Essa decadência, assim como certos transtornos políticos, preparava em Atenas o terreno para os sofistas, esses estrangeiros que mostravam seu «belo saber» e seu belo jeito de falar em vista de se enriquecerem. Segundo um modo próprio, os sofistas quiseram também construir uma nova «sabedoria filosófica». Para além de todas as pesquisas particulares de ordem científica, instauraram a retórica: a arte de persuadir seu adversário, a arte de ser vitorioso em qualquer situação e a propósito de qualquer assunto. Então, já não se trata de procurar a verdade, mas somente o que pode parecer verdadeiro, o que pode ser aceito como verdadeiro; o homem se torna medida de toda verdade. Um subjetivismo impudente se apodera da filosofia; e não se quer considerar nada senão o interesse imediato e prático do homem. É nessa atmosfera de falência do verdadeiro pensamento filosófico e de empolgamento para a nova «sabedoria» retórica que é preciso compreender a violenta reação de um Sócrates. Ele abandona o estudo das ciências da natureza, dos «fenômenos celestes», da astronomia e das matemáticas, para dedicar-se unicamente à procura leal e sincera do conhecimento da alma e das virtudes: «Conhece-te a ti mesmo». 1 Animado por uma espécie de zelo apostólico, 1 Cf. 1° Alcibíades, 27 e seg.; Apologia de Sócrates, 29 c - 31 c; 41 e.
INTRODUÇÃO ele persegue os retóricos, esses falsos sábios que enganam a juventude. Ajudado por seus poucos fiéis discípulos, ele se põe à «caça» dos conhecimentos certos da piedade, da coragem, da amizade, da justiça, desejoso de possuir uma definição exata, uma ciência dessas virtudes e da alma. Conscientemente, Sócrates engaja as indagações filosóficas em uma nova direção, até então ainda inexplorada por um método científico: o conhecimento de «si mesmo» e das virtudes da alma. Para ele, de resto, esse gênero de conhecimento é o único a ser verdadeiramente filosófico, o único que interessa diretamente o homem e que pode cativar todos os seus esforços. Esse subjetivismo da filosofia socrática é, portanto, na sua inspiração profunda e nas suas intenções, diametralmente oposto àquele dos sofistas. É preciso frisar o surgimento dessas duas novas tendências filosóficas opostas em Atenas: a retórica dos sofistas e o verdadeiro conhecimento de si mesmo de Sócrates. Quanto às três tendências filosóficas «tradicionais», elas permanecem presentes, decerto, na época dos sofistas e de Sócrates, mas como que na penumbra, em um segundo plano. Nenhuma grande voz vivente está presente para fazer ouvi-las. As preocupações da juventude ateniense estão voltadas, então, para outras realidades: a do poder político, a do domínio de si mesmo. A «revolução» de Sócrates, sua ignorância voluntária a respeito de tudo o que não é o conhecimento da alma, sua vigorosa oposição à retórica dos sofistas, era uma reação salutar, e provavelmente necessária; mas essa reação não era demasiado violenta para permanecer na sua pureza original? Não devia transformar-se, ser de alguma maneira ultrapassada? Após ter sido fortemente influenciado pelo seu mestre, após ter renunciado a toda ambição política e abandonado, a seu exemplo, toda pesquisa científica sobre a natureza e as matemáticas, Platão, o discípulo amado de Sócrates, tentará unificar em uma síntese original os diversos conhecimentos filosóficos e mesmo a ambição política. Ao adotar, num primeiro momento da pesquisa filosófica, o próprio ponto de partida do seu mestre, Platão pretende realizar perfeitamente o desejo dele de estabelecer verdadeiras definições da virtude e da alma. Para serem verdadeiras, fixas, necessárias, essas definições requerem um fundamento. Por conseguinte, é preciso pôr certas realidades imutáveis e perfeitas como que para além da instabilidade e da mobilidade do mundo sensível. É com esse objetivo que Platão elabora sua teoria das formas, necessárias, sempre idênticas a elas mesmas.1 Ao generalizar essa teoria, ele concebe as formas como os arquétipos de todo o mundo físico. As coisas sensíveis recebem sua existência e sua denominação a partir desses modelos. Com isso, Platão vincula-se de modo original às pesquisas filosóficas tradicionais dos físicos: ele dá uma explicação nova do universo. Poderíamos quase dizer que, sem deixar a 1 É
no fim do Crátilo (439 c - 440 e) que as formas ideais aparecem pela primeira vez. Ora, o personagem principal do diálogo é Crátilo, partidário do fluxo universal. Quando Platão alude à teoria das "formas ideais", a propósito de um problema de significação exata, de imposição concreta de nome (438 c), é o fluxo universal indefinido dos seres sensíveis que lhe servirá de ponto de partida.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES imanência do conhecimento de si mesmo, graças às formas ideais, ele considera de novo o movimento e as realidades físicas. Nisso, ele ultrapassa a intenção primeira de seu mestre; ele inova. E, introduzindo-se novamente na antiga esteira da filosofia física, ele cria uma nova visão do mundo. Platão não para aqui seu esforço de integração e de síntese. As formas ideais conduzemno mais longe. Entre elas e as coisas sensíveis, ele põe formas intermediárias: as formas matemáticas («os números ideais»). Como as «formas ideais», as intermediárias são imóveis e eternas, mas (isto lhes é próprio) elas podem realizar-se de múltiplas maneiras, numa única determinação específica. Enfim, da mesma maneira que as formas ideais são os protótipos do mundo físico, as formas matemáticas ou «números ideais» são os protótipos do universo matemático.1 A esses diversos gêneros de realidades — formas ideais, números ideais, realidades físicas — correspondem diversos níveis do conhecimento: a opinião, que considera as realidades físicas e sensíveis, isto é, perceptíveis pelos sentidos — tais realidades, por causa mesmo do seu movimento, são incapazes de fundar um conhecimento científico necessário; a dialética, que para Platão é a ciência perfeita, guardando sempre seu valor de verdade absoluta — ela atinge as «formas ideais»; e, enfim, uma ciência imperfeita, intermediária entre a opinião e a dialética, que conhece os «números ideais». 2 Para Platão, existe um paralelismo rigoroso entre a ordem das realidades e a dos conhecimentos. Já que a realidade física e sensível não existe para ele senão em aparência e por participação, necessariamente a física não passa de um conhecimento derivado, uma ciência imperfeita, uma aparência de ciência: uma opinião. Decerto, Platão parece ter se interessado cada vez mais por esse conhecimento da natureza. No fim de sua vida, parece até ter desejado alcançar um conhecimento verdadeiramente científico do universo físico. 3 Mas os princípios de sua filosofia o impediam de realizar plenamente esse desejo. Não nos enganemos, de resto, quanto ao sentido e à qualidade desse desejo. Se Platão aspirava a um conhecimento científico do universo físico, esse conhecimento científico, no seu pensamento, não podia ser senão uma espécie de ciência físico-matemática ideal, uma certa ciência elaborada «a priori». Quanto à retórica política dos sofistas, Platão quer também assumi-la na sua síntese. Depois de tê-la recusado categoricamente, como Sócrates antes a recusara, ele distingue a retórica filosófica da retórica dos sofistas. A primeira se identifica, na realidade, com a 1 Com
efeito, Platão em certas passagens faz corresponderem rigorosamente os números-formas às realidades numeradas. 2 República, VI, 509 e - 511 e. Mais adiante ( Rep., VII, 514 a - 521 b), Platão precisa que se pode chamar de juízo de experiência ( pistis) o conhecimento que tem como objeto os seres físicos, e conjectura ( eikasia) o que não atinge senão a sombra desses seres. E dirá ainda mais nitidamente que é a opinião ( doxa) que considera o devir. 3 Para detectar esse desejo de Platão, basta notar o entusiasmo com que acolheu nas suas últimas obras os resultados do progresso científico da astronomia e da harmonia (cf. Rep., VII, 529 c - 530 c; Timeu; Leis, VII, 821 b seg.).
INTRODUÇÃO dialética; ela é indispensável ao filósofo que deve governar a cidade; a segunda não tem valor científico algum, pois não procura senão o verossímil. 1 Ela é mesmo condenável, quando pretende suplantar a sabedoria. Com a filosofia de Platão, portanto, estamos na presença de um esforço de síntese de todas as tendências filosóficas que já constituíam um verdadeiro patrimônio helênico. Cada uma dessas tendências, de fato, se encontra integrado, depois de ter sofrido grandes transformações. Partindo do conhecimento — imperfeito — das realidades aparentes, chegase, pelas ciências matemáticas — ciências intermediárias — , à pura dialética, ciência perfeita. Esta nos permite captar imediatamente as «formas ideais» e sua hierarquia, para chegar em último lugar à contemplação do Uno, do Belo e do Bem. Essa contemplação, termo da dialética, é uma espécie de conhecimento místico, intuitivo, que nos une diretamente ao «Belo em si», ao «Bem em si». Ela nos deifica e nos assimila a Deus. Essa síntese, aparentemente tão harmoniosa e que à primeira vista parece guardar o que há de mais interessante nas diversas tendências filosóficas gregas, na realidade, sacrifica completamente o valor da física tradicional, que então se encontra reduzida a não passar de uma opinião e a permanecer em um estado infra-científico. Ela sacrifica, também, a independência das ciências matemáticas, que, ao se tornarem ciências imperfeitas, não podem mais ter sua autonomia científica. Enfim, ela sacrifica o valor original do conhecimento moral tal como Sócrates o tinha estabelecido, uma vez que esse conhecimento moral se transforma, de fato, na filosofia de Platão, em uma certa dialética formal. Poderíamos ainda fazer a mesma crítica a respeito da retórica e da política. Esses conhecimentos se vêem despojados do seu caráter prático, já que eles também são reduzidos à dialética das formas. Portanto, essa síntese foi realizada ao reduzir toda a diversidade de nossos conhecimentos científicos a esse tipo único de conhecimento: a dialética das formas ideais. A doutrina de Platão, graças à dialética, apresenta-se a nós como uma simplificação dos diversos pendores filosóficos gregos, mas infelizmente é uma simplificação formal e, portanto, artificial — ou, mais exatamente, «artística», de uma arte puramente formal. Platão reconstrói seu universo a partir de suas «idéias», como o artista esculpe o mármore, contemplando sua «idéia». Pelo próprio fato, essa síntese possui um rigor formal muito grande; mas não pode escapar a uma certa uniformidade unívoca, subjacente à ordem das formas ideais: é o «outro lado da moeda». Integrando numa síntese nova os diversos pendores filosóficos gregos, com sua dialética das formas ideais, Platão constrói uma filosofia irredutível às precedentes, e que tem sua fisionomia particular. Portanto, é face a seis principais orientações da pesquisa grega anterior que é preciso considerar a filosofia de Aristóteles.
1 É
preciso pôr em paralelo Protágoras e Górgias de um lado, e Fedro de outro lado (sobretudo Fedro, 266 d seg.), para compreender a evolução de Platão a respeito da retórica, de seu valor e de sua utilidade.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
C. Visão de conjunto sobre a filosofia de Aristóteles Esse vasto panorama das diversas tendências da filosofia helênica no tempo de Aristóteles deve nos permitir captar toda a originalidade desse filósofo e apreciar no seu justo valor sua procura de um conhecimento filosófico o mais rigoroso possível, atingindo o rigor científico — no sentido como o próprio Aristóteles o entende — , assim como sua preocupação em retomar e reorganizar todas as pesquisas filosóficas precedentes numa visão analógica. Nisso compreendemos o quanto Aristóteles prolonga um esforço filosófico já existente e que em Platão, seu mestre, tinha conhecido um esplendor único. O primeiro traço que chama atenção na doutrina de Aristóteles é sua recusa categórica de aceitar as «formas ideais» ensinadas por seu mestre. Tendo conhecido na Academia todas as riquezas da filosofia grega, tendo herdado do próprio Platão a sede de contemplar a verdade, chegado na idade madura, Aristóteles não hesita em opor o amor que o ata à verdade ao que o liga a seu antigo mestre, do qual ele recebeu esse mesmo amor da verdade. Platão e a verdade, ele os ama um e outra, mas a verdade mais ainda. 1 Essa escolha ainda é um testemunho de fidelidade a seu mestre. Para Aristóteles, Platão se enganou ao pôr a existência das formas, 2 e seus discípulos imediatos, especulando dialeticamente sobre as Idéias, continuam a se afastar da verdade. 3 A grande visão filosófica do Mestre da Academia não é verdadeira, já que ela se baseia sobre realidades que existem somente no nosso pensamento: as Formas. Seguir Platão é necessariamente incidir em toda espécie de erros, afastando-se da realidade. Querer reduzir toda a sabedoria filosófica a essa única pesquisa das formas e a essa única contemplação do Uno em si, do Bem em si, do Belo em si, é necessariamente empobrecer as diversas orientações do pensamento humano, formalizando-as de maneira ideal. A negação categórica da doutrina das Idéias não é própria à idade madura de Aristóteles. Já seus primeiros escritos filosóficos — aqueles que parecem ter sido redigidos em Assos — afastam todo equívoco sobre esse ponto capital, embora encerrem muitas outras teses de sabor platônico, até porque Aristóteles se considera ainda nessa altura como um membro da Academia.4 Essa recusa em admitir as «formas ideais» traduz, portanto, uma das tendências 1 Cf. Ética a Nicômacos, I, 4 1096 a 14-17. 2 «[Platão] seguiu seu ensino [de Sócrates],
mas foi conduzido a pensar que esse universal tinha de existir em realidades outras e não nas realidades sensíveis: com efeito, ela acreditava que não pode existir uma definição comum das realidades sensíveis [individuais], daquelas que estão em perpétua mudança. A tais realidades, então, deu o nome de Idéias, as coisas sensíveis sendo distintas delas e todas denominadas conforme elas: com efeito, é por participação que existe a pluralidade sensível, unívoca a respeito das Idéias» ( Met ., A, 6, 987 b 4-10). Cf. Met ., M, 4, 1078 b 30 seg. 3 Cf. Met ., A, 9, sobretudo 992 a 32 seg: «Mas as matemáticas se tornaram para os filósofos atuais a filosofia, embora digam que não se deve cultivá-las senão em vista do resto». Cf. Met ., M, 1, 1076 a 16 seg. 4 Cf. Tópicos, VI, 10, 148 a 14 seg. «Em geral, os argumentos a propósito das Idéias arruinam aquilo cuja existência queremos [estabelecer] de preferência à própria existência das Idéias; com efeito, daí resulta que não é a Díade indefinida que será primeira, mas o número; que o relativo será anterior ao que é por si [ou: per si]; e
INTRODUÇÃO mais radicais e mais espontâneas de seu espírito, uma das tomadas de posição mais nítidas de sua inteligência filosófica; logo, convém notá-la em primeiro lugar. Sob o seu aspecto negativo, ela é uma crítica e uma condenação à teoria das Idéias de Platão, julgada inútil — pois não explica nada — e contraditória! Sob seu aspecto positivo, essa tendência é uma volta à experiência — no sentido muito forte desse termo — , e nisso ela é uma redescoberta daquilo que, para o homem, é primeiramente real: o que é movido, nosso universo móvel e físico, tudo o que é imediatamente atingido pela experiência. Compreendemos aqui o que pode haver de verdadeiro na famosa pintura de Rafael: Platão aponta para o céu, Aristóteles mostra a terra... Mas, se olharmos o conjunto da obra de Aristóteles, perceberemos imediatamente o que tal representação tem de caricatural. Platão, com efeito, contempla primeiro e imediatamente o mundo das formas: tudo é apreendido na sua luz. Quanto a Aristóteles, ele considera primeiro e imediatamente o universo físico, o que nos envolve — e retorna a ele constantemente: esse universo é que normalmente deve dar ao filósofo uma via de acesso às realidades separadas, não físicas; somente esse universo pode fazer isso. Mas o filósofo deve ultrapassar o mundo físico para contemplar Deus, o Ato Puro, o quanto ele o pode. Graças a seu realismo, Aristóteles, «filósofo da terra», será ainda mais profundamente o filósofo da inteligência separada, o filósofo do divino. Ao mesmo tempo em que ele rejeita a teoria platônica das formas, Aristóteles permanece muito atento à pesquisa de Sócrates — a do conhecimento de si mesmo. Mas ele se liga a Sócrates sem ser dependente da interpretação que Platão fez dele: não é a experiência interna da consciência que comanda toda sua pesquisa, mas a operação voluntária ordenada a um bem; operação voluntária que Aristóteles distinguirá cuidadosamente da realização de uma obra. Aliás, parece que para Aristóteles a experiência da operação voluntária de realização é primeira segundo uma ordem genética; parece bem que a reflexão sobre a atividade artística é muito fundamental na sua filosofia. Ainda haveria nisso uma influência muito nítida de seu mestre, para o qual a atividade artística influencia, de certo modo, todo o pensamento filosófico, com o primado da causalidade exemplar? A pesquisa filosófica sobre a operação voluntária ordenada para o bem preocupa profundamente Aristóteles, que desenvolve uma verdadeira filosofia ética. Esta se prolongará numa filosofia política, em que Aristóteles procurará, como filósofo, o que é o cidadão engajado numa obra política. Se para Platão a política comanda a ética, para Aristóteles a ética pessoal é primeira. De certa forma, só ela permite descobrir a verdadeira finalidade do todas as outras contradições com seus próprios princípios em que certos sucumbiram ao seguirem a doutrina das Idéias» ( Met ., A, 9, 990 b 17-22); «A questão mais importante a colocar seria perguntar o que, enfim, as Idéias conferem às realidades sensíveis, sejam eternas, sejam geradas e corruptíveis. Com efeito, elas não são para estas causas de movimento algum, sequer de mudança alguma. Tampouco são um auxílio pela ciência dos outros seres (...), nem para explicar seu ser, elas não são imanentes aos seres participados (...). Quanto a dizer que as Idéias são paradigmas e que as outras coisas participam delas é pronunciar palavras vazias e fazer metáforas poéticas...» (ibid ., 991 a 8 seg). Cf. Met ., M, 4, 1078 b 10 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES homem. É nesse sentido que ela dá à política sua significação última. A política terá certamente um estatuto filosófico próprio, mas este não pode abstrair-se da ética humana propriamente dita. Portanto, o que Aristóteles chama de filosofia humana, prática, implica três grandes partes: elas consideram o homem na atividade artística, o homem capaz de transformar o mundo; o homem na busca de sua própria felicidade: essa felicidade que não pode ser perfeita senão na contemplação de Deus — tanto quanto o homem pode alcançá-la por si próprio — e na eleição de um amigo; enfim, o homem político, engajado na procura do bem comum. Essa pesquisa da filosofia prática faz um apelo constante para uma reflexão mais radical, mais profunda: a da filosofia dita especulativa, na qual o que é considerado em primeiro lugar não é a ação humana, mas a própria realidade existente, anterior à atividade prática do homem. Essa filosofia dita especulativa procura a verdade por ela mesma; quer alcançar a realidade existente tal como ela é: a inteligência não é verdadeira senão quando ela apreende essa realidade mesma, considerada como a própria medida de seu conhecimento, precisando os diversos pontos de vista sob os quais a inteligência humana é capaz de atingi-la. Essa distinção entre a filosofia prática e a filosofia especulativa, como imediatamente se percebe, pressupõe uma confiança radical na capacidade da inteligência de atingir a realidade. Para uma inteligência moderna, isso é terrivelmente difícil de reencontrar, Descartes tendo posto em dúvida toda experiência que implicasse os sensíveis próprios, refugiando-se no conhecimento dos sensíveis comuns. Da mesma forma, Lutero (e, antes dele, Occam), colocou sob suspeita a própria capacidade de nossa inteligência de atingir a verdade, conduzindo a filosofia a um primado da crítica sobre o contato direto da inteligência com a realidade existente; a filosofia permanece, então, no nível de uma reflexão sobre a intencionalidade do conhecimento. Uma vez que a filosofia especulativa implica esse contato da inteligência com a realidade, não é surpreendente que a filosofia da natureza tome um tal lugar na pesquisa filosófica de Aristóteles, a ponto de haver quem não hesite em dizer que ele é o filósofo da natureza, o que é fundamentalmente verdadeiro. Aristóteles, aqui, responde de fato ao desafio de Platão interpretando Heráclito... E, diante dos sofistas, ele reabilita o realismo fundamental da filosofia. A matéria não é um não-ser, isto é, um ser de razão, mas o princípio radical de todo o mundo físico. Sob esse ponto de vista, Aristóteles é certamente o filósofo da matéria. Não se pode compreender sua filosofia sem ter em vista esse grande eixo de pesquisa. Nessa filosofia da natureza Aristóteles introduz a pesquisa do vivente. Ele não aborda esse estudo pela matéria, mas pela pesquisa da alma: o vivente, que para o filósofo é primeiro o homem, não pode ser estudado filosoficamente, isto é, no conhecimento do que ele é como vivente (seu ti esti), sem a descoberta da alma. Esta é descoberta como a fonte de todas as operações vitais do homem, desde a respiração até a contemplação. A intuição dominante de seu mestre Platão sobre a alma pensante, contemplativa, é plenamente recolocada à luz por
INTRODUÇÃO Aristóteles, mas de maneira totalmente diferente: o Filósofo reconhece plenamente, com efeito, o papel fundamental, substancial do corpo, pelo qual o homem é ligado ao universo. Depois, essa filosofia do vivente estender-se-á a toda uma pesquisa sobre os animais, que Aristóteles tem a preocupação de estudar segundo seu organismo biológico, e sobre as plantas. A pesquisa de filosofia especulativa não para nisso, pois o Filósofo quer conhecer o homem não somente em sua vida, mas também no seu ser. Ele quer olhar tudo o que é; daí a elaboração de seu famoso tratado de filosofia primeira, que os «bibliotecários» chamaram de metafísica! Essa denominação ficou infelizmente como a mais corrente dessa obra muito importante e tão genial de Aristóteles, mas, ao mesmo tempo, é preciso reconhecê-lo, muito difícil para inteligências modernas. A filosofia primeira, a procura de o-que-é enquanto ele é (to on é on), quer ser uma pesquisa filosófica, científica; ela implica, portanto, a descoberta dos princípios próprios e das causas próprias do-que-é como tal. E ela é toda ordenada a uma «teologia», a um logos sobre Deus. Descobrimos, então, os três níveis de inteligibilidade da filosofia «especulativa»: aquele do-que-é-movido, aquele do-que-se-move, aquele do-que-é; essa distinção não é uma separação, mas representa uma penetração cada vez mais profunda da inteligência na própria realidade experimentada. Como teremos ocasião de mostrá-lo, essa realidade é, de fato, o homem existente. Decerto, o universo inteiro é considerado, todos os viventes são considerados, e a filosofia primeira não exclui nenhuma das realidades existentes. Mas é seguramente a respeito do homem que essas diversas partes da filosofia «especulativa» acham sua unidade e se ordenam. No entanto, o homem não é o seu termo último: o Filósofo é atento às tradições religiosas que falam de Deus (Zeus), e ele quer mostrar que a linguagem mítica dessas tradições religiosas contém uma verdade profunda — a existência de um Ser primeiro. Esse Ser primeiro, de resto, é atingido de maneira toda nova, já que ele escapa a toda análise filosófica. O filósofo não pode senão desvelar sua existência e contemplá-lo, o quanto lhe é possível. Para Aristóteles, essa contemplação completa a filosofia ética; isso mostra claramente que, ao nível do conhecimento teológico, de certa forma ele ultrapassa a distinção entre prático e especulativo. É o nível próprio da sabedoria, que é compreendido em primeiro lugar com respeito ao homem que descobre sua finalidade última. Além dessas partes da filosofia propriamente dita, Aristóteles elaborou uma lógica (o organon), reflexão sobre nossa vida intelectual no seu condicionamento, para ajudá-la a amenizar suas indeterminações, suas fraquezas. A lógica é certamente como um instrumento interno, imanente à própria vida de nossa inteligência. No sentido estrito, para Aristóteles, a lógica não é a filosofia, mas ela é necessária à retificação interna de nosso pensamento e, sobretudo, à comunicação exata de nossas próprias elaborações racionais. Nesse sentido, ela não pode abstair-se da linguagem. Aristóteles distinguirá, nesse nível da linguagem, a lógica 29
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES propriamente dita da dialética, que está no nível das opiniões, e da retórica, que é em vista de persuadir. Enfim, embora não haja um tratado de crítica filosófica propriamente elaborada por si mesma na filosofia de Aristóteles, muitos livros da sua filosofia especulativa são verdadeiros tratados críticos sobre seu próprio pensamento filosófico, assim como sobre as opiniões dos outros filósofos.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A FILOSOFIA HUMANA
Os sofistas e Sócrates, embora de maneira muito diferente, já tinham colocado o problema de uma filosofia humana. Os sofistas, olhando antes de tudo no homem suas capacidades de dominação e de gozo, tendiam a reduzir todas as considerações sobre o homem a uma espécie de retórica política. Não procuravam precisar, assim, uma arte retórica capaz de persuadir, a fim de adquirir poder político? Para eles, os grandes problemas eram o da libertação dos constrangimentos tradicionais e o do poder, porque seus jovens discípulos não se preocupavam senão com essas questões. Adaptavam-se a eles, para atraí-los e viver do dinheiro deles. Sócrates, que ama o homem por ele mesmo, e que quer conhecer o que ele é, as suas qualidades próprias, seu destino, encara a filosofia como sabedoria prática: o conhecimento de si e das virtudes humanas. «Se a alma quiser conhecer-se a si mesma, ela deve olhar-se numa outra alma, e principalmente neste lugar da alma onde nasce a excelência da alma, a sabedoria ( sophia), e olhar para tal outro ponto a que se assemelha, justamente, este lugar.» 1 Estes dois primeiros esboços de filosofia humana, que têm valores tão diferentes e até mesmo opostos, porém, têm algo em comum: ambos elaboram-se independentemente dos demais conhecimentos humanos, como doutrinas e sabedorias autônomas, e pretendem, por essa razão, sobrepujar todo outro conhecimento do mundo e do homem. Há nisso um fato totalmente novo na filosofia helênica. Para permitir à filosofia humana adquirir sua própria organização filosófica, tal ruptura era provavelmente necessária, mas não podia durar. Ao prolongar o esforço do seu mestre, Platão procura elaborar um conhecimento dialético e contemplativo. Se, graças à sua dialética das formas ideais, ele realiza uma certa síntese harmoniosa entre a contemplação e a atividade prática, política, isso não se dá, de fato, em detrimento dos caracteres próprios delas? Com efeito, a ação política é considerada como uma aplicação direta da contemplação, sendo a justiça o reflexo do Bem-em-si na cidade; e a contemplação permanece essencialmente ordenada à atividade política. O «reifilósofo» contempla para que seu agir sobre a cidade seja justo e verdadeiro: sua ação é, de 1 Platão,
1° Alcibíades, 133 b. Cf. ibid ., 124 b; 129 b seg.; 132 c seg. «É por causa de uma sabedoria que adquiri este nome. Mas, que sabedoria? Aquela que, precisamente, é provavelmente a sabedoria humana» ( Apologia de Sócrates, 20 d). Ver também ibid ., 23 a-b; 28 e; 29 d seg.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES fato, o fruto de sua contemplação. Será que o agir humano, no que tem de mais característico, ainda é verdadeiramente considerado por ele mesmo por Platão? Rejeitando a doutrina das formas, especialmente quando se trata do Bem, Aristóteles não pode admitir a síntese do seu mestre. Não se deve nunca esquecer a passagem muito importante do primeiro livro da Ética a Nicômacos1 em que se põe explicitamente a questão da existência do Bem-em-si, da Idéia do Bem. Depois de ter mostrado que é impossível aceitar as afirmações de Platão, 2 Aristóteles indica como se deve compreender o bem, como a diversidade de nossas experiências das realidades boas implica, no entanto, uma certa unidade: o bem tem uma unidade segundo a analogia, «como a vista no corpo, o noûs (a inteligência) na alma, e assim outra coisa em outra coisa». 3 Descobrimos aí como, no pensamento de Aristóteles, a ética se fundamenta, por um lado, na própria realidade do bem, a qual não poderá ser estudada perfeitamente senão em filosofia primeira — isto é, com relação a o-que-é como tal — , e possui, por outro lado, uma ordem própria, filosófica: é verdadeiramente uma parte original da filosofia. O bem procurado na ética, com efeito, é o bem humano, o bem que o homem é capaz de atingir por suas próprias operações — não é o bem universal. E Aristóteles precisa que o conhecimento do Bem-em-si não ajudaria em nada numa verdadeira ética: não propiciaria senão um modelo, uma causa exemplar, que não nos ensinaria nada sobre o bem próprio de cada homem. 4 Nisso separa-se radicalmente da República, a grande síntese platônica. Guardando o mesmo desejo de contemplação e a mesma preocupação por uma filosofia política (ele reconhece, portanto, a importância e a dimensão humana delas), seu primeiro cuidado é distingui-las, especificando 1 Op. cit ., I, 4, 1096 a 11 - 1097 a 14. 2 Aristóteles o mostra por quatro argumentos
sucessivos: 1° «Os introdutores desta teoria não postulavam Idéias naquilo em que eles reconheciam uma anterioridade e uma posterioridade (...). Ora, o bem é dito no 'o que é', como também na qualidade e na relação; mas o que é de per si, a substância (ousia), é anterior por natureza à relação. (...) De sorte que não poderia haver uma Idéia comum a estas coisas» ( ibid., 1096 a 1723). 2° «Ademais, já que o bem é dito de tantas maneiras quanto o-que-é (...), obviamente ele não pode ser algo comum, universal e uno. Pois, então, ele não poderia ser dito em todas as categorias, mas numa só» (ibid ., 1096 a 23-29). 3° «Ademais, pois que existe uma só ciência das realidades que são segundo uma só Idéia, existiria também uma única ciência de todos os bens. Ora, o fato é que elas são muitas, mesmo daqueles [que caem] sob uma categoria única» ( ibid., 1096 a 29-31). 4° «Poder-se-ia perguntar o que se quer dizer porventura com “cada um em si”, se o logos de homem é o mesmo e único em 'um homem em si' e em um determinado homem. Com efeito, enquanto homem, não diferem em coisa alguma, e, sendo assim, [não diferem] tampouco enquanto bom» ( ibid ., 1096 a 34 - b 2). 3 Ibid ., 1096 b 29. 4 « Talvez alguém possa pensar que vale a pena ter conhecimento do Bem-em-si, com vistas aos bens atingíveis e praticáveis pelas nossas operações: com efeito, dir-se-á que, tendo como que um modelo sob os olhos, conheceremos mais facilmente os bens que estão ao nosso alcance, e, conhecendo-os, poderemos atingi-los. Este argumento tem alguma aparência de razão ( logos), mas parece colidir com o método científico. Todas as ciências, com efeito, embora visem a algum bem e procurem ultrapassar a distância que as separa dele, deixam de lado o conhecimento do Bem-em-si. Todavia, não é provável que todos os praticantes das diversas artes desconheçam e nem sequer tentem obter uma ajuda tão preciosa. Também é difícil perceber como um tecelão ou um carpinteiro seria beneficiado em relação ao seu próprio ofício com o conhecimento deste Bem-em-si, ou como uma pessoa que vislumbrasse a própria Idéia em si poderia vir por isto a ser um médico ou general melhor. É manifesto que não é desta maneira que um médico observa a saúde, e sim a saúde do homem, ou talvez, antes, a saúde de tal homem determinado; pois ele está curando cada um na sua individualidade própria» ( Ética a Nicômacos, I, 4, 1096 b 35 - 1097 a 13).
A FILOSOFIA HUMANA e determinando o significado próprio que elas têm para o homem. Este será o esforço característico da sua filosofia humana, que implica, de fato, uma filosofia ética, uma filosofia política e uma filosofia “poïética”.1 Considera esta filosofia humana como uma parte do conjunto da filosofia, a parte prática cujo objetivo principal é dirigir nossas atividades humanas de maneira perfeita, para permitir adquirirmos a felicidade. Ela não tem, de fato, o mesmo rigor e a mesma exatidão das partes «teoréticas» da filosofia (filosofia da natureza e filosofia primeira). Terá uma exatidão de outra ordem, uma exatidão prática, fundada imediatamente sobre nossa experiência e a dos homens, permanecendo muito perto dela: Teremos falado suficientemente, se tivermos dado esclarecimentos conformes à matéria que é o assunto. Com efeito, não se procura a mesma precisão em todas as discussões, nem tampouco na produções da arte. As coisas belas e justas, que a política investiga, implicam tantas diferenças e tantos erros, a ponto de se poder considerar a sua existência apenas convencional, e não natural. Os bens implicam igualmente uma mesma irregularidade, devido aos danos que deles provêm com freqüência: com efeito, no passado algumas pessoas foram levadas à perdição por sua riqueza, e outras por sua coragem. Falando de tais assuntos e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos, então, com a apreensão da verdade sob uma forma rudimentar e por esboço; e quando falamos de coisas simplesmente constantes e partimos de coisas constantes, não podemos concluir senão da mesma forma também. Nossas afirmações, portanto, devem ser aceitas necessariamente da mesma forma. Pois o homem culto caracteriza-se por buscar a precisão em cada gênero de coisas somente até onde a natureza do assunto permite. É manifestamente muito insensato aceitar de um matemático raciocínios apenas prováveis como exigir de um orador demonstrações rigorosas.2
O fato, isto é, o homem existente, singular, na sua atividade voluntária, que lhe permite atingir a felicidade (seja pela realização de uma obra, seja pela cooperação no bem comum), desempenha um papel fundamental nesta filosofia, como sublinha Aristóteles. A tal ponto que se o fato nos aparecesse com evidência ele bastaria, e as mais belas análises se tornariam inúteis.3 Mas, porque o fato nem sempre é dado com uma perfeita evidência, nem tampouco é 1 Esta filosofia «poïética», filosofia da atividade artística, é pouco desenvolvida por Aristóteles; porém, ela
é subjacente a toda sua filosofia humana, como a filosofia da atividade mais conatural ao homem (do ponto de vista genético), mais próxima de seu condicionamento. Ver adiante, p. 93. 2 Ética a Nicômacos, I, 1, 1094 b 11-27. «Em vista do agir, a experiência parece não se diferenciar da arte em nada» ( Metafísica, A, 1,981 a 112-13). Ora, a arte implica a descoberta de princípios próprios, de um juízo universal. Na vida prática, o fato imediatamente experimentado pode valer como princípio. 3 «Aqui, o fato é princípio, e se o fato fosse suficientemente manifesto, seríamos dispensados de conhecer o porquê por acréscimo» ( Ét. Nic., I, 2, 1095 b 6-7). «Não se deve exigir a causa para todas as coisas da mesma forma; em certos casos, basta que o fato seja claramente apontado, assim como no tocante aos princípios: o fato vem primeiro, e ele é princípio. Ora, entre os princípios, uns são considerados pela
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES perfeito na sua retidão própria, devemos, a partir dos princípios próprios da atividade humana voluntária, procurar especificar o que deve ser a nossa atitude para que ela seja perfeita, atingindo o seu fim próprio. O primeiro princípio de nossa atividade ética é o bem humano, isto é, aquilo que está em nosso poder, pois que nossa atividade voluntária é especificada por tal bem. Na filosofia ética, portanto, este bem deve ser examinado em primeiro lugar. Em seguida, haverá o estudo dos princípios eficientes, realizadores, das nossas atividades virtuosas: nossas faculdades e nossos habitus de virtude. O Filósofo lembra, porém, que haverá sempre a necessidade de que as determinações destes princípios sejam verificadas pela prática da vida.1 Na filosofia política, o princípio próprio descoberto pelo filósofo é o bem comum. Quanto à atividade poïética, protótipo de toda atividade de realização de uma obra, o princípio próprio não é mais o bem, mas a forma que o artista traz como causa exemplar de toda sua atividade. É preciso, portanto, notar que, graças ao Estagirita, a filosofia da atividade humana, considerada sob o seu aspecto propriamente prático, voluntário, adquire pela primeira vez na história da filosofia ocidental um estatuto científico — de uma maneira analógica. Isto graças à descoberta da causa final e da causa exemplar. Nisso, Aristóteles aperfeiçoa e completa o esforço começado por Sócrates e desenvolvido, de outra forma, por Platão.
indução, outros pela sensação, outros por uma espécie de uso, e outros de uma outra maneira» ( Ibid ., I, 7, 1098 b 1 seg.). 1 Cf. ibid ., I, 8, 1098 b 9 seg.
A. FILOSOFIA ÉTICA (Filosofia do agir)1
1. A felicidade Se o fim próprio da filosofia ética é o bem perfeito do homem, isto é, a sua felicidade, é normal que Aristóteles comece a Ética a Nicômacos precisando a natureza exata da felicidade. Se todos concordam em reconhecer que a felicidade é o bem supremo do homem, quando se trata de precisar a natureza deste bem supremo as opiniões são as mais diversas: Alguns identificam a felicidade a algo aparente e visível, como o prazer, a riqueza ou as honrarias; para uns é uma coisa, para outros uma outra coisa; muitas vezes a mesma pessoa identifica o bem com coisas diferentes, dependendo das circunstâncias — com a saúde, quando ela está doente, e com a riqueza, quando empobrece; cônscias, porém, de sua ignorância, elas admiram aqueles que propõem alguma coisa grandiosa e acima de sua compreensão. Há quem pense que, além destes muitos bens, há outro, bom por si mesmo, e que também é a causa da bondade de todos os outros, 2
único capaz de aperfeiçoar o noûs do homem, o espírito na sua capacidade de contemplar. Eis as diversas opiniões que os Gregos do séc. IV a.C. têm sobre a felicidade; 3 mas estas representam também as opiniões dos homens de todos os tempos e de todos os lugares, visto a complexidade da vida humana, sensível e espiritual. Aristóteles, como filósofo, sabe disso; e por isso, de propósito, ele reduz a três essas diversas opiniões: a felicidade é o prazer, a felicidade é a glória ou a virtude, a felicidade é a contemplação. Assim, o Filósofo mostra o vínculo, a correspondência profunda, entre a maneira de conceber a felicidade e o gênero de vida que se vive. Com efeito, o homem pode levar uma vida voluptuosa, a que dilata antes de 1
Poderíamos falar de uma «filosofia da praxis», entendendo claramente o sentido original desta palavra, bem diferente do que Marx a deu depois... Para Aristóteles, a praxis — notemos que o substantivo corresponde ao verbo prattein (agir) — é a atividade voluntária querida por si mesma. Ela se distingue da poïésis, atividade de realização de uma obra exterior ao artista. Para Marx, a praxis é vista dialeticamente, como a transformação do universo e do homem. A praxis é considerada relativamente ao homem e à matéria. Portanto, para Marx, a atividade humana é, principalmente, a da transformação da matéria, absorvendo a atividade propriamente moral. 2 Ética a Nicômacos, I, 2, 1095 a 22-28. 3 Cf. Festugière, L'idéal religieux des Grecs et l'Évangile, pp. 19-41.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES tudo a vida sensível; uma vida política e moral, a que se dilata sob o controle da «reta razão»;1 ou uma vida contemplativa, que exalta a parte mais divina da natureza humana, o noûs enquanto capacidade natural de atingir a verdade última. Para Aristóteles, temos aí, realmente, os três graus de felicidade que a maioria dos homens reconhece. Assim, numa perspectiva de filosofia ética encontramos de novo os três graus de vida dos Pitagóricos. Esta dialética (no sentido aristotélico) ordena bem as diversas maneiras pelas quais o homem pode adquirir uma certa felicidade: mostrará que nenhuma dessas opiniões pode ser totalmente rejeitada. Ademais, essas três maneiras de encarar a felicidade têm algo em comum: todas consideram a felicidade como o fim último das atividades humanas. Para o Filósofo, há nisso um fato capital, porque, segundo ele, a felicidade é precisamente a aquisição do nosso fim último pelas nossas atividades, a aquisição de um bem absoluto. Tal bem não pode ser relativizado por um outro bem: impõe-se a nós como o além do qual nenhum outro bem pode ser encontrado. A felicidade é o fim último das nossas atividades e não o seu fim particular e intermediário, porque é o bem supremo do homem, isto é, o bem perfeito que lhe basta e que é procurado por si mesmo. Felicidade, bem supremo do homem e fim último das nossas atividades são verdadeiramente inseparáveis na ética aristotélica. Eles são capazes de dar ao homem uma autonomia perfeita (autarkeia); não diríamos hoje que eles são fontes de liberdade para o homem? Para Aristóteles, eles são fontes de atividades voluntárias livres e virtuosas. Por isso, são como um absoluto indivisível na ordem prática. É importante notar como Aristóteles descobre em filosofia este absoluto prático, este princípio de finalidade de toda a nossa vida humana: seu proceder é uma verdadeira indução,2 que implica como que três vias de acesso. Voltemos agora ao bem que estamos procurando, e perguntemos o que pode ser, a final de contas. É claro, com efeito, que [o bem] é outro numa atividade e arte, e outro numa outra ação e numa outra arte: ele é outro em medicina e em estratégia, e o mesmo acontece nas artes restantes. O que é, então, o bem em cada um destes casos? Não é aquilo em vista de que todo o resto é cumprido ( prattetai)? Na medicina ele é a saúde, na estratégia é a vitória, na arquitetura é a casa, em outra coisa é outra coisa; e em toda ação e toda escolha, é o fim (telos); pois é em vista do fim que todas as outras coisas são cumpridas. Portanto, se algo dentro de todas as nossas ações é fim,
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O «orthos logos» é a razão prática que delibera, orientada pela vontade, vontade atraída pelo bem espiritual do homem. Este «orthos logos» será fortalecido pela virtude de prudência, cuja fonte é ele mesmo. 2 Para Aristóteles, a indução é o proceder da inteligência que lhe permite desvendar, descobrir as causas e os princípios próprios da realidade. Ver adiante, cap. 4, pp. 242 seg.
A FILOSOFIA HUMANA este mesmo será o bem capaz de ser atingido pelas nossas operações (to prakton agathon); e se existem vários, serão estas coisas.1
Para precisar seu pensamento, Aristóteles funda-se aqui numa analogia entre a ação voluntária e a atividade artística; analogia que encontramos constantemente na Ética a Nicômacos. Assim como a atividade artística é em vista de uma obra, que é seu bem verdadeiro, assim também em toda ação o bem é aquilo em vista de que esta ação é cumprida. Esta primeira análise chama um outro desenvolvimento que encontramos algumas linhas depois: Já que os fins são evidentemente múltiplos, e escolhemos alguns deles (por exemplo, a riqueza, flautas ou instrumentos em geral) em vista de outra coisa, obviamente nem todos são fins últimos. Ora, é manifesto que o melhor dos bens é algo último. Portanto, se existe uma só [coisa] última, esta será o bem que estamos procurando, e se existem várias, será a mais última de todas. E chamamos aquilo que é perseguido em si mais último que aquilo que é perseguido por outra coisa; e aquilo que nunca pode ser escolhido por outra coisa, mais último que aquilo que pode sê-lo em si e por causa de outra coisa; e chamamos último no sentido absoluto (aplôs) o que em si é sempre capaz de determinar uma escolha livre e nunca por causa de outra coisa. Ora, parece que a felicidade seja isto por excelência (malista). Com efeito, ela é sempre escolhida por ela mesma e nunca por outra coisa. Ao contrário, embora escolhamos a honra, o prazer, a inteligência, e toda virtude, por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las em vista da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, a felicidade não é nunca escolhida em vista destes bens, nem, de modo geral, em vista de outra coisa. 2
Esta segunda análise ressalta sobretudo a distinção, tipicamente ética, do fim, querido para si mesmo, e dos meios, queridos também em vista do fim último. Enfim, Aristóteles usa um terceiro argumento, a partir da autarkeia:3 O bem último parece, com efeito, bastar-se a si mesmo. Quando falamos daquilo que se basta a si mesmo, não entendemos apenas aquilo que é suficiente para um homem isolado, que leva uma vida solitária, mas também para seus pais, filhos, esposa e, em geral, para seus amigos e concidadãos, pois o homem é por natureza político (...). Chamamos de «auto-suficiente» aquilo que, considerado à parte de todo o resto, torna a vida desejável por não ser carente de coisa alguma; e, em nosso parecer, 1 Ética a Nicômacos, I, 5, 1097 a 15-24. 2 Ibid., 1097 a 25 - 1097 b 6. 3 «Bastar a si mesmo» ou «ser auto-suficiente» (N. do T.).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES assim é a felicidade. Ademais, a felicidade é o bem mais desejável de todos, sem estar dentro do conjunto dos bens; se fosse assim, ela se tornaria obviamente mais desejável mediante a adição do menor dos bens...1
Através dessas três vias de acesso, Aristóteles realiza uma verdadeira indução. Esta indução é capital , pois somente ela permite elevar-se a um conhecimento «científico» (filosófico) da atividade humana, graças à descoberta do seu princípio e da sua causa própria. Ao apoiar-se sobre exemplos da atividade artística, a primeira destas três vias de acesso é a mais manifesta objetivamente; graças à atividade artística, Aristóteles desvenda a orientação da ação humana para o bem que é fim. A segunda via especifica o que é o bem, o melhor, único entre todos os outros bens. Esta via, distinguindo o fim último dos fins intermediários, é mais nitidamente ética: é como que o eixo do conjunto da argumentação. A terceira via, enfim, ao mostrar que o bem perfeito se basta a si mesmo, refere-se claramente à dimensão política do homem. Ressaltando que o bem último torna a vida desejável, ela coloca à luz o seu aspecto subjetivo. É a via mais manifesta subjetivamente, do ponto de vista de nosso condicionamento; o que é normal, porque a dimensão política é antes de tudo a do nosso condicionamento. Esta primeira pesquisa não basta ao nosso Filósofo. Não se pode deter a ela, porque, depois de se ter desenvolvido essa análise da felicidade como causa final — aquilo em vista de que todo o resto é cumprido — , ainda é necessário especificar o que é a felicidade na sua determinação própria — o seu ti esti. Ora, de fato, a perfeição própria de toda realidade natural é a sua operação. Todo ser capaz de agir não pode ser perfeito senão agindo, porque atua as suas virtualidades naturais, aperfeiçoa-se e prolonga-se na sua operação. Assim, visto que o próprio do homem é ter uma natureza racional, a sua operação própria, sua perfeição, não pode ser senão uma atividade da razão ou segundo a razão, na irradiação imediata dela. 2 Precisemos ainda que, para ser uma verdadeira perfeição do homem, esta operação deve ser perfeita e, logo, originar-se de uma potência aperfeiçoada por um «habitus» operativo, uma areté.3 Portanto, a perfeição do homem, seu fim próprio, consiste na atividade da alma determinada pela virtude. E já que suas atividades virtuosas são, de fato, múltiplas e diversas, sua perfeição suprema, sua felicidade, não pode ser senão a atividade segundo a virtude mais 1 Ibid ., 1097 b 7-16. 2 «Da mesma forma
que o olho, o pé, e em geral cada parte do corpo, têm manifestamente uma obra determinada, não terá também o homem uma obra determinada, fora destas todas? Qual seria ela, então? O fato de viver é manifestamente comum às plantas! Estamos procurando o que é próprio ao homem. Excluamos, portanto, a vida nutritiva e de crescimento. Em seguida a estas haveria a vida sensitiva; mas também desta parecem participar mesmo o cavalo, o boi e todos os animais. Resta, então, uma certa vida de operação ( praktiké) do que possui a razão ( logos)» (ibid ., I, 6, 1097 b 30 - 1098 a 4). 3 O termo grego areté traduz-se literalmente por «excelência»; é o que permite à potência natural operar de maneira excelente, perfeita, atuando todas as suas virtualidades. O latim traduziu esta palavra por virtus que resultou em francês vertu e em português, virtude.
A FILOSOFIA HUMANA perfeita.1 Por depender de tal virtude, esta atividade é, ao máximo, a perfeição do homem e, sendo assim, não é somente sua perfeição, mas sua perfeição última. Portanto, ao mesmo tempo, é o fim próprio e o fim último do homem. Eis realmente o que é a felicidade, para Aristóteles, em sua determinação mais própria. Ela implica essencialmente (kath'auto) a atividade do homem, que provém, no entanto, de uma fonte perfeita: a potência enobrecida pela areté. Nisso Aristóteles mostra que a felicidade é o que há de mais imanente no homem; portanto, é o que propriamente o qualifica. O primeiro proceder, que considerava a felicidade do ponto de vista da finalidade, mostrava, ao contrário, o ultrapassar do homem para um bem que o atrai. Por essas duas aproximações da felicidade, o Filósofo mostra que o homem não pode ser feliz senão ultrapassando-se a si mesmo e que, assim, ele se interioriza de uma maneira última, atuando o que há de mais espiritual nele. Aristóteles sublinha depois que a continuidade da atividade segundo a virtude mais perfeita é essencial à felicidade: a felicidade reclama esta continuidade. 2 Não é a sua condição sine qua non, em razão do próprio condicionamento do homem, da sua temporalidade? Uma tal continuidade lhe permite ter uma determinada duração, além da sucessão do tempo. Enfim, é preciso especificar aquilo que no homem é atingido imediatamente pela felicidade. Em outras palavras: onde ela reside? No homem, o que é imediatamente atingido pela felicidade só pode ser sua alma racional, não seu corpo. Com efeito, a atividade virtuosa mais perfeita é necessariamente o bem próprio da alma racional. A felicidade reside na parte mais nobre da alma humana. No livro VI da Ética a Nicômacos, o Filósofo hierarquiza as virtudes; assim, determina de uma forma verdadeiramente precisa e derradeira o que é a felicidade: o que é atingido pela atividade virtuosa mais perfeita, e a natureza própria da virtude mais excelente. Ele especifica então que a sabedoria filosófica é a virtude mais perfeita. O seu ato próprio, a contemplação é, portanto, verdadeiramente o bem supremo do homem, sua única felicidade perfeita... Mas se a sabedoria teorética é a perfeição da parte mais divina de nossa alma, ao lado desta felicidade perfeita há uma outra felicidade, imperfeita em comparação àquela da contemplação, e que contudo permanece uma verdadeira felicidade; é aquela que corresponde à nossa vida ativa. Com relação a tal vida, a prudência desempenha um certo papel de virtude suprema, de sabedoria. Deve-se afirmar, então, que é o próprio exercício da virtude de
1 «Se pusermos que a obra do homem é uma certa vida, isto é, uma atividade da alma e ações implicando a
razão, e que a obra de um homem virtuoso ( spoudaiou) é cumprir isto bem e de uma maneira bela ( eu kai kalôs) — cada coisa é bem cumprida quando feita segundo sua excelência própria — , se assim forem as coisas, o bem humano nasce ( ginetai) em uma atividade da alma segundo a virtude, e se tiver mais de uma, segundo a melhor destas e a mais última» ( Ét. Nic., I, 6, 1098 a 12-18). Cf. Ét. a Eudemo, II, 1, 1219 a 30; Política, VII, 1, 1323 a 14 - 1324 a 4. 2 «Pois uma andorinha não faz verão, nem um só dia. Da mesma forma, a felicidade e a beatitude não são a obra de um dia só, nem de um curto lapso de tempo» ( Ét. Nic., I, 6, 1098 a 18-20).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES prudência que constitui a felicidade imperfeita, esta felicidade da vida ativa virtuosa? 1 Isso não parece ser inteiramente exato. O exercício da prudência não pode ter, por si mesmo, este papel de fim derradeiro que a felicidade reclama, pois, de fato, todo ato da virtude de prudência coexiste com o exercício das outras virtudes morais, que ele regula, dirige, e para o qual é ordenado. A felicidade da vida ativa virtuosa, portanto, não deve ser procurada exclusiva e primeiramente no exercício da prudência, mas igualmente no exercício de outras virtudes morais, normalmente as mais perfeitas. Ora, entre as outras virtudes morais, a mais excelente é a justiça. Só ela situa-se no nosso apetite intelectual. Porém, apesar da excelência da justiça, não podemos ainda dizer que a felicidade secundária do homem consiste no exercício desta virtude regulada pela prudência. Para Platão, a justiça constituiria provavelmente uma verdadeira felicidade secundária do homem, se ele considerasse, no entanto, que se pode existir uma «felicidade secundária» na vida ativa, política. Para Aristóteles, a própria justiça é como que ultrapassada e finalizada pela philia, que traduzimos por «amor de amizade», a fim de evitar confudi-la com a camaradagem... Este amor de amizade possui em si uma excelência própria, em razão do que ele atinge: não tal ou qual qualidade do homem, mas o próprio homem como bem absoluto. Diríamos hoje: o amor de amizade olha a pessoa do homem, considerada pelo amigo como seu bem e seu fim — porque o amigo não pode ser relativizado por um outro bem. Portanto, se o amor de amizade entre dois amigos supõe a justiça (ele a ultrapassa, pois a justiça considera o direito do outro, e não antes o outro como pessoa, na sua própria dignidade de homem), a justiça não supõe o amor de amizade. É preciso, portanto, especificar que a felicidade secundária do homem consiste no próprio exercício do amor de amizade. Compreendemos, então, por que toda a filosofia ética de Aristóteles está de certa forma orientada para o estudo do amor de amizade e da contemplação. Esta, de resto, em razão do que contempla, está como que além da ética e faz apelo à sabedoria especulativa. Ela faz o vínculo entre a filosofia humana e a filosofia primeira: uma estuda o exercício voluntário, a outra, o que se contempla (Deus). O amor de amizade, ao contrário, permanece como fim imanente da filosofia humana, estabelecendo o vínculo entre a ética e a política e manifestando-nos como, do ponto de vista da virtude moral, não podemos nos fechar na nossa própria perfeição virtuosa: a felicidade não pode existir senão no ultrapassar de si e das suas próprias virtudes, pelo amor ao amigo. O exercício das virtudes morais como tal não 1 Se
para Aristóteles a virtude de prudência desempenha um determinado papel de sabedoria na ordem prática, é preciso entender bem que se trata de uma analogia — e a analogia não toca senão certos aspectos. Com efeito, o exercício da virtude de prudência não desempenha na ordem da vida ativa o mesmo papel da sabedoria na vida contemplativa; todavia, ambas são recebidas na inteligência, uma no intelecto especulativo, a outra no intelecto prático; ambas são perfeição da inteligência e, portanto, possuem a sua nobreza. Os estóicos, ao contrário, consideram que as virtudes morais devem ser procuradas por elas mesmas, porque o exercício das virtudes morais possui em si mesmo a sua própria finalidade. Estes filósofos terão, portanto, uma tendência a considerar de uma forma unívoca o primado da sabedoria e o da prudência. A vida prática — quando ainda for distinta da vida contemplativa — será então finalizada pelo próprio exercício da prudência, num soberano domínio de si mesmo. Então, é o formalismo da virtude moral que substitui o fim próprio: o exercício do amor de amizade.
A FILOSOFIA HUMANA pode finalizar o homem. Ele é como um meio para descobrir algo maior: o homem como meu bem pessoal, como o amigo escolhido para ser o meu bem, ou o bem absoluto, último (Deus). Evidentemente, a relação entre o exercício da virtude moral e o amor de amizade é todo diferente daquele que existe entre o exercício da virtude moral e a contemplação: de um lado, como veremos, é um elemento essencial; do outro, não passa de uma disposição. Mas é muito importante notar bem que este exercício não é nunca o termo, o fim. É por isso que devemos afirmar que o exercício do amor de amizade desempenha um papel essencial na moral aristotélica, sendo este exercício o fim próprio da atividade moral. A própria natureza do amor de amizade deve, portanto, esclarecer toda essa moral e permitir-nos apreender o que ela tem de mais original e mais característico, o que a distingue da moral de Platão, que a precede, e das morais estóica e epicurista que a sucederão. Podemos, portanto, precisar agora que a felicidade, bem supremo e fim derradeiro do homem, conforme as exigências da vida ativa, não é outra senão o amor de amizade; conforme as exigências da vida teorética, não é outra senão a contemplação. Afirmar que a felicidade é a atividade segundo a virtude mais perfeita não quer dizer que o prazer e a alegria não fazem parte dela. Em realidade, a felicidade não pode existir sem ser acompanhada de uma certa alegria, de um certo prazer, pois, em si mesma, toda atividade virtuosa é deleitável e fonte de alegria. Sentir prazer ao agir com virtude demonstra que amamos esta atividade virtuosa: é uma de suas propriedades mais manifestas. 1 Assim, para Aristóteles, não há oposição alguma entre a felicidade e o regozijo ou a alegria. Pelo contrário, uma conexão necessária as une. Por sua natureza, a felicidade reclama este desabrochar vital da alegria, mas não é determinada por ela. A alegria é de fato como que a propriedade da felicidade, a sua irradiação. O sério da atividade moral virtuosa faz aliança com a alegria e o regozijo, e até as reclama. Graças a elas, a atividade virtuosa possui um modo de repouso e de plenitude que lhe permite absorver e polarizar em si mesma todas as energias do homem. 2 Nessa perspectiva, qual será o valor propriamente beatificante dos bens exteriores? É preciso considerá-los totalmente alheios, indiferentes ou mesmo contrários à felicidade? É preciso integrá-los como que disposições à atividade virtuosa? 1 «A vida [das pessoas de bem] também é agradável em si ( kath'auto). Com efeito, regozijar-se pertence às
coisas da alma, e o agradável para cada um existe relativamente ao que dizem que ama; por exemplo, um cavalo para um apreciador de cavalos, um espetáculo para um apreciador de espetáculos; do mesmo modo também o que é justo para aquele que ama a justiça e, de um modo geral, o que é segundo a virtude ( areté) para aquele que ama a virtude. Mas no caso da maioria dos homens seus prazeres colidem uns com os outros, porque não são agradáveis por sua própria natureza, enquanto que, naqueles que amam as belas ações, os prazeres são agradáveis por natureza. Ora, a ações conformes à virtude são desta natureza, de tal forma que elas são ao mesmo tempo agradáveis em si e agradáveis para os que as cumprem. A vida destes, portanto, não tem necessidade do prazer como que de um acréscimo exterior, mas ela tem o prazer em si mesma» ( Ét. Nic., I, 9, 1099 a 7-16). Cf. Ét. a Eudemo, I, 1, 1218 b 35. 2 É importante notar que uma concepção demasiado formalista da felicidade, reduzindo-a à atividade virtuosa, sem lhe ver o ultrapassar, dará de fato nascimento ao epicurismo e o freudismo: um e outro implicam um apelo — sem dúvida excessivo, mas o apelo permanece — à alegria, ao gozo, ao identificar a eles a felicidade.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Para Aristóteles, esses bens exteriores podem representar perfeições autenticamente humanas, ainda que secundárias. Longe de negá-los, a felicidade humana exige-os como instrumentos imprescindíveis para o próprio exercício das «belas ações». 1 «A riqueza, a amizade, o poder político» são úteis para o desabrochar completo das nossas atividades virtuosas. Pertencer a uma «boa família» com uma certa nobreza de raça, possuir uma certa beleza física, são bens humanos que não se pode menosprezar. Estes bens exteriores concorrem, numa certa medida, à felicidade plena do homem. Aristóteles vai até afirmar que é difícil reconhecer como feliz um homem disforme ou, ainda aquele que é «mal nascido», aquele que sofreu grandes males, aquele que é desprovido da confiança dos outros... Os bens sensíveis não são totalmente alheios à nossa felicidade, contribuem com ela a seu modo. Nisto, descobrimos bem o realismo do nosso Filósofo. Enfim, a questão da origem vincula-se à pesquisa filosófica sobre a natureza da felicidade. De onde vem a felicidade? É o fruto do trabalho do homem? É um puro favor divino? É obra do acaso? Tais são as diversas opiniões transmitidas pela tradição, que o Filósofo cuidadosamente recolhe. À luz da análise que acaba de elaborar, Aristóteles responde que a felicidade em parte se adquire, em parte depende do favor divino, em parte é obra do acaso; com efeito, a atividade virtuosa é fruto do trabalho humano, ao passo que os bens da natureza e os bens exteriores parecem depender do favor divino e do acaso. Mas, já que estes bens exteriores não concorrem para a felicidade humana verdadeira senão de maneira mediata, como instrumentos, é preciso dizer que o essencial da felicidade depende do homem. De resto, Aristóteles reconhece também que estes bens exteriores podem ser adquiridos, ao menos em parte. Mas, evidentemente, o «bom ou mau nascimento» impõe-se ao homem... Em suma, a felicidade é essencialmente a atividade segundo a virtude mais perfeita, que desabrocha em alegria e deleite e que, para se realizar plenamente, supõe outros bens inferiores, riquezas, saúde, beleza, possuídos durante toda a vida. Desta forma, Aristóteles pode dar conta do valor exato dos vários bens humanos tradicionalmente reconhecidos como tais. Ele não deixa de lado nenhum deles, mas os julga em função do que considera como o bem supremo. Este é verdadeiramente a medida de todos os outros bens humanos, capaz de ordená-los e unificá-los. Assim medidos os bens secundários, a sua relatividade é colocada em plena luz, e o caráter de bem absoluto, que freqüentemente a maioria dos homens parece atribuir-lhes em razão do domínio sobre nossa sensibilidade e sobre nossas paixões, é nitidamente rejeitado. Subordinados ao bem principal e postos a serviço dele, tornam-se meios e oferecem-lhe uma matéria que permite o pleno exercício de nossa vida moral.
1 «É
manifesto, no entanto, que precisamos dos bens exteriores, pois é impossível, ou pelo menos difícil, praticar belas ações (ta kala) sem recursos. Praticamos, com efeito, muitas ações como que mediante instrumentos: por amigos, pela riqueza ou pelo poder político» ( Ét. Nic., I, 9, 1099 a 31 - 1099 b 2).
A FILOSOFIA HUMANA Se nós nos detemos nessa pesquisa da natureza da felicidade é, por certo, em razão de sua importância capital na filosofia humana; mas se deve também ao fato de que ela nos revela, de uma maneira relevante, o gênio filosófico de Aristóteles em matéria humana. Sendo complexa a natureza humana, a sua perfeição é também, necessariamente, complexa; nesta própria complexidade, porém, devemos redescobrir de uma certa forma a unidade substancial da natureza humana. Esta unidade não pode ser senão uma unidade de perfeição, que mantém, no seio de nossas operações múltiplas e diversas, uma certa ordem. Cada uma de nossas operações guarda certamente o seu caráter específico, mas deve ser orientada para nossa operação principal, que é capaz de medi-la e finalizá-la. Todo o esforço do Filósofo nesta pesquisa filosófica da felicidade consiste em determinar com exatidão a natureza desta operação principal, deste cume, que é, na ordem da operação, o reflexo vivo da unidade substancial da natureza humana, permitindo hierarquizar toda a multiplicidade de nossas atividades e avaliar-lhes a autenticidade humana. A natureza humana, com efeito, embora implique riquezas tão diversas como o corpo, a alma e a inteligência, elemento divino puramente imaterial, possui , contudo, em sua estrutura essencial, uma verdadeira unidade. Com o tratado Da alma, veremos como Aristóteles tentou manter a unidade substancial no seio da diversidade. A alma e o noûs, assim como o corpo físico, integram-se na estrutura própria da natureza humana, embora de maneira diversa: a alma é o ato do corpo organizado, e nesta alma, ato do corpo, emerge o noûs, faculdade imaterial, separado do físico, capaz de vida contemplativa. Aqui, da mesma forma, apesar de implicar elementos tão diversos como as riquezas, a saúde e a atividade virtuosa, a felicidade humana guarda, contudo, uma verdadeira unidade. O Filósofo soube distinguir o princípio essencial da felicidade: a atividade perfeita segundo a inteligência, o que lhe permitiu subordinar a este princípio todas as outras perfeições humanas, ao mostrar suas diversas conexões.
2. O que é a virtude e a sua diversidade Uma vez afirmado que a felicidade é uma atividade da alma segundo a virtude perfeita, Aristóteles é conduzido a precisar o que é a virtude, seus princípios próprios e suas múltiplas realizações. Este estudo se estende do fim do primeiro livro da Ética a Nicômacos até o livro VIII, onde ele aborda o problema do amor de amizade. Não podemos aqui analisá-lo em detalhe; nós nos contentaremos em especificar sua organização interna e suas principais articulações, a fim de melhor compreender como o Filósofo distingue a vida moral da vida teorética — mantendo uma certa continuidade entre elas — e como ele chega à noção da felicidade anteriormente exposta. 1 1 «Sendo
a felicidade uma atividade da alma segundo uma virtude perfeita, é o que concerne à virtude que devemos indagar. Talvez possamos, assim, melhor contemplar o que concerne a própria felicidade» ( Ét. Nic., I, 13, 1102 a 5-7).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
Antes de estabelecer o que é a virtude, Aristóteles precisa três pontos: 1° As virtudes intelectuais e as virtudes éticas se distinguem pelos seus sujeitos respectivos: as diversas potências da alma humana, umas possuindo a razão, outras limitadas à sua participação. As virtudes intelectuais aperfeiçoam as primeiras, as virtudes morais as segundas. 1 2° À diferença de nossas potências, nossas virtudes não são inatas em nós, mas devemos adquiri-las. As virtudes intelectuais são adquiridas, na maioria dos casos, pelo ensino, as virtudes éticas, pelo exercício repetido de ações moralmente boas. 2 Assim como Aristóteles reivindica para o ensino o poder de «engendrar» na inteligência do discípulo virtudes intelectuais, da mesma forma afirma que o exercício repetido de ações moralmente boas possui uma verdadeira causalidade com relação às virtudes éticas. Embora adquiridas, estas virtudes determinam e aperfeiçoam, na realidade, o que a natureza não possuía senão imperfeitamente no início. 3 Eis um dos pontos principais que diferenciam a moral aristotélica da de Platão e da dos sofistas. Platão afirmava que as virtudes eram um dom inicial da natureza e dos deuses; para ele, a educação e o ensino não exerciam nenhuma causalidade própria. Do seu lado, os sofistas pretendiam que as virtudes só podiam ser adquiridas pela dialética.4 Para Aristóteles, a experiência condena essas duas doutrinas. 3° A ação moralmente boa, que está na origem da aquisição da virtude, distingue-se da ação má, pela sua conformidade à «razão reta».5 Com efeito, apresenta-se como que mensurada pela «reta razão». Ora, se ela é uma ação medida, não pode ser perfeita senão ao realizar-se num justo meio. O excesso ou o defeito faz-lhe perder a nobreza, sua qualidade própria de bondade moral. O antigo preceito «nada em excesso» é sempre exato. Entre a ação moralmente boa, causa da virtude, e a ação virtuosa, próprio fruto da virtude, não há diferença específica, mas um modo mais intenso. Somente a ação virtuosa é 1 «Haverá,
de um lado, o que possui a razão, principalmente e em si mesmo, e, de outro lado, algo que é como aquele que escuta o seu pai. A virtude distingue-se também conforme esta diferença. Chamamos algumas delas de «intelectuais», e outras de «éticas»: a sabedoria, o conhecimento ( sunesis), a prudência são virtudes intelectuais; a liberalidade, a temperança são virtudes éticas. Ao falar, com efeito, do ponto de vista ético, não chamamos alguém de sábio ou de inteligente, mais de doce ou moderado. Mas louvamos também o sábio segundo a sua qualidade própria ( kata tén exin), e chamamos de virtudes ( areté) aquelas que, entre as hexis, são louváveis» ( Ét. Nic., I, 13, 1103 a 2-10). 2 Lembremos este trocadilho — já em Platão ( Leis, VII, 792 e) — que Aristóteles indica no início deste estudo: "A virtude ética (étiké) provém dos usos costumeiros (ethos); daí lhe veio também o seu nome, através de uma ligeira modificação de ethos" (ibid ., II, 1, 1103 a 17-18). 3 «É evidente que nenhuma das virtudes éticas é engendrada em nós por natureza. Com efeito, nada que existe por natureza pode acostumar-se [a ser] de outra maneira: assim a pedra que por natureza se move para baixo não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a mil vezes para cima (...). Portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza é que as virtudes nascem em nós, mas a natureza nos deu a capacidade de recebê-las, e se tornam perfeitas com o costume» ( ibid ., II, 1, 1103 a 18-26). 4 "A maioria dos homens não cumprem ações virtuosas e, ao se refugiarem na discussão, pensam filosofar e que, assim, tornarão perfeitos. Assemelham-se de algum modo aos doentes que escutam o médico atentamente, mas executam prescrição alguma. Da mesma forma que estes não terão a saúde do corpo com este modo de tratamento, da mesma forma esses não terão a da alma, filosofando desta forma" ( ibid ., II, 3, 1105 b 12-17). 5 Cf. acima, p. 32, nota 1.
A FILOSOFIA HUMANA deleitável, pois é conatural ao homem virtuoso e facilmente realizável por ele. O virtuoso cumpre com alegria e prazer ações moralmente boas; para os não-virtuosos, essas mesmas ações têm um aspecto de dificuldade que empede todo prazer. Por causa disso é justo precisar que o ato virtuoso é o que concerne o prazer ou o seu oposto, a pena. Isto é conforme, de resto, ao significado primeiro da virtude: esta permite à potência exercer-se em toda a sua intensidade, atingir seu máximo. Por causa disso seu exercício considerará sempre o que a potência que ela enobrece pode atingir de maneira última. Ora, o apetite, no seu exercício, atinge mais imediatamente o prazer e a pena, porque são as paixões mais necessárias à vida como também as mais difíceis de ordenar para a finalidade. Eis por que a virtude deve moderar em primeiro lugar estas paixões e é para com elas que ela se manifestará mais explicitamente. Visto que a virtude é um princípio de atividades morais, o Filósofo, para defini-la, deve em primeiro lugar distingui-la dos outros princípios de atividades humanas. 1 Esses princípios serão analisados de maneira muito mais precisa na filosofia do vivente, na qual Aristóteles distingue os diversos princípios de operações vitais: o concupiscível, o irascível e o voluntário com suas qualidades adquiridas (suas hexeis). A virtude não pode reduzir-se nem às potências (concupiscível e irascível), nem ao voluntário puro, porque tais princípios considerados em si não nos tornam nem bons nem maus, nem dignos de louvor ou de censura. Estes princípios não dependem de nós: são bens naturais ou atividades que se exercem naturalmente. Pelo contrário, por natureza a virtude nos torna bons. Ela é digna de louvor: depende do nosso labor. Portanto, a virtude não pode ser senão uma «disposição estável» adquirida, um habitus adquirido. Eis fixado o primeiro elemento que permite definir a virtude. Mas é preciso ainda especificar de que disposição estável se trata. O Filósofo o faz a partir do duplo papel ordinariamente reconhecido à virtude. Toda virtude, com efeito, parece aperfeiçoar o sujeito que ela qualifica e propiciar-lhe uma atividade perfeita. A virtude do olho, por exemplo, torna o olho bom e sua ação perfeita. A virtude humana, portanto, é igualmente uma disposição que torna boa a alma humana como também sua ação. 2 Mas em que consiste exatamente esta bondade da ação virtuosa? Toda ação humana boa é um ação mensurada, porque ela aparece como uma ação intermediária entre um excesso e um defeito. Geralmente estima-se perfeita uma obra em que tudo é tão bem equilibrado que não se pode modificar nada. Este equilíbrio, notemo-lo, é como que um auge ao qual não se pode acrescentar nada. Este cume ou, se se quiser, o estado de equilíbrio intermediário, segundo os diversos aspectos que se pode considerar, é, portanto, a obra própria da virtude, o para o qual ela sempre tende. Quando se trata de virtudes éticas, o estado intermediário, o meio, deve ser considerado praticamente 1 Ét. Nic., II, 4, 1105 b 19 - 1106 a 13. 2 Notemos bem que a expressão areté antes
de Aristóteles não tinha em primeiro lugar um sentido moral. Significava uma habilidade, uma excelência, uma qualidade natural do corpo assim como da alma.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES como o fato para o homem virtuoso de sentir os prazeres e as penas da maneira devida, em todas as circunstâncias possíveis. Tal homem é digno de louvor porque vive segundo a medida reta. Assim, compreende-se como a virtude é sempre coisa difícil de adquirir; já que este meio é um alvo determinado e preciso, um cume, ele é difícil de atingir e não se pode possui-lo perfeitamente senão depois de um longo exercício. Graças a esta análise podemos dizer que a virtude é «uma disposição estável ( exis) que nos permite escolher, disposição esta consistente num meio (o meio termo relativo a nós), meio definido pela razão como o definiria o próprio prudente», 1 visto que o prudente é a medida vivente da virtude. 2 Portanto, reencontra-se na natureza da virtude todas as propriedades constatadas na análise da atividade humana que atinge seu fim. A própria virtude é um «meio» de caráter voluntário; ela é o que nos permite escolher razoavelmente o que deve ser feito. Este meio se realiza a respeito das paixões e das operações deleitáveis ou penosas. Nestas, ele imprime a ordem da razão, sua medida e sua perfeição. Realizando-se, de fato, nas paixões, este «meio» será variável segundo as inclinações e as tendências diversas dos indivíduos. Para alguns, estará mais perto do excesso, para outros do defeito. Portanto, ele é essencialmente relativo ao sujeito: não é um meio abstrato, que se poderia determinar independentemente daquele que age. Por causa disso, nota sabiamente o Filósofo, temos que nos dar conta dos pendores que nos são mais naturais, e exercitar-nos a agir no sentido inverso para adquirir o justo meio. 3
3. O voluntário e o involuntário A definição da virtude como uma escolha livre encaminha Aristóteles a estudar sucessivamente o voluntário e o involuntário, a escolha, a deliberação, a intenção. Aristóteles começa por mostrar que, para estudar o que é a virtude, é necessário distinguir o voluntário e o involuntário, pois a virtude está ligada a paixões e ações. Ora, estas podem ser voluntárias — e pelo próprio fato elas são louváveis ou censuráveis — , ou involuntárias, e, então, suscitam a indulgência ou mesmo a piedade. Esta distinção do voluntário e do involuntário é igualmente «útil ao legislador para estabelecer recompensas e castigos». 4 «Um ato é involuntário quando praticado sob compulsão ou por ignorância». 5 E precisamente é feito sob compulsão «o que tem seu princípio fora de nós», isto é, o que tem um princípio de ação no qual não intervém nenhuma cooperação do agente ou do paciente. «Por exemplo, 1 Ibid . II, 6, 1106 b 36 - 1107 a 1 (tradução inspirada na de Mário da Gama Kury). 2 Desta forma, Aristóteles distingue bem a ética pessoal da política: é o prudente que é medida da virtude, e não
a lei; esta não pode medir a virtude a não ser mediatamente. 3 Cf. ibid ., II, 9, 1109 b 1-7. 4 Ibid ., III, 1, 1109 b 30 seg. 5 Ibid ., 1109 b 35 - 1110 a 1.
A FILOSOFIA HUMANA se uma pessoa é arrastada em tal ou qual lugar pelo vento ou por homens que a têm em seu poder».1 «O ato feito por ignorância sempre é não-voluntário; é involuntário aquele que provoca aflição ou arrependimento ». 2 Com efeito, para agir voluntariamente é preciso saber o que se faz; e para agir involuntariamente é preciso sentir pesar. Portanto, é necessário reconhecer que os atos feitos por ignorância são de duas espécies: aqueles que são involuntários, se aquele que age sente arrependimento, e aqueles que são não-voluntários. Em seguida, Aristóteles distingue agir por ignorância e agir na ignorância; por exemplo, o homem bêbado ou o homem irado age não por ignorância mas pela cólera ou pela embriaguez — ele está no estado de ignorância. Mas não se pode dizer que ele age involuntariamente, «pois ele está na ignorância daquilo que lhe é vantajoso: a ignorância na escolha deliberada não é causa do involuntário mas da perversidade (...); [o que torna o ato involuntário] é a ignorância das particularidades, isto é, das circunstâncias e daquilo que a ação considera. Nesses casos é que se exerce a piedade e a indulgência». 3 Aristóteles especifica, então, a natureza e o número das particularidades a respeito das quais a ignorância torna o ato involuntário. Elas concernem: àquele que age, ao ato, ao que o ato considera, ou até àquilo pelo qual o ato é feito (o instrumento), à intenção perseguida, à maneira ( pôs) como este ato realiza-se.4 Assim, vemos toda a complexidade do ato voluntário que olha o bem como fim e que, na sua execução, implica uma grande diversidade de elementos. Ao contrário, o ato voluntário é aquele «cujo princípio está presente naquele que age conhecendo as circunstâncias peculiares no meio das quais sua ação [se realiza]». 5 Mas Aristóteles reconhece que certas ações humanas aparecem como voluntárias e involuntárias quando realizadas por temor de males maiores: É o que ocorre no caso do lançamento ao mar da carga de uma nau durante uma tempestade: de forma absoluta ninguém despeja assim os seus bens, mas para a própria salvação e a de seus companheiros qualquer pessoa sensata [age sempre assim]. Tais ações, então, são mistas, mas se assemelham mais às voluntárias, pois são escolhidas livremente no momento de serem praticadas; e o fim da ação é segundo o momento oportuno.6
Aristóteles frisa, então, que «se deve referir ao momento em que a ação se cumpre» para qualificá-la de voluntária ou de involuntária. Pois, precisamente, o homem age voluntariamente se «o princípio que move as partes instrumentais do seu corpo reside nele». 1 Ibid ., 1110 a 1-4. 2 Ibid ., 2, 1110 b 18-19. 3 Ibid ., 2, 1110 b 30 - 1111 a 2. 4 Cf. Ét. Nic., III, 2, 1111 a 3-6. 5 Ibid ., 3, 1111 a 22-24. 6 Ibid ., 1, 1110 a 8-14.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Portanto, é necessário precisar o que é o voluntário especificado por tal bem — é a vontade aplôs — , e o voluntário que olha somente o exercício — o fato de realizar ou não realizar este ato: então, «depende do [homem] agir ou não agir (...); tais ações, logo, são voluntárias, mas no absoluto seriam provavelmente involuntárias». 1 Tais ações podem ser reconhecidas como boas (poder-se-á louvá-las); por vezes suscitam a indulgência; outras vezes, elas são inaceitáveis. Tudo depende do valor daquilo que é sacrificado em comparação com o que se quer salvar; estimar isto pertence à prudência. A escolha ( proaïresis) Depois de ter estudado o voluntário e o involuntário, Aristóteles considera a escolha; com efeito, ela permanece muito ligado à virtude e «permite mais do que as ações discernir o «caráter» (éthé) [de alguém]».2 É manifesto que a escolha é voluntária. Mas todo ato voluntário não é uma escolha — é preciso, portanto, não confundi-los — , já que as crianças e os animais participam do voluntário: o princípio das suas atividades está neles, mas são incapazes de realizar escolhas. Em seguida, Aristóteles critica os que pretendem que a escolha é um apetite, um impulso, um desejo ou uma forma da opinião. 3 A escolha não é um apetite ou uma impulsão, pois precisamente implica uma atividade do noûs. Somente o homem senhor de si age por escolha. Pode haver uma oposição entre uma escolha e um apetite. Enfim, há uma relação necessária entre o apetite e o prazer ou a pena, que não existe entre a escolha e o prazer ou a pena. Quanto ao desejo (boulésis), ele não é a escolha, pois não há escolha de coisas impossíveis, ao passo que se pode haver um desejo de coisas impossíveis. Aristóteles dá como exemplo a imortalidade. 4 O desejo pode ter como objeto coisas que fogem do nosso alcance, para além do nosso poder; a escolha não tem como objeto senão o que está em nosso poder, «aquilo que pensamos ter condições de realizar por nós mesmos». 5 Pode-se ainda precisar que «o desejo pertence mais ao fim; a escolha, mais ao que está relativo ao fim». 6 Desejamos estar em boa saúde; escolhemos os meios para isto. Quanto à diferença entre a escolha e a opinião, é fácil precisá-la: a opinião pode olhar tanto as realidades contingentes dependentes de nós quanto as realidades eternas. Ela é verdadeira ou falsa. A escolha divide-se em boa e má e não olha senão o que depende de nós. 7 nós.7 «Pelo fato de escolhermos o que é bom e o que é mau, somos [homens] de tal qualidade,
1 Cf. ibid ., 1110 a 14 seg. 2 Ibid ., 4, 1111 b 5-6. 3 Ibid ., 1111 b 10 seg. 4 Cf. ibid ., 1111 b 23. 5 Ibid ., 1111 b 25-26. 6 Ibid ., 1111 b 26-27. 7 Cf. ibid ., 1111 b 31 seg.
A FILOSOFIA HUMANA qualidade, e não pelas nossas opiniões». 1 A escolha é mais louvada porque se exerce sobre uma realidade conforme o dever do que em razão de sua própria retidão a respeito desta realidade:2 trata-se da verdade da escolha, à diferença da verdade da opinião. A escolha implica ainda uma certeza: «Escolhemos acima de tudo as coisas que sabemos ser boas», 3 ao passo que a opinião permanece sempre incerta; temos opiniões sobre o que não sabemos senão imperfeitamente. Após ter mostrado que a escolha não pode identificar-se com o desejo e a opinião, Aristóteles precisa que é um ato voluntário, mas de um tipo particular, pois ele é acompanhado de razão discursiva e tem como objeto aquilo que foi preferido. Em toda escolha, há uma deliberação e uma prioridade. 4 A deliberação A primeira questão que Aristóteles se coloca é sobre a extensão desse ato de deliberação: «Delibera-se sobre todas as coisas?» 5 Antes de responder, Aristóteles precisa que é necessário necessário buscar «sobre o que pode deliberar um homem são de espírito, e não um louco ou um tolo».6 Não existe deliberação sobre as realidades eternas, tampouco sobre as realidades que estão em movimento mas ocorrem sempre da mesma forma, nem ao contrário sobre aquelas que ocorrem por sorte. Nunca se delibera sobre o que não está em nosso poder. «Deliberamos sobre o que depende de nós e sobre o que pode ser cumprido». 7 Deliberamos «sobre o que depende de nós e que não ocorre sempre da mesma forma». 8 E Aristóteles sublinha que «deliberamos mais sobre a navegação que sobre a ginástica, já que a navegação foi estudada de maneira menos aprofundada...». 9 Precisamente o domínio das ciências foge à deliberação mais que o das artes; estas permanecem numa incerteza maior. E poderíamos acrescentar que é no domínio de nossas operações morais que a deliberação é maior. Este âmbito da deliberação nos permite pedir conselho a outras pessoas: «Nós procuramos a assistência de outras pessoas para deliberar sobre questões importantes, desconfiando de nós mesmos por causa da nossa própria insuficiência em discernir [o que é preciso fazer]».10 1 Ibid ., 1112 a 1-3. 2 Cf. ibid ., 1112 a 5-6. 3 Ibid ., 1112 a 7. 4 Cf. ibid ., 1112 a 13-17. 5 Ibid ., 5, 1112 a 18. 6 Ibid ., 5, 1112 a 19-21. 7 Ibid ., 1112 a 30-31. 8 Ibid ., 1112 b 3. 9 Ibid ., 1112 b 5-6. 10 Ibid ., 1112 b 10-11.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Aristóteles especifica, em seguida, que deliberamos não sobre os próprios fins mas sobre o que é relativo aos fins. Um médico não se pergunta se deve sarar seu doente, nem um orador se deve persuadir, nem um político se deve estabelecer boas leis (...). Mas, uma vez fixado o fim, examina-se como e por quais meios ele será [atingido]. E se aparecer que ele pode ser atingido por diversos meios, busca-se qual permitirá a realização mais fácil e melhor.1
É muito nítido. Notemos que Aristóteles usa exemplos da atividade artística e política que são mais manifestos para nós do que a atividade propriamente ética. Após a escolha do meio, que segue a deliberação, é necessário precisar como, por este meio, o fim será atingido; e este meio, por sua vez, por que meio ele pode também ser atingido, até que se chegue à causa primeira, que na ordem da descoberta é a última.2
É o que Aristóteles precisa quando diz que o que é procurado é o instrumento e sua utilização.3 Aristóteles sublinha o que caracteriza esta deliberação: trata-se de uma busca que se faz «como na construção de uma figura», 4 isto é, de uma obra que fazemos. O que vem por último na análise é primeiro na ordem da geração, da construção. Esta procura se faz entre os possíveis. Mas há um termo na deliberação, não se pode deliberar infinitamente: «Cada um para de buscar como agirá logo que ele traz de volta o princípio de seu ato a si mesmo e à parte diretriz de si mesmo (to égoumenon)», o seu noûs prático que escolhe. Isto é muito manifesto em política: toda deliberação precede a escolha, que é o próprio princípio da ação ( praxis). Neste sentido, pode se dizer que «a escolha é um desejo deliberativo das coisas que dependem de nós». 5 Vemos como, nesta análise de filosofia prática, a deliberação e a escolha estão próximas e, no entanto, distinguem-se, como a busca se distingue daquilo em vista de que se realiza a busca. A deliberação é em vista da escolha. Na deliberação o aspecto intelectual é dominante; na escolha o aspecto voluntário é principal. É por isso que Aristóteles diz que a escolha é um «desejo deliberativo» a respeito do que podemos realizar É, de fato, a escolha que dá a última inteligibilidade da deliberação; esta é para a escolha. 1 Ibid ., 1112 b 11-17. 2 Ibid ., 1112 b 18-20. 3 Cf. ibid ., 1112 b 29. 4 Ibid ., 1112 b 21. 5 Ibid ., 1113 a 9-10.
A FILOSOFIA HUMANA Por isso, Aristóteles termina sua análise da escolha e da deliberação afirmando: «Assim, podemos dar por descrita a escolha em suas grande linhas, e por expostos a natureza do que ela considera e o fato de que se aplica aos meios conduzindo ao fim». 1
O apetite do fim (boulésis) A grande pergunta é saber si o querer do fim visa o bem verdadeiro ou, ao contrário, o bem aparente.2 Com efeito, é uma pergunta capital para compreender verdadeiramente o ato voluntário. Uma e outra posição implicam dificuldades. Para alguns, tudo o que o homem quer é um fim bom; para outros, não há mais bem verdadeiro, tudo é aparente. Aristóteles precisa, distinguindo: «No absoluto e segundo a verdade, a boulésis, ato voluntário, considera o bem real; mas para cada um de nós é o que lhe aparece tal». 3 Portanto, para o homem honesto, o que lhe aparece é o bem verdadeiro, ao passo que, para o homem mau, é tudo o que se quiser... Para melhor compreender essa distinção tão importante, Aristóteles toma a comparação do corpo. Um organismo em bom estado acha desejável o que é verdadeiramente desejável. Para um organismo em mau estado, a situação será totalmente outra: o desejável não será o verdadeiro bem para sua saúde. E Aristóteles acrescenta: «Seria da mesma forma para as coisas amargas, doces, quentes... Precisamente o homem bom (de bem) julga tudo com retidão e tudo aparece-lhe segundo sua verdade». Aristóteles explica por que: «Para cada uma das disposições estáveis ( hexis), há coisas boas e agradáveis que lhe são adequadas». 4 E Aristóteles frisa o que distingue principalmente o homem de bem: «Ele percebe a verdade em cada uma das realidades, sendo de certa forma uma regra e uma medida para estas realidades». 5 Isto permite compreender que, para a maioria dos homens, o erro parece certamente ter por causa o prazer, que precisamente tem a aparência do bem sem sê-lo verdadeiramente; tudo o que é penoso aparece como um mal, tudo o que é agradável aparece como um bem. Apreende-se aqui toda a diferença que existe entre a ética de Aristóteles e a de Platão: é o prazer que explique o errar da maioria dos homens, e não a ignorância. Esta distinção entre o bem considerado de uma maneira absoluta e o bem para cada um de nós é capital para compreender verdadeiramente como Aristóteles considera a diferença entre a filosofia ética e a filosofia primeira — o que já frisara no livro I. 6 Com isso vemos como ele mantém um verdadeiro ato voluntário, espiritual, para o homem honesto capaz de atingir o verdadeiro bem do homem através daquilo que lhe parece como bom. Compreendemos aí a fineza do pensamento filosófico de Aristóteles! Da mesma forma que o1 Ibid ., 1113 a 12-14. 2 Cf. ibid ., III, 6, 1113 a 15-16. 3 Ibid ., 1113 a 23-24. 4 Ibid ., 1113 a 28-31. 5 Ibid ., 1113 a 32-33. 6 Ver acima p. 28-29.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES que-é é apreendido através do-que-é-movido, o que é o bem real, verdadeiro, é apreendido através do bem aparente. Pode-se facilmente permanecer no devir como no bem aparente; e pode-se ser tentado em separar o que Aristóteles distingue. Também compreendemos, pelo próprio fato, as filosofias que negam a experiência, para elaborar uma filosofia primeira doque-é apreendido intuitivamente além da experiência, e uma ética a partir do Bem-em-si, apreendido fora da experiência do homem. O que permite a Aristóteles manter o lugar da experiência e a descoberta dos princípios próprios é a sua concepção da analogia.
As ações voluntárias virtuosas e não-virtuosas Determinado que o ato voluntário olha o fim e que a deliberação e a escolha olham os meios, Aristóteles afirma que «os atos das virtudes têm como objetos os meios»; 1 assim sendo, a virtude depende de nós, porque é fruto de ações voluntárias, de escolhas que dependem de nós. Mas o que é verdadeiro da virtude, o é também do vício. Pois nos casos em que depende de nós agir, também depende de nós não agir. Quando há em nós o poder de dizer não, depende de nós dizer sim. «Se agir depende de nós, quando a ação é boa, não agir dependerá também de nós quando a ação é vergonhosa (...). Portanto, está no nosso poder sermos intrinsecamente virtuosos ou viciosos». Isto porque «o homem é princípio e gerador de suas ações, tal como ele o é de seus filhos». 2 Aristóteles acrescenta: «Em prol dessas considerações, podemos chamar o testemunho do comportamento dos indivíduos na vida privada e a prática dos próprios legisladores: castigase e obriga-se a reparação aqueles que cometem ações perversas, a menos que tenham agido sob compulsão ou por ignorância (...); e, de outra parte, honra-se aqueles que cumprem boas ações».3 Ao contrário, tudo quanto não depende de nós e tudo o que não é ação voluntária, ninguém no-lo ordena. É bem evidente que seria uma perda de tempo persuadir-nos de não sentir calor ou não ter fome. É interessante notar o quanto Aristóteles insiste sobre esse fato que os homens são responsáveis pelo estado de perfeição ou imperfeição deles, pois «atos particulares os tornam tais».4 «Ao levar uma existência relaxada, os homens são causas de se terem tornados relaxados». 5 Assim compreendemos que os vícios da alma são voluntários, como também os do corpo para alguns. Aristóteles expõe, então, uma objeção: «Todos o homens têm em vista o bem que lhes parece tal, mas não somos senhores da imaginação. Tal é cada um, tal lhe parece o fim». 6 1 Ibid ., 7, 1113 b 5-6. 2 Ibid ., 1113 b 8-19. 3 Ibid ., 1113 b 21-26. 4 Ibid ., 1114 a 7. 5 Ibid ., 1114 a 4-5. 6 Ibid ., 1114 a 31 - 1114 b 1.
A FILOSOFIA HUMANA Aristóteles responde: «Porque, num sentido, cada um é causa de suas disposições estáveis, também será, num sentido, causa da aparência; do contrário, ninguém é responsável pela má conduta, mas é por ignorância do fim que ele pratica [suas] ações», 1 pensando que elas lhe propiciarão o bem mais excelente. Portanto, que para cada um o fim não seja manifesto por natureza, mas que algo seja devido a si mesmo, ou que o fim seja natural — então, pelo fato de o homem de bem cumprir todo o resto voluntariamente, a virtude é voluntária — , o vício também não será menos voluntário, como a virtude, porque o malvado, assim como o homem de bem, é causa por si mesmo das ações, mesmo que não seja causa do fim.2
Aristóteles precisa ainda que nossas ações não são voluntárias da mesma forma que nossas disposições estáveis. Nossas ações dependem de nós absolutamente, do início ao fim quando conhecemos as circunstâncias particulares; ao contrário, nossas disposições dependem de nós no início, mas os atos singulares que se acrescentam a elas podem escapar da nossa consciência.3
Aristóteles se serve aqui da comparação da doença. A análise filosófica do voluntário mostra bem que Aristóteles deu-se conta da necessidade de pôr um princípio próprio da operação humana: a vontade. Seria difícil negálo! O Filósofo insiste em todo este estudo sobre o fato de nossos atos voluntários procederem de nós, de eles estarem no nosso poder; e ele especifica as diversas modalidades segundo as quais estes atos voluntários exercem-se em nós. É verdade que não estuda a vontade como uma potência vital espiritual, como um apetite espiritual, pois a filosofia ética olha as operações voluntárias como tais, e não a alma e suas potências. No tratado Da alma, sua preocupação principal será buscar se a alma «noética» é capaz de existir separada do corpo: o problema da imortalidade da alma permanece, para ele como para Platão, uma procura fundamental. Este problema não pode ser solucionado pela afetividade voluntária, que é aquela do homem concreto (com efeito, ela recusa toda abstração). Quanto ao ato voluntário, ele olha o fim, o bem real através do bem aparente que se identifica ao bem real quando o homem é virtuoso. Por isso, vemos bem que a vontade, princípio do ato, de fato, é uma potência espiritual, capaz de ser determinada pelo fim, pelo bem amado por ele mesmo.
1 Ibid ., 1114 b 1-5. 2 Ibid ., 1114 b 16-21. 3 Ibid ., 1114 b 31 - 1115 a 2.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
4. As virtudes éticas Antes de especificar a natureza das virtudes intelectuais e as diversas relações que as unem, Aristóteles descreve e analisa de modo muito concreto toda uma série de virtudes éticas:1 as de coragem, de temperança, de liberalidade, de magnificência, de magnanimidade, a que se opõe à ambição e à pusilanimidade, as de doçura, de veracidade, de eutrapelia, de amabilidade, de pudor, de justa indignação, enfim a de justiça. Cada uma destas virtudes é apresentada como o «justo meio», uma média entre duas paixões extremas: o excesso e o defeito. A virtude de coragem é «o justo meio com relação aos medos e às audácias». 2 E se tememos os males como o menosprezo, a pobreza, a doença, a falta de amigos, a morte, «parece que não é a respeito de todos [os males] que somos corajosos». 3 Portanto, o corajoso existe realmente a respeito de que coisas que suscitam o medo? Não é a respeito das coisas muito graves (ta megista)? Ninguém, com efeito, é mais forte a frente dos perigos [do que o homem corajoso]. Ora, aquele que suscita mais medo é a morte. Com efeito, ela é um limite ( peras), e para aquele que é morto, parece que não existe mais nada de bom ou de mal (...). No sentido principal do termo (kyrios) chamaremos, portanto, de corajoso aquele que está sem medo em presença de uma nobre morte (ton kalon thanaton) ou dos eventos iminentes que trazem consigo a morte: tais são principalmente os da guerra.4
Em seguida, Aristóteles afirma que aquele que aguarda firme e teme as coisas que deve, para um fim, da maneira que deve e quando deve e, semelhantemente, aquele que está confiante, este é corajoso. Com efeito, um homem corajoso padece e age por algo que vale a pena e da forma que a razão exige. Ora, o fim de toda atividade é aquilo que é segundo o habitus. E para o corajoso a coragem é nobre (kalon). Portanto, o fim também o é; com efeito, tudo se define pelo fim. Assim, é em vista de um fim nobre que o corajoso enfrenta o perigo e age segundo a coragem.5
1 «Retomando
[nosso estudo] a propósito de cada uma das virtudes, digamos o que elas são, a respeito de que realidades e como. Também assim o seu número se tornará manifesto» ( Ét. Nic., III, 9, 1115 a 4-5). 2 Ibid ., 9, 1115 a 6. 3 Ibid ., 1115 a 11-12. 4 Ét. Nic., 1115 a 24-35. 5 Ibid ., 10, 1115 b 17-24.
A FILOSOFIA HUMANA Assim sendo a coragem «um justo meio a respeito do que inspira a confiança e o medo, nas [circunstâncias] que foram ditas», 1 o Filósofo mostra que podemos ainda ser ditos corajosos de cinco maneiras, por motivos diversos que nem sempre são os verdadeiros motivos da virtude de força. Com efeito, há a coragem política que procede de uma qualidade excelente: o sentimento da honra e o desejo de evitar a censura. Aproxima-se disto a coragem dos soldados «forçados pelo chefe a se mostrarem corajosos», que agem por medo, para evitar o castigo. «A experiência de certos perigos particulares também é considerada como uma forma de coragem»; tal a bravura do soldado mercenário que freqüentemente não passa da aparência da coragem. Há a coragem dos que estão irados; não é uma verdadeira coragem, mas irritação. Há ainda a coragem daquele que tem plena confiança em si, pois já foi vitorioso. Ainda não passa da aparência de coragem, pois a verdadeira coragem é de «sofrer com constância o que é ou parece aterrorizante para o homem pela razão que é nobre enfrentar o perigo, e vergonhoso não fazê-lo». Enfim, « os ignorantes parecem também corajosos», não se dando conta dos perigos que enfrentam. 2 Aristóteles conclui seu estudo da coragem reafirmando que é chamado corajoso aquele que suporta com firmeza as coisas que trazem sofrimento. É por causa disso que a coragem é coisa penosa e é louvada com justiça; com efeito, é mais difícil suportar penas do que se abster dos prazeres. (...) A morte e as feridas, portanto, serão penosas ao homem corajoso, e [sofrerá] contra o seu grado; mas ele as suportará porque é nobre agir assim ou vergonhoso de não agir assim. E quanto mais a excelência que ele possui é completa e sua felicidade grande, tanto mais também se afligirá a propósito da morte: com efeito, é para tal homem que viver tem mais preço, é ele que a morte despojará dos maiores bens, e ele sabe disto; portanto, aflige-se por isso. Mas ele não é menos corajoso, talvez o seja ainda mais, porque prefere o que é nobre no combate a tudo isto.3
A virtude de temperança ( sophrosyné) é um justo meio relativamente aos prazeres, entre a intemperança que é um excesso a respeito do prazer, e a insensibilidade que é a falta. Aristóteles precisa que os prazeres moderados pela temperança não são quaisquer prazeres, mas os do corpo e, entre esses, é necessário especificar os do tato e do paladar (e não os dos outros sentidos externos): A temperança e o desregulamento não têm a ver senão com estes prazeres de que os outros animais participam também e que, por conseguinte, aparecem vis e bestiais; são os do tato e do paladar. E mesmo não parecem tirar nada do paladar senão um 1 Ibid ., 11, 1116 a 10-11. 2 Ver ibid ., 11, 1116 a 16 - 1117 a 28. 3 Ibid ., 12, 1117 a 33 - 1117 b 15.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES uso medíocre ou nulo. (...) As pessoas desreguladas não buscam senão o prazer que nasce todo inteiro através do tato, no beber e no comer, assim também como no que se chama os prazeres «afrodisíacos». É por causa disso, ainda, que um glutão fazia o voto que sua garganta se tornasse mais longa que o pescoço de uma garça, porque o prazer vinha do tato. Assim, o desregulamento é segundo o mais comum dos sensos. E não parece, a título tão justo, ser repreensível, senão porque surge em nós não enquanto homens mas enquanto animais: regozijar-se de tais coisas e amá-las principalmente é bestial.1
Pouquíssimas pessoas são insensíveis aos prazeres carnais análogos aos que os animais sentem. Uma tal insensibilidade, nota o Filósofo, não é humana, 2 não é normal. Por causa disso é tão rara. Ao passo que comportar-se como a multidão na maioria das vezes, não será comportar-se de maneira intemperante? Isto é censurável e até mais do que ser covarde, pois o prazer é mais voluntário que a dor. A covardia provém do medo da dor, a intemperança de um desejo excessivo de prazer. Essas duas virtudes de coragem e de temperança moderam o apetite sensível e enobrecem-no, permitindo-lhe exercer-se segundo as exigências da reta razão. 3 A coragem aperfeiçoa o irascível; a temperança, o concupiscível. Quanto à liberalidade,4 ela é um justo meio no uso dos bens. Ela impede a prodigalidade que é o excesso do dom, e a falta de liberalidade — em realidade a avareza — que é a falta de dom. O uso dos bens não consiste somente em dá-los, mas também em recebê-los. A liberalidade permite manter um justo meio no ato de receber. «Portanto, se a liberalidade é um justo meio no dom e na aquisição dos bens, o homem liberal, ao mesmo tempo, dará e gastará para as coisas que deve, e na medida que deve, semelhantemente nas pequenas e nas grandes coisas, e tudo isto com prazer; e ele tomará onde deve e na medida em que deve». 5 A magnificência6 é como a virtude anexa à liberalidade; ela a «acompanha». Ela modera as despesas das grandes riquezas. O magnificente é aquele que gasta muito generosamente nas grandes ocasiões. «O homem magnificente, portanto, é liberal, mas o liberal não é no entanto magnificente».7 Relativamente a esta virtude, a falta é a mesquinhez, o excesso é o mau-gosto, a vulgaridade.
1 Ibid ., 13, 1118 a 23 - 1118 b 4. 2 Ibid ., 14, 1119 a 5-7. 3 Cf. ibid ., 13, 1117 b 23-24: a temperança
alma] que são sem a razão ( alogôn)». 4 Ét. Nic., IV, 1-3, 1119 b 22 - 1122 a 17. 5 Ibid., 2, 1120 b 27-31. 6 Ibid ., 4-6, 1122 a 18 - 1123 a 33. 7 Ibid ., 4, 1122 a 28-29.
e a coragem «parecem ser, com efeito, as virtudes das partes [da
A FILOSOFIA HUMANA A virtude das grande coisas é a magnanimidade. «O magnânimo é aquele que se julga a si mesmo digno de grandes coisas, e que é digno delas; pois aquele que, sem ser digno, faz o mesmo, é tolo, e entre os que são segundo a virtude não há nem o tolo nem o insensato». 1 «Aquele que se diminui em relação àquilo de que é digno é um pusilânime, seja ele digno de grandes coisas, de coisas médias ou até de pequenas coisas, ao estimar-se ainda a si mesmo abaixo delas».2 É sobretudo a respeito das honras, que são os maiores bens exteriores, que a magnanimidade deve realizar o justo meio. O magnânimo julga a seu verdadeiro valor as honras que lhe são atribuídas. Não é escravo nem as teme. A descrição que Aristóteles dá do magnânimo é um dos muito lindos capítulos da Ética a Nicômacos; é o que faz sentir melhor a nobreza e a beleza da sua ética, seu aspecto aristocrático. Citemos algumas passagens: Porque é digno das maiores coisas, o magnânimo não pode ser senão o melhor (aristos). Com efeito, o homem melhor é sempre digno do que é maior, e aquele que é o melhor (aristos) das coisas melhores. Por conseguinte, aquele que é verdadeiramente magnânimo necessariamente deve ser bom. E estimaremos que pertence ao magnânimo o que é grande em cada uma das virtudes (...). A magnanimidade parece ser, portanto, como a glória das virtudes (kosmos tôn aretôn), pois ela as faz maiores, e ela não nasce sem elas. Por causa disto é difícil ser magnânimo de verdade; não se é sem beleza e bondade (kalokagathia).3
Aristóteles nota que o magnânimo não enfrenta os perigos que não valem a pena e não é amigo do perigo, pois ele não estima a não ser poucas coisas. Mas ele se expõe a grandes perigos e, quando está assim em perigo, não poupa sua vida, porque ele não é digno de viver a todo custo. Tal homem fazendo o bem é desonrado de receber benefícios: com efeito, aquilo pertence ao superior, isto ao inferior. (..) Também é do magnânimo nada pedir a ninguém, ou de fazê-lo com dificuldade, mas de prestar serviço apressadamente. (...) É necessário para ele odiar e amar abertamente — o fato de dissimular, com efeito, é do homem medroso — , ter preocupação mais pela verdade que pela opinião, falar e agir às claras (...). É-lhe impossível viver relativo a um outro — a menos que se trate de um amigo — pois é o próprio do escravo. (...) Não tem nenhuma propensão à admiração, pois nada é grande a seus olhos... 4
1 Ibid ., 7, 1123 b 1-4. 2 Ibid ., 1123 b 9-11. 3 Ibid ., 1123 b 27 - 1124 a 4. 4 Ibid ., IV, 8, 1124 b 6 - 1125 a 15.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Próxima da magnanimidade, e mensurando nosso apetite de honra, há uma virtude que não tem nome especial: Aristóteles não a nomeia e ela poderia chamar-se o respeito de si mesmo. Situa-se entre a ambição e o desdém. 1 As diversas virtudes, liberalidade, magnificência, magnanimidade parecem bem afetar o apetite racional. Aristóteles não o sublinha, mas isto se impõe, pois estas virtudes parecem mais espirituais que as precedentes e moderam, de certo modo, nossas relações com os demais. Mas por que Aristóteles, após ter estudado as duas virtudes principais do apetite sensível, trata destas virtudes antes da justiça? Parece, com efeito, que seria mais lógico tratar primeiro das três virtudes cardinais: força, temperança, justiça, antes de precisar suas virtudes anexas. Se Aristóteles não segue esta ordem lógica, parece que seja para permanecer fiel a seu método de filosofia humana que quer ficar muito perto dos fatos. A justiça é evidentemente a virtude mais espiritual, mais próxima da razão entre as virtudes do apetite. É por causa disso que Aristóteles não fala dela senão em último lugar, imediatamente antes de tratar das virtudes intelectuais. Outras virtudes, por exemplo a liberalidade, a magnificência, a magnanimidade podem ser compreendidas também no prolongamento das virtudes que moderam nossas concupiscências, nossos desejos de prazer e nosso irascível. A prodigalidade não provém com freqüência dum prazer muito grande em dar, ao passo que a avareza provém de um medo de faltar o necessário? A vaidade provém de um prazer muito grande em ser admirado, em ser louvado, enquanto que a pusilanimidade é um medo para consigo mesmo. As virtudes podem ser consideradas como virtudes de moderação de nossos prazeres e de nossas covardias, portanto, como espécies de temperança e de força. A virtude de doçura, que é um justo meio entre os sentimentos de irritação, é evidentemente também próxima da força, embora não seja sem vínculo com a justiça e a temperança. «O homem doce não é inclinado a vingar-se, mas antes a perdoar». 2 Quanto às virtudes de afabilidade, veracidade e eutrapelia, elas colocam um justo meio nas relações familiares, na conversa, nos negócios, nos jogos, na vida em comum: os extremos por excesso são a obsequiosidade, a jactância, a bufonaria, e os por defeito são o fato de ser mal-humorado, a falsa modéstia, a rudeza. 3 Estas virtudes menos importante são muito conexas à justiça e à amizade. Tornam uma vida comum possível; logo, o Filósofo as estuda com muito cuidado e fineza. Podemos apreciar o gosto e o tato de Aristóteles, o senso muito profundo que tem do autêntico. Não se deixa levar pelas aparências e sabe desmascarálas. Notemos, por exemplo, este juízo: «Como o gosto da piada é muito comum, que a maioria deleita-se mais do que deve com brincadeiras e gracejos, acontece que se faça aos
1 Cf. ibid ., 10, 1125 b 1-25. 2 Ibid ., 11, 1126 a 2-3. 3 Ver Ét. Nic., IV, 12-14.
A FILOSOFIA HUMANA bufões uma reputação de gente de espírito (eutrapeloi) porque eles agradam. Mas há uma diferença, e não pequena...». 1 O pudor é o justo meio entre a timidez e a impudência, a justa indignação modera a inveja e a maldade. Por fim, todo o livro V é dedicado ao estudo da justiça. Primeiramente, Aristóteles opõe justiça e injustiça: «Quanto à justiça e à injustiça, é preciso examinar a respeito de que ações elas se encontram de fato, que tipo de justo meio é a justiça, e de que [extremos] o justo é um meio».2 Com efeito, aqui não estamos mais no domínio dos apetites sensíveis, nos quais os dois contrários aparecem imediatamente. O Filósofo começa por dar uma definição aproximativa, «tópica», da justiça: «Observamos que todos querem dizer por justiça esta espécie de disposição estável ( hexis) pela qual são capazes de praticar as ações justas, pela qual agem justamente e querem as coisas justas. Falam da mesma forma a respeito da injustiça, pela qual agem injustamente e querem as coisas injustas. Portanto, ponhamos também primeiro isto, a título de esboço». 3 Em seguida, ao precisar as diversas maneiras como um homem é injusto, Aristóteles especifica a natureza do justo e da justiça: Compreendamos, portanto, em quantos sentidos fala-se do homem injusto: parece que o homem injusto é aquele que [age] contra a lei, e também aquele que quer possuir mais do que se deve e falta à igualdade; conseqüentemente, é evidente que o homem justo será aquele que se conforma à lei e aquele que respeita a igualdade. Assim, o justo será o legal e o igual; o injusto, o que vai contra a lei e o que é desigual.4
Aristóteles considera depois a justiça legal: Esta justiça é uma virtude perfeita (teleia), não pura e simplesmente (aplôs), mas em relação a outrem. É por causa disto que freqüentemente a mais excelente das virtudes parece ser a justiça; e «nem a estrela d'alva nem a estrela da noite» são tão admiráveis. Dizemos também com o ditado: «Na justiça está em suma toda virtude». Ela é a virtude perfeita ao ponto mais alto (malista), porque é o uso da virtude perfeita. E ela é perfeita porque aquele que a possui é capaz de usá-la também para outrem e não somente para si mesmo (...). Esta justiça, portanto, não é uma parte da virtude, mas é a virtude toda inteira, e seu contrário, a injustiça, não é uma parte do vício, mas o vício todo inteiro. Mas o que distingue a virtude desta justiça? É 1 Ibid ., 14, 1128 a 12-16. 2 Ét. Nic., V, 1, 1129 a 3-4. Ver também 3 Ibid ., 1129 a 6-11. 4 Ibid ., 2, 1129 a 32 - 1129 b 1.
ibid ., 1129 a 12 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES evidente a partir do que dissemos: com efeito, elas são a mesma, mas o ser não é o mesmo.1 Enquanto relativa a outrem, ela é justiça; enquanto tal disposição estável pura e simplesmente, ela é virtude (areté).2
Mas é preciso distinguir ao lado desta justiça legal outras formas de justiça particulares: a justiça distributiva, que consiste na repartição das honras e das riquezas ou de todas as outras vantagens que podem ser comunicadas aos membros da cidade, e a justiça relativa aos contratos: Visto que o desigual e o que vai contra a lei não são idênticos, mas distinguem-se como a parte a respeito do todo (com efeito, o desigual é todo inteiro contrário à lei, mas o que vai contra a lei não é inteiramente desigual), os diversos tipos de injusto e de injustiça não são idênticos, mas diferenciam-se uns dos outros, uns como a parte, outros como o todo. Esta injustiça é uma parte da injustiça total, e semelhantemente esta justiça com relação à justiça. Devemos, portanto, tratar da justiça particular e da injustiça particular, e do justo e do injusto tomados neste mesmo sentido.3
Portanto, estas justiças particulares olham a igualdade; neste sentido, o justo é o igual. Mas, evidentemente, a justiça distributiva olha uma igualdade proporcional, uma igualdade de relação, ao passo que a justiça relativa aos contratos olha a igualdade segundo a «proporção aritmética», pois ela não considera mais a dignidade especial das pessoas que se comprometem, mas o valor objetivo das realidades trocadas. Terminando sua análise das diversas formas de justiça e de injustiça, Aristóteles precisa o que é o «eqüitativo», mostrando a diferença que o separa do justo. 4 Aquele é superior a este, como um além da lei, uma correção da lei para tal caso particular. Também mostra como, de uma maneira metafórica, pode-se falar da justiça ou da injustiça para consigo mesmo. 5 Não podemos insistir mais sobre este estudo filosófico da justiça, mas importa captar-lhe bem o interesse. Enquanto justiça legal, a justiça é uma virtude moral que une a ética à política. Isto é normal uma vez que a justiça é relativa ao outro e que ela respeita e favorece o seu direito. A justiça, ao retificar nossas diversas relações comunitárias, permite-lhes ser ordenadas harmoniosamente, ser perfeitas, respeitando os direitos de cada um. Portanto, ela estabelece a perfeição da ordem ética na comunidade, na cidade. Por isso compreendemos que a ordem ética perfeita requer uma dimensão política.
1 O “ser da justiça” significa a justiça como tal: 2 Ibid ., 3, 1129 b 25 - 1130 a 13. 3 Ibid ., 5, 1130 b 11-18. 4 Ibid ., 14, 1137 a 31 - 1138 a 3. 5 Ibid ., 15, 1138 a 4 - 1138 b 14.
seu significado é diferente do da virtude (N. do T.).
A FILOSOFIA HUMANA
5. As virtudes intelectuais 1 A natureza, a diversidade e as relações das virtudes intelectuais é um dos problemas mais importantes e mais delicados de toda a ética aristotélica. Tentemos precisar pelo menos as linhas dominantes. É necessário primeiro compreender bem o que lembramos: 2 retificando nossas paixões do concupiscível e do irascível, assim como nossos desejos voluntários, as virtudes éticas não podem bastar a si mesmas; reclamam uma virtude de prudência que, para o Filósofo, faz parte das virtudes intelectuais, sendo ao mesmo tempo uma virtude ética propriamente dita. Em outras palavras, a ordem ética não pode existir senão implicando formal e essencialmente a inteligência prática. O voluntário, com efeito, implica formal e essencialmente o conhecimento prático, e toda a atividade ética é voluntária. A retificação de nossa afetividade sensível e espiritual pressupõe uma retificação de nosso juízo prático. Mas o juízo prático pressupõe nossos desejos: 3 ele não pode abstrair-se deles, como o conhecimento especulativo. Os desejos lhe tornam presentes, em exercício, nossos diversos bens sensíveis e espirituais. A virtude de prudência permite a essa retificação do juízo prático realizar-se com um certa firmeza e um certo deleite. Precisemos ainda que o «justo meio», objeto próprio da virtude moral, é o fruto dum juízo prático retificado. Este «justo meio» não pode competir unicamente ao desejo, pois ele implica uma certa ordem, obra própria da inteligência. Mas ele pressupõe o desejo, pois é o «justo meio» retificando o próprio desejo, ordenando-o, dirigindo-o segundo as exigências próprias da razão. Para que este juízo prático retificado seja perfeito, ele deve competir a uma «disposição estável» afetando o intelecto prático segundo a ordem do agir, da atividade ética, permitindo-lhe exercer-se de maneira perfeita. Eis, de fato, a virtude de prudência. Portanto, essa virtude tem de muito particular o fato de fazer essencialmente parte da ordem ética (ordena e mede nossos desejos) e ser igualmente uma virtude propriamente intelectual (aperfeiçoa a parte da alma que possui propriamente a razão). A virtude de prudência não é a única virtude intelectual; logo, é necessário precisar a relação que existe entre essa virtude e as outras. É a partir das orientações diversas da inteligência e das realidades que elas consideram que Aristóteles aborda o problema e tenta resolvê-lo. Segundo uma das orientações da inteligência, «consideramos as realidades cujos princípios não podem ser de outra forma e, segundo uma outra, consideramos as realidades contingentes». 4 Estas têm uma outra inteligibilidade que as realidades necessárias; portanto, 1 Ét. Nic., livro VI. 2 Ver acima, p. 35. 3 A palavra "desejo"
traduz o termo grego orexis que designa a ação de tender para, de aspirar a um bem (natural, sensível ou espiritual). São Tomás o traduziu pelo termo appetitus, e designa a vontade como um appetitus spiritualis. 4 Ét. Nic., VI, 2, 1139 a 6-7. Cf. Política, VII, 14, 1333 a 23 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES elas são conhecidas por uma outra orientação da inteligência. Logo, outra é a inteligência prática que delibera para dirigir, ordenar, realizar, outra é a inteligência especulativa que conhece por conhecer. Pelo mesmo fato, outras são as virtudes intelectuais que aperfeiçoam as diversas orientações da inteligência; 1 isto é, outras são a prudência e a arte de um lado; a inteligência, a ciência e a sabedoria de outro. As primeiras olham as realidades contingentes, são virtudes intelectuais práticas; as segundas contemplam as realidades necessárias e seus princípios, são virtudes intelectuais teoréticas. Essas duas ordens de conhecimento, conhecimento das realidades contingentes e conhecimento das realidades necessárias, conhecimento prático e conhecimento especulativo, são um fato que se impõe ao filósofo. Mas, se parece evidente que o conhecimento do necessário pode chegar a um conhecimento perfeito e, portanto, que seu princípio próprio é capaz de ser aperfeiçoado por uma virtude, ao contrário, parece difícil admitir que o conhecimento do contingente como tal possa chegar a um conhecimento perfeito, a uma verdade. E se, de fato, na ordem dos conhecimentos práticos não pudesse existir verdade, tais conhecimentos não poderiam engendrar virtudes. Por isso, estas não poderiam estar na origem de atos semelhantes. A própria natureza da virtude o requer: ela não pode existir senão quando a faculdade que afeta considera realidades capazes de especificar operações perfeitas. Quando se trata da inteligência, é necessário que ela considere realidades capazes de especificar um conhecimento perfeito, isto é, verdadeiro. Sócrates e Platão se defrontaram com essa dificuldade. Para salvaguardar a certeza das virtudes morais, especialmente a da prudência, identificaram-nas à ciência. Mas, então, por um lado, se afasta dos fatos singulares, logo, das nossas atividades próprias (essas sempre são singulares); por outro lado, não se pode mais explicar como, estando ciente, age-se mal, o que infelizmente constata-se com frequência. Aristóteles vê toda a dificuldade do problema. Quer resolvê-la, precisando o ponto exato em que as duas ordens de conhecimento especulativo e prático se diversificam, o que lhe permite apreender com mais exatidão seus princípios próprios e seus caracteres peculiares. Há na alma três [elementos] que comandam a ação e a verdade: a sensação, a inteligência, o desejo. Entre estes, a sensação não é princípio de nenhuma ação ( praxis); isso é evidente pelo fato dos animais, que têm a sensação, não tomarem parte à ação. Ora, o que a afirmação e a negação são no pensamento, a procura e a aversão o são no desejo. Desta forma, uma vez que a virtude ética é uma disposição estável capaz de escolha (hexis proairetiké), e que a escolha é um desejo capaz de 1 Compreendamos bem estas duas orientações da inteligência, que
Aristóteles distingue tão nitidamente pela sua finalidade. Poderíamos quase falar de duas "funções" da inteligência, mas o termo orientação assinala melhor que esta distinção é determinada pela finalidade. E sublinhemos que o estudo filosófico da atividade ética, das virtudes éticas e das virtudes intelectuais compete a nossa inteligência que busca a verdade e que analisa para descobrir os princípios próprios de nossa atividade ética — que permanece contingente. Em outras palavras, a filosofia prática não é a prudência; ela é o estudo filosófico da prudência.
A FILOSOFIA HUMANA deliberar, é necessário por essas razões que a inteligência (logos) seja verdadeira e que o desejo seja reto — se a escolha é boa ( spoudaia); e é preciso que uma faça conhecer e que a outra persiga as mesmas realidades. Esse pensamento e essa verdade são da ordem da ação. Quanto ao pensamento teorético, que não é da ordem da ação nem da ordem da realização ( poiétiké), o seu bom e o seu mau [estado], é o verdadeiro e o falso — com efeito, é isso a obra de tudo o que concerne à inteligência. No tocante, ao mesmo tempo, à ação e à inteligência, [o seu bom estado] consiste na verdade correspondendo ao desejo, ao desejo reto. Assim, o princípio da ação é a livre eleição (princípio como ponto de partida do movimento, mas não como aquilo em vista de que); e o da escolha é o desejo e a inteligência (logos) ordenados em vista de algo. Eis por que a escolha não existe nem sem a inteligência e o pensamento, nem sem uma disposição estável ética; com efeito, o fato de agir bem, e seu contrário, não existem na ação sem pensamento e sem um uso habitual. O próprio pensamento, no entanto, não se move, mas o pensamento dirigido para um fim é ligado à ação. (...) Portanto, pode-se dizer que a escolha livre é uma inteligência desejante ou um desejo raciocinante (dianoétiké), e um tal princípio é um homem.1
Porém, o conhecimento prático, permanecendo um verdadeiro conhecimento capaz de verdade não é mais um puro conhecimento, uma «pura assimilação intencional» da realidade conhecida; ela pressupõe em nós o amor do fim, bem como o conhecimento dele. 2 Todo conhecimento prático pressupõe um desejo orientado para um bem capaz de finalizar-nos. Esse desejo dá a nosso conhecimento prático um certo pendor fundamental que ordena e mensura todos os nossos outros conhecimentos práticos das realidades contingentes e singulares. O desejo do fim é como a alma de todo o conhecimento do contingente. O conhecimento prático das realidades contingentes e singulares permite se usar delas, fruir-se ou afastar-se delas livremente. Somente a realidade contingente pode estar em nosso poder. O fim não se pode utilizar: ama-se o fim. Embora ordenada para realidades contingentes, o conhecimento prático pode, todavia, atingir uma determinada perfeição e adquirir uma verdadeira certeza, graças ao desejo fundamental do fim. Numa palavra, ele pode pretender possuir uma certa verdade: uma verdade prática. Aristóteles descobre essa verdade prática como conformidade do juízo prático à intenção reta. Em outras palavras, a medida do nosso conhecimento prático, à diferença do conhecimento especulativo, não deve competir somente à realidade exterior, incapaz como realidade contingente de especificar um ato perfeito de conhecimento, mas essa medida deve competir à intenção reta daquele que age. Essa intenção reta é algo de estável e de fixo, porque considera um bem amado, um fim que se quer 1 Ét. Nic., VI, 2, 1139 a 17 - 1139 b 5. 2 Desde que não se vê mais essa ordem fundamental e natural para o bem que nos finaliza, não há mais verdade
prática possível: permanece-se numa pura relatividade, a do condicionamento dos nossos desejos. Não é o domínio que descreve todo o conhecimento psicológico moderno?
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES alcançar. Ela pode, portanto, servir de medida a um conhecimento prático que determina o que se deve fazer para atingir honestamente esse fim perseguido, visto todas as circunstâncias particulares e as qualidades limitadas daquele que age. Logo, graças à essa intenção, o conhecimento prático pode ser perfeito. Seu princípio próprio, portanto, é também capaz de ser aperfeiçoado por uma virtude moral: a prudência. O que acabamos de dizer do conhecimento prático ordenado para o agir moral pode compreender-se também do conhecimento prático ordenado para o fazer. Em vez da prudência, temos a arte, virtude intelectual prática que permite a realização perfeita e deleitável de uma obra fabricada. Nós o veremos mais adiante. 1 É assim que a ordem prática para Aristóteles distingue-se em praktikon e em poïétikon, o primeiro abrangendo todo o domínio reservado à moral e à política, o segundo o que compete a todas as nossas atividades artesanais e artísticas. Essa distinção da ordem prática em moral e arte desempenha um papel capital na filosofia humana de Aristóteles. Ela situa bem o valor e o lugar da arte na sua filosofia. A arte desabrocha um dos poderes autenticamente humanos. Espécie de irmã gêmea da prudência, possui em relação a esta uma verdadeira autonomia. Todas duas aperfeiçoam de fato nosso conhecimento prático, mas de maneiras bastante diversas e irredutíveis. Nunca a prudência, por mais perfeita que seja, terá condições de substituir a arte; nunca a arte, por mais perfeita que seja, poderá sobrepujar a prudência. Pois, não somente têm efeitos diferentes, como se apoiam sobre intenções formalmente diversas. O prudente quer agir virtuosamente, o artista quer dizer, manifestar, expressar, criar algo útil, algo belo.
6. A hierarquia das virtudes Se a distinção das virtudes intelectuais é nitidamente afirmada na Ética a Nicômacos, evidentemente a sua relação mútua o é muito menos, e ela permanece difícil de precisar. 2 Apontemos somente alguns aspectos. Ao querer agir virtuosamente, o prudente realiza sua intenção profunda: atingir tal fim proposto, tal bem humano amado. Se, de fato, esses bens humanos apresentam-se como diversos, uma certa hierarquia existe entre eles, nesse sentido em que para cada homem a felicidade é o bem supremo, aquele que hierarquiza os outros bens que podem ser amados. É uma hierarquia prática, que implica um princípio não menos que outros conhecimentos. Sendo assim, querendo agir virtuosamente, o prudente busca a sua felicidade de maneira mais ou menos explícita — toda a sua vida é unificada por essa única intenção, porque não pode haver para o homem senão um único fim supremo: «Parece competir ao prudente ser capaz de 1 Ver mais adiante, p. 94. 2 Ela não poderia ser precisada
evidentemente da ética.
a não ser num olhar crítico ou num olhar de sabedoria, o que não faz parte
A FILOSOFIA HUMANA deliberar de modo correto (kalôs) sobre o que é bom e vantajoso para si mesmo, não por parte (como sobre a qualidade do que está relativo à saúde ou ao vigor), mas sobre a qualidade do que está relativo ao bem-viver todo inteiro».1 O artista como artista tem, nas suas atividades, diversas intenções; essas não se hierarquizam, nem se reduzem à unidade. Se ele quer fazer algo, sua intenção consiste precisamente em querer realizar tal obra. Portanto, uma tal intenção é bem determinada a esta obra, permanece particular e sem conexão essencial com as outras intenções. É o que explica por que um artista não se engaja como homem na sua vida de artista. O prudente se engaja como homem na sua vida moral. Como que além dessas virtudes que aperfeiçoam o intelecto prático, Aristóteles coloca virtudes intelectuais que aperfeiçoam o intelecto teorético: o habitus (disposição estável) dos primeiros princípios, o habitus de ciência e o de sabedoria. O primeiro permite à inteligência aderir com penetração aos primeiros princípios e evacuar todo desvio possível. Não se pode provar esses primeiros princípios, é preciso descobri-los. Nós os ignoramos ou aderimos a eles imediatamente porque são simples e indivisíveis. Eles são o axioma de não-contradição, fundamento da filosofia primeira, e o axioma de não-regressus ao infinito para a filosofia da natureza.2 O habitus de ciência permite à inteligência aderir com evidência a certas proposições sob a luz de certos princípios. Aceitamos essas proposições como conclusões derivadas e dependentes de certos princípios próprios ou de determinados fatos constatados. Ao passo que o habitus dos primeiros princípios é único, os habitus de ciências são múltiplos e diversos; com efeito, aquele considera os primeiros princípios cuja indivisibilidade não se pode diversificar, estes, olhando as conclusões que são essencialmente relativas, podem e devem diversificar-se, segundo a diversidade dos princípios próprios de onde dependem as conclusões. O habitus de sabedoria está no cume; pressupõe essas duas virtudes intelectuais inferiores e atinge algo próprio, último. Porque está no cume, a sabedoria domina. Ela pode ordenar tudo o que lhe é inferior, mas sobretudo pode contemplar, de seu modo, o que é último e derradeiro: É evidente que a mais exata das ciências será a sabedoria. O sábio, portanto, deve conhecer não somente o que provém dos princípios, como também a verdade sobre
1 Ét. Nic., VI, 5, 1140 a 25-28. 2 Pode-se dizer que eles são a
estrutura interna, imanente, de nossas atividades intelectuais Não podem ser explicitados senão num olhar reflexivo (crítico) que mostrará o seu vínculo com o juízo de existência. A colocação entre parênteses do juízo de existência aniquila o valor próprio desses axiomas, o seu "virtus", seu significado radical. A respeito dos axiomas, ver pp. 124-125 e pp. 167 seg. [O leitor pode também remeter-se ao livro do mesmo autor, O Manto do matemático, pp. 24-25, N. do T.].
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES os princípios. Assim, ao mesmo tempo, a sabedoria será noûs e ciência, e ela terá de certa forma uma cabeça, ciência das realidades mais sublimes.1
Aristóteles recusa explicitamente a posição filosófica que pretenderia fazer da prudência política o que há de mais honorável e de melhor: «É absurdo pensar que a política ou a prudência são o que há de mais elevado». Reconhecer-lhes esta primazia absoluta conduziria a considerar o homem como o que há «de melhor entre todas as realidades no universo». 2 Nisso, mais uma vez, Aristóteles se opõe aos sofistas; denuncia, ao mesmo tempo, o erro de quantos queiram, de alguma forma, fazer da ética ou da política (ou de toda espécie de antropologia) a sabedoria suprema. Esses chegam necessariamente a exaltar soberanamente o homem, a fazer dele um deus. E, uma vez que não pode haver senão um deus, o homem se identifica a ele ou o nega. E, ao fazer-se deus, não somente exclui todo outro deus, mas é conduzido logicamente a excluir todo outro homem: somente ele pode existir. Portanto, se a prudência política é posta como absoluto, ela se destrói a si mesma: negando a existência de Deus e a dos outros, não existe mais comunidade humana possível. Logo, não existe mais política. À pergunta: a sabedoria especulativa é mais excelente que a prudência? Aristóteles responde por uma comparação: «Se «saudável» e «bom» são diferentes para homens e para peixes, ao passo que «o branco» e «direito» são sempre os mesmos, todos dirão que o sábio é o mesmo e que o que é prudente é diferente». 3 O sábio é sempre o mesmo, o prudente não o é. A sabedoria aparece, pois, como uma dessas qualidades que não precisam adaptar-se. Graças ao absoluto do que considera, está acima desse relativismo subjetivo. Ela conserva em todo lugar e para todos o mesmo valor. «É evidente que a sabedoria é a ciência e a inteligência das coisas mais honoráveis por natureza» e não das coisas mais honoráveis para nós.4 O que caracteriza a excelência própria da sabedoria é que ela está acima dos diversos estados e condicionamentos do homem sábio. Porque ela atinge a realidade suprema, o fim último do homem, Deus, a sabedoria não é mais determinada, especificada na sua maneira de ser pelo condicionamento do homem sábio — sem negá-lo, de resto, porque ela depende dele no seu exercício. Ao explicitarmos o pensamento de Aristóteles, poderíamos dizer que a razão própria da sabedoria está como que além de toda distinção entre objeto e sujeito, ordem especulativa e ordem prática. A prudência não pode elevar-se tão alto. Ela implica sempre assumir o condicionamento próprio do homem na sua vida moral. Por isso, ela deve adaptarse às circunstâncias particulares de tempo e lugar em que se encontra o homem prudente;
1 Ét. Nic., VI, 7, 1141 a 16-20. 2 Ibid., 1141 a 20-22. Essa observação
de Aristóteles há de ser aproximada da que ele faz a propósito da física: esta seria a filosofia primeira, portanto, a sabedoria, se as substâncias separadas não existissem. 3 Ibid ., 1141 a 22-25. 4 Ibid . 1141 b 2-3. 5 Cf. ibid ., VI, 8 e 9, 1141 b 8 seg.
A FILOSOFIA HUMANA deve modificar-se em razão dessas circunstâncias, na sua determinação última e no seu exercício. Para o Filósofo, a prudência política e a prudência de cada um em particular, segundo suas estruturas essenciais, são uma mesma virtude. Todas as duas aperfeiçoam a mesma potência da alma e possuem o mesmo tipo de atividade: todas as duas exercem-se por modo de deliberação e finalizam-se numa decisão última (o imperium). Ela não se distinguem senão segundo o que consideram: a prudência do indivíduo fica limitada ao seu governo pessoal, a prudência política olha a direção do agir humano engajado na comunidade perfeita (a cidade), em vista do «bem viver» dessa comunidade. 1 Para Aristóteles, a eminente superioridade da sabedoria teorética sobre a prudência, mesmo sobre a prudência política, portanto, não deixa dúvidas. Essa superioridade implicará, por isso, uma certa dependência da prudência a respeito da sabedoria. O que está na ordem relativa permanece necessariamente dependente do que, atingindo o absoluto, está além dessa ordem relativa, pelo menos se se trata de operações humanas. Mas essa dependência permanece muito especial e muito difícil de especificar. Aristóteles não a explicitou. Talvez seja bom, para melhor compreender a posição original do Estagirita, precisá-la um pouco em função dos seus próprios princípios filosóficos — dada a importância do problema do ponto de vista prático. Na perspectiva dos princípios do Filósofo, podemos notar que, entre a prudência e a sabedoria, não se trata de pôr uma dependência imediata e especifica, como se a prudência fosse essencialmente relativa à sabedoria: podemos, em certas circunstâncias, ser prudentes sem referência explícita à sabedoria. Mas podemos ser magnânimos sem sermos sábios? Podemos ser prudentes segundo essa modalidade especial exigida pela magnanimidade, sem possuir algo da sabedoria contemplativa? O magnânimo, com efeito, é aquele que não é dominado pelas honrarias e pela glória, ele sabe usá-las. É aquele que age «com grandeza». Podemos agir «com grandeza» sem conhecer de maneira atual as realidades mais nobres, as que ultrapassam as realidades corruptíveis? O magnânimo é livre das opiniões dos outros. É um homem capaz de tomar distância, livre, por isso mesmo, das circunstâncias de tempo e lugar, porque ele se basta a si mesmo, sendo todo entregue à procura do seu fim último. Suas qualidades parecem certamente depender da sabedoria contemplativa. Só ela, como nós o veremos, é perfeitamente livre da opinião dos outros e toda tendida para seu bem último. A magnanimidade, que é como um cume das virtudes éticas, nos mostra bem como a vida moral pode atingir seu auge, sua grandeza e sua beleza, estando em continuidade com a sabedoria — a magnanimidade não coloca uma beleza na ordem moral, portanto, um certo esplendor, um certo reluzir? O inferior não pode atingir seu cume senão pela conjunção e união ao seu superior.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Entre prudência e sabedoria, portanto, não se trata de uma dependência segundo os princípios essenciais que especificam essas virtudes, mas de uma dependência segundo a ordem da grandeza, isto é, da exemplaridade e da finalidade: podemos exercer uma certa prudência humana sem a sabedoria, 1 aquela que é finalizada pelo amor de amizade. Ela permanece, todavia, aberta à finalidade última que a sabedoria desvenda e é por isso que não se pode, sem a sabedoria, exercer «com grandeza» a prudência, com esse modo de liberdade, de esplendor, de beleza — a beleza exige a grandeza, afirma Aristóteles no seguimento de Platão. Se nos colocarmos do ponto de vista da finalidade, Aristóteles declara que a dependência da prudência com relação à sabedoria é como a da medicina com relação à saúde, isto é, como a de um meio a respeito do fim: a prudência «não tem a primazia sobre a sabedoria, nem sobre a melhor parte [da alma], da mesma forma que a medicina não a tem sobre a saúde. Com efeito, ela não a utiliza, mas vê como fazer nascê-la. Portanto, ela comanda em vista desta, mas não a comanda». 2 Em outras palavras, como a medicina está a serviço da saúde, ao nos ordenar eficazmente a sua aquisição, da mesma forma a prudência está a serviço da sabedoria. Ela nos dispõe a adquiri-la, ela afasta os obstáculos e nos orienta para este alvo que a ultrapassa, que é de uma outra ordem. Relativamente à sabedoria, a prudência permanece uma disposição. Se a sabedoria está presente, ela pode estar a seu serviço para lhe permitir irradiar. E graças à magnanimidade este irradiar se realizará plenamente. Esta dependência segundo a ordem da grandeza e da finalidade enraíza-se numa dependência radical e fundamental — dependência que provém da inteligência humana, em que nascem e se desenvolvem essas virtudes. Com efeito, todo conhecimento prático é outro que o conhecimento teorético: esses dois tipos de conhecimento têm o seus princípios próprios. Na ordem genética, poderíamos dizer que o intelecto prático desenvolve-se primeiro; o intelecto especulativo se acorda normalmente em último lugar, quando se acorda! Mas segundo a ordem de perfeição, poderemos dizer que o intelecto especulativo é primeiro. O erro de uma certa interpretação do pensamento de Aristóteles consiste em ter confundido essas duas prioridades. Considera-se, então, que não se pode compreender o intelecto prático sem o intelecto especulativo: ele o pressupõe e não faz nada senão estender sua influência. Sendo assim, a prudência supõe a sabedoria e funda-se nela, estendendo sua influência na ordem da contingência… Se esta perspectiva é falsa, no entanto, pode -se afirmar que a prudência, no seu desabrochar último e pleno, depende da sabedoria, precisamente porque a sabedoria, habitus do intelecto teorético, desabrocha a inteligência do homem no que ela tem de último. Por essa razão, a sabedoria assume o que tem de mais radical no intelecto prático, 1 Não
devemos distinguir, o que Aristóteles não fez explicitamente, a ética humana fundamental, finalizada pelo amor de amizade, e a ética humana propriamente religiosa, finalizada pela adoração e pela contemplação? Isso permite precisar melhor as relações da prudência e da sabedoria. Podemos ser prudentes em vista dessa finalidade do amor de amizade sem referência explícita e imediata à adoração e à contemplação. Mas não podemos ser prudentes se rejeitamos o ultrapassar da ética fundamentalmente humana por uma ética religiosa. 2 Ét. Nic., VI, 13, 1145 a 6-9.
A FILOSOFIA HUMANA aquilo que o funda: o amor espiritual a respeito do bem que finaliza o homem, amor que pressupõe um certo conhecimento intelectual. Deste modo, compreendemos melhor como para Aristóteles a ordem das virtudes morais possui de fato sua estrutura própria, dependente da prudência e, mais profundamente ainda, da filia. Entretanto, considerada sob a luz da finalidade última, a da sabedoria, ela é relativizada, em vista de um fim que é mais do que humano, «divino». Então, a ordem das virtudes morais não é nada mais que uma disposição com relação a essa felicidade última da contemplação. Assim, podemos dizer que essa ordem das virtudes éticas não pode adquirir seu esplendor, seu «adorno», senão permanecendo conjunta à vida contemplativa, sob o seu irradiar direto. Vemos o quanto Aristóteles hauriu no seu Mestre este absoluto da contemplação, o quanto ele foi seduzido por ela, mas também o quanto ele estabelece, a um nível especial, toda uma organização de virtudes éticas humanas. As virtudes são verdadeiras qualidades humanas, autênticas perfeições humanas, mas elas não podem ser as únicas perfeições do homem. Por mais nobre que seja a prudência, não pode ser a virtude por excelência para o homem; ela é por demais relativa ao homem, não pode ser a perfeição do que tem de mais precioso no homem, do nous. Este exige a sabedoria contemplativa.
7. Amor de amizade — Contemplação Uma vez que a vida humana pode orientar-se de duas maneiras: uma segundo as exigências de nossa natureza humana que implica o corpo e a alma racional, a outra segundo as exigências mais íntimas e mais profundas do noûs que está no homem, uma vez que essas duas orientações podem ser aperfeiçoadas nos seus princípios próprios por virtudes éticas e intelectuais (dianoétikai), é normal considerar a felicidade humana, ao mesmo tempo, como o fruto do exercício de nossas virtudes éticas e como o fruto do exercício da virtude de sabedoria. O primeiro é aquele que termina e finaliza a vida humana ética, prática, o segundo aquele que termina e finaliza a vida chamada contemplativa: é uma felicidade supra-humana e eminentemente humana. Entre essas duas felicidades há uma certa ordem: só a felicidade da contemplação é perfeita. É a felicidade no sentido pleno, primeiro, segundo a ordem de natureza. Somente essa felicidade pode finalizar de maneira absoluta tudo o que é mais profundo no homem, seu noûs. É por isso que só ela compete à virtude por excelência, a sabedoria. A felicidade atingida pela vida ativa não pode ser senão imperfeita. Na própria perspectiva da ética de Aristóteles, essa felicidade parece ser o amor de amizade. A própria ordem da Ética a Nicômacos nos convida a afirmá-lo, já que, depois do estudo das virtudes morais, o Filósofo aborda o do amor de amizade. Ele lhe dedica dois livros inteiros ; é um sinal da importância do problema aos seus olhos. 69
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Platão, herdeiro de toda a tradição grega, não hesitara em dedicar vários dos seus Diálogos ao problema do amor e da amizade. No Lísis, ele mostra todo o frescor deste sentimento íntimo que une as almas dos jovens bem nascidos, permitindo-lhes revelar-se mutuamente o que têm de mais caro e viver em plena harmonia. No Banquete, exalta o amor ( Eros) como uma forma divina da vida, capaz de nos elevar até a contemplação do «Belo-emsi». O amor, ao mesmo tempo divino e humano, realiza a unidade perfeita de vida entre os homens, e entre esses e Deus. É evidente que para Platão o amor exaltado no Banquete não é a filia do Lísis. Poderíamos dizer que Platão separa o amor para com o absoluto do amor de amizade a respeito do amigo. Aristóteles não procura aprofundar o que é o amor humano no que tem de mais forte, de mais profundo: o amor de amizade? Ele mostra que o amor de amizade não é algo «facultativo», uma coisa comprazível, um passa-tempo, mas enraíza-se na própria natureza do homem, na sua unidade substancial implicando a alma espiritual e o corpo: o amor de amizade é um amor voluntário, espiritual, que se realiza plenamente numa eleição e se encarna no corpo através das paixões, assumindo-as, enobrecendo-as. Assim, toda a exigência do amor ( Eros) que Platão expõe no Banquete é como que assumida e humanizada neste amor de amizade que une os amigos. É verdade que Aristóteles manterá que pode haver uma outra forma de amor para com Deus — este será como que assumido na contemplação; mas ele reconhecerá que esse amor possui sempre um modo muito imperfeito para o homem. Essas concepções diversas do amor na filosofia de Platão e na de Aristóteles enraízam-se evidentemente na visão toda diferente que eles têm da união da alma espiritual e do corpo no homem. Essa realidade humana incomparável do amor de amizade, Aristóteles a compreende e a vive. O discípulo não conheceu uma verdadeira intimidade com seu mestre? Seu ensino sobre a amizade não é uma exposição didática; é muito mais do que isso. Aristóteles nos entrega sua experiência vivida profundamente, mas ele a dá como filósofo, pois ele tem plena consciência do valor original e único com relação ao que fala. Por isso é que, à diferença de Platão, Aristóteles estuda o amor de amizade exclusivamente na sua filosofia humana, como uma perfeição propriamente humana. Aristóteles falará do amor como tal em filosofia primeira — muito brevemente, é verdade, mas situando-o. Falará também dele na filosofia da natureza: o apetite natural desempenha um papel importante na sua análise do universo e sobretudo naquela do mundo dos viventes. O amor de amizade é verdadeiramente o amor humano por excelência, por isso não podemos considerá-lo explicitamente senão em filosofia humana. A preocupação principal de Aristóteles, tratando do amor de amizade filosoficamente, é descobrir sua estrutura original e analisar todas as suas propriedades, para fixar seu lugar exato entre as perfeições diversas da nossa vida humana, para manifestar como se pode «adquiri-lo», e como ele finaliza o homem como homem. Depois disso podemos passar ao que concerne o amor de amizade. Com efeito, ele é uma certa virtude (areté), ou não existe sem virtude; ademais, é o que há de mais
A FILOSOFIA HUMANA necessário na vida. Pois, sem amigos, ninguém escolheria viver, mesmo que tivesse todos o outros bens. Com efeito, para as pessoas ricas e para aqueles que têm autoridade e poder, parece de suma necessidade ter amigos: qual seria a utilidade desta prosperidade uma vez tirada a oportunidade de fazer benefícios, que se exerce principalmente e em sua mais louvável forma em relação aos amigos? (...) Na pobreza e nos outros infortúnios os amigos são o único refúgio a que pensam as pessoas. [O amor de amizade é necessário] aos jovens para preservá-los do erro; às pessoas idosas para lhes assegurar curativos e suplementar sua capacidade de ação ( praxis) reduzida pela fraqueza; enfim, àqueles que estão na plenitude de suas forças (en akmé), para incentivá-los à prática de ações nobres: «Quando dois vão juntos ...», pois são mais capazes de pensar e de agir.1
Depois de ter mostrado a necessidade e a beleza da amizade para todo homem e a cada uma das etapas de sua vida, após ter lembrado as diversas opiniões dos filósofos sobre a própria natureza do amor de amizade — uns identificando-o a uma semelhança, outros a uma contrariedade ou a uma oposição2 — , após ter feito o levantamento das principais dificuldades que podem nascer a esse respeito, 3 Aristóteles precisa que o amor de amizade é um amor recíproco. Tal abordagem manifesta claramente que, se o amor de amizade é verdadeiramente um amor — ele olha um determinado bem, o amável — , no entanto, não é qualquer amor. A esse respeito, as coisas se tornariam rapidamente manifestas se conhecêssemos o que é o amável (to philéton). Com efeito, parece que tudo não seja amado, mas somente o amável, isto é, o que é bom, agradável ou útil. Aliás, podemos admitir que é útil o pelo qual nasce um certo bem ou um certo prazer, de sorte que só o bem e o agradável serão amáveis como fins.4
O amor de amizade distingue-se primeiro do amor de concupiscência, orientado para os bens sensíveis, bens inferiores à nobreza de nossa natureza humana. Esses bens, em realidade, não são amados por si mesmos, nós os amamos para nossa própria vantagem: «O apego às coisas não animadas não se chama amor de amizade; com efeito, não existe reciprocidade de afeição e não queremos o bem para elas. Sem dúvida, seria ridículo querer bem ao vinho! Todavia, queremos que ele se conserve, de modo a tê-lo para nós!» 5 Esse amor de 1 Ét. Nic., VIII, 1, 1155 a 3-16. 2 Cf. ibid ., 2, 1155 a 32 - b 7.
Aristóteles conclui esta passagem, afirmando: «Mas dentro das dificuldades, deixemos as que são de ordem física; com efeito, não pertencem à indagação presente. Os problemas humanos, e que ocorrem nos costumes e nas paixões, são estes que examinamos» ( ibid ., 1155 b 8-10). 3 Cf. ibid ., 1155 b 10-16. 4 Ibid ., 1115 b 17-21. 5 Ét. Nic., VIII, 2, 1155 b 27-31.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES concupiscência é, portanto, interessado, egoísta. O amor de amizade, ao contrário, é sempre desinteressado: amamos o amigo por ele mesmo. Nosso amor completa-se e repousa no amigo. Eis por que o amigo não pode ser senão o homem, pois não podemos amar de modo desinteressado senão um certo bem absoluto — pelo menos que se apresenta tal a nós. Em meio às realidades visíveis, só o homem apresenta-se como uma realidade cuja dignidade se impõe. Seria indigno usar dele. Mas é legítimo usar de todas as outras realidades: «Para o amigo dizemos que devemos querer o que é bom para ele ( boulesthai tagatha ekeinou eneka)».1 Esse desinteresse no amor é o primeiro caráter do amor de amizade. Revela-nos sua nobreza toda particular. Esse amor é essencialmente o fruto do que há de mais espiritual no homem; provém de seu querer determinado, de um desejo que nasce nele graças à presença de um bem espiritual: a própria bondade duma pessoa humana. Se esse desinteresse no amor é o primeiro caráter essencial do amor de amizade, no entanto, não é seu caráter distintivo e específico. Com efeito, o amor de benevolência, que não é o amor de amizade, é também um amor desinteressado e se opõe ao amor de concupiscência: «Aqueles que querem o que é bom para um outro são chamados benevolentes, se o mesmo [querer] não se produz em troca; com efeito, o amor de amizade é uma benevolência na reciprocidade». 2 O amor de benevolência que faz com que amemos uma outra pessoa por ela mesma — nós lhe queremos o bem — tem certamente uma nobreza muito grande, a nobreza do que é espiritual, mas não basta para realizar o amor de amizade. Este reclama a reciprocidade. É uma reciprocidade no amor de benevolência que exprime mais exatamente o que há de único neste amor de amizade. Para que haja amor de amizade é preciso que aquele que é amado, o amigo, ame também aquele que o ama, e que ele o ame igualmente num amor desinteressado. É o encontro desses dois amores que constitui a reciprocidade no amor mais nobre. O amor de amizade não é como o nó desses dois amores desinteressados? «Não é preciso acrescentar: [uma benevolência mútua] que não permanece oculta? Com efeito, são muitos aqueles que são benevolentes para pessoas que nunca viram, que eles estimam justas ou úteis; e um destes pode provar igualmente a mesma coisa com relação ao outro. Portanto, são benevolentes um a respeito do outro, mas como pretender que são amigos, se fica oculto o que provam um para com ou outro?» 3 A fusão destes dois amores de benevolência reclama a lucidez e a consciência. Nestas condições, é preciso dizer que o amável, que é objeto próprio do amor de amizade, não é apenas a pessoa que atrai o amor, mas de maneira precisa a pessoa amada que ama, ela também, e se dá à pessoa que a ama. Não é senão enquanto ele ama também, pessoalmente, espontaneamente o outro que este amável especifica o amor de amizade. O amado não é verdadeiramente o amigo senão se ele 1 Ibid ., 1155 b 31. 2 Ibid ., 1155 b 32-34. 3 Ibid ., 1155 b 34 - 1156 a 3.
A FILOSOFIA HUMANA me ama e me considera como seu amigo. Sem este amor recíproco, pode haver um autêntico amor de benevolência mas este amor nunca desabrochará em amor de amizade. Descobrimos certamente aí a intensidade e a qualidade única do amor de amizade. Ele é o fruto próprio de dois amores desinteressados que se encontram, se compenetram, se unem. Não se trata simplesmente de somar dois amores desinteressados; trata-se verdadeiramente de um amor totalmente novo, que tem um modo eminente, realizando o que há de mais perfeito na ordem do amor, esgotando de algum modo todas as suas riquezas mais escondidas e mais profundas. É normal que somente um amor recíproco possa ser perfeito como amor, uma vez que não se pode amar verdadeiramente alguém, isto é, se dar a ele, senão na medida em que se é amado por ele. O amigo, porque me ama, chama com mais força e mais exigência meu amor do que um estranho; e tanto mais ele for meu amigo, quanto mais será capaz de atrair meu amor. Isso é rigorosamente verdadeiro do amor como tal, mas provavelmente não o é mais do desejo. Precisemos que é nessa consciência da reciprocidade da sua benevolência um para com o outro que o amor espiritual de um e do outro vai adquirir uma liberdade perfeita, que se traduz, então, numa escolha livre. E é precisamente ao se escolherem como o único amor de um e do outro que eles se tornam amigos. Aristóteles, especificando que o amor de amizade é um amor recíproco, conhecido como tal, nos manifesta bem, portanto, a intensidade única deste amor, sua profundeza e sua estabilidade, numa palavra, seu caráter espiritual e sua exigência única. À diferença do amor de concupiscência que, permanecendo no sensível, busca sempre a mudança e a diversidade, o amor de amizade tende a ser único, a atingir sempre mais o que há de mais profundo, de mais pessoal no amigo. E é seu bem próprio que sempre é desejado. O amor de amizade almeja sempre crescer em penetração e intimidade. À diferença do amor de benevolência que se satisfaz duma doação passageira e parcial, não engajando nunca totalmente o homem, o amor de amizade reclama que o amigo seja inteiramente dado ao seu amigo, numa doação pessoal e total, realizando-se numa verdadeira vida comum, na qual os amidos possam cooperar nas mesmas atividades e partilhar os mesmos trabalhos. O amigo deve fazer suas, de fato, todas as intenções de seu amigo e ajudá-lo a realizá-las como se essas intenções proviessem da sua própria vontade. Eis por que o amor de amizade, pela sua própria natureza, reclama a vida comum e a duração. A estabilidade é uma propriedade de sua natureza. A experiência nos manifesta claramente que a prova do tempo é necessária para unir os amigos e colocar seu amor de amizade a salvo de todas as causas de destruição. Essa primeira análise do amor de amizade, especificada pelo bem amável que o determina, nos manifesta a estrutura essencial do amor de amizade, distinguindo-o do amor de concupiscência e do amor de benevolência. Ela explica, ainda, como o amor de amizade pode realizar-se de uma tríplice maneira: amizade segundo a virtude, amizade segundo o prazer , amizade segundo a utilidade, porque o próprio bem amável é triplo: o bem «segundo
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES a virtude», amável em si mesmo e por si mesmo, o bem amado como fonte de prazer e o bem como útil. Os bens amáveis se distinguem um do outro especificamente; e, conseqüentemente, os apegos e as amizades. Teremos, portanto, três espécies de amizades, em número igual [aos bens] amáveis, pois para cada um existe um apego recíproco que não permanece escondido. Mas aqueles que se amam querem um para outro o que é bom, segundo o aspecto próprio sob o qual eles se amam.1
Para o Filósofo essa divisão nos bens amáveis é a divisão própria do bem humano; portanto, não é surpreendente descobrir três tipos de amor de amizade. O amor de amizade que olha o amigo por ele mesmo — o amamos por ele e lhe queremos bem para que ele seja cada vez mais ele mesmo — é o mais perfeito, o primeiro segundo a ordem de natureza. Só ele desabrocha todas as virtualidades da amizade e todas as suas perfeições. O sinal de sua perfeição é sua estabilidade e sua excelência: O amor de amizade perfeito (teleia philia) é o daqueles que são bons e semelhantes segundo a virtude. Com efeito, aqueles se querem mutuamente o bem da mesma forma, enquanto eles são bons; ora, eles são bons em si próprios. Mas aqueles que querem o bem a seus amigos por eles mesmos são amigos no sumo grau (malista). Com efeito, eles são assim por si mesmos, e não por acidente. O amor de amizade [daqueles que são bons] dura, portanto, tanto tempo quanto são bons; ora, a virtude é estável. E cada um deles é, ao mesmo tempo, bom absolutamente (aplôs) e para o amigo; com efeito, os [homens] bons são bons de maneira absoluta e úteis uns para com os outros. É da mesma forma também para o agradável (...). É normal que tal amor de amizade seja estável: com efeito, nele são reunidas todas as qualidades que devem pertencer aos amigos (...). Dessa forma o fato de amar (to philein) e o amor de amizade existem nesses amigos ao grau mais alto e da melhor maneira (aristé).2
Esse amor de amizade não pode ter contrários, portanto ele está acima dos ataques. Nada pode corrompê-lo ou desagregá-lo. As duas outras amizades, ao invés, implicam contrários. Logo, elas estão essencialmente engajadas na luta. Não podem ter verdadeira estabilidade. Com isso, o Filósofo mostra bem como a virtude pode permitir ao amor desabrochar perfeitamente e ser plenamente ele mesmo. Para o Filósofo, a virtude ética é necessária não somente porque ela faz viver segundo a razão, mas porque ela permite, assim, ao amor de amizade desabrochar. Ela permite verdadeiros laços de amor de amizade se realizarem entre 1 Ét. Nic., VIII, 3, 1156 a 6-10. 2 Ibid ., 4, 1156 b 7-24.
A FILOSOFIA HUMANA os homens. Aristóteles frisa que o amor de amizade perfeito também é fonte de alegria e, quando necessário, o que há de mais útil para o amigo: não é o amigo o melhor dos servidores? Notemos também que, para o Filósofo, o amor de amizade segundo o prazer, mesmo que seja inferior ao amor de amizade segundo a virtude, permanece um verdadeiro amor de amizade; com efeito, através do prazer que ele propicia, é ainda o amigo que é amado. Quanto à amizade ordenada à utilidade, na realidade não é mais um verdadeiro amor de amizade: eu não amo o outro senão em razão duma qualidade que poderia me prestar serviço. Logo, a reciprocidade é falsa. Por causa disso, o Filósofo afirma que, se falamos como homens que chamam do nome de amigos aqueles que não buscam senão a utilidade ou o prazer, podemos talvez dizer «que existem várias espécies do amor de amizade. No sentido primeiro e principal, o amor de amizade é o dos homens bons enquanto bons, ao passo que as formas restantes são amor de amizade por semelhança». 1 Aristóteles considera, em seguida, o amor de amizade nas suas relações com a vida comum e a comunidade, o que é muito importante para precisar seu lugar na comunidade política. Da mesma forma que no domínio da virtudes os homens são chamados bons segundo uma disposição estável ou segundo uma atividade, assim é para o amor de amizade: uns, que passam sua vida juntos, alegram-se um ao outro e se propiciam mutuamente bem; aqueles que estão dormindo ou que estão separados pela distância não estão mais em ato, mas estão dispostos a agir de modo amigável (energein philikôs). Com efeito, as distâncias não destroem absolutamente o amor de amizade, mas seu ato. No entanto, parece que a ausência demorada produz o esquecimento também do amor de amizade. (...) Com efeito, nada pertence mais a amigos do que viver juntos (...). Ora, não se passa sua vida uns com os outros se não se acha nada agradável nisso e se não se alegra nas mesmas coisas, como parece implicar uma associação. 2
Por seu exercício, o amor de amizade realiza uma verdadeira vida comum, já que esta não desenvolve todas suas virtualidades senão no e pelo exercício da amizade; não é ela o próprio fruto da amizade? Os amigos, já o vimos, devem ter os mesmos quereres, cooperar nas mesmas atividades e se entreajudar para serem vitoriosos nas mesmas lutas e nas mesmas dificuldades. Isso constitui certamente uma vida de entreajuda numa confiança e num amor recíproco. Se este gênero de vida é o fruto por excelência do amor de amizade, é-lhe também como o guardião e a origem. O amor de amizade não se adquire nem se conserva a não ser 1 Cf. ibid ., 5, 1156 b 33 - 1157 a 35. 2 Ibid ., 6, 1157 b 5-24.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES graças à vida comum. Sem esta não poderia nascer; e, sem esta, mesmo já adquirido, não poderia crescer: muito rapidamente desapareceria. Assinalando essas relações mútuas e diversas de causa a efeito entre a vida comum e a amizade, Aristóteles precisa a origem e o fruto do amor de amizade, da mesma forma que, precedentemente, definira o exercício de nossas atividades boas e honestas como a origem e o fruto de nossas virtudes morais adquiridas. Graças a esta análise, o Filósofo pode de novo distinguir dois tipos de amizade: a amizade segundo a superioridade e a inferioridade e a amizade segundo a igualdade, uma vez que, conforme as diversas relações humanas de superioridade, de inferioridade ou de igualdade, a vida comum exerçe-se necessariamente de diversas maneiras e reveste modos peculiares.1 Porque o amor de amizade, na sua razão mais íntima, é uma relação de unidade afetiva e espiritual entre dois amigos, é preciso ainda especificar o fundamento próprio dessa relação. Uma vez que todo amor de amizade é um amor de benevolência na reciprocidade, implica necessariamente que o amigo comunique a seu amigo o que ele tem de mais íntimo e de mais «ele mesmo» numa doação, e que receba o que seu amigo lhe comunica de mais íntimo e de mais «ele mesmo» numa doação. Tanto mais o amigo se dá, tanto mais recebe o dom de seu amigo, quanto mais a unidade entre os amigos será grande. Essa colocação em comum (koinônia) é bem o próprio fundamento da relação humana realizada no amor de amizade. 2 Essa colocação em comum, considerada em si mesma, não é outra coisa senão o dom recíproco dos amigos que realiza uma similitude de vida entre eles. Ela é, ao mesmo tempo, o fruto do amor de amizade e a fonte de todo seu crescimento. Nesse sentido, a koinônia considerada em si mesma não é o exercício atual do amor de amizade, mas realmente seu fundamento. E é ao precisar a qualidade dessa colocação em comum que se terá condição de desvendar o caráter específico de tal amor de amizade. Se a koinônia é o fundamento das relações de amor de amizade, não existe também uma koinônia, por certo diferente, mas analogicamente a mesma, para o exercício da justiça entre os concidadãos? Para que haja um exercício da justiça entre os homens, é preciso certos elementos comuns entre eles, da mesma forma que para o exercício do amor de amizade; do contrário, não haveria relação alguma. É por essa koinônia que podemos captar como a amizade e a justiça têm, de certo modo, mesmo fundamento, enraizando-se por assim dizer na mesma terra; mas, a um só tempo, vemos melhor como, se a primeira pressupõe sempre a segunda — a amizade implica sempre a justiça — , o inverso não é sempre verdadeiro: a justiça pode existir sem amor de amizade. A amizade vem acrescentar-se à justiça,
1 Cf. Ét. Nic., VIII, 8-10, 1158 b 1 seg. 2 Cf. ibid ., 11, 1159 b 25 - 1160 a 30.
A FILOSOFIA HUMANA aperfeiçoá-la e ultrapassá-la. 1 É por isso que, se a justiça é a estrutura essencial da cidade, o amor de amizade é como que seu fim e sua flor derradeira. Essa nova forma de considerar o amor de amizade permite mais uma vez a Aristóteles distinguir diversos tipos de amizade: a amizade paterna, a amizade conjugal e a amizade fraterna, já que essas amizades implicam diversas «semelhanças de vida», diversas «colocações em comum». O Filósofo estabelece, então, um paralelo muito surpreendente a primeira vista entre essas diversas amizades e aquelas que podem instaurar-se na cidade segundo as diversas formas de governo político, isto é, as formas de governo real, aristocrático e democrático. A amizade entre o rei e seus súditos é semelhante à que existe entre o pais e seus filhos; a amizade entre os «melhores» ( aristoi) e seus súditos é semelhante à que une o esposo e a esposa; enfim, a amizade entre os chefes dum governo republicano e seus subordinados assemelha-se à que se realiza entre os irmãos duma mesma família, que receberam mesma educação. 2 Portanto, a amizade, considerada sob este aspecto, permite ao Filósofo atingir o ponto de vista político e indicar como essa perfeição humana do amor de amizade, ao finalizá-las, reúne em si as riquezas da ordem ética e da ordem política. Essas riquezas que, consideradas sob outros aspectos, podem parecer por vezes antinômicas, harmonizam-se e complementamse, consideradas no fundamento próprio da amizade. Por fim, para mostrar o quanto o amor de amizade é uma perfeição natural profundamente enraizada na nossa natureza, que ele não é um «produto de luxo», uma espécie de refinamento um pouco desencarnado, Aristóteles busca-lhe a fonte primeira no amor natural que temos para conosco. Tal como o descreve Aristóteles , este amor de si, que devemos cuidadosamente distinguir do egocentrismo, não é outro que o amor do homem virtuoso para com o que há de mais nobre nele: O homem virtuoso está em acordo consigo mesmo e deseja as mesmas coisas segundo sua alma «toda inteira». Ele quer também por si mesmo o que é bom e o que lhe parece tal, e ele o pratica (pois é o próprio do homem bom dedicar todo seu cuidado pelo bem), e isso em vista de si mesmo (pois é em vista da parte intelectiva, já que é o que cada um parece ser). Quer também que ele mesmo viva e seja conservado ( sôzesthai), e ao máximo aquilo pelo qual ele pensa ( phronei). Com efeito, para o homem virtuoso o ser é um bem, e cada um quer para si mesmo o que é bom; e ninguém escolheria possuir todas as coisas tornando-se outro que o que ele se 1 «A
amizade parece também unir as cidades, e os legisladores parecem preocupar-se mais dela do que da própria justiça. Com efeito, a concôrdia que parece próxima da amizade é o que eles procuram ao máximo (malista), e o espírito de facção, que é seu inimigo, o que eles perseguem mais. E para aqueles que são amigos, a justiça não é mais necessária; mas os que são justos necessitam, além disso, da amizade. E a mais alta expressão do justo parece ser o que é amical» ( Ét. Nic., VIII, 1, 1155 a 22-28). Cf. ibid ., 11. 2 Cf. ibid ., 12-13, 1160 a 31 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES tornou (pois Deus possui agora tudo o que é bom), mas sendo o que ele é, seja qual for. Ora, parecerá que o espírito (noûs) é cada um, ou pelo menos cada um de uma maneira principal. Ademais, tal homem quer passar sua vida consigo mesmo; ele realiza isso com prazer, pois a lembrança de suas ações passadas é doce, e a respeito de suas ações futuras, sabe que serão boas e, como tais, serão agradáveis. Enfim, ele chega pelo seu pensamento ao que pode ser contemplado. Compadece e alegra-se acima de tudo consigo mesmo; com efeito, é sempre a mesma coisa que é penosa ou agradável [para ele], e não às vezes uma e às vezes outra. Não ressente, por assim falar, remorso.1
Esse amor é o sentimento mais forte e mais natural que exista, já que ele tem por objeto o bem que nos é mais unido, portanto, que é o mais nosso. Este amor requer desabrochar e prolongar-se num verdadeiro amor de amizade: assim entendido, longe de dobrar o homem sobre si mesmo, torna-o acolhedor aos outros, capaz de compreendê-los e de amá-los. 2 Ele será a última explicação filosófica da filantropia e do amor de amizade — a filantropia não passando por Aristóteles duma disposição ao amor de amizade. Graças a essa concepção analógica do amor de amizade, segundo a qual estuda sucessivamente «o objeto» próprio do amor de amizade (o amável), o meio vital em que deve brotar (a vida comum), e seu fundamento próprio (a colocação em comum), Aristóteles pode ordenar analogicamente todos os tipos de amor de amizade que podemos experimentar na nossa vida humana. Qual é o mais perfeito? Se é evidente que na divisão segundo o amável, o amor de amizade segundo a virtude é primeiro (o amigo é amado por ele mesmo e pelo que há de melhor nele), não se pode precisar segundo as duas outras abordagens... O amor de amizade nos coloca verdadeiramente na presença do amor, cuja qualidade própria é toda interior. É fácil agora para nós compreendermos como para Aristóteles o amor de amizade apresenta-se verdadeiramente como o fim imediato da vida ativa virtuosa, porque para ser perfeitamente ele mesmo, o amor de amizade supõe todas as virtudes. Mas acrescenta algo novo, algo próprio a ele: este dom mútuo, este amor recíproco que permite ao amor ser plenamente ele mesmo. Com efeito, o amor que está à raiz de toda virtude permanece sempre, nas atividades virtuosas, algo relativo, parcial e um pouco formal, até poderemos dizer por demais racional. No amor de amizade, ao invés, o amor adquire um caráter absoluto e plenamente realista, porque se dirige ao amigo como seu bem próprio. O amigo é um ser existente, até poderemos dizer uma pessoa vivente e perfeita: se a palavra «pessoa» não é presente em Aristóteles, a realidade o é certamente... Todas as virtudes éticas acham no amor 1 Ét. Nic., IX, 4, 1166 a 13-29. 2 Nós nos permitimos aqui remeter
com o outro?
a nosso artigo: O amor de si: obstáculo ou meio privilegiado do encontro
A FILOSOFIA HUMANA de amizade seu fim e sua perfeição. Elas são necessárias para constituir o homem perfeito, mas não bastam por si mesmas para torná-lo um amigo perfeito, com quem se pode fazer uma obra comum, levar uma vida comum na confiança e no amor mútuo. Por isso, é preciso que as virtudes éticas sejam como que ultrapassadas por esse amor mútuo. Enquanto permanecemos na ordem das virtudes éticas, ficamos em perfeições relativas e múltiplas: elas não podem unificar-se e adquirir um caráter absoluto a não ser com o amor de amizade. Eis como pode haver uma verdadeira felicidade em continuidade imediata com a ordem das virtudes éticas. Sem o amor de amizade, a felicidade seria impossível nesta ordem de qualidades, pois toda felicidade humana implica um vínculo de amor com um bem absoluto, uma pessoa; pela virtude não se atinge a pessoa, permanece-se no relativo. Notemos ainda que o amor de amizade é o que nos permite melhor captar o vínculo e a diversidade que existem, no pensamento de Aristóteles, entre a felicidade da vida moral e a da vida contemplativa. O amor de amizade, com efeito, relaciona-se de modo todo diferente com o último desabrochar de cada uma destas vidas. Quando se trata da vida moral, ele é a última perfeição intrínseca e necessária: sem o amor de amizade não há felicidade possível. Quando se trata da vida contemplativa, ele é como que uma irradiação, uma superabundância. A vida contemplativa possui, na contemplação mesma, sua própria felicidade essencial. Mas essa felicidade, pelo amor de amizade, adquire uma espécie de irradiar totalmente gratuito. A felicidade solitária do contemplativo desabrocha então numa vida comum amigável que, sem prejudicar as exigências de sua contemplação, lhe permite assumir todas as outras perfeições humanas da vida ética. O amor de amizade, na sua perfeição última, portanto, pode harmonizar no homem as exigências muito opostas da contemplação e da atividade moral. E, ao harmonizá-las, ele lhes será o melhor dos guardas. O amigo não deseja sempre ao seu amigo sua própria felicidade? O sábio não pode desejar para seu amigo senão a mais perfeita contemplação e tudo empenhar para ajudá-lo a atingi-la e manter-se nela. Talvez descubramos aqui o amor de amizade mais perfeito: o dos contemplativos.
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B. FILOSOFIA POLÍTICA
Na sua pesquisa de filosofia humana, Aristóteles não se contenta com o estudo que especifica o fim próprio e o fim último do homem considerado em si mesmo como uma pessoa singular. Ele prolonga sua pesquisa sobre o homem engajado na comunidade política, a comunidade perfeita, a cidade. E ele é o primeiro a distinguir com precisão a ética e a política, isto é, a filosofia que considera a atividade humana enquanto voluntária e moral, e a que considera a atividade humana enquanto engajada em tal ou qual comunidade e que adquire por isso mesmo um caráter familiar, social, político. A política aparece como a parte última dessa filosofia, porque olha o bem comum, o bem da «cidade», que é «mais belo e mais divino» que o do indivíduo. 1 Finalizada pelo bem comum, a política deve regular o próprio exercício das ciências especulativas e das artes e organizar as outras ciências práticas. Deve promulgar leis e vigiar sua aplicação para permitir aos cidadãos tornarem-se virtuosos. 2 Essa superioridade da política sobre a ética, que aparece muito nítida quando se compara o bem comum da cidade ao bem ético do indivíduo, não deve ser entendida de forma absoluta. Mais precisamente, no pensamento de Aristóteles, parece que ela deve ser compreendida estritamente na ordem ética prática, isto é, com relação à única parte da ética tratando da vida moral, precisemos: da aquisição e do crescimento das virtudes, e não dos fins próprios do homem — o amor de amizade, e com maior razão a vida contemplativa. A parte da ética que trata da vida contemplativa — do exercício da sabedoria — não pode ser submetida à política senão de forma indireta: o que considera essa sabedoria teorética, o Bem separado lhe escapa e a transcende, porque esse Bem, em realidade, finaliza de modo último o bem comum imanente que a política considera. O amor de amizade, no seu caráter plenamente pessoal, também transcende o bem comum. Mas ele lhe está mais imediatamente ligado mediante a virtude de justiça e a concórdia que dispõe ao amor de amizade pessoal. Aristóteles reconhece, portanto, que o ato de contemplação do filósofo é de uma outra ordem que a política (não compete formalmente senão à filosofia primeira); mas indiretamente, na medida em que o exercício da sabedoria teorética depende de certas condições materiais, psicológicas e morais, esta permanece como que submetida ao controle da política. Compreende-se por isso como, no pensamento de Aristóteles, a filosofia humana permanece de certo modo dependente da sabedoria teorética, a única capaz de atingir o Bem 1 Ét. Nic., I, 1, 1094 b 9-10. 2 Cf. ibid ., 1094 a 27 seg.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES absoluto e de o contemplar. Tudo o que concerne ao desabrochar último do homem, sua vida contemplativa, depende imediatamente da sabedoria; tudo o que concerne à vida moral do homem depende de seu fim próprio, o amor de amizade. E tudo quanto concerne ao condicionamento de nossa vida moral depende imediatamente da política: ela não considera a elaboração das leis, implicando a educação em vista da aquisição e do crescimento das virtudes? Isso faz parte do «bem viver» ético que não pode ser plenamente vivido senão em comunidade. Para Aristóteles, o homem enquanto se dedicando à vida teorética deve levar uma vida solitária; ele escapa às exigências da comunidade; o homem enquanto levando uma vida moral, na medida mesmo em que está engajado numa comunidade, está submetido à política. Mas o amor de amizade vincula-o pessoalmente a tal ou qual pessoa; assim, ele alcança um certo fim próprio que está além de seu engajamento na comunidade política. Não podemos entrar aqui na análise de todos os livros da Política, mas é importante ressaltar a maneira como Aristóteles começa seu estudo de filosofia política: Vemos que toda cidade é uma certa colocação em comum (koinônia) e que toda colocação em comum é constituída em vista de um certo bem (todos, com efeito, praticam tudo em vista do que lhe parece pertencer ao bem). Portanto, é evidente que todas as colocações em comum têm em vista um certo bem; mas no grau mais alto (malista) aquela que é a mais importante de todas e que envolve todas as outras tem em vista o bem mais importante de todos os bens. Essa é chamada a cidade ( polis), é a «colocação em comum» política (é koinônia é politiké).1
Esse início da Política mostra bem a estreita dependência da filosofia política em relação à ética «pessoal» que Aristóteles elaborou. A insistência sobre o bem o manifesta claramente. E é a koinônia, o pôr em comum entre os homens, que realiza uma continuidade entre a ética e a política: a koinônia é o fundamento do amor de amizade e o fundamento das relações dos homens engajados na mesma cidade. Ora, a koinônia é de algum modo o bem vivido numa intersubjetividade. Portanto, ao olhar o bem objetivo e o bem vivido em ética e em política é que se poderá precisar filosoficamente a ordem que existe entre uma e outra. Desde o início, vemos que a cidade é para Aristóteles a comunidade perfeita, a única que se basta a si mesma e que pode propiciar ao homem seu desabrochar moral perfeito. Essa comunidade pressupõe outras comunidades, mais simples, enraizadas ainda mais profundamente na natureza humana e, por isso, mais necessárias, mais estáveis, porém menos perfeitas. É o dilema das realidades humanas: as exigências da simplicidade e as da perfeição não coincidem. A propósito das exigências comunitárias, esse dilema manifesta-se com uma 1 Política, I, 1, 1252 a 1-7.
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A FILOSOFIA HUMANA força muito particular. Na origem de toda comunidade humana, encontra-se a família, que é precisamente a comunidade mais simples, mais natural, da qual se pode dizer que ela é a «célula inicial» de todas as outras comunidades. Essa comunidade familiar, Aristóteles a define pelo seu próprio fim: a procriação dos filhos e sua educação. As famílias, ao se multiplicarem e se organizarem, formam a tribo. Da reunião e da organização das diversas tribos constitui-se a cidade. Mas entre essas diversas comunidades não há somente uma diferença quantitativa, de número. 1 Evidentemente elas se diferenciam em razão do número mais ou menos importante de seus membros, mas essa diversidade numérica oculta uma outra diversidade, diversidade qualitativa, provindo de sua estrutura, de sua função e de seu fim próprio. O que a família deve realizar, a cidade não o poderia; o que a cidade deve realizar, por seu lado, a família seria incapaz de fazê-lo. Com efeito, a família transmite a vida e a guarda; a cidade realiza o desabrochar do «bem viver» humano, em vista da felicidade humana com tudo o que a compõe.
1. Filosofia da família Afirmando, no início, que a cidade é a comunidade perfeita, constituída por uma colocação em comum em vista de um certo bem, Aristóteles precisa a via que se deve seguir para entrar no conhecimento filosófico da cidade: «Da mesma forma que nos outros domínios é necessário dividir o composto até aos incompostos (isto é, até às menores partes do todo), da mesma forma também, considerando a cidade a partir daquilo que a compõe, veremos melhor o que concerne essas coisas [as diversas autoridades]...» 2 «Portanto, se se olha a partir do ponto de partida (ex arkhés) as coisas que se desenvolveram naturalmente, como nos outros domínios, neste domínio também se terá o olhar mais justo ( kallist'an outô theoréseien)».3 A família aparece, então, como o elemento fundamental da cidade. Descobrimos aqui uma grande diferença entre Platão e Aristóteles. Para Platão a cidade funda-se sobre os indivíduos, que se unem em função de suas necessidades: «Ora, para mim, a cidade nasce, é certo, quando cada um de nós não consegue se bastar a si mesmo, mas tem necessidade de muitas coisas. Ou pensas que qualquer outro ponto de partida ( arkhé) funda a cidade?»4 Para Aristóteles, ao invés, é a família que é o fundamento da cidade. Por isso, a Política implica toda uma análise filosófica da família, extremamente interessante e 1 «Aqueles que acham que "político", "real", "chefe de família" e "senhor" são a mesma coisa não se exprimem
bem; com efeito, admitem que cada um deles não se diferencia senão pelo número mais ou menos grande, e não pela espécie; por exemplo, se é para com poucos, é um senhor; se é para com um maior número, um chefe de família; e se é para com um número ainda maior, um homem político ou um rei, como se uma grande família e uma pequena cidade não se diferenciassem...» ( Pol ., I, 1, 1252 a 7-13). 2 Ibid ., 1252 a 18-22. 3 Ibid ., 1252 a 24-26. 4 P LATÃO, República, II, 369 b. A seguida do livro II da República mostra o desenvolvimento e o aumento da cidade em função das necessidades crescentes do indivíduos.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES importante para se compreender bem o caráter próprio desta comunidade. Para o Filósofo, a família implica diversos tipos de relações: a relação do esposo e da esposa; a dos pais e dos filhos; a dos filhos entre si; a do senhor e do escravo, que é integrada ao interior da família como um de seus elementos constitutivos, para permitir a esta guardar sua independência no domínio dos bens materiais. Aristóteles toma a precaução de precisar que essa comunidade familiar não é convencional mas natural, em razão do seu próprio papel, de sua função própria na cidade, que é de transmitir a vida e a conservar, o que é uma exigência natural para lutar contra a desaparição dos indivíduos: Em primeiro lugar, é necessário que se unam dois a dois aqueles que são incapazes de existir um sem o outro, como o macho e a fêmea em vista da geração (isso não é a partir de uma escolha; mas, como entre os outros animais e as plantas, é natural tender a deixar após si um outro semelhante a si). É também aquele que por natureza comanda e aquele que por natureza é comandado, por causa da salvação. (...) Assim é que, a partir dessas duas colocações em comum, existe a «família primeira» (oikia prôté) (...). A colocação em comum constituída segundo a natureza (kata physin) para [a vida] de cada dia, é a família.1
É importante notar aqui que para Aristóteles é certamente o amor, a escolha amigável do esposo para com a esposa, que é primeiro na família. 2 E esse amor de amizade entre eles terá o caráter peculiar, assumindo o aspecto natural, de permitir a transmissão da vida da espécie. Quanto à relação dos pais e dos filhos, ela deve permitir a primeira educação. Aristóteles não reconhece que é pela obediência dos filhos em relação aos pais que esta obra pode realizarse? Enfim, o mais delicado e, a um só tempo, o mais original, é a relação do senhor e do escravo no próprio seio da família. Este aspecto foi freqüentemente muito mal interpretado: não se esqueceu o contexto histórico e sobretudo não se desconheceu a fina análise de Aristóteles? O senhor e o escravo Aristóteles afirma primeiro que essa relação é a «daquele que comanda por natureza e daquele que por natureza é comandado, por causa da salvação. Aquele que por sua inteligência é capaz de prever comanda por natureza, aquele que por seu corpo é capaz de 1 ARISTÓTELES , Pol ., I, 2, 1252 a 26 - 1252 b 14. 2 Aristóteles frisa na Ética a Nicômacos que existe
um verdadeiro amor de amizade entre o esposo e a esposa, um amor recíproco fundado sobre a virtude, portanto, uma amizade perfeita (ver op. cit., VIII, 14, 1162 a 16 seg.). Sobre as relações do esposo e da esposa, ver também A RISTÓTELES , Os econômicos, I, 3 e 4, 1343 b 7 1344 a 20.
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A FILOSOFIA HUMANA realizar ( poïein) essas coisas obedece e é escravo por natureza. É por causa disso que o mesmo interesse une o senhor e o escravo». 1 O que significa para Aristóteles ser «escravo por natureza»? Essa distinção entre o senhor e o escravo por natureza é vista na luz da que existe entre aquele que comanda e aquele que obedece, em vista duma cooperação na aquisição dos bens temporais ordenados à «salvação», à conservação. O escravo por natureza é precisamente aquele que tem necessidade de um outro para descobrir sua própria finalidade: é o homem que, em razão do próprio condicionamento da sua natureza humana, é incapaz de se dirigir a si mesmo, de organizar sua vida humana de maneira prudente; é aquele que é incapaz, em razão do condicionamento, de adquirir uma autonomia «pessoal». Dessa forma é do seu próprio interesse cooperar com alguém que é capaz de descobrir aquilo por quê o homem é feito. Para Aristóteles, é de fato na luz do cooperação do que comanda e do que obedece que se deve compreender essa distinção do senhor e do escravo. É a força dessa afirmação: «O mesmo interesse une senhor e escravo». É escravo por violência, ao contrário, o homem capaz por si mesmo de se dirigir e que, em razão de certas circunstâncias, é posto por violência sob a tutela de um outro. Com efeito, «o ser escravo» e «o escravo» são ditos em dois sentido; pois, existe uma espécie de escravo e de escravidão segundo a lei (kata nomon). Essa lei é uma sorte de arranjo segundo o qual se declara que o que é vencido na guerra pertence aos que vencem». 2 Se essa escravidão por violência é injusta, não pode mais haver, por isso mesmo, essa unidade na cooperação. Assim, Aristóteles afirma que uma má forma de comandar é nociva ao senhor e ao escravo. Com efeito, o mesmo interesse une a parte e o todo, o corpo e a alma; ora, o escravo é uma parte do senhor, tal uma parte animada do corpo, mas separada. É por isso também que existe entre o senhor e o escravo um interesse e um amor de amizade de um para com o outro, entre aqueles que são por natureza dignos de ser tais. Mas entre aqueles para quem não é dessa forma, mas segundo a lei e a violência, é todo o contrário.3
A escravidão por violência é injusta, pois essa sujeição desvia da sua própria finalidade aquele que está reduzido em escravidão. Vai contra a dignidade do homem. Para melhor compreender essa cooperação do senhor e do escravo por natureza, Aristóteles introduz esta distinção ao nível das ferramentas, entre ferramenta animada e ferramenta inanimada:
1 Pol ., I, 2, 1252 a 30-34. 2 Ibid ., 6, 1255 a 3-7. 3 Ibid ., 1255 b 9-15.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES A propriedade (ktésis) é uma parte da família e seu uso (ktétiké) uma parte da administração da família (com efeito, sem as coisas necessárias é impossível viver, e bem viver). E, da mesma forma que nas artes definidas será necessário comandar às ferramentas apropriadas, se se quer que a obra seja cumprida, assim é na administração da família; ora, entre as ferramentas, umas são inanimadas, outras animadas — tais, para o piloto o timão inanimado e o timoneiro animado (pois nas artes a ajuda está na espécie da ferramenta). Assim, o bem de que somos proprietários (ktéma) é um instrumento relativo à vida, e a propriedade (ktésis) é um conjunto de instrumentos. O escravo é um bem de propriedade animado e toda ajuda é como um instrumento precedendo os instrumentos (organon pro organôn). Com efeito, se cada uma das ferramentas fosse capaz, sobre uma ordem ou um pressentimento, de cumprir a obra que lhe é própria (...), então, os mestres de obra não precisariam de ajudas, nem os senhores de escravos. 1
Em seguida, Aristóteles introduz uma nova distinção entre instrumento de eficácia ( poïétikon) e instrumento na ordem da ação ( praktikon): As ferramentas propriamente ditas são ferramentas de eficácia, mas o bem de propriedade (ktéma) está na ordem da ação. Da lançadeira vem ( ginetai), com efeito, algo outro que seu uso, ao passo que do vestido e do leito usa-se somente. Ademais, uma vez que a realização ( poiésis) e a ação ( praxis) se diferenciam especificamente, e que uma e outra precisam de instrumentos, é necessário também que esses instrumentos tenham [entre si] a mesma diferença. Ora, a vida é ação, e não realização. É por isso que o escravo é um ajudante entre as coisas relativas à ação.2
Compreende-se essa distinção à luz do fato de a família implicar a propriedade e a aquisição de certos bens. O escravo por natureza não é visto em primeiro lugar como um instrumento de aquisição; é visto como um instrumento do ponto do vista da própria vida da família. É um instrumento moral e não de eficácia pura. Não há aqui uma espécie de contradição, visto que Aristóteles afirma ao início que a cooperação é em vista da aquisição das riquezas? Compreendamos bem que há dois aspectos na administração das riquezas. Em primeiro lugar, ela permanece uma obra humana, voluntária e, portanto, ética; mas não exclui uma certa eficácia na aquisição das riquezas temporais necessárias à vida da família. Não se pode separar esses dois pontos de vista; mas é preciso distingui-los, pois sua finalidade é diferente — é a diferença do agir ( praxis) e do fazer ( poiésis). A cooperação do escravo e do senhor está primeiramente no nível ético; ela introduz, portanto, o escravo no coração da 1 Ibid ., 4, 1253 b 23 - 1254 a 1. 2 Ibid ., 1254 a 1-8.
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A FILOSOFIA HUMANA família como comunidade humana ética. O senhor não pode usar o escravo senão amando-o, respeitando sua dignidade de homem moral, e é assim que o escravo é um instrumento na ordem da ação e não somente na ordem da realização eficaz. Vê-se o quanto tudo isso é difícil para nós que olhamos freqüentemente a aquisição da riqueza do ponto de vista da eficácia, e não mais do ponto de vista humano. O primado da ética sobre a eficácia manifesta-se plenamente na cooperação do senhor e do escravo... Para manifestar bem isso, Aristóteles usa a analogia dos vínculos da alma e do corpo: O vivente, primeiramente, é composto de uma alma e de um corpo: uma comanda por natureza, e o outro é comandado. Mas é preciso examinar o que é por natureza antes naqueles que são segundo a natureza (ekhousi kata physin), e não naqueles que são degradados. Por isso também é que se deve olhar o homem disposto da melhor forma quanto ao corpo e quanto à alma, no qual isso é evidente. Nos homens viciosos, com efeito, ou acostumados a agir de maneira viciosa, o corpo parecerá freqüentemente comandar à alma por causa de um hábito mau ou que está fora da natureza. Assim, é primeiro no vivente, como dizemos, que se pode ver a autoridade de um senhor e a autoridade política. Com efeito, a alma comanda ao corpo de uma autoridade de senhor, e a inteligência ao desejo de uma autoridade política e real. Aqui é manifesto que é natural e útil ao corpo ser comandado pela alma (hupo tés psykhés), e à parte passional sê-lo pela inteligência e pela parte que possui a razão; mas, da igualdade ou da inversão [das suas relações], vem o que é nocivo para todos. 1
O corpo é substancialmente unido à alma e não um instrumento de eficácia: a alma e o corpo têm mesma finalidade. Mas para ter essa mesma finalidade, é preciso que o corpo seja submisso à alma. Essa analogia corrige a primeira (a do instrumento) que por si mesma correria o risco de sempre nos levar a não ver senão a eficácia numa certa exterioridade — a do instrumento com relação à causa principal. Aristóteles toma essa nova analogia para nos fazer entender a unidade de vida e a unidade de finalidade que existe entre o senhor e o escravo por natureza. Isso nos faz compreender bem como, entre o senhor e o escravo, pode estabelecer-se um verdadeiro amor de amizade. Talvez seja aqui que se vê melhor a vitória do amor sobre o condicionamento. Os condicionamentos do senhor e do escravo são extremos e aparecem contrários: um é livre e o outro, por natureza, não o é. O amor de amizade realiza entre eles uma unidade de vida. E quando o senhor usa o escravo para cooperar com ele, a eficácia dessa cooperação se torna um meio, uma disposição à unidade no amor.
1 Pol ., I, 5, 1254 a 34 - 1254 b 9.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Isso faz compreender também como para Aristóteles a cooperação do senhor e do escravo tende a libertar o escravo de sua própria escravidão. 1 Aqui se vê toda a confiança de Aristóteles para com a autoridade do senhor, para com sua grandeza de alma. Será que esta grandeza de alma é possível fora da contemplação? Com efeito, é preciso que o senhor coopere com o escravo — que se torna seu amigo — num desinteresse total; o escravo, ao tornar-se livre, será mais seu amigo, e se tornará, por isso mesmo, melhor servidor. Isso realiza-se no interior do próprio meio familiar, no qual o amor do esposo e da esposa é suficientemente forte para permitir o constante primado do amor de benevolência sobre toda monopolização, sobre toda possessão da propriedade. Isso não deve também colocar em plena luz o que Aristóteles diz da família como lugar próprio do direito de propriedade? 2 Com efeito, é certamente para com o escravo por natureza que se descobre o aspecto mais forte (maxime tale) do direito de propriedade nessa filosofia humana da família.
2. A cidade, comunidade perfeita Se a família é o fundamento, no entanto, não é o que há de último no engajamento comunitário do homem. O compromisso último é a respeito da cidade, com a qual estamos na presença do aspecto político propriamente dito: A colocação em comum a partir de várias aldeias é a cidade perfeita (teleios), então, atingindo o limite da «autarcia», por assim dizer; formada em vista do viver, ela existe, de certo, em vista do bem viver. Portanto, toda cidade existe por natureza, pois também as primeiras colocações em comum. Com efeito, ela é o fim (telos) daquelas; ora, a natureza é fim. Com efeito, dizemos que a natureza de cada coisa é tal que é cada coisa cujo devir perveio ao seu fim, por exemplo um homem, um cavalo, uma família. Ademais, o «aquilo em vista de que» e o fim é o que é melhor. Ora, a autarcia é um fim e o que há de melhor. A partir de tudo isso, é manifesto que a cidade pertence às realidades que existem por natureza e que o homem é por natureza um animal político; e aquele que é sem cidade, por natureza (dia physin) e não por acaso, é ou aviltado, ou superior ao homem. 3
As relações particulares que unem os membros dessa comunidade perfeita serão chamadas de «políticas» na medida em que buscam a realizar o bem viver humano de todos, 1 Ver ibid ., 13, 1259 b 21 seg. 2 «É evidente que na administração
da família, dá-se mais interesse aos homens do que à possessão dos bens inanimados, à sua excelência mais do que à dos bens que chamamos de riqueza, e à dos homens livres mais do que à dos escravos» (ibid ., 13, 1259 b 18-21). 3 Ibid ., I, 2, 1252 b 27 - 1253 a 4.
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A FILOSOFIA HUMANA como membros dessa comunidade perfeita. Essas relações têm o fato particular de implicarem sempre várias ordens: aquela das partes entre si, aquela das partes a respeito do todo, aquela do todo a respeito de cada parte, uma vez que a comunidade perfeita, por definição, é um verdadeiro «todo», um corpo: Portanto, por natureza a cidade é anterior à família e a cada um de nós. O todo, com efeito, é necessariamente anterior à parte, uma vez [o corpo] inteiro sendo destruído, não haverá mais pé nem mão, a não ser por homonimia, como se fala de uma mão de pedra; assim será, com efeito, [a mão] uma vez morta. Todas as coisas se definem pela obra e pela potência; por conseguinte, desde que elas não são tais, não se diz que elas são as mesmas, mas que têm o mesmo nome. Assim, portanto, é evidente que a cidade existe por natureza e que é anterior a cada um. Com efeito, si cada um separadamente não pode se bastar a si mesmo, será semelhante, como para as outras coisas a uma parte relativa ao todo; aquele que é incapaz de pôr em comum ou que não tem nenhuma necessidade disso, porque se basta a si mesmo, não é uma parte da cidade. Ele é quer uma besta, quer um deus. 1
Evidentemente, é a ordem das partes ao todo que caracteriza as relações políticas no que elas têm de mais próprio. E, já que essas relações são recíprocas, é ainda mais exato dizer que é a relação do todo às partes que caracteriza formalmente as relações políticas como tais. É à luz da cidade como «pôr em comum perfeito», finalizando na ordem política todas as outras comunidades, que podemos compreender a crítica tão acerba e tão penetrante que Aristóteles faz da República de Platão, no início do livro II: Aristóteles não pode admitir que a finalidade da política seja a unidade da cidade, e não o bem comum. Se no início da Ética a Nicômacos Aristóteles critica Platão, mostrando que o Bem-em-si não pode ser a finalidade própria da ação ética do homem, na Política, ele critica o papel próprio do Uno-em-si com relação à ação política do homem: Mas, de tudo quanto pode ser posto em comum, será que é melhor uma cidade, que deve ser bem (kalôs) administrada, colocar todas as coisas em comum, ou será que é melhor ela colocar em comum certas coisas e não outras? Pode-se conceber, com efeito, que os cidadãos ponham em comum também os filhos, as mulheres e as posses, como na República de Platão. Sócrates diz aí, com efeito, que os filhos, as mulheres e as posses devem ser comuns. Sobre este ponto, portanto, devemos ter por melhor a maneira atual ou aquilo que seria segundo a lei descrita na República? Que as mulheres sejam comuns a todos implica, de certo, muitas outras dificuldades; e a 1 Pol ., I, 2, 1253 a 19-29.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES causa pela qual Sócrates pretende que se deve impor pela lei essa maneira de viver não aparece provir de seus argumentos. Ademais, para atingir o fim, que segundo ele deve ser o da cidade, o que acaba de ser formulado é impossível [de realizar]; e a maneira de analisá-lo não é determinada de forma alguma. De certo, falo de que «a cidade toda inteira una no grau máximo é o melhor». Com efeito, é o que Sócrates toma como base.1
Portanto, em filosofia prática Aristóteles critica os dois grandes cumes da filosofia da Platão, o Uno e o Bem. São duas considerações bastante diferentes que põe em plena luz as duas modalidades do bem humano: um bem humano absoluto, e um bem humano imanente à comunidade humana. Para Aristóteles, finalizar a ação política pelo Uno é destruir radicalmente o que caracteriza propriamente a ação política, é recolocar o homem numa situação de indivíduo: De certo, é manifesto que assim progredindo e tornando-se mais una, a cidade não existirá mais. Com efeito, a cidade é por natureza uma multidão. Tornada mais una, de cidade será família e de família um homem. Diríamos, com efeito, que a família é mais una que a cidade e [o homem] mais uno que a família. Dessa forma, se fosse possível a alguém assim agir, não deveria fazê-lo; pois se destruiria a cidade.2
Essa maneira de ver também vai contra a autarcia da cidade: É manifesto também, de um outro ponto de vista, que buscar a unidade da cidade não é o melhor. Com efeito, uma família basta-se mais a si mesma que um único homem, e uma cidade mais do que uma família; assim, aqueles que querem ser uma cidade o são quando a colocação em comum da multidão chega a bastar-se a si mesma. Portanto, se buscamos mais o que se basta mais a si mesmo, também procuramos mais o que é menos uno do que aquilo que o é mais. 3
Aristóteles mostra ainda que a posição de Platão conduz de fato a um egocentrismo: «Mas se verdadeiramente o bem melhor é que a colocação em comum seja una ao sumo grau, isso não se torna manifesto nem provado pelo fato de dizer todos juntos «o meu» e «não o meu» — com efeito, é isso que Sócrates estima ser o sinal da unidade perfeita de uma cidade».4 Ademais, «o que é dito tem ainda um outro inconveniente; com efeito, toma-se muito pouco cuidado do que é comum ao maior número; cuida-se ao sumo grau dos seus bens 1 Ibid ., II, 1-2, 1261 a 2-16. 2 Ibid ., 1261 a 16-22. 3 Ibid ., 1261 b 10-15. 4 Ibid ., 3, 1261 b 16-20.
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A FILOSOFIA HUMANA próprios, menos dos que são comuns, ou somente na medida em que se aplicam a cada um». 1 Aristóteles acaba a crítica da colocação total em comum preconizada por Platão por numerosos argumentos e conclui assim: Em breve, por causa de tal lei, sobrevém necessariamente o contrário do que as leis corretamente estabelecidas produziriam como causas, e o contrário da causa pela qual Sócrates pensa que é preciso regular o tocante aos filhos e às mulheres. Com efeito, estimamos que o amor de amizade é o maior dos bens para as cidades — pois é por ele que se evita as dissenções. E Sócrates louva ao máximo a unidade da cidade; ora, isso parece ser a obra do amor de amizade, como ele mesmo o declara. Da mesma forma, sabemos que, nos discursos sobre o amor, Aristófanes diz que aqueles que se amam, por causa da veemência do seu amor, desejam fundir-se juntos e de sois seres tornar-se um e outro um só ser; nesse caso, é necessário que os dois ou um dos dois desapareçam. Ao contrário, nessa cidade, por causa de tal colocação em comum, é necessário que o amor de amizade se dissolva e que um pai não possa dizer: «meu filho», ou um filho: «meu pai». Com efeito, absolutamente como um pouco de vinho doce mesclado com muita água produz uma mistura sem sabor, assim ocorre que desapareça esse sentimento de parentesco mútuo que esses nomes implicam; numa tal constituição, não é mais necessário preocupar-se uns dos outros como um pai em relação ao seu filho ou um filho em relação a seu pai ou dos irmãos uns para com os outros. Com efeito, há duas coisas que, antes de mais nada, produzem para os homens o interesse e o amor de amizade: o que pertence em próprio (to idion) e o que eles têm em afeição (to agapéton). Ora, nem um nem o outro tem lugar em meio aos cidadãos de tal cidade.2
Nessas críticas sucessivas de Aristóteles a respeito de Platão, descobre-se a cólera do filósofo de filosofia humana, que quer salvar o homem do naufrágio para o qual conduz fatalmente uma filosofia política toda dirigida para a maior unidade da cidade — implicando um comunismo integral entre os homens e as mulheres que destrói completamente a família. Essa crítica põe em plena luz a importância que Aristóteles outorga à família como fundamento da cidade e da vida política e, por isso mesmo, o dever primordial que tem todo chefe de governo de manter o senso pleno da responsabilidade humana da família. As diversas críticas de Aristóteles manifestam bem quais são os pontos que ele quer salvar. Se Aristóteles frente a Platão quer colocar em plena luz a originalidade própria da família, comunidade fundamental da cidade, no entanto, não está menos atento em analisar o 1 Ibid ., 1261 b 32-35. 2 Pol ., II, 4, 1262 b 3-24.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES que caracteriza o cidadão como tal. O cidadão é relativo à cidade na qual se encontra. É parte dessa cidade e é ligado aos outros cidadãos que fazem parte dela; é membro de uma multidão organizada num todo político. E essa organização mesma depende da forma do governo: Uma vez que a cidade pertence às realidades compostas como qualquer todo composto de várias partes, é preciso evidentemente nos interrogarmos sobre o cidadão; com efeito, a cidade é uma multidão de cidadãos. Portanto, é preciso procurar quem deve ser chamado de cidadão e o que é o cidadão. Com efeito, o cidadão freqüentemente é contestado, pois todos não concordam em dizer que o mesmo homem é um cidadão: alguém que é um cidadão numa democracia, com frequência não o é numa oligarquia.1
Em seguida, Aristóteles se questiona para saber se a virtude do cidadão coincide com a do homem tomado na sua ação pessoal. Há coincidência perfeita entre o cuidado ético do homem frente à sua finalidade própria e a intenção do cidadão engajado no bem viver da cidade? A prudência pessoal do homem coincide com a prudência política? Da mesma forma que o marinheiro é um dos que vivem em comum, assim dizemos do cidadão. Embora a capacidade (dynamis) dos marinheiros os torne diferentes (com efeito, um é remador, o outro piloto, o outro timoneiro, o outro ainda tendo uma denominação como essas) e embora seja evidente que a inteligibilidade própria mais exata de cada um seja aquela de [sua] excelência, algo comum também será aplicado a todos da mesma forma. Com efeito, a segurança ( sôtéria) da navegação é obra de todos, pois cada um dos navegantes a deseja. É da mesma forma também para os cidadãos: embora sejam diferentes, a salvação é obra da comunidade; e a colocação em comum é a constituição. É por causa disso que a excelência do cidadão é necessariamente relativa à constituição. Ora, já que existem várias formas de constituições, é evidente que não pode existir para o bom cidadão uma só virtude perfeita. E dizemos que o homem bom o é segundo uma só virtude, a virtude perfeita. Assim é manifesto, portanto, que se pode ser um bom cidadão sem possuir a virtude segundo a qual se é um homem bom.2
Aristóteles precisa seu pensamento por outros argumentos e conclui assim: «Conforme tudo isso, podemos ver manifestamente se a excelência do homem bom e a do cidadão virtuoso são a mesma ou diferentes, e como elas são a mesma e como elas são diferentes». 3
1 Ibid ., III, 1, 1274 b 38 - 1275 a 5. 2 Ibid ., 4, 1276 b 20-34. 3 Ibid ., 1277 b 30-32.
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A FILOSOFIA HUMANA O estudo do cidadão e de sua excelência, de sua perfeição, de sua bondade moral conduz assim necessariamente Aristóteles a precisar as diversas formas de governo, uma vez que segundo sua doutrina, é precisamente o governo, representado no chefe, que deve conhecer praticamente o bem comum da cidade, defendê-lo, procurar realizá-lo e aumentá-lo. Aquele que governa com eqüidade é por definição como que uma realização vivente de todo o bem comum da cidade. Cada uma das formas boas de governo realizará da sua forma esse ideal, colocando em luz tal ou qual de seus aspectos, enquanto que cada forma má o distorcerá, negligenciando tal ou qual de suas perfeições. Assim é que a forma de governo monárquico realiza o mais perfeitamente a unidade da cidade, a do governo aristocrático sua riqueza e sua plenitude, a do governo democrático sua liberdade e sua independência. O governo mais perfeito será, portanto, aquele que assumir elementos das diversas formas boas de governo numa unidade mais elevada. Reencontra-se aí o que Aristóteles diz da perfeição próprio do misto. Ao oposto dos bons governos, Aristóteles estuda os desvios das formas de governo, a tirania, a oligarquia, a demagogia. São como que caricaturas: a do excesso de unidade na tirania; a do primado excessivo das riquezas na oligarquia; enfim, a do excesso de busca de liberdade na demagogia. 1 Aristóteles insiste sobre essas caricaturas do governo para denunciar a perversidade delas: a responsabilidade da autoridade desaparece, completamente absorvida pelo poder. Isso é sobretudo manifesto na tirania. Esses vários governos não podem governar senão estabelecendo leis. Então, não se trata de procurar quais são as leis mais perfeitas, mas quais são as leis melhores, capazes de ser recebidas e aceitas pelos cidadãos. As melhores leis tornam-se ineficazes se elas não podem ser vivenciadas pelos cidadãos... Portanto, o legislador, estabelecendo a lei, deve levar em conta as condições peculiares dos cidadãos a quem se dirige, mas sem legitimar o condicionamento destes; do contrário, o legislador cooperaria com a fraqueza do homem, ao passo que deve ajudá-lo a descobrir sua verdadeira finalidade para sair dessa fraqueza. A propósito das leis, encontramos de novo aí o que Aristóteles estabeleceu em ética a respeito das virtudes: as virtudes são cumes entre dois extremos passionais. A lei boa deve ser um cume: deve lembrar a finalidade, levando em conta o condicionamento e assumindo-o. Então, descobrimos a verdadeira prudência daquele que deve governar. Com efeito, as leis são feitas para ajudar os cidadãos a levar uma vida perfeitamente humana. Devem ser guardiãs da virtude humana, continuando e completando no nível político o papel da educação familiar: «Aqueles que se preocupam com uma boa legislação estão atentos à virtude e ao vício na cidade.»2 Portanto, pode-se dizer que as relações políticas que unem o «todo» às «partes», as «partes» ao «todo» e as partes entre si, devem formalmente ser relações de justiça; justiça distributiva, justiça legal e justiça comutativa, porque se fundam imediatamente sobre as leis 1 Cf. ibid ., III, 8, 1279 b 10 seg. 2 Pol . III, 9, 1280 b 5-6.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES e são, de alguma forma, constituídas por elas. Mas se essas relações, na sua estrutura essencial, são relações de justiça, no entanto, devem desabrochar em relações de amizade, em verdadeira concórdia. Na sua Ética a Nicômacos, Aristóteles já havia precisado como a colocação em comum (koinônia) é de alguma forma o fundamento comum das relações de justiça e de amizade. A «colocação em comum» perfeita no nível político que é a cidade é, portanto, o lugar próprio das relações de justiça. Mas essas relações requerem o desabrochar último da amizade política, a concórdia: sem ela, essas relações de justiça permaneceriam inacabadas e imperfeitas. Pela sua natureza, a justiça não é o vínculo mais perfeito que possa unir os homens; ela requer completar-se em amizade. Com efeito, a justiça não olha senão o direito estrito do outro, ao passo que a amizade olha o outro como amigo. A justiça não estabelece senão vínculos parciais e limitados entre o homens, mensurando certas das suas operações; ao contrário, a amizade une-os na própria vida pessoal. Eis por que os vínculos estritos de justiça não podem bastar ao desabrochar de uma comunidade. Isso nos faz compreender como, na realidade, para Aristóteles o bem comum da cidade, que é seu fim imanente e imediato, no ápice não é outro senão a concórdia, a paz entre os cidadãos. Com efeito, o bem comum da cidade é, a um só tempo, o bem de todos e o bem de cada um: abrange, de uma só vez, os bens exteriores e sensíveis, as riquezas, e os bens interiores da alma, isto é, as virtudes. Ora, a amizade política implica esses vários bens, exercendo-os perfeitamente, pois ela é, a um só tempo, o bem de todos e o bem de cada qual, o bem exterior e o bem interior. O amigo não é a maior de nossas riquezas, sendo ele um outro nós mesmos? A concórdia, portanto, é certamente o fim próprio da cidade, o que os magistrados e os chefes do governo devem procurar antes de mais nada. Ao invés, o mal mais terrível para uma cidade é a discórdia: esta torna a cidade «vã», incapaz de alcançar seu fim. A diferença entre a doutrina política de Aristóteles e a de Platão aparece, então, com evidência. Como salientamos, o alvo último da política era para Platão a unidade absoluta da cidade: o filósofo, chefe da cidade contemplando o Bem-em-si, deve por todos os meios buscar realizar a justiça nos seus sujeitos. Para Platão o Bem-em-si, e seu reflexo na cidade (a justiça), é verdadeiramente o fim próprio da cidade e seu modelo (causalidade exemplar e final identificam-se). Mas, subjacente a seu ideal de unidade absoluta, permanece uma irredutível diversidade, que provém da composição diferente dos corpos. O dualismo platônico — causa formal-exemplar e causa material errante — reencontra-se, portanto, no próprio seio de sua filosofia política. Aristóteles, pela amizade, mantém a união na diversidade: o fim próprio da cidade é realizar uma amizade entre os cidadãos, logo, uma união vivente e livre, e não uma unidade ideal imposta. Tender para tal unidade desembocaria em querer a própria destruição da cidade; esta, como toda comunidade, não pode ter senão uma unidade de ordem, portanto, uma unidade que supõe a diversidade. Essa divergência na maneira de determinar o alvo da cidade encontra-se também, nós o notamos, a respeito de sua origem. Para Platão é a utilidade e a beleza que explicam e 94
A FILOSOFIA HUMANA justificam a cidade. Enquanto possui um corpo, o homem é um animal gregário que tem necessidade dos seus semelhantes; como filósofo, ao contrário, o homem é um contemplativo, capaz de fazer uma cidade bela sob o modelo do Bem-em-si contemplado. Portanto, a cidade explica-se por um lado como um rebanho ou uma colmeia, por outro lado como uma obra de arte, uma realização bela. Sobre os agrupamentos de animais, ela tem a superioridade de ter à sua cabeça um filósofo, um contemplativo que a cria. É uma «colmeia humana» que se cria em beleza, ao imitar o Bem-em-si. Para Aristóteles não é a utilidade que justifica a cidade, mas o próprio homem, para «viver bem», humanamente — o homem é por natureza um animal político. É por isso que a cidade, desde a origem, diferencia-se dos agrupamentos animais. Enfim, é preciso frisar que Aristóteles outorga na Política um grande lugar à educação, a fim de melhor especificar o que é a cidade, a comunidade política, por sua obra própria.1 Bem se vê o quanto, para Aristóteles, o estudo da política não é de modo algum acidental, marginal; é verdadeiramente essencial à sua filosofia humana. Entretanto, não poderá ser compreendida perfeitamente senão à luz de sua ética propriamente dita: esta precisa as finalidades próprias do homem; a política precisa a maneira concreta de alcançar essa finalidade. Para Aristóteles o homem é um ser essencialmente educável, mas não é somente o fruto de sua educação. Existe no homem uma natureza própria, que reclama a descoberta de sua finalidade própria, o que mantém nele uma autonomia radical com respeito à política; no entanto, deve reconhecer que, nascido numa família e na fragilidade duma criança, não pode atingir perfeitamente suas diversas finalidades a não ser ao aceitar esse condicionamento de ser parte de uma família e parte da cidade.
1 Pol ., VII, 13 seg. e VIII.
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C. FILOSOFIA DA ATIVIDADE ARTÍSTICA (Filosofia do fazer)
Aristóteles não nos deu uma filosofia completa do desenvolvimento humano artístico. Mas é fácil compreender que o estudo da atividade da realização artística está sempre presente na elaboração da filosofia ética, e muito mais ainda na da filosofia política: Aristóteles não cessa, com efeito, de usar analogias tomadas no domínio da arte, da atividade artística, para nos ajudar a descobrir o ponto de vista próprio da ética e da política. E poderemos fazer, de resto, observações análogas a respeito da filosofia teorética. Isso mostra bem que, para Aristóteles, o estudo da atividade artística está como que subjacente a todas as análises filosóficas. Ainda é um patrimônio recebido de Platão? Com efeito, é-se sempre «tentado» a olhar a filosofia de Platão como uma meta-estética: a eidos desempenha um papel capital na sua filosofia; ademais, a causalidade exemplar, tão importante na filosofia da arte, não é para ele a causalidade primordial, que absorve todas as outras e está presente em cada uma delas? Não é isso que dá à filosofia de Platão essa sedução tão surpreendente? Reconhecendo a importância da atividade artística na vida humana em razão de sua conaturalidade com o homem, Aristóteles mantém, no entanto, com uma grande nitidez, a distinção da descoberta da finalidade do homem e da atividade artística. É por causa disso que sua filosofia, embora a utilize constantemente, não é determinada pela experiência da atividade artística. Graças ao sentido tão profundo que tem da analogia, Aristóteles pode afirmar que a atividade artística é primeira na ordem do devir, na ordem genética, mas que não o é na ordem de perfeição. A atividade artística, com efeito, não pode nos fazer descobrir a finalidade do homem no que ela tem de verdadeiramente próprio: o amor de amizade e a contemplação. Seria muito interessante recolher aqui todos os elementos de uma análise filosófica da atividade artística que estão espalhados nas diversas obras de Aristóteles, para elaborar uma espécie de filosofia do fazer (do poiein), o que ele não fez. Com efeito, se «contentou» em elaborar na Poética o estudo filosófico da tragédia e da epopéia que representam para ele o que há de mais perfeito na atividade artística. Também elaborou um tratado de Retórica que está de certo modo no extremo oposto: a Retórica é o estudo do discurso humano todo impregnado de afetividade; logo, antes de mais nada, é o estudo da persuasão, a serviço da política. A tragédia e a epopéia são de fato o cume de uma arte completamente desinteressada, que desempenha um papel importante na educação, pela purificação das paixões e do imaginário que elas realizam:
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
A tragédia é a imitação de uma ação elevada e última (teleia), tendo uma certa grandeza, numa linguagem elevada de modo diferente para cada uma das espécies, segundo as partes, [imitação] de personagens em ação e não por meio de um relato, e que cumpre, mediante a piedade e o temor, a purificação (katharsis) de tais paixões.1
Enquanto a retórica tem um alvo muito mais utilitário, pela política, a arte da tragédia e da epopéia é muito mais desinteressada e olha muito mais o homem, na sua perfeição, no seu próprio desabrochar pessoal e político. A Retórica, de certo, é o estudo filosófico de uma arte, mas de uma arte muito especial, próxima à dialética.2 Nesta matéria, o mérito de Aristóteles é de ter sabido distinguir nitidamente a política, que permanece na ordem moral, da retórica que é essencialmente uma arte. Os sofistas tinham identificado as duas e Platão, depois de ter derrubado essa retórica dos sofistas sob a influência de Sócrates, tentara reabilitá-la na filosofia. Por sua vez, Aristóteles não rejeita a retórica de persuasão — sem, contudo, identificá-la àquela dos sofistas. Mas não aceita a «retórica de verdade» de Platão; esta é indigna da pesquisa filosófica propriamente dita, pois permanece na opinião. Ela é uma servidora, não lhe convém reinar: é incapaz de atingir os princípios. Para melhor compreender o lugar da filosofia ética e da filosofia política, não é inútil precisar o que Aristóteles entende por «arte» (techné). É um habitus que qualifica nossa inteligência prática em vista da realização de uma obra: «A arte é um habitus (hexis tis) realizador ( poïétiké), implicando uma idéia verdadeira (meta logou aléthous)».3 Portanto, para Aristóteles a arte é algo adquirido: não nascemos artistas, tornamo-nos artistas. Embora certas disposições naturais sejam necessárias à sua aquisição, o habitus de arte é fruto de nossa atividade humana voluntária: é preciso trabalhar para adquiri-lo. O que o caracteriza é ser todo tendido para uma obra com a ajuda de uma determinada «idéia» ( meta logou).4 É um habitus que afeta o intelecto prático. Portanto, a arte permite à inteligência produzir, ter uma fecundidade. Pela arte, o homem se torna capaz de transformar seu meio físico natural em um meio que reflete aquilo que ele pensa, o que ele ama, o que lhe é útil. Pelas virtudes éticas, o homem aperfeiçoa-se, permitindo à sua inteligência irradiar sobre suas diversas atividades, seus vários apetites; as virtudes lhe permitem unir-se em laços de amor de amizade com os semelhantes e tornar seu meio amigável e humano. Pelas virtudes 1 ARISTÓTELES , Poética, 6, 1449 b 24-28. 2 «A retórica é correlativa (antistrofos) à dialética;
uma e outra, com efeito, concernem a questões que são de certo modo da competência comum de todos, e de modo algum de uma ciência delimitada» ( Retórica, 1, 1354 a 1-2). 3 Ét. Nic., VI, 4, 1140 a 20-21. 4 Ibid . Cf. Metafísica, A, 1, 981 a 29-30. : «Os homens de arte sabem o porquê e a causa»; Partes dos Animais, I, 1, 640 a 31: «A arte é a idéia da obra ( logos tou ergou): a idéia que existe sem matéria».
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A FILOSOFIA HUMANA intelectuais de arte, o homem pode transformar o meio físico, adaptá-lo a si para melhor utilizá-lo, para melhor gozar dele; também pode agir sobre o meio humano político em que se encontra, para ajudar seus semelhantes a se tornarem mais fortes física e moralmente, a viverem numa concórdia mais perfeita, para ajudar seus semelhantes a elevarem-se até uma certa contemplação estética. Para Aristóteles, com efeito, é preciso distinguir bem dois tipos de arte: as artes de imitação — tais como a poesia, a tragédia, a pintura, a música, a dança — , e as artes de utilidade — tais como a arquitetura, a arte de construir navios, a arte da medicina... 1 De resto, seria preciso distinguir entre essas artes «úteis» aquelas que fazem uma «ferramenta» para se usar dela, e aquelas que são a serviço da natureza vivente para ajudá-la a desabrochar, para remediar seus defeitos. Quando o Filósofo fala de «artes de imitação» distintas das artes «úteis», que essa expressão não nos induza ao erro. Não se trata de copiar ou de reproduzir a natureza. Quando Aristóteles afirma, com efeito, que «a arte imita a natureza», 2 ele quer dizer que a arte age como a natureza: é um princípio de movimento, 3 de realização, que tem sua determinação própria, seu fim próprio, seus meios próprios. Em outras palavras, a arte implica toda uma «técnica», orientada conscientemente para uma obra precisa a realizar. O Filósofo, de resto, precisa bem que a arte «completa e imita a natureza»: a arte realiza o que a natureza não pode fazer, pois a natureza do universo físico não tem esse concurso imanente e imediato da inteligência. A produção artística é uma obra da inteligência. Por isso a arte pode expressar e dizer uma certa perfeição que a natureza, na maioria dos casos, não pode exprimir. Aristóteles o mostra sobretudo com respeito ao poeta, pois talvez seja na poesia, na tragédia, que isso se manifesta melhor. O poeta deve expressar, antes de mais nada, o que deveria ser a vida humana, no entanto, permanecendo no verosímil. Portanto, é de fato o tipo ideal humano que o poeta trágico procura representar, mas a um só tempo muito individualizado, muito concreto: ele o representa nas suas ações, nas suas paixões. Se toda arte imita a natureza, a arte mais perfeita, mais livre das contingências físicas, nomear-se-á de maneira justa arte de imitação. Dessa forma, indica-se como a produção artística explicita diversas virtualidades da natureza. Essas virtualidades estão escondidas ao nosso olhar humano, mas o artista as capta e as explicita. E se essa produção é a mais nobre (a poesia), ela deve explicitar as virtualidades da natureza mais nobre: as da natureza humana, as das operações da vida humana. Essa produção joga uma luz nova, forte, sobre a realidade humana, manifestando 1 Ver
por exemplo Met ., A, 1, 981 b 17 seg.: «Quando muitas artes foram descobertas, umas ordenadas às necessidades [da vida], outras ao lazer, sempre julgaram mais sábios aqueles [que descobriram] as últimas, devido ao fato que suas ciências não eram ordenadas a uma utilidade». 2 «A arte, por um lado, completa o que a natureza é impotente a efetuar, por outro lado a imita» ( Física, II, 8 199 a 15-17); cf. Partes dos Animais, I, 1, 640 a 27. 3 «A arte toda inteira concerne um devir, e aplicar-se a uma arte é considerar como nasce uma coisa em meio àquelas que implicam o ser e o não-ser, estando o princípio naquele que produz e não na coisa produzida» ( Ét., Nic., VI, 4, 1140 a 10-14).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES essas virtualidades possíveis. Essa produção realiza, portanto, uma obra que é como o que há de mais perfeito a contemplar na ordem de nossos conhecimentos artísticos. E essa contemplação é fonte de prazer. 1 Por fim, é preciso tentar especificar as relações que Aristóteles estabelece entre a atividade artística, a atividade ética e a contemplação. De imediato, para evitar equívocos, distinguamos as relações entre a própria obra e a atividade moral, e aquelas entre a atividade do artista fazendo sua obra e sua atividade moral. Se a obra é fruto de uma arte útil, é feita para ser utilizada. O uso desta obra dependerá da prudência: segundo a Ética a Nicômacos, isso não implica dúvida alguma. Se a obra é fruto de uma arte de imitação, não está mais na ordem do útil; não pode ser utilizada, mas contemplada. Essa contemplação não é aquela que compete à sabedoria mas à arte, ou a disposições de mesma ordem pertencendo ao intelecto prático. Essa contemplação poderá ter certas repercussões sobre nossa vida afetiva e sobre nossa vida moral. É essa katharsis de que fala Aristóteles a propósito da tragédia: ela produz uma espécie de apaziguamento, de alívio, de purificação, como a própria música pode nos relaxar e produzir uma verdadeira relaxação, permitindo em seguida uma retomada mais virtuosa de nossas atividade. Mas não se deve dizer, contudo, que essa contemplação é ordenada a um alvo imediatamente moral. Essa katharsis é antes uma conseqüência feliz e benfazeja. Isso não impede que se possa verdadeiramente usar essas artes de imitação numa intenção moral. Pode-se usá-las para educar, para facilitar a aquisição das virtudes: por exemplo, os cantos de «entusiasmo» ajudam o exercício da coragem. Mas isso não quer dizer que toda obra de arte de imitação deva ter imediatamente e diretamente um alvo deste tipo... Se agora consideramos não mais a obra, mas antes a própria atividade artística relativamente à atividade ética, é evidente que a atividade artística como tal possui sua natureza própria, independente da ação moral. A maneira como Aristóteles distingue, na Ética a Nicômacos, o habitus de arte da prudência não deixa nenhuma dúvida a esse respeito, precisamente porque essas atividades têm fins próprios que não são de mesma natureza. Isso não impede o artista de permanecer um homem quando exerce sua arte; e se esta possui exigências próprias, sua estrutura original, o seu uso não pode escapar à prudência. É por isso que a prudência política deverá vigiar esse uso. Portanto, Aristóteles mantém à arte sua autonomia própria em relação à prudência e mantém um certo controle desta a respeito do próprio exercício da arte. Para isso é preciso bem distinguir o ponto de vista do exercício do ponto de vista do fim próprio e da estrutura essencial.
1
Na Ética a Nicômacos (III, 13, 1118 a 1 seg.), Aristóteles fala do prazer que propiciam a pintura e a música para distingui-lo do prazer que a virtude de temperança modera.
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A FILOSOFIA HUMANA Pela concepção da arte que expõe nas suas várias obras, Aristóteles pode dar conta do que havia de justo em certas afirmações dos sofistas e em certas tendências de Platão e dos Pitagóricos. A retórica para o Filósofo é uma arte humana, a arte de persuadir, de apresentar bem o que queremos dizer, de apresentá-lo de modo agradável para atrair a atenção e cativar a benevolência: a política pode se servir desta arte em vista de seus próprios fins. O erro dos sofistas é ter considerado que essa maneira de bem falar tinha valor absoluto e ter reduzido a política a uma simples retórica. No entanto, tinham compreendido bem os vínculos estreitos que unem retórica e política. Aristóteles não esquece isso, mas especifica com nitidez as funções respectivas de uma e outra e determina o seu valor próprio. Por outro lado, Platão e os Pitagóricos não distinguiam suficientemente a atividade artística das outras atividades humanas, virtuosas ou contemplativas, daí certas confusões que impediam essas diversas atividades de desabrocharem em plena liberdade nas suas linhas próprias. Aristóteles é o primeiro que apreende com uma acuidade filosófica notável o que a arte tem de absolutamente particular. Distinguindo os habitus de arte dos outros habitus, éticos (virtudes) e intelectuais (ciência e sabedoria), analisa como filósofo a estrutura essencial da atividade artística humana e a distingue da atividade moral virtuosa; mostra seu caráter autenticamente humano, pelo qual se inscreve na filosofia humana e guarda um certo parentesco com as outras atividades do homem. Graças a essas distinções, Aristóteles reabilita a arte e a libera de determinados constrangimentos falsos, de determinadas dependências ilegítimas. Mas isso não quer dizer que a arte possa exercer-se segundo uma fantasia total, e que a arte não tenha nenhum princípio: para o Filósofo, a arte permanece um habitus humano, aperfeiçoando uma atividade humana; nisso, uma certa finalidade humana impõe-se. Situar com precisão o valor próprio da arte é, ao mesmo tempo, permitir às atividades morais e contemplativas exercerem-se com muito mais autonomia e liberdade. * Vemos a importância dessa filosofia prática humana; por um lado, mostra o homem frente ao mundo físico; não é o homem, com efeito, capaz de transformá-lo e de cooperar com ele, realizando assim uma obra útil ou agradável? Por outro lado, mostra o homem na presença do homem; não é ele capaz de amá-lo e de levar com ele uma vida comum, não é ele capaz de descobrir seu fim próprio: o amor de amizade? A primeira parte da filosofia humana (a filosofia da atividade artística) é comandada pela causalidade exemplar e pela causalidade eficiente; quanto à ética, ela é comandada pela causalidade final. Mas o amor de amizade, segundo o condicionamento natural do homem que nasce em uma família e se desenvolve numa comunidade política, requer como que dois momentos de crescimento, de desenvolvimento: a educação e a instrução, nos quais ele é ajudado pelos pais e por mestres. A análise desse condicionamento exige uma filosofia política que, pressupondo a causa final, é como que mensurada por um tipo particular de causalidade exemplar. 101
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Essa filosofia humana mostra, portanto, como a causalidade final, que é o seu eixo principal, reclama a «ajuda» da causalidade exemplar: esta dispõe à descoberta do fim e pode também mostrar todo o irradiar dele. A causalidade exemplar pode ser como que uma via de acesso à descoberta da finalidade; e ela pode ser também uma manifestação dela, um irradiar. Isso de duas maneiras diferentes: pela arte, por um lado, pela comunidade política, por outro lado. Uma filosofia política, tal como Aristóteles nos propicia, não pode ser perfeitamente apreendida senão graças à filosofia ética e à filosofia da atividade artística.
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CAPÍTULO II
A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS
A filosofia humana de Aristóteles, embora tenha seus princípios próprios e seus métodos próprios, requer um estudo filosófico teorético do homem. Este procura precisar o que é o homem em si mesmo, na sua natureza própria, na sua complexidade e na sua unidade. Toda a hierarquia das virtudes morais e intelectuais estudada na Ética a Nicômacos pressupõe um conhecimento filosófico das diversas faculdades humanas, assim como de sua ordem. O conhecimento filosófico que Aristóteles tem da arte, transformando nosso universo, chama também uma filosofia das realidades físicas consideradas nelas mesmas, da matéria, das realidades movidas, capazes de ser transformadas. Quanto às críticas que Aristóteles faz do Bem-em-si e do Uno-em-si de Platão, não requerem um olhar teorético muito mais profundo sobre a significação do Bem e do Uno? Para Aristóteles nossa inteligência considerada nela mesma tem um apetite radical de verdade: «Todos os homens desejam por natureza saber». 1 Este apetite, este desejo natural de verdade, não pode parar num conhecimento prático, no qual nosso conhecimento intelectual, ávido pela verdade, permanece subordinado à ação ou a uma obra. 2 Ademais, para Aristóteles, as tradições religiosas, que falam de um Deus criador e de uma alma imortal, não requerem um conhecimento teorético capaz de atingir, elas mesmas, essas duas realidades, para mostrar que essas tradições religiosas são bem alicerçadas? Se a inteligência humana não pode por si mesma descobrir essas duas realidades, o filósofo permanece na dúvida a respeito das tradições religiosas. Portanto, para ele, que quer ajudar o homem a viver de maneira plenamente humana, é necessário entrar numa pesquisa filosófica toda nova a respeito da alma e de Deus. Se Deus existe, e se a alma existe, não podem ser atingidos por um conhecimento prático: nem ético, nem artístico. Necessariamente, Aristóteles, amigo de Platão e crítico das Idéias, também se questionou para saber se tudo o que Platão diz da theoria como fim da vida humana não pode explicar-se de outra forma que pelas Idéias. Aristóteles não pode ter para com Platão, perto do qual viveu 1 Metafísica, A, 1, 980 a 21. 2 «É a justo título que se afirma
que a filosofia é a ciência da verdade. Com efeito, o fim do [conhecimento] teorético é a verdade, o do [conhecimento] prático é a obra» ( ibid ., , 1, 993 b 19-21). «Assim, a obra das duas partes intelectuais [noéticas] é a verdade» ( Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b 12).
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES durante vinte anos, senão uma grande admiração; por isso, ele procura ver tudo o que se pode salvar de sua filosofia, embora permanecendo numa posição muito realista e muito crítica. Platão, este poeta-filósofo, este filósofo que sonha em governar, tem algo de genial, de muito grande, que não se pode reduzir a nada, mesmo que sua linguagem não tenha todo o rigor desejado: demasiado ligado às matemáticas, Platão não pôde atingir a alma espiritual e Deus senão numa linguagem poética... Aristóteles, como amigo, porá todo o seu esforço na procura daquilo que permite salvar o que há de maior nas descobertas de Platão, sabendo que os discípulos «oficiais» não podem senão diminui-lo. Na filosofia de Aristóteles, o estudo teorético e filosófico da alma humana faz parte integrante de sua filosofia das realidades movidas, que foi chamada de filosofia da natureza. Se o homem é um vivente, também é uma realidade movida em razão de seu corpo. É a razão pela qual o estudo da alma humana se integra, segundo o Filósofo, na filosofia das realidades movidas, porém, ultrapassando-a de certo modo. Ademais, o estudo teorético da alma humana no seu cume (o noûs) já não compete à filosofia das realidades movidas, mas à filosofia primeira, como o veremos. Portanto, se queremos penetrar toda a profundeza da filosofia humana de Aristóteles e se queremos compreender a natureza da contemplação, énos necessário considerar sua «filosofia da natureza» e sua filosofia primeira, que são como as duas grandes dimensões da filosofia teorética, uma interrogando o-que-é-movido na sua própria mobilidade, a outra interrogando o-que-é, no seu próprio ser. A filosofia da natureza ocupa um lugar extremamente importante — podemos dizer até capital — no conjunto das obras de Aristóteles. O número dos tratados se referindo à natureza, sua importância e sua originalidade testemunham suficientemente a solicitude toda particular do Filósofo a esse respeito, a tal ponto que, para alguns, Aristóteles é antes de mais nada e acima de tudo o filósofo da natureza, aquele que experimenta e descreve as realidades movidas e sensíveis desse mundo. É inegável que, a propósito da filosofia da natureza, a originalidade de Aristóteles face a Platão se manifesta com uma nitidez muito particular. Basta lembrar a crítica que o discípulo faz ao mestre, no início da Física: «Certos outros [filósofos] ainda atingiram essa [natureza], mas de maneira não suficiente. Com efeito, primeiro, eles concordam que ela vem a ser absolutamente a partir do não-ser, e nisso afirmam que Parmênides se expressa de uma justa maneira. Em seguida, parece-lhes que se ela é una segundo o número, ela também é una [quando está] somente em potência». 1 Platão seguiu o erro de Parmênides ao confundir a matéria (a pura potência) com o não-ser. Se se confunde a matéria e o não-ser, não pode mais existir realmente movimento, devir, geração: a física não pode mais ser uma filosofia que considera a realidade existente, e não um ser de razão. 1 Física, I, 9, 191 b 35 - 192 a 2.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Para Aristóteles, o erro de seu mestre e dos discípulos é fundamentalmente, diríamos hoje, um erro epistemológico: Platão não fundou suficientemente sua filosofia sobre a experiência.1 Para Platão, a experiência não pode desempenhar senão um papel secundário: toda a inteligibilidade do universo físico vem das formas ideais, conhecidas por reminiscência. Para Aristóteles, ao contrário, a experiência das realidades físicas desempenha um papel primordial na descoberta dos seus princípios próprios. Somente ela permite descobrir a inteligibilidade dos princípios próprios do mundo físico e, por conseguinte, permite a elaboração de uma verdadeira filosofia do «devir». 2 De resto, por essa razão é que, para o Estagirita, a filosofia da natureza é geneticamente primeira na filosofia teorética. Ela é o conhecimento de filosofia teorética mais próximo de nossa experiência, o que se situa como no seu prolongamento imediato, porém, ultrapassando-a: O encaminhamento vai assim naturalmente do que é mais cognoscível e mais evidente para nós até o que é mais evidente e mais cognoscível por natureza; pois não são as mesmas coisas que são cognoscíveis para nós e absolutamente. É por causa disso que é necessário proceder desta forma: das coisas menos evidentes por natureza, porém, mais evidentes para nós até aquelas que são mais evidentes por natureza e mais cognoscíveis. Ora, o que para nós é primeiramente visível e evidente, são as coisas mais mescladas; em seguida, a partir dessas, os elementos se tornam mais cognoscíveis e os princípios as dividem. É por causa disso que é preciso ir das coisas tomadas segundo o todo até as tomadas segundo o singular. Com efeito, o todo é mais cognoscível segundo a sensação...3
Antes de procurar as realidades mas difíceis e mais elevadas, é necessário examinar longa e pormenorizadamente as realidades mais próximas de nós. A filosofia da natureza, portanto, é geneticamente anterior à filosofia primeira e à «teologia». Nesse sentido, é legítimo olhá-la como o fundamento de toda a ordem de nossos conhecimentos filosóficos teoréticos. Para Platão, ao contrário, a filosofia da natureza, geneticamente, não podia elaborar-se senão depois da apreensão própria das «formas ideais», portanto, depois da dialética ascendente que conduz à contemplação. Para Platão, a ordem genética e a ordem de
1 «A
causa dessa menor capacidade em abraçar com o olhar realidades que estão em acordo, é a falta de experiência» ( Da geração e da corrupção, I, 2, 316 a 5-6). 2 «Já que atingimos o saber e o conhecer científico, em todas as ordens de pesquisa pelas quais existem princípios ou causas ou elementos, a partir da aquisição desses mesmos — com efeito, pensamos conhecer cada coisa quando conhecemos as causas primeiras, os princípios primeiros e até os elementos — , é evidente que para a ciência da natureza também é preciso primeiro tentar distinguir o que concerne aos princípios» ( Fís., I, 1, 184 a 10-16). 3 Ibid ., 184 a 16-26. Traduzimos aqui literalmente katholou antes por "segundo o todo", do que por "geral" ou "universal", termos que implicariam uma certa abstração. Aqui, Aristóteles quer nos indicar que conhecemos primeiro a realidade física de uma maneira global, na sua totalidade, antes de conhecê-la de uma maneira particular.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES natureza tendem a se confundirem; o que é primeiro conforme a ordem do ser, da bondade, também é primeiro conforme a ordem do nosso conhecimento. Tal diversidade no valor outorgado à experiência devia necessariamente orientar as «pesquisas físicas» desses dois grandes filósofos em vias de todo diferentes, em direções quase opostas; ambos, entretanto, eram possuídos pelo mesmo desejo de conhecer a verdade. Um, porém, faz economia do conhecimento das realidades físicas; o outro mostra que elas são o meio de atingir a verdade. Se a oposição entre Aristóteles e Platão, como filósofos da natureza, é tão visível, porém não se deve negar toda influência do mestre sobre o discípulo: provavelmente, a grandiosa visão do Timeu não é alheia à filosofia da natureza do Estagirita. O Timeu pode ser considerado como que uma «disposição» magnífica às análises filosóficas de Aristóteles, disposição nesse sentido em que o Timeu obriga Aristóteles a considerar imediatamente o conjunto do universo — o mito tendo um valor de síntese — , e nesse sentido em que ele o obriga a especificar seu pensamento. O Timeu não é como um obstáculo a superar, maravilhoso aguilhão para a inteligência humana que progride graças à experiência, é certo, mas também graças à admiração e às oposições que provêm das opiniões dos filósofos antigos? Poderíamos dizer que o Timeu foi para a elaboração da filosofia da natureza o que devem ter sido a República e as Leis para a da Política. Provavelmente seja a influência que Aristóteles sofreu como discípulo de Platão que pode explicar por parte como seu «empirismo» distingue-se tão profundamente do dos primeiros físicos. Aristóteles, considerando o mundo físico por ele mesmo, vincula-se verdadeiramente à antiga tradição jônica do pensamento grego, porém transformando-o. Esse universo que o interessa na sua realidade sensível e material, ele o examina com preocupações inteiramente novas, segundo uma análise original. Não se trata mais, para ele, de uma simples explicação material e eficiente das realidades físicas; 1 é preciso também procurar o que é a realidade (sua causa formal) e aquilo em vista de que ela existe (sua causa final). 2 Platão, com sua visão tão fulgurante das formas ideais legou como herança a Aristóteles novas exigências no que concerne ao domínio do conhecimento filosófico: colocou em luz a importância extrema da forma. Mas o que, no mestre, permaneceu em estado de uma grandiosa construção, a um só tempo, mítica e filosófica, vai elaborar-se no discípulo numa não menos grandiosa visão filosófica, elaborada pacientemente ao redor da pesquisa das quatro causas próprias de «oque-é-movido». Essa procura das causas próprias mantém, para toda essa filosofia da natureza, seu caráter de análise minuciosa e profunda. Respeitando a complexidade das 1 «Quem
olhasse os antigos acreditaria que [a física é o conhecimento] da matéria...» ( Fís., II, 2, 194 a 18-19). «Os antigos e aqueles que começaram a filosofar acerca da natureza pesquisavam sobre o princípio material e sobre a causa material, sobre o que ela é e sobre suas qualidades...» ( Partes dos animais, I, 1, 640 b 4-6). Ver em particular o juízo extremamente duro sobre Demócrito que confundiu a forma ( morphé) com a configuração exterior ( skéma) (ibid ., 640 b 28 - 641 a 17). 2 Ver Partes dos animais, I, 1, 639 b 11 seg.; 640 b 20 seg.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS realidades físicas, ela lhe dá uma organização mais profunda. Por conseguinte, isso permite ao Filósofo melhor apreender a unidade real, existencial, deste cosmo onde cada uma das partes está em continuidade física, qualitativa com o conjunto, graças às outras partes que lhe são imediatamente conjuntas. Segundo a posição de Platão, a unidade do universo não era realizada senão parcialmente pela causalidade exemplar: um dualismo essencial, estrutural, permanecia, em razão da matéria, causa errante irredutível e mesmo dialeticamente oposta à causa exemplar. Essa unidade participada era, portanto, duplamente relativa: relativa a um nível inferior — a matéria; relativa a um nível superior — ordem para as formas ideais. Para Aristóteles, a unidade do universo não pode ser compreendida pela participação: esta não explica nada... O universo possui uma unidade real mas proporcional, no sentido em que essa unidade implica diversos princípios, diversos elementos, irredutíveis entre si, porém, ordenados. No seio dessa unidade real e proporcional, é preciso distinguir um primeiro tipo de unidade no nível da hierarquia qualitativa dos elementos: o fogo é como que a medida dos outros elementos, é o primeiro. Graças aos corpos celestes, essa hierarquia qualitativa se transforma em uma hierarquia de natureza: os corpos celestes têm uma natureza perfeita na ordem física. Mas isso não basta, pois a realidade física é movida; é preciso ainda especificar qual a unidade do universo considerado do ponto de vista do movimento. É o movimento uniforme e eterno da primeira esfera celeste que dá ao universo sua última unidade física, porque esse movimento uniforme é o do corpo celeste mais perfeito, aquele que contém todos o outros e desempenha a respeito deles o papel de lugar supremo. Enfim, neste universo físico, Aristóteles precisa os diversos graus de vida que desabrocham nos viventes, sendo o vivente mais perfeito o homem ou o corpo celeste, conforme as diferentes interpretações que se pode dar do tratado Do céu. Para Aristóteles, a unidade do universo, portanto, é real; ela é imanente a ele, mas implica uma real diversidade de elementos hierarquizados, uma real diversidade de movimentos ordenados. À luz do que acabamos de precisar, é fácil descobrir a organização da filosofia da natureza, tal como Aristóteles no-la apresenta. Não é inútil dizer algumas palavras sobre isso antes de analisar certos aspectos. Na Física, após ter mostrado os princípios próprios de oque-é-movido e após ter desvelado que a natureza, princípio próprio do movimento, implica necessariamente uma dualidade — natureza-matéria e natureza-forma — , e é ela própria fim, Aristóteles estuda de modo geral a natureza do movimento físico, suas propriedades, suas diversas espécies. Isso lhe permite remontar ao primeiro movimento local uniforme, circular, a partir do qual é posto o primeiro motor imóvel indivisível. Esse primeiro tratado nos dá uma visão filosófica do movimento físico, de sua diversidade e de sua unidade, de suas imperfeições e de sua perfeição relativa. No interior dessa visão filosófica do movimento é que se deve compreender o estudo sobre o universo e suas diversas partes constitutivas no tratado Do céu. O Filósofo considera 107
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES primeiro o universo e suas partes constitutivas sob a luz do movimento local. O universo aparece, então, como tendo: — um movimento circular perfeito, sem contrário, que exige uma natureza física perfeita: os corpos celestes; — um movimento para o alto, movimento que tende para o perfeito e que exige uma natureza física corruptível, mas ativa: o fogo; — um movimento para o baixo, que exige uma natureza física corruptível passiva: a terra. Depois se considera o universo sublunar e suas partes na perspectiva do movimento de alteração e de corrupção. Sob esse aspecto, o universo sublunar aparece como tendo quatro elementos que se ordenam qualitativamente segundo as qualidades próprias tangíveis: o quente, o frio, o seco, o húmido. A alteração e a corrupção dos elemento explicam a formação de corpos mistos, que são estudados nos Meteorológicos. Mas nosso universo não é somente um mundo meramente físico. Algumas de suas partes, as mais perfeitas, possuem a vida. Depois de ter considerado o mundo na sua unidade e sua diversidade à luz do movimento local e do movimento de alteração e de corrupção, o Filósofo considera, portanto, o universo físico enquanto vivente. Estuda os princípios próprios do vivente: em primeiro lugar a alma e suas faculdades, em seguida o corpo orgânico do vivente, enfim o movimento local próprio aos animais, assim como sua geração e a duração de sua vida. Evidentemente, a perfeição da filosofia das realidades físicas seria conhecer, da maneira mais exata, a natureza de cada espécie das realidades físicas, viventes e não viventes; mas, como o próprio Aristóteles frisa: «É manifesto que, ao falar detalhadamente de numerosas realidades, dizemos freqüentemente as mesmas coisas». 1 «Assim, é preciso tratar em primeiro lugar das ações comuns a todos, depois daquelas que são segundo um gênero, depois daquelas que são segundo uma espécie». 2
1 Partes dos animais, I, 1, 639 a 23-24; cf. 2 Ibid ., 5, 645 b 20-22.
ibid ., 5, 645 b 1 seg.; 4, 644 a 34 seg.
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A. FILOSOFIA DO-QUE-É-MOVIDO
1. Possibilidade de uma filosofia do-que-é-movido ( Física, livro I) No primeiro livro da Física, em uma perspectiva crítica, Aristóteles justifica a existência de um verdadeiro saber do-que-é-movido; contrariamente aos Eleatas e a Platão, que pensavam que o conhecimento do universo físico não podia passar de uma opinião, o Estagirita quer estabelecer que o-que-é-movido é algo real e não uma aparência; embora imperfeito, o-que-é-movido é, portanto, capaz de especificar um conhecimento filosófico (científico) que implica a descoberta de princípios e de causas próprios. Decerto, o Filósofo não demonstra de maneira direta que o universo físico, o-que-é-movido, possui em si mesmo uma certa inteligibilidade capaz de determinar um conhecimento filosófico, mas ele refuta as opiniões que tenderiam a provar o contrário. Ele mostra como se pode prolongar o esforço daqueles que já procuraram conhecer as realidades físicas e, enfim, como a análise do-que-émovido lhe permite descobrir diversos princípios: isso basta para mostrar que pode haver uma verdadeira filosofia do-que-é-movido. Aristóteles começa assim seu estudo: «Decerto, é necessário que o princípio seja único ou múltiplo; se é uno, seguramente ele é imóvel, como dizem Parmênides e Melissos, ou movido, como dizem os físicos, dentre os quais alguns afirmam que o primeiro princípio é o ar, outros a água. Se são múltiplos, os princípios devem ser limitados ou infinitos». Aristóteles frisa, então, que «o fato de examinar se o-que-é é uno e imóvel não é um exame que tem a natureza como objeto». E ele continua: Quanto a nós, ponhamos como fundamento que as realidades naturais (ta physei), todas ou por parte, são movidas; ora, isso é evidente a partir da indução. Acrescentemos, também, que não convém refutar todas as coisas, mas somente aquelas a cujo propósito alguém se engana ao fazer uma demonstração a partir dos princípios (...). Já que ocorre [a esses filósofos] dizer dificuldades de ordem física, mas não a propósito da natureza, talvez seja bom discutir sobre elas um pouco; com efeito, esta pesquisa implica uma filosofia.1
1 Física, I, 2, 184 b 15 - 185 a 20.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Portanto, considerando as opiniões de seus predecessores a propósito dos princípios de «o que é», Aristóteles constata que se encontra entre duas tradições contraditórias; ambas excluem necessariamente a filosofia da natureza. «O ponto de partida mais adequado de todos, uma vez que o-que-é é dito de múltiplas maneiras, consiste em olhar como aqueles que dizem que todas as coisas são unas afirmam isso.»1 Aqui, Aristóteles examina as opiniões de Parmênides e de Melissos: eles consideram o movimento como «não-ser»,porque ele não é absolutamente. Aristóteles frisa qual o erro de Parmênides e dos partidários da fixidez absoluta do ser: desconhecer que o ser se diz de «diversas maneiras». 2 Reduzir todo o real à absoluta fixidez do ser, na realidade, não é apreender senão um modo particular de «o-que-é».Tal posição conduz necessariamente a negar toda filosofia do-que-é-movido. Outros, como Anaxágoras, multiplicam ao infinito os primeiros elementos dos corpos naturais.3 Os princípios da filosofia da natureza, então, são eles mesmos infinitos. Tal posição filosófica esquece que as realidades físicas, pelo fato de existirem, são sempre determinadas. Ora, multiplicar ao infinito seus elementos as torna indeterminadas, já que, por definição, o infinito é algo indeterminado. Ao torná-las indeterminadas, se as torna incognoscíveis. Sendo assim, todas as realidades físicas escapam à investigação de nossa inteligência filosófica. Uma filosofia da natureza que pretende procurar os princípios infinitos do-que-é-movido, portanto, é impossível e contraditória: «Haverá, numa grandeza finita, [grandezas] igualmente finitas, em número infinito; mas isso é impossível». 4 Notemos bem que uma tal posição filosófica não distingue entre o que é em potência e o que é em ato; 5 assim, ela atribui ao que é em ato o que não pode afetar senão o que é em potência: o que é em potência pode ser infinito. No contínuo, na duração, pode haver um certo infinito, porém, o que é em ato jamais será infinito.6 Se os princípios próprios das realidades movidas não podem nem se multiplicar ao infinito, nem se reduzir à unidade, eles são necessariamente em número determinado: «Todos, de certa maneira, fazem dos contrários os princípios; e isso com razão». 7 Portanto, os primeiros físicos, e com eles Empédocles e Demócrito, têm razão ao colocar como princípios os contrários em número limitado. Compreenderam que a realidade física é uma realidade, a um só tempo, complexa e determinada. Assim, aos olhos de Aristóteles, esses últimos 1 Fís., I, 2, 185 a 20-22. 2 Cf. ibid ., 3, 186 a 24-25.
«Tomando as coisas desta forma, é manifestamente impossível que os seres sejam um, e não é difícil desatar aquilo a partir do qual eles argumentam. Um e outro, com efeito, Melissos e Parmênides, raciocinam de maneira erística; e, de fato, assumem [premissas] falsas, e seus raciocínios não são silogísticos. O de Melissos sobretudo é grosseiro e não oferece dificuldade alguma; mas um absurdo outorgado, os outros seguem; isso não é difícil» ( ibid ., 186 a 4-10). 3 Cf. ibid ., 4, 187 a 26 seg. 4 Ibid ., 187 b 33-34. 5 Cf. ibid ., 8, 191 b 27-29. 6 Infinito no sentido que Aristóteles emprega aqui, isto é, sem termo. 7 Fís., I, 5, 188 a 26-27.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS filósofos representam a autêntica tradição da filosofia da natureza. Isso não significa que o Estagirita se coloque docilmente à sua escola. Ele reconhece que tiveram razão em considerar os contrários como princípios próprios do devir, mas ele inova ao justificar racionalmente a existência e o papel de tais princípios. É aqui sua obra própria de filósofo. Assim, é exato dizer que com ele a filosofia da natureza toma consciência de sua dignidade filosófica: É preciso, com efeito, que os princípios não sejam nem uns a partir dos outros, nem a partir de outra coisa; e é a partir deles que todas as coisas são. Ora, isso pertence aos «contrários primeiros»,por causa do fato de as realidades primeiras não existirem a partir de outras, e por causa do fato de os contrários não existirem uns a partir dos outros.1
Aristóteles especifica que se trata dos «contrários primeiros»,considerados no seu papel próprio de «contrários primeiros» e não conforme suas realizações materiais e concretas. E prossegue: Mas é preciso também examinar segundo a inteligibilidade como isso se encontra. Primeiro, é preciso admitir que, de tudo o que é, nada pode naturalmente fazer ou sofrer o que se quer do que se quer; e que qualquer coisa não nasce de qualquer coisa, a menos que se entenda por acidente. (...) Portanto, se isso é verdadeiro, tudo o que é gerado deveria ser gerado, e tudo o que se corrompe deveria se corromper, seja a partir de contrários, seja em contrários e seus intermediários. (...) Assim, todos [os seres] que são gerados por natureza são contrários ou são a partir de contrários.2
No entanto, Aristóteles não se contenta em justificar o valor autêntico dos contrários como princípios próprios das realidades movidas; é lhe preciso ainda responder à pergunta: esses princípios são os únicos? Haveria lugar dizer aqui se os princípios são dois, ou três, ou vários. Com efeito, não é possível, por um lado, que exista um princípio único, porque o contrário não é uno; por outro lado, não é possível que [os princípios] sejam infinitos, porque o que é não seria cognoscível (epistéton).3
No pensamento de Aristóteles, é evidente que os contrários são princípios necessários do devir, mas nem por isso são princípios suficientes e exaustivos. O par de contrários somente não pode explicar o-que-é-movido, sua permanência e a existência própria das realidades 1 Ibid ., 188 a 27-30. 2 Ibid ., 188 a 30 - 188 b 26. 3 Ibid ., 6, 189 a 11-13.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES físicas: «De nenhuma das realidades existentes constatamos que a substância seja os contrários». 1 Portanto, é preciso pôr um terceiro princípio: o substrato (hupokeimenon). Pelo próprio fato de «a substância não [ser] contrária à substância», 2 isto é, que a substância está além da contrariedade, para o Filósofo, enquanto se permanece nos contrários, não se pode explicar nada do que faz a natureza própria das realidades físicas. Portanto, se queremos descobrir o que faz a estrutura essencial do-que-é-movido, somos obrigados a pôr um novo princípio, fora dos contrários, o substrato anterior aos contrários, capaz de recebêlos e de permitir sua mudança. Esse terceiro princípio da filosofia da natureza, Aristóteles ainda o toma conscientemente como empréstimo da tradição dos primeiros físicos. Esses nunca pretenderam explicar tudo pelos contrários. Tinham pressentido que era necessário pôr algo outro, sem discernir com precisão sua natureza própria e sem captar como ele se distinguia dos contrários. Mas todos dão figura a esse uno pelos contrários, por exemplo pelo denso e pelo raro, e pelo mais e pelo menos. Em suma, seguramente são excessos e defeitos. (...) E parece antiga a própria opinião [que diz] que o uno, e o excesso e o defeito são princípios do real [físico], salvo que não é da mesma maneira: os antigos dizem que os dois [contrários] «agem eficazmente» ( poiein) e que um padece; e alguns, mais recentes, dizem antes, pelo contrário, que o uno «age eficazmente» ( poiein) e que os dois [contrários] padecem.3
Ainda aqui, o mérito de Aristóteles é um esforço de penetração e de análise filosóficas. Justifica porque e como esse terceiro princípio é essencialmente distinto dos outros e exerce o papel especial de substrato. Esses três princípios, os dois contrários e o substrato, bastam para explicar a inteligibilidade própria do-que-é-movido; pôr um quarto princípio complicaria inutilmente a explicação filosófica: Que eles sejam mais numerosos que três, não. Relativamente ao padecer, com efeito, o uno é suficiente; e se existissem quatro seres, duas contrariedades, seria preciso encontrar uma outra natureza intermediária, separada de cada uma delas. E se, sendo duas, elas podem ser geradas uma da outra, uma das contrariedades parece ser inútil. Ao mesmo tempo, também, é impossível que várias contrariedades sejam as primeiras. Com efeito, a substância é um certo gênero uno do que é; em seguida, os princípios se diferenciam uns dos outros pelo anterior e pelo posterior somente, mas
1 Ibid ., 189 a 29. 2 Fís., I, 6, 189 a 32-33. 3 Ibid ., 189 b 8-16.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS não pelo gênero; com efeito, sempre num gênero uno existe uma só contrariedade, e todas as contrariedades parecem reduzir-se a uma só.1
Não esqueçamos que, nessa perspectiva crítica, Aristóteles não procura senão as condições necessárias — as condições sine qua non — à inteligibilidade filosófica do-que-émovido: são o par dos contrários e o substrato. Somente isso o interessa nessa procura crítica. Os contrários podem evidentemente realizar-se concretamente de diversas maneiras; da mesma forma o seu substrato. Mas desempenham sempre o mesmo papel de contrários e de sujeito: suas múltiplas realizações não engendram nenhum princípio novo. Não é suficiente determinar a necessidade de pôr três princípios do-que-é-movido; é preciso ainda especificar o que os caracteriza. Considerando com atenção a significação das expressões habituais que usamos para expressar o fato da aparição de novas realidades, sua geração, é que Aristóteles determina a significação original de cada um desses princípios e suas propriedades características. Só o substrato possui uma unidade numérica, sem ter unidade formal. «Ele é uno quanto ao número, mas não quanto à forma», 2 ao passo que os contrários possuem uma unidade formal, sem ter unidade numérica. O substrato é o que permanece, o que subsiste, ao passo que os contrários não permanecem, não subsistem; não passam dos princípios determinantes do devir.3 Essas duas propriedades do substrato, assim como as propriedades inversas dos contrários, vinculam-se imediatamente a seu papel recíproco: de um lado, permanecer idêntico sob formas contrárias e permitir aos acidentes existirem; por outro lado, não ter condições de permanecer e não ter condições de existir independentemente de um outro. Mas um caso privilegiado chama muito especialmente a atenção do filósofo da natureza: o da geração substancial. O que se torna, então, o substrato, o «algo a partir do qual se realiza a geração»? Esse «algo», Aristóteles o chama de matéria: 4 «Eu chamo de matéria o substrato primeiro para cada coisa, de onde algo é gerado e que permanece nele, e isso não por acidente». 5 Esta matéria é, de fato, um princípio-substrato, mas de modo muito particular, pois ela não possui nem a unidade numérica, nem a existência que afetam normalmente o sujeito próprio da mudança acidental. É por causa disso que ela não é imediatamente cognoscível:
1 Ibid ., 189 b 15-27. 2 Ibid ., 7, 190 a 15-16. 3 Cf. ibid ., 190 a 17 seg. 4 Cf. ibid ., 191 a 10; 9, 192 a 3 seg. 5 Ibid ., 192 a 31-32. Em filosofia primeira, Aristóteles precisa o vínculo que existe entre a substância e a matéria
( Met ., Z, 3, 1028 b 33 seg), e opõe o ser como ato à matéria primeira, potência radical e fundamental ( ibid ., , 7, 1049 a 18 seg.).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Quanto à natureza que é substrato, ela é cognoscível segundo a analogia. Com efeito, o bronze é relativo à estátua, ou a madeira ao leito; e a matéria e o que está sem forma antes de receber a forma, é relativo a qualquer uma das outras realidades que têm uma forma; do mesmo modo, a matéria é relativa à substância, ao indivíduo particular (tode ti) e ao que é.1
O único conhecimento que possamos ter da matéria é sua relação com o que a determina, já que toda sua capacidade de existir lhe é relativa. Para nos fazer compreender como a matéria é toda relativa ao que a determina, Aristóteles usa certas comparações: a matéria é « como a fêmea que deseja o macho, como o feiura que aspira à beleza». 2 Por causa deste caráter essencialmente relativo da matéria a respeito da forma, ela não pode por si mesma ser princípio, mas ela concorre realmente, como uma «mãe», à geração do composto.3 É por causa disso que se se pode dizer de certo modo que a matéria é um não-ser, no entanto, não se deve identificâ-la absolutamente a ele. A matéria é um não-ser de modo todo diferente da privação; esta é não-ser essencialmente, a matéria não o é senão por acidente. Essencialmente a matéria é ordenada ao princípio segundo a forma; por isso ela permanece próxima dele. Pode-se até dizer que ela está em potência a esse princípio. Portanto, ela pode ser considerada ainda como um princípio: o substrato último de todas as gerações. Esta concepção filosófica do substrato último de todo movimento separa radicalmente a física de Aristóteles da de Platão. Se ambos fazem apelo a três princípios para explicar o mundo físico, a «tríade» de cada um é toda diferente. Aristóteles se dá conta disso; censura seu mestre por ter identificado matéria e privação — e, por essa razão, potência e não-ser — , identificação que o impedia de responder às objeções de Parmênides e o levava aos mesmos erros.4 Para Platão, como para Parmênides, na medida em que implica a matéria, o mundo físico é ininteligível e rebelde à ciência. Para Aristóteles, ao contrário, a própria matéria oculta em si um princípio de ser e de inteligibilidade, muito especial, é verdade, mas real, que explica filosoficamente o que há de absolutamente próprio ao mundo físico; esse mundo é o do devir. Enfim, notemos que, para responder às «dificuldades dos Antigos», Aristóteles tenta especificar o papel respectivo desses três princípios do-que-é-movido, do ponto de vista do exercício de sua causalidade. Sob esse aspecto, os dois contrários não desempenham o mesmo papel, pois um é como uma qualidade, outro como uma privação desta qualidade. 1 Fís., I, 7, 191 a 7-12. 2 Fís., I, 9 192 a 22-23. 3 «A causa conjunta que subsiste sob a forma das coisas geradas é como uma mãe» ( ibid ., 192 a 13-14). 4 Cf. ibid ., 191 b 35 seg.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Essa privação que afeta o substrato, capaz de devir, é o ponto de partida deste devir: é a partir da privação que algo é gerado. O outro contrário é o agente que possui tal forma e que é capaz de agir em virtude dessa forma. É por causa disso que essa própria forma estará ao termo da ação. O contrário-privação, portanto, é o ponto de partida do devir, o contrárioqualidade é o termo para o qual esse devir tende. O substrato é o que permanece, o que é afetado ou pela privação, ou pela qualidade, conforme o substrato seja considerado como capaz de devir ou como ao termo do devir. Sendo assim, pode se dizer que a estrutura essencial do-que-é-movido como tal se explica imediatamente por essas duas causalidades intrínsecas essenciais: matéria e forma — aqui, a privação não intervém senão como um princípio «por acidente»; mas a inteligibilidade própria do devir físico não se pode explicar senão por esses três princípios. O devir físico seria incompreensível e inexplicável sem esse terceiro princípio: a privação. Em resumo, portanto, Aristóteles põe dois princípios essenciais para explicar a estrutura essencial do-que-é-movido e três princípios para explicar seu devir. Como, finalmente, o devir se «reduz» ao ser que lhe é anterior, os três princípios do devir se «reduzem» igualmente a esses dois princípios essenciais: matéria e forma.
2. A natureza (Física, livro II) Após ter justificado, de um ponte de vista crítico, a possibilidade da filosofia do-que-émovido, ao determinar o número e a qualidade dos princípios próprios do-que-é-movido, Aristóteles desvela a estrutura filosófica (científica) desta parte da filosofia, abordando o estudo da natureza ( physis). A physis não é um desses termos que a tradição filosófica lega a Aristóteles com um significado bem definido. Podemos dizer que Aristóteles se encontra face a duas significações principais da palavra «natureza»,diametralmente opostas: uma expressa o que está à raiz do todo existente do universo; a outra, muito mais apurada e despojada, significa uma forma animada, orientada para um fim. Para os primeiros físicos, com efeito, a natureza é a realidade primordial, material e sensível: o ar, a água, a terra, numa palavra o que para eles era a primeira causa de todos os fenômenos celestes e terrestres. No seu pensamento, a natureza sensível é, a um só tempo, o que é fundamental e o que possui uma força instintiva, irracional, cega; é o dado primordial diante do qual o homem se encontra, pressuposto a toda atividade humana. Ao contrário, para Platão, a natureza é, antes de mais nada, a alma, que é a única forma imanente anterior ao mundo físico, ultrapassando-o e organizando-o. O que chamamos de fenômenos físicos e os corpos visíveis não são senão a aparência do ser; portanto, não podem ser o que há de primeiro. Eles não têm realidade verdadeira. Nessa perspectiva, a concepção
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES dos primeiros físicos a respeito da natureza ainda é ingênua e grosseira, uma vez que jamais o que é irracional e cego pode ser primeiro. Não se pode senão rejeitá-la. Aristóteles, atento a essas duas posições, reconhece a parte de verdade que cada uma possui, porém, criticando-as e julgando-as. Essas duas posições diametralmente opostas obrigam-no a perscrutar mais profundamente a realidade física. Para ele, «a natureza é um princípio e uma causa de movimento e de repouso para cada coisa, na qual ela existe em primeiro lugar por si [ per se] e não por acidente». 1 Essa descoberta da natureza é o resultado imediato de uma indução fundada sobre nossas experiências. Estas nos ensinam, com efeito, que certas realidades sensíveis são tais como elas são, sem a influência nem o concurso da ação artística do homem ou de certas causas que são exteriores a elas; essas realidades físicas são elas mesmas no seu próprio devir. Outras realidades físicas, ao contrário, são tais graças a intervenções artísticas do homem, ou em razão de certas circunstâncias especiais. Essa diversidade, que se impõe a nós e que não podemos rejeitar, não pode ser explicada senão pondo, para umas, um princípio imanente próprio de movimento e de repouso — princípio imanente que as faz serem tais imediatamente por si mesmas sem o socorro de nenhuma outra intervenção humana, voluntária — , e afirmando, para as outras, ao contrário, sua estreita dependência a respeito de realidades que agem sobre elas e que são extrínsecas a elas: Para cada uma das outras [coisas] fabricadas, nenhuma tem em si o princípio de sua fabricação; umas o têm em outras [coisas] e fora de si, por exemplo uma casa e toda outra coisa feita pela mão do homem; as outras o têm em si mesmas, mas não por si, a saber aquelas a que ocorre ser por acidente causas para si mesmas.2
Portanto, para Aristóteles, a natureza não é tal vivente ou tal corpo, tal realidade sensível imediatamente experimentada... As realidades viventes ou não viventes, decerto, são realidades naturais, mas elas não são a natureza. Seguramente, os primeiros físicos souberam discernir entre as obras artificiais e as realidades naturais, mas não souberam precisar filosoficamente a significação profunda dessa distinção. Não apreenderam, através da experiência das realidades físicas, o princípio imanente que explica filosoficamente seu movimento próprio. A diferença entre a posição dos primeiros físicos e a de Aristóteles, a respeito do conhecimento das realidades naturais, é semelhante à diferença entre a descrição sensível, que guarda um modo concreto e singular, representando essas realidades experimentadas, e uma análise da inteligência desvelando o significado íntimo do-que-émovido, apreendendo a fonte imanente de seu movimento através dos caracteres individuais e sensíveis dessas realidades. Assim, para Aristóteles, não se deve mais confundir a «natureza» com tal realidade natural sensível; ela é a causa própria e o princípio de movimento e de 1 Fís., II, 1, 192 b 21-23. 2 Ibid ., 192 b 27-32.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS repouso dessa mesma realidade física. Esse princípio escapa ao nosso conhecimento sensível e não pode ser atingido senão por um conhecimento intelectual filosófico. Ao dizer que a natureza é um princípio e uma causa, Aristóteles não o identifica no entanto, às «formas» de Platão. Com efeito, afirma que a natureza é imanente à realidade da qual ela é o princípio de movimento e de repouso. Ela existe na realidade e permanece inseparável dela. Esse princípio imanente dá à realidade física, a um só tempo, sua determinação própria e sua inclinação profunda para seu movimento e para seu repouso: A natureza, portanto, é o que nós dissemos. Tem uma natureza, por outro lado, tudo quanto tem um tal princípio. E todas essas realidades são substância, pois sempre a natureza é um certo sujeito e está em um sujeito. São segundo a natureza essas realidades e tudo o que lhes pertence por si, por exemplo para o fogo o fato de se elevar: isso não é uma natureza e não tem uma natureza, mas é por natureza ( physei) e segundo a natureza (kata physin). Assim portanto, temos dito o que é a natureza, o que é o «por natureza» e o «segundo a natureza».Mas que a natureza existe, seria ridículo procurar demonstrá-lo; com efeito, é manifesto que muitas dentre as realidades são tais. Ora, demonstrar o que é manifesto pelo que é obscuro pertence àquele que é incapaz de discernir o que é cognoscível por si e o que não o é. Que seja possível sofrer disso, isso não é sem se ver: um cego de nascença pode muito bem raciocinar sobre as cores... Necessariamente, portanto, o raciocínio tido por essa gente concerne às palavras; não pensam de forma alguma.1
Reconhecendo que a natureza é antes de mais nada princípio de determinação e princípio de eficácia, Aristóteles tampouco a identifica com a alma. Decerto, reconhece que a alma é uma certa natureza, mas ela não é a natureza considerada em toda sua compreensão filosófica. A natureza como tal se situa além da distinção entre realidades viventes e realidades não viventes, já que umas como as outras podem ser ditas naturais. Assim, o universo físico na sua totalidade, na medida em que ele é experimentado, pode ser conhecido filosoficamente, graças à apreensão deste princípio que lhe é imanente: a natureza. Como os primeiros físicos, Aristóteles pensa que o mundo, por móvel e contingente que seja, no entanto, possui em si certas determinações essenciais que permitem à nossa inteligência conhecê-lo com certeza. Não é necessário pôr uma alma do mundo para achar um ponto estável e firme, capaz de fundar um conhecimento filosófico, uma vez que toda realidade natural já traz em si certas determinações essenciais. Portanto, para compreender o quanto, a respeito desse problema, Aristóteles continua o esforço de pesquisa de seus predecessores, porém, criticando-os e ultrapassando-os, basta
1 Ibid ., 192 b 32 - 193 a 10.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES notar como distinguiu o princípio de todos os modos diversos de suas realizações particulares e como ordenou e hierarquizou o valor próprio destes diversos modos. Aristóteles não para na descoberta indutiva da natureza como «princípio e causa de movimento e de repouso para cada coisa na qual ela existe em primeiro lugar, por si e não por acidente». Ele especifica que a natureza é forma e matéria, natureza-forma e naturezamatéria,1 porque precisamente o princípio próprio do movimento não pode ser absolutamente indivisível. Ele implica uma certa dualidade: é fonte de determinação, porém, implicando uma indeterminação. Com efeito, se ele não fosse senão determinado, ele poderia ser fonte extrínseca do movimento, mas não fonte imanente. Isso se explica em razão da própria complexidade do movimento, que implica, a um só tempo, determinação e indeterminação — nós o vemos, a inteligibilidade do movimento implica sempre os dois contrários e um substrato. Portanto, Aristóteles pode afirmar: De certa maneira, portanto, a natureza é dita a matéria, substrato primeiro para cada uma das realidades que têm em si um princípio de movimento e de mudança; de outro modo, ela é dita forma enformando a matéria (morphé) e forma inteligível (eidos).2
Aristóteles precisa, em seguida, «aquilo pelo qual o matemático se diferencia do físico», 3 para melhor determinar o que este olha nas realidades físicas: Já que a natureza é dupla, será que pertence ao físico [tratar] de uma das duas, ou do que existe a partir das duas? Mas se é do que é a partir das duas, também é de cada uma das duas. Portanto, pertence à mesma ou a uma outra [ciência] conhecer uma e outra?4
1 Essa
diversidade de significações do que é a natureza não suprime sua significação primeira: estamos na presença de um conhecimento analógico — na diversidade, há uma unidade. O conhecimento unívoco, no nível dos predicáveis, não poderia explicar isso. Em relação aos predicáveis, ver p. 234. 2 Fís., II, 1, 193 a 28-31. Em seguida, Aristóteles dá quatro razões dessa identificação entre a natureza e a forma: 1. «Da mesma forma que chamamos arte aquilo que é segundo a arte e aquilo que é artístico ( to teknikon), da mesma forma também chamamos natureza aquilo que é segundo a natureza e o que é natural ( to physikon).» Ora, uma realidade artística não tem nada de conforme à arte se ela possui a forma somente em potência. É a mesma coisa nas realidades naturais. «A natureza das realidades que possuem em si mesmas um princípio de movimento deve, portanto, ser a forma enformando a matéria ( morphé), e a forma inteligível (eidos)». 2. O composto de matéria e de forma não é a natureza, mas é por natureza. Ora, o composto «é mais natureza do que a matéria, pois cada coisa é dita antes quando ela é em ato do que quando ela é em potência». 3. «Ademais, um homem nasce de um homem». A geração natural implica uma forma que a determina. 4. «Ademais, a natureza, aquela que é dita como geração ( genesis) é uma via para a natureza». Ora, o devir natural tende para um termo, como os curativos para a saúde. Portanto, é a forma que é natureza. (Cf. ibid ., 193 a 31 193 b 18). 3 Ibid ., 2, 193 b 23. 4 Ibid ., 194 a 16-18.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Então, usando de analogias com a arte, Aristóteles mostra que pertence a uma única ciência conhecer a forma e a matéria, assim como o fim e tudo quanto é em vista do fim — ora, a natureza é fim. Em seguida, afirma: «Esses pontos determinados, é preciso examinar as causas, procurar quais são ( poia) e seu número». Com efeito, numa certa perspectiva crítica, cumpre lembrar que todo conhecimento filosófico requer a procura das causas: Já que nosso estudo é em favor do conhecer, e que estimamos não conhecer cada realidade antes de apreender o porquê (isso é apreender a causa primeira), é evidente que é também o que devemos realizar a respeito da geração e da corrupção, assim como de toda a mudança física, de tal sorte que, conhecendo os princípios dessas realidades, nos esforcemos em reduzir a eles cada uma das nossas pesquisas. 1
Aqui, Aristóteles frisa que o conhecimento filosófico requer ser uma ciência perfeita e que o conhecimento científico implica o conhecimento pelas causas. E, de fato, há quatro causas: De um modo é dito causa aquilo a partir do qual algo é gerado e que permanece fundamentalmente nele, tal o bronze da estátua (...); de um outro modo, é a forma e o modelo; ademais, é de onde é o começo primeiro do movimento ou do repouso (...); enfim, [a causa é dita] como o fim; é o «aquilo em vista de que»,tal a saúde causa do passeio.2
Em seguida, Aristóteles pergunta se a fortuna ( tykhé) e o acaso (automaton) são verdadeiras causas: «De que modo a fortuna e o acaso fazem parte dessas causas? São a mesma coisa, ou antes, são diferentes? E, de modo geral, o que é a fortuna e o acaso? É o que precisamos examinar». 3 A partir da constatação de que certos fatos ocorrem sempre da mesma maneira (aei ôsautôs) e que outros acontecem na maioria dos casos ( epi polu), Aristóteles precisa que a fortuna «não é dita causa nem de uns nem de outros». «Quando os fatos ocorrem por acidente (kata symbebékos), dizemos que são efeitos de fortuna». Portanto, Aristóteles transpõe à fonte, à causa, a distinção do que é por si e do que é por acidente. «Por exemplo, a arte de construir é causa por si da casa, o branco e o músico por acidente (...). Portanto, quando nos fatos que ocorrem em vista de um fim, isso se produz, se fala em efeitos de fortuna e de acaso». 4 O acaso e a fortuna são causas acidentais. Mas o acaso tem uma extensão maior; com efeito, «tudo quanto vem da fortuna vem do acaso, mas tudo quanto 1 Ibid ., 3, 194 b 16-23. 2 Ibid ., 194 b 23-33. 3 Ibid ., 4, 195 b 32-35. 4 Ibid ., 5, 196 b 10 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES vem do acaso não vem da fortuna». 1 A fortuna concerne às atividades práticas do homem, além de sua intenção. O acaso olha a indeterminação fundamental de nosso mundo físico, tudo o que não está sob o império da natureza-forma e fim. Portanto, ele é concebido relativamente à finalidade. O acaso atual no mundo está fora da ordem da finalidade: é a ordem do que é «por acidente»; vemos como é possível dizer que o acaso não pode ser apreendido filosoficamente senão relativamente à finalidade, como a matéria não pode ser compreendida senão relativamente à forma. Graças a esta explicação filosófica do acaso, Aristóteles pode situá-lo na sua visão finalista do cosmo sem destruir seu caráter próprio. Então, ele afirma: «Que existem causas e que seu número é o que dizemos, isso é evidente; com efeito, é este número que o porquê abraça». 2 «Ora, já que existe quatro causas, pertence ao físico conhecê-las todas (eidenai peri pasôn), e ele exporá à maneira de um físico ( physikôs) o porquê, remontando a todas elas: a matéria, a forma, o «motor»,o aquilo em vista de quê».3 Enfim, Aristóteles especifica que a natureza-forma é ao mesmo tempo fim, no sentido em que todo movimento natural é em vista desta natureza-forma; a natureza-fim é apreendida a partir da forma — a forma natural e o fim natural são um. Esse fim permanece, portanto, imanente; ele não tem nada de transcendente. Se assim não fosse, ele não seria mais natural: «Logo, é preciso dizer, em primeiro lugar, por que a natureza pertence à causas «em vista [de um fim]» ».4 A propósito da natureza como fim, Aristóteles se encontra ainda na presença de duas teses diametralmente opostas, a dos mecanicistas e a de Platão. Os primeiros recusam outorgar à natureza uma finalidade: não existiria senão aparência de finalidade. O segundo afirma que tudo é finalizado pelo bem e pelo belo: a natureza age sempre em vista de um fim. Aristóteles, embora se inspirando profundamente da doutrina de seu mestre, domina ainda aqui essas duas teses opostas. Ele evita o antropomorfismo e a univocidade de Platão e critica violentamente a teoria mecanicista, embora reconheça que existe ao lado da finalidade da natureza um acaso e fatos acidentais. Nessas diversas explicitações da natureza, princípio e causa imanente do movimento, há uma ordem: a natureza é dita natureza-matéria somente de modo secundário e relativo. Ela é dita primeiro e principalmente natureza-forma, imanente à realidade física que ela determina. E ela é dita natureza-fim, em razão de sua determinação de natureza-forma.
3. O movimento ( Física, livro III) 1 Ibid ., 6, 197 a 36-37. 2 Ibid ., II, 7, 198 a 14-16. 3 Ibid ., 198 a 22-24. 4 Ibid ., 8, 198 b 10.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS
No livro III da Física, Aristóteles precisa o que é o movimento: Uma vez que a natureza é princípio de movimento e de mudança e que nossa pesquisa ordenada (methodos) é a respeito da natureza, é preciso não deixar na sombra o que é o movimento; com efeito, se o ignoramos, necessariamente ignoramos também a natureza.1
O movimento é «o ato do que está em potência enquanto tal», 2 ou «o ato do móvel como móvel».3 Contrariamente ao que pretendia Platão, que punha um «movimento em si», 4 o Estagirita afirma que «o movimento não existe fora das coisas ( pragmata)».5 Para ele, o movimento seria ininteligível se fosse separado do sujeito no qual ele se encontra, precisamente porque é uma realidade complexa, implicando ato e potência, determinação e indeterminação, sob diversos aspectos. Só uma concepção filosófica da natureza como forma e como matéria pode dar conta dessa complexidade, no sentido em que a diversidade dos princípios, forma e matéria, é imediatamente implicada na própria estrutura do movimento físico.6 Para Aristóteles, o movimento é essencialmente relativo a algo anterior. Ele nunca é primeiro; sempre pressupõe um outro, que ele completa e aperfeiçoa. Assim, o que é o movimento como tal, o fieri, não é inteligível por ele mesmo; ele o é somente no prolongamento da inteligibilidade de sua fonte, a natureza que ele supõe e completa. O movimento aparece, portanto, como o efeito próprio da natureza. Ele é mais cognoscível para nós do que esta, no sentido em que ele nos é imediatamente cognoscível pela experiência; mas ele não é conhecido cientificamente senão pela natureza: não se conhece o efeito cientificamente senão pela sua causa própria. É por causa disso que, na filosofia da natureza, o movimento é por excelência o que é conhecido: a conclusão própria. Sendo assim, compreendemos a importância de seu estudo, seu lugar central em uma tal filosofia. Tudo quanto Aristóteles considera na Física depois desse estudo do movimento, isto é, a unidade e a multiplicidade do movimento, o infinito, o lugar, a vazio, o tempo, de fato, ele o analisa em relação ao movimento. O lugar, o vazio e o tempo aparecem como as condições necessárias
1 Loc. cit., 1, 200 b 12-15. 2 Ibid ., 201 a 11. 3 Ibid ., 2, 202 a 7-8. 4 Cf. P LATÃO, Parmênides, 138 c seg.; 162 c; Sofista, 248 c. 5 Física, III, 1, 200 b 32; 3, 202 a 13. 6 Notemos bem que a diversidade dos princípios, matéria e forma, tem que ser julgada diferentemente conforme
os encaramos relativamente à natureza ou ao movimento. No primeiro caso, ela é imediata e própria. Estes dois princípios constituem essencialmente a natureza: a natureza é forma e matéria. No segundo caso, ela é só fundamental, radical: a realidade do movimento possui sua unidade própria, que não podemos conhecer senão distinguindo seus dois princípios próprios: a ato e a potência.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES de todo movimento: «Sem o lugar, nem o vazio, nem o tempo, o movimento é impossível». 1 E «o infinito aparece em primeiro lugar no contínuo», 2 portanto, no movimento, porque esse «pertence aos contínuos». 3 O infinito Depois de ter analisado o movimento, Aristóteles pode então estudar a questão do infinito. Já que a ciência da natureza tem como objeto as grandezas, o movimento e o tempo, e já que cada uma dessas realidades necessariamente é infinita ou limitada (...), conviria àquele que estuda a natureza olhar, a propósito do infinito, se ele existe ou se ele não existe, e, se ele existe, o que ele é.4
Após ter lembrado numa breve investigação a opinião dos antigos (os Pitagóricos e Platão por um lado, os físicos Anaxágoras e Demócrito, por outro lado), Aristóteles expõe cinco razões da crença ( pistis) na existência do infinito, 5 e levanta as dificuldades que seu estudo apresenta: «Ele é substância ou acidente per se ( symbebékos kath'auto) para uma certa natureza? Ou ele não é nem uma nem outro, mas nem por isso deixa de existir um infinito ou infinitos em número? Ora, cabe, ao ponto máximo, ao físico procurar se existe uma grandeza sensível infinita».6 Aristóteles precisa, então, que é impossível que exista um infinito separado das realidades sensíveis, um infinito per se , e que é impossível que exista em ato um corpo infinito. No entanto, «se o infinito não existe de modo absoluto, encontra-se numerosas impossibilidades».7 Portanto, é preciso reconhecer que existe um infinito, porém, em potência: «O infinito está em potência. Mas não se deve tomar «o que está em potência» como quando se diz: isso é uma estátua em potência, isto é, será uma estátua». 8 O infinito não não é uma realidade que existirá em ato. Em seguida, Aristóteles estuda o infinito no tempo, nas grandezas, segundo a divisão e a composição, e conclui:
1 Fís., III, 1, 200 b 20-21. 2 Ibid ., 200 b 17-18. 3 Ibid ., 200 b 17. 4 Fís., III, 4, 202 b 30-36. 5 Cf. Ibid ., 203 b 15-30. 6 Ibid ., 203 b 33 - 204 a 2. 7 Ibid ., 6, 206 a 9-10. 8 Ibid ., 206 a 18-20.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Uma vez que as causas foram distintas de quatro maneiras, é manifesto que o infinito é causa como matéria, que, por um lado, seu ser é privação, e que, por outro lado, seu sujeito per se é o contínuo e [o] sensível.1
O lugar Com o livro IV da Física, Aristóteles aborda o estudo do lugar, em seguida do vazio e do tempo. Sublinhemos alguns aspectos desses estudos de filosofia das realidades físicas. «É necessário que, a propósito do lugar como a respeito do infinito, o físico conheça se ele existe ou não (ei esti é mé), como é ( pôs esti) e o que ele é (ti estin)».2 Eis as três perguntas que o filósofo deve fazer a respeito do lugar: ele existe? como ele é? o que é? Que o lugar existe, é evidente, a experiência no-lo mostra e todos o homens o pensam: «Todas as realidades [móveis] estão num lugar qualquer ( pou)»;3 só o não-ser está em nenhuma parte. Aristóteles precisa que «é a partir da substituição que a existência do lugar é evidente». 4 Pois «onde existe agora água, lá mesmo, quando ela se vai como de um vaso, eis que ar se encontra aí e, a tal momento, um outro dos corpos ocupa o mesmo lugar». 5 Logo, há há uma coisa outra que os corpos que se revezam; essa coisa outra é o lugar que permanece o mesmo. Mas, antes de mais nada, é «o movimento segundo o lugar» que «é o movimento mais comum e principal», chamado transporte ( phoran),6 que nos manifesta a existência do lugar: Os transportes dos corpos naturais e simples como fogo, terra e outros semelhantes, não indicam somente que o lugar é algo (ti), como também que ele tem uma certa potência (dynamis). Com efeito, cada um é transportado ( pheretai) para seu lugar próprio, se nada faz obstáculo, um para o alto, outro para baixo.7
Se há seis dimensões (disposições) do lugar (o alto, o baixo, a direita, a esquerda, detrás, defronte), é preciso distinguir bem aquelas que estão «na natureza» e que são definidas de maneira absoluta: o alto e o baixo. O alto é o lugar onde o fogo é transportado; o baixo, o
1 Ibid ., 207 b 34 - 208 a 2. 2 Loc. cit ., 1, 208 a 27-29. 3 Ibid ., 208 a 29. 4 « Ek tés antimetastaseôs» (ibid ., 208 b 1-2). 5 Ibid ., 208 b 2-4. 6 Ibid ., 208 a 32. «Primeiro, é preciso refletir
que nenhuma pesquisa seria instituída sobre o lugar, se não existisse um certo movimento segundo o lugar» ( ibid ., 4, 211 a 12-13). 7 Ibid ., 208 b 8-12. «Cada um vai para seu lugar próprio, isso é bem dito ( eulogôs)» (ibid ., 5, 212 b 30); «E cada um permanece por natureza no seu lugar próprio» ( ibid ., 212 b 33); «Tudo não está em um lugar, mas somente o corpo móvel» (ibid ., 212 b 29).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES lugar onde as realidades pesadas e terrosas são transportadas. As outras determinações indicam uma posição que depende do pensamento. Que o lugar existe, portanto, isso compete à experiência, pois a realidade física está «em algum lugar» ( pou). Quanto a saber o que ele é, Aristóteles frisa que é uma questão muito difícil, que levanta muitos problemas: «A questão de saber o que pode ser o lugar está repleta de dificuldades; com efeito, ele não aparece único a quem o examina segundo todas suas propriedades. Ademais, os outros autores não nos deixaram nada, nenhuma exposição de dificuldades, nem solução alguma a esse respeito». 1 Assim, após ter longamente exposto as dificuldades suscitadas por essa questão, 2 Aristóteles mostra primeiro que ele não pode ser nem a matéria, nem a forma. 3 Depois, prossegue sua busca considerando o que parece ser as verdadeiras propriedades do lugar: «O que pode ser o lugar, eis como isso se tornará manifesto. Tomemos, a esse respeito, o que verdadeiramente parece lhe pertencer per se».4 É fácil reconhecer que o lugar é o envelope primeiro daquilo de que ele é o lugar, que ele não é nada da realidade localizada, que o lugar primeiro não é nem maior nem menor do que a realidade, que pode ser abandonado pela realidade e que ele é separável dela (koriston).A todo lugar pertencem o alto e o baixo, e cada um dos corpos é transportado por natureza e permanece no seu lugar próprio.5
Porém, deve-se ir mais longe em vista de precisar o que é o lugar . É necessário transformar em verdadeiras propriedades do lugar aquelas que foram admitidas somente como tais e, assim, manifestar a razão das dificuldades.6
Em seguida, deve-se mostrar a diferença entre o fato de fazer parte de um todo e estar em um lugar. Quando o corpo não é destacado, ele é dito como uma parte em um todo, por exemplo como a vista no olho ou a mão no corpo; ao invés, quando ele está destacado, ele é dito como a água no barril, o vinho no odre; pois a mão é movida com o corpo, mas a água é movida no barril.7 1 Ibid ., 208 a 32-35. 2 Ibid ., 1, 209 a 2-30. 3 Ibid ., 2, 209 a 31 - 210 a 13. 4 Fís., IV, 4, 210 b 32-34. 5 Ibid ., 210 b 33 - 211 a 6. 6 Ibid ., 211 a 9-11. 7 Ibid ., 211 b 1- 5.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS
Também se pode precisar que, quando «o envelope é não-separado do corpo, mas contínuo ao corpo, não se diz que o corpo está nele como em um lugar, mas como uma parte em um todo; quando o envelope é separado e simplesmente em contato, o corpo está imediatamente no interior da superfície extrema do envelope, que não é parte de seu conteúdo, nem maior que o intervalo de extensão do corpo, mas é igual a ele. Pois as extremidades das realidades em contato estão «no mesmo». 1 «Se o corpo é contínuo ao envelope, ele não se move nele, mas com ele; se ele está separado, ele se move nele». 2 Isso permite a Aristóteles concluir: «O lugar não pode ser senão uma destas quatro realidades: a forma, a matéria, um intervalo entre as extremidades ou, enfim, as extremidades». 3 É manifesto que o lugar não é a forma: esta é «da realidade"; o lugar é «do corpo envolvente». O lugar não é o intervalo. Este é intermediário entre os limites e parece ser algo enquanto ele é independente do corpo deslocado. O lugar não é a matéria, pois a matéria não é separável da realidade, nem a envolve — dois caracteres próprios do lugar. O lugar, portanto, é «o limite (to peras) do corpo envolvente». 4 O corpo envolvido é aquele que é móvel por transporte. E Aristóteles acrescenta: «Como o vaso é um lugar transportável, assim, o lugar é um vaso que não se pode mover». 5 Portanto, é preciso distinguir bem a maneira de estar em um vaso e a maneira de estar em um lugar; assim, um navio num rio está antes como num vaso do que como num lugar. Nesse sentido, pode-se dizer que o lugar pode ser imóvel. É o rio no seu todo que é o lugar, porque, assim, ele é imóvel. «O lugar é, portanto, o limite primeiro imóvel do envolvente». 6 «Por causa disso, o centro do céu e a extremidade (aquela que está voltada para nós) do transporte circular parecem ser o alto e o baixo, antes de tudo, para tudo, e no sentido eminente; com efeito, um permanece sempre, o outro, a extremidade do orbe, permanece no sentido em que ela se comporta da mesma maneira. (...) O baixo é o limite envolvente do lado do centro; também é o próprio corpo central. O alto, que está do lado da extremidade, é extremo também». Eis por que «o lugar parece ser como que uma superfície e como um vaso, um envelope». Aristóteles diz também que o lugar existe ao mesmo tempo que a realidade, pois «é com o limitado que é o limite».7 E conclui: «Se um corpo tem fora de si um corpo que
1 Ibid ., 211 a 29-34. 2 Ibid ., 211 a 34-35. 3 Ibid ., 211 b 6-9. 4 Ibid ., 212 a 6. 5 Ibid ., 212 a 14-15. 6 Ibid ., 212 a 20. 7 Ibid ., 212 a 21-30.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES que o envolve, ele está em um lugar (...). E o todo enquanto todo não muda de lugar, mas ele se move em círculo». 1 Depois do lugar, Aristóteles estuda o vazio. 2 Se alguns de seus predecessores afirmavam que o vazio existe, fazendo do vazio uma espécie de lugar, Aristóteles é muito nítido: o vazio não existe, ele não é nem separado, nem em potência. O tempo Aristóteles começa por recordar as dificuldades a respeito do tempo e por examinar, através de um discurso exotérico, se é preciso considerá-lo entre as realidades existentes. Ele precisa, em seguida, sua natureza ( physis).3 «O tempo não tem senão uma existência imperfeita e obscura, pois precisamente, por um lado ele foi e não é mais, por outro lado, ele vai ser e ainda não é». 4 Ele existe sucessivamente sucessivamente e de uma maneira parcial, implicando não-ser. Sendo assim, ele parece não participar da substância. «Por outro lado, o instante (to nun) não é uma parte, (...) pois o tempo não é composto de instantes». 5 Como um instante existe? Ele é sempre novo? Ele subsiste uno e idêntico? Aristóteles mostra que as tradições não dão muita clareza, umas pretendendo que é o movimento do todo que é o tempo, outras que é a própria esfera. É claro, em todo caso, que o tempo é ligado ao movimento, e é essa relação do tempo ao movimento que se deve examinar; não se pode identificar os dois e não se pode isolá-los. «A mudança de cada realidade está somente na realidade que muda, (...) ao passo que o tempo está em todo lugar e em todos igualmente». 6 Falar de rápido ou de lento não tem sentido em relação ao tempo, pois lentidão e rapidez são definidas pelo tempo: é rápido o que é movido muito em pouco tempo. O tempo não é definido pelo tempo... Isso mostra bem que o tempo não é o movimento, porém, por outro lado, que o tempo não existe sem o movimento. Se acontece nós não pensarmos que o tempo passa, é quando não determinamos nenhuma mudança e que a alma parece durar num estado único e indivisível, já que, ao contrário, é sentindo e determinando uma mudança que dizemos que o tempo passou; vemos que não há tempo sem movimento nem mudança.7 1 Ibid ., 5, 212 a 31-35. 2 Fís., IV, 6-9. 3 Cf. Fís., IV, 10, 217 b 29-32. 4 Ibid ., 217 b 32-34. 5 Fís., IV, 10, 218 a 6-7. 6 Ibid ., 218 b 10-13. 7 Ibid ., 11, 218 b 29 - 219 a 1.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS
É pela experiência da mudança que percebemos o tempo. 1 Agora, é necessário procurar o que é o tempo e, para isso, é necessário «tratar do movimento». 2 Essa experiência do movimento pode ser exterior ou interior, e é por ela que percebemos o tempo. Isso mostra bem que o tempo é algo ( ti) do movimento. O tempo é contínuo pelo movimento, 3 pois é de fato pela continuidade da grandeza que o movimento é contínuo. O anterior e o posterior estão primeiro no lugar, segundo a posição. Se a relação do anterior e do posterior está na grandeza, ela também estará no movimento, por analogia com a grandeza. Portanto, ela estará também no tempo, «uma vez que o tempo e o movimento obedecem sempre um ao outro». 4 O anterior e o posterior estão no movimento. Isso permite a a Aristóteles afirmar que conhecemos o tempo quando determinamos o movimento utilizando o anterior e o posterior; e dizemos que tempo passou quando sentimos o anterior e o posterior no movimento.5
Assim, podemos precisar o papel do instante em relação ao tempo: A determinação do tempo supõe que tomemos os termos distintos um do outro, e um intervalo (metaxu) diferente deles. Pois, quando pensamos as extremidades outras que o meio, e que a alma diz que há dois instantes, o anterior e o posterior, dizemos que é um tempo; pois o que é definido pelo instante parece ser tempo. Portanto, quando sentimos o instante como uno, e não como anterior e posterior no movimento (...), parece que tempo algum passou, uma vez que não há nenhum movimento. Ao contrário, quando sentimos o anterior e o posterior, então, dizemos [que] o tempo [é]. (...) Portanto, podemos dizer que o tempo é o número (arithmos) do movimento segundo o anterior e o posterior. O tempo não é o movimento, mas o movimento enquanto tem um número. (...) O tempo, portanto, é um certo número.6
Aristóteles precisa que o número é dito de duas maneiras: como numerado e numerável, como meio de numerar. O tempo é o numerado, e não aquilo pelo qual nós numeramos. Aristóteles especifica, em seguida, o que é o instante em relação ao tempo: 1 «Percebemos (aisthanometha), ao mesmo tempo, o movimento e o tempo» ( ibid ., 219 a 3-4). 2 Ibid ., 219 a 3. 3 Ibid ., 219 a 12-13. 4 Ibid ., 219 a 19. 5 Ibid ., 219 a 22-25. 6 Ibid ., 219 a 25- 219 b 5.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
Da mesma forma que o movimento é sempre outro e outro, da mesma forma o tempo. No entanto, o tempo todo inteiro é o mesmo, pois o instante é o mesmo no seu sujeito, ao passo que seu existir é outro. E o instante mensura o tempo, enquanto anterior e posterior.1
A análise do instante é capital. Ela é difícil de ser compreendida perfeitamente, pois se quer precisar que o instante, a um só tempo, é idêntico a si mesmo como instante (ele é indivisível, portanto, sempre o mesmo), e sempre diferente na sua existência própria — não pode haver dois instantes idênticos na sua existência própria. Sendo assim, compreendemos como o instante mensura o tempo, pois a medida é o indivisível, portanto, sempre idêntica a si mesma, porém, sendo em conaturalidade com o divisível que ela mede. O instante é em si mesmo indivisível; e no seu existir, ele é outro e outro, ele é em conaturalidade com o anterior e o posterior.
4. O primeiro motor ( Física, livros VII e VIII) No termo da Física, os livros VII e VIII são bem conhecidos como as grandes vias de acesso para um primeiro motor imóvel. Eles foram tão diversamente analisados e interpretados que é necessário tentar mostrar seu significado profundo, sem querer aqui analisá-los minuciosamente. Primeiro, tentemos especificar a intenção do Filósofo no livro VII. Devemos considerar esse livro como uma conclusão da filosofia da natureza? Então, compreenderíamos como se fala de «demonstração» da existência do primeiro motor... Ao contrário, devemos considerálo como um livro crítico, que mostra como a própria existência do movimento, em sua inteligibilidade profunda, exige pôr uma realidade além do movimento? Em outras palavras, uma realidade movida, seja ela una ou múltipla, ou infinita, em razão mesmo de sua inteligibilidade, exige pôr uma realidade que esteja além do movimento. É impossível que uma realidade movida seja a realidade primeira: pelo próprio fato de existir, ela exige pôr um outro. A análise precisa do texto de Aristóteles mostra bem que só a segunda interpretação é legítima. O livro VII começa por esta afirmação: «Todo movido necessariamente é movido por algo».2 Que significa exatamente esta afirmação? Trata-se de uma causa e de um princípio próprio da filosofia da natureza, ou trata-se de um axioma? O raciocínio que Aristóteles emprega para colocar em plena luz e justificar essa afirmação é um raciocínio por modo de impossibilidade. Portanto, estamos certamente numa perspectiva crítica, ao nível da 1 Ibid ., 219 b 9-12. Ver ibid ., 219 b 12 - 220 a 24. 2 Ibid ., VII, 1, 241 b 24.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS inteligibilidade. Com efeito, um princípio próprio é descoberto por indução, graças à experiência implicando o juízo de existência. O princípio se impõe por si mesmo à inteligência: nós o descobrimos ou não o descobrimos. Ao contrário, um axioma ao nível da inteligibilidade é demonstrado por modo de impossibilidade. Aqui, Aristóteles demonstra por impossibilidade que necessariamente a inteligibilidade do-que-é-movido implica a cooperação de um outro. A descoberta de um princípio próprio se faz por indução, pois a realidade se descela por si mesma — não podemos senão afirmá-la ou negá-la — , ao passo que a inteligibilidade de um axioma pode ter sido recusada ou mal entendida por outros — portanto, trata-se de defendê-la... Não se defende uma realidade existente, mas a inteligibilidade que se percebeu dela, o que sempre pressupõe a descoberta da verdade. Aqui, a inteligibilidade do movimento exprimida através desse axioma pressupõe a descoberta da natureza e de seu movimento próprio.1 Olhemos agora a maneira como Aristóteles afirma, graças a esse axioma, a necessidade de pôr um primeiro motor: Já que todo movido é necessariamente movido por algo, se seguramente uma realidade é movida de um movimento local por uma outra realidade movida, e se por sua vez o motor é movido por uma outra realidade movida, e esta por um outro, e sempre assim, é necessário que exista algo, o primeiro motor, e que não se vá ao infinito.2
Este raciocínio faz apelo à afirmação da impossibilidade de remontar ao infinito, que é também um axioma. Ele não comprova nada na ordem do existir, mas mostra simplesmente que, se se pretende remontar ao infinito, tudo se torna relativo e dependente de um outro. Mais nada é inteligível e já não há ordem possível. No livro VIII, Aristóteles utiliza uma argumentação um pouco diferente. O Filósofo tenta em primeiro lugar mostrar a eternidade do movimento; e é a partir deste movimento eterno que ele afirmará a necessidade de pôr um primeiro motor. À primeira vista, pareceria que houvesse aqui uma prova filosófica (e não crítica), permitindo verdadeiramente afirmar a existência de um primeiro motor eterno, causa eficiente desse movimento eterno.
1 Por isso mesmo, entende-se como esse axioma crítico não é de modo algum em contradição com o «princípio
de inércia» da mecânica galileana — «todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme numa linha reta, a menos que esteja impulsionado por uma força externa para que faça mudar esse estado» — , pois ele está em um outro nível de inteligibilidade. Esse axioma da filosofia da natureza pressupõe a descoberta de um princípio próprio a partir da experiência ligada ao juízo de existência a respeito do nosso mundo físico, ao passo que o princípio de inércia é uma lei que expressa o modo como o movimento ocorre — segundo um método hipotético-dedutivo e graças a um instrumento matemático. Não se deve nunca esquecer que o relacionamento entre a filosofia e as ciências modernas há de ser estudado de um ponto de vista crítico. 2 Ibid ., 242 a 15-20.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Na realidade, após ter longamente demonstrado a existência da eternidade do movimento,1 Aristóteles usa de novo o axioma dado no livro VII — «Todas as realidades movidas são movidas por algo» 2 — e e do axioma de não regressão ao infinito, para afirmar a necessidade do primeiro motor e sua imobilidade. Portanto, encontramos uma argumentação análoga à do livro VII, no entanto, muito mais desenvolvida. Muitas vezes aqui Aristóteles faz apelo explicitamente a hipóteses de pesquisa e ao método de divisão. Notemos também que, no livro VIII, Aristóteles emprega a expressão eulogos, eulogos,3 conforme à razão... Parece, pois, que a intenção de Aristóteles no livro li vro VIII seja mostrar a impossibilidade de justificar a existência das realidades movidas sem pôr um primeiro motor imóvel... Mas por que acrescentá-lo ao livro VII? É a afirmação do movimento e do tempo eternos que parece bem ser o caráter próprio da pesquisa desse livro VIII. Com isso, Aristóteles nos mostra sua visão sobre o cosmo, sobre o universo e sobre sua maneira de existir: esta pode propiciar um elemento novo a seu raciocínio crítico, que é menos formalmente explicitado do que no livro VII. O livro VIII implica, portanto, uma certa visão de harmonia e de perfeição do mundo, que serve de trampolim para afirmar a necessidade de pôr um primeiro motor imóvel, eterno, separado de toda quantidade. * Ao olhar a filosofia da natureza somente de um ponto de vista material, quantitativo por assim dizer, seríamos tentados em afirmar que o movimento é seu princípio de organização, o centro de interesse para onde tudo converge. Na realidade, se a examinamos de um ponto de vista mais profundo, descobrimos que é propriamente a natureza enquanto princípio que desempenha este papel. Com efeito, se se contentasse com uma mera descrição do que aparece no mundo sensível, do que é imediatamente experimentado, dever-se-ia fazer do movimento o centro de tal estudo, seu princípio próprio de síntese e de harmonia. Mas Aristóteles, como filósofo da natureza, não se contenta em descrever o universo físico: ele quer analisá-lo, no sentido forte, isto é, desvelar-lhe as causas próprias. A natureza é precisamente esta causa própria. Ela é desvelada como causa eficiente, material, formal e final. Esta natureza, que é descoberta por nós como causa eficiente, material, formal e final da realidade física movida e que explica filosoficamente, pelo movimento físico, o aspecto finito e infinito do cosmo, as estruturas próprias do lugar e do tempo, de fato, esta natureza se encontra, segundo o Filósofo, realizada de diversas maneiras. Ela se encontra realizada perfeita e eternamente eternamente nos corpos celestes; celestes; imperfeitamente e de de modo simples nos elementos elementos dos corpos sublunares; de modo mais perfeito, mas corruptível e complexo nos mistos e nos 1 Fís., Fís., VIII, 1-3. 2 Ibid ., ., 4, 256 a 2-3. Ver o conjunto do capítulo 4. 3 Cf. ibid ., ., 5, 256 b 13-14.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS viventes inferiores; de modo perfeito, mas ainda complexo e corruptível nos viventes superiores.
5. Os corpos celestes (Tratado Do (Tratado Do céu) céu) Segundo a ordem dos tratados da filosofia das realidades físicas, depois da Física vem, Física vem, céu . É interessante frisar aqui brevemente alguns aspectos da organização pois, o tratado Do tratado Do céu. deste tratado. Ele tem uma grande importância, uma vez que considera a parte principal das realidades físicas: A ciência da natureza considera manifestamente, na sua maior parte ou quase, os corpos e as grandezas, assim como suas modificações ( pathé ( pathé)) e seus movimentos. 1
Aristóteles mostra primeiro que «o divisível segundo todas [as dimensões] é um corpo» e que, nas grandezas, «o que é sob três dimensões é um corpo». 2 E afirma: «Já que “todas as realidades”, o todo e o perfeito não diferem segundo a forma ( kata tén idean) idean) (...), o corpo será a única das grandezas que seja perfeita. Só ele, com efeito, é definido pelo número três, o que é o mesmo que «todo». 3 O corpo é a única realidade material quantitativa perfeita, a que implica três dimensões e que é divisível segundo todas as dimensões. Portanto, cada um dos corpos é perfeito. Todavia, «ele é limitado pelo contato com o corpo vizinho», o que implica uma certa multiplicidade. Mas «o todo, cujas partes são esses corpos, necessariamente é perfeito; e, como seu nome o assinala, ele o é totalmente, em vez de sê-lo sob tal aspecto e não sob tal outro». 4 O corpos se chamam um ao outro para formar um todo. céu, as considerações de Aristóteles partem do todo: todo: é a partir do todo, No tratado Do tratado Do céu, que é um todo t odo quantitativo, que Aristóteles olha os diferentes corpos: A propósito do todo da natureza, examinaremos ulteriormente se ele é infinito segundo a grandeza ou se sua massa toda inteira é limitada. Agora falemos de suas partes especificamente distintas (kat' (kat' eidos). eidos).5
Aristóteles sublinha então que esse todo implica uma diversidade de movimentos:
1 Do céu, céu, I, 1, 268 a 1-3. 2 Ibid ., ., 268 a 7-8. 3 Ibid ., ., 268 a 21-24. 4 Cf. ibid ., ., 268 b 5-10. 5 Ibid ., ., 2, 268 b 11-14.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Todos os corpos físicos e todas as grandezas, dizemos, são móveis per se segundo se segundo o lugar; dizemos, com efeito, que a natureza é o princípio de seu movimento. Ora, todo movimento segundo o lugar (...) é ou retilíneo ou circular ou uma mesclagem destes, que são os dois únicos movimentos simples. A causa disso é que essas grandezas também são as únicas simples, a saber, a direita e a circunferência (...). Chamo movimento para o alto aquele que parte do centro e movimento para o baixo aquele que vai para o centro. Portanto, é necessário que toda translação simples seja a que parte do centro, a que vai para o centro, a que está ao redor do centro.1
Esta diversidade nos movimentos segundo o lugar no interior do todo implica, logo, uma ordem: os movimentos complexos se reduzem aos simples, que são os movimentos retilíneos e o movimento circular. Uma vez que os corpos físicos são móveis per se segundo se segundo o lugar, Aristóteles passa desses movimentos aos corpos que são movidos. Já que os corpos são ou simples ou compostos de corpos simples, os movimentos também necessariamente são ou simples ou mistos, de certo modo: «Os dos corpos simples são simples, os dos corpos compostos são mistos». 2 Aristóteles conclui, então, que existe necessariamente um corpo simples movido de movimento circular: Portanto, já que existe um movimento simples e que o movimento circular é simples; já que o movimento de um corpo simples é simples e que o movimento simples é o de um corpo simples (...), é necessário que exista um certo corpo simples que naturalmente é movido de movimento circular, segundo sua própria natureza.3
Logo, é a partir do movimento circular que Aristóteles afirma a existência de um corpo simples, cujo movimento seja o movimento propriamente natural. Prossegue afirmando que «esta translação necessariamente é a primeira, pois por natureza o perfeito é primeiro em relação ao imperfeito; ora, o círculo pertence às realidades perfeitas». 4 O movimento circular, sendo superior ao movimento retilíneo, que pertence a um corpo simples, é necessário que o movimento circular pertença a um corpo simples, mais perfeito. Portanto, resulta manifestamente «que existe naturalmente a substância de um corpo fora das formações desse mundo, mais divina e primeira a respeito delas todas». 5 Aristóteles acumula, então, os raciocínios para mostrar a existência deste corpo simples mais divino e mais perfeito. Não seria porque nenhum deles é absolutamente probante? De certo modo, trata-se de raciocínios no nível dialético, no termo dos quais Aristóteles afirma: 1 Ibid ., ., 268 b 14-24. 2 Ibid ., ., 269 a 1-2. 3 Ibid ., ., 269 a 2-7. 4 Ibid ., ., 269 a 18-20. 5 Ibid ., ., 269 a 30-32.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS
É por causa disso que, se alguém raciocina a partir de todas estas considerações, poderá persuadir -se -se que existe, fora dos corpos que nos rodeiam nesse mundo, um corpo diferente e separado, que tem uma natureza tanto mais nobre quanto ele está mais longe das coisas daqui.1
Em seguida, Aristóteles mostra as propriedades deste corpo: ele não é nem leve nem pesado, pois seu movimento natural é o movimento circular; é ingerado, incorruptível, sem crescimento nem diminuição, pois este corpo não pode ter nenhum contrário. Ainda é inalterável, sua qualidade não está submetida à alteração. Eis por que, sendo eterno, sem acréscimo nem diminuição, sem condições de envelhecer, sendo imutável e impassível, ele é o primeiro dos corpos, se se admite ( pisteuei) pisteuei) o que colocamos como fundamento; isso é manifesto a partir do que dissemos.2
E para justificar suas afirmações, Aristóteles prossegue: Parece bem que o logos testemunha logos testemunha em prol das coisas manifestas e que as coisas logos. Com efeito, todos os homens têm uma manifestas testemunham em prol do logos. certa concepção dos deuses, e todos assinam ao deus o lugar mais elevado, tanto os bárbaros quanto os gregos, pelo menos os que dizem que os deuses existem. É evidente que o imortal é ligado ao imortal, pois é impossível que seja de outra forma. Assim, portanto, se existe algo divino, e verdadeiramente existe um, o que acaba de ser dito a propósito da primeira substância dos corpos foi dito de maneira correta.3
Em terceiro lugar, Aristóteles nota que a observação observação sensível leva à mesma conclusão: Em toda a extensão do tempo, segundo a lembrança que os homens transmitiram uns aos outros, nenhuma mudança foi constatada, nem no último céu no seu conjunto, nem em alguma das partes que lhe são próprias. 4
Enfim, Aristóteles dá um argumento a partir do nome: os antigos chamaram de «éter» o lugar mais elevado, palavra que provém da corrida incessante ( aei thein) thein) desse corpo. 1 Ibid ., ., I, 2, 269 b 13-17. 2 Ibid ., ., 3, 270 b 1-4. 3 Ibid ., ., 270 b 4-11. 4 Ibid ., ., 270 b 12-16.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Aqui, notemos que Aristóteles afirma a existência deste corpo simples, assim como suas propriedades, raciocinando raciocinando sobre os movimentos. A experiência intervém somente em segundo lugar. Nesse olhar sobre o todo, Aristóteles sabe o quanto nossos conhecimentos conhecimentos dos corpos celestes são fracos e sujeitos a constantes revisões, visto o pouco de experiência que temos em relação a eles. É por causa disso que a parte construtiva e lógica, a parte mais céu do que provável e mais arbitrária é muito muito mais manifesta e mais importante no tratado Do tratado Do céu do nos outros tratados da filosofia da natureza. 1 Em seguida, Aristóteles trata da finitude do universo, pois um corpo corpo físico não pode ser ser infinito. Começa frisando a importância dessa questão: ela desempenha um papel decisivo relativamente à contemplação (theoria (theoria)) da verdade. Com efeito, ela é que é o ponto de partida das divergências entre aqueles que deram explicitações a propósito da natureza toda inteira, e, provavelmente, continuará assim, uma vez que um ligeiro desvio fora da verdade se torna, à medida em que se progride, dez mil vezes mais considerável.2
Aristóteles mostra, então, com a ajuda de numerosos argumentos, por modo de impossibilidade, que o universo não é infinito. 3 Em seguida, mostra que o céu é único e que ele é eterno. Primeiro, discorramos sobre o que chamamos de céu (...). De uma primeira maneira, chamamos de céu a substância do último orbe do todo, ou o corpo físico que está neste último orbe do todo. Com efeito, o que nomeiamos habitualmente céu é o que é último e o que está em cima, aquilo no qual também dizemos que toda divindade reside. De outra forma, é o corpo que é contínuo ao último orbe do todo, no qual estão a lua, o sol e alguns dos astros. Com efeito, dizemos que eles estão no céu. Ademais, dizemos, de outra maneira, que o céu é o corpo envolvido em baixo do último orbe. Pois também temos costume de chamar de céu o todo e o universo. 4
Então, Aristóteles afirma que corpo algum existe fora do céu, que não há nem lugar, nem vazio, nem tempo fora do céu. Por conseguinte, conseguinte, para nenhum dos seres celestes há lugar nem tempo; imutáveis, impassíveis, gozando da melhor e mais independente das vidas, eles prosseguem sua existência «durante «durante a duração duração toda inteira». inteira». Para Aristóteles, toda a natureza é conhecida pelo movimento; ora, dentre os movimentos, o [movimento] local é o mais perfeito; e o movimento local mais perfeito é o 1 Ver em particular Do particular Do céu, céu, II, 5, 287 b 28 seg.; 12, 291 b 24 seg.; 292 a 18 seg. 2 Ibid ., ., 5, 271 b 5-9. 3 Ibid ., ., capítulos 5 a 8. 4 Ibid ., ., 9, 278 b 9-21.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS circular. Assim é o movimento circular, movimento de um corpo simples, divino e incorruptível, que deve nos dar a inteligibilidade mais forte do mundo físico, do todo, constituído dos corpos físicos que são suas partes especificamente distintas. Assim, Aristóteles coloca à luz a estrutura própria do universo, que é «trinitária». Por causa disso, ele afirmava no início: O todo e a totalidade das coisas são determinadas pelo número três; fim, meio e ponto de partida formam o número do todo, e o seu número é o da tríade. É por causa disso que, a natureza nos tendo entregue de alguma maneira suas leis próprias, usamos igualmente esse número nas cerimônias do culto dos deuses. 1
No livro II, Aristóteles estuda a razão da multiplicidade dos movimentos locais — «é necessário que o devir ( genesis) exista»2 — , o caráter esférico do céu, que é animado de um movimento de rotação perfeitamente regular. Em seguida, aborda o estudo dos astros — «eles são esféricos e não são movidos por si mesmos» 3 — e sua ordem, questão a propósito da qual Aristóteles destaca a importância da astronomia. 4 Enfim, o Filósofo afirma: «Resta falar da terra; do lugar onde ela se encontra situada; ela pertence às realidades em repouso ou em movimento? E qual sua configuração?» 5 O livro III é dedicado ao estudo da geração e da corrupção, assim como ao dos elementos; e o livro IV ao pesado e ao leve. O estudo do tratado Do céu nos mostra bem que, para Aristóteles, os corpos celestes constituem a parte mais eminente e mais nobre do universo físico: «A ordem e a determinação aparecem mais nos seres celestes do que entre nós...» 6 Esses corpos, embora façam essencialmente parte do cosmo — permanecem seres móveis — , no entanto, escapam inteiramente à contingência e ao acaso. Aristóteles concebe, com efeito, que eles têm uma natureza que implica uma matéria perfeitamente enformada, que não deixa nenhuma possibilidade de corrupção — é o reino do necessário. Eles são eternos, eles possuem e conservem em si mesmos uma duração infinita, pois são ingerados e incorruptíveis. Eles têm uma figura perfeita: a figura esférica. Entretanto, encontramos de novo a respeito dos corpos celestes, divinos, a distinção própria a toda a filosofia da natureza entre a natureza-forma e a natureza-matéria. A forma «celeste» é ou uma alma, que faz desses corpos celestes viventes perfeitos, ou uma forma perfeita, mas puramente física. Não queremos aqui resolver a questão de saber se esta alma é uma alma princípio imanente desses corpos celestes ou uma forma permanecendo física e 1 Ibid ., 1, 268 a 11-15. 2 Ibid ., II, 3, 286 b 7. 3 Ibid ., 9, 291 a 27. 4 Cf. ibid ., 10, 291 a 29 seg. 5 Cf. ibid ., 13, 293 a 15-17. 6 Partes dos animais, I 1, 641 b 18-20.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES dependendo de uma alma, substância separada puramente espiritual, que se serviria desses corpos como a inteligência humana pode se servir de um instrumento. É muito difícil estabelecer o pensamento do Filósofo neste ponto. Por um lado, parece bem que esses corpos celestes possuem as perfeições dos seres viventes; por outro lado, não se vê como a alma pode enformar um corpo simples e viver nele. Mas é certo que, para Aristóteles, os corpos celestes possuem um movimento perfeito, circular natural e vital, cuja característica é ser isento de toda violência e de todo constrangimento exterior. Tal movimento se efetua, portanto, sem nenhuma dificuldade e sem labor. Conseqüentemente, pode ser uniforme e eterno. Logo, pode-se afirmar que, para Aristóteles, no universo dos corpos celestes, a natureza se encontra perfeitamente realizada, desenvolvida segundo todas as suas perfeições, sem oposições nem lutas, na simplicidade absoluta. Por mais arcaicas que nos pareçam tais concepções, no entanto, elas não deixam de interessar o filósofo da natureza, não quanto à precisão de suas conclusões, é certo, mas quanto à própria análise de Aristóteles e quanto aos princípios filosóficos que aí se acham engajados. Neste tratado Do céu, especialmente na parte que trata do conjunto do universo e dos corpos celestes em particular, por causa do que ele considera, «o corpo físico» enquanto perfeito — isto é, enquanto «todo» perfeito ou enquanto parte principal deste todo perfeito — , os princípios da filosofia da natureza se encontram realizados com uma perfeição única. Na parte «celeste» do universo, o único movimento que pode ainda existir é o movimento local, único movimento perfeito que possa ser eterno e afetar seres incorruptíveis. Assim, não é surpreendente achar nesse livros uma argumentação filosófica que não encontramos nas outras obras da filosofia da natureza do Estagirita. Ela pode parecer à primeira vista platônica ou pitagórica. Na realidade, ela permanece própria ao gênio de Aristóteles. 1 Para o Filósofo, com efeito, nos corpos celestes todo o universo físico desse mundo se encontra num estado de perfeição; portanto um pouco como que «idealizado», todavia sem perder seu caráter físico. Este mundo dos astros, que possui sobre a nossa inteligência um tal poder de fascínio — não é ele considerado pelo Estagirita de algum modo como o protótipo de toda a ordem física? — , esse mundo escapa por grande parte à experiência do filósofo. Logo, não pode ser estudado da mesma maneira que o mundo sublunar. Embora parte da filosofia da natureza, o estudo filosófico deste universo celeste não pode ser elaborado senão pedindo múltiplos empréstimos à astronomia. Sendo assim, este estudo filosófico permanece muito mais 1 Seria interessante comparar a maneira como Platão considera os corpos celeste no
Timeu e o estudo do tratado Do céu de Aristóteles... Ambos se servem da astronomia, mas de maneira toda diferente. Para Platão, tudo é visto a partir da causa exemplar e do demiurgo. A preocupação de Aristóteles é explicar alguns dados experimentais que temos do mundo celeste, usando as pesquisas astronômicas, que permanecem da ordem do verossímil. Assim, poderíamos precisar como Platão e Aristóteles concebem o possível. Platão o olha a partir da causa exemplar, como um possível artístico. Para Aristóteles, ele é olhado em confrontação com os dados da experiência, por mais fracos e tão frágeis que sejam. Um formaliza os dados das ciências astronômicas graças a uma causalidade exemplar; o outro retém uma certa ordem possível em função da experiência.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS relativo a seu meio cultural e religioso, daí sua caducidade e seu interesse mais histórico, que nos revela certas concepções religiosas e artísticas do Filósofo. Aliás, o próprio Aristóteles se refere várias vezes a essas tradições religiosas. 1 Também é interessante tentar descobrir o que representa, no pensamento de Aristóteles, a passagem da Física ao tratado Do céu. A Física, após ter justificado que o movimento físico é inteligível, estuda-o filosoficamente procurando sua causa própria, analisando a experiência do-que-é-movido. O tratado Do céu olha o todo do universo, que implica os corpos como partes. Aristóteles já não busca, portanto, os princípios próprios do movimento, mas quer mostrar como se pode compreender a harmonia visível do movimento do universo. Este forma um todo e é o meio no qual os viventes e o homem terão condições de aparecer e se desenvolver. Enfim, notemos que esta diferença entre a Física e o tratado Do céu pode permitir situar as críticas feitas à filosofia da natureza de Aristóteles. Evidentemente é por causa do tratado Do céu que ela é o alvo de tantas críticas! Mas a filosofia da natureza não se reduz a esse tratado, tampouco é constituída em primeiro lugar por ele. O tratado Do céu depende da astronomia, das ciências astronômicas, o próprio Aristóteles o reconhece. Estas evidentemente evoluiram muito, se tornaram muito precisas. Não seria razoável querer a tudo custo guardar essas afirmações de Aristóteles, porque elas são de Aristóteles! Seria ser materialmente discípulo de Aristóteles, mas, de certo, não segundo o espírito... Portanto, é preciso compreender bem que só a Física nos dá a análise propriamente filosófica das causas próprias do-que-é-movido, das realidades físicas. O tratado Do céu, servindo se desses princípios e da astronomia, não nos desvela mais os princípios próprios do-que-é-movido, mas as leis do «como», a partir dos corpos celestes.
6. Os elementos Ao oposto dos corpos celestes e, entretanto, envolvidos por esses, encontram-se as realidades corruptíveis. Elas são para nós as realidades naturais mais cognoscíveis e mais próximas, pois são apreendidas imediatamente pela experiência: sua qualidades próprias determinam imediatamente nossos sentidos externos. Segundo a ordem de imperfeição as primeiras realidades físicas são os elementos. 2 Neles, como o nome indica, a natureza se encontra no estado mais imperfeito, mais inacabado. A natureza-forma destes elementos não é outra que a determinação que os faz tais e os distingue entre si. Essas determinações não são outras que as qualidades tangíveis, já que somente as
1 Ver em particular Do céu, II, 1, 284 a 2 seg; I, 3, 270 b 4-11; I, 9, 278 b 15. 2 Aristóteles estuda os elementos na tratado Do céu (III, 3, 301 b 10 seg.)
corrupção (II, 1, 328 b 26 seg.).
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e no tratado Da geração e da
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES contrariedades segundo o tato podem constituir as espécies dos elementos. 1 Os princípios constitutivos dos primeiros corpos sensíveis, com efeito, devem dar razão de sua possibilidade de corrupção e de geração uns a partir dos outros, o que somente as qualidades tangíveis podem explicar; as outras qualidades não podem por si próprias alterar os corpos e estar na origem da geração e da corrupção. Esta concepção do «tangível», notemos bem, deve ser entendida em paralelo com toda a filosofia aristotélica das potências sensíveis. Para o Estagirita, com efeito, o tato é o sentido mais imperfeito, mas também o mais fundamental: a vida animal funda-se sobre o tato. Se este desaparece, a vida animal desaparece. 2 Como há uma ordem fundamental entre a potência e o que ela atinge, apreendemos como o que é conhecido imediatamente pelo tato é o sensível mais elementar, o que está na raiz de todos os outros sensíveis. Precisemos ainda que só as primeiras contrariedades das qualidades tangíveis, ativas ou passivas, constituem os elementos. 3 Estas primeiras contrariedades são, por um lado, o quente e o frio, por outro lado, o seco e o húmido. 4 Destas não se podem formar a não ser quatro pares: o quente e o seco, o quente e o húmido, o frio e o húmido, o frio e o seco. Toda outra combinação seria impossível, já que os contrários não podem coexistir. A partir de cada um destes pares nossa inteligência afirma um dos elementos: o fogo, a água, a terra, o ar. Os quatro elementos não são, portanto, corpos que podemos experimentar: experimentamos imediatamente diversas harmonias de qualidades existentes que se encontram constantemente, o que permite à inteligência afirmar a existência de quatro realidades elementares. Ao afirmar que o fogo, a água, a terra, o ar são as realidades físicas elementares, embora siga a autêntica tradição helênica dos filósofos da natureza, Aristóteles tem consciência de precisá-la e de aperfeiçoá-la. Graças à sua apreensão filosófica da natureza, com efeito, pode nos apresentar um novo conhecimento filosófico dos elementos, que se situa além das teorias materialistas de Empédocles e puramente qualitativa de Platão. Discernindo pela análise filosófica os corpos simples tais como existem de fato, de seus próprios princípios naturais (matéria e forma) que os constituem, Aristóteles evita o materialismo empírico de Empédocles e mantém às determinações qualitativas seu caráter primordial. Não são as conclusões que interessam antes de mais nada o Filósofo (os quatro corpos elementares são o fogo, a água, etc...), mas as determinações próprias que os constituem e os distinguem entre 1 «É impossível que esse corpo
exista sem uma oposição sensível» ( Da geração e da corrupção , II, 1, 329 a 1011); «Uma vez que procuramos os princípios dos corpos sensíveis, isto é, do corpo sensível ao tato...» ( ibid ., 2, 329 b 5 seg.). 2 Ver mais adiante, p. 145. 3 Vê-se imediatamente a objeção que se poderia opor a Aristóteles: não podemos projetar sobre o mundo físico a ordem de nossos conhecimentos sensíveis descoberta graças a uma análise filosófica. Não é a confusão do ontologismo: passar da ordem do conhecimento à ordem do real? Para responder a essa objeção, é preciso lembrar que para Aristóteles nossas experiências sensíveis filosóficas implicam o juízo de existência. É o real que descobrimos através do tangível: o-que-é tendo tal qualidade, descoberto através de nossa experiências sensíveis, especialmente o tato. 4 Cf. ibid ., 2, 330 a 24-29.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS si, assim como suas propriedades, isto é, as primeiras contrariedades tangíveis, apreendidas imediatamente pela experiência. Porque ele precisa que a ordem dessas qualidades tangíveis desvela as realidades físicas na sua diversidade própria e no que elas têm de mais fundamental, o Estagirita ultrapassa o dualismo de seu mestre, que não via nos corpos simples senão, por um lado, formas qualitativas acidentais e, por outro lado, uma matéria indeterminada existente por si mesma. 1 Esses elementos que, pelas suas qualidades tangíveis, estão na origem de todas as gerações e corrupções, 2 possuem um movimento local natural próprio: por natureza, o fogo se eleva, a terra cai. O leve e o grave são as qualidades realizadoras destes movimentos retilíneos contrários. Os dois outros elementos, o ar e a água, não têm movimento local característico, mas participam respectivamente ao do fogo e ao da terra. Portanto, se do ponto de vista das qualidades tangíveis, os primeiros elementos são quatro, do ponto de vista do lugar não passam de dois. Não há senão dois lugares extremos. Essa divergência entre a ordem das determinações próprias (qualidades tangíveis) e a do fim próprio dos movimentos (lugares), é característica da imperfeição desses elementos. Com efeito, a natureza não se encontra realizada nesses elementos senão de maneira muito imperfeita: ela não pode desenvolver neles todas as suas perfeições. Cada um desses corpos não pode ser por si próprio senão o princípio passivo de seu movimento local natural. A causa geradora de seu movimento não pode, definitivamente, explicar-se sem o auxílio eficaz e atual dos movimentos circulares dos corpos celestes. 3 O primeiro movimento circular, por causa de sua uniformidade, explica a continuidade das gerações e das corrupções dos corpos simples. Na esferas inferiores, há vários movimentos de translação. Graças a esta diversidade, pode-se captar a influência diversa do sol e da lua sobre os elementos e seus contatos mútuos. Em outras palavras, se os corpos celestes são animados de um movimento circular e eterno, no entanto, este movimento parece muito complexo e estes corpos não se movem todos da mesma forma. Aristóteles tenta explicar estes movimentos diversos aparentes com a ajuda de Calipe e de Eudoxo. 4 É o movimento do sol ao longo da eclíptica que desempenha um papel capital a respeito da corrupção e da geração, «pois o que engendra um homem, é um homem, mais o sol».5 Ao se aproximar e se afastar alternadamente de todo ponto dado sobre a terra, o sol explica, assim, em última análise, as transformações dos corpos sublunares. Por suas aproximações sucessivas, o sol age sobre os elementos, sobretudo o que provém destes. Ele permite suas transformações mútuas e seu crescimento; por seus recuos sucessivos, ele realiza 1 Logo
é por uma verdadeira demonstração a partir dos efeitos que Aristóteles descobre a existência própria desses quatro elementos. O fogo determina um corpos simples. Há uma forma do fogo, cuja propriedade é o quente, imediatamente experimentada pelo tato. 2 Cf. Da geração e da corrupção, II, 4, 331 a 7 seg. 3 Cf. Física, VIII, 6, 258 b 10 seg.; Do céu, II, 3, 286 a 2 seg.; Da geração e da corrupção, II, 9-10, 335 a 24 seg. 4 Cf. Metafísica, XII, 8, 1073 a 14 seg. 5 Fís., II, 2, 194 b 13.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES a corrupção e o declínio deles. Os elementos permanecem, portanto, naturalmente dependentes dos movimentos dos corpos celestes: não podem ser explicados sem sua intervenção. Esta dependência na ordem da causa eficiente é a única? Parece bem que no pensamento de Aristóteles, as gerações e as corrupções das realidades sublunares são os efeitos, os resultados dos movimentos celestes. Todavia, somente os corpos celestes realizam perfeitamente o voto de perpetuidade da natureza. Pelos seus movimentos circulares, eles permitem aos seres corruptíveis realizá-lo parcialmente; estes, não existindo sempre na sua individualidade própria, no entanto, podem conhecer uma certa permanência eterna no seu caráter específico. Deste ponto de vista, pode-se dizer que os corpos celestes são de fato as causas exemplares últimas dos corpos sublunares e que, ao envolvê-los pelas suas esferas, eles lhes dão seu lugar de maneira derradeira e, por esta razão, os finalizam.
7. Os mistos Sob influência dos corpos celestes, a partir dos corpos simples, formam-se, por um lado, certas mesclagens imperfeitas, passageiras, todos os fenômenos atmosféricos, os «fenômenos de cima»; por outro lado, certas mesclagens perfeitas inanimadas, tais a argila, o sal, etc. 1 Estes seres naturais, em razão de sua complexidade, são chamados de mistos. Se os mistos realizam a natureza de maneira mais perfeita que os elementos, é em detrimento de sua simplicidade. Neles, a natureza é mais do que uma simples determinação: ela possui uma certa proporção e uma certa harmonia. Mais ela permanece sempre um princípio de determinação passiva, tanto a respeito de seu movimento local quanto a respeito de sua geração, embora suas qualidades acidentais (princípio das alterações) sejam passivas e ativas: «Chamamos de ativos o quente e o frio, pois o que une é essencialmente uma espécie daquilo que é ativo; o húmido e o seco, ao invés, são passivos...». 2 Sob este aspecto, a natureza destes mistos é semelhante à dos corpos simples. Mas semelhança não significa identidade; se a natureza dos corpos mistos, considerada como matéria, permanece em continuidade com a dos elementos, no entanto, considerada como forma, ela possui algo irredutível: os corpos mistos possuem uma forma substancial mais nobre que a dos corpos elementares. Desta forma substancial emanam capacidades de influência, qualidades totalmente novas. Com respeito a esta concepção filosófica dos mistos, poderíamos constatar como, de novo, Aristóteles prossegue as pesquisas de seus predecessores, especialmente de Empédocles e de Platão, e como ele ultrapassa suas opiniões opostas. 1
Os meteorológicos são dedicados a este estudo — os três primeiros livros aos fenômenos «celestes» e o quarto às mesclagens estáveis da terra. 2 Meteor ., I, 1, 378 b 20 seg.
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B. FILOSOFIA DO VIVENTE E DA ALMA
O estudo dos viventes é uma parte importante do conjunto da filosofia da natureza de Aristóteles. Poderíamos até dizer que é a parte principal. O Filósofo no-lo assinala no início de seu tratado Da alma: Considerando que o conhecimento faz parte das realidades belas e dignas de honra e que um conhecimento o é mais que um outro, seja segundo a exatidão, seja porque ele considera realidades melhores e mais admiráveis, por causa destes dois aspectos podemos colocar o estudo da alma dentre os primeiros. Também parece que o conhecimento da alma propicia importantes contribuições à verdade inteira, e antes de mais nada com respeito à natureza. Com efeito, ela é o princípio próprio dos viventes.1
O estudo filosófico dos viventes comporta, portanto, não somente o estudo do corpo orgânico dos animais, mas principalmente o da alma. E o estudo da alma, para ser perfeito, deve considerar antes de tudo a alma humana, distinguindo nesta os diferentes graus de vida. Estudar a alma segundo suas diversas operações vitais, mesmo considerando-a como ato do corpo, encaminha diretamente o Filósofo a pôr, por um lado, o problema da substância separada, já que o noûs capaz de atingir um princípio universal é uma potência separada, e, por outro lado, o da natureza própria da atividade voluntária. A atividade do noûs e a do apetite (da vontade) que a segue, são capazes de uma certa reflexão e de uma certa consciência: portanto, elas podem ser consideradas por um conhecimento filosófico próprio. Logo, esse estudo da alma orienta a filosofia da natureza , a um só tempo, para a filosofia primeira e para uma filosofia humana, de duas maneiras muito diferentes. Poder-se-ia dizer que ela conduz à filosofia primeira — o estudo da alma humana lhe é como uma disposição última — e que ela fundamenta a filosofia humana. Aqui, descobrimos a importância muito especial deste estudo filosófico, assim como sua complexidade. Para Aristóteles, o estudo da alma permanece uma parte da filosofia da natureza: é como que o cume desta; e na sua última consideração, ela vincula-se à filosofia primeira. Por outro lado, ela é para a filosofia humana um fundamento indispensável. A filosofia da alma permanece um conhecimento teorético. 1 Da alma, I, 1, 402 a 1-7.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Este conhecimento explicita-se e complementa-se, no que ele tem de mais nobre, em um outro conhecimento teorético — a filosofia primeira — , e em um conhecimento prático — a filosofia humana.
1. Os viventes corruptíveis No primeiro livro do tratado Da alma, Aristóteles dedica-se sobretudo a levantar as opiniões de seus predecessores a respeito da alma. E conclui este estudo afirmando: Eis expostas as opiniões transmitidas por nossos predecessores. Agora, retomemos o ponto de partida, esforçando-nos em definir o que é a alma e qual seria seu logos mais comum.1
E prossegue um pouco mais adiante: Dos corpos naturais, uns possuem a vida, outros não a possuem; ora, eu chamo de vida o fato de se nutrir, de crescer e de perecer por si mesmo.2
Para Aristóteles, os viventes são realidades naturais que têm a iniciativa de certas operações. Eles se alimentam e crescem por si mesmos. Numa palavra, eles se movem a si mesmos e não são movidos. Precisamente enquanto viventes, eles repugnam a ser movidos e aparecem como tendo uma certa autonomia no seu próprio movimento vital. Têm em si o poder de agir, de exercer suas próprias potências. Aristóteles especifica que estas realidades naturais dotadas de vida são substâncias compostas de corpo e de alma: «Assim, todo corpo natural que participa à vida será uma substância, substância como composto». 3 Essa análise é análoga à das realidades físicas, que implicam a natureza-matéria e a natureza-forma: a natureza-matéria é para o corpo físico o que o corpo é para o vivente, da mesma forma que a alma é para o vivente o que a naturezaforma é para a realidade física.4 E Aristóteles acrescenta:
1 Da alma, II, 1, 412 a 3-6. 2 Ibid ., 412 a 13-15. «Portanto,
colocando assim o ponto de partida ( arkhé) de nossa pesquisa, dizemos que o animado difere do inanimado pelo «viver». Ora, já que o «viver» se diz de diversas maneiras, mesmo que uma só destas se encontre numa realidade, dizemos que ela vive; por exemplo, a inteligência, a sensação, o movimento e o repouso segundo o lugar, e ainda o movimento segundo a nutrição, enfim o perecer e o crescimento» ( ibid ., II, 2, 413 a 20-25). Ver também Física, VIII, 4, 255 a 6-7 e 6, 259 b 1-3, textos nos quais Aristóteles sublinha que o próprio dos viventes é se mover, ao passo que as outras realidades são movidas. 3 Da alma, II, 1, 412 a 15-16. 4 «Para quem considera a natureza, é preciso falar mais da alma que da matéria» ( Partes dos animais, I, 1, 641 a 29-30). Da mesma maneira que a forma é mais natureza que a matéria, da mesma maneira a alma com respeito ao corpo. Por isso ela é o que o filósofo de filosofia do vivente considera principalmente e em primeiro lugar.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Já que é também um corpo de tal qualidade — com efeito, ele tem a vida — , o corpo não será a alma; pois o corpo não pertence às realidades que são segundo um sujeito [relativas a um sujeito], mais ele é antes sujeito e matéria. Portanto, necessariamente, a alma é substância como forma de um corpo natural que tem a vida em potência. Ora, a substância é ato. Logo, a alma é ato de um corpo desta qualidade.1
E ele precisa que ela é «o ato primeiro de um corpo natural que tem a vida em potência — ora, tal é o corpo orgânico». 2 O corpo, portanto, é o sujeito da alma. Ele está em potência a respeito dela; ele não possui em ato, por si mesmo, a vida, mas permanece capaz de recebê-la e de possui-la graças à enformação da alma. Por esta, ele se torna um corpo «que tem a vida». Tal corpo deve ser «orgânico», possuindo partes diferenciadas. 3 E a alma é uma forma natural capaz de animar um corpo. «Ato primeiro de um corpo natural orgânico», ela é «a causa e o princípio do corpo vivente». 4 Substância «segundo o logos», ela é a «qüididade» 5 de tal corpo natural, isto é, daquele que tem em si mesmo um princípio de movimento e de repouso. 6 Aristóteles precisa que a alma não é ato do corpo como o piloto o é do navio, pois a alma, embora distinta do corpo, não pode existir sem ele. 7 Ela é ato enquanto enformando o corpo, existindo nele e fazendo-o existir. A unidade que resulta dessa atuação da alma é uma unidade substancial. 8 1 Da alma, II, 1, 412 a 16-22. 2 Ibid ., 412 a 27-28. 3 «As próprias partes das plantas são órgãos, mas de todo simples, por exemplo a folha é o abrigo do pericarpo,
e o pericarpo o é da fruta; quanto às raízes, elas são análogas à boca, pois umas como a outra absorvem o alimento» (ibid ., 412 b 1-4). 4 Ibid ., 4, 415 b 8. Ao dizer que a alma é «o ato primeiro de um corpo natural que tem a vida em potência», Aristóteles precisa que ela é ato «como a ciência» (que é hexis) e não como o ato de contemplação (que é a operação). «Com efeito, durante a possessão da alma, há sono e vigília ; a vigília é análoga ao fato de contemplar e o sono ao fato de possuir a ciência e de não pensar em ato» ( ibid ., 412 a 23 seg.). 5 Ela é seu to ti én einaï (ibid ., 412 b 10-11). Este termo, inventado por Aristóteles, designa o que funda diretamente o conhecimento que podemos ter das realidades sensíveis, consideradas no que são mais propriamente. A «qüididade» significa, portanto, aquilo que cada indivíduo é o mais ele próprio: em Pedro, é o homem. Logo, ao dizer que a alma é a «qüididade de um corpo de tal qualidade», Aristóteles significa que a inteligibilidade própria do «corpo natural orgânico que tem a vida em potência» provém da alma. Com efeito, o vivente tem a alma como forma, como determinação própria de vivente; e a alma o atua do ponto de vista do ser — ele não existe senão pela alma — ; ora, tudo o que está em potência não é inteligível senão pelo ato. 6 Ibid ., 412 b 15-17. No capítulo 4, Aristóteles mostra ainda que a alma é causa do corpo vivente como substância: «A causa do ser, para todas as coisas, é a substância; ora, o viver para o viventes, é o ser, e é a alma que é causa e princípio deste» ( loc. cit ., 415 b 12-14). Notemos esta identificação da vida e do ser para os viventes: «to de zén tois zôsi to einaï estin». Sendo a alma formalmente princípio de vida, ela é de fato substância — da mesma maneira que a natureza-forma, que é princípio de movimento, é pelo fato mesmo substância das realidades naturais, uma vez que o movimento é o ser destas realidades. Ver Partes dos animais, I, 1, 641 a 18-20: «Desaparecida a alma, já não há vivente, e nenhuma de suas partes permanece a mesma, a não ser somente pela configuração exterior». 7 Cf. Da alma, II, 1, 413 a 4 seg. Ver também ibid ., 2, 414 a 19-22: «É justa a opinião daqueles que admitem que a alma não pode ser nem sem o corpo, nem um certo corpo. Pois a alma não é o corpo, mas algo do corpo, e é por causa disso que ela se encontra em um corpo e em um corpo de tal qualidade». 8 Desde os trabalhos de Jaeger concernindo à cronologia das obras de Aristóteles, tem-se costume de sublinhar uma certa evolução do pensamento do Filósofo na concepção da alma. Nos diálogos e no Protréptico Aristóteles parece estar ainda sob a influência imediata das doutrinas de Platão. O tratado sobre as Partes dos animais representaria como que uma etapa intermediária antes do tratado Da alma em que seria exposto o ponto de vista
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Mas a alma é também o princípio do movimento e seu fim: «A alma é causa e princípio do corpo vivente; ora, isso é dito de múltiplas maneiras; assim, a alma é causa segundo as três maneiras que foram definidas: com efeito, ela é aquilo de onde vem o movimento, aquilo em vista de que, e ainda é como substância dos corpos animados que a alma é causa». 1 Graças à sua perfeição, a alma comunica ao vivente esse poder interno de se mover. Possuindo em si mesma algo mais do que a simples forma natural do elemento ou do misto, que os determina passivamente para o seu lugar próprio, ela permite ao corpo vivente se desenvolver em todas as direções. 2 Ela tem, portanto, em si mesma uma certa soberania com relação ao mundo físico. Ela o domina, uma vez que ela não é submetida a todas as suas leis. Eis por que se pode dizer que toda alma implica em si mesma uma certa imaterialidade, que lhe permite agir com uma espécie de autonomia e uma espontaneidade que a situam além da pura determinação passiva das realidades não viventes. Essa «imaterialidade» não significa que a alma seja separada do corpo. A alma do vivente está realmente no corpo ( enulos), mas ela o vivifica. Ela possui, em comparação com ele, uma nobreza e uma certa superioridade, que lhe propriamente aristotélico. No seu tratado sobre as Partes dos animais, Aristóteles afirma várias vezes a localização da alma em um orgão privilegiado, o coração. O coração é dito «a acrópole do corpo», onde se encontra «a faísca da natureza» (op. cit., III, 7, 670 a 25); cf. ibid ., II, 1, 647 a 24 seg.; III, 3, 665 a 11: «O coração está localizado na parte principal e no meio; nele é que dizemos que se encontra o princípio da vida e de todo movimento e de toda sensação». No tratado Da alma, a alma é considerada como a forma de todo o corpo; ela é imediatamente unida a ele. O composto de alma e de corpo possui uma unidade substancial. Estamos longe da tese de Platão, que sustentava somente a união acidental entre a alma e o corpo. Aristóteles no Protréptico e no Eudemo tinha feito suas estas visões. Parecia mesmo ter levado ao extremo o dualismo platônico e acentuado sua teoria da alma prisioneira do corpo neste mundo. Para Platão, a união da alma ao corpo é um estado violento que a alma deve sofrer com paciência; para o jovem discípulo, a união da alma é semelhante ao suplício que os piratas etruscos faziam sofrer, ligando um vivente a um cadáver (cf. Aristóteles, Fragmenta selecta, 10 b, p. 41; JAEGER , Aristotle..., p. 39 seg.). Portanto, Aristóteles parece ter completamente modificado sua concepção sobre este ponto, mesmo que achemos nas suas obras tardias expressões que parecem ainda implicar um certo dualismo. (Cf. Ética a Nicômacos, VIII, 13, 1161 a 32-35; Da alma, II, 4, 415 b 18-19, onde o corpo é considerado como instrumento da alma). Mas é preciso reparar que esses estudos permanecem muito delicados, pois eles não respeitam a intenção profunda de Aristóteles. Com efeito, de um ponto de vista teorético, a alma pode ser considerada como forma natural e ato do corpo. E de um ponto de vista prático, a alma pode usar o corpo como um instrumento (organon). Logo, é muito difícil compreender o pensamento de Aristóteles, permanecendo numa perspectiva filológica! Seu pensamento filosófico, sendo analógico, não pode ser apreendido senão por um conhecimento filosófico que respeita a analogia... Uma ciência filológica não poderá plenamente apreender a analogia: ela a capta em primeira lugar como uma relação de similitude, e não em sua diversidade, que implica uma certa unidade. Não se deve esquecer que Aristóteles nunca aceitou, para as realidades físicas, a divisão platônica da eidos e da matéria. Ora, para Aristóteles o homem vivente é certamente uma realidade física. O vínculo que existe entre a alma e o corpo é, portanto, concebido analogicamente ao da natureza-forma e da natureza-matéria. 1 Da alma, II, 4, 415 b 7-12. Cf. Partes dos animais, I, 1, 641 a 27. 2 Cf. Da alma, II, 2, 413 a 25 seg. Ver também ibid ., III, 3, 427 a 17 seg.: «É principalmente por dois caracteres próprios que se define a alma, a saber o movimento no lugar, e, por outro lado, o pensamento, o discernimento e a sensação». Ver também ibid ., 9-11, 432 a 15 - 434 a 20, onde Aristóteles precisa a natureza da faculdade motora dos viventes: o desejo e o intelecto prático, o desejo e a imaginação. É evidente que este poder motor da alma não se manifesta explicitamente senão nas almas mais perfeitas, as dos animais capazes de se mover localmente. Ao nível da vida nutritiva, este poder motor da alma não é especializado numa função própria, mas ele se encontra como implicado na própria vida vegetativa. O vivente cresce, o vivente se alimenta, o que implica necessariamente todo um movimento interno. No tratado Do céu (II, 2, 284 b 11 seg.), Aristóteles lembra que a direita e a esquerda, o alto e o baixo, o defronte e o detrás, não se encontram em todo corpo, mas em todos os viventes perfeitos, que têm em si mesmos o princípio ativo de seu movimento. Nos corpos inanimados, essas diversas propriedades não se encontrarão a não ser relativamente a nós. Nos viventes inferiores, só existem o alto e o baixo; a direita e a esquerda não existem.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS permitem sempre dominá-lo. Precisamente é esta superioridade da alma sobre a forma dos mistos e dos elementos que explica por que seu sujeito próprio não pode ser senão um corpo orgânico: A alma se encontra em um corpo, e num corpo de tal qualidade, e não se pode fazê-la entrar em um corpo e adaptá-la a ele, como os nossos predecessores, sem determinar em nada o que ele é e sua qualidade. É manifesto, ao contrário, que qualquer coisa não pode receber qualquer coisa.1
No livro III, Aristóteles mostra que o corpo do vivente não pode ser um corpo simples, elementar.2 O meio-termo de sua argumentação é o órgão do tato que é necessariamente algo de complexo, tendo uma harmonia. Portanto, a conclusão não olha formalmente senão o corpo do animal. Mas, para Aristóteles, como a única diferença entre um corpo dotado de vida nutritiva e um corpo dotado de vida sensível provém da presença ou da ausência de certos elementos, podemos estender sua conclusão a todos o viventes. 3 A matéria primeira não é suscetível de ser determinada imediatamente por uma alma, já que esta requer, no vivente, diversas partes para poder ser princípio ativo de seu movimento. Se o vivente fosse um corpo simples, por tudo o que ele é, seria ao mesmo tempo passivo e ativo, o que é contraditório. Logo, é preciso que a alma enforme de diversas maneiras uma matéria já diferenciada, tendo partes diversas, isto é, que ela seja o ato de um corpo orgânico. Por fim, precisemos que a alma é para o vivente seu próprio fim: É manifesto que a alma é causa como fim (ou eneken). Com efeito, da mesma forma que a inteligência opera em vista de algo, da mesma forma a natureza, e isso é seu fim. Ora, nos viventes, este fim é a alma, e isto segundo a natureza; com efeito, todos os corpos naturais são instrumentos da alma, tanto os dos animais quanto os das plantas, o que mostra que eles são em vista da alma.4
1 Da alma, II, 2, 414 a 21-25. 2 Loc. cit., 12, 434 b 5 seg. 3 No tratado das Partes dos animais, Aristóteles
mostra que esta composição do corpo do animal implica uma tríplice síntese: a primeira, a dos elementos, isto é, da terra, do ar, da água, do fogo, mais exatamente do húmido e do seco, do quente e do frio; a segunda a partir destes primeiros compostos, é a das partes não diferenciadas (homoiomerés) dos animais, por exemplo a dos ossos, da carne e de coisas semelhantes; a terceira, «a mais perfeita segundo o número», é a das partes diferenciadas, por exemplo o rosto, a mão e de modo geral as partes orgânicas. Já que a realidade se comporta de modo oposto segundo a ordem de geração e a de natureza, a terceira síntese, que é a mais perfeita, portanto, será a última segundo a ordem de geração ( op. cit., II, 1, 646 a 12 seg.). Notemos que a primeira síntese não é propriamente vital. Ao contrário, as duas outras o são, uma vez que elas não podem se realizar senão sob a ação imediata da alma. No corpo vivente, portanto, haverá certas virtudes naturais provindo das qualidades elementares, como o peso, a leveza, a dureza, que escaparão à ação direta da alma e não serão propriamente seus efeitos. Mas isso não parece significar que a alma como forma substancial não enforme imediatamente todo o corpo. É preciso distinguir sua ação eficaz como causa eficiente de sua ação de causa formal enformante. 4 Da alma, II, 4, 415 b 15-20. Cf. Partes dos animais, I, 5, 645 b 19.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
Graças à alma, o vivente possui de certa maneira em si mesmo seu próprio fim, 1 uma vez que, por ela, ele pode assimilar a si mesmo tudo o que pode complementá-lo e completá-lo. Com efeito, a alma não é propriamente princípio de operação finalizada por uma obra extrínseca, mas de operação vital permanecendo no vivente e finalizada por ele. Se a alma move o vivente para o seu bem conatural, é para permitir-lhe apoderar-se dele o mais totalmente possível, torná-lo si mesmo de um modo ou de outro, e, assim, não mas fazer senão um com ele. Nisso, ela é verdadeiramente fim das operações vitais. É considerando a geração, operação vital por excelência do vivente de vida vegetativa, que se compreende melhor o papel da alma como causa final: A alma nutritiva pertence a todos os outros viventes [assim como ao homem], ela é a primeira e a mais comum das potências da alma, pois é segundo ela que o viver pertence radicalmente a todos os viventes. Suas obras são a geração e a nutrição. Com efeito, a mais natural das obras para os viventes, na medida em que eles são perfeitos e não incompletos, ou cuja geração não é espontânea, é produzir um outro semelhante a si (o animal, um animal; a planta, uma planta), para participar ao eterno e ao divino quanto possível. Com efeito, todos os [viventes] desejam isso, e agem em vista disso, na medida em que eles agem segundo a natureza (...). E já que é impossível estar em comunhão (koinônein) com o eterno e o divino de maneira contínua, por causa do fato que nenhum dos [viventes] corruptíveis pode permanecer o mesmo e uno numericamente, cada um fica em comunhão [com o eterno] tanto quanto ele pode participar dele, um mais, outro menos; e ele permanece, não ele mesmo, mas semelhante a ele próprio, não numericamente, mas especificamente.2
Apesar de sua perfeição, os viventes deste mundo sublunar permanecem corruptíveis. Todos, individualmente, têm um ciclo de vida irreversível: nascimento, crescimento, diminuição, morte.3 Eles têm um ritmo de vida determinado e limitado no interior e em função de tal natureza-forma, de tal alma. Mas eles possuem, especificamente, uma certa eternidade, pois pela geração eles comunicam normalmente sua própria natureza vivente a
1 O
que cada potência é ao seu órgão, a alma o é para o corpo: «Se o olho fosse um vivente independente, sua alma seria a vista» ( Da alma, II, 1, 412 b 18-19). Ora, é evidente que a faculdade é o fim próprio de seu órgão, que lhe é ordenado e não existe senão em vista desta. 2 Da alma, II, 4, 415 a 23 - 415 b 7. «Uma vez que se nomeia a justo título toda coisa conforme seu fim e que o fim é engendrar um [vivente] semelhante a si mesmo, a alma primeira será o que engendra um [vivente] semelhante a si» (ibid ., 416 b 23-25). 3 Todo vivente tem seu cume de vida, o que não poderia ter lugar sem a nutrição (cf. Da alma, II, 4, 415 b 2527; III, 12, 434 a 22 seg.). Notemos a maneira como Aristóteles distingue o crescimento do fogo e o do vivente: «O crescimento do fogo é indefinido, enquanto tenha combustível; mas existe um limite e uma regra ( peras kai logos) da grandeza e do crescer de todas as realidades constituídas por natureza. E isto pertence à alma e não ao fogo, e à forma mais do que à matéria» (ibid ., II, 4, 416 a 15-18).
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS viventes semelhantes e de mesma natureza. 1 Nisso eles participam tanto quanto podem do eterno e do divino. E, assim, compreendemos como a alma é verdadeiramente fim próprio da geração e, por conseguinte, fim próprio do vivente, uma vez que, graças a ela, estes viventes corruptíveis têm algo de eterno e de divino. Esta tríplice causalidade exercida pela alma sobre o corpo vivente é análoga àquela que a natureza-forma exerce sobre a natureza-matéria, para toda realidade natural. A alma, como a natureza-forma, mas de modo especial, na sua ordem particular, é princípio e fim: tudo vem dela e tudo termina nela. Ela envolve e contém todo o vivente, como a natureza-forma envolve e contém toda realidade física. Mas, ao passo que a forma natural inanimada determina a realidade física, a inclina necessariamente para tal outra e a fixa com a mesma necessidade em tal lugar, a alma é princípio de vida do corpo orgânico: ela lhe comunica certos poderes de iniciativa, de assimilação e de conquista com relação a tudo quanto o envolve e que pode aperfeiçoá-la. Já não se trata para o vivente de adquirir somente um contato exterior com um corpo imediatamente superior, de ser determinado por ele quanto ao lugar; mas é preciso que ele tome possessão, de algum modo, dos outros seres, ao assimilando-os a si mesmo. E, sendo perfeito, é preciso ainda que ele possa perpetuar-se em um outro vivente semelhante a si: comunicar a um novo vivente sua própria vida. A característica da causalidade da alma é, portanto, ser uma causalidade de organização, de assimilação e de propagação. Isso lhe é absolutamente próprio. Logo, devemos respeitar a ordem analógica que existe entre natureza-forma e natureza-matéria, alma e corpo; dizemos analógica, para frisar sua diversidade total. O "algo de comum" é que a matéria é toda ordenada à forma, da mesma maneira que o corpo é todo voltado para a alma.
2. Os três graus de vida Aristóteles não se contenta em tratar da alma como princípio radical de vida. Ele quer ainda precisar a ordem que existe na diversidade das operações vitais da alma. De fato, constata-se múltiplas atividades vitais no homem. Mas somente as atividades nutritivas, sensitivas e racionais permitem ao filósofo descobrir diversos graus de vida e mesmo diversas espécies de viventes, pois somente entre estas diversas atividades é que existem diferencias essenciais, do ponto de vista propriamente vital. Cada uma destas diversas operações requer uma causa própria. Eis por que é preciso pôr um princípio próprio das operações de nutrição, um princípio próprio das operações sensitivas e um princípio próprio das operações intelectuais.
1 Esta distinção, tipicamente aristotélica, entre o indivíduo e a espécie não pode ser compreendida senão a partir
da apreensão da natureza, forma e matéria, e por isso, a partir da distinção do ti esti e do pôs.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Mas há uma hierarquia entre estes diversos princípios próprios de vida. Se o princípio próprio das operações de vida vegetativa pode existir sem os outros, o inverso não pode ter lugar: É possível que [esta potência] seja separada das outras, mas é impossível, entre os mortais, que as outras o sejam daquela. É manifesto nas plantas: não se encontra nelas nenhuma outra potência da alma. O viver pertence, portanto, aos viventes graças a esse princípio.1
Portanto, o vivente de vida intelectiva, o homem, possui necessariamente todas as potências e todas as operações dos diversos graus de vida inferiores, que se encontram realizados nele segundo uma ordem harmoniosa, perfeita. É por causa disso que o homem aparece como o vivente perfeito entre os viventes corruptíveis; ele aparece como modelo de todos os outros: «Todos os viventes, fora do homem, são anões». 2 Eles são como que esboços que aguardam outra coisa de mais definitivo, de mais acabado. Mas, quando dizemos «ordem harmoniosa perfeita», não pensemos que a alma humana possua somente uma unidade de ordem, uma unidade de proporção; seria falso. Ela tem sua unidade substancial, que lhe dá sua própria indivisibilidade. 3 Portanto, se consideramos no mesmo vivente os diversos princípios próprios de operações vitais, não pode se tratar de separações reais, mas somente de distinções de princípios próprios, que têm de fato diferentes caracteres, conforme se trate de faculdades sensíveis ou intelectivas. Tais distinções não afetam a unidade radical substancial do vivente. 4 Em vista de precisar e de definir a natureza exata de cada uma destas potências, vegetativa, sensitiva, intelectiva, Aristóteles empreende sucessivamente o estudo do alim ento e da nutrição, do sensível e da sensação, da intelecção; com efeito, não podemos conhecer estas diversas potências senão pelas suas operações, e estas pelo que elas atingem especificamente.5 Após longas análises, Aristóteles chega a essa conclusão: Esse princípio [o das operações de vida vegetativa] da alma é uma potência capaz de conservar qualitativamente, tal como ele é, o vivente que a possui, e o alimento é o
1 Da alma, II, 2, 413 a 31 - 413 b 2. «É preciso procurar segundo cada realidade o que é a alma; por exemplo, o
que é a de uma planta e de um homem ou de um animal. É preciso examinar por que causa elas se encontram assim em ordem. Com efeito, sem a [potência] sensitiva, nenhuma das outras sensações pertence [ao vivente]; mas a potência nutritiva está separada da sensitiva nas plantas» ( ibid ., 3, 414 b 32 - 415 a 3). Cf. ibid ., II, 12, 434 a 22 seg. 2 Partes dos animais, IV, 10, 686 b 3. 3 Cf. Da alma, II, 3, 414 b 19 seg. 4 Cf. ibid ., 2, 413 b 10 seg. 5 Cf. Da alma, II, 4, 415 a 14-23.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS que permite a essa faculdade atuar-se. É por causa disso que, privado de alimento, o vivente não pode existir.1
Se consideramos essa potência relativamente a seu fim, ela é dita «a alma primeira», «geradora de um vivente semelhante a si». 2 O princípio próprio das operações vitais sensitivas é capaz de receber as formas sensíveis sem a matéria, como a cera toma [a impressão do] anel sem o ferro nem o ouro, e recebe o selo de ouro ou de bronze, mas não enquanto ouro ou enquanto bronze. Da mesma maneira, a sensibilidade relativa a cada um dos sensíveis padece sob a influência do que possui a cor, o sabor ou o som, não enquanto cada um destes objetos é dito [ser tal coisa], mas enquanto [ele tem] tal qualidade, e quanto à sua forma.3
A potência sensitiva existe de resto de diversas maneiras nas múltiplas espécies animais, desde o simples sentido do tato à imaginação. 4 Portanto, se todas as espécies animais não possuem igualmente a vida sensível, pelo menos todas têm o sentido do tato. Aristóteles precisa o papel fundamental do tato que caracteriza aos seus olhos a vida animal: «Da mesma maneira que a potência nutritiva pode separar-se do tato e de toda sensibilidade, da mesma forma o tato pode separar-se dos outros sentidos (...). Todos os animais têm a sensação táctil». 5 «Ademais, todos eles têm a sensação do alimento; pois o tato é o sentido do alimento». 6 Aristóteles mostra ainda que o sentido do tato é necessário à conservação da vida animal, ao passo que os outros sentidos não são necessários senão em vista de seu bem-estar. 7 estar.7 Eis por que «é necessário que seja o único sentido cuja privação provoca nos animais a a cessação da vida». 8 E ele nota que os outros sensíveis não poderiam, pelo seu excesso, destruir a vida do animal, salvo por acidente, ao passo que «o excesso dos tangíveis, por
1 Ibid ., 4, 416 b 17-20. 2 Ibid ., 416 b 23-25. Aristóteles
emprega aqui a expressão «alma primeira» para o princípio fundamental de vida, em vista de fazer melhor compreender que a vida vegetativa pode separar-se da vida sensível. Mas quando se trata do homem, Aristóteles não fala de alma vegetativa, da alma sensível, de alma noética. 3 Ibid ., 12, 424 a 17-24. 4 Cf. ibid ., III, 3, 428 a 9 seg. em que Aristóteles afirma que a imaginação não existe na formiga, na abelha ou no verme..., mesmo que muitos animais tenham a imaginação. Ver também ibid ., 11, 434 a 4 seg., onde Aristóteles distingue a imaginação sensitiva — que pode pertencer aos animais — da imaginação deliberativa, própria do homem. 5 Ibid ., II, 2, 413 b 5-10. Cf. ibid ., 3, 414 b 3; 415 a 4-5. 6 Ibid ., 414 b 7. 7 Ibid ., III, 12, 434 b 21 seg. 8 Ibid ., 13, 435 b 4 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES exemplo o do quente, do frio ou do duro suprime o animal». Destruindo o tato, ele destrói a vida, já que «é pelo tato que a vida se define». 1 Uma vez que o sentido do tato é o sentido característico do animal, tanto mais o animal se encontra perfeitamente realizado em tal ou qual espécie particular, quanto mais este sentido se achará ele próprio perfeitamente realizado. É por causa disso ele se encontra excelentemente no homem. No que concerne ao tato, [o homem] possui uma finura muito superior à dos outros animais, o que justifica que ele seja o mais prudente de todos.2
E Aristóteles acrescenta, como sinal da verdade de sua afirmação: Entre os indivíduos do gênero humano, é em conseqüência [do desenvolvimento maior ou menor] desse sentido, e não de um outro, que há homens bem dotados e homens mal dotados. Pois aqueles que têm a carne dura são mal dotados quanto à razão, ao passo que aqueles que têm a carne terna são bem dotados. 3
Para cada um dos viventes de vida vegetativa, sensível, intelectual, um corpo orgânico corresponde, portanto, à alma que é princípio de sua vida. 4 Quanto mais se trata de uma alma perfeita, que possui um grau de vida superior, tanto mais o próprio corpo orgânico correspondente é perfeito. À hierarquia das almas e de suas faculdades correspondem a dos corpos orgânicos e a de seus órgãos. 5 Em suma, podemos dizer que para Aristóteles é precisamente «pelo princípio [da operação nutritiva] que o viver pertence primitivamente ao vivente» e o constitui tal; 6 é pelo princípio das operações sensitivas, e especialmente pelo tato, que o animal é constituído. Enfim, é pelo princípio das operações intelectivas que o homem possui o grau de vida superior: A propósito dessa parte da alma pela qual ela conhece e pensa, que ela seja uma realidade separável ou que ela seja não separável segundo a grandeza mas somente 1 Ibid ., 435 b 13 seg. 2 Ibid ., II, 9, 421 a 21-23. 3 Ibid ., 421 a 23-26. 4 Seria preciso analisar o que Aristóteles diz no capítulo 10 do livro IV das Partes dos animais (685 b 29 seg.), a
respeito dos partes do corpo humano e de suas diferenças com relação às partes dos outros animais. Veríamos o quanto para ele a alma é verdadeiramente o princípio de vida que explica esta diversidade. 5 Se as plantas não sentem, «é que elas não têm [o orgão que ocupa] o meio [entre as qualidades tangíveis extremas], nem princípio capaz de receber as formas dos sensíveis, mas que elas padecem ao receberem a forma com a matéria» ( Da alma, II, 12, 424 b 1 seg.); cf. ibid ., II, 12, 434 a 30 seg. 6 Ibid ., II, 2, 413 b 1-2; cf. ibid ., 4, 415 a 23-25. Aristóteles confirma sua afirmação pela negação: «Nenhuma realidade se alimenta se ela não participa da vida» ( ibid ., 4, 416 b 9). Portanto, poderíamos dizer que para ele, «viver» se iguala primeiramente a «se nutrir».
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS segundo a noção (logos), é preciso examinar a diferença que ela possui, e como, em um determinado momento, nasce o pensamento (to noeïn).1
A operação própria dessa potência da alma é o ato de pensar, a intelecção, que é um conhecimento imaterial, distinto da sensação. A intelecção em si mesma consiste em receber alguma influência do inteligível, isto é, em apreender as formas inteligíveis, tornando-se «um» com elas, assim como, de resto, a própria sensação capta as formas sensíveis, assimilando-as a si mesma intencionalmente. É por isso que o intelecto deve ser «impassível»: suscetível de receber as formas inteligíveis sem alterá-las. E já que ele pode pensar todas as coisas, «o intelecto não pode ter nenhuma outra natureza a não ser a de estar em potência» a todas estas coisas. Seu caráter próprio, portanto, é ser as formas inteligíveis em potência somente: Por conseguinte, esta parte da alma que se chama intelecto (noûs) (e entendo por intelecto aquilo pelo qual a alma pensa e crê) não é em ato nenhuma das realidades existentes antes de pensar.2
Eis por que o intelecto não pode ser «misturado ao corpo» e deve necessariamente estar separado dele, 3 pois, se ele fosse forma do corpo, ele seria qualificado de tal ou qual maneira e não poderia se tornar, em um certo sentido, todas as coisas. Para compreender a diferença que existe entre a passividade do intelecto e a da faculdade sensível, basta notar este fato: após ter percebido o que é fortemente sensível, nossa potência de conhecimento sensível está menos apta a sentir. Ao contrário, o intelecto, quando ele pensou um ser fortemente inteligível, não é menos capaz de pensar aqueles que são inteligíveis de maneira mais fraca, mas ele o é até mais. A potência sensível, com efeito, não é sem o corpo, ao passo que o intelecto é separado.4
1 Da
alma, III, 4, 429 a 10-13. Cf. ibid ., 3, 427 b 27 seg. Cf. Da geração dos animais, II, 3, 736 b 12 seg. Aristóteles é muito breve sobre toda a questão do noûs, porque este estudo, no que ele tem de próprio, escapa ao filósofo da natureza (cf. Part. dos an., I, 1, 641 a 36 - 641 b 9). Com efeito, o noûs é separado da matéria e seu estudo não faz mais parte formalmente da filosofia da natureza, e sim da filosofia primeira. 2 Cf. Da alma, III, 4, 429 a 14 seg. «O intelecto é, de uma certa forma, em potência, os inteligíveis, mas ele não é nada em ato antes de ter pensado. E o que tem lugar, no que concerne ao intelecto, deve ocorrer como em uma tábua em que não há nada escrito em ato» ( ibid ., 429 b 30 - 430 a 2). Para Aristóteles o noûs é uma potência a respeito de todos os inteligíveis, para ter condições de recebê-los todos e de conhecê-los. «De modo geral, o intelecto em ato é as coisas mesmas» ( ibid ., 7, 431 b 16-17); cf. Partes dos animais, I, 1, 641 a 36. 3 Da alma, III, 4, 429 a 24-25. «Seu ato não tem nada em comum ( koinôneï outhen) com o ato corporal» ( Da geração dos animais, II, 3, 736 b 28-29). 4 Da alma, III, 4, 429 a 31 - 429 b 5.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Portanto, a alma humana, graças à sua parte superior, o noûs, implica necessariamente uma certa transcendência a respeito do mundo físico. Por causa de seu estado de separação, o noûs não somente é capaz de receber as formas inteligíveis, mas ele próprio é inteligível: E ele mesmo é inteligível, como os inteligíveis. Com efeito, a respeito dessas realidades sem matéria, o pensante e o pensado são idênticos, pois a ciência teorética e o que é conhecido da mesma maneira são idênticos.1
Ademais, por uma de suas partes, o «intelecto ativo», ele realiza em ato essas formas inteligíveis. Estas, com efeito, não se encontram senão em potência nas realidades sensíveis; sob a influência do intelecto ativo elas são atuadas: Assim como existe na natureza inteira, por um lado, o que é matéria para cada gênero (é o que é em potência todas as realidades), e, por outro lado, algo outro, que é causa e age eficazmente, que produz todas as coisas (como a arte em relação à matéria que padece), é necessário que estas diferenças se encontrem também radicalmente na alma. E existe um noûs tal que ele é capaz de se tornar todas as coisas, e por outro lado, aquele que, porque produz todas as coisas, é como uma certa disposição estável, tal como a luz. E este noûs é separado, sem mesclagem e impassível, sendo ele ato substancialmente (energeia té ousia). 2
No pensamento de Aristóteles, parece bem que só este intelecto ativo «que é substancialmente ato» seja imortal e eterno 3 e, portanto, divino. 4 O intelecto passivo enquanto noûs é separado; mas enquanto potência a respeito das formas inteligíveis, ele não pode exercer-se sem o auxílio da imaginação, e por isso sem o auxílio de certos órgãos corporais. 5 Enquanto ele é especificado pelas formas inteligíveis, o intelecto passivo está além do corruptível; mas no seu exercício vital, enquanto ele está ligado à imagem, ao fantasma, ele permanece ligado ao mundo corruptível. Em outras palavras, o Filósofo sublinha que graças ao intelecto agente se descobre que a inteligência, na sua especificação própria, permanece separada do mundo físico — ela é imortal. No seu exercício de operação vital, contudo, ela permanece ligada ao sensível e ao corruptível. Posso afirmar que o noûs tem algo de eterno. Mas como ele existe desta maneira separada do mundo físico? Ignoro-o. Toda filosofia que não distingue mais a análise do 1 Ibid ., 430 a 2-5. 2 Ibid ., 430 a 10-18. 3 « Athanaton kai aidion» (ibid ., 430 a 23). 4 «O noûs é algo de mais divino e de impassível» ( ibid .,
I, 4, 408 b 29); «Somente o noûs vem do exterior [de fora]; só ele é divino» ( Da geração dos animais, II, 3, 736 b 27-28; cf. também ibid ., 737 a 9-10); cf. As partes dos animais, II, 10, 656 a 7; IV, 10 686 a 27. 5 Cf. Da alma, III, 7, 431 a 14 seg; 8, 432 a 7 seg.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS condicionamento não pode compreender o sentido destas afirmações de Aristóteles e é conduzida a afirmar que ele nega a imortalidade da alma noética. Se se reconhece esta distinção, vê-se o extremo rigor filosófico de Aristóteles: do ponto de vista da filosofia do vivente, ele não pode afirmar que a alma noética é imortal; afirma somente que o intelecto agente indica que existe algo de imortal no homem. Aqui, Aristóteles não trata da natureza do intelecto, pois precisamente enquanto é separado ele escapa à filosofia da natureza. 1 Através deste estudo do vivente e da alma, como ele próprio indica, Aristóteles inova, progredindo em um terreno ainda muito pouco explorado pelos seus predecessores. 2 Estes lhe transmitiram como que três definições da alma: ela é o motor e o que há de mais móvel; ela é uma harmonia; ela é um número que se move. 3 Nenhuma destas definições é exata. Decerto, a intenção destes filósofos era freqüentemente boa. Definindo a alma deste modo, eles queriam mostrar sua excelência, sua perfeição; permaneciam, contudo, em um ponto de vista descritivo, sem procurar a causa própria do vivente como tal. Se um Demócrito, um Leucipo identificavam a alma aos átomos esféricos, era precisamente porque, entre as figuras, a figura esférica é a mais perfeita e a mais facilmente móvel. Porém, pretendendo que a alma fosse móvel, ou que ela fosse uma certa harmonia, eles a concebiam como as outras realidades físicas; de certo, como a realidade física mais nobre, contudo ainda desta ordem. Aristóteles, ao descobrir a alma como princípio de vida, como princípio radical das operações vitais, ultrapassa imediatamente estas visões demasiado exteriores e materiais. A alma, para ele, antes de mais nada, é uma substância que deve ser considerada de modo especial, original, para descobrir o que ela é, seu poder próprio, sua superioridade característica a respeito do mundo físico. A vida é irredutível ao puro físico. Ela põe um novo problema e exige um novo método de investigação.
1 «O filósofo de filosofia primeira considera as realidades separadas» ( Da alma, I, 1, 403 b 16). 2 É o que ele diz no início do livro II do tratado Da alma, afirmando que ele retoma a pesquisa
ao ponto de
partida...(loc. cit ., 1, 412 a 3-5 — cf. acima, pp. 136-137). 3 Cf. Da alma, I, 2-5, 403 b 20 - 411 b 30. Nesse olhar retrospectivo, Aristóteles não tem outra intenção senão de descobrir as diversas atitudes filosóficas a respeito da alma, ou mais exatamente os diversos modos como os filósofos tentaram defini-la. Sua preocupação não é a da cronologia. A primeira definição que ele levanta (a alma é o que há de mais móvel) é aquela de Demócrito, de Leucipo e igualmente de certos Pitagóricos; com uma intenção toda diferente e partindo de um ponto de partida totalmente outro, Empédocles e mesmo Platão desembocam praticamente na mesma definição. Quanto à segunda definição (a alma é uma certa harmonia), Aristóteles não diz de quem ela provém. Filopon a atribui aos Pitagóricos (cf. P LATÃO, Fédon, 85 c seg., texto onde esta tese é sustentada por Simias, discípulo de Filolaos, o grande pitagórico). Mas como observa Rodier ( Notes sur le Traité de l'âme, p. 120), os Pitagóricos não pretendiam definir a alma como uma harmonia; eles significavam dessa forma que a alma está unida ao corpo por meio do número e da harmonia. De resto, como Alexandre nota ( De l'âme, 24, 18), Aristóteles não quer dizer que a alma identifica-se com a harmonia, mas com a potência, com a virtude que está ao princípio dessa harmonia. Enfim, a terceira definição (a alma é um número que se move a si mesmo), Aristóteles a considera como a menos razoável em muito. Sobre o testemunho de Temistius, ela é atribuída a Xenócrates: «Xenócrates e seus discípulos chamavam a alma um número, porque nenhum animal é constituído por um corpo simples mas por uma mesclagem dos elementos primeiros, segundo certas proporções e certos números» (ver R ODIER , op. cit., p. 138-139).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Mas este princípio de vida, esta alma, de fato, é forma de um corpo. Suas operações vitais de nutrição, de sensação, mesmo de intelecção, de certa forma, estão engajadas em um corpo físico e sensível. É por isso que o estudo da alma, por mais original que seja, faz parte integrante da filosofia da natureza — pelo menos o estudo da alma, forma do corpo, e cujas operações dependem de modo mais ou menos imediato de certos órgãos físicos. Os viventes são, com efeito, realidades naturais. A alma, se ela é uma forma princípio de vida, ainda é uma certa natureza. E o corpo, se ele é o "sujeito" próprio da alma, ainda é também uma certa natureza. Se Aristóteles, face às opiniões filosóficas de seus predecessores, descobre o que é a alma, sua distinção real em relação às realidades físicas como princípio próprio do vivente não é conforme a de Platão, em oposição à realidade do corpo vivente. Ele censura seus predecessores por não o terem considerado e por terem negligenciado explicar por que a alma se encontra unida ao corpo e como ela é unida a ele. Mas, quando se trata da alma humana no tratado Da alma, Aristóteles opõe-se à concepção platônica que considerava a união da alma noética e do corpo como uma pena que viola profundamente os direitos mais divinos do noûs. A morte para Platão, é uma libertação para a qual o filósofo deve tender. Graças à libertação que ela propicia, o noûs poderá novamente contemplar livremente as formas. Esta opinião se opõe à unidade substancial da natureza humana, que Aristóteles coloca em plena luz. Para ele a alma humana, embora enforme o corpo, possui em si própria uma «parte separada», o noûs, capaz de atingir a qüididade das realidades físicas e capaz de descobrir seu ser próprio: o que elas são em si mesmas. O que para Platão era percebido de direito como uma substância separada, torna-se para Aristóteles parte principal de uma alma enformando o corpo. Nisso, Aristóteles integra o corpo na natureza humana como uma parte substancial, embora submetida e ordenada à alma. Sua atitude filosófica é, pois, plenamente realista. E é este realismo mesmo que o faz descobrir o que na alma ultrapassa o mundo físico. Ele se opõe ao materialismo dos mecanicistas e ao puro formalismo de Platão mais exatamente, ele domina esta oposição materialismo-formalismo, numa análise muito mais rigorosa e analógica, que respeita a diversidade das causas próprias da realidade vivente. Reencontramos, com relação à alma e ao corpo, o mesmo rigor filosófico que tínhamos constatado a propósito da natureza. Os primeiros filósofos fixaram seu olhar sobre o caráter concreto dos viventes, Aristóteles procura captar seu princípio próprio. Platão, em reação contra certos mecanicistas, procura sobretudo uma explicação puramente formal da alma noética, considerada em si mesma (antes ou depois de sua união ao corpo) como essencialmente independente deste corpo sensível; ele rejeita ao mesmo tempo a dignidade do corpo do homem, considerando-o como totalmente semelhante ao dos outros animais. Aristóteles, ao penetrar mais profundamente na unidade substancial do vivente, domina este dualismo, a um só tempo por demais angélico e por demais animal. Ele descobre a dignidade propriamente humana da alma e do corpo.
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A FILOSOFIA DAS REALIDADES FÍSICAS Certas de suas análises permanecem evidentemente em estreita dependência das concepções de seu tempo. Mas é preciso saber reconhecer os princípios próprios filosóficos que elas desvelam: os diversos princípios próprios dos graus de vida; sua hierarquia; o primado de certas potências vitais no interior destes diversos graus de vida; a relação das potências vitais ao que elas consideram; a causalidade específica do que é considerado sobre as potências vitais... Há aí uma visão filosófica da alma que ultrapassa a simples descrição exterior do comportamento de tal ou qual vivente. Esta visão filosófica, enquanto coloca em luz certos princípios próprios do vivente, ultrapassa evidentemente todas as relatividades do contexto histórico nas quais ela nasceu. * É fácil agora entendermos que a natureza na filosofia de Aristóteles é dita «de múltiplas maneiras». Ela significa, a um só tempo, a matéria e a forma imanentes das realidades físicas; e, sendo assim, ela responde às diversas interrogações da inteligência humana a respeito das realidades físicas: de onde? Em quê? O que é? Em vista de quê? A natureza se encontra realizada em seres extremamente diversos: os elementos, os mistos, os viventes de vida vegetativa, sensível, intelectual, os corpos celestes. Portanto, ela é por vezes princípio passivo de movimento, por vezes princípio ativo. Esta concepção da natureza permite salvaguardar a unidade da filosofia da natureza, embora mantendo a diversidade de sua pesquisas e de suas considerações, já que precisamente há uma ordem essencial entre essas diversas significações e realizações da natureza. Tal concepção permite ao Filósofo fazer sua a parte de verdade que contêm as diversas opiniões de seus predecessores e de reduzi-las a uma certa unidade. Enfim, ela manifesta a originalidade dessa parte da filosofia, precisando a relação de seus princípios próprios e da natureza. Estes princípios, nós o vimos, reduzem-se de um certo modo a dois (matéria e forma) e, de outro modo, a três (matéria, forma e privação — sujeito e qualidades contrárias). Ora, a própria natureza se identifica à forma, à matéria e também, nota Aristóteles, à privação. Essas identificações são feitas, de resto, segundo uma ordem: a natureza como matéria é toda relativa à natureza como forma, a natureza como privação é toda dependente da natureza como forma e como matéria. Portanto, é de fato a natureza que especifica esta filosofia; ela é seu princípio próprio, que lhe dá sua unidade particular e sua estrutura especial e que a constitui na sua ordem particular de conhecimento das realidades físicas, com suas propriedades, seus acidentes, e, em primeiro lugar, seu movimento. Se não queremos deformar o pensamento de Aristóteles, é preciso compreender bem que a natureza se situa a um nível de pesquisa filosófica que quer dar uma explicação inteligível das realidades físicas. Toda tentativa de estabelecer um paralelo entre esta noção de «natureza» aristotélica e as concepções atuais de «matéria» e de «forma» das ciências físicas conduziria às mais lamentáveis confusões. Ao contrário, é preciso respeitar bem estes diversos pontos de vista e reconhecer que o espírito humano pode atingir o real físico de 155
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES diversas maneiras, cada uma dizendo algo de autêntico e de verdadeiro; tais conhecimentos permanecerão sempre parciais. A inteligência humana, com efeito, por causa de sua imperfeição, é incapaz de abraçar toda a riqueza e a complexidade do real físico em um só ato de conhecimento. Ela terá de multiplicar e diversificar suas operações e, assim, remediar a imperfeição congenital de sua natureza abstrativa que a faz atingir o real parcialmente. Por fim, notemos que a preocupação de Aristóteles em considerar o estudo do vivente, do homem vivente, como fazendo parte da filosofia da natureza é extremamente legítima: ele o faz assim face a Platão, para evitar reduzir o homem vivente à alma separada. No entanto, é preciso reconhecer que este vivente particular que é o homem, assim como a experiência interna que tem de sua própria vida, requerem um desenvolvimento filosófico especial, que analisa o que é propriamente a vida. A filosofia contemporânea coloca esta espera em plena luz, opondo, infelizmente de forma freqüentemente dialética, o vivente às realidades físicas. No nosso mundo hodierno, o filósofo deverá precisar, pois, com mais rigor do que Aristóteles, o que caracteriza a filosofia do vivente.
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CAPÍTULO III
A FILOSOFIA PRIMEIRA 1
Ao fim do primeiro livro da Física, Aristóteles declara: «A propósito do princípio segundo a forma, será que ele é uno ou múltiplo, e o que ele é (ou o que eles são)? É a obra da filosofia primeira determiná-lo com todo rigor». 2 E no livro II, tratando da natureza como forma, ele interroga: «Até que ponto o físico deve conhecer a forma ( eidos) e o “o que é”? Como o médico, o nervo; ou o ferreiro, o bronze, até este ponto. Com efeito, cada uma destas [considerações] é em vista de algo, e é a respeito destas coisas que são separáveis pela forma, mas em uma matéria (...); quanto a determinar a maneira de ser daquilo que é separado e o que ele é, é a obra da filosofia primeira». 3 Ao falar da alma, Aristóteles se coloca as mesmas perguntas e faz o mesmo discernimento: «Poderíamos perguntar se pertence à física tratar de toda alma ou somente de uma certa alma. Se é de toda alma, nenhuma filosofia ficará fora da ciência física. Com efeito, a inteligência é relativa aos inteligíveis...». 4 Se a física pode estudar a inteligência, ela pode estudar todos os inteligíveis. Portanto, não haverá nenhuma parte da filosofia fora da física. O Filósofo reconhece, então, que «toda alma não é natureza, mas somente uma certa parte da alma, uma ou várias». 5 E no tratado Da alma, ele especifica a maneira diferente como o físico, o matemático, o artesão definem as realidades que eles consideram. O físico é aquele que considera sempre a forma e a matéria e sua relação, sua composição; o matemático é o que não considera senão a forma abstrata; o artesão olha sobretudo a matéria enquanto transformável. E Aristóteles conclui: «Enfim, o que é separado [não pode ser considerado senão] pelo filósofo de filosofia primeira». 6 Eis por que, já o vimos, o estudo do noûs enquanto capaz de atingir as realidades separadas, os «puros inteligíveis», não pertence mais à física, mas à filosofia primeira. 7 1 Permitimo-nos
remeter aqui a nossos livros L’être (Téqui, Paris 1972-1974) e De l’être à Dieu (Téqui, Paris 1977), que contêm vários estudos sobre a filosofia primeira de Aristóteles. 2 Loc. cit., 9, 192 a 34-36. 3 Loc. cit., 2, 194 b 9-15. 4 Partes dos animais, I, 1, 641 a 32-36. 5 Ibid ., 641 b 9-10. 6 Op. cit., I, 1, 403 b 15. 7 Cf. ibid., III, 7, 431 b 17-19.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES O estudo da forma (eidos) e especialmente o da alma humana obriga, pois, o Filósofo a prosseguir seu estudo filosófico mais profundamente ainda, para considerar as realidades separadas, as substâncias separadas — em se questionando primeiro se elas existem e como elas existem. Precisemos que Aristóteles não entende esse estudo da forma à maneira de Platão, mas relativamente a o-que-é; é a forma enquanto ela é fonte própria do-que-é, e não a forma-em-si. Esta parte da filosofia que se situa, de certo modo, depois da física — segundo a ordem genética — será chamada «metafísica» pelos comentadores de Aristóteles. Aristóteles a chama de «filosofia primeira»: se ela é «depois», segundo a ordem genética do desenvolvimento de nosso conhecimento, no entanto, ela permanece primeira segundo a ordem de perfeição e de nobreza. Em filosofia primeira, tudo o que possuímos da obra de Aristóteles se reduz aos quatorze livros do tratado intitulado em nossos dias A Metafísica. Não queremos entrar aqui em todas as discussões levantadas por W. Jaeger a respeito da data e da composição destes livros. Nossa intenção é tentar descobrir os princípios próprios desta filosofia primeira e explicitar a sua organização científica. Como filósofo, não é essa a primeira coisa que se deve fazer? 1 Esta filosofia primeira é para Aristóteles a sabedoria por excelência, isto é, a ciência que considera as primeiras causas e os primeiros princípios, os mais indivisíveis e os mais simples. Por isso, ela é a ciência suprema, estudada e amada por ela mesma. Seu privilégio é a independência e a soberania; não depende de nenhuma ciência e domina todas as outras, no sentido em que, de modo mais ou menos direto, ela as finaliza todas. Tal filosofia considera, antes de mais nada, as causas primeiras, os primeiros princípios e o fim último de todo o que é: a substância separada, primeiro inteligível e primeiro amável. Se ela procede à maneira de uma ciência teorética, implicando análises e a procura das causas próprias, toda ordenada ao conhecimento da verdade procurada por ela mesma, ela encontra sua plenitude, todavia, em uma contemplação, capaz de assegurar a felicidade perfeita do homem.
1. Natureza da sabedoria (livro A) No primeiro livro, Aristóteles nos apresenta a exigência natural que impele o homem a tender para as ciências supremas e a sabedoria. Esta não é um luxo supérfluo. Ela é o desabrochar derradeiro, último, da inteligência humana. Todos o homens desejam por natureza saber (to eidenai); o amor das sensações é o sinal disso. Com efeito, fora de sua utilidade, estas são amadas por elas mesmas, e mais do que as outras, aquelas que nos chegam pelos olhos. Pois não é somente para
1 Distinguamos
bem a obra do filósofo e a do historiador! Aliás, a história do pensamento de Aristóteles não pode ser desenvolvida a não ser se sabemos — como filósofo — o que é seu pensamento...
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A FILOSOFIA PRIMEIRA agir, mas também quando não estamos para agir, que escolhemos ver, ao encontro, para assim dizer, de todo o resto. A causa é que, entre as sensações, [a vista] nos faz conhecer ao ponto mais alto, e mostra (déloi) diferenças mais numerosas.1
O homem não pode deter-se em um conhecimento utilitário; ele deve, para responder às exigências mais íntimas de sua natureza, procurar o conhecimento por ele mesmo. Que a sabedoria seja inscrita tão profundamente na natureza humana e que ela seja o que há de mais nobre no homem, Aristóteles o mostra por uma análise de nossas diversas maneiras de alcançar o que é. Os animais nascem tendo por natureza a sensação; a partir desta, para uns, não é engendrada lembrança alguma; ao passo que para os outros é o caso. E é por causa disso que estes são mais prudentes e mais aptos a aprender do que aqueles que são incapazes de se lembrar (...). Portanto, uns vivem de imagens e de lembranças e participam pouco da experiência; quanto ao gênero humano, ele vive de arte e de raciocínios. Da lembrança nasce para os homens a experiência; com efeito, várias lembranças de uma mesma coisa chegam a constituir a potência de uma só experiência. E a experiência parece quase semelhante à ciência e à arte. A ciência e a arte sobrevêm para os homens mediante a experiência.2
É evidente que o animal permanece nas imagens engendradas pelas suas sensações, ao passo que o homem as ultrapassa: para ele, da memória e das imagens nascerá a experiência, e de suas experiências nascerá a arte, capaz de alcançar uma apreensão universal. Se de certo modo, na ordem da vida prática, a experiência pode aparecer como superior à arte, no entanto, esta é verdadeiramente mais nobre e mais perfeita: Estimamos que o saber e o compreender pertencem mais à arte do que à experiência, e julgamos que os homens de arte são mais sábios do que os homens de experiência, porque pensamos que a sabedoria acompanha todos os homens segundo seu saber (kata to eidenai); isto porque uns conhecem a causa, outros não. Com efeito, os homens de experiência conhecem o fato (to oti), mas não o porquê (dioti); os outros [os homens de arte] conhecem o porquê e a causa. 3
1 Metafísica, A, 1, 980 a 21-27. 2 Ibid ., 980 a 27 - 981 a 3. 3 Ibid ., 981 a 24-30.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Eis por que se considera a justo título que os arquitetos possuem a sabedoria a um grau mais alto que os operários. «Não é a habilidade prática que torna, a nossos olhos, os chefes mais sábios, e sim o fato de eles possuirem o logos e conhecerem as causas». 1 Dentre as artes, as mais nobres e as mais «sábias» são as que não são dirigidas para o útil, mais para o «lazer». As artes são como uma disposição às especulações matemáticas. E por estas introduzem-se as especulações filosóficas que consideram as primeiras causas e os princípios do-que-é: estas especulações, pois, são o que há de mais profundo e de mais nobre na ordem do conhecimento. Elas merecem em primeiro lugar o nome de sabedoria. Mas cumpre ainda especificar de que causas e de que princípios a sabedoria é ciência: «Ora, já que procuramos esta ciência, será preciso examinar a respeito de que causas e de que princípios a sabedoria é a ciência. Se tomamos as concepções que se tem sobre o sábio, isso se tornará rapidamente mais manifesto». 2 Aristóteles nos apresenta, então, uma espécie de descrição do sábio e da sabedoria, descrição admitida por todos, é certo, mas já muito elaborada. Eis os seis caracteres do sábio e da sabedoria que Aristóteles levanta: 3 1. O sábio sabe todas as coisas — universalidade de seu saber. 2. O sábio conhece as coisas difíceis — profundeza de seu saber. 3. O sábio conhece com mais precisão ( akribeia) do que os demais — qualidade de seu conhecimento. 4. O sábio sabe melhor ensinar que os demais — fecundidade de seu saber. 5. A sabedoria é procurada por ela mesma, mais do que todas as demais ciências — bondade da sabedoria. 6. A sabedoria, entre as ciências, é a primeira. Ela pode comandar as outras — nobreza da sabedoria. Para melhor entender o valor original desta descrição do sábio e da sabedoria e para melhor compreender seu sentido, basta colocá-la em paralelo com aquela que Platão tinha dado no Teeteto. Platão nos pinta o sábio como um homem indiferente aos boatos da cidade, um homem solitário que não freqüenta as assembléias e os festins, um homem que ignora as pequenas histórias de cada qual: «O que acontece de bem ou de mal na cidade (...) o filósofo não tem disso nenhum suspeito, não mais do que, como diz o ditado, do número de barris que o mar encheria» — é contingente, faz parte das opiniões. O sábio é de uma indiferença total com relação a este mundo exterior: «Tal homem não conhece nem próximo, nem vizinho, não sabe nem o que faz este, nem sequer se ele é um homem ou se pertence a qualquer outro ...» 4 1 Ibid ., 981 b 5-6. 2 Met ., A, 2, 982 a 4-7. 3 Cf. ibid ., 982 a 8-19. 4 PLATÃO, Teeteto, 173 d - 174 b.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA — o sábio vive em outro lugar. Se ele foge do tumulto, é para contemplar o mundo das formas ideais, as únicas realidades verdadeiras: «Só ele sabe dignamente cantar essas realidades de que vivem os deuses e os mortais bem-aventurados». 1 O sábio se eleva até o Belo em si para contemplá-lo. Ele tem a nostalgia desse mundo divino e deseja evadir-se do mundo físico, mundo das aparências. Em vista desta evasão é que o sábio deve se purificar. Todas as virtudes morais: temperança, força, grandeza de alma, doçura, justiça concorrem para este fim. Todas estas virtudes requerem, por sua vez, todos os bens humanos inferiores, saúde, beleza física, esperteza no combate, riqueza, bom nascimento. Tais são todas as qualidades do sábio. Ele é o homem perfeito. Em comparação com a de Platão, a descrição de Aristóteles é extraordinariamente sóbria. De todas as qualidades intelectuais, políticas, morais e físicas, ele retém e desenvolve apenas aquelas que afetam estritamente o conhecimento teorético: a universalidade do saber, a profundeza, a precisão, a comunicabilidade, a amabilidade e a nobreza. As outras qualidades que o mestre reconhece ao sábio, o discípulo as liga à magnanimidade, 2 virtude moral, irradiação na ordem política da sabedoria especulativa, contudo realmente distinta dela. Após ter posto, com efeito, que «a sabedoria é uma ciência que considera certas causas e certos princípios»,3 Aristóteles pode fazer este discernimento com nitidez. Graças a sua descrição, ele precisa que, se a sabedoria é ordenada ao conhecimento, ela o é com uma tendência ao absoluto, com uma nota superlativa. Ela é o que há de mais perfeito na ordem do conhecimento científico. Aristóteles pode, pois, concluir que a sabedoria considera as primeiras causas e os primeiros princípios, e, por isso, a causa final última: A mais dominante das ciências e a que comanda mais ao que é subordinado é a que conhece em vista de quê cada coisa é cumprida; isto é o bem de cada um, e de modo geral é [o que é] o melhor na natureza inteira (...). [A sabedoria], portanto, deve ser um conhecimento teorético dos primeiros princípios e das primeiras causas; e, com efeito, o bem, «aquilo em vista de que», é uma das causas.4
Ao afirmar que a sabedoria se ocupa do bem supremo, o Filósofo mostra como tal sabedoria, ciência suprema — a mais universal e a mais realista — é uma ciência teorética, toda ordenada à procura da verdade e capaz, no entanto, de propiciar ao homem sua verdadeira felicidade.
1 Ibid ., 176 a. 2 Ver Ética a Nicômacos, IV, 7-9, 1123 3 Met ., A, 1, 982 a 2. 4 Ibid ., 2, 982 b 4-10.
a 34 seg. Cf. acima, pp. 52-53.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES É a admiração, o espanto, ponto de partida da aquisição da sabedoria, que mostra ao Filósofo o caráter especulativo da sabedoria: Que ela não seja um conhecimento realizador ( poiétiké), isto é evidente a partir daqueles que filosofaram primeiro. É pelo espanto (to thaumazein) que os homens, hoje como no ponto de partida, começam a filosofar (...). Ora, aquele que põe as dificuldades e se espanta vê que ele não sabe (...). Assim, já que eles filosofaram para fugir da ignorância, é manifesto que procuravam o saber em vista do conhecimento somente e não por algo útil.1
A admiração, procedendo da ignorância, suscita em nós um desejo de pura ciência. Ela desperta em nós uma sede de escapar a esta privação de conhecimento, procurando o «porquê» daquilo que nos apareceu como «admirável». Esta sabedoria teorética é para o homem o bem mais nobre, uma vez que ela é a mais perfeita das ciências. Ela é um bem divino: A justo título é que se pode estimar que sua possessão não é humana. De tantas maneiras, com efeito, a natureza dos homens é escrava que, segundo Simônides «só Deus pode ter esse privilégio», e que não é digno que os homens se limitem em procurar a ciência que é sua de por si. Portanto, se os poetas dizem algo e se o ciúme é natural para a divindade, neste caso é que conviria que ele se exerça e que todos os que se sobressaem [no saber] sejam provados. Mas não se pode admitir que a divindade seja ciumenta (e segundo o provérbio, «os poetas dizem muitas mentiras») e não se deve estimar que uma outra [ciência] que esta seja mais digna de honra. Com efeito, a mais divina também é a mais digna de honra. Ora, somente tal ciência seria isto, de duas maneiras: com efeito, a que Deus possuiria ao máximo é a mais divina da ciência, assim como a que seria a ciência das coisas divinas. Ora, esta [sabedoria] é a única que tem estes dois [caracteres]. Com efeito, Deus parece ser causa para toda coisa e um certo princípio; e uma tal ciência, Deus a possui sozinho ou ao máximo.2
A sabedoria, pois, é divina, porque ela considera os primeiros princípios e a causa última, Deus, e em razão daquele que a possui naturalmente, Deus. Por mais divina que seja, contudo, esta ciência permanece uma perfeição para o homem. Ela é até sua perfeição suprema, capaz de dar-lhe uma felicidade perfeita.
1 Ibid ., 982 b 11-21. 2 Ibid ., 982 b 28 - 983 a 10.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA
2. Estrutura científica desta sabedoria Não basta considerar a sabedoria como a procura das causas primeiras; é ainda preciso saber quais são as causas, na sua diversidade, que a estruturam como ciência. O Filósofo já o especificou na Física, elas são quatro: As causas são ditas de quatro maneiras: dizemos que uma é a substância (ousia) e a «qüididade» (to ti én einai) — com efeito, o porquê se reduz ao logos derradeiro, e o porquê primeiro é causa e princípio; uma outra é a matéria e o substrato; a terceira é o princípio de onde parte o movimento; e a quarta, a causa oposta a esta, é o «aquilo em vista de que» e o bem (pois este é o fim de toda geração e de todo movimento). Nós as consideramos o suficiente nos [livros] sobre a natureza.1
Para descobrir se não há outras causas ou para confirmar que estas causas são de fato aquelas que o sábio deve procurar, Aristóteles interroga aqueles que se aplicaram antes dele ao estudo da realidade. O interesse desta pesquisa é nos mostrar o quanto Aristóteles tem consciência de enraizar-se em toda uma tradição filosófica; se ele critica seus predecessores, é para completar o que eles começaram a buscar. Isto nos mostra também que para Aristóteles as três grandes fontes do desenvolvimento da filosofia são realmente: a experiência pessoal que conduz à descoberta dos princípios próprios; o diálogo com os outros filósofos, que nos permite compreender melhor as dificuldades e afiar nossa procura da verdade; e o ensino «daquele que sabe», de um sábio. Estas tês fontes não têm mesmo valor. A experiência é evidentemente a fonte principal; a segunda enriquece e confirma a primeira em sua próprias descobertas; a terceira é também ordenada à primeira: ela evita as perdas de tempo que ocasionaria o fato de trilhar falsas pistas, permanecendo no imaginário. Primeiro, Aristóteles mostra que «a maioria dos primeiros filósofos consideravam que os únicos princípios de todas as realidades estavam na natureza da matéria ( en hulés eidei)».2 Isto é manifesto nos primeiros físicos. Porém, suas afirmações não podem explicar o devir físico. É por causa disso que é necessário colocar uma nova questão: qual a origem da mudança, sua causa? Então se busca a causa eficiente. Quanto à existência da ordem e do belo nas realidades, ela exige pôr um novo princípio: a inteligência. Mas Aristóteles realça que Anaxágoras não se serve dela senão como de uma causa eficiente; da mesma forma, Empédocles a respeito da amizade e do ódio. Quanto aos Pitagóricos, eles consideram que os
1 Ibid ., 3, 983 a 26-33. Cf. Física, II, 3, 194 b 16 seg.; ver acima, p. 115. 2 Met ., A, 3, 983 b 6-8.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES princípios são os Números. Eis por que, antes de Platão, as duas únicas causas descobertas pelos filósofos foram, na realidade, a matéria e a origem do movimento. Platão é o primeiro filósofo que descobre explicitamente o papel da forma ( eidos) nas realidades. Mas ele não a compreendeu como qüididade e substância segundo a forma. 1 A análise que Platão faz das realidades se reduz, de fato, à descoberta da matéria e da forma. 2 Aristóteles sublinha também que a procura do «aquilo em vista de que», do fim, é a que foi menos colocada à luz: «“Aquilo em vista de que” são as ações, as mudanças e os movimentos, eles dizem de certo modo que é uma causa, mas não falam dela desta maneira segundo a qual justamente ela o é naturalmente». 3 Anaxágoras e Empédocles pressentiram a causa final, mas não souberam distinguir sua causalidade própria daquela da origem. Da mesma forma Platão, que em realidade reduz a causalidade do bem à da Idéia. Em definitivo, Aristóteles reconhece que seus pedecessores pressentiram as diversas causas, mas não souberam precisá-las com suficiente nitidez. Isso é verdade sobretudo da causa final. É por isto que, afirma Aristóteles, «em um sentido todas [as causas] foram efetivamente enunciadas antes, em um outro sentido, elas não o foram de nenhuma forma». 4 A razão derradeira das confusões dos filósofos anteriores, especialmente de Platão, é de não ter distinguido as diferentes acepções do ser: «Procurar de modo geral os elementos de o-queé (tôn ontôn), sem ter distinguido que ele é dito de múltiplas maneiras, é ser incapaz de achar».5 Não se pode procurar os elementos senão das «substâncias primeiras», isto é, das realidades existentes, e não dos acidentes ou das operações. É um erro querer procurar os elementos de todas as modalidades de o-que-é. A descoberta da analogia de o-que-é — o-que-é é dito de diversos modos — e a descoberta das diversas causas são correlativas. Ora, a descoberta precisa da diversidade das causas não pode ter lugar senão pela da causa final — a causa das causas — ; é, pois, a descoberta da causa final que nos permite compreender com uma perfeita nitidez a analogia de o-que-é. Esta compreensão da analogia de o-que-é e a descoberta da causa final são realmente as duas grandes descobertas de Aristóteles. Elas dão profunda originalidade à sua sabedoria filosófica. Se Aristóteles tem o cuidado de lembrar aqui estas quatro grandes análises da realidade existente, é que para ele a filosofia primeira, ciência última, implica uma procura das diferentes causas, que nos permitem compreender a estrutura própria dela. Esta estrutura científica da filosofia primeira é pressuposta a seu caráter próprio de sabedoria, que não pode 1 Cf. ibid ., 8, 988 a 34-35. 2 Cf. ibid ., 7, 988 a 7-17. 3 Met ., A, 7, 988 b 6-8. 4 Ibid ., 10, 993 a 14-15. 5 Ibid ., 9, 992 b 18-19.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA ser determinado senão na medida em que o bem último do homem é descoberto. Uma leitura rápida da filosofia primeira corre o risco sempre de não apreender com suficiente nitidez estes dois aspectos de ciência e de sabedoria. Com efeito, Aristóteles nos entrega o fruto da sua pesquisa ao mesmo tempo em que ele próprio o descobre, sem ter suficientemente distância crítica. É o que explica a diversidade muito grande de interpretações que se pode dar da filosofia primeira... Tentamos explicar seu pensamento com este «preconceito favorável» que se deve ter para com todo pesquisador. Para Aristóteles, a contradição não pode existir em filosofia; ela não pode existir na sua filosofia primeira. Ora, a certas de suas afirmações — «a sabedoria é a ciência de certas causas e de certos princípios» — , poder-se-ia objetar que a sabedoria não atinge senão uma só causa primeira, Deus; somente enquanto ciência é que a filosofia primeira atinge diversas causas, que já não são causas últimas, mas causas próprias de o-que-é. Pretender que Aristóteles se contradiz aqui, não é tomar suas afirmações de modo demasiado material? Não esqueçamos que Aristóteles afirma que a filosofia primeira é sabedoria, e que ela é ciência: «A sabedoria é a ciência de certas causas e de certos princípios». Ela não seria sabedoria filosófica se ela não fosse ciência, no sentido em que Aristóteles o entende.
3. As aporias (livro B)1 Antes de especificar o que considera propriamente a filosofia primeira, Aristóteles enuncia no livro B os diversos problemas que esta ciência deve resolver. É o livro das aporias. Com efeito, antes de buscar a solução de um problema, é bom ver todas as dificuldades, pois não se pode desatar nada, ignorando o nó; e a dificuldade do pensamento mostra o nó a respeito do que se considera. Com efeito, enquanto ele vai ao encontro a uma dificuldade, o pensamento é quase semelhante ao que sofrem os homens encadeados; nos dois casos, com efeito, é impossível ir adiante.2
Pretender resolver um problema sem tê-lo bem posto primeiro, é «como se se andasse sem saber onde se deve ir, e, ademais, é não reconhecer que a um momento se achou o que era procurado».3 Este livro é, portanto, uma maneira de pôr os problemas principais da sabedoria com a maior acuidade possível. Ele nos coloca na presença das preocupações dominantes e últimas 1 Deixamos
de lado aqui o livro , que é como um prefácio crítico à toda a filosofia, destinado a nos lembrar o que é a procura da verdade. 2 Met ., B, 1, 995 a 29-33. 3 Ibid ., 995 a 35 - 995 b 1.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES de Aristóteles amigo da sabedoria, ao nos mostrar todo o campo de exploração de suas mais difíceis e mais profundas especulações. As quatorze aporias que Aristóteles põe podem ser agrupadas dessa forma: 1) Questões tocando a natureza da sabedoria e sua extensão. Primeira aporia: o estudo das causas pertence a uma ciência ou a várias? Segunda aporia: esta ciência deve também considerar os princípios das demonstrações, demonstrações, «por exemplo, é possível afirmar e negar, a um só tempo, uma única e mesma coisa, ou não»? Quinta aporia: este estudo não deve olhar senão as substâncias ou igualmente suas propriedades? 2) Questões tocando a natureza dos princípios. Sexta aporia: os princípios e os elementos dos seres são os gêneros? Eles são universais (12a aporia)? Nona aporia: os princípios são limitados numericamente ou especificamente? Décima aporia: os princípios dos seres corruptíveis e dos seres incorruptíveis são os mesmos? 3) Questões tocando a existência das realidades separadas. Quarta aporia: devemos reconhecer somente as substâncias sensíveis ou há outras? Oitava aporia, cuja importância é sublinhada: fora da matéria, há algo que seja causa por si? si? Há algo fora do composto concreto? 14a aporia: os números são substâncias? 4) Enfim, questões considerando o problema mais árduo e que apresenta a maior dificuldade. É a 11a aporia: o uno e o-que-é (to (to en kai to on) on) são a própria substância das realidades existentes? existentes? Detenhamo-nos um instante a esta décima primeira aporia, já que ela é apresentada pelo Filósofo como a mais difícil e, a um só tempo, como capital. Compreendemo-lo facilmente, pois trata-se de precisar as relações exatas que existem entre o-que-é, o uno e a substância, pois trata-se de julgar as posições dos Pitagóricos, de Platão e a dos físicos. Para uns, com efeito, (Platão e os Pitagóricos), Pit agóricos), o-que-é e o uno são as substâncias das coisas; para outros (os físicos), existe algo que serve de substrato, de sujeito, para o-que-é e ao uno. 1 Para mostrar que não se pode admitir uma ou outra destas posições e para forçar a inteligência a procurar uma outra saída, Aristóteles expõe sucessivamente sucessivamente as impossibilidades que elas contêm. Se não se põe que o-que-é e o uno são uma substância, segue-se que nenhum dos outros universais é uma substância (o ser e o uno são o que há de mais universal), e, sendo assim, só podem existir as coisas ditas individuais. Ao invés, se o «ser em si» e o «uno em si» são «substâncias», como poderá existir qualquer realidade fora do ser em si e o uno em si? Como podemos explicar a multiplicidade e a diversidade das realidades? Precisando o que é a substância, Aristóteles ultrapassará estas posições contrárias.
1 Cf. ibid ., ., 4, 1001 a 4 seg.
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A. REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O CARÁTER PRÓPRIO DA FILOSOFIA PRIMEIRA
Os livros não são um estudo reflexivo sobre a natureza da filosofia primeira? Com efeito, precisa-se o que ela considera em primeiro lugar; precisa-se seu axioma fundamental; mostra-se como se pode defendê-la — livro livro . Resume-se as diversas maneiras de entender as expressões essenciais utilizadas nessa ciência — livro . Situa-se com exatidão a preeminência da sabedoria como teologia sobre as outras ciências teoréticas, especificando especificando as realidades que só ela pode considerar; enfim, mostra-se que os acidentes e o ser como verdadeiro, existente no juízo de união ou de separação, não podem ser o que ela considera em primeiro lugar — lugar — livro livro .1 Estes livros são muito importantes para nos fazer compreender como a como a própria sabedoria deve refletir sobre sua estrutura e seu próprio fundamento, como ela como ela deve se criticar. Como ciência suprema, com efeito, a sabedoria deve precisar o que ela considera em primeiro lugar, e o aspecto formal sob o qual ela o considera, o que desvela a orientação profunda de suas pesquisas, sua unidade e sua diversidade. Como ciência suprema, a sabedoria deve precisar qual o axioma primeiro de todo saber humano e defender seu valor face àqueles que o rejeitam. Como ciência suprema, ela deve precisar o uso que faz de certas expressões, pois estas expressões podem ter, de fato, diversas significações. A ciência suprema deve ter essa lucidez perfeita para evitar todo equívoco. Ela deve ter consciência consciência de sua supremacia, de sua dignidade soberana primeira, na ordem dos conhecimentos, porque só ela pode atingir as substâncias separadas. Ao refletir sobre o conhecimento das realidades divinas que termina suas pesquisas, ela pode ser chamada «teologia». Por isso mesmo, ela se distingue de modo mais nítido das outras ciências teoréticas que não podem atingir as substâncias separadas, e de certas técnicas que têm também, talvez, uma universalidade grande, sem ter o mesmo método científico e o mesmo alvo nas suas pesquisas. 2 Precisemos somente aqui aqui os dois primeiros estudos reflexivos e o do livro E. 1 Seria
necessário acrescentar a esses três livros, que são como que uma reflexão crítica sobre as pesquisas próprias da filosofia primeira, os dois últimos livros l ivros ( e ), como uma espécie de reflexão crítica defensiva relativamente às diversas opiniões dos Pitagóricos e dos Platônicos. Toda a parte propriamente científica da filosofia primeira se situa, portanto, entre duas reflexões críticas; uma, fundamental, e a outra, defensiva. 2 Cf. Met ., ., , 2, 1004 b 17 seg., no qual Aristóteles distingue nitidamente filosofia, dialética, sofística: «Os dialéticos e os sofistas revestem o mesmo exterior que o filósofo; com efeito, a sofística não passa de uma sabedoria aparente e os dialéticos discorrem sobre todas as coisas (...). A filosofia distingue-se da dialética pela atitude da potência, e da sofística pela escolha da vida...» Cf. Met .,., , 2, 1026 b 15-16: «Os argumentos dos sofistas se remetem acima de tudo ao acidente». Cf. também Met .,., , 3, 1061 b 8 seg., 8, 1064 b 15 seg.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
1. Existe uma ciência que estuda o-que-é enquanto ele é (to on é on) on ) e seus atributos primeiros Após ter mostrado a excelência da filosofia primeira, ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas, Aristóteles precisa aqui o que esta filosofia olha de próprio: Existe uma ciência que considera (theôrei (theôrei)) o-que-é enquanto é, e o que lhe pertence kath'auto). Ela não é nenhuma das que são ditas particulares. Com efeito, por si (kath'auto). nenhuma das outras olha universalmente o-que-é enquanto é; mas, cortando uma parte deste, é disso que as outras ciências consideram o acidente, por exemplo as ciências matemáticas. Ora, já que procuramos os princípios e as causas mais elevadas, é evidente que estes pertencem necessariamente a uma certa natureza por si.1
Em outras palavras, os primeiros princípios e as causas supremas não podem ser os princípios e as causas causas senão daquilo daquilo que é primeiro e último nas realidades, realidades, e não daquilo daquilo que é tal ou tal determinação particular. Por causa disso é que a ciência suprema que procura os primeiros princípios e as causas derradeiras não pode ser senão a ciência de «o-que-é», «o-que-é», considerado não enquanto tal ou tal, mas enquanto ele é. O que interessa esta ciência não é a procura dos princípios e das causas de tal realidade especial, de tal gênero particular, o homem ou o animal ou o vivente, e sim a procura dos princípios primeiros de o-que-é, considerado no que ele é, como tal. Visto que toda ciência considera não somente o que a interessa em primeiro lugar e essencialmente, como também suas propriedades, 2 Aristóteles acrescenta que esta ciência, cujo sujeito é o-que-é enquanto é, considera também as propriedades de o-que-é como tal. Eis verdadeiramente o que distingue essa ciência suprema de todas as outras ciências particulares. Estas não indagam senão sobre uma parte de o-que-é. Aquela não pode especializar-se a tal ou tal ser; ela é sempre ordenada a tudo o que é, sem limitar-se nem particularizar-se a tal ou tal ser. Toda realidade, enquanto existe, interessa imediatamente o filósofo de filosofia primeira. Ele não pode desinteressar-se por nenhuma das realidades, realidades, mas sim as olha todas sob o ponto de vista do ser. Se queremos compreender a unidade específica desta filosofia que resiste a toda especialização, é preciso olhar atentamente a unidade daquilo que ela considera, isto é, a unidade de o-que-é enquanto é. Este possui uma unidade própria. Não é nem uma realidade individual que possui uma unidade numérica, nem um gênero que possui uma unidade 1 Met ., ., 1,
1003 a 21-28. «Procura-se os princípios e as causas das realidades existentes, mas evidentemente enquanto elas são» (ibid ( ibid .,., , 1, 1025 b 2-3). 2 Ver Segundos analíticos, analíticos , I, 2-6, 71 b 10 seg.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA abstrata bem definida; o-que-é como tal não pode ser contido em um gênero, uma vez que «oque-é é dito de múltiplas maneiras». 1 Esta diversidade se toma relativamente a «algo «algo de uno» (a um princípio único); neste sentido, ela não é pura equivocidade, mas ela implica uma certa ordem «analógica». Aristóteles precisa esta significação múltipla do ser, comparando-a à de «são»: «Tudo o que é são é relativo à saúde»; são se diz de «o que conserva a saúde, do que a produz, do que é sinal dela, do que é afetado por ela». Estas diversas apelações possuem uma certa unidade graças a sua relação com a saúde. Da mesma forma, o-que-é é dito de múltiplas maneiras, porém, é todo inteiro relativo a um princípio único. Pois tais seres são chamados assim porque são substâncias, outros tais porque eles afetam ( pathé ( pathé)) a substância, tais ainda porque são um encaminhamento para a substância, ou corrupções, ou privações, ou qualidades, ou agentes produtivos ou geradores seja da substância seja daquilo que é denominado com relação à substância.2
Graças à ordem dessas diversas apelações de o-que-é para a substância, compreendemos como «pertence a uma e única ciência estudar todos os seres enquanto ser ( ta onta é onta)». onta )».3 Evidentemente a unidade desta ciência não é do mesmo tipo que a unidade das ciências matemáticas. É uma unidade proporcional, uma unidade que se realiza segundo uma ordem. Por causa disso é que ainda é necessário especificar o que é o primeiro nessa ordem. Aristóteles não se contenta em dizer que a filosofia primeira é a ciência de o-que-é enquanto é. Também precisa: Ora, sempre a ciência é principalmente (kyriôs (kyriôs)) a ciência do primeiro, de que (ex (ex)) tudo o resto depende, e por causa de que (dia (dia)) ele é denominado. Portanto, se é a substância, o filósofo deverá conhecer os princípios e as causas das substâncias.4
1 Met ., ., , 2, 1003 a 33. 2 Ibid ., ., 1003 b 5-9; cf. , 3, 1060 b 31 seg. 3 Ibid ., ., , 2 1003 b 15. 4 Ibid ., ., 1003 b 16-19. «Eis por que também
nós, acima de tudo, em primeiro lugar e para assim dizer unicamente, é nos preciso examinar a propósito daquilo que é assim [a substância], o que é» ( ibid .,., , 1, 1028 b 6-7). «Dissemos que procurávamos as causas, os princípios e os elementos das substâncias» ( ibid .,., , 1, 1042 a 4-5). 4-5). «O ser não é nada fora do “o que é”, da qualidade ou da quantidade» ( ibid .,., , 2, 1054 a 17-18). Por vezes, é difícil entender bem o pensamento do Filósofo... Com efeito, a substância é tomada, a um só tempo, como princípio (o ti esti) esti) e nas suas diversas realizações concretas (seu pôs). pôs). Não se pode falar de uma procura dos princípios de um princípio... Nas Categorias Aristóteles Categorias Aristóteles fala da substância primeira e da substância segunda, que são verdadeiramente duas maneiras como a substância existe; e no livro , ele fala dela como do princípio próprio segundo a forma de o-que-é enquanto ser. Portanto, trata-se de compreender em função do contexto; ousia, será que fala do princípio próprio de o-que-é enquanto ser, ou de tal quando Aristóteles fala da ousia, substância?
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES E como as substâncias são diversas na sua maneira de existir e como existem substâncias separadas que são mais perfeitas que as outras substâncias, vê-se como o Filósofo poderá novamente afirmar que essa filosofia primeira é uma teologia: só ela considera o intelecto e Deus.1 Ao afirmar sucessivamente: a filosofia primeira é uma sabedoria que procura os princípios primeiros e as causas supremas; esta sabedoria é a ciência de o-que-é o -que-é enquanto é; ela é a ciência da substância, pois considera em primeiro lugar a substância e, enfim, ela é teologia, já que só ela é capaz de alcançar as substâncias separadas e divinas, não pensemos que Aristóteles não tenha sabido discernir entre estas diversas concepções, nem dominá-las, reduzindo-as a uma unidade mais profunda. Não pensemos que ele tenha-se contentado com uma espécie de ecletismo, justapondo afirmações que não podem coexistir, e, se a filosofia primeira é a ciência do «ser «ser enquanto ser», ela não possa ser a ciência da substância, pois o ser enquanto ser é o que há de mais universal, ao passo que a substância substância é princípio de o-queé... Se se vê nestas diversas afirmações de Aristóteles hesitações, retomadas, incoerências, contradições mesmo, talvez seja porque não se compreende o que elas têm de tão profundo, de tão genial. Para Aristóteles toda ciência, com efeito, possui seus princípios próprios e considera algo próprio; e deve haver uma certa homogeneidade entre seus princípios e o que ela considera. Quando se trata da ciência suprema, a sabedoria, é necessário afirmar primeiro ser seus princípios os mais universais e os mais indivisíveis, já que considera o-que-é enquanto é. Visto que o-que-é enquanto é implica uma diversidade em uma certa unidade, é necessário especificar como esta ciência considera em primeiro lugar a substância como princípio e causa própria. E como, de fato, as as substâncias se encontram encontram realizadas realizadas de diversos modos e segundo uma certa ordem, é necessário precisar como esta ciência considera a Substância primeira. 2 Há entre estas diversas determinações não somente uma perfeita concordância, porém mesmo uma necessidade. Em outras palavras, da mesma forma que os primeiros princípios não podem ser perfeitamente compreendidos e exprimidos no seu valor de primeiros princípios senão no nível de o-que-é e em termos de ser — de de outra forma eles se limitariam 1 Cf. Met Cf. Met .,., , 1, 1026 a 10-32; Fís 10-32; Fís.,., II, 2, 194 b 14. 2 Evidentemente, a ordem entre as diversas acepções
do ser não é de mesma natureza que a ordem entre as diversas realizações da substância. Por causa disso, afirmar que a ciência de o-que-é enquanto ser é em primeiro lugar a ciência da substância, e afirmar que a ciência da substância é a teologia (a ciência da Substância primeira), não representa de modo algum o mesmo proceder. No primeiro caso, precisa-se o primeiro «analogué» do ser, todos o outros modos do ser lhe sendo relativos. No segundo caso, precisa-se a realidade na qual esse primeiro «analogué» se realiza mais perfeitamente, e, portanto, o que existe em primeiro lugar, segundo a ordem de natureza. Precisa-se, então, a realidade derradeira, que termina todas as pesquisas do filósofo. Essa segunda precisão se situa, pois, no nível da maneira de existir das substâncias, e não mais do ti esti. esti. Ela precisa o termo das pesquisas da sabedoria, não precisa, porém, seus princípios especificadores, o que realiza a passagem de o-que-é enquanto é à substância — nisso, nisso, com efeito, especifica-se verdadeiramente o caráter próprio desta ciência suprema.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA e perderiam necessariamente sua prioridade absoluta e sua perfeita universalidade, comparável àquela de o-que-é como tal; da mesma forma, a ciência que tem como sujeito oque-é enquanto é, não pode considerar em primeiro lugar e principalmente senão a substância, já que esta é a primeira determinação de o-que-é, a única na qual o ser se encontra perfeitamente, de modo separado e independente das outras determinações; determinações; as outras determinações do ser, ao contrário, são todas relativas à substância. Enfim, como a substância não se realiza somente nas substâncias sensíveis, como também nas substâncias separadas, é preciso ainda especificar que esta ciência suprema é verdadeiramente verdadeiramente a ciência das substâncias separadas: separadas: é uma teologia. Entre essas diversas maneiras de precisar a ciência suprema, não somente não existe contradição alguma, mas há uma ordem perfeita. Portanto, podemos dizer de maneira equivalente, porém exprimindo a cada vez algo de especial e de muito preciso, que a filosofia primeira é a ciência das causas supremas supremas e dos primeiros princípios, princípios, que é a ciência ciência de o-queé enquanto é, que é a ciência da substância e, enfim, que é a ciência do intelecto e de Deus. Nisto explicitamos suas qualidades próprias: ela é sabedoria, ciência ciência de o-que-é (considerado analogicamente), analogicamente), teologia. Para mostrar toda a extensão das pesquisas da filosofia primeira, Aristóteles precisa ainda como essa ciência considera necessariamente necessariamente também o uno enquanto uno, pois «o uno não é nada outro (heteron ( heteron)) fora de o-que-é». 1 Ademais, essa ciência deve necessariamente considerar todas as espécies do uno, uma vez que «tantas são as espécies do uno, tantas são as de o-que-é». 2 Os contrários competem à mesma ciência: 3 a filosofia primeira deve ainda considerar o múltiplo, assim como o outro, o dissemelhante, o desigual, contrários ao uno, ao mesmo, ao semelhante e ao igual.
2. O primeiro princípio Não somente a filosofia primeira deve refletir de maneira crítica sobre os axiomas e os princípios primeiros, como como também tem ainda de defendê-los defendê-los contra aqueles aqueles que os rejeitam. Com efeito, as outras ciências não descobrem senão seus princípios próprios e elas recebem, graças a certos conhecimentos anteriores, princípios comuns — os princípios primeiros que elas, pois, supõem conhecidos e aos quais elas aderem necessariamente. necessariamente. A filosofia primeira, como ciência suprema, não pode receber de uma outra ciência princípios primeiros, considerando-os como já conhecidos; conhecidos; estes princípios primeiros, ela deve colocálos em plena luz e defendê-los; ela deve considerá-los em si próprios, julgá-los, estimar seu 1 Met ., ., , 2, 1003 b 31-32. 2 Ibid ., ., 1003 b 33-34. 3 Cf. ibid ., ., 1004 a 9-10.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES valor próprio, ordená-los, indicar os mais certos, mostrar qual o primeiro no sentido forte. O primeiro princípio, «a propósito do qual é impossível de se enganar», 1 exercerá com relação a eles uma atividade auto-crítica e os defenderá contra aqueles que, desfigurando-os, os rejeitam ou lhes diminuem a autêntica eficácia. É partir do terceiro capítulo do livro da Metafísica que Aristóteles aborda este problema. No seu pensamento, este estudo crítico e defensivo deve desembocar em um conhecimento perfeito dos primeiros princípios, e muito especialmente daquele que é o mais fundamental. Para o Filósofo, não pode ser senão o seguinte: É impossível que o mesmo [atributo], a um só tempo, pertença e não pertença à mesma [realidade], e segundo a mesma [relação].2
Este princípio é de fato o primeiro, o mais certo de todos, já que ele cumpre as condições desejadas: não se pode enganar a seu respeito, visto que é o mais conhecido de todos. Com efeito, é impossível que alguém pense que uma mesma coisa é e não é, como alguns acreditam Heráclito ter dito. Pois, não é necessário que o que diz alguém, também ele o pense. Se não se pode admitir que contrários pertençam ao mesmo tempo ao mesmo [sujeito] (...), e se a opinião contrária é a contradição de uma outra opinião, manifestamente é impossível que o mesmo [espírito] pense que a mesma realidade, a um só tempo, é e não é (...). Por causa disso é que todos os raciocínios reduzem-se a esta última verdade; com efeito, ele é um princípio, mesmo para todos os outros axiomas.3
O sábio deve ter um conhecimento perfeito deste primeiro princípio, para ter condição de indicá-lo como primeiro e justificá-lo como tal; mas é evidente que não pode pretender dar uma demonstração direta e positiva dele. 4 Pretendê-lo seria um grave erro: não se respeitaria a ordem fundamental da vida da inteligência. Para Aristóteles, com efeito, «é inteiramente impossível existir uma demonstração de todas as coisas, já que se iria então ao infinito e, pelo fato, não haveria sequer demonstração», 5 pois esta requer princípios e o princípio é por
1 Met ., , 3, 1005 b 12. 2 Ibid ., 1005 b 19-20. Cf.
ibid ., , 5, 1061 b 34 seg. A propósito da oposição de contradição, ver ibid ., , 7, 1057 a 34. 3 Ibid ., 1005 b 23-34. 4 «Não existe demonstração propriamente dita ( aplôs) de tais [verdades], mas existe um [argumento] ad hominem...» ( Met ., , 1062 a 2 seg.). 5 Met ., , 4, 1006 a 8-9.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA definição algo primeiro. 1 Ora, se existem verdades que escapam a toda demonstração, é evidente que o primeiro princípio tem direito mais que todo outro a este privilégio. Eis por que o conhecimento perfeito que a sabedoria deve ter deste primeiro princípio é necessariamente um conhecimento evidente, imediato, que escapa a toda demonstração. A perfeita apreensão dos termos que constituem essencialmente o primeiro princípio — ser tal, não ser tal — deve logo engendrar na inteligência do filósofo um juízo evidente a seu respeito e uma adesão perfeita a sua verdade. Mas se a sabedoria não pode demonstrar diretamente a verdade e o valor do primeiro princípio, ela pode e deve demonstrar, por uma rigorosa refutação, a impossibilidade de negar a verdade deste primeiro princípio. O conhecimento perfeito que ela deve ter dele implica, com efeito, que seja capaz de defendê-lo contra todos os ataques que poderiam surgir. Não se possui perfeitamente algo senão quando se é capaz de substraí-lo totalmente aos ataques do inimigo. Aristóteles explica claramente o que é preciso entender por esta demonstração, que caracteriza o «método defensivo» da sabedoria: Eu digo que demonstrar por refutação é diferente de demonstrar: se se demonstra, parecerá fazer uma petição de princípio, ao passo que se alguém outro é causa disso, haverá meio de fazer, não uma demonstração, e sim uma refutação. O ponto de partida contra todas as teses desse gênero não é fazer o postulado que o adversário diz que algo é, ou que algo não é (...), mas que as palavras do adversário significam algo para ele e para o outro (...). Se se concorda, a demonstração se torna possível. Pois, desde então, algo será determinado.2
A característica desta demonstração, portanto, é tomar como ponto de partida as próprias palavras do adversário, sem se preocupar com o conteúdo de verdade ou de erro destas palavras. Querer apoiar a refutação sobre tal ou tal verdade, tal ou tal erro, seria querer fundamentá-la sobre um verdadeiro princípio e, por isso, torná-la impossível, uma vez que todo princípio supõe admitido o primeiro princípio. Logo, haveria petição de princípio. Por causa disso, é preciso apoiar-se somente sobre o fato de que o adversário reconhece um sentido determinado àquilo que afirma ou nega. As próprias palavras do adversário, reconhecidas como tendo um significado determinado, servem então de argumento e de prova. Elas mostram com evidência que aquele que objeta está em contradição consigo mesmo. Sua posição é insustentável e sem fundamento racional algum, já que aceitar que certas palavras tenham um sentido determinado implica necessariamente que se reconhece o 1 «Princípio
se diz primeiro do ponto de partida do movimento da realidade» ( Met ., , 1, 1012 b 34-35); «O ponto de partida do conhecimento de uma realidade também é chamado o princípio da realidade, por exemplo as premissas das demonstrações» (ibid ., 1013 a 14-16). 2 Met ., , 4, 1006 a 15-25.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES princípio de não-contradição. Com efeito, dizer que um nome significa algo determinado, é dizer que não significa todas as coisas. Portanto, é afirmar implicitamente que não há identidade entre todas as coisas, e, com maior razão, entre o ser e o não-ser. Portanto, é admitir implicitamente o princípio de não-contradição. Notemos bem que a demonstração por refutação é possível desde que aquele que objeta reconhece que suas palavras têm um sentido determinado. Se ele não reconhece isso, então, já não há nenhum ponto de contato possível entre este e o filósofo. Seriam como dois estranhos que se ignoram totalmente e que não têm nenhuma possibilidade de encontro. «De fato, como sublinha Aristóteles, se isto não fosse outorgado (isto é, o fato de que suas palavras têm um sentido determinado), tratar-se-ia de um homem que não pode falar, nem a si mesmo, nem a outrem...». 1 Se as palavras já não têm significado, então é inútil e impossível discutir e mesmo simplesmente se falar e conversar. Esta demonstração por refutação, como se vê, não faz propriamente descobrir novas verdades. Ela não pretende descobrir tais verdades. Mas ela destrói tudo o que poderia de um modo ou de outro impedir o acesso à verdade e erguer obstáculos ou armadilhas a todos quantos procuram a sabedoria. Tal demonstração é menos útil ao filósofo do que ao oponente, pois ela desmascara a ilusão deste e o ajuda a ultrapassá-la. Todavia, ela permanece indiretamente útil ao filósofo, pois lhe mostra que toda outra atitude é impossível e contraditória. Ela o conforta, para assim dizer, na sua adesão pessoal a seus próprios princípios. De resto, esse irradiar faz parte da natureza da ciência suprema, capaz de defender as exigências mais naturais de nossa inteligência. Uma vez precisado o que caracteriza a demonstração por refutação, Aristóteles usa dela de diversas maneiras para mostrar que as proposições contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras. Por essas refutações, ele quer nos desvendar todas as impossibilidades às quais se está encurralado desde que se afirma que elas podem ser simultaneamente verdadeiras. A primeira destas impossibilidades, e a mais radical, é a supressão da significação determinada de todo nome e, por essa razão, a impossibilidade de dizer qualquer coisa aos outros ou a si mesmo. 2 A segunda é a supressão de toda atribuição essencial e, portanto, a supressão de toda apreensão da qüididade da realidade. Por isso, chega-se a pretender que toda atribuição é acidental, o que conduz à supressão de toda atribuição, esta implicando sempre um sujeito que não é um acidente. 3 A terceira é a supressão de toda diversidade: tudo será, então, «uno», «todas as coisas serão mescladas» e, sendo assim, mais nada poderá existir. 4 A quarta é essa: «Então não é necessário afirmar ou
1 Met ., , 4, 1006 a 22-23. 2 Ibid ., 1006 a 28 - 1007 a 20. 3 A atribuição «iria, então, necessariamente ao infinito, mas é impossível» ( ibid ., 1007 a 28 - 1007 b 18). 4 Ibid ., 1007 b 18 - 1008 a 4.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA negar».1 A quinta é que se poderá afirmar tudo e negar tudo, ou tudo negar e tudo afirmar. Assim, todo o mundo dirá o verdadeiro e todo o mundo dirá o falso; o próprio adversário confessando estar no erro. 2 Aristóteles enuncia assim a sexta: «Se, quando a afirmação é verdadeira, a negação é falsa, e se, quando a negação é verdadeira, a afirmação é falsa, não será possível que a mesma coisa seja, a um só tempo, afirmada e negada com verdade». 3 A sétima afirma que se todos estão igualmente no erro e na verdade, não se pode tratar de proferir um som nem de dizer algo inteligível. Tal homem não difere das plantas! Afirmar que as proposições contraditórias são simultaneamente verdadeiras vai até a supressão de toda escolha na vida prática, logo, a supressão da sabedoria prática, da prudência. 4 Enfim, não se pode negar que o mais e o menos existem na natureza das realidades existentes. Portanto, há mais ou menos verdadeiro e, logo, «mais firme e mais vero». 5 A rejeição desse primeiro princípio mina na raiz, portanto, todo o desabrochar vital possível da inteligência humana, na ordem especulativa assim como na ordem prática. Esse princípio aparece, pois, como exprimindo a estrutura mais essencial e mais profunda da inteligência humana. Não podemos entrar aqui nos pormenores de todas essas refutações; frisemos somente as diversas maneiras como Aristóteles vê o conhecimento defensivo da sabedoria. A primeira maneira, com já vimos, consiste em mostrar que o oponente está em contradição consigo mesmo. Em seguida, trata-se de levantar todas as impossibilidades que surgem, desde que tal princípio é negado: este segundo modo consiste, na realidade, em mostrar que defender tal opinião errônea é necessariamente ser conduzido a admitir outras que, contudo, o oponente explicitamente não aceita ou que ele até considera como falsas. Dessa maneira, manifesta-se os vínculos escondidos que comandam tais erros. Estes, a primeira vista, pareciam totalmente estranhos entre si ou mesmo opostos; na verdade, eles provêm de uma mesma opinião inicial falsa. Este método oferece a vantagem de revelar a cumplicidade secreta dos erros e de colocar à luz certas de sua conexões subterrâneas. Enfim, pode-se mostrar que as diversas objeções feitas se destróem reciprocamente. Estas objeções não têm nenhuma harmonia entre si. Racionalmente não se pode mantê-las todas. Após ter considerado as diversas maneiras de refutar os oponentes, Aristóteles assinala uma «arte» da defesa, que tem como alvo modificar e matizar as demonstrações por refutação. Esta arte se apresenta como um complemento necessário. «Não se deve empregar com todos o mesmo modo de discutir. Pois, uns têm necessidade de persuasão, outros de coação».6 Já que essas refutações são essencialmente relativas à posição do oponente, é muito normal que elas se modifiquem profundamente nas suas realizações concretas, segundo as 1 Ibid., 1008 a 2-7. 2 Ibid., 1008 a 8-34. 3 Ibid., 1008 a 34 - 1008 b 1. 4 Ibid., 1008 b 2-31. 5 Ibid., 1008 b 31 - 1009 a 5. 6 Ibid., 1009 a 16-18.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES opiniões diversas dos adversários encontrados. Estas modificações se reduzem a duas grandes categorias: discutir seja por persuasão, seja por coação, segundo a atitude do adversário — o que nos indica que se trata da arte da defesa e não mais do método objetivo da sabedoria defensiva. É um fato de experiência que não se deve agir da mesma forma com aqueles que estão mergulhados no erro, como que contra o seu grado, porque não conseguiram ultrapassar certas dificuldades intelectuais, ou porque não receberam, de fato, um verdadeiro ensino, e aqueles que estão mergulhados no erro voluntariamente, por obstinação e amor próprio. É preciso esclarecer e persuadir os primeiros, é preciso de certa maneira usar de constrangimento com os segundos. O gênio de Aristóteles aparece nessa elaboração de um método de defesa dos primeiros princípios. É o primeiro que integra o problema da crítica no seio mesmo da sabedoria. Os sofistas já tinham posto o problema crítico, mas sua crítica era dissolvente e destrutiva, porque pretendia ser uma autêntica sabedoria, autônoma e não respeitando nada. A crítica de Aristóteles é defensiva: ela se fundamenta sobre a filosofia primeira, da qual ela é uma parte essencial, porém, reflexiva. Portanto, ela não é a estrutura substancial e primeira da sabedoria: ela está a seu serviço. Sendo assim, ela aparece com um alvo determinado e um método preciso, embora permaneça toda relativa à sabedoria filosófica — que ela pressupõe e serve. Ela nos permite melhor captar as exigências profundas de nossa inteligência ordenada a conhecer o-que-é, não somente de maneira exterior — não somente em seu devir — mas no que ele tem de mais ele próprio. Se elas são o que há de mais vital em nós, estas exigências de nossa inteligência, a um só tempo, são o que há de mais difícil a desabrochar plenamente; a defesa do princípio de contradição o mostra bem. Este primeiro princípio expressa com evidência a estrutura essencial de uma inteligência que, no que ela tem de mais íntimo, depende totalmente de uma realidade que é exterior a ela, de um «o-que-é» que não é ela. Tal inteligência deve sempre permanecer aberta à realidade exterior, atenta ao que não é ela, ao outro, sem nunca se contentar com o que já possui. Tal inteligência, face àqueles que negam sua capacidade de atingir o-que-é, que negam este primeiro princípio, não se pode defender senão negativamente. Não se poderia dizer que é a defesa do pobre, que mostra que é ilegítimo agredi-lo, mas que sabe ao mesmo tempo que não pode comprovar seu bom direito? A defesa deste princípio de contradição mostra, a um só tempo, a capacidade infinita da inteligência — não se pode limitar nas suas pesquisas de o-que-é — e sua potencialidade congenital: ela é «tabula rasa».1 É fácil compreender a importância de uma tal tomada de posição, tão nítida, e dos vários princípios de crítica enunciados nesta passagem da Metafísica. Seria muito útil retomá-los e
1 Ver a explicação, acima, pp. 147.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA explicitá-los em uma crítica filosófica de certas filosofias que querem elaborar-se como que além do princípio de contradição... 1
3. Excelência da filosofia primeira entre os conhecimentos teoréticos Para determinar seu lugar exato entre os conhecimentos teoréticos (física e matemática), é necessário dizer de que maneira a filosofia primeira precisa, ao defini-lo, o que ela considera: «Das coisas definidas e dos “o que é?” ( tôn ti esti), uns são como o “arrebitado”, outros como o côncavo; ora, a diferença consiste nisso que o “arrebitado” é apreendido [na sua união] com a matéria (o “arrebitado” é o nariz côncavo), ao passo que a concavidade é sem a matéria sensível». 2 A transposição é fácil fazer: todas as realidades físicas são ditas da mesma maneira que o “arrebitado”, por exemplo a carne, o osso, o animal, a planta. Na definição destas realidades físicas, a matéria permanece sempre indicada como um elemento essencial. As matemáticas, ao contrário, consideram os seres enquanto imóveis e enquanto separados pela abstração. Portanto, elas definem o que elas consideram como a «concavidade».3 Enfim, a filosofia primeira — aquela que é «anterior» às duas precedentes conforme a ordem de perfeição — considera realidades «ao mesmo tempo separadas e imóveis»: 4 o divino. Assim, esta filosofia é teologia, pois se «o divino está presente em alguma parte, ele está presente nesta natureza imóvel e separada». 5 Essa ciência suprema, embora considere os seres imóveis e separados, é uma ciência universal, porque ela é «primeira».6 Todo o-que-é pode ser considerado por ela, porém, considerado sob este aspecto próprio do ser. Assim, o que a filosofia primeira define sob esta luz não implica, como tal, nenhum elemento material. O que ela define é, de fato, separado por um juízo de todo elemento potencial e material que o individualize, para discernir sua noção absolutamente primeira (conforme a ordem de natureza). Por exemplo, a maneira como Aristóteles apreende a substância em filosofia primeira não é a mesma como ele apreende a natureza na física. Uma é apreendida relativamente a “o-que-é”, a outra relativamente a “o-que-é-movido”. A primeira vista, esses livros que qualificamos de críticos se seguem de modo puramente acidental. Na realidade, podemos descobrir uma certa ordem crítica. Partindo do mais complexo para ir para o mais simples, constatamos que a filosofia primeira, ciência teorética última, apreende o-que-é enquanto ser. Em seguida, apreendemos os princípios primeiros de 1 Não é o caso, respectivamente, da filosofia de Hegel e da de Heidegger? 2 Met ., , 1, 1025 b 30-34. 3 Ibid ., 1025 b 34 - 1026 a 10. «O matemático indaga sobre realidades
que existem a partir da abstração...»
(ibid ., , 3, 1061 a 28 seg.). 4 Ibid ., , 1, 1026 a 16; cf. Da alma, I, 1, 403 b 9-16; Met ., , 7, 1064 a 21 seg. 5 Ibid ., 1026 a 19-21; cf. , 7, 1064 a 34 seg. 6 Ibid ., 1026 a 30; cf. , 4, 1061 b 18-33.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES o-que-é com tal. Enfim, colocamos em plena luz a apreensão original que caracteriza a filosofia primeira. Com efeito, trata-se de refletir de maneira crítica sobre a natureza própria dessa filosofia primeira que é ciência. Portanto, é preciso ver o que ela atinge de próprio e o que só ela alcança. Para o atingir, ela usa princípios primeiros, que são como que as condições sine qua non desse conhecimento último, tão penetrante e tão frágil, que pode com muita facilidade desviar-se, corromper-se. Enfim, é preciso especificar o que caracteriza a universalidade dessa apreensão do ser, portanto, sua abstração, a fim de poder situar com precisão a filosofia primeira em comparação com as outras ciências teoréticas. Aqui descobrimos, presentes de modo subjacente, os três grandes momentos de nossa vida intelectual: o que é atingido de modo científico, por demonstração, os juízos necessários e indispensáveis para que esse conhecimento possa se realizar, e enfim, a reflexão sobre o que se pode definir, permitindo precisar o caráter próprio da abstração, a maneira própria como o singular e o universal se distinguem e fazem apelo um ao outro. O-que-é é a realidade mais singular, e o-que-é, como tal, é o mais universal. Eles se distinguem pela sua modalidade (seu pôs) e se unem no seu significado mas característico (o ti esti). Depois dessas reflexões críticas, Aristóteles pode afirmar: «É preciso examinar as causas e os princípios de o-que-é mesmo, enquanto ele é». 1
1 Met ., , 4 1028 a 3-4.
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B. ESTRUTURA CIENTÍFICA DA FILOSOFIA PRIMEIRA: ANÁLISE E DESCOBERTA DE SEUS PRINCÍPIOS PRÓPRIOS
Com o livro começa a pesquisa propriamente científica da filosofia primeira. Trata-se de determinar com a maior exatidão possível as causas próprias de o-que-é. Com efeito, a sabedoria, por mais eminente que seja — e até por mais divina que seja — , guarda o modo humano próprio a toda ciência dianoética, 1 aperfeiçoando uma inteligência que tem um modo racional. Por essa razão é que esta ciência permanece, como toda ciência, uma pesquisa das causas próprias, 2 que dão razão dos diversos “porquê” da inteligência humana a respeito do que considera. Com efeito, a procura das quatro causas representa, para o Filósofo, as diversas maneiras como podemos conhecer cientificamente as realidades que experimentamos. Ele o diz explicitamente na Física.3 Podemos acrescentar que esta pesquisa das quatro causas permanece ainda o meio para atingirmos cientificamente as realidades separadas, já que estas realidades não são cognoscíveis senão a partir do conhecimento do mundo sensível. É por isso que a ciência suprema não pode libertar-se de uma tal estrutura orgânica, própria ao nosso modo humano de saber. Devemos mesmo dizer que, como ciência mais perfeita, ela deve usar mais fielmente ainda desta modalidade de pesquisa que os outros saberes. A ciência suprema, portanto, é a pesquisa das causas primeiras de o-que-é enquanto ser. Mas, evidentemente, esta pesquisa terá seu caráter sui generis, dado a própria natureza de o-que-é enquanto ser; não sendo por si ligado à matéria, ele escapa ao movimento. Eis por que a pesquisa da causa material no sentido próprio não tem mais significação; ela deixa todo o lugar à pesquisa da causa segundo a forma. Quanto à procura da causa eficiente, também ela é como ultrapassada, uma vez que esta permanece no nível de o-que-é-movido; ela deixa todo o lugar à causa final como causa própria última de o-que-é enquanto ser. Nesta perspectiva, é necessário que a primeira pesquisa seja a da causa segundo a forma de o-que-é: a substância.
1 «De modo geral, toda ciência dianoética, ou participando de alguma forma ao raciocínio, é a respeito de certas
causas e de princípios, ou mais certos ou mais simples» ( Met ., , 1, 1025 b 6-7). 2 Cf. Met ., H, 4, 1044 a 32 seg.; , 7, 1063 b 35 seg. 3 Cf. op. cit., , 1, 184 a 10-16; II, 3, 194 b 16 seg. Ver acima, p. 111 seg.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
1. Procura da substância (Livros e ) O ser no sentido primeiro: a substância 1 Eis como Aristóteles começa a procura do que é o ser: O-que-é é dito de várias maneiras, como distinguimos anteriormente nos capítulos concernindo às múltiplas acepções; com efeito, ele significa, por um lado, o «o que é?» e o «isto»; por outro lado, uma qualidade ou uma quantidade ou cada uma das outras coisas que são assim atributos. Mas, já que o-que-é é dito de tantas maneiras, é manifesto que o que é primeiro entre essas é o «o que é?», que é sinal da substância. (Com efeito, por um lado, quando dizemos de que qualidade é tal coisa, dizemos que ela é boa ou ruim, e não que ela tem três côvados de cumprimento ou que é um homem; por outro lado, quando dizemos o que é tal coisa, não dizemos que ela é branca ou quente, nem que ela tem três côvados, mas que ela é um homem ou um deus). Quanto às outras coisas, não são ditas seres (onta) senão pelo fato de serem quantidades do que é assim, qualidades, ou paixões, enfim, as outras [coisas] qualquer [determinação] que seja tal.2
Portanto, Aristóteles mostra que, em resposta à interrogação «o que é esta realidade?», descobrimos sua substância, como a determinação essencial desta realidade, sua significação radical: todas as outras determinações lhe são relativas. Mas esta própria determinação radical é atribuída à realidade existente, singular, substancial: é a Pedro que atribuo «homem». Portanto, a determinação essencial ainda é relativa, de certa maneira, à realidade existente. Segundo esta constatação, experimentamos como que duas modalidades da substância: cada uma tem algo de irredutível à outra, cada uma tem seu absoluto — absoluto na ordem da significação, absoluto na ordem do existir. Poderíamos dizer que esta primeira démarche de Aristóteles é como uma indução, descobrindo a significação primeira, a que está anterior a todas as outras, e a realidade fundamental existente, sujeito radical de todas as atribuições. Trata-se efetivamente de uma espécie de démarche indutiva, especificando o que é primeiro em uma ordem dada — a da atribuição. Esta ordem da atribuição é exprimida na linguagem, mas implica uma realidade subjacente. De resto, é por isso que estamos na presença de duas modalidades da substância — primeira na ordem da significação, primeira na ordem da existência — : a substância existe destas duas maneiras. Nossa linguagem é sinal 1 O
termo substância traduz o grego ousia, já presente em Platão, que vincula sua etimologia ao nome da deusa Estia, «a deusa que permanece na casa dos deuses, sozinha» ( Fedro, 247 a). Cf. Crátilo, 401 c-e; 385 e, 386 a e e, 393 d, 402 e, 424 b, 431 d, 436 e. Ver também Fedro, 245 e seg. 2 Met ., , 1, 1028 a 10-20.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA disto, e nossa experiência no sentido forte, implicando o juízo de existência, o manifesta. Com isso, Aristóteles responde plenamente às afirmações de Platão: para este, a substância era a forma, o ser inteligível, o que há de primeiro nesta ordem inteligível e na ordem do ser, o ser e a inteligibilidade sendo idênticos. Aristóteles mantém com Platão que a substância é verdadeiramente primeira na ordem da inteligibilidade: é o atributo essencial. Mas ele afirma que esta primazia não é a primazia na ordem do ser, do ser existente: a substância-sujeito (tode ti), que expressa o ser singular existente (Pedro), é radicalmente primeira — sem sê-lo de modo absoluto. Logo, Aristóteles, ao manter este primado da substância na ordem da inteligibilidade e ao distingui-la, no entanto, com relação à ordem do ser existente, afirma sua distinção e sua correspondência, a um só tempo: ele expressa pelo mesmo nome ( ousia) o primeiro na ordem da inteligibilidade e o primeiro na ordem da existência. Portanto, é de fato o problema da substância que nos manifesta perfeitamente, ao mesmo tempo, essa distinção e essa correspondência entre a inteligibilidade e o ser existente: a substância é, a um só tempo, homem e Pedro. Aristóteles completa esta primeira abordagem da substância, afastando aqueles que pretenderiam achar um absoluto em outras afirmações: Eis por que podemos perguntar se andar, estar em boa saúde, estar sentado, se cada uma destas coisas é ou não é, e semelhantemente para qualquer um dos outros casos. Com efeito, por sua natureza, nenhuma destas coisas é por si própria, nem é capaz de ser separada da substância; antes, se isto existe, é o que anda que pertence às realidades existentes, o que está sentado e o que está em boa saúde. E estas coisas parecem manifestamente mais realidades existentes, porque há algo que é um sujeito determinado para elas (isto é a substância e o que é tomado individualmente), algo que precisamente é manifestado nesta atribuição. Com efeito, o bom ou o sentado não é dito sem isso.1
Aqui, Aristóteles responde aos sofistas, mostrando que, além dos estados particulares, há sempre um sujeito que estes estados afetam e que significa certamente o absoluto da substância. E Aristóteles reconhece que esses estados particulares manifestam de modo especial o sujeito existente, mostrando-o em um estado que ele próprio não expressa. Trata-se já de uma espera da análise do ser-em-ato que Aristóteles fará no livro ? Compreendemos, então, a força desta conclusão: «O-que-é no sentido primeiro ( to prôtôs on), não um certo ser, mas o que é no sentido absoluto (on aplôs) é a substância». 2
1 Met ., , 1028 a 20-29. 2 Ibid ., 1028 a 30-31.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Então, Aristóteles precisa que «a substância é o primeiro, tanto segundo a noção ( logô), quanto segundo o conhecimento, quanto segundo o tempo». 1 Pois, somente a substância pode existir separadamente. As determinações acidentais de o-que-é não o podem: elas dependem da substância-sujeito e lhe são relativas. Somente a substância possui sua própria determinação inteligível, sem implicar determinação extrínseca. Ela é «segundo ela mesma», e por si mesma determinada. Enfim, somente o conhecimento da substância da realidade pode satisfazer o apetite natural de nossa inteligência; enquanto não captarmos a realidade no que lhe é substancial, nosso conhecimento intelectual permanece imperfeito e, logo, insatisfeito. Aqui é preciso observar o quanto Aristóteles insiste sobre o to prôtôs on. Com isso é que podemos compreender melhor sua intenção neste primeiro capítulo do livro Aristóteles quer apreender o primeiro na ordem de o-que-é enquanto é, a substância. Platão, decerto, já tinha descoberto o papel primordial da substância na ordem do ser, ao identificar o ser e a substância. Aristóteles mostra que, dentro do ser, há uma diversidade e uma ordem, uma diversidade ordenada, e, portanto, um primeiro — a diversidade manifesta o primeiro. Mas ele ainda não precisa aqui o papel próprio deste primeiro em relação às outras determinações. Para isto, é preciso apreender o que é este primeiro na ordem do ser. É por isto que Aristóteles conclui assim o capítulo primeiro: Assim, o que é procurado no passado, presentemente e sempre, e o que é sempre colocado em questão: «o que é o ser?», equivale a isto: «o que é a substância?» (...) Eis por que também nós, acima de tudo, e em primeiro lugar, e para assim dizer unicamente, devemos examinar, a propósito daquilo que é assim, o que é. 2
Não pretendamos que Aristóteles identifique aqui a ousia e o ser; ele acaba de dizer o inverso, ao afirmar que a ousia é «o primeiro»! Mas saber o que é a substância, nos permite saber o que é o ser. Diversas maneiras de conceber a substância Se todos os filósofos, de certa forma, falam das substâncias, no entanto, eles as consideram de modos muito diversos: para uns (os primeiros físicos), são as realidades físicas primordiais, a água, o fogo; para outros (os Pitagóricos), são os limites do corpo, a superfície, a linha... Segundo uns, não pode haver substâncias fora das realidades físicas; para outros, ao contrário, existem substâncias separadas, eternas, as únicas substâncias verdadeiras.
1 Ibid ., 1028 a 32-33. 2 Ibid ., , 1, 1028 b 2-7.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Portanto, é necessário que o Filósofo precise primeiro o que é a substância, examinando sucessivamente o que há de justo nestas diversas maneiras de concebê-la, para determinar, em seguida, se existem outras substâncias que não as substâncias físicas: A propósito destas opiniões: o que é dito a justo título (kalôs), o que não o é? Quais são as substâncias? Existem outras fora das substâncias sensíveis ou não? E como elas existem? Existe uma substância separada, por que e como, ou não existe nenhuma fora das substâncias sensíveis? É isso que se deve examinar após ter esboçado o que é a substância.1
Então, Aristóteles reduz a quatro a diversidade das opiniões sobre a substância: A substância é dita, senão em um número maior de modos, pelo menos em quatro principais: com efeito, a substância parece ser para cada coisa a qüididade (to ti én einai), o universal (to katholou), o gênero (to genos) e, em quarto lugar o sujeito (to hypokeimenon).2
A passagem das diferentes concepções da substância a estas quatro resume admiravelmente o pensamento de Aristóteles, sem explicá-lo. Com efeito, numa perspectiva pitagórica e platônica, a substância, o ser primeiro, é o que há de mais inteligível: a substância identifica-se à forma. Se se identifica lógica e metafísica (como os sofistas fazem), o primeiro inteligível será o universal; e o primeiro no universal é o gênero. Enfim, na perspectiva dos «físicos», a substância é o sujeito. Entre o bosquejo histórico e a afirmação destas quatro significações, Aristóteles já tem um juízo crítico: ele coloca à luz quatro modalidades do primeiro, segundo ordens diferentes. O sujeito 3 Reduzir o significado próprio da substância ao sujeito é um erro fácil de cometer. O sujeito é o ao qual tudo o resto é atribuído, e que, ele próprio, não é atribuído a ninguém. Portanto, é o que é fundamental. 4 Ora, precisamente, a substância possui estas duas propriedades: ela é antes de todas as outras determinações do ser, sustentando-as; ela não é relativa a nenhuma delas. Logo, pareceria normal identificar sujeito e ousia.
1 Ibid ., , 1028 b 27-32. 2 Ibid ., , 028 b 33-36. 3 Ibid ., , 1028 b 36 - 1029 a 34. 4 De propósito, não precisamos aqui a natureza do fundamento. Não olhamos senão a sua função, em cujo nível
se situa essa confusão.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Aristóteles não pode aceitar de maneira absoluta tal identificação, pois esta conduziria a fazer da matéria a substância: Portanto, se dissemos aproximadamente (typô) o que pode ser a substância, a saber o que não é dito de um sujeito, mas aquilo do qual todo o resto é dito, no entanto, não devemos nos deter a isto somente, pois não é suficiente. Com efeito, isto não é claro, e, além do mais, a matéria se torna substância.1
Com efeito, a matéria é o sujeito radical; todas as outras determinações podem ser atribuídas a ela e ela não é dita de nenhuma outra. Logo, ela é o sujeito derradeiro. Eu chamo de matéria o que por si não é dito nem o «o que é», nem a quantidade nem algo outro pelo qual o que é é determinado. Existe, com efeito, algo ao qual cada uma destas [determinações] é atribuída, para o qual o ser é outro que para cada uma das categorias (com efeito, os outros são atribuídos à substância, e esta à matéria), de tal sorte que o sujeito derradeiro por si não é nem um «ti esti», nem uma quantidade, nem algo outro; ele nem sequer é as negações, pois estas também lhe pertencerão por acidente. Portanto, considerando as coisas assim, resulta que a matéria é substância. Mas é impossível.2
É impossível identificar a substância e a matéria, pois a substância é primeira na ordem do ser, o que, evidentemente, repugna à matéria. Se, pois, não se pode identificar sujeito e substância, entretanto, é preciso reconhecer que a confusão pode provir de uma similitude de funções. É necessário observar que Aristóteles considera aqui tanto o sujeito tomado logicamente, quanto o sujeito tomado fisicamente, passando de um a outro...Estamos numa perspectiva crítica, que não se opõe a esta passagem e a esta identidade, já que o mesmo erro se encontra nos dois lados. Uma vez que o sujeito lógico implica a capacidade de ser determinado pela atribuição, ele não pode ser primeiro na ordem do ser. Ora, é a significação do ti esti do ser que procuramos, ao tentar conhecer o que é a substância. Quanto ao sujeito físico, é evidente que ele implica uma indeterminação total. Do ponto de vista crítico, isto é, do ponto de vista da inteligibilidade, o sujeito lógico e o sujeito físico aparecem, portanto, como segundos. Ora, a substância é algo primeiro. A qüididade (to ti én einai)3
1 Met ., , 3, 1029 a 7-10. 2 Ibid ., 1029 a 20-27. 3 Met ., , 4-12, 1029 b 1 seg.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA «Já que, no início, distinguimos as diferentes maneiras de definirmos a substância, e que uma delas parece ser o to ti én einai, temos de examiná-lo». 1 Primeiro temos de especificar que o próprio Aristóteles forjou esse termo de to ti én einai,2 para mostrar a diferença que existe entre a inteligibilidade primeira e a realidade existente na sua própria existência. 3 1. É primeiro de modo puramente inteligível (logikôs) que Aristóteles aborda o problema da qüididade. Resumemos esta sutil argumentação ao nível da inteligibilidade : a. «A qüididade é para cada um o que é dito por si ( kath'auto). Com efeito, ser ‘tu’, não é ser músico, pois não é por ti que tu és músico; [tua qüididade], portanto, é o que tu és por ti». 4 A qüididade é o atributo essencial de cada realidade. b. Mas a qüididade não é «tudo o que é por si», pois ela não é a propriedade, embora a propriedade seja atribuída por si a seu sujeito. A qüididade é o que expressa o que há de radical e de primeiro na realidade existente. Portanto, faz parte da qüididade somente o que estrutura essencialmente e de modo imanente esta realidade. A qüididade de uma realidade, logo, é o que é precisamente esta realidade na sua existência própria e individual ( oper tode ti).5 c. Se perguntamos quais são as realidades para as quais há qüididade, Aristóteles responde: «Não há qüididade senão daquilo cuja noção é uma definição», 6 isto é, não há qüididade senão de realidades consideradas em si mesmas e por si mesmas, sem nenhuma dependência com relação a outras realidades: só estas realidades podem ser definidas. d. No entanto, Aristóteles reconhece que, como o ser é dito de diversas maneiras, da mesma forma o «o que é ?» e a qüididade: o «o que é» significa em um sentido a substância e o «isto», em um outro sentido cada uma das categorias, a quantidade, a qualidade (...). Com efeito, da mesma forma que o «é» se encontra em todos, mas não de modo idêntico, já que ele está em primeiro lugar e absolutamente na substância, e, em seguida nas outras [categorias], da mesma forma também o «o que é» se encontra em primeiro lugar e absolutamente 1 Ibid ., 1029 b 1-2. 2 É traduzido literalmente
em latim por quod quid erat esse, isto é, quidditas, que o francês traduz quiddité e o português qüididade. Este termo expressa o que se apreende da realidade quando se interroga para conhecê-la no que ela é profundamente, além de sua mudança, de sua corruptibilidade, de suas transformações secundárias e acidentais. Aristóteles quer mostrar que esta inteligibilidade se enraíza no ser da r ealidade, e que ela não se pode separar dela, embora seja diferente. A inteligibilidade de cada realidade, no que tem de mais próprio, é única, porém não se identifica formalmente com seu ser. Cf. acima, p. 137, nota 5. 3 Com isso, Aristóteles evita dois erros que se desenvolverão em seguida na filosofia ocidental, enraizados no neoplatonismo: identificação entre a inteligibilidade e o ser do qual ela é a inteligibilidade (identificação do ti én com o to einai); separação total da inteligibilidade e da realidade. 4 Ibid ., 4, 1029 b 14-16. 5 Ibid ., 1030 a 4-5. 6 Ibid ., 1030 a 6-7. «A definição é a noção (logos) da qüididade» ( Ibid ., 5, 1031 a 13); «a ciência de cada realidade é conhecer o to ti én einai desta realidade» ( Ibid ., 6, 1031 b 7); «conhecer o que é cada um é conhecer o to ti én einai » ( Ibid ., 1031 b 20-21).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES na substância, e de certo modo nas outras [categorias]. (...) A qüididade pertencerá, portanto, em primeiro lugar e absolutamente à substância, e, em seguida, às outras categorias.1
O Filósofo conclui, então, esse capítulo afirmando: «É manifesto que a definição e a qüididade, no sentido primeiro e absoluto, pertencem às substâncias». 2 e. Em seguida, no capítulo 6, Aristóteles afirma: É preciso examinar se o to ti én einai e cada um são idênticos ou diferentes, pois é coisa útil a saber para nossa indagação sobre a substância. Com efeito, cada um parece nada ser outro senão sua própria substância, e diz-se do to ti én einai que ele é a substância de cada qual.3
Então, ele mostra como a qüididade de todas as realidades que não são afirmadas de uma outra realidade, mas que são por si e primeiras, identifica-se necessariamente ao que elas são; ao passo que não há identidade no caso de realidades compostas. É por isto que, em um sentido, há identidade do ser real e da qüididade e, num outro sentido, não há identidade. 4 E o o Filósofo conclui: «A substância e a qüididade não somente fazem senão uma só coisa, como sua noção (logos) é a mesma». 5 2. Após esta argumentação ao nível da inteligibilidade, Aristóteles volta às realidades físicas. Analisando a geração e as realizações artísticas, isto é, analisando os movimentos das realidades sensíveis, o Filósofo mostra em segundo lugar como se deve especificar o vínculo da qüididade com a substância. Entre as realidades que estão em devir, umas o estão por natureza, outras pela arte, outras pelo efeito do acaso, mas todas se tornam qualquer coisa por algo e a partir de algo. E este algo, eu o digo segundo cada uma das categorias: do isto, da quantidade, da qualidade ou do lugar.6
1 Ibid ., 1030 a 18-30. 2 Ibid ., 1030 b 4-6. 3 Loc. cit., 1031 a 15-18. 4 «Para as substâncias primeiras, o
to ti én einai e o singular são idênticos»; em tudo o que forma um composto com a matéria, não há identidade ( Met ., , 11, 1037 b 1 seg.). «Alma e “o ser à alma” são idênticos; porém, homem e “ser ao homem” não o são» ( Met ., , 3, 1043 b 2-3). 5 Met ., , 6, 1031 b 32 - 1032 a 1. 6 Ibid ., 7, 1032 a 12-15.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA É evidente que as realizações artísticas requerem na sua origem uma «forma-idéia», uma «qüididade», uma «substância sem matéria». 1 «Assim, se a saúde é fruto da arte, a causa eficiente, o princípio motor do fato de estar bem, é a forma que está na mente [do médico]». 2 Ademais, é preciso compreender bem que somente o composto é engendrado. A forma não é gerada, nem a qüididade,3 pois ela é indivisível : assim, toda espécie de produção tem, «como os silogismos, por princípio a substância: a partir do “o que é” é que existem os silogismos, e que existem aqui as gerações». 4 3. Enfim, para precisar que a qüididade é verdadeiramente primeira no sentido absoluto, é preciso perguntar se as partes da definição, que correspondem às partes do definido, não são anteriores ao definido, à própria qüididade. Pois, parece que a parte seja anterior ao todo. 5 Esta seria, então, mais substância que o «todo», isto é, que a qüididade, exprimida pela definição. O Filósofo precisa que «as partes tomadas como matéria, e nas quais se resolve uma coisa como em sua matéria, são posteriores. Ao contrário, aquelas que são como partes da noção e da substância considerada como forma são anteriores...[pelo menos certas partes]»;6 já que «a alma dos animais (...) é a substância segundo a noção, e a forma, e o to ti én einai para tal corpo determinado (...), as partes da alma são anteriores ao animal». 7 A estas estas partes correspondem as partes da definição, anteriores à definição. Para especificar esta parte da definição anterior à definição, é preciso se perguntar em que consiste a unidade da definição e do definido. 8 A definição, com efeito, é uma noção una, a noção da substância; portanto, ela é a noção de um ser uno, uma vez que a substância significa um ser determinado. Ora, a definição não comporta como partes essenciais senão o gênero primeiro e a diferença última. Somente esta é o que é a realidade e sua definição. Logo, na medida em que se atinge a diferença da diferença, a última será a forma. Portanto, a definição é a noção que resulta da última das diferenças. Vemos bem a complexidade dessa análise a propósito do to ti én einai. Trata-se de precisar o que representa essa primazia da qüididade com relação ao ser — é a intenção profunda de Aristóteles, que não se deve nunca esquecer: ela comanda esses diferentes capítulos. Aristóteles quer especificar o que é a qüididade em relação à substância, em relação à realidade existente.
1 Cf. Ibid ., 1032 b 1-15. 2 Ibid ., 1032 b 22-23. 3 Cf. ibid ., 8, 1033 b 6; 1033 b 17; 15, 1039 b 23-24. 4 Ibid ., 9, 1034 a 30-32. 5 Cf. Met ., , 3, 1043 b 28 seg. 6 Met ., , 10, 1035 b 12- 14. 7 Ibid ., 1035 b 14-16. 8 Cf. Ibid ., 12, 1037 b 8 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Aristóteles começa por cercar o significado próprio da qüididade. Aqui é que captamos a originalidade de seu olhar filosófico sobre a substância, porém, de modo negativo: a qüididade não significa o ser-primeiro, mas a inteligibilidade de o-que-é. Isto nos mostra, a um só tempo, a penetração de nossa inteligência, que quer atingir a realidade tal como é e seu limite. Nossa inteligência não pode captar de modo exaustivo o-que-é como tal, do ponto de vista do ser. Ela apreende em primeiro lugar sua inteligibilidade essencial primeira. E, no entanto, ela é capaz de discernir que a realidade tal como é não pode se reduzir a esta inteligibilidade primeira: a inteligência sabe o que ela define e como ela define; ela sabe que o conhecimento filosófico não pode se reduzir à definição, pois a experiência de o-que-é e a apreensão de seus princípios próprios estão além da definição. Aristóteles mostra, então, que o ti esti, e, portanto, a qüididade, «são ditos de maneiras diferentes», da mesma forma que o-que-é. De novo, encontramos uma ordem analógica entre o ser e a qüididade, de tal sorte que o que é primeiro na ordem do ser o é também na ordem da inteligibilidade. Portanto, podemos dizer que a qüididade é primeiramente «da substância». Mas isto não quer dizer que a qüididade e a substância sejam idênticas: a qüididade, como o ser, é dita de diferentes maneiras, ao passo que a substância é o ser primeiro (to prôtôs on). Para as realidades primeiras, não-compostas, a substância e a qüididade são idênticas. É numa perspectiva de pesquisa ao nível da inteligibilidade ( logikôs) que Aristóteles tem razão em afirmá-lo: precisamente, não temos a experiência dessas realidades simples. A argumentação logikôs não é nem lógica, nem metafísica: ela está muito próxima de um raciocínio crítico e está a serviço de uma pesquisa filosófica. Da mesma forma, a pesquisa « physikôs» não é um raciocínio físico: Aristóteles permanece no nível de um olhar crítico sobre as realidades físicas. Estas manifestam que a forma não é a substância — a forma é primeira na ordem do devir, e não na ordem de o-que-é. Quanto à terceira parte da argumentação, que considera a definição e suas partes, ela é ainda um olhar crítico sobre a lógica; Aristóteles utiliza a lógica para mostrar que, se a substância fosse a forma, ela não poderia ser senão a diferença da diferença. Vê-se nestes capítulos a sutileza do olhar de Aristóteles... Ele coloca tudo em causa para mostrar a caráter particular da primazia da substância: essa primazia está no nível mesmo de o-que-é enquanto ser. O universal 1 «Para alguns, o universal é a causa por excelência e é princípio». 1 Aristóteles é categórico para rejeitar esta posição: «Parece impossível que seja substância qualquer uma 1
Met ., , 13, 1038 b1 - 1039 a 23.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA das coisas que são ditas universalmente». 2 Eis as diversas oposições que Aristóteles levanta entre substância e universal: 1. A substância de um indivíduo lhe é própria e não pertence a um outro; o universal é comum a vários. 2. A substância é dita daquilo que não é predicado de um sujeito; o universal é sempre predicado de um sujeito. 3. Pretender que o universal é um elemento da qüididade, portanto, uma parte da substância, é esquecer que a substância é fundamentalmente e em primeiro lugar determinada; se, na sua maneira de existir, ela é composta, então, ela implica necessariamente elementos substanciais, e não elementos puramente qualitativos. Senão, a qualidade seria antes da substância, o que é impossível. Portanto, «é manifesto que nenhuma das coisas tomadas universalmente é substância», 3 uma vez que o predicado comum, universal, significa uma qualidade ( toionde), e não uma realidade singular (tode ti), uma substância. O gênero Após ter mostrado como o universal não é substância, é fácil ver como o gênero não o pode ser. Ao mostrar que a Idéia não é uma substância, Aristóteles mostra que o gênero não o é. Com efeito, «as Idéias são vinculadas ao universal e ao gênero, pois é em virtude de uma mesma razão que elas parecem ser substâncias». 4 «Se o animal-em-si é uno e idêntico no cavalo e no homem, da mesma maneira, se tu és uno e idêntico em ti mesmo, como o que é uno poderá permanecer uno em seres separados, e por que, neste caso, este animal-em-si não será também separado de si mesmo?» 5 Já que as formas ideais pertencem a várias realidades, como o universal, não se pode identificá-las à substância. Sempre em razão do mesmo princípio: «Nada do que é comum aos seres é substância; com efeito, a substância não existe em ser algum senão em si mesma, e naquilo que a possui e de que ela é substância». 6 Sendo assim, devemos afirmar que nem o ser nem o uno são substâncias de o-que-é, uma vez que o ser e o uno são os primeiros universais. É fácil observar o caráter negativo dessas quatro pesquisas sucessivas daquilo que a substância é. Ela não é nem sujeito, nem qüididade, nem universal, nem gênero. Entretanto, ela tem uma relação fundamental com cada um destes primeiros na sua ordem determinada: o sujeito é primeiro na ordem física do devir, primeiro na ordem genética; a qüididade é 1 Ibid ., 1038 b 6-8 2 Ibid ., 1038 b 8-9. 3 Ibid., 1038 b 35. 4 Ibid ., , 1, 1042 a 15-16. 5 Ibid., , 14, 1039 a 33 - 1039 b 2. 6 Ibid ., 16, 1040 b 23-24.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES primeira para nós na ordem da inteligibilidade; o universal é primeiro na ordem do condicionamento de nosso conhecimento, que implica a abstração; o gênero é primeiro na ordem genética deste mesmo condicionamento. A substância tem uma relação com cada um destes primeiros, uma vez que ela própria é primeira na ordem de o-que-é enquanto é. O primeiro na ordem do devir é primeiro geneticamente; ele depende do primeiro na ordem de natureza, que é o primeiro na ordem do ser. O primeiro na ordem do ser fundamenta o primeiro na ordem da inteligibilidade, e fundamenta de modo último o primeiro conforme a ordem do condicionamento de nosso conhecimento. As negações sucessivas de Aristóteles são feitas para tirar todos os obstáculos que impediriam à nossa inteligência descobrir, segundo um «método» indutivo, o primeiro na ordem do ser. Decerto, não é necessário explicitar estas diversas negações para descobrir imediatamente a substância por modo indutivo. Elas não entram positivamente nessa démarche; mas elas purificam nossa inteligência, para permitir-lhe realizar esta démarche própria à descoberta da substância como causa segundo a forma de o-que-é. A substância, causa segundo a forma de o-que-é Após ter mostrado como não se pode deter-se nem no sujeito, nem na qüididade de modo absoluto — em razão mesma dessas duas propriedades da substância: ela é o que é determinado, ela é o que é separado — , Aristóteles, em um último esforço filosófico, empenha-se em ultrapassar estes dois aspectos verdadeiros, mas incompletos. Dada a importância desta pesquisa filosófica, não hesitamos em citar aqui integralmente o último capítulo do livro : É necessário dizer o que é a substância e que espécie de coisa é ela, apoiando-nos mais uma vez sobre um outro princípio, pois talvez a partir dessas considerações esclareceremos também o caso dessa substância que existe separada das substâncias sensíveis. A substância é princípio e causa: tal será nosso ponto de partida. Ora, procurar o «porquê» é sempre perguntar desta forma: «por que uma coisa pertence a uma outra?» Com efeito, procurar por que o homem músico é homem músico, decerto equivale a perguntar, como dissemos, por que o homem é músico, ou outra coisa. Ora, procurar por que ele mesmo é ele mesmo é nada procurar. Pois é preciso que o fato e que o ser da coisa já sejam conhecidos (por exemplo, que a lua sofre um eclipse); mas que ele mesmo seja ele mesmo é a única razão e a única causa [que se pode mencionar] a respeito de todas essas coisas: por que o homem é homem ou por que o músico é músico; a não ser que respondêssemos que cada coisa é inseparável de si mesma — é precisamente sua unidade; teríamos aí, no entanto, uma resposta que seria comum e concisa para todas [essas questões].
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Mas é possível indagar por que o homem é um animal tal como este. Nesse caso, é evidente que não perguntamos por que o que é um homem é um homem. O que queremos saber é por que uma determinada coisa pertence a uma certa outra. Que ela lhe pertença, é preciso que seja sempre evidente, pois, se não é o caso, não procuramos nada. Por exemplo: por que troveja? Porque um ruído é produzido nas nuvens, pois o que é assim procurado é por que tal coisa é atribuída a uma outra. Da mesma forma, por que tais coisas, a saber tijolos e pedras são uma casa? Portanto, é evidente que o que estamos buscando é a causa. Do ponto de vista da inteligibilidade (logikôs) é a qüididade; em certos casos é o «aquilo em vista de que»: assim provavelmente no tocante à casa ou a uma cama; em outros casos é o primeiro motor; pois este também é causa; mas enquanto esta causa não é buscada senão a propósito do fato de ser gerado ou de ser corrompido, a outra é procurada também a propósito do ser. O objeto da inquirição nos escapa sobretudo nas realidades que não são ditas relativamente a outras, por exemplo, quando indagamos o que é o homem: diz-se simplesmente, mas não se determina que ele é assim ou assim. Mas é preciso procurar decompondo; do contrário, algo se tornaria comum ao fato de buscar e não buscar nada. Já que é preciso que o ser exista e seja dado, evidentemente a pergunta é por que a matéria é tal; por exemplo, estes materiais são uma casa, por quê? Porque a esses materiais pertence a qüididade da casa. [Diremos, da mesma forma] que isso é um homem, ou melhor esse corpo possuindo tal forma [é um homem]. De tal sorte que o que procuramos é a causa da matéria, isto é, a forma-idéia (eidos), pela qual a coisa é tal; e isso é a substância. Evidentemente, pois, no tocante à realidades simples não é possível nenhuma busca ou nenhum ensino; mas um outro método de indagação se [impõe] para tais realidades. O que é composto de algo de modo que o todo é um, é semelhante não a uma justaposição mas à sílaba. Ora uma sílaba não é os seus elementos [letras componentes]: BA não é o idêntico a B e A, nem a carne é idêntica ao fogo e à terra, pois quando dissolvidos, os todos, isto é, a carne e a sílaba, já não existem mais, porém os elementos continuam a existir: o fogo e a terra. A sílaba , portanto, não é apenas os elementos, a vogal e a consoante, mas algo outro ainda. Mas não é necessário que este algo seja também ou um elemento ou um composto de elementos? Se é um elemento, o mesmo raciocínio se repetirá; pois, a carne será constituída por esse elemento com o fogo, a terra e outra coisa ainda, de sorte que iremos ao infinito. Se é um composto de elementos, é evidente [que não será composto] de um só [elemento] mas de vários, senão esse algo será ele mesmo; de tal sorte que novamente faremos a respeito dele o mesmo raciocínio do que a propósito da carne e da sílaba. No entanto, pareceria verdadeiramente que seja algo, não um elemento, e que, pelo menos, seja causa de que isto seja a carne e aquilo uma sílaba.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES E da mesma forma em outros casos. Ora, é a substância de cada um, pois é a primeira causa de seu ser. E já que certas coisas não são substâncias, todas as que são substâncias são constituídas segundo a natureza e por natureza, a própria natureza, que não é um elemento mas um princípio, pareceria ser a substância; um elemento é aquilo em que uma coisa se divide como matéria, por exemplo, para a sílaba: A e B. 1
Aqui, não se trata mais de analisar somente as realidades físicas e artísticas, mas de interrogar de maneira mais radical: por que isso é tal? e de examinar a resposta: a descoberta da causa. Toda a pesquisa filosófica da substância se situa, portanto, entre esses dois tipos de interrogação: uma está no nível pré-filosófico, das experiências do mundo físico e das categorias — ela nos permite descobrir a substância como ser-primeiro, sua existência; a outra nos revela o que ela é como causa segundo a forma, princípio de unidade de o-que-é. Neste último capítulo do livro Aristóteles expõe como a inteligência pode atingir os princípios e as causas, uma vez que a substância, como vimos desde o início, é princípio e causa, mas na ordem fundamental de o-que-é. 2 Quando se trata de uma realidade composta, sempre é a pesquisa da unidade desta realidade que nos permite descobrir esse princípio, essa fonte radical 3 — os exemplos que Aristóteles dá são muito nítidos. Na ordem de o-que-é, encontramos de novo a mesma preocupação, ou a mesma intenção da inteligência: ultrapassar a diversidade que se constata imediatamente e na qual aparece uma certa unidade, para descobrir a fonte dessa unidade. Esse princípio e essa causa segundo a forma da unidade de uma realidade existente em uma certa composição é a substância. É evidente que, nessa pesquisa, não se pode parar nem no sujeito, nem na qüididade. Nem um nem outra podem explicar a verdadeira unidade do que existe em uma certa composição física. O sujeito implica todos os elementos materiais, mas ele não explica a unidade mais profunda dessa realidade material. Quanto à qüididade, ela explica efetivamente a determinação essencial dessa realidade existente, mas não explica sua unidade real, que implica uma unidade individual. Se o sujeito é de fato substância, assim como a qüididade, eles são como que duas modalidades da substância: um na individualidade do tode ti; a outra significando propriamente o que a inteligência pode apreender dessa realidade. Portanto, é preciso, no nível de o-que-é enquanto ser, descobrir o que faz a unidade profunda do sujeito e da qüididade, além de suas modalidades próprias. Nisso Aristóteles ultrapassa a intuição de Platão e a concepção dos físicos.
1 2
Met ., , 17, 1041 a 6 - 1041 b 33. «O homem não é o animal e o bípede, mas é preciso que fora disso, se animal e bípede são tomados como matéria, exista algo que não seja nem um elemento nem um composto de elementos; esse algo é a substância, que omitimos quando falamos da matéria. Isso é a causa do ser e a substância...» ( Met ., , 3, 1043 b 10-14).. 3 Cf. ibid ., , 3, 1044 a 8; 2, 1043 a 2.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Para melhor compreendê-lo, lembremos o que Aristóteles diz nas Categorias. Não se trata mais, então, da procura de o-que-é enquanto ser: permanece-se em um estudo descritivo, pré-filosófico, portanto, que se limita a essas duas definições da substância: A substância no sentido mais fundamental , primeiro e principal do termo, é o que não é afirmado de um sujeito, nem em um sujeito (...), e se chama substâncias segundas as espécies às quais pertencem as substâncias primeiras.1
A substância segunda, portanto, é a qüididade. O Filósofo contenta-se, então, em precisar que a substância é, por um lado, o sujeito por excelência e, por outro lado, o atributo por excelência. Do ponto de vista descritivo, não se pode ir mais longe, uma vez que sujeito e atributo essencial são realmente os dois elementos primordiais. A substância, descrita em suas duas funções essenciais, constitui bem os dois elementos primordiais da lógica. Essas duas descrições da substância são, pois, o fundamento de toda a lógica de Aristóteles. Em filosofia primeira, o Filósofo não pode parar na única consideração dessas duas funções. Deve ultrapassá-las, para apreender seu princípio próprio. É por isto que ele considera sucessivamente os vínculos que existem entre a substância e o sujeito, em seguida entre a substância e a qüididade. E mostra, por um lado, que se a substância exerce a função de sujeito, sendo o princípio próprio de existência da realidade, porém, ela não pode identificar-se à esta função; e, por outro lado, que se a substância exerce a função de qüididade, sendo o princípio próprio de inteligibilidade da realidade, no entanto, ela não pode identificar-se à esta qüididade. A substância não pode ser definida nem como o sujeito radical (erro dos primeiros físicos), nem como a qüididade (erro de Platão e de seus discípulos). A substância, sendo o que é primeiro do ponto de vista de o-que-é enquanto ser, é certo a causa segundo a forma de o-que-é. Vemos o quanto, nessa pesquisa filosófica da substância, Aristóteles ultrapassa os pontos de vista meramente funcionais da substância, como sujeito e qüididade; criticando seus predecessores, ele os utiliza para penetrar até o mais íntimo da substância e apreendê-la na sua própria realidade de causa e de princípio de o-que-é. Então, ela é compreendida relativamente ao ser. Se o Filósofo tivesse identificado na filosofia primeira a substância ao sujeito, a substância segunda das Categorias já não teria sentido nenhum; da mesma maneira, se tivesse identificado na filosofia primeira a substância à qüididade, a substância primeira das Categorias não teria mais sentido algum. A lógica seria minada, quer na sua base própria, quer na sua formalidade própria. Essa visão filosófica profunda que considera a substância como a causa segundo a forma de o-que-é, como a determinação primeira do ser, pode
1
Op. cit ., 5, 2 a 11-15.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES explicar as propriedades diversas da substância e dar razão dessas duas funções tão diversas, e mesmo aparentemente opostas de sujeito e de atributo essencial. Aristóteles não trata na sua filosofia primeira das outras determinações de o-que-é (quantidade, qualidade, relação...). Somente as assinala, frisando que as categorias «segundas» não são modalidades do ser senão graças à sua relação à substância. No livro Aristóteles resume o que foi dito no livro e põe certas conclusões. Esse livro se apresenta como uma espécie de explicação filosófica das pesquisas do livro precedente, a respeito das substâncias sensíveis. Nenhum princípio novo é atingido. O Filósofo lembra, com efeito, que todos aceitam as substâncias sensíveis, corruptíveis; estas não são todas as realidades corruptíveis, mas somente as realidades naturais (não as realidades artísticas). Nesse caso, a substância é considerada seja como matéria, seja como forma e ato, seja como o composto de matéria e de forma. Se a substância é a causa segundo a forma de o-que-é, ela é seu princípio de unidade.
2. Descoberta do ser-em-ato (livre ) Temos, pois, tratado de o-que-é tomado no sentido primeiro, ao qual se referem todas as outras categorias de o-que-é, isto é, da substância. Com efeito, segundo o logos da substância é que todas as outras coisas são ditas seres: a quantidade, a qualidade e as outras realidades assim ditas. Todas implicarão a noção da substância, como mostramos nos tratados anteriores. Mas, já que o-que-é é dito, por um lado, daquilo que é a coisa, ou da qualidade, ou da quantidade, e, por outro lado daquilo que é segundo a potência e o ato e segundo a obra, daremos também precisões a respeito da potência e do ato.1
Que o ser seja dito em ato e em potência não precisa ser provado nem manifestado, dado o que foi dito anteriormente nos livros e (a forma-substância é ato relativamente à matéria, que é potência), dado também a análise filosófica do movimento (ato daquilo que está em potência), assim como os papéis respectivos reconhecidos ao sujeito e aos atributos. Mas certos filósofos, os Megáricos, negam a realidade própria da potência e não a admitem senão na realidade do ato:
1 Met ., , 1, 1045 b 27-35.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Há filósofos, como os Megáricos, que pretendem haver potência somente quando se age (energé), e que, se não se age, não há potência. Por exemplo, aquele que não constrói não pode construir, mas aquele que constrói tem a potência disto.1
Aristóteles mostra as conseqüências absurdas de tal posição. 2 Negar a realidade da potência conduz necessariamente a tornar impossível o «devir» e a rejeitar a arte — que é uma certa potência. É também rejeitar as qualidades sensíveis. Desta forma, reencontramos a posição de Protágoras. Portanto, se não se pode admitir essas conseqüências, é evidente que a potência e o ato são diferentes. Ora, o raciocínio desses filósofos identifica a potência e o ato; eis a razão pela qual o que eles procuram destruir não é pouca coisa. Acontece, pois, que uma coisa tenha a potência de ser e não seja, ou que ela tenha a potência de não ser, porém seja.3
Reconhecendo a distinção real entre o ser em ato e ser em potência, no sentido em que uma realidade pode ter tal potência e não ser em ato, e ter a potência de não ser e ser, ainda é preciso especificar a natureza destas duas maneiras de existir: ser em potência e ser em ato. Ainda aqui constatamos esses dois aspectos diferentes do olhar filosófico de Aristóteles: pode-se descrever as duas modalidades, as duas maneiras diferentes de existir — existir em potência e existir em ato; isso é diretamente experimentável. Mas é preciso, a partir daí, descobrir por indução o ser-em-ato distinto do ser-em-potência, como princípio próprio de o-que-é: somente aí é que estamos na presença de um pensamento propriamente filosófico. Potência e possível Aristóteles começa essa pesquisa filosófica considerando a potência no sentido primeiro e principal (malista kyriôs),4 isto é, a potência quanto ao movimento, depois os diversos tipos de potência. Esse estudo é necessário para precisar, em seguida, o que é o possível . As potências «são certos princípios, e são ditas relativamente à uma única potência primeira, que é princípio de mudança em um outro ou enquanto outro». 5 A potência (dynamis), pois, é em primeiro lugar um princípio de mudança em um outro ser, ou no mesmo enquanto outro. 6 Trata-se do princípio de eficiência do agente como tal, daquele que 1 Ibid., 3, 1046 b 29-32. 2 Ibid., 1046 a 33 seg. 3 Ibid., 1047 a 17-22. 4 Ibid., 1, 1045 b 36. 5 Ibid., 1046 a 9-11. 6 «O que é potente é o que
pode algo a um momento dado de uma certa forma» ( ibid ., 5, 1048 a 1). Aristóteles afirma ainda que a potência é uma potência de produzir: «[Um ser] possui a potência da maneira como existe a
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES pode agir sobre um outro e modificá-lo. Para nós, é o mais fácil captar este tipo de potência, pois é uma potência eficaz: a arte de edificar, por exemplo. Este tipo de potência é ou racional (a arte), ou irracional (a qualidade física, como o calor).1 As potências que implicam a razão (meta logou) são todas potências dos contrários; quanto às potências que não a implicam ( alogoi), uma potência única é potência de um só efeito. Por exemplo, o calor é unicamente potência do fato de aquecer, ao passo que a arte medicinal é potência da doença e da saúde. 2 O próprio das potências que implicam a razão é considerar os contrários, mas evidentemente um e outro destes contrários são olhados de maneiras diversas. A arte medicinal olha a saúde e a doença, e é o desejo e a escolha racional que determinam qual desses contrários será produzido. 3 As potências «sem a razão» não são ordenadas senão para um único efeito e, por isto, se exercem desde que o paciente está em contato com o agente. Correspondendo a esse tipo de potência eficaz, há a potência de padecer , que é de certa forma derivada da primeira: «Há a potência de padecer, que é no próprio paciente princípio de mudança, sofrida da parte de um outro ou enquanto outro». 4 Essa potência de padecer afeta a realidade capaz de ser mudada; ela a torna capaz de sofrer sob a ação de uma outra realidade. A potência de padecer, portanto, é toda relativa à potência de fazer. Pode-se igualmente considerar a potência como um certo estado que torna tal realidade incapaz de ser degradada, incapaz de ser corrompida: «Temos o estado de impassibilidade (hexis apatheias) [daquele que não é suscetível a ser modificado] no sentido do pior ou da corrupção, por um outro ou [por si próprio] enquanto outro por um princípio de mudança». 5 Essa potência, pois, implica uma certa virtude suficiente para resistir a toda degenerescência. Precisamos ainda que a potência pode ser considerada exclusivamente na sua ordem ao exercício ou como a potência de fazer bem, de padecer bem (o que implica uma certa ordem de finalidade).6 Enfim, há as potências inatas e aquelas que são adquiridas por um certo hábito (virtudes), ou pelo ensino (ciências, artes).
potência de produzir (dynamis tou poiein)». Cf. , 12, 1019 a 15-20; , 9 1066 a 30 seg; Do céu, I, 11, 281 a 7 seg. 1 Met ., , 2, 1046 a 36 seg. 2 Ibid., 1046 b 4-7. 3 «As potências que implicam a razão são produtoras dos contrários; elas prod uziriam, portanto, os contrários ao mesmo tempo. Ora, isso é impossível. Logo, é necessário que haja algo outro que predomine; eu digo que é o desejo ou a escolha deliberada» ( ibid ., 5, 1048 a 9-11). Ibid ., 1046 a 11-13. 4 Ibid ., 1046 a 11-13. Cf. , 12, 1019 a 21-23. 5 Ibid ., 1046 a 13-15. Cf. , 12, 1019 a 26-32. 6 Cf. ibid ., 1046 a 16-19. Cf. , 12, 1019 a 23-26.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Todas essas potências diversas têm algo em comum, todas manifestam uma certa modalidade do real: o-que-é enquanto podendo agir, podendo padecer, podendo resistir, podendo se exercer, podendo atingir seu fim... Sempre uma certa potência de o-que-é, então, é exprimida na ordem de suas operações, de seu movimento. Esta potência considerada em si mesma é um certo ser «possível». Da consideração da potência física, o Filósofo passa àquela do possível: Uma coisa é possível se, quando ela passa ao ato do qual ela é dita ter a potência, não resulta nenhuma impossibilidade. Por exemplo, se é possível para alguém estar sentado, e se lhe ocorre estar sentado, eu digo a respeito desta pessoa que nada é impossível, se ela está sentada.1
E também: O possível é enquanto o ato segue. 2
Assim, «supor a existência atual (...) de um ser que não existe, mas que é possível, não engendra nenhuma impossibilidade». 3 O possível se define, portanto, em função do ato e conduz imediatamente ao estudo do ato. Com isso, Aristóteles quer mostrar a diferença entre o possível, que permanece na ordem da inteligibilidade, e a verdade, que implica uma referência a o-que-é. O que é possível não é verdadeiro, mas pode existir. A capacidade de existir não implica a verdade. Poderíamos perguntar por que Aristóteles começa este estudo pela potência. Não é para sublinhar a confusão que Platão faz entre a ordem da eficiência e o-que-é? Com efeito, para Platão a dynamis é a realidade suprema — Plotino o frisa nitidamente. Aristóteles, para descobrir o que é o ato como fim de o-que-é, como o além do qual não se pode ir, deve, portanto, começar mostrando que, se a dynamis é primeira na ordem da eficiência, ela não o é na ordem do ser. Esse proceder é análogo ao adotado na descoberta da substância, ao mostrar primeiro, negativamente, que a substância não é o sujeito nem a qüididade... Aqui, Aristóteles mostra que o fim do ser não é a potência, apesar da potência ser princípio da realização, do movimento. A potência, não mais considerada do ponto de vista do fazer ou da ação, mas do ponto de vista do ser, nos permite descobrir o que é o possível. Com efeito, a potência permanece na espera de ser atuada pelo exercício, pela realização. O movimento é o ato daquilo que está em potência e nos desvela que toda potência contém um possível. O ser-em-ato 1 Met ., , 3, 1047 a 24-28. 2 Ibid ., 4, 1047 b 3. Cf. Do céu, I, 11, 281 a 1 seg. 3 Met ., , 4, 1047 b 9-11.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
«Após ter tratado da potência segundo o movimento, determinaremos a propósito do ato (energeia) o que é e qual é (ti esti kai poion ti).»1 «O nome de ato (energeia), que pomos sempre com o de ato (entelekeia), foi estendido dos movimentos, de onde principalmente ele vem, às outras realidades. Com efeito, bem parece que o ato, antes de mais nada, é o movimento». 2 Mas o nome da ato recebeu um significado mais profundo: O ato é o fato para a realidade de ser, mas não desta maneira que chamamos em potência.3
para manifestar essa maneira especial de ser em ato, o Filósofo utiliza um exemplo na ordem das realidades artísticas: Hermes está em potência na madeira, porque desta madeira se pode formar Hermes. Mas o ato é dito ainda de outro modo. O sábio que tem a capacidade de contemplar, se ele não contempla em ato, permanece em potência. Se exerce essa capacidade, ele é sábio em ato. Portanto, da mesma forma que há uma dupla maneira de ser sábio em potência (ainda não ter adquirido o habitus de ciência, ter o habitus de ciência e não exercitá-lo), da mesma forma, há uma dupla maneira de estar em ato: a ato que provém do fato de possuir tal qualidade, o ato que é o próprio exercício da capacidade. 4 Eis a primeira aproximação que nos permite captar o ato como o oposto do ser em potência, como o que determina, termina, completa o que está em potência. Então, compreendemos as duas modalidades de o-que-é : o que está em potência e o que está em ato. Ainda estamos em um nível descritivo. Para compreender o que é o ato, considerado em si mesmo independentemente de sua oposição à potência, o problema é mais difícil, Aristóteles o sabe perfeitamente; assim ele começa por lembrar que «não se deve procurar a definição de tudo, mas apreender o
1 Met ., , 6, 1048 a 25-27. 2 Ibid ., 3, 1047 a 30-32. «Com
efeito, a obra é o fim, e o ato é a obra. Eis por que também a palavra ato (energeia) deriva de obra (ergon) e tende a identificar-se com o ato ( entelekeia)» (ibid ., 8, 1050 a 21-23). Cf. Da alma, II, 1, 412 a 27-28. Se quiséssemos distinguir essas duas palavras ( energeia e entelekeia) que expressam o ato, poderíamos dizer que a segunda significa o ato-atividade, a operação, e que a primeira significa o ato-fim, o ato no que ele tem de último do ponto de vista do ser. Da mesma forma que a palavra to ti én einai foi forjada por Aristóteles para distinguir a inteligibilidade de o-que-é do que a realidade existente é no seu ser, ele inventa o termo entelekeia (en-telos-ekeia, «l'ayance dans la fin») para mostrar a diferença que há entre o exercício de o-que-é e seu ato de ser, seu fim próprio. A distinção entre o to ti én einai e a ousia é muito mais nítida que a da entelekeia e da energeia: na ordem da finalidade de o-que-é, o bem desempenha um papel primordial para nós; e é amando o bem que o conhecemos — não se pode separar amor e conhecimento do bem. Compreendemos bem aqui a diferença que existe entre a ordem da causa formal e a da causa final. É o gênio de Aristóteles ir até o fim da precisão, mas respeitando o realismo de o-que-é e do bem. Para melhor apreender o que é primeiro na ordem do ser, Aristóteles «tematiza», formaliza a inteligibilidade pelo to ti én einai; e para captar o que é último na ordem do ser, seu fim próprio, o ato, ele «tematiza» o exercício pela entelekeia. 3 Met ., , 6, 1048 a 31-32: Esti dé energeia to huparkein to pragma mé outôs hôsper legomen dynamei . 4 Cf. ibid ., 1048 a 34-35.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA análogo».1 É «pela indução (té epagôgé), a partir de experiências singulares», e graças à interrogação, que se capta o que é o ato. Aristóteles precisa mesmo que é necessário apreendê-lo em um olhar analógico e sintético (tô analogon synoran). Não podemos definir o ato; e a indução que nos permite descobri-lo é muito particular e última. Ela é analógica e sintética, porque ela nos faz alcançar um princípio-fim, cuja inteligibilidade é extrema para nós e cujo irradiar atinge tudo o que é. O ato é por si mesmo algo último, que escapa, por essa razão, à nossa maneira de definir. O ato, para ser captado em toda sua pureza, deve ser atingido no que ele é como ato. De outra forma, corremos o risco de sempre reduzi-lo a uma determinação formal ou a um exercício e, por isso, não conhecer mais o que ele é em si mesmo, em sua originalidade. O ato é: como aquele que edifica para com aquele que tem a faculdade de edificar, aquele que está acordado para com aquele que está dormindo, aquele que vê para com o que tem os olhos fechados, mas que possui a vista, o que está separado da matéria para com a matéria, o que é elaborado para com o que não o é.2
Um desses opostos está em ato, o outro em potência. É por aquilo que está em ato que apreendemos o que está em potência. O que está em potência se refere ao que está em ato, como um estado de espera e de imperfeição a um estado perfeito e completo. Evidentemente, essas maneiras de estar ato são muito diferentes, porém elas têm algo de comum: ser como um completar, um termo, ao passo que o estado oposto, o de estar em potência aparece como um estado inferior, indeterminado. Aristóteles parece reduzir esta diversidade das realidades em ato a duas modalidades principais: o exercício (o movimento relativamente à potência, que completa essa potência de uma maneira que permanece acidental), e a substância relativamente à matéria (a alma relativamente ao corpo, que o determina segundo a ordem substancial). 3 Graças à essa indução, Aristóteles pode ultrapassar as diversas modalidades do que está em ato e do que está em potência, para captar o ato como tal, ao nível mesmo do ser. Decerto, gostaríamos que Aristóteles explicitasse mais. Como sempre nele, ela permanece extremamente breve: a indução é uma subida vertical, porque passamos do visível ao
1 Met ., , 6, 1048 a 36-37. 2 Ibid ., 1048 a 37 - 1048 b 4. 3 «Toda coisa não é dita da mesma
maneira em ato, mas de modo analógico: como esta coisa está naquela ( en) ou relativamente àquela ( pros), assim essa está naquela outra ou relativamente àquela. Algumas, com efeito, são como o movimento relativamente à potência , outras como a substância relativamente à matéria» ( ibid ., 1048 b 6-9). «É, pois, evidente que a substância e a forma ( to eidos) são ato» (ibid ., 8, 1050 b 2).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES invisível, da experiência à apreensão analógica do princípio. E aqui, trata-se de captar o princípio último: a inteligência atinge o que é último, em uma apreensão quase imediata. 1 Tentemos explicitar essa indução; todas as diversas experiências que Aristóteles cita têm algo de comum: a ordem do que pode construir ao que constrói, do que dorme ao que está acordado..., do que está em potência ao que está em ato. Esta ordem existe em diversos níveis: Na operação voluntária, na operação vital, na forma e na matéria. Esse «algo de comum» obriga, portanto, o Filósofo a ir até o-que-é como tal, o que permite à inteligência tocar, atingir essa divisão no centro mesmo de o-que-é : o ser-em-ato e o ser-em-potência. A inteligência atinge, então, o princípio-fim último de o-que-é enquanto ser. Para mostrar bem que essa distinção entre o que está em ato e o que está em potência se situa ao nível mesmo do ser, Aristóteles mostra, em seguida, que a encontramos em toda a parte onde podemos constatar realidades existentes em ato, mas que ela se realiza de modo totalmente outro para as realidades que só existem na nossa inteligência, por exemplo o vácuo e o infinito: O infinito, o vácuo e as outras realidades semelhantes são ditas em potência e em ato de uma maneira outra que «aquele que vê», «aquele que anda», «o que é visto». (...) O infinito não está em potência de tal sorte que estará em ato de modo separado, mas somente pelo conhecimento.2
Em seguida, Aristóteles constata que o movimento físico como tal não é o ato. Somente a operação vital imanente, que possui em si mesma seu próprio fim, nos coloca em presença do ato: Quanto às ações, umas devem ser chamadas «movimentos», outras «atos». Todo movimento, com efeito, é inacabado. O emagrecimento, o estudo, a marcha, a construção: estas ações são movimentos e são inacabadas. Pois não é ao mesmo tempo que se caminha e que se caminhou, nem que se constrói e que se construiu. Semelhantemente, o que se torna não se tornou simultaneamente, e o que move não moveu ao mesmo tempo; mas o que move difere do que moveu. Ao contrário, o mesmo ser viu e vê simultaneamente, pensa e pensou. Portanto, é uma tal ação que eu chamo de «ato»; a outra é um movimento.3
1 Quando a inteligência atinge a existência de um Ser primeiro que as tradições religiosas chamam de Deus, não
se trata mais da apreensão de um princípio, mas da afirmação de uma realidade que se impõe a nós e que não apreendemos: nós a afirmamos na sua existência própria, o que já não exige mais uma indução, mas uma demonstração a partir dos efeitos. 2 Met ., , 6, 1048 b 9-15. 3 Ibid ., 1048 b 28-35.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA Compreendemos essa afirmação de Aristóteles, comparando-a com o que diz do movimento na Física: «O movimento é o ato do que está em potência como tal». 1 Em um olhar de filosofia primeira , o ato, sendo fim de o-que-é como tal, se separa do movimento. Somente a operação vital imanente integra o ser-em-ato. Em filosofia da natureza, em que a natureza-forma e a natureza-matéria são sempre unidas, pode-se dizer que o movimento é o ato do que está em potência. Aristóteles, pois, separa-se de Platão e dos físicos, ao distinguir cuidadosamente o serem-ato do ser inteligível e do movimento. Se o ato fosse apreendido no nível do exercício, o Filósofo não teria condição de distingui-los da mesma forma. Assim, ele mostra que nem o inteligível nem o mundo físico podem atingir o que há de último na ordem do ser: o mundo físico existe, mas sempre de maneira imperfeita, sem fim. Essa distinção do ser-em-ato e do ser-em-potência aparece, portanto, como uma distinção mais íntima e mais profunda de oque-é do que a da substância e do acidente, já que o ato é presente às diversas determinações particulares de o-que-é. Uma vez precisado o que é o ato, o Filósofo pode ter um conhecimento muito mais preciso da potência, o que lhe permite distinguir uma certa ordem entre as potências, potência próxima ou «disposição», potência remota. Aristóteles especifica que se trata de determinar «quando ( pote) cada um está em potência e quando ele não está», 2 para sublinhar que o serem-potência não é cognoscível senão com relação ao ser-em-ato, e que, no nosso mundo físico, ele implica sempre um vínculo com o tempo. Nas operações naturais vitais, como nas produções artísticas, tal distinção existe, porém, se realiza de modo muito diferente. Nas produções artísticas, o sujeito-paciente é meramente paciente, o agente é sempre exterior; nas operações vitais, o sujeito-paciente é paciente, mas também ativo, no sentido em que ele se atua por si mesmo. A potência derradeira nas realidades físicas é a matéria primeira, pura potência; a potência derradeira nas realidades artísticas é aquilo a partir do qual tal obra é feita.3 A passagem da potência ao ato na produção artística se define assim: a vontade do artista se realizando sem encontrar nenhum obstáculo exterior nem oposição alguma no paciente. O paciente está assim disposto a receber a ação do agente. Quanto às realidades naturais, que têm em si mesmas o princípio de sua atualização, elas estão em potência a outras coisas por si próprias, se nada de exterior se opõe a isso. 4 Anterioridade do ato
1 Op. cit ., III, 1, 201 a 9 seg. Ver acima, p. 117. 2 Met ., , 7 1048 b 37. 3 Cf. ibid ., 1049 a 18 - 1049 b 2. 4 Cf., 1049 a 5-14.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Mesmo se tudo o que está em potência é relativo ao que está em ato, porém, não se pode concluir, pelo fato de certas coisas existirem em potência, que elas devam necessariamente existir em ato. O infinito, o vácuo existem em potência, o que não implica que devam existir em ato. Pois a relação entre o que está em ato e o que está em potência não é uma relação recíproca. O ato, com efeito, é anterior à potência, de uma anterioridade «segundo a noção (logô) e segundo a substância ( té ousia); segundo o tempo (khronô), o ato é em um sentido anterior e em um outro sentido não o é». 1 A anterioridade segundo a noção do ato sobre a potência é evidente, uma vez que o conhecimento do ato é primeiro. Ao contrário, o conhecimento da potência é relativo ao do ato. A potência é o que pode agir, o que é ordenado ao ato. 2 Quanto à anterioridade segundo o tempo, ela é complexa. A semente, que é homem somente em potência, é anterior segundo o tempo a tal homem determinado, em ato. Mas à própria semente é anterior, segundo o tempo, um outro homem em ato, de onde ela procede. Na «ordem do tempo, um ato precede sempre um outro ato, até que se remonte ao ato do primeiro motor eterno».3 Portanto, é preciso um motor primeiro em ato. Se, para tal indivíduo em ato implicando um devir, há uma certa anterioridade da potência, todavia, considerado em seu caráter específico, o ser em potência nunca é primeiro. A anterioridade segundo a substância do ato sobre a potência pode se mostrar de diversas maneiras: 1. «O que é posterior na ordem da geração é anterior na ordem da forma e da substância»; o homem perfeito vem depois do homem-criança e depois da semente, mas antes da semente há o homem.4 2. «Tudo o que se torna tende para o princípio e o fim, porque a causa final é princípio, e o devir é em vista do fim. Ora, o fim é o ato, e é em vista ( karin) deste que a potência é tomada».5 Não é para ter a faculdade de ver que os animais vêem, mais eles têm essa faculdade para ver. 3. «A matéria está em potência porque ela é ordenada à forma; quando ela está em ato, então ela própria está na forma». 6 A forma é evidentemente anterior à matéria, de uma anterioridade segundo a substância. Enfim, precisa Aristóteles, o ato é anterior em um sentido mais fundamental ainda (kyriôterôs). Com efeito, «as realidades eternas são anteriores segundo a substância às
1 Ibid ., 8, 1049 b 11-12. 2 Cf. ibid ., 1049 b 12-17. 3 Ibid ., 1050 b 5-6. 4 Cf. ibid ., 1050 a 4-7. 5 Ibid ., 1050 a 7-10. 6 Ibid ., 1050 a 15-16.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA realidades corruptíveis. Ora, nada do que é eterno está em potência». 1 A razão (logos) disso é que toda potência é, ao mesmo tempo, potência de contradição. Pois o que não é possível em um ser jamais poderá lhe pertencer e todo possível pode não se atualizar. Portanto, o possível pode ser e não ser. É o mesmo possível que é simultaneamente possível de ser e de não-ser. Ora, o possível a respeito do não-ser pode não ser, e o que pode não ser é corruptível, seja absolutamente [segundo a substância], seja no sentido preciso em que é dito que ele pode não ser, isto é, segundo o lugar, a quantidade ou a qualidade.2
Portanto, o que é incorruptível segundo a substância não está em potência segundo a substância. Tudo nele existe em ato. Aristóteles acrescenta que se pode argumentar da mesma forma com relação às realidades que existem necessariamente. Esses seres necessários e eternos são primeiros segundo a substância: se eles não fossem, nada existiria. A anterioridade absoluta do ato sobre a potência permite, pois, ao Filósofo mostrar como, necessariamente, é preciso um primeiro motor em ato, como as substâncias corruptíveis pressupõem as incorruptíveis, como todo ser em potência exige um ser em ato.
Anterioridade do bem em ato A anterioridade do ato sobre a potência permite compreender, na ordem do bem, como o bem em ato é melhor e mais estimável do que o bem em potência. 3 Com efeito, o possível considera os contrários. É a mesma potência que faz o homem poder estar bem e poder estar doente. O bem em ato é, portanto, melhor que o bem em potência, pois esse atualiza necessariamente um dos contrários, aquele que convém ao sujeito e se opõe ao outro; ao passo que o bem em potência implica os dois contrários. O inverso ocorre para o mal: o mal em ato é pior que o mal em potência. Ademais, pela sua natureza, o mal é posterior à potência. Logo, ele não existe nas realidades primordiais e eternas. Aristóteles não desenvolve aqui essa prioridade do bem em ato sobre o bem em potência. É na filosofia humana e de modo todo especial na sua filosofia do amor de amizade que essa prioridade do bem em ato é plenamente manifesta. É interessante notar que, como o ato 1 Met ., , 8, 1050 b 7-8. 2 Ibid ., 1050 b 8-15. 3 Ibid ., 9, 1051 a 4.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES implica a perfeição do fim, é em relação ao bem em ato que essa perfeição do fim é mais manifesta. O bem em ato é fim e o é de maneira última, para nós. 1
Busca de o-que-é como verdadeiro Já que o-que-é e o que não é, por um lado, são ditos segundo os tipos das categorias, por outro lado, segundo a potência ou o ato destas, ou segundo seus contrários, enfim por outro lado daquilo que é verdadeiro ou falso no sentido mais próprio e principal, (...) quando, portanto, o que é dito como verdadeiro ou falso existe ou não existe?2
É surpreendente constatar que Aristóteles começa pelo ser e o não-ser quando se trata de precisar o-que-é como verdadeiro e como falso. Por quê? Precisamente não é porque o verdadeiro, tal como Aristóteles no-lo expõe aqui, é ligado ao nosso conhecimento intelectual? Este implica a afirmação e a negação. Com efeito, «atinge a verdade aquele que pensa que o que é separado é separado e que o que é unido é unido; engana-se aquele que pensa contrariamente [ao que são] as realidades». 3 Nossos juízos são verdadeiros enquanto o que eles afirmam é conforme ao que é na realidade. É de fato esta realidade que os mensura: «Ciência e sensação (...) são antes mensuradas do que medidas». 4 Eis por que, a respeito das realidades contingentes, o mesmo juízo se torna verdadeiro ou falso, conforme a permanência ou o desaparecimento das realidades afirmadas existentes. Mas com relação às realidades que estão além da corrupção, a mesma opinião é sempre ou verdadeira, ou falsa: quando se trata das realidades simples, não compostas, «o verdadeiro é o fato de compreender 5 e de enunciar o que compreendemos (...), e o fato de ignorar é não compreender; 6 mas não podemos nos enganar a propósito delas. Para tudo o que é uma substância e existe em ato, não pode haver erro, há conhecimento ou ignorância. O verdadeiro corresponde, portanto, na ordem do conhecimento intelectual, ao ato na ordem de o-que-é enquanto ser. E como o conhecimento é um certo ato imanente, o verdadeiro que qualifica este ato imanente expressa sua perfeição; somente o conhecimento verdadeiro é perfeito e finaliza aquele que conhece. Logo, o verdadeiro expressa bem o que há de mais ato no ser, pois o ato perfeito é o bem em ato, como vimos precedentemente, e o bem em ato se realiza da maneira mais nobre no conhecimento verdadeiro: a contemplação. 1 Nesse capítulo 9, Aristóteles assinala também que, na ordem matemática, encontra-se ainda essa prioridade do
ato sobre a potência. As construções geométricas são descobertas quando alguém as faz passar ao ato. Elas são conhecidas ao serem feitas (cf. loc. cit., 1051 a 21 seg.). 2 Ibid ., 10, 1051 a 34 - 1051 b 2. 3 Ibid ., 1051 b 3-5. 4 Met ., , 1, 1053 a 31-33. 5 Literalmente «tocar», thigein. 6 Met ., , 10, 1051 b 23-25.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA
Evidentemente, Aristóteles é extremamente sóbrio nos dois últimos capítulos do livro . Mas se refletimos a toda a argumentação muito sútil deste livro, parece que possamos explicitar o pensamento de Aristóteles da maneira seguinte. Partindo da potência, princípio de mudança em uma outra realidade, 1 ao ponto de partida, sua argumentação considera, pois, a causa eficiente. Essa potência eficaz é de fato a origem própria das diversas modificações que uma realidade física sofre. Por essa análise da potência de fazer, descobrimos a imperfeição da causa eficiente extrínseca na ordem física. Essa potência eficaz, com efeito, é relativa à potência passiva do paciente, ela implica sua cooperação. A análise das potências de fazer e de padecer conduz o Filósofo a estudar seu fundamento metafísico: o possível e o ato. Nisso situa-se como que além da consideração do movimento físico. Portanto, pelo ato, pode-se atingir algo de totalmente próprio a o-que-é enquanto ser. Capta-se o ser enquanto é autônomo, separado dos outros, uma vez que o ato separa; capta-se o ser enquanto é completo, enquanto atinge seu fim próprio, já que o ato é fim. Logo, por essa análise, passamos da consideração da causa eficiente das realidades físicas à consideração da causa final de o-que-é enquanto ser. Da mesma maneira que a substância é causa segundo a forma de o-que-é, e o sujeito causa material do-que-é-movido, da mesma maneira o ato é causa final de o-que-é, e a potência eficaz é causa eficiente do que advém, do que tende para seu fim. Para melhor compreender como o ato é fim, é preciso considerar que o ato é o que é último. O imperfeito implica sempre uma certa potencialidade. Ora, o último é o que há de mais perfeito em cada gênero. O último é o que não é suscetível a ser ultrapassado. Por esta razão, o ato diz o fim de o-que-é. É evidentemente o bem em ato que melhor explicita para nós essa finalidade do ato, o bem em ato sendo fim último para nós. Todo fim é o que está em ato, e para nós é o bem em ato. Podemos captar o bem em ato pela operação voluntária; esta, no seu elemento fundamental, não é outra senão o amor, e no seu desabrochar perfeito não é outra senão o amor de amizade. De resto, o amor de amizade é um certo bem em ato: o bem vivido em ato. Mas o bem em ato absoluto não existe para o homem senão na contemplação: o conhecimento verdadeiro do que é Ato puro. Eis como o Filósofo precisa as três dimensões da causa final de o-que-é enquanto ser: o ato, o bem em ato, o verdadeiro. Pelo ato ele desvela sua transcendência; pelo bem em ato ele desvela sua imanência; pelo verdadeiro ele descela sua nobreza.
1
Aristóteles usa aqui, lembremo-nos, da análise da atividade artística, do trabalho humano ordenado à realização de uma obra.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES
3. Propriedade de o-que-é enquanto ser: o uno É sabido que esse problema do uno e do múltiplo é um dos problemas mais presentes na filosofia; pode-se mesmo dizer historicamente que ele ocupa um lugar primeiro, e que na maioria das filosofias com tendências neoplatônicas e idealistas, ele é o problema crucial. Por um lado, Aristóteles encontra-se na presença, dos Pitagóricos, de Parmênides e de Platão, que fazem do uno uma substância e até a substância primordial — o uno-em-si é a realidade última, o uno é o princípio primeiro e fundamental de tudo o que é — , por outro lado, dos físicos que não consideram o uno senão como um atributo e como o contrário do múltiplo. No livro I, o Filósofo trata explicitamente do problema do uno e do múltiplo, por ele mesmo e na sua relação íntima com o-que-é enquanto ser. A análise filosófica do uno mostra como, para Aristóteles, o uno, embora se identifique com o-que-é, distingue-se dele segundo sua noção própria: o uno é como a propriedade do ser. Podemos como isso compreender por que o uno é para nós algo mais conhecido que o ser, se bem que, segundo a ordem de natureza, o ser seja primeiro. Se não distinguimos com suficiente nitidez esses dois aspectos e se confundimos a ordem da realidade e a ordem de nossos conhecimentos (o que Platão, Plotino e muitos filósofos idealistas fizeram na esteira deles), seremos sempre tentados em considerar o uno como o que há de primeiro e de último. Por outro lado, a análise filosófica do uno e do múltiplo mostra a prioridade absoluta do uno sobre o múltiplo, isto é, a prioridade do indivisível em ato sobre o divisível em potência. Essa prioridade é manifesta pelo papel de medida que o uno exerce com relação ao múltiplo. Essa análise permite ao Filósofo ultrapassar as concepções das antigos físicos em demasia atraídos pela diversidade e a contrariedade das realidades físicas. Sem rejeitar o realismo dos físicos, Aristóteles conserva a intuição genial de um Parmênides e de um Platão: prioridade absoluta do uno sobre o múltiplo. Ele mantém que a contrariedade não pode ser primeira: o uno e o múltiplo não podem ser senão propriedades de o-que-é enquanto é. Diversos modos do uno Aristóteles começa por expor as diversas maneiras como o uno se encontra realizado e como o concebemos: «O uno é dito de múltiplas maneiras (...), mas esses sentidos múltiplos se reduzem a quatro modos do que é dito uno em primeiro lugar e por si, e não por acidente». 1 Primeiramente, para nós, o uno é o contínuo ( synekés), que se opõe ao descontínuo. O contínuo é o uno na quantidade: «O contínuo existe quando o limite de cada uma de duas realidades, [limite] pelo qual elas se t ocam, se torna um e “o mesmo” e que, como o indica o 1 Met ., , 1, 1052 a 15-19.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA nome, ele mantém juntas [essas realidades]». 1 De resto, há graus de unidade entre as realidades contínuas. Eis o que permite a Aristóteles ordená-los: «Entre os seres contínuos, o que tem mais unidade e é anterior, é aquele cujo movimento é mais indivisível e mais simples». 2 Ora, o movimento mais simples é o movimento circular, que é o movimento próprio do «todo» como tal. Eis por que o «todo» (to holon) aparece no meio dos seres contínuos como o que é mais uno. Mas o todo não é somente um ser contínuo. Ele possui, com efeito, um novo tipo de unidade, que lhe vem de sua forma. Isso é manifesto sobretudo quanto ao todo natural: ele possui uma unidade muito mais íntima, que vem da sua natureza-forma, princípio e causa de sua própria continuidade. Em outras palavras, o fato de ser contínuo para um ser natural não é senão o efeito de uma unidade muito mais radical e primordial. 3 Para nós, portanto, o «todo» é a unidade intermediária entre a unidade quantitativa e a unidade formal. De maneira muito explícita, Aristóteles mostra nesta unidade formal o terceiro tipo de unidade: «Aquilo cuja noção é una», 4 a unidade das coisas para as quais há um conhecimento indivisível (adiairetos). Ora, de fato, há conhecimento indivisível, quer do que é indivisível numericamente, o indivíduo, o singular, quer do que é indivisível especificamente,5 a qüididade da realidade. Assim, portanto, o uno é dito de muitas maneiras: o contínuo por natureza e o todo, o indivíduo e o universal. E todos são uno pelo fato de que para uns o movimento é indivisível, para outros, o pensamento (noésis) ou o logos.6
O que é o uno e como o conceber A partir da consideração do uno na ordem do movimento e do contínuo, chega-se ao uno na ordem de o-que-é. Não basta para o Filósofo considerar as diversas realizações do uno e determinar onde ele se encontra realizado; é preciso ainda tentar especificar sua natureza: o que é o uno? 7 Captar o que é o uno é captar através das diversas realizações do uno o que as une, esse algo que faz com que o contínuo, como o todo e a substância são ditos «uno». É a indivisibilidade que aparece como o elemento comum dessas diversas modalidades do uno: 1 Física, V, 3, 227 a 10-12. 2 Met ., , 1, 1052 a 20-21. 3 Cf. ibid ., 1052 a 22-25. 4 Ibid ., 1052 a 30. 5 Ver Met ., , 6, 1016 a 17
seg., onde Aristóteles expõe mais longamente o que se deve entender por essa unidade específica, que pode conhecer diversos graus. 6 Ibid ., , 1, 1052 a 34-37. 7 «É preciso ter em mente que não é a mesma coisa saber que espécies de realidades são ditas unas e o que é o ser “ao uno” (to eni einai) e o que é seu logos» (ibid ., 1052 b 1-3).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES «O ser “ao uno” é o ser “ao indivisível”». 1 Pois se o contínuo é uno, é bem pelo fato de não ser dividido atualmente segundo suas partes quantitativas. A divisão geraria a multiplicidade. Se a substância singular é captada em um conhecimento «uno», se a substância é exprimida por uma noção «una», «una», é em razão de sua indivisibilidade. A indivisibilidade é certamente o que é o uno. É evidente que a indivisibilidade não exprime somente um aspecto negativo: o fato de não ser divisível. O uno não exprimiria mais a propriedade de o-que-é como tal: um aspecto meramente negativo não pode significar uma certa qualidade própria do ser. Ao afirmar a indivisibilidade do ser, sua sua unidade, expressa-se que que o-que-é como tal não não é ligado ligado à quantidade e à multiplicidade, mas que, em si mesmo e por si mesmo, ele está como que além do divisível. Para caracterizar de maneira positiva a qualidade da unidade do ser e, portanto, para expressar o que há de positivo na indivisibilidade, Aristóteles usa a noção de medida. Visto ser com relação à quantidade que a unidade de o-que-é se manifesta em primeiro lugar para nós, é em relação à quantidade que se manifesta em primeiro lugar para nós o que é a medida e sua relação com a indivisibilidade: «A medida é aquilo pelo qual a quantidade é conhecida». 2 Pelo número, conhece-se a quantidade, e é ao mensurá-la que o número a faz conhecer, já que o próprio número é conhecido pelo uno — o o uno é princípio e medida do número. Por que a quantidade não é conhecida por ela mesma? Por que precisa de ser mensurada para ser conhecida? Precisamente porque a quantidade, em si mesma e por si mesma, é essencialmente divisível; ela pois, é pura potência acidental. Ela não pode ser conhecida senão pelo que atua sua própria divisibilidade, a medida. Para cumprir essa função, a medida deve necessariamente possuir uma certa indivisibilidade; e mais perfeita será sua indivisibilidade, mais exata e rigorosa será a medida. Deste domínio da quantidade, a noção de medida estendeu-se às outras categorias. Assim, o Filósofo afirma que a medida é «aquilo pelo qual primitivamente cada coisa é conhecida», 3 o que significa que «o primeiro e mais simples em cada gênero é medida do que que está neste gênero». A medida é aquilo do qual não se pode tirar nem acrescentar nada; é o que é simples e que possui a unidade mais perfeita. Assim compreendemos como a noção de medida permite especificar o que caracteriza o-que-é como uno. O ser enquanto é «uno» mensura, ele pode exercer essa função de medida, o que nos permite dizer: como a substância 1 Ibid ., ., 1052 b 15-16. 2 Ibid ., ., 1052 b 20. Seria
interessante precisar como a medida funda, em filosofia primeira, a causa exemplar. Platão a utiliza para a elaboração de sua teoria das formas ideais. Aristóteles a utiliza explicitamente na sua Poética. Poética. A causalidade exemplar tem a particularidade de não atrair; ela não produz o amor no que lhe é submetido, mas, ao mensurá-lo, ela o modifica e o ordena formalmente e extrinsecamente. É a causalidade própria que o belo exerce na atividade humana humana do «fazer». «fazer». O fundamento derradeiro dessa dessa causalidade parece de fato ser a função de mensura do uno, propriedade de o-que-é. 3 Ibid ., ., 1052 b 24-25.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA é causa segundo a forma de o-que-é, a unidade da substância é mensura de o-que-é, uma vez que o uno é convertível com o ser. Convertibilidade1 do uno e do ser Contra os Pitagóricos e Platão, Aristóteles precisa que o uno não pode ser uma substância. Seu raciocínio é simples: se o ser não pode ser uma substância, igualmente o uno, «pois o-que-é e o uno são os mais universais de todos o atributos». 2 Uma vez que o-que-é e o uno são ditos de tantas maneiras, (...) é evidente que se deve procurar o que é o uno [para todas essas categorias] (holôs), holôs), como o que é o ser, já que não basta dizer que o que ele é por si é a sua natureza.3
Somente ao considerar o uno segundo as diversas categorias pode-se precisar o que ele é. Portanto, é preciso necessariamente procurar o que é o uno para cada uma dessas categorias, inclusive para a ousia: ousia: Portanto, que o uno seja uma certa natureza em cada gênero, e que nunca a natureza de uma coisa seja o próprio uno por si, é evidente; mas da mesma forma que, nas cores, é preciso procurar o uno por si, uma cor una, da mesma forma também na substância é preciso procurar uma substância única, o uno por si.4
E Aristóteles acrescenta: acrescenta: É evidente que o uno e o-que-é significam de certa forma a mesma coisa, pelo fato de o uno ser ligado da mesma maneira às categorias e de não ser nenhuma delas (por esti, nem na qualidade, mas ele se comporta da mesma exemplo, ele não está no ti esti, maneira que o-que-é); isso é evidente também pelo fato de «um homem» não atribuir algo de diferente diferent e de «homem».5
O uno e o ser significam uma única e mesma realidade:
1 Aristóteles emprega no livro (3, 1061 a 17) o verbo
antistrephein, antistrephein, para exprimir as relações do uno e do ser. Essa expressão significa que dois termos ou duas proposições se chamam, embora permanecendo distintos — não se confundem. Sua significação tem mesma extensão e mesma compreensão e, no entanto, eles se distinguem reciprocamente. 2 Met., Met., , 2, 1053 b 20-21. 3 Ibid ., ., 1053 b 25-28. 4 Ibid., Ibid., 1054 a 9-12. 5 Ibid., Ibid., 1054 a 12-17.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Pouco importa se se reduz o-que-é ao ser ou ao uno; com efeito, ainda que o ser e o uno não sejam os mesmos, eles se correspondem (antistrephei (antistrephei), ), pois o uno é o ser em um sentido, e o ser o uno. 1
Portanto, se Aristóteles se opõe à teoria platônica do Uno-em-si como uma substância própria, ele mostra o que há de exato a seu ver nessa doutrina e como se pode mantê-la. Pois, se o uno expressa bem uma noção própria, ele não pode separar-se do ser, a tal ponto que as divisões analógicas do ser são as do uno. Como a substância é o ser-primeiro, o ser tomado fundamentalmente, fundamentalmente, a substância é o uno-em-si. Se o uno e o ser são convertíveis, eles não podem confundir-se: o uno, atribuído a o-queé, precisa sua indivisibilidade; e o ser precisa o que é primeiro em relação ao uno. É pelo uno que se capta o-que-é, desvelando sua indivisibilidade própria, isto é, seus princípios próprios, segundo a forma (ousia ( ousia)) e segundo o fim (o ato); e é pelo ser que se apreende o uno, como propriedade do ser, «acólito» «acólito» do ser. O uno e o múltiplo Precisados o que é o uno e sua relação essencial com o-que-é, Aristóteles pode especificar o que é o múltiplo e como convém considerar a oposição entre o uno e o múltiplo, assim como a dependência dependência do múltiplo com relação ao uno. Isso lhe permite manifestar certos erros de seus predecessores, por exemplo o de Anaxágoras, que pensava que todas as coisas eram unidas, infinitas em multiplicidade; portanto, para ele, a multiplicidade era primeira e independente do uno. 2 Essa oposição entro o uno e o múltiplo pode ser considerada de diversas maneiras: 1. Como a que existe entre o indivisível e o divisível, pois o uno é o indivisível, e o múltiplo implica sempre uma certa divisibilidade. Acha-se, então, em presença de uma oposição de contrariedade (cujo tipo primeiro é a oposição de possessão e de privação), no sentido em que o indivisível opõe-se ao máximo ao divisível e que eles não podem coexistir no mesmo sujeito. Para nós, o divisível é o que é mais conhecido. 3 2. Como a que existe entre o mesmo e o outro, o semelhante e o dissemelhante, o igual e o desigual, pois ao uno e ao múltiplo pertencem bem respectivamente os diversos membros dessas oposições. A própria oposição entre o mesmo e o outro 4 realiza-se de diversas maneiras. Com efeito, o mesmo significa: seja a identidade numérica opondo-se à alteridade 1 Met ., ., , 3, 1061 a 15-18. 2 Cf. Met Cf. Met .,., , 6, 1056 b 28 seg. 3 Cf. Ibid Cf. Ibid .,., 3, 1054 a 20-29. 4 Cf. Met. Cf. Met.,, , 9, 1017 b 27 - 1028 a 11.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA numérica; seja a identidade na noção e no número («tu és um contigo mesmo pela forma e pela matéria»1), que se opõe a tudo o que não é «uno pela forma e pela matéria»; seja a identidade implicando a unidade do logos da logos da substância primeira («linhas retas iguais são as mesmas»2), que se opõe a toda desigualdade. O «semelhante» significa a identidade segundo a forma, isto é, segundo a qualidade. O semelhante se diz das «realidades afetadas, sob todos os ângulos, por mesmos [atributos]». 3 O dissemelhante é aquele que não tem essa identidade. Se pode discernir diversos graus de semelhança e, paralelamente, diversos graus de dissemelhança. Quanto ao «igual», ele significa a identidade na quantidade. É oposto ao grande e ao pequeno segundo uma negação negação ou uma privação, no sentido em que ele não é grande nem pequeno, embora tenha por sua natureza a propriedade de ser grande ou pequeno. Sob esse aspecto, ele é um intermediário. 4 3. Como a que existe entre a medida e o que ela mede. 5 Diz-se uno e múltiplo, como se diria o uno e os «unos», o branco e os brancos. Isso aparece com evidência a propósito dos números. Cada número é dito múltiplo porque composto de unidades; e porque cada número é mensurável pelo uno, ele é múltiplo, como o que é oposto ao uno, e não ao pouco numeroso. É por isto que tudo o que é uno não é número, mas mensura do número. Portanto vemos como, «em um sentido, o múltiplo e o uno são contrários — o o divisível e o indivisível — , e como, em um outro sentido, eles são relativos, como a ciência a respeito do cognoscível, cognoscível, se, ao menos, o múltiplo é um número e se o uno é medida». 6 A contrariedade A oposição de contrariedade que existe entre o uno e o múltiplo é a última contrariedade, uma vez que ela está além da que existe em tal ou tal gênero particular: Já que as coisas que diferem entre si podem diferir mais ou menos, existe também uma certa diferença «máxima» e eu a chamo de contrariedade. Que seja a maior diferença (megisté (megisté diaphora), diaphora), isso é evidente a partir da indução. Com efeito, as realidades que diferem pelo gênero não têm comunicação umas com as outras, mas são demasiado longínquas e não combináveis. Para aquelas que diferem pela espécie, as gerações existem a partir dos contrários tomados como extremos. Ora, a distância dos extremos é a maior e, portanto, também a dos contrários. Mas, decerto, o que há
1 Ibid ., ., 1054 a 35. 2 Ibid ., ., 1054 b 1. 3 Met ., ., , 9, 1018 a 15. 4 Cf. Met Cf. Met .,., , 5, 1055 b 30 seg. 5 Ibid ., ., 6, 1056 b 32 seg. 6 Ibid ., ., 1057 a 14-17.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES de maior em cada gênero é último (teleion (teleion)) (...). A diferença última possui, pois, um fim (telos (telos)) (...). Portanto, é evidente que a contrariedade é uma diferença última.1
Portanto, a oposição entre o uno e o múltiplo traduz, na realidade, a oposição de contrariedade no próprio nível de o-que-é. É normal que esta oposição permita ao Filósofo analisar de maneira mais precisa o que se deve entender pela contrariedade, e como os contrários implicam «intermediários» «intermediários» (metaxu (metaxu). ).2 Na ordem física, é fácil compreender compreender como os dois extremos de todo movimento são contrários e como esses dois contrários implicam necessariamente «intermediários» — o intermediário é aquilo em que é necessário que aquele que muda seja primeiro mudado. Quando essa oposição de contrariedade aplica-se ao uno e ao múltiplo, ela se situa na perspectiva da possibilidade ou da não possibilidade da divisão, divisão, e não mais na do movimento físico. Nesse caso pode haver mais ou menos do lado do divisível; com isso, certos intermediários podem existir. Os intermediários não podem existir senão no mesmo gênero, pois, em razão de sua potencialidade, o divisível não é exterior aos gêneros; o uno como tal escapa ao gênero, mas, enquanto «relativo ao divisível», ele é parte integrante deste gênero. Enquanto ele está fora do gênero, o uno desempenha seu papel de medida extrínseca. A oposição entre o uno e o múltiplo é, então, uma oposição de medida em relação ao que é medido, na qual já não há intermediários possíveis, uma vez que a medida e o medido não estão no mesmo gênero. Assim, Aristóteles precisa a dupla maneira como uma realidade pode mensurar: quer fazendo parte do gênero que ela mensura, quer sendo extrínseca ao gênero que ela mede; no primeiro caso, há oposição de contrariedade, contrariedade, no segundo, segundo, há oposição oposição relativa. Corruptível e incorruptível Após ter analisado o que é a contrariedade em si mesma, Aristóteles considera onde, de fato, se encontra realizada em primeiro lugar essa oposição. 3 O próprio da substância é ser sujeito dos contrários, isto é, de qualidades acidentais contrárias. Mas devemos perguntar-nos se, além dessa contrariedade acidental, existe uma contrariedade substancial. Precisamente, entre as substâncias, a oposição primeira é a que existe entre as substâncias corruptíveis e as substância incorruptíveis: O corruptível é um dos atributos que pertencem necessariamente às realidades às quais ele pertence. (...) O corruptível é necessariamente a substância de cada um dos
1 Ibid ., ., 4, 1055 a 3-16. 2 Ibid ., ., 7, 1057 a 18 seg.; 8, 1057 b 35. 3 Ibid ., ., 10, 1058 b 26 seg.
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A FILOSOFIA PRIMEIRA seres corruptíveis, ou reside em sua substância; e é da mesma forma para o incorruptível.1
É por isto que as substâncias corruptíveis e incorruptíveis diferem pelo gênero. Assim, não há intermediário possível entre esses opostos. 2 Essa oposição de contrariedade tem, portanto, um caráter único. Ela é fundamental e nos mostra a maior diferença que existe, de fato, nas realidades existentes. Essa afirmação permite a Aristóteles mostrar o erro daqueles que põem as «formas ideais». Pôr tais formas implica em admitir o homem sensível corruptível e o homem-em-si incorruptível, embora pretendendo que existe verdadeiramente entre os dois uma certa identidade específica, o que evidentemente é impossível, já que o corruptível e o incorruptível diferem pelo gênero. 3 É difícil captar a unidade filosófica desse livro , pois as diversas análises que aí são elaboradas parecem, à primeira vista, inorgânicas. Porém, podemos descobrir uma intenção: antes de mais nada, o que interessa Aristóteles é estabelecer que o uno é propriedade de oque-é. Deste modo, ele manifesta que há verdadeiramente uma ciência de o-que-é enquanto é: descobertos os dois princípios próprios de o-que-é (a ousia e o ato), ele mostra, em seguida que a unidade do ser provém da substância (unidade numérica ou formal) e do ato. Por outro lado, na luz dos princípios próprios de o-que-é enquanto ser, o Filósofo tinha descoberto o ser-acidente e o ser-em-potência, o que é fonte da multiplicidade própria de o-que-é: os acidentes chamam a multiplicidade, e a potencialidade do ser fundamenta toda multiplicidade. E como, no mundo físico, todas as realidades implicam uma composição de ato e de potência, encontra-se nelas unidade e multiplicidade. Quanto mais as realidades existentes são perfeitas, tanto mais elas adquirem uma unidade maior e se distanciam da multiplicidade. Mas, por outro lado, elas têm necessidade de uma certa complexidade para atingir o seu fim. Vemos nisso que o problema do uno e do múltiplo está no coração do mundo físico considerado na luz de o-que-é enquanto é. E este olhar se estende ultimamente até o homem, que é o lugar da maior complexidade e da aspiração à maior unidade. Desta forma, poderíamos compreender melhor o problema da pessoa humana, que Aristóteles não explicita nele mesmo. Na realidade, o que Aristóteles diz da substância e da maneira com que ela se encontra realizada no homem está ligado ao problema filosófico da pessoa, cujo fundamento é determinado por ele a partir do uno e do múltiplo. Assim, não é surpreendente, como vamos ver, que o livro , no qual se trata do Ser primeiro chamado Deus, comece pelo 1 Ibid ., 1059 a 2-8. 2 No tratado Do céu (I,
10-12, 279 b 4 seg.), Aristóteles trata explicitamente a questão do corruptível e do incorruptível. É incorruptível o que é sempre capaz de ser, é corruptível o que é sempre capaz de não ser. Essas duas qualidades são contrárias, pois a contraditória de o que é sempre capaz de ser é o que não é sempre capaz de ser . No entanto, a mesma realidade não é capaz de ser o sujeito desses contrários, pois eles afetam a substância mesma da realidade. Trata-se verdadeiramente de substâncias corruptíveis e incorruptíveis. 3 Met ., , 10, 1059 a 10-14.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES problema da substância. Graças à compreensão da substância como princípio e causa segundo a forma de o-que-é, a inteligência filosófica pode dizer algo desse Ser primeiro, que não pode ser senão uma substância separada e Ato puro.
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C. SABEDORIA TEOLÓGICA
1. Substância separada, eterna, divina (livro Aristóteles começa assim o livro : A respeito da substância é que existe a teoria (a contemplação). Pois são os princípios e as causas das substâncias o que se procura. E, com efeito, se o universo é como que um certo todo, a substância é a sua parte primeira; e, pelo próprio fato de [ele ser] ordenado, até assim a substância é o que é primeiro, em seguida vem a qualidade, depois a quantidade. (...) Ademais, fora da substância, nada é separado.1
Com esse livro, abordamos o que finalizou toda a pesquisa filosófica de Aristóteles. O filósofo é aquele que procura a verdade, e que procura a verdade no que ela tem de último; ele se interessa pelo homem e busca o que pode finalizá-lo. É por isso que a análise desse livro tem um interesse absolutamente particular e uma grande importância para conhecer o verdadeiro significado da filosofia de Aristóteles. Ao dizermos que toda a filosofia de Aristóteles é finalizada pelo livro , não queremos dizer que é Deus que lhe dá seu verdadeiro sentido: estaríamos em presença de um ontologismo.2 Aristóteles, pelo contrário, é precisamente aquele que respeita perfeitamente as diferentes operações humanas: ele as estuda por elas mesmas, para aproximar-se dessa forma de sua fonte própria, o homem (a pessoa humana). A partir daí é que, como vimos, ele desenvolve uma filosofia teorética, para apreender o que é o movimento, presente em todas as operações humanas; o que é o vivente, esse ultrapassar pela interioridade de todo o aspecto exterior do movimento; e, enfim, o-que-é enquanto é. E é pelo ser no que ele tem de primeiro, a ousia e o ato, que Aristóteles é capaz de abordar o problema último da substância primeira, separada do mundo físico, e de precisar que ela é Ato puro. Não é o problema da existência ou da não-existência desse Ser primeiro que interessa em primeiro lugar Aristóteles. Decerto, Aristóteles aborda essa questão, e de modo muito 1 Met ., , 1, 1069 a 18-24. 2 Por “ontologismo” significamos
a posição de quem pretende Deus ser imediatamente cognoscível pela inteligência e que é por ele que tudo o que conhecemos é inteligível. Esta posição permanece muito próxima à do argumento ontológico.
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES particular como veremos, mas ele quer antes de mais nada descobrir o que é esse Ser primeiro considerado pela contemplação do filósofo. Para Aristóteles, a existência do Ser primeiro é um dado das tradições religiosas. Ela se impõe como um dado necessário: negá-la arruinaria tudo. É certamente dessa forma que se deve entender o que ele diz no fim do primeiro capítulo do livro , lembrando que «as substâncias são três: uma sensível — ela é quer eterna, quer corruptível; (...) a terceira é imóvel, e alguns dizem que ela é separada. (...) As duas primeiras substâncias competem à física, pois elas implicam o movimento; a última, pelo contrário, compete a uma ciência diferente, se não existe entre elas nenhum princípio comum.»1 Os quatro primeiros capítulos desse livro apresentam-se como uma espécie de resumo da análise do movimento, manifestando o papel capital e primordial da causa motriz. É a razão pela qual alguns comentadores de Aristóteles pensaram que esse livro não passava de um rápido resumo da Física. Não pensamos isso, pois essa análise do movimento possui uma orientação nova: ela tende para provar a existência de uma substância separada, 2 cuja natureza, vida, felicidade os capítulos 6 a 10 tentam especificar, pelo menos tanto quanto o filósofo pode conhecê-las. O livro aparece, portanto, como o termo da pesquisa da filosofia: essa se transforma, então, em sabedoria. Notemos rapidamente o que parece ser a organização profunda dessas duas partes. Princípios próprios das realidades sensíveis, sua diversidade e sua unidade O estudo do movimento físico exige pôr três princípios de o-que-é-movido — os dois contrários e o sujeito: A substância sensível é capaz de mudar. Ora, se a mudança tem lugar a partir dos opostos ou dos intermediários, decerto não de todos os opostos (...), mas somente a partir dos contrários, é necessário que exista fundamentalmente algo que muda na contrariedade, pois não são os contrários que mudam; ademais, isso permanece fundamentalmente, e o contrário não permanece. Portanto, existe um terceiro [termo] além dos contrários, a matéria. Logo, se as mudanças são quatro: segundo a substância (kata to ti), segundo a qualidade, a quantidade ou o lugar, as mudanças se realizarão entre contrários segundo cada uma dessas [categorias]. Portanto, é necessário que a matéria que muda seja em potência os dois contrários. E, uma vez
1 Met ., , 1, 1069 a 30 - 1069 b 2. 2 Nos livros VII e VIII da Física vimos
que Aristóteles considera o-que-é-movido como o que não se pode compreender plenamente senão na dependência de um ser imóvel (cf. acima, p. 124 seg).
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SABEDORIA TEOLÓGICA que o-que-é é duplo, toda mudança é de o-que-está em potência a o-que-está em ato...1
E Aristóteles afirma mais tarde: Assim, as causas são três e os princípios são três; dois formam a contrariedade, dentro dos quais um é a noção e a forma; o outro, a privação; e o terceiro é a matéria.2
Mas a realidade engendrada não pode reduzir-se ao devir , pois a natureza-matéria e a natureza-forma, princípios constitutivos da realidade física, estão além do devir: Nem a matéria nem a forma são engendradas, quero dizer a matéria e a forma últimas. Com efeito, toda mudança muda algo, a partir de algo e em algo. Aquilo pelo qual o movimento existe é o motor primeiro; o que é mudado é a matéria, aquilo em que ela é mudada é a forma. Portanto, ir-se-ia ao infinito se não somente o círculo de bronze fosse gerado, mas também o círculo ou o bronze. Portanto, é necessário parar.3
Aristóteles afirma, então, que «as substâncias são três: a matéria, que é algo de determinado pelo fato de ser manifestada (...); a natureza, que é algo de determinado ( tode ti) e uma disposição estável nela; a terceira, é o singular que existe a partir delas, Sócrates ou Calias»; e acrescenta que, se o tode ti é capaz de existir fora das coisas compostas, isto se realiza somente para as realidades que existem «por natureza». 4 Ademais, ele mostra que «as causas eficientes existem como anteriores a seus efeitos, ao passo que as causas como logos existem ao mesmo tempo». Por outro lado, «é preciso examinar se algo subsiste depois; para certas realidades, nada se opõe a isso; a alma, por exemplo, não toda alma, mas o espírito». 5 Enfim, se cada realidade no seu ser individualizado possui princípios próprios, esses princípios próprios têm entre si uma certa unidade proporcional (analógica). Há uma ordem entre esses princípios. E se é necessário pôr quatro causas, é preciso pôr apenas três elementos; é preciso sempre distinguir bem as causas extrínsecas eficiente e final dos elementos imanentes que constituem o que é a realidade. 6 Nas realidades naturais, a causa eficiente é sempre anterior, por exemplo na geração humana, o homem individual (o tode ti); nas realidades artificiais, a causa eficiente é a forma, a idéia. Eis como se pode dizer que de 1 Met ., , 1-2, 1069 b 3-16. 2 Ibid ., 1069 b 32- 34. 3 Ibid ., 3, 1069 b 35 - 1070 a 4. 4 Ibid ., 1070 a 9-17. 5 Ibid ., 1070 a 21-26. 6 Cf. ibid ., 4, 1070 b 25 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES certa maneira a causa eficiente se identifica à forma, à causa formal extrínseca. E Aristóteles prossegue: «Enfim, fora desses princípios existe, como o primeiro de todos os seres, o que move tudo».1 Aristóteles afirma, em seguida: «Uma vez que existem realidades separadas, e outras não separadas, as primeiras são substâncias. Eis por que elas são causas de todos os seres, já que sem as substâncias, as paixões e os movimentos não existem». 2 Portanto, se tudo pode se reduzir à substância, tudo pode também se reduzir ao ato: É de uma outra maneira que, por analogia, os princípios são os mesmos, a saber o ato e a potência (...). A forma é em ato, se pelo menos ela é separada, assim como o composto [de forma e de matéria]. (...) a matéria é em potência.3
O ato e a potência se realizam de duas maneiras diferentes nas realidades que têm uma matéria outra e uma forma outra. Ademais, devemos ver que certas causas são ditas universais, outras não. E os princípios primeiros de todas as coisas é o que está em ato imediatamente ( prôton) tal coisa determinada, e, por outro lado, o que está em potência. As causas universais não existem, pois o indivíduo é o princípio do indivíduo.4
Compreende-se como esses capítulos 2 a 5 do livro parecem uma interpolação resumindo uma análise das realidades sensíveis em movimento, precisando a diversidade de seus princípios próprios e sua unidade. Seriam, então, como que extrínsecos à análise que Aristóteles aborda no capítulo 6 com relação à substância imóvel: poder-se-ia colocá-los entre parênteses... Entretanto, é claro que não se trata de um resumo daquilo que foi dito na Física. Não é de modo algum o mesmo olhar. Aristóteles usa aqui todas as descobertas da filosofia primeira e faz mesmo apelo à existência da substância imóvel, para olhar o movimento físico em uma luz nova: o movimento físico é uma certa maneira de ser, provindo de um ser em potência (radicalmente em potência, a matéria), sob a ação de um ser em ato. Aristóteles tem, portanto, um novo olhar sobre a matéria, da qual provém todo movimento físico. Ele afirma que essa matéria não é não-ser simpliciter , absolutamente, mas o ser em potência; ela é ainda substância, no sentido daquilo que é fundamental e primeiro na ordem do ser. Deste modo, Aristóteles tenta precisar a ordem de nosso universo físico e mostra como esse mundo físico se completa no dos viventes, o qual, por sua vez, toma todo seu sentido com o homem, em que a vida desabrocha em uma vida de inteligência — Aristóteles pergunta, então, se a alma 1 Ibid ., 1070 b 34-35. 2 Ibid ., 5, 1070 b 36 - 1071 a 2. 3 Met ., , 5, 1071 a 8-10. 4 Ibid ., 1071 a 17-21.
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SABEDORIA TEOLÓGICA humana, pelo menos na sua parte noética, está além da corruptibilidade e, pois, além de nosso mundo físico. Logo, temos duas substâncias extremas, a matéria e o intelecto, uma fonte de corruptibilidade, a outra incorruptível. A divisão entre corruptível e incorruptível é de fato a divisão mais fundamental de nosso mundo físico. O mundo corruptível, que é o mundo do movimento, do devir de o-que-é, se enraíza na substância material, que lhe dá uma certa unidade fundamental, através da diversidade. Mas essa substância material não explica por si própria o movimento. Ela faz apelo a uma diversidade muito grande de causas eficientes implicando determinações. Essa diversidade mesma implica uma certa unidade: da mesma forma que a diversidade das modalidades próprias de o-que-é se reduz à substância, da mesma forma as causalidades eficientes exigem uma certa unidade. O legetai pollakôs [é dito de diversas formas] das categorias se encontra ao nível das causalidades eficientes, que são unificadas, em definitivo, pela causalidade final: «O que é primeiro em ato é causa de tudo». 1 Portanto, há dois polos de unidade no mundo físico das realidade corruptíveis: o da substância-matéria e o da substância-forma, unidos graças à causalidades eficientes. E a causalidade eficiente não tem unidade senão pela finalidade. Não temos aqui um olhar de sabedoria sobre o mundo físico? Evidentemente, trata-se de um esboço rápido, demasiado rápido ao nosso ver; mas ela nos dá, se estamos muito atentos, os elementos principais de um tal olhar de sabedoria, que mostra a ordem do universo apreendido nele mesmo, apelando para o além desse mundo físico. Notemos ainda que essa ordem mostra a inutilidade das Idéias de Platão para tornar inteligível nosso universo físico — Aristóteles o frisa duas vezes. O mundo físico, embora permanecendo obscuro por causa de seu fundamento — a matéria — no entanto, possui uma inteligibilidade própria, por causa das diferentes formas (os contrários), e requer uma ordem das causalidades eficientes. Necessidade de pôr um primeiro motor imóvel É dessa substância imóvel que devemos falar, e mostrar que necessariamente existe uma substância eterna e imóvel. Com efeito, as substâncias são as primeiras das realidades existentes e se elas todas fossem corruptíveis, tudo seria corruptível. Mas é impossível que o movimento nasça ou pereça (pois ele era sempre); da mesma forma para o tempo, pois é impossível que haja um antes ou um depois, se o tempo não existe. O movimento, assim, é contínuo como o tempo (...). Somente o movimento segundo o lugar, e, dentro dos movimentos locais, somente o movimento circular pode ser contínuo. Todavia, se existir somente uma realidade capaz de mover ou de agir eficazmente, mas que não estiver em ato (mé energoun), não haverá movimento. Pois o que possui a potência, pode não ser em ato: então, seria 1 Cf. ibid ., 1071 a 33-36.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES totalmente inútil admitir substâncias eternas à maneira daqueles que supõe as formas em si, se não houvesse nelas um princípio capaz de operar uma mudança. Portanto, nem essa substância basta, nem uma outra fora das formas em si; pois se [essa substância] não operar em ato, não haverá movimento. E ainda, não haverá movimento, se ela operar em ato, enquanto sua substância está em potência; com efeito, não haverá, movimento eterno, pois o que está em potência pode não ser. Por conseguinte, deve existir um princípio tal que sua substância seja ato.1
Essa argumentação implica, portanto, tudo o que foi elaborado em física e o que Aristóteles diz no livro sobre o ser-em-potência e o ser-em-ato. Ela permanece em continuidade com as conclusões da Física, utilizando o movimento circular, eterno, já que esse movimento é um dos meios termos utilizados. Usando tal argumentação, o Filósofo retoma a visão de Platão e Leucipo, mas acrescenta o «porquê», e diz a causa desse movimento eterno.2 Essa substância, em ato, é necessariamente sem matéria, uma vez que a matéria é fonte de toda potencialidade. 3 Ela é, pois, separada. Dado que essa prova da existência de uma substância separada, em ato, funda-se sobre a anterioridade absoluta do ato sobre a potência, é normal que o Filósofo esteja particularmente atento a isso. Para tornar sua argumentação mais evidente ele frisa uma dificuldade: «Pois tudo quanto age pode agir, ao passo que tudo quanto pode agir não age [sempre], de sorte que a potência seria anterior». 4 Pode-se responder provando que o ato é anterior à potência, o que o Filósofo já fez precedentemente. Aqui, ele responde mostrando as impossibilidades que ocorrem se se afirma que a potência é anterior ao ato. Encontramos de novo o método crítico defensivo. Se se pretende que a potência é anterior ao ato, «nenhum ser existirá». Pois é possível que o que pode ser ainda não seja. «Como as realidades serão geradas se não existir nenhuma causa em ato?»5 Pôr a anterioridade da potência sobre o ato é afirmar que «tudo vem da noite, da confusão eterna ou do nada». 6 É importante ver bem a diferença que existe entre essa argumentação e a dos livros VII e VIII da Física. Esses dois livros, já o assinalamos, são elaborados em uma perspectiva crítica; com efeito, fundam-se inteiramente sobre dois axiomas críticos da filosofia da natureza: «tudo o que é movido é movido por um outro, e «não se pode remontar ao infinito na ordem 1 Ibid ., 6, 1071 b 4-20. 2 Cf. Met ., , 6, 1071 b 32 seg. 3 Cf. ibid ., 1971 b 21-22. 4 Ibid ., 1071 b 23-24. 5 Ibid ., 1071 b 29. 6 Ibid ., 7, 1072 a 20.
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SABEDORIA TEOLÓGICA das causas». Não encontramos aqui esses dois axiomas, mas o princípio metafísico do ato e da potência, da anterioridade do ato sobre a potência. Aristóteles afirma, portanto, que as substâncias são os primeiros dos seres, que o movimento circular é eterno, que esse movimento eterno pressupõe uma causa eficiente eterna primeira tal que sua substância seja ato. Evidentemente, essa argumentação pressupõe a existência de um movimento eterno, o que é constestável. Teria ele a mesma força no nível filosófico se não se afirmasse a existência do movimento eterno? Não é o lugar para explicitar essa questão, mas pensamos que a metafísica do ser-em-ato e do ser-em-potência permite afirmar a necessidade de pôr um Ser primeiro além do movimento, a partir da própria existência de uma realidade em movimento. Com efeito, o raciocínio metafísico ultrapassa o movimento, que nunca pode ser primeiro, e sua modalidade (a eternidade): o argumento metafísico tem como ponto de aplicação o-que-é, uma vez que o próprio Aristóteles reconhece que o movimento não é plenamente inteligível senão na luz de uma filosofia do ato e da potência. A substância que é ato Esse primeiro ser é o Ser «último que move sem ser movido, ser eterno, substância e ato».1 Ora, é dessa forma que movem o desejável [apetível] e o inteligível: eles movem sem ser movidos. O primeiro desejável e o primeiro inteligível identificam-se. Com efeito, o desejável é o bem manifestado (to phainomenon kalon), e o primeiro querido é o que é bom (to on kalon). Desejamos, antes, uma coisa porque ela nos parece [boa] e ela não nos parece boa porque a desejamos; o princípio, com efeito, é o pensamento. Ora, a inteligência é movida pelo inteligível, e a série dos opostos ( systoikia) é inteligível por si. A substância é primeira nessa série, e na substância, o que é simples e conforme o ato é primeiro. (...) Mas o bem e o desejável por si estão na mesma série. E o primeiro é sempre o melhor ou análogo [ao melhor]. 2
O primeiro desejável, portanto, é necessariamente idêntico ao primeiro inteligível, e não pode ser senão a substância simples e em ato. Notemos bem o que Aristóteles frisa aqui. Com relação a um ser imóvel, não se pode falar senão de finalidade, já que essa está além do movimento — ela o completa ao ultrapassá-lo. Uma substância simples não pode mais ser considerada senão sob o aspecto das causas formais e finais. Com efeito, a causa material é ultrapassada e como que absorvida pela causa 1 Ibid ., 1072 a 24-25. 2 Ibid ., 1072 a 26 - 1072 b 1.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES formal. Trata-se de uma substância sem matéria, pura forma. Quanto à causa eficiente, também ela é ultrapassada e como que assumida pela causa final: trata-se de uma substância simples, inengendrada, que não depende de um ser anterior, mas em ato. Para com tais realidades imateriais e imóveis, a finalidade permanece, pois o fim não implica em si mesmo nenhuma imperfeição; ele exige, pelo contrário, uma perfeição absoluta. Com efeito, ser fim para alguém se diz de duas maneiras: O «aquilo em vista de que» é ou para alguém (tini), ou de alguém (tinos). Nesse último sentido, o fim pode existir entre os seres imóveis, mas não no primeiro sentido. Eles movem como o que é amado; todas as outras realidades movem pelo fato de serem movidas.1
Pode se mover seja como aquele que move enquanto amado, seja como aquele que é movido e que move, isto é, seja como o fim último, derradeiro, seja como o fim intermediário. A primeira maneira de ser fim não implica nenhuma potencialidade; o que é amado é o que atua, portanto, o que está em ato. É a bondade de um ser que o torna «amável» (capaz de ser amado): Uma vez que existe algo (ti) que move, sendo ele próprio imóvel, existindo em ato, ele não pode ser de modo algum de outra forma que ele é (...). Ele existe, portanto, com toda necessidade e, enquanto ele é necessário, é bom, e é dessa maneira que ele é princípio (...). A um tal princípio estão suspensos o céu e a natureza.2
A substância simples e em ato possui uma felicidade plena, pois nela nada precisa ser completado, ser aperfeiçoado. Eis por que a alegria mais perfeita possível que podemos possuir, a da contemplação, alegria que para nós não dura senão um momento, o Ser primeiro a goza eternamente: Ele é uma vida passada ao longo, tal como a melhor que para nós não dura senão um breve momento. Ele é eternamente assim (para nós é impossível), já que seu ato também é alegria.3
Para justificar como a substância simples e em ato goza eternamente essa alegria contemplativa, é preciso compreender que a contemplação, isto é, a intelecção no que ela tem de mais perfeito, é algo divino que por si não implica imperfeição alguma e que se identifica com o mais alto grau do ser mais puro:
1 Ibid ., 1072 b 1-3. 2 Met ., , 7, 1072 b 7-14. 3 Ibid ., 1072 b 14-16.
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SABEDORIA TEOLÓGICA O pensamento (noésis), o que é por si, é o pensamento do que é melhor por si; e o pensamento ao ponto mais alto é pensamento do que é ao ponto mais alto. Ora, a inteligência (nous) se pensa a si mesma segundo uma apreensão do inteligível. Com efeito, ao tocar e ao conhecer o inteligível, a inteligência se torna inteligível, de tal sorte que a inteligência e o inteligível se identificam. Pois a inteligência é o receptáculo do inteligível e da substância (primeiro inteligível), e possuindo-os, ela está em ato. É aí o que a inteligência parece ter de mais divino, e a contemplação é o que há de mais agradável e de mais nobre. Portanto, que esse estado de felicidade Deus o possua eternamente — como nós, por momentos — , isso é admirável.1
Se a substância primeira possui tal felicidade, pode-se afirmar que a vida existe nela, pois o ato da inteligência é «vida». A vida nela é a mais perfeita, e ela é eterna: A vida também pertence [a Deus]. Com efeito, o ato da inteligência é vida, e ele próprio é ato. E seu ato por si é uma vida excelente (aristé) e eterna. Dizemos, então, que Deus é um vivente eterno e perfeito (ariston), já que uma vida e uma duração contínua e eterna pertencem a Deus. Com efeito, Deus é isso.2
Vê-se como, pelo ponto de vista da felicidade, o Filósofo pode afirmar que a vida existe nessa substância primeira. A vida não se exerce necessariamente segundo um movimento de sucessão. Há uma vida puramente imanente e sem devir, que é um «repouso perfeito» e que não pode existir senão além da matéria, em uma vida puramente espiritual. O repouso da contemplação é, portanto, o cume da vida; esse repouso é atividade soberana e eminente. Ele é Ato Puro. Número das substâncias separadas «Mas é preciso pôr uma só substância de tal natureza ou várias e, nesse caso, quantas? Eis uma pergunta que não se deve deixar sem solução». 3 O princípio e o primeiro dos seres é imóvel; ele o é por si e por acidente, e ele move o movimento primeiro eterno e único. Ora, uma vez que o que é movido é necessariamente movido por um outro, que o primeiro motor é imóvel por si, e que o movimento eterno há de ser movido pelo eterno e o movimento uno pelo uno; [uma vez que, por outro lado], além da translação simples do todo que o que chamamos substância primeira e imóvel move, vemos outros movimentos de tanslação eternos, 1 Ibid ., 1072 b 18-25. 2 Ibid ., 1072 b 26-30. 3 Ibid ., 8, 1073, a 14-15.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES os dos planetas (...), é necessário também que cada uma dessas translações seja movida por uma substância imóvel por si e eterna. Com efeito, a natureza dos astros sendo uma substância eterna e o motor eterno sendo anterior ao que é movido, e o que é anterior a uma substância sendo necessariamente uma substância, por conseguinte, é manifesto que existe necessariamente tantas substâncias cuja natureza é eterna e imóvel por si e sem grandeza... 1
Quanto ao número das translações, Aristóteles precisa que cabe à astronomia determinálo. Assim, o Filósofo, apoiando-se sobre a teorias de Eudoxo e de Calipe, tenta elaborar uma opinião pessoal que possa «salvar as aparências», isto é, explicar o que aparece. 2 Enfim, Aristóteles afirma: Que haja um só céu, isso é manifesto. Com efeito, se existissem vários céus, como vários homens, o princípio para cada um seria uno pela forma, mas múltiplo segundo o número. Mas tudo quanto é múltiplo pelo número possui matéria (...). Ora, a qüididade primeira não tem matéria, pois ela é ato. Portanto, o primeiro motor imóvel é uno, e pelo logos, e pelo número, e, por conseguinte também o que é movido eternamente e de maneira contínua. Logo, há somente um céu.3
Não esqueçamos que Aristóteles reconhece o caráter relativo dessas opiniões e, por isso mesmo, da inferência que se elabora a partir delas. O número das substâncias imóveis permanece, pois, para ele no domínio da opinião — eis por que não é isso que interessa em primeiro lugar o Filósofo, mas, antes, a existência da substância primeira. Assim não é de se estranhar que ele volte, nos capítulos seguintes, sobre os caracteres próprios da Inteligência primeira e sobre a natureza de sua contemplação. Notemos ainda que é a partir do movimento circular que Aristóteles infere imediatamente a substância separada. Isso clareia muito o que ele disse precedentemente do primeiro motor imóvel: não se pode alcançá-lo senão pela causalidade final. A Inteligência primeira: sua contemplação Aristóteles reconhece que o problema da Inteligência primeira é particularmente delicado e difícil, precisamente por causa de seu caráter primeiro, divino. Pretender que essa Inteligência não pensa nada, é esquecer sua dignidade única. Não se pode assimilá-la ao que dorme: ela estaria em potência. Pretender que ela pensa uma realidade outra que si própria, seria reconhecer que seu ato próprio depende de um princípio superior. Ela já não seria,
1 Ibid ., 1073 a 23 - 1073 b 1. 2 Cf. ibid ., 1074 a 1 seg. 3 Ibid ., 1074 a 31-38.
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SABEDORIA TEOLÓGICA portanto, o Ser primeiro. Como, pois, determinar a realidade que essa Inteligência contempla?1 Após ter analisado e criticado as diversas soluções possíveis, Aristóteles conclui: 1. «A Inteligência divina pensa a ela própria, pois ela é o que há de mais excelente, e seu pensamento é pensamento do pensamento (noésis noéseôs)».2 2. A contemplação da Inteligência primeira é, portanto, idêntica àquilo que a determina, que não tem matéria. 3 3. A contemplação divina que é intelecção de si mesma, é absolutamente indivisível durante toda a eternidade.4 Do ponto de vista puramente filosófico, não se vê como se poderia chegar a uma afirmação mais perfeita daquilo que é a contemplação da substância primeira: «contemplação da contemplação», olhar puro do olhar puro, presença da presença. Não estamos aqui no cume daquilo que a inteligência humana é capaz de dizer a respeito do Ser primeiro? Ela é não somente capaz de afirmar que existe necessariamente um Ser primeiro necessário — e nessa linha, ela afirma o além do que é movido, do devir; como também a inteligência humana é capaz, refletindo filosoficamente sobre a inteligência, de afirmar que, no Ser primeiro, ser e inteligência são idênticos, e que o ato puro dessa inteligência é se contemplar. Somente a causalidade final permite à inteligência humana afirmá-lo. Deus está além do pensamento dialético, que implica sempre um certo devir. Ele é necessariamente, ele é substância simples, Ato Puro, ele é contemplação. Ética e filosofia primeira encontram aqui sua consumação última. Bem separado e bem imanente Aristóteles se pergunta, enfim, de que maneira o universo possui o bem, o bem absoluto: é algo separado? é uma ordem? ou, antes, das duas maneiras ao mesmo tempo, como num exército? «Com efeito, o bem do exército está na ordem, e é também o general; este é ainda mais o bem, pois não é ele que existe por causa da ordem, mas antes a ordem por causa dele».5 É essa última solução que o Filósofo adota: o bem absoluto não existe senão na substância primeira, na sua contemplação. No universo não existe senão um bem relativo: a ordem. «Todas as realidades de nosso universo são submetidas a uma certa ordem, embora não o sejam todas da mesma maneira». 6 Uma vez que todas as realidades do universo são ordenadas para um fim único, uma certa ordem existe necessariamente entre elas. Após ter 1 Cf. Met ., , 9, 1074 b 15-27. 2 Ibid ., 1074 b 33-35. 3 Cf. ibid ., 1075 a 3-5. 4 Cf. ibid ., 1075 a 5-10. 5 Ibid ., 10, 1075 a 13-15. 6 Ibid ., 1075 a 16.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES determinado o caráter único da contemplação da substância primeira, manisfestando-nos sua solidão substancial, sua autonomia absoluta, o esforço derradeiro do Filósofo é para nos mostrar como todas as outras realidades não podem ser boas senão em sua ordem para essa bondade primeira separada. Entre as diversas realidades e a substância primeira, o vínculo que Aristóteles ressalta é o da ordem, vínculo que traduz uma dependência segundo a causa final. Portanto, ao mesmo tempo, é uma dependência segundo a ordem da causa final e segundo a ordem do devir, do movimento, que o Filósofo reconhece entre as realidades físicas e a substância primeira separada. Ele não fala de uma dependência mais radical segundo a ordem do ser, pois ele não tratou, pelo menos nos escritos que possuímos, o problema da criação. Mas parece bem que os princípios mesmos de sua filosofia primeira não se opõem a isso. Próclo, de resto, o frisa. Seu raciocínio é muito simples: já que a substância primeira é causa final, e que a causa final assume a causa eficiente, ela é causa eficiente do universo.1
* * * Por suas diversas pesquisas filosóficas sobre o-que-é considerado enquanto é, Aristóteles determina sucessivamente os princípios, as causas próprias e a propriedade de o-que-é enquanto ser. O-que-é, em primeiro lugar, é substância: eis sua determinação primordial. Oque-é igualmente em primeiro lugar é ato: eis seu fim próprio. Enfim, o-que-é em primeiro lugar, como substância e como ato, é uno: eis sua propriedade característica. Isso não impede que, de maneira secundária, o-que-é seja qualidade, quantidade, relação: eis suas determinações acidentais; que ele seja também em segundo lugar em potência: eis o fundamento próprio de seus limites; enfim, que ele seja, enquanto acidente e em potência, múltiplo: eis a conseqüência característica de sua potencialidade — se o ato implica a 1 «Para
Próclo, não há dúvida de que Aristóteles (distinto dos Peripatéticos) haja descoberto o Ser Primeiro como causa eficiente do universo, e não apenas como causa final. É o que repete diversas vezes. Ver, em particular, o Comentário do Timeu, I, 266, 25 seg., trad. A.-J. Festugière, pp. 107-108: “Os Epicuristas negam que exista um Demiurgo e, de modo geral, uma Causa do Universo. Os discípulos do Pórtico admitem, sem dúvida, a existência desta Causa, considerando-a, porém, inseparável da matéria. Quanto aos Peripatéticos, embora admitam a existência de uma Realidade separada, aceitam-na, não como Causa eficiente, mas como Causa final (...). No entanto, Platão e os Pitagóricos celebraram o Demiurgo do universo como separado, transcendente, Criador de todas as coisas e Providência do Todo, no que tiveram razão absoluta. Com efeito, se o Mundo enamora-se do Noûs, de onde provém este seu desejo intrínseco? Pois, uma vez que o Mundo não é o Ser Primeiro, recebe, necessariamente, este desejo de uma Causa que o move ao amor: de fato, o próprio Aristóteles afirma ser o desejado quem coloca o desejando em movimento. Ora, se isso é verdade, e se o Mundo tem apetência do desejado unicamente pelo fato de ele existir e conforme sua natureza, manifestamente toda a existência também do Mundo provém da Fonte mesma de onde deriva para ele o fato de estar desejando.”» (M. D. P HILIPPE, De l’être à Dieu. Topique historique I. Philosophie grecque et traditions religieuses, pp. 100-101, nota 99).
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SABEDORIA TEOLÓGICA indivisibilidade e a unidade, a potência acarreta a divisibilidade e a multiplicidade. O Filósofo pode, doravante, precisar a natureza das substâncias separadas e especialmente da primeira substância separada. Se essas diversas análises de filosofia primeira possuem seu rigor científico próprio, elas possuem, antes de mais nada, uma penetração filosófica notável que mantém uma unidade real no seio de uma grande diversidade. Por mais diversas que sejam essas análises da substância, do ato, do uno, uma unidade permanece além dessa diversidade, pois a substância é a determinação primeira de o-que-é, o ato é o fim próprio de o-que-é, e o uno é a propriedade de o-que-é. Trata-se bem aqui das diversas dimensões filosóficas de o-que-é enquanto é. Parece que verdadeiramente não pode haver outras, pelo menos se se liga ao ato o verdadeiro e o bem, como o faz Aristóteles. Dessa forma é que respondemos verdadeiramente à diversas interrogações que se pode colocar a respeito de o-que-é considerado como ser, uma vez que o porquê das causas materiais e eficiente não tem sentido nessa análise do ser. Quanto à propriedade, ela é necessariamente única, pois o-que-é, na medida em que é substância e ato, é indivisível e uno. Não confundamos aqui o problema dos transcendentais e o da propriedade de o-que-é enquanto ele é. Com efeito, se o problema da propriedade permanece na própria linha da substância e do ato, o problema dos transcendentais é da ordem de uma reflexão crítica. Em outras palavras, procurar a propriedade de o-que-é enquanto ser corresponde a explicitar o caráter especial da substância e do ato, ao passo que a determinação dos transcendentais é a redução de certas noções primeiras, como as de verdadeiro, de bem, de uno, àquela absolutamente primeira do ser. A primeira pesquisa se situa, portanto, ao nível de o-que-é enquanto ele é; o problema dos transcendentais é a explicitação das diferentes modalidades próprias da inteligibilidade de o-que-é. Tendo determinado essas diversas dimensões de o-que-é enquanto ele é, o Filósofo pode mostrar como essas dimensões não podem se realizar plenamente senão em realidades outras que as realidades físicas. Em outras palavras, somente nas substâncias separadas é que a substância se realizará perfeitamente como substância (a substância-sujeito e a substânciaqüididade sendo então idênticas). Da mesma forma, as substâncias separadas são as únicas em que a modalidade do ato pode se realizar separada de toda potencialidade e, portanto, possuir um estado de pureza absoluta e uma anterioridade perfeita. Todas as outras substâncias, sendo compostas de matéria e de forma, implicam uma anterioridade relativa e uma potencialidade radical que as torna corruptíveis ou, pelo menos, móveis. Por isso mesmo, somente nas substâncias separadas é que o uno existe perfeitamente. Isso mostra como a análise filosófica de o-que-é enquanto é exige do filósofo colocar a questão da existência das substâncias separadas. Não podemos imediatamente inferir a existência de substâncias separadas a partir da substância-princípio, que como tal não implica nenhuma imperfeição, ou do ato-fim, que não implica nenhuma imperfeição. Podemos somente nos interrogar: existem substâncias separadas, existe um ato puro? Em seguida, é a 227
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES partir de uma realidade existente limitada e, no entanto, possuindo seus princípios próprios (substância e ato), que podemos descobrir a necessidade de pôr uma substância separada, Ato Puro, utilizando a causalidade final.
2. A contemplação «A capacidade de contemplar é em vista da contemplação (...); não se entrega à contemplação para possuir a capacidade de contemplar... mas para contemplar». 1 A filosofia primeira como sabedoria deve completar-se em uma atividade contemplativa. Sua atividade científica, toda ordenada a analisar com o maior rigor possível o-que-é enquanto é, permite-lhe mostrar a necessidade das substâncias separadas e especialmente de uma primeira substância separada. O filósofo desvenda, o quanto pode, o que é essa substância separada e sua vida própria, sua contemplação. Mas isso não basta: como sabedoria, a filosofia primeira tem outras exigências. Ela não pode desabrochar perfeitamente em uma atividade «racional», por mais perfeita e rigorosa que seja. A sabedoria, com efeito, implica uma perfeição eminente que lhe é própria. Ela requer desabrochar em um ato de contemplação, isto é, em um ato realizando perfeitamente todas as exigências do conhecimento intelectual. Para melhor entender a excelência da filosofia primeira do ponto de vista humano, importa precisar a natureza exata do ato de contemplação. Com efeito, esse ato finaliza em última instância tal filosofia. Ora, a natureza do ato de contemplação pode ser precisada de maneira objetiva — então, trata-se de determinar o que ele contempla, atinge, olha — , ou de maneira subjetiva — precisando a atividade e a atitude do contemplativo. De fato, Aristóteles não determina explicitamente o que é atingido propriamente no ato de contemplação. Ter precisado os princípios próprios que especificam a filosofia primeira, e ter determinado o que é o Ser primeiro e sua vida própria parecem lhe bastar. Na perspectiva própria da filosofia primeira, compreendemos essa necessidade de rigor objetivo. Porém, não esqueçamos o que o próprio Aristóteles diz da felicidade última do homem-filósofo. O Ser primeiro vive plenamente sua própria contemplação, eternamente, sempre em ato. O homem sábio não vive essa contemplação senão imperfeitamente e por momentos. Assim, a contemplação de Deus é o fim próprio da do filósofo: o sábio não pode aspirar senão por viver a contemplação mesma de Deus. A propósito da contemplação da substância primeira, lembremo-lo, Aristóteles afirma que 1 Met., , 8, 1050 a 13-14.
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SABEDORIA TEOLÓGICA
O pensamento (noésis), o que é por si, é o pensamento do que é melhor por si; e o pensamento ao ponto mais alto é pensamento do que é ao ponto mais alto. Ora, a inteligência (nous) se pensa a si mesma segundo uma apreensão do inteligível. Com efeito, ao tocar e ao conhecer o inteligível, a inteligência se torna inteligível, de tal sorte que a inteligência e o inteligível se identificam. Pois a inteligência é o receptáculo do inteligível e da substância (primeiro inteligível), e possuindo-os, ela está em ato. É aí o que a inteligência parece ter de mais divino, e a contemplação é o que há de mais agradável e de mais perfeito.1
O que essa contemplação primeira atinge é, pois, o Bem soberano, que é, ao mesmo tempo, o ser mais inteligível e o ser mais amável: o supremo desejável é idêntico ao supremo inteligível.2 Portanto, podemos concluir que nossa contemplação filosófica olha também o Bem soberano, fim último de tudo o que é. Mas não podemos atingir esse Bem imediatamente pela inteligência. A contemplação humana filosófica não é uma visão intuitiva da substância primeira. Essa não pode ser captada pelo filósofo senão pelas realidades físicas e humanas e nelas: de modo último, pelo movimento ordenado do universo e nele, pelo próprio ato do amor de amizade e o ato de adoração, realizando nas operações humanas uma certa harmonia, uma concórdia, uma unidade na diversidade. Então, esses diversos atos não são mais encarados como meio-termo de uma demonstração que permite afirmar a existência da substância primeira — essa demonstração é suposta adquirida. Mas eles são considerados como que o reflexo e a imagem dessa substância primeira, o efeito próprio e imediato da sua causalidade final. Desta forma, eles tornam presente ao nosso conhecimento filosófico seu fim último (a substância primeira) e, por isso, uma certa contemplação filosófica se torna possível. Evidentemente, essa contemplação não é perfeita, uma vez que ela não atinge o que a atrai, o que lhe dá toda sua significação, senão através de seu efeito, sua imagem. Ao precisarmos que a contemplação filosófica atinge o Bem soberano pelo movimento ordenado do universo e pela unidade realizada no amor de amizade, significamos, por um lado, que essa contemplação alcança necessariamente a própria substância primeira e, por outro lado, que ela não a atinge nem imediatamente nem intuitivamente. Se Aristóteles, no livro da Metafísica, de fato, diz muito pouco sobre o que é contemplado, ao contrário, ele fala longamente da vida contemplativa no livro X da Ética a Nicômacos, isto é, da maneira especial como o filósofo contemplativo atinge sua felicidade perfeita.
1 Met ., , 7, 1072 b 18-25. Citado também acima, p. 216. 2 Cf. ibid ., 1072 a 26-27.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES O Estagirita, ao identificar contemplação filosófica e felicidade perfeita, frisa, com efeito, o paralelismo rigoroso de todas as propriedades da vida contemplativa e as da felicidade perfeita. Essa identificação e esse paralelismo são como as últimas conseqüências práticas do conjunto da sua doutrina filosófica, já que, por um lado, a filosofia primeira é sabedoria, e que, por outro lado, a felicidade é precisamente o exercício da virtude mais excelente, a virtude de sabedoria. A análise do livro X da Ética a Nicômacos nos permite, portanto, precisar o que Aristóteles entende pelo exercício mesmo da contemplação filosófica. O que caracteriza em primeiro lugar essa atividade contemplativa é sua excelência: a contemplação é a melhor, a mais bela, a mais nobre de nossas atividades humanas. Em segundo lugar é sua continuidade: a contemplação é a atividade à qual podemos nos entregar da maneira mais contínua; ela escapa ao cansaço do corpo mais do que qualquer outra operação humana. Seu terceiro caráter é o prazer : ele gera «prazeres admiráveis pela sua pureza e firmeza». Sua quarta qualidade é a independência (autarkeia): as necessidades da vida, que fixam limites tão constrangedores à nossa liberdade de ação, são reduzidas ao mínimo quando se trata da vida contemplativa. O sábio é o homem mais livre e mais independente, pois ninguém pode roubar o que ele contempla. Enfim, a contemplação é amada por si mesma e ela se realiza no repouso: É normal que ela se realize além do todo devir, pois ela é o bem humano absoluto, que finaliza de maneira última todas as atividades humanas. 1 Esses seis caracteres manifestam a grandeza da contemplação. Embora permanecendo humana e adquirida, ela é como que «sobre-humana» e divina: Mas tal vida estará acima da que é «segundo o homem»; pois não é enquanto homem que ele viverá dessa maneira, mas enquanto algo divino está presente nele mesmo. E tanto esse algo divino difere do composto, tanto também seu ato difere daquele que é segundo a outra virtude. Portanto, se o nous é divino com relação ao homem, a vida segundo o nous é divina com relação à vida humana. Não se deve, pois, seguir os que aconselham ao homem, porque é homem, de limitar seu pensamento à coisas humanas, e mortal, à coisas mortais. Mas o homem deve, tanto quanto pode, se imortalizar e tudo fazer para viver segundo [a parte] mais excelente que está nele; pois, mesmo que ela seja pequena pela massa, pela potência e pelo valor ela ultrapassa muito todo o resto. Podemos até pensar que cada homem se identifica com essa parte mesma, uma vez que ela é principal e mais preciosa. Ele se tornaria, então, insensato se não escolhesse a vida que lhe é própria, mas a de um outro. O que dissemos acima aplica-se também agora: o que é próprio a cada um é, por natureza, o que há de mais excelente e mais agradável para ele. Para o homem, é a vida segundo
1 Cf. Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 a 19 - 1177 b 26.
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SABEDORIA TEOLÓGICA o nous, já que, antes de mais nada, é isso o homem. Esta vida, portanto, também é a mais feliz.1
Ela permite ao filósofo levar uma vida independente da vida política, uma vida solitária análoga à de Deus. Uma certa amizade pode, então, nascer entre Deus e o filósofo: Aquele que exerce sua inteligência (o de kata noun energôn) e que a cultiva parece estar no melhor estado e ser muito amado de Deus. Com efeito, se os deuses tomam algum cuidado dos afazeres humanos, como se pensa, será igualmente razoável pensar que eles se comprazem naquilo que há de melhor e apresenta mais afinidade com eles (que não pode ser outra coisa senão o nous), e que recompensam, por seu turno, aqueles que amam e honram isso ao ponto mais alto, como aqueles que têm cuidado das coisas que lhes são caras a si mesmos e agem com retidão e nobreza. Ora, tudo isso pertence ao máximo ao sábio, sem dúvida alguma. Portanto, ele é o homem mais amado por Deus. E esse homem é também o mais feliz, segundo parece. Por conseguinte, dessa forma ainda, o sábio será feliz ao ponto máximo. 2
Eis a excelência da contemplação filosófica, exercício da virtude de sabedoria, que desabrocha na natureza humana o que existe nela de mais divino, o nous. Eis o que aparenta o homem a Deus, desenvolvendo nele o que há de mais íntimo e mais vital, pois a vida humana é, antes de mais nada, a vida segundo o nous. Eis por que Aristóteles não considera nunca a filosofia primeira como uma espécie de ornamento artificial, um luxo que se escolhe por capricho e por acréscimo, ou por fuga. Ela se impõe, pois ela é o que há de mais necessário à felicidade humana perfeita, o que se enraíza no que o homem tem de mais excelente e mais nobre. Rejeitar a sabedoria e a contemplação, julgá-la impossível, para se dedicar exclusivamente às virtudes morais e políticas, ou ainda à única filosofia da natureza, seria menosprezar ou negligenciar o que há de mais divino na operação humana. Por essa concepção tão elevada e tão profunda da filosofia primeira, sabedoria teorética do homem, Aristóteles se liga estreitamente a todo um passado filosófico da Grécia. Mas ele utiliza de modo genial a herança do pensamento tradicional, sabendo apreciá-lo ao seu justo valor, criticá-lo, distanciar-se dele quando necessário e, por isso, dominá-lo e aperfeiçoá-lo. O absoluto da sabedoria entrevisto por Parmênides é salvaguardo ciosamente. Mas esse absoluto é despojado da rigidez unívoca que provinha de todos o dados poéticos e simbólicos que o envolviam. A sabedoria permanece sempre a contemplação do Ser necessário, porém de um Ser necessário apreendido através da ordem e do movimento do universo como o primeiro inteligível e o primeiro desejável. Já não se trata da visão intuitiva e inspirada de um 1 Ibid . 1177 b 26 - 1178 a 8. 2 Ibid ., 9, 1179 a 22-32.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES ser único, fixo e esférico, manifestado ao homem em uma espécie de revelação poética e mística. A filosofia primeira é fruto de um trabalho científico e permanece divina graças à realidade última que ela atinge e que a finaliza. O ideal de Platão, o do filósofo contemplativo levando uma vida divina bem-aventurada, é mantido com o mesmo absoluto. Podemos ainda dizer que esse ideal contemplativo é afirmado com uma precisão, uma exatidão e um rigor maiores ainda do que em Platão. Aristóteles é verdadeiramente o discípulo de seu mestre e herdou dele esse amor da sabedoria. Mas graças a um cuidado de realismo e a um amor da verdade, ele mostrou melhor a solidão e a autonomia soberana do filósofo contemplativo, sua separação e seu modo quase divino de viver. Para Aristóteles, a sabedoria teorética é a única sabedoria no sentido próprio da palavra, precisamente porque ela aperfeiçoa o que há de mais divino no homem: o nous. Para Platão o filósofo contemplativo permanece sempre ordenado à cidade que ele deve normalmente governar e conduzir. Sua contemplação lhe dá como que o direito necessário ao governo real da cidade. O poder lhe pertence, pois ele é o único capaz de apreender a justiça em si, modelo de toda cidade. Para Aristóteles também, só a sabedoria permite governar os outros para seu bem próprio, mas ele distingue com mais nitidez do que Platão a ordem própria do conhecimento teorético e o do conhecimento prático, político, pois ele distingue melhor a inteligência face ao apetite, por um lado, a inteligência face aos sentidos, por outro lado. A sabedoria teorética não se identifica mais com a sabedoria prática, a prudência política. Se o filósofo contemplativo permanece sempre em relação com a cidade, é em razão das necessidades da vida humana, é também em razão das exigências de sua magnanimidade — a cidade pode ter necessidade dele; mais profundamente ainda, é a cidade que se encontra finalizada pela sua contemplação. A cidade humana não possui em si mesma senão um bem comum humano, a concórdia e a paz dos cidadãos entre si; o filósofo contemplativo, por sua vez, permanece imediatamente ordenado ao Bem soberano separado. Entre esses dois bens, a concórdia dos cidadãos e a contemplação do sábio, há diversidade e hierarquia. Ao distinguir com maior nitidez a sabedoria teorética da sabedoria prática (prudência política), Aristóteles mostra melhor a excelência da filosofia primeira e sua modalidade especial. Ela é o bem mais eminente do homem, mas ela não é o único desenvolvimento autêntico do homem. Se ela é primeira, o que há de mais nobre, de mais excelente para o homem, ela não é a totalidade das perfeições humanas. Conscientemente, ela se separa de muitos bens humanos, para ser mais tipicamente ela mesma e satisfazer, na sua linha, suas exigências próprias. A sabedoria platônica parece não ter percebido com a mesma agudeza essa exigência de separação. Ela guarda uma maior continuidade, por um lado, com a dialética, por outro lado, com a vida política moral. Decerto, ela é o termo último de todas as pesquisas dialéticas, de todos os esforços da vida moral virtuosa; mas entre essas pesquisas, esses esforços e esse termo, será que não há sempre certas relações mútuas, uma continuidade pelas Idéias? Será que essa sabedoria não permanece sempre relativa às formas e no prolongamento delas? A sabedoria platônica tem, portanto, uma tendência muito mais 232
SABEDORIA TEOLÓGICA «totalizante», poderemos dizer; ela se apresenta como que a síntese das perfeições humanas que ela ordena e hierarquiza. Ela é para estas como que a chave de abóbada. Mas o que ela ganha em plenitude, em extensão, não o perde em acuidade e em penetração da análise científica e, logo, em definitivo, em pureza contemplativa? Por mais nobre e rica que seja a contemplação exprimida no Banquete e na República, ela se completa em uma certa experiência estética do «Bem-em-si», do «Belo-em-si», do «Uno-em-si». A experiência estética parece, então, diminuir a penetração e a pureza do olhar contemplativo. O olhar estético sobre o «Belo-em-si» não pode purificar o olhar contemplativo do filósofo, pois essa experiência estética não pode unir eficazmente e realmente o espírito do sábio à realidade divina. Decerto, essa modalidade estética torna a contemplação platônica mais sedutora que a de Aristóteles; se a julgamos do ponto de vista filosófico unicamente, ela parece ser menos perfeita, pois ela permanece ao nível da forma e não penetra na realidade última no que ela tem de mais íntimo. A grandíssima pureza intelectual da contemplação aristotélica lhe permite tender unicamente para aquele que é «contemplação da contemplação», «olhar puro do olhar puro». Podemos, pois, resumir o encaminhamento do pensamento platônico assim: da intuição das formas ideais à contemplação-experiência estética do «Bem-em-si», do «Belo-em-si», do «Uno-em-si» por meio da dialética formal ascendente e descendente das forma ideais. Ao contrário, o do pensamento aristotélico: da experiência de o que é à contemplação (puro olhar) da substância primeira, através da ordem e do movimento do universo, por meio da pesquisa científica das diversas causas de o-que-é considerado enquanto ser. É verdadeiramente graças à apreensão analógica de o-que-é que a sabedoria aristotélica, ao mesmo tempo que ela guarda um caráter muito experimental e muito realista, se completa na contemplação filosófica. Partindo da experiência de o que é, ela se eleva à contemplação da contemplação substancial, com a perfeita consciência de atingir uma realidade separada, que pertence a uma outra ordem que o universo físico e é fim último deste. Segundo o estado de seus escritos, Aristóteles não considerou o problema da Criação livre do mundo físico pela Causa primeira; ele não explicita todas as conseqüências dos princípios de sua própria doutrina. Em vez de precisar que a causalidade última não pode ser senão uma causalidade criadora, transcendente e soberanamente livre, ele para na causalidade final da primeira substância separada, soberanamente desejável e amável. Eis por que, provavelmente, ela não explicitou perfeitamente o que é a contemplação filosófica. Tudo quanto ele diz permanece verdadeiro, porém requer um último complemento.
N.B. Nos livros M e N, Aristóteles critica os outros filósofos na sua aproximação do absoluto. Não queremos analisar aqui esses dois grandes livros de crítica, que não clareiam diretamente a estrutura do pensamento de Aristóteles. Eles nos mostram negativamente a potência crítica de sua filosofia. É freqüentemente através desse aspecto negativo que descobrimos melhor o irascível do
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Filósofo com relação aos erros. Estes são insuportáveis para ele em razão de seu amor pela verdade. É isso que dá a esses dois livros seu interesse todo especial: «Já que examinamos se existe alguém imóvel e eterno fora das substâncias sensíveis, e se existe, o que ele é, é preciso primeiro estudar o que foi dito por outros, de tal forma que se eles disserem algo de modo que não convém, não sejamos escravizados aos mesmos [erros]. E se uma doutrina é comum a eles e a nós, não ficaremos irritados de modo algum; com efeito, deve-se estimar-se feliz se alguém diz melhor certas coisas e outros não pior».1 Aristóteles mostra, então, «que existem duas opiniões» a respeito daquilo que ele está estudando: «Alguns dizem que os [seres] matemáticos são substânci as (...), e outros que as Idéias [são substâncias]».2 Para Aristóteles, as matemáticas são finalizadas pela procura do belo, mas elas não podem nos fazer descobrir o bem, verdadeira finalidade do homem. A confusão constante do bem e do belo provém, portanto, de uma confusão do conhecimento filosófico com as ciências matemáticas: «Uma vez que o bem e o belo são outros (um está sempre na ação, o belo está também nas realidades imóveis), aqueles que pretendem que as ciências matemáticas não tratam nem do belo nem do bem se enganam».3 Aristóteles não rejeita as matemáticas (que diferem das Idéias), ele não nega sua grandeza e sua nobreza, mas o que o irrita é a confusão entre a filosofia primeira e essas ciências matemáticas, entre o bem e o belo. Quanto às formas ideais, Aristóteles as rejeita sem piedade.4 É sobretudo com relação a essa teoria que ele exerce seu irascível, mostrando como «ela gera uma multidão de dificuldades»!
1 Met ., M, 1, 1076 a 10-16. 2 Ibid ., 1076 a 17-19. 3 Ibid ., 3, 1078 a 31-34. 4 Cf. ibid ., 4-5, 1078 b 7 seg.
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CAPÍTULO IV
A LÓGICA
A recusa das Idéias e da dialética que as ordenava, em prol da experiência das realidades físicas, conduziu Aristóteles à descoberta indutiva dos princípios e das causas próprias de oque-é-movido, de o-que-se-move, de o-que-é, e, a partir da descoberta dos princípios próprios, a uma verdadeira pesquisa científica das propriedades das realidades experimentadas (as realidades físicas, os viventes, o homem). Ele a expõe no Organon, seu tratado de lógica. Com efeito, ao criticar as Idéias de Platão, considerando-as não reais, Aristóteles devia necessariamente colocar o problema de nossa maneira de conhecer as realidades físicas e vivas de nosso universo, e sobretudo as operações do homem, de nossa maneira de apreender o que é a inteligência do homem e de precisar o que é Deus, cuja existência é afirmada pelas tradições religiosas. Se se rejeita as «formas em si» e a dialética que as ordena, como descobrir uma verdadeira filosofia científica? Que via filosófica se deve seguir? Que método utilizar, capaz de ajudar a permanecer firme e verdadeiro no conhecimento filosófico das realidades físicas, dos viventes, das operações humanas ...? Com efeito, na medida em que se considera que nossa inteligência é intuitiva e capta adequadamente o que é, nossa maneira de conhecer corresponde ao modo de ser do que é conhecido e a lógica não tem razão de ser. É de fato a concepção de Platão, para quem a inteligência capta intuitivamente e imediatamente as «formas em si», segundo um modo de reminiscência : a alma se lembra daquilo que conheceu quando estava separada do corpo, e a inteligência vincula progressivamente entre si as diversas «formas em si», segundo uma certa ordem dialética. Esta ordem dialética manifesta de novo uma certa apreensão intuitiva. Portanto, o problema de uma lógica, fruto próprio de um conhecimento reflexivo e distinto do conhecimento filosófico, não existia para Platão. Ao contrário, recusando essa apreensão intuitiva primordial, Aristóteles considera que nossa inteligência em sua atividade depende de nossos conhecimentos sensíveis — o que a própria experiência do desenvolvimento de nosso conhecimento intelectual nos manifesta — , reconhecendo, por outra parte, o desejo natural de nossa inteligência de conhecer as causas próprias do que ela experimenta, isto é, de ultrapassar a representação da imagem para penetrar no mais íntimo de o-que-é, de o-que-émovido, de o-que-se-move. Aristóteles especifica que se somos capazes de conhecer intelectualmente o real tal como ele é, no entanto, nós o captamos segundo um modo especial, um modo abstrato, um modo
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES universal, que implica uma análise e uma certa busca. Nossa inteligência, com efeito, se desenvolve progressivamente, segundo um certo devir. Podemos discernir certos momentos próprios deste devir, sem os separar. Após a experiência, há uma primeira apreensão intelectual que atinge a «qüididade» das realidades físicas; este primeiro conhecimento apreende os elementos simples e indivisíveis da realidade existente. Há um segundo modo de conhecimento que, utilizando o primeiro, pode enunciar e julgar «o-que-é». Este segundo modo de conhecimento é complexo, ele implica composição e divisão, afirmação e negação. Enfim, há um terceiro modo de conhecimento que, valendo-se dos dois precedentes, raciocina, discorre, explicita os vínculos que existem entre as diversas proposições e mostra suas conseqüências. É bem evidente que este terceiro modo é o mais complexo: é aí que compreendemos melhor a diferença entre o modo de ser da realidade considerada na sua existência e o desta mesma realidade considerada enquanto conhecida. Por essa razão, em relação a esse terceiro modo de conhecimento, o raciocínio, é que um estudo lógico se impõe em primeiro lugar. Seu objetivo é ordenar a complexidade dos raciocínios para impedi-los de desviar e chegar a certas conclusões falsas. Portanto, o fato de reconhecer a experiência humana como fonte de nosso conhecimento intelectual e de manter as exigências próprias dele — exigência de captar as causas e os princípios próprios da realidade conhecida — obriga o Filósofo a elaborar o Organon. Nesta elaboração, Aristóteles inova e se mostra verdadeiramente o pai da lógica. Evidentemente, poderíamos dizer que os métodos de pesquisa de Sócrates, a dialética de Platão, dos Eleatas e dos Sofistas já são lógica: portanto, Aristóteles não fez nada a não ser prosseguir um esforço já começado! 1 Não se pode negar que a lógica de Aristóteles pressupõe certos elementos. Vários predecessores de Aristóteles esforçaram-se por procurar métodos capazes de definir e de compreender corretamente a verdade. Porém, é necessário reconhecer o estado muito embrionário dessas pesquisas comparadas ao Organon de Aristóteles. Ele é, de fato, o primeiro que tomou filosoficamente consciência da distinção profunda entre o conhecimento filosófico e a lógica. De resto, é fácil compreender isto, já que, para captar com precisão a distinção entre a filosofia e a lógica, é preciso ter discernido que o-que-é é dito de diversas maneiras: como substância e segundo as diversas categorias, como ato e potência, como significando que uma proposição é verdadeira. 2 É preciso ter compreendido a diferença entre o-que-é e o universal, fruto próprio de nossa maneira de conhecer. Em outras palavras, o que é atingido do real pela nossa inteligência, pelo próprio fato de ser conhecido, existe em nossa inteligência segundo um modo especial que não é sua maneira real de existir. Esta distinção supõe compreendido que o-que-é é dito de diversas maneiras. Ora, precisamente, Aristóteles afirma sempre que sua grande descoberta consiste em ter entendido que o ser é dito de diversas maneiras. Sem esta descoberta, a lógica não pode senão identificar-se com a 1 Cf. Refutações sofísticas, 34, 183 b 15 seg. 2 Cf. Met ., , 7, 1017 a 31 seg.; , 10, 1051 a 34; , 8, 1065 a 22 seg.
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LÓGICA filosofia ou integrar-se nela como uma das suas partes essenciais e orgânicas; para o Estagirita, ela não passa de um organon, um instrumento a serviço do pensamento científico.
1. O raciocínio dialético: os Tópicos O primeiro livro da lógica de Aristóteles (conforme a ordem genética) parece ser o dos Tópicos, se aceitamos a conclusão dos filólogos. Tal conclusão, de resto, parece correta, uma vez que essa obra trata da atividade de nossa razão engajada numa procura intelectual em meio às diversas opiniões dos homens, procura que se serve dos argumentos mais comuns. Nos Tópicos, com efeito, o Filósofo quer elaborar um método graças ao qual se tenha condição de «argumentar sobre todo problema proposto, partindo de premissas prováveis e de evitar, quando afirmamos um argumento, de nada dizer que seja contrário a ele». 1 É um método que permite desempenhar com êxito em toda discussão dialética o papel de «questionador» e de «respondente». Ele utiliza proposições prováveis. Aristóteles precisa que «a proposição dialética é uma interrogação provável, quer para todos, quer para a maioria, quer para os sábios, e dentro destes, quer para todos, quer para a maioria, quer para os mais notáveis...». 2 O raciocínio que se apóia sobre tais proposições ou que termina nelas é um raciocínio dialético — quer se trate de uma indução, quer de um silogismo. É propriamente deste tipo de raciocínio que o Filósofo quer tratar nos Tópicos. Após ter lembrado o que se deve entender por silogismo, por opiniões prováveis, silogismo erístico,3 paralogismos, o Filósofo precisa a utilidade dessa dialética. Essa pode ser utilizada: como exercício para tornar o espírito capaz de argumentar, como meio de contato com os homens, revelando suas opiniões costumeiras, como instrumento filosófico para pôr os problemas em toda sua agudeza — e por isso, pode-se dizer que ela ajuda a descobrir os princípios próprios das ciências.4 A utilidade da argumentação dialética, portanto, é muito vasta, quase infinita: manter a flexibilidade de nossa razão e aumentar sua virtuosidade; facilitar os contatos com os outros e permitir utilizar estes contatos de maneira mais inteligente, o que é muito importante para aumentar nossos campos de investigação — poderemos acrescentar que ela permite elaborar textos inteligentes e de se valer deles com inteligência; tornar o espírito atento ao captar fortemente os argumentos «pró» e «contra» — situar uma dificuldade de modo inteligente, isto já é quase resolvê-la; aguçar nossa inteligência na apreensão dos princípios próprios das ciências. É todo o halo pré-científico de nossa vida intelectual que pode ser colocado sob a jurisdição desse método, para ser 1
Tópicos, I, 1, 100 a 18-21. Cf. E. Weil, La place de la logique dans la pensée aristotélicienne, in Revue de métaphysique et de morale, 1951, nº 3, pp. 283-315. 2 Tópicos, 10, 104 a 8-10. Cf. ibid ., 104 a 12 seg. 3 «É erístico o silogismo que parte de opiniões que, embora pareçam prováveis, na realidade não o são» ( Ibid ., 1, 100 b 24). 4 Cf. ibid., 2, 101 a 25 - 101 b 4.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES organizado de modo mais técnico. Portanto, Aristóteles nos ensina aí um método lógico do trabalho pré-filosófico. Para que os raciocínios dialéticos sejam facilmente utilizáveis e se tornem um meio eficaz de pesquisa, trata-se de os ordenar conforme certas grandes classificações. Isso é possível precisamente porque esses raciocínios permanecem no provável e, logo, não se apoiam senão sobre princípios comuns e extrínsecos. Quais serão essas classificações? Primeiro, Aristóteles faz apelo aos quatro predicáveis: a definição, o próprio, o gênero, o acidente, já que toda proposição e toda questão (todo problema) reduzem-se necessariamente a um desses predicáveis e que, por outro lado, todos os argumentos dialéticos e todos os sujeitos do silogismo se reduzem necessariamente a proposições e a perguntas. Os elementos de toda a dialética, portanto, são esses quatro predicáveis (a diferença, de fato, reduz-se à definição).1 Mas Aristóteles faz apelo também às dez categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, possessão, ação, paixão, pois o acidente, o gênero, o próprio, a definição sempre serão em uma dessa categorias, dado que toda proposição formada por um desses predicáveis significa uma das categorias. 2 Quanto aos instrumentos mediante os quais os raciocínios procedem, eles são quatro: «A aquisição e a escolha das proposições, o poder de distinguir em quantos sentidos uma expressão é tomada, a descoberta das diferenças, o exame da identidade». 3 Estes instrumentos servem a constituir os «lugares» (topoi). Esta última expressão é muito importante, central nos Tópicos: praticamente todos os livros dos Tópicos (salvo o primeiro e o último) são dedicados à exposição dos diversos «lugares». Os livros II e III consideram os problemas relativos ao acidente; os livros IV e V, os do gênero e da propriedade; os livros VI e VII, os da definição. Porém, se Aristóteles procura organizar nos Tópicos os diversos lugares dialéticos, ele não dá uma definição deles. É na Retórica que a encontramos: os «lugares» ou «lugares comuns» são aquilo em que coincidem uma multidão de raciocínios oratórios. 4 Se substituirmos «oratórios» por «dialéticos», teremos uma definição dos lugares dialéticos: portanto, são as fontes comuns de uma multidão de raciocínios. Por isso, permitem certas classificações lógicas. O primeiro lugar que ressalva Aristóteles é o seguinte: olhar se o adversário destinou como acidente a um sujeito um atributo que lhe pertence de outra forma. Isso permite despistar o erro cometido de modo comum e que consiste a atribuir o gênero como se ele fosse um acidente 5...
1 Cf. ibid., 4, 101 b 11-36. 2 Cf. ibid ., 9, 103 b 20 - 104 a 2. 3 Ibid ., 13, 105 a 21-25; cf. ibid ., 13-18, 105 a 20 - 108 b 33. 4 Cf. op. cit ., I, 2, 1358 a 10 seg.; II, 18, 1391 b 7 seg. 5 Cf. Tópicos, II, 2, 109 a 34-36.
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LÓGICA Depois de ter mostrado, assim, os diversos elementos necessários a toda discussão dialética fecunda, Aristóteles aborda com o livro VIII a ordem ( taxis) e a formação das questões e a maneira como se deve responder, tratando assim do exercício ordenado e metódico da discussão dialética. Então, ele dá regras tais como estas: «Nas discussões dialéticas, é necessário utilizar o silogismo antes com os dialéticos do que com o vulgar; ao contrário, é antes a indução que se deve utilizar com o vulgar». 1 «Não se deve interrogar sobre a conclusão; do contrário, no caso em que o adversário a negar, parece-se não ter feito raciocínio algum».2 «Aquele que interroga sobre uma só coisa durante muito tempo é um pesquisador ruim».3
2. Os falsos raciocínios: Refutações sofísticas Como apêndice aos Tópicos, é preciso assinalar as Refutações sofísticas. As refutações sofísticas, com efeito, são «refutações» somente em aparência. Aos sofistas, que usam de falsos argumentos, que têm somente uma semelhança de verdade, é necessário responder com suas próprias armas. Portanto, esse livro é um estudo dos falsos raciocínios em geral, dos «paralogismos»... Aristóteles começa assim essa obra: É manifesto que certos raciocínios são [verdadeiramente raciocínios], enquanto outros parecem ser tais, embora não o sejam. Como acontece também para outras coisas, por causa de uma certa semelhança, assim é para os argumentos. Certos estão em um bom estado, outros parecem estar assim, inchando-se e enfeitando-se a si mesmos, à maneira das vítimas oferecidas pelas tribos nos sacrifícios; uns são belos pela sua beleza natural, outros parecem belos pela maquilhagem. Da mesma forma acontece com as realidades inanimadas: certas são verdadeiramente de ouro ou de prata, outras não o são, mas parecem ser tais segundo a sensação (...). Da mesma forma é que raciocínio e refutação por um lado existem, por outro lado não existem, mas parecem existir por causa da inexperiência.4
Há essencialmente dois tipos de sofismas: os que provém do próprio discurso (sofismas in dictione) e os que têm uma outra causa (sofismas extra dictionem).5 Os sofismas in dictione são como que seis «lugares». Aristóteles os estabelece por indução e pela análise da linguagem: a homonimia, a ambigüidade numa simples palavra; a 1 Ibid ., VIII, 2, 157 a 18-20. 2 Ibid., 158 a 7-8. 3 Ibid., 158 a 25. 4 Refutações sofísticas, 1, 164 a 23 - 164 b 26. 5 Cf ibid ., 4-5, 165 b 23 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES anfibolia, a ambigüidade na estrutura da frase; a composição que une erroneamente palavras; a divisão que separa erroneamente certas palavras; a acentuação que provoca uma falsa interpretação; a forma da expressão. Os sofismas extra dictionem são sete: em razão do acidente, quando se acredita que um atributo pertence da mesma forma à coisa e ao seu acidente; quando uma expressão, tomada de um certo viés, é empregada de maneira absoluta; em razão da ignorância da refutação; em razão da conseqüência, quando se supõe a relação da conseqüência como suscetível à recíproca; em razão da petição do princípio; quando se coloca como causa o que não o é; quando se reúne várias perguntas em uma só. Esta classificação, uma vez que compete aos erros, não pode ter um rigor absoluto. Não há ordem nos erros; por isso, certos falsos argumentos podem ser classificados sob diversos tipos. Esses dois livros do Organon, os Tópicos e as Refutações sofísticas, nos mostram bem o modo muito próprio do conhecimento intelectual humano. Este compara e distingue, ele aproxima e opõe. Ele não pode progredir na procura da verdade senão dessa forma, já que não tem intuições compreensivas da realidade que experimenta, o que lhe permitiria contemplar ao captá-la e não apelar para raciocínio algum, para discussão alguma, para atribuição alguma. Então, não haveria mais nada a não ser um puro olhar, penetrando no mais íntimo da realidade experimentada. Nosso conhecimento intelectual é por demais imperfeito para ser tão direto. Ele se desenvolve segundo um modo de comparação, de composição e de divisão que implica todo um encaminhamento de aproximações sucessivas, de universalizações, de precisões e de distinções. É preciso sempre captar aquilo no qual tal realidade é fundamentalmente unida às outras, e o que a distingue delas. Acrescentemos ainda que, para se comunicar com os demais, nosso conhecimento deve utilizar certos signos, certos símbolos, palavras da linguagem, o que torna nossa vida intelectual terrivelmente pesada ainda e ocasiona novas complicações. A linguagem e a escrita implicam novas potencialidades, várias possibilidades de interpretação. Na sua busca da verdade, o homem não pode isolar-se totalmente e não considerar senão sua própria experiência; deve levar em conta, julgando-o no seu justo valor, o que os demais homens disseram, o que pensaram e pensam sobre tal ou qual assunto. É todo o aspecto comunitário de nossa vida intelectual; ele condiciona de tal maneira o exercício e o desenvolvimento de nossos conhecimentos filosóficos que, ordinariamente, não podemos nunca captar perfeitamente, de modo penetrante e crítico, tal ou qual verdade filosófica sem interrogar o pensamento dos outros. Esse duplo caráter relativo de nosso conhecimento intelectual — este conhece comparando e comunicando-se por signos — requer esse método específico dos primeiros livros do Organon, a fim de evitar os erros que arriscam sempre infiltrar-se e viciar todo conhecimento humano. Com efeito, o homem corre sempre o risco de não mais pensar 240
LÓGICA pessoalmente, pensar «como os demais», sob sua influência. Ele sempre corre o risco de considerar que ele não passa de um «momento» de uma dialética, um elo de uma grande corrente de pensamento. Sua capacidade de contemplação, pois, é esquecida ou desconhecida. Então, reagindo contra essa tentação de não ser mais que um «momento» de uma dialética, ele se isola completamente no seu próprio pensamento, na sua torre de marfim, esquecendo o diálogo humano. Se ele contempla verdadeiramente, então, ele dialoga com Aquele cuja vida é contemplação, e este diálogo silencioso basta. Mas se esse diálogo não existe, se em um esforço laborioso o homem solitário para no meio do caminho, ele se fecha no seu egoísmo tirânico; torna-se rapidamente como que uma animal acuado. A lógica é uma arte que deve cooperar com a natureza para equilibrar essas duas forças antinômicas de nossa inteligência humana. Enquanto humana, esta nos atrai para os demais homens; enquanto inteligência, ela nos atrai para a solidão. O primeiro ensinamento dessa arte consiste em nos lembrar a necessidade de compor, de comparar, portanto, de dialogar para enriquecer nossa experiência com a dos outros. Mas, ao mesmo tempo, ela nos mostra a necessidade de ultrapassar a autoridade dos homens em matéria de conhecimento e sobretudo de conhecimento teorético. Vê-se imediatamente a distância que separa os Tópicos de Aristóteles da dialética dos sofistas. Se é verdade que os dois métodos fundamentam-se sobre a autoridade e desembocam no verosímil, porém, para os sofistas, o verosímil identifica-se com o verdadeiro: não há distinção entre verdade e opinião coletiva. Para Aristóteles, ao contrário, essa distinção é primordial, ela se impõe. Só ela permite o acesso à verdadeira ciência, sem negligenciar os esboços e as hesitações humanas. Segundo o Filósofo, se esse método de autoridade não é o método de raciocínio mais perfeito, no entanto, tem seu valor original: um valor pré-científico. Com efeito, não nos desvela a realidade profunda de o que é, mas nos faz pressenti-la, colocando-nos em presença das diversas opiniões que a concernem e permitindonos apreendê-la mais acertadamente. O mérito próprio de Aristóteles nessa matéria foi de ter discernido entre opinião e verdade, entre método de autoridade e método científico. Nem por isso o Filósofo separa opinião e verdade, tampouco isola um do outro, opinião e verdade, método de autoridade e método científico, mas os ordena um ao outro e os hierarquiza. O método dialético, embora não seja imediatamente ordenado à verdade, porém nos prepara a ela. Eis por que, aos olhos de Aristóteles, não se deve confundir a dialética com a erística e a sofística. A dialética é uma arte capaz de nos orientar para a apreensão da verdade. A erística e a sofística nos afastam da verdade, pois ambas são falsas e não dizem nada da verdade. A erística, para Aristóteles, persegue como primeiro alvo a vitória na disputa. A sofística mira a glória ou a riqueza. 1 Entre o dialético e aquele que usa erística, há a mesma oposição que entre o geómetra e aquele que constrói falsas figuras, uma vez que o discurso sofístico parte de premissas que não têm senão a aparência de opiniões e que o discurso dialético parte de verdadeiras 1 Cf. Ref. sof., 11, 171 b 25 seg.; 1, 165 a 19 seg.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES opiniões.1 Se o dialético deve lutar, atacar e defender-se, é para desmascarar os erros e permitir à verdade se manifestar; o outro (o erístico) disputa por disputar. É o amor da luta e não da verdade que o guia. Se o objetivo derradeiro da dialética é ajudar a ciência e a filosofia na apreensão de seus princípios próprios, não se quer dizer que a ciência e a filosofia baseiam-se, afinal, sobre a dialética. Geneticamente, do ponto de vista da aquisição dos princípios, podemos dizer que a dialética desempenha um papel primordial. Mas, como teremos a oportunidade de precisar, os princípios nos são propriamente dados, como princípios, por um conhecimento especial, anterior — do ponto de vista da natureza — a todo raciocínio, portanto, a toda dialética. 2
3. O raciocínio: Os Primeiros Analíticos
Em razão dessa distinção muito fortemente marcada entre dialética e ciência, após ter tratado do método dialético nos Tópicos, Aristóteles devia tratar do método propriamente científico. De fato, é o que ele realiza nos Analíticos. Nos Primeiros Analíticos, ele estuda o raciocínio considerado em si mesmo; nos Segundos Analíticos, ele considera o raciocínio em sua função privilegiada e perfeita, a demonstração, causa do conhecimento científico. É verdadeiramente a demonstração que é o sujeito próprio dos Analíticos 3 e seu objetivo é nos permitir efetuar corretamente as demonstrações. Todo o estudo dos Primeiros Analíticos é ordenado ao dos Segundos Analíticos, uma vez que é verdadeiramente o desejo de precisar as condições fundamentais do conhecimento científico que orienta essa pesquisas. Antes de estabelecer as regras do silogismo e de mostrar o que é a indução, os dois grandes movimentos de nossa razão, no início dos Primeiros Analíticos, Aristóteles estuda os elementos de todo silogismo: as premissas e os termos. «A premissa ( protasis) é o discurso que afirma ou nega algo de algo». 4 Portanto, é uma proposição, mas que é chamada de premissa enquanto é o próprio princípio do silogismo. A premissa é quer universal, quer particular, quer indefinida. «Chamo de universal , precisa o Filósofo, a atribuição ou a não1 Cf. ibid ., 11, 171 b 35 seg.; 2 Seria interessante notar a
Tópicos, I, 1, 101 a 5 seg. diferença que Aristóteles sublinha entre a dialética e a retórica: «A retórica é correlativa à dialética. Uma e outra dizem respeito a questões que são de certa forma da competência de todos e não competem de maneira alguma a uma ciência particular» ( Retórica, I, 1, 1354 a 1-3). A retórica é como que um rebento da dialética. Ela é uma parte da dialética e é semelhante a ela, pois ambas têm como função fornecer argumentos. Para denotar suas diferenças, Aristóteles frisa: «O que se chama indução e silogismo na dialética, é exemplo e entimema na retórica» (cf. Primeiros Analíticos, II, 23, 68 b 8 seg. e 24, 68 b 37 seg. onde Aristóteles trata sucessivamente da indução e do exemplo). Isso nos manifesta seu alvo diferente: a dialética está orientada para o desenvolvimento de nosso conhecimento intelectual teorético; a retórica, para o desenvolvimento de nosso conhecimento prático. 3 Cf. Primeiros Analíticos, I, 1, 24 a 10-11. 4 Ibid ., 24 a 16.
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LÓGICA atribuição a um sujeito tomado universalmente», isto é, o predicado está contido na totalidade do sujeito: não se pode encontrar no sujeito nenhuma parte de que não se pode afirmar; « particular , a atribuição ou a não-atribuição a um sujeito tomado particularmente (...); indefinida, a atribuição ou a não-atribuição feita sem indicação de universalidade ou de particularidade».1 A premissa considerada aqui é a premissa silogística, que pode ser dialética ou demonstrativa. Somente nos Segundos Analíticos será estudada explicitamente a premissa demonstrativa. O termo é o elemento da premissa, isto é, o predicado e o sujeito do qual esse é afirmado, e isso independentemente da afirmação ou da negação de seu existir. 2 Porém, não é suficiente distinguir as premissas universal, particular e indefinida. É preciso ainda especificar suas diversas modalidades: certas premissas não exprimem senão o fato de existir, outras uma atribuição necessária, outras uma atribuição contingente. Enfim, elas são quer afirmativas, quer negativas. 3 Isso permite ao Filósofo especificar em que caso os termos das premissas podem ser convertíveis. A conversão consiste em transpor os termos de uma mesma proposição, sem lhes mudar a qualidade. O sujeito se torna o predicado e vice-versa. Por exemplo, na atribuição pura universal, os termos da premissa negativa são necessariamente convertíveis. 4 O silogismo O silogismo é um discurso no qual, postas certas coisas, algo outro que esses dados resulta necessariamente pelo único fato desses dados.5
O silogismo será dito «perfeito», quando não precisar senão do que é posto nas premissas para que a necessidade da conclusão seja evidente. Será dito imperfeito, se precisar de um ou vários elementos além das premissas. De maneira mais precisa ainda, Aristóteles define o silogismo assim: Quando três termos estão entre si em relações tais que o menor é contido na totalidade do médio, e o médio contido, ou não contido, na totalidade do maior, então, há necessariamente entre os extremos silogismo perfeito.6
1 Ibid ., 24 a 18-22., 2 Cf. ibid ., 24 b 16-18. 3 Cf. ibid ., 2, 25 a 1-5. 4 Ibid ., 2, 25 a 5-10. 5 Ibid., 1, 24 b 18-20. 6 Ibid., 4, 25 b 32-35.
Em outras palavras: «Se A é afirmado de todo B, e B de todo C, necessariamente A é afirmado de todo C» (ibid ., 25 b 37-39).
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Esses três termos se definem segundo sua relação recíproca, no sentido em que um dos termos possui uma posição intermediária entre os dois extremos. Pois esse termo intermediário (termo médio) contém um dos termos extremos em sua totalidade e está contido em sua totalidade pelo outro, e é precisamente graças a essa posição que ele pode unir os dois termos extremos que, sem ele, não teriam pontos de contato e permaneceriam exteriores um ao outro. Graças a essa «mediação» do termo médio, pode-se unir esses termos extremos e, por isso, se conclui algo novo. Portanto, há uma verdadeira descoberta: um vínculo desconhecido ou não suspeito entre os dois termos extremos então é claramente manifestado. Concluindo necessariamente, a inteligência adere a uma nova proposição que é verdadeira, na medida em que ela está em conformidade com as duas proposições anteriores (as premissas). Esses três termos constituem de fato duas premissas: uma, a que contém o grande termo é chamada de maior , e a outra, a que contém o pequeno termo, é chamada de menor . A partir dessas primeiras proposições, a maior e a menor, graças ao termo médio, a inteligência deduz uma nova proposição: a conclusão, contida somente como em potência nas premissas. Essa dedução, ou se se prefere, essa inferência não pode ser feita, evidentemente, a não ser a partir de duas proposições unidas entre si por um elemento comum: o termo médio. Em outras palavras, de duas proposições distintas e sem vínculo comum algum, não se poderia deduzir nada. O termo médio é a verdadeira causa da conclusão, é ele que explica porque e de que maneira o predicado está unido ao sujeito na conclusão. Quando falamos de «causa» em relação ao termo médio, é preciso entender bem que se trata de uma causalidade ao nível da intencionalidade e não ao nível do existir ou do devir físico. O termo «causa», portanto, é tomado aqui de forma muito analógica. Compreende-se, então, como a conclusão, a proposição inferida a partir das duas premissas, não é uma simples proposição, mas uma proposição justificada, vinculada pelo termo médio a sua própria causa intencional. O termo médio expressa a qüididade, quer do sujeito, quer do atributo da conclusão, mostrando por isso por que tal atributo inere a tal sujeito. É porque não conhecemos intuitivamente a qüididade da realidade que precisamos desse processo, para nos permitir descobrir as suas propriedades. Para melhor entender o papel do termo médio e captar a originalidade de Aristóteles na procura da técnica da inferência no raciocínio, basta considerar a crítica que ele faz ao método de divisão de Platão. Esse método é incapaz de chegar a um resultado, pois ele não emprega verdadeiros termos médios. 1 Com efeito, tal método é inspirado por um ideal de 1 Cf. Primeiros
Analíticos, I, 31, 46 a 31 seg.; Segundos Analíticos, II, 5, 91 b 12; 13, 96 b 25. Eis como procede a divisão de Platão: todos os seres são animados ou inanimados; logo, o homem é um ser animado... Todo animal é terrestre ou aquático; portanto, o homem é um animal terrestre, etc... Na realidade, essas conclusões não são verdadeiras conclusões. Se o interlocutor as aceita, é por boa vontade, pois, na realidade, não se pode concluir nada. O termo médio: «todos os seres», «todo animal» é demasiado geral e não pode explicar nada. Cf. Partes dos animais, I, 3, 642 b 16 seg. Aristóteles dá igualmente dois outros motivos que legitimam sua atitude crítica: 1. as classificações de Platão não correspondem ao real. Elas desmembram os gêneros,
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LÓGICA simetria que se realiza, de fato, pela privação; ele não pode prosseguir, senão seguindo um só de seus membros: «Não há diferença da privação, enquanto privação». Portanto, esse método da dicotomia, inspirado pela negação do atributo da proposição precedente, não pode chegar ao termo por si mesmo. Eis por que se pode dizer que a divisão platônica não é senão um «silogismo impotente», fraco, sem alma. Uma vez que o termo médio é o elemento principal do silogismo, é normal que, conforme o modo como ele exerce sua função, se possa discernir diversas formas ou, como se diz habitualmente, diversas «figuras» de silogismo. Ora, precisamente, a maneira como ele exerce sua função está em relação imediata com a situação que ele ocupa relativamente aos dois extremos. Segundo essa situação particular, com efeito, ele desempenha de modo mais ou menos perfeito seu papel de termo médio. Quando, de fato, ele ocupa verdadeiramente a situação própria do termo médio, isto é, quando é sujeito do «grande termo» na maior e predicado do «pequeno termo» na menor, estamos em presença da primeira figura de silogismo, a que é imediatamente evidente. 1 Quando o termo médio é atributo dos dois termos, isto é, quando, na maior assim como na menor, os dois termos extremos são sujeitos e o termo médio atributo, então, estamos em presença da segunda figura. 2 Quando o termo médio é sujeito dos dois outros, enfim, é a terceira figura. 3 Já que todo silogismo não implica senão três termos, não se pode imaginar uma outra situação para o termo médio. O que permite a Aristóteles afirmar que há somente três figuras de silogismo. Essas três figuras são, de resto, de perfeição desigual: somente a primeira é perfeita. 4 As duas outras podem ser reduzidas a ela por uma certa «conversão», isto é, mudando a situação dos termos da proposição; fazer com que o sujeito se torne o predicado e o predicado o sujeito, sem por isso modificar o valor das proposições. Visto que as premissas dos silogismos são universais, particulares ou indeterminadas, e que essas são ainda afirmativas ou negativas, cumpre precisar quais os silogismos válidos segundo as diversas figuras, conforme tal ou tal premissa utilizada. Aristóteles obtém assim quatorze espécies de silogismos que têm conclusões válidas. 5 A esse diversos silogismos ele reduz certos modos indiretos de silogismos considerados segundo as três figuras 6 e mostra porque as diferenças utilizadas não são as diferenças essenciais, mas simples acidentes. 2. Elas conduzem a complicações inúteis e a repetições incessantes. 1 Cf. op. cit ., I, 4, 26 a 22 seg. 2 Cf. ibid ., 5, 26 b 34 seg. 3 Cf. ibid ., 6, 28 a 10 seg. 4 «É evidente que todos os silogismos que entram nessa figura são perfeitos (pois todos recebem seu aperfeiçoamento das premissas originariamente postas) e que todas as conclusões podem ser demonstradas mediante essa figura, universal e particular, afirmativa e negativa» ( ibid ., 4, 26 b 28-33); cf. ibid ., 5, 27 a 1; 6, 28 a 15 seg. 5 Segundo a primeira figura, obtém-se 4 tipos de silogismos válidos, porém, sem conclusão afirmativa. Conforme a terceira figura, obtém-se 6 tipos de silogismos válidos, porém sem conclusão universal (cf. Primeiros Analíticos, I, 4, 25 b 37 - 6, 29 a 18). 6 Desses modos indiretos nascerão os silogismos segundo a figura galênica (4a figura). O termo médio, então, é atribuído ao grande termo na maior, e o pequeno termo lhe é atribuído na menor.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES como todos os silogismos imperfeitos se tornam perfeitos mediante a primeira figura, como se pode reduzir todos os silogismos válidos aos silogismos universais da primeira figura. 1 Enfim, porque as premissas se diversificam não somente em razão de sua qualidade e de sua quantidade, mas também em razão de sua modalidade (uma é a atribuição simples, outra a atribuição necessária, outra a atribuição contingente), é preciso especificar o que se tornam os «silogismos modais» segundo as diversas figuras, em função de suas diversas quantidades e qualidades, e perguntar se se trata de um silogismo válido e como manifestá-lo. 2 A comparação dos silogismos das diversas figuras e sua redução à figura mais perfeita obrigam Aristóteles não somente a utilizar a conversão e a especificar as suas regras, 3 mas ainda a utilizar a redução pelo absurdo 4 e também a ectese, 5 depois a estudar suas leis. Cumpre notar essa forma especial de raciocínio pelo absurdo que sempre pressupõe um outro que ele vem ajudar. Nesse gênero de raciocínio, com efeito, põe-se como princípios a contraditória da conclusão que se procura provar e uma das outras proposições já empregadas como princípios no primeiro raciocínio. 6 A indução Se o raciocínio silogístico é o mais perfeito (o que realiza melhor as exigências do raciocínio), porém, em relação a nós, a indução é primeira. 7 Esta, com efeito, parte da experiências das realidades contingentes, para atingir o conhecimento do necessário. Estamos na presença de um movimento do pensamento inverso do silogismo dedutivo. 8 Este respeita 1 Ibid ., 7, 29 a 30 seg. 2 Ibid ., 8, 29 b 36 seg.
Aristóteles mostra que os silogismos do necessário seguem quase as mesmas regras que os silogismos de simples atribuição, porque as leis de conversão são as mesmas e que o lugar dos termos é o mesmo. Os capítulos 9, 10 e 11 dos Primeiros Analíticos são dedicados ao estudo dos silogismos do necessário conforme a primeira, segunda e terceira figura. A partir do capítulo 13, Aristóteles aborda os silogismos do contingente. Os capítulos 14, 15 e 16 estudam os silogismos conforme a primeira figura; os capítulos 17, 18 e 19 estudam os da segunda figura; enfim, os capítulos 20, 21 e 22 estudam os da terceira figura. 3 Ibid ., I, 5, 27 a 6 seg; 27 a 32; 6, 28 a 19. 4 Ibid ., 5, 27 a 15 ; 6, 28 a 23; II, 11, 61 a 15-19; 14, 63 b 2. Aristóteles reconhece que este silogismo pelo absurdo é semelhante à conversão, com a diferença que a conversão supõe «a constituição anterior de um silogismo e a adoção do dois primeiros, ao passo que na redução ao absurdo, a verdade da oposta não depende do acordo do adversário, mas de sua própria evidência» ( ibid ., 61 a 22); cf. ibid ., 20, 66 b 4 seg. 5 Cf. Primeiros Analíticos, I, 2, 25 a 17 seg; 6, 28 a 23; 28 b 14. 6 Aristóteles dirá: «A refutação é um silogismo que estabelece a contradição» ( Primeiros Analíticos, II, 20, 66 b 11); ou ainda: «A refutação é um raciocínio com contradição da conclusão» ( Refutações sofísticas, I, 1, 165 a 23). 7 «A justo título é que se pode atribuir a Sócrates a descoberta desses dois princípios: os discursos indutivos (epaktikous logous) e o fato de definir universalmente, que ambos concernem ao ponto de partida da ciência» ( Met ., M, 4, 1078 b 28-30). 8 Primeiros Analíticos, II, 23, 68 b 8 seg.; cf. Segundos Analíticos, I, 1, 71 a 1 seg. A indução apresenta-se como o análogo de um silogismo (em Barbara) invertido, no qual A e C sendo os extremos, B o termo médio, estabelece-se a proposição BA (a maior do silogismo) a partir da consideração do termo C, que Aristóteles supõe ter condição de desempenhar o papel de termo médio em relação a essa atribuição BA. Em outras palavras, BA sendo a maior do silogismo normal, CB a menor, a conclusão é CA; na indução, CA é como a maior, a menor CB é convertida, ela se torna BC; de CA e de BC, se conclui BA. Vê-se como, por uma conversão, a indução pode aparecer como equivalente a um silogismo.
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LÓGICA mais a ordem de natureza — da definição de tal ou tal realidade, deduz-se suas propriedades — , ao passo que a indução respeita mais a ordem genética — do imperfeito, regressa-se ao perfeito, dos acidentes se infere a natureza. A indução é um raciocínio menos perfeito que o silogismo porque ela não tem mais termo médio no sentido estrito: a enumeração de todos os casos particulares põe o problema que, graças à interrogação subjacente antecipando a descoberta — exprimindo-a de um modo interrogativo — , nos revela o «termo médio». O exemplo de indução dado por Aristóteles é claro: o homem, o cavalo, a mula são animais que vivem muito tempo. Ora, todos o animais sem fel são o homem, o cavalo e a mula. Portanto, todos os animais sem fel vivem muito tempo. A interrogação subjacente é a seguinte: para os animais, «ser sem fel» é a causa do fato de eles viverem muito tempo? Isso é ainda mais nítido ao nível da filosofia primeira. A inteligência do filósofo interroga: qual a causa segundo a forma de o-que-é? Então, olha-se todas as modalidades de o-que-é enquanto é, e se busca precisar a primeira determinação, a que não depende de nenhuma outra. A interrogação, então, se precisa: a substância é esta causa, este princípio? Não pode ser a substância segunda das Categorias, pois ela é relativa à substância primeira, o sujeito que existe. E não pode ser a substância primeira, pois ela própria permanece suscetível a ser determinada, relativa à substância segunda... O papel da indução não é atingir uma conclusão justificada — ela não nos dá explicação no sentido preciso — , mas nos fazer descobrir novos princípios. Ela nos permite atingir proposições primeiras e imediatas. Tais proposições não têm termo médio, não podem ser deduzidas de premissas, não podem senão terminar um movimento indutivo do pensamento na descoberta de um princípio próprio, evidente por si próprio. Poder-se-ia dizer que o silogismo serve para explorar nossas riquezas já adquiridas, nosso capital de conhecimentos. A indução serve para aumentar esse capital, para nos permitir adquirir novos princípios. Nesse sentido, compreende-se como a indução é para nossa inteligência uma atividade mais fundamental que a dedução silogística. Mas, do ponto de vista lógico, é normal que Aristóteles trate dela após o silogismo, pois ela é um raciocínio menos perfeito. De resto, considerada em si mesma, a indução escapa de certo modo à lógica. A indução está ligada à lógica somente na sua relação ao silogismo. Uma vez que a lógica deve nos permitir adquirir um conhecimento científico perfeito, o silogismo é de fato seu instrumento próprio. A indução, ao contrário, é como o instrumento que nos conduz a esse conhecimento, que nos introduz nele, fazendo-nos descobrir certos princípios próprios, certas proposições imediatas. Precisamente é por essa razão que Aristóteles, após ter-se debruçado longamente sobre o silogismo e suas leis, sobre suas diversas figuras e suas múltiplas realizações, trata tão brevemente da indução e de suas regras. Ao estudo da indução vincula-se o do raciocínio pelo exemplo, que desempenha um papel tão importante em retórica. O que diferencia este último da indução «é que a indução, partindo de todos os indivíduos, demonstrava que o grande termo pertence ao médio, e não aplicava o silogismo ao pequeno termo, ao passo que o exemplo o aplica, e não demonstra 247
INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES partindo de todos os indivíduos». 1 O raciocínio pelo exemplo é como um movimento que vai da parte à parte, quando os dois casos particulares estão subordinados ao mesmo termo e que um é conhecido. Mostra-se que fazer a guerra aos habitantes de Tebas é um mal para os atenienses, pelo fato de eles serem os vizinhos dos atenienses, o que é um fato conhecido, e pelo fato de fazer guerra aos seus vizinhos ser um mal. Aristóteles trata também da abdução ou redução, 2 da objeção ou instância, 3 enfim do entimema.4
4. A ciência: os Segundos Analíticos Os Segundos Analíticos abordam o problema da ciência. Ora, nós a adquirimos pela demonstração, que não é outra coisa senão o silogismo em matéria «necessária». Os Segundos Analíticos, ao estudar das leis do método científico, portanto, tratarão de um caso particular, privilegiado do silogismo.5 Estimamos possuir a ciência de uma coisa de forma absoluta e não de modo meramente acidental, à maneira dos sofistas, quando pensamos conhecer a causa pela qual uma coisa é, sabendo que esta é a causa dessa coisa e que não é possível que a coisa seja de outra forma que ela é.6
Em oposição à teoria dos sofistas, Aristóteles precisa que a ciência no sentido próprio é o conhecimento de «algo que não pode ser de outro modo, isto é, do necessário». 7 Eis por que a a demonstração deve partir de proposições verdadeiras, indemonstráveis, imediatas, mais conhecidas que a conclusão e anteriores a esta. Com efeito, essas proposições desempenham um certo papel de causa em relação à conclusão. Ora, a causa deve ser sempre anterior a seus
1 Primeiros Analíticos, I, 24, 69 a 16-19. 2 Ibid ., 25, 69 a 20 seg. A abdução (apagôgé)
é um silogismo especial, que não pode concluir senão um conhecimento aproximado, pois se o primeiro termo pertence com toda evidência ao médio, é incerto o fato de o médio pertencer ao último termo. 3 Ibid ., 26, 69 a 37 seg. A objeção ( enstasis) é uma proposição, quer universal, quer particular, oposta a uma premissa, como contrária ou como contraditória. 4 Ibid ., 27, 70 a 2 seg. O entimema (enthyméma) é um silogismo que parte de premissas verossímis ou de signos. Como os signos podem ser considerados de três maneiras, correspondendo às três situações do termo médio segundo as três figuras, haverá três figuras de entimema. 5 «Por demonstração, eu entendo o silogismo científico e eu chamo de científico um silogismo cuja possessão mesma constitui para nós a ciência» (Segundos Analíticos, I, 2, 71 b 17-19); cf. ibid ., II, 19, 99 b 15 seg. 6 Ibid ., I, 2, 71 b 9 seg.; cf. ibid ., I, 33, 88 b 30, em que Aristóteles mostra a diferença que existe entre a ciência e a opinião. Para a opinião, o atributo poderia ser de outra forma. 7 Ibid ., 4, 73 a 21-22.
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LÓGICA efeitos.1 As premissas, enfim, devem ser necessárias, a relação que existe entre seus sujeitos e seus predicados deve ser uma relação essencial por si ( kath’auto).2 Não podemos entrar aqui no estudo de cada um dos caracteres das proposições-princípios da demonstração e de toda a estrutura lógica da ciência. Notemos somente alguns pontos particularmente importantes e significativos da posição lógica de Aristóteles no que concerne à ciência. Este condena igualmente duas atitudes opostas: a daqueles que pretendem que nada pode ser demonstrado, a daqueles que pretendem que tudo pode ser demonstrado. 3 Essas duas duas posições chegam fatalmente a excluir de nossa atividade intelectual todo conhecimento científico, pois elas o tornam impossível. Se nada pode ser demonstrado, nada pode ser conhecido pela sua causa, logo, nada pode ser conhecido cientificamente. Se tudo pode ser demonstrado, poder-se-á regressar ao infinito na ordem dos termos médios; sendo assim, todo raciocínio se torna impossível. Aristóteles adota uma posição intermediária. Para ele, o conhecimento científico é possível: certas proposições podem ser explicadas, justificadas e demonstradas; podemos precisar sua causa própria e atingir sua necessidade. Porém, esse conhecimento científico não é o único conhecimento humano. Pressupõe um outro, anterior e primeiro, do qual ele depende. Antes de conhecer a conclusão científica, é preciso conhecer os princípios próprios dos quais ela provém. Ora, precisamente, esses princípios próprios, enquanto princípios, são primeiros. Não dependem de premissas. O que os constitui não implica dependência em relação a um terceiro termo; em outras palavras, o vínculo que une o predicado ao sujeito de um princípio é não somente essencial, como também imediato. No final dos Segundos Analíticos, Aristóteles trata explicitamente da maneira como atingimos esses princípios. 4 Encontramos, de novo, a mesma afirmação no primeiro livro da Metafísica:5 da sensação vem vem o que chamamos lembrança, da lembrança várias vezes repetida vem a experiência; da experiência vem o princípio da arte e da ciência, da arte no que concerne ao devir, da ciência no que concerne ao ser. A fonte primeira de nosso conhecimento intelectual é certamente a sensação. Portanto, todo o edifício de nosso conhecimento científico se enraíza nela. É a indução, precisa Aristóteles, que nos faz conhecer os princípios, as proposições imediatas. 6 Essa passagem do particular sensível à apreensão do princípio universal é comparada à 1 Segundos Analíticos, I, 2, 71 b 19 seg. 2 Ibid ., 6, 74 b 5 seg.; cf. 22, 84 a 6 seg. 3 Ibid ., 3, 72 b 5 seg. 4 Op. cit., II, 19, 99 b 20 seg. 5 Cf. op. cit ., 980 a 27 seg. 6 Cf. Segundos Analíticos, II, 19, 100 b
3-4. Esse capítulo que termina os Segundos Analíticos, portanto, deve ser colocado em conexão direta com o capítulo 23 do livro II dos Primeiros Analíticos. Aristóteles trata da indução nesses dois capítulos, porém, de maneira diferente: nos Primeiros Analíticos, ele fala dela como que de um tipo particular de raciocínio e tenta captar o seu caráter próprio como movimento do pensamento que chega ao conhecimento de uma proposição nova; nos Segundos Analíticos, ele considera a indução como a démarche própria do conhecimento científico, como o que permite sair do movimento para captar o que há de primeiro, pois não há possibilidade de qualquer movimento senão graças a um princípio que está fora do movimento.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES congregação de uma tropa em derrota: «Assim, em uma batalha, no meio da derrota, um soldado parando, um outro para, em seguida um outro ainda, até que o exército volte a uma ordem primitiva. Ora, mesmo a alma é constituída de maneira a ter condições de provar algo semelhante.»1 É o nous que capta esses princípios. O nous é, portanto, princípio da ciência.2 Assim, o conhecimento científico, enquanto acha seu cumprimento na conclusão científica, apresenta-se como um tipo de conhecimento deduzido, portanto, sempre segundo; pressupõe sempre uma apreensão dos princípios que não compete à ciência: não pode haver ciência dos princípios da ciência, mas apreensão intelectual desses princípios. Ademais, certas realidades escapam ao nosso conhecimento científico, precisamente porque elas não podem ser reduzidas imediatamente a princípios próprios; todos os fatos singulares contingentes são deste tipo. 3 Portanto, nosso conhecimento científico se encontra limitado, quer por uma plenitude, 4 quer por um defeito de inteligibilidade — os princípios e os fatos singulares contingentes. No entanto, em sua ordem, enquanto ele implica a conclusão unida a seus princípios, ele permanece um conhecimento perfeito que aperfeiçoa nossa inteligência e mesmo a aperfeiçoa da maneira mais conatural como inteligência humana que raciocina e não pode chegar a sua plenitude senão movendo-se. É toda a estrutura do conhecimento humano que é implicada nessa concepção do saber humano. Este é como um certo termo, um fruto que pressupõe já todo um conhecimento adquirido. Aristóteles precisa, com efeito, que «as questões colocadas são em número igual às coisas que se conhece. Ora, procuramos quatro coisas: o fato ( to oti), o porquê (to dioti), se isso existe (ei esti), o que é (ti esti).»5 Mas todas essas questões pressupõem um conhecimento, o da significação do nome, 6 que é absolutamente primeiro. Portanto, há cinco interrogações na origem de cinco operações intelectuais diversas: o que o nome significa; que a realidade correspondente é; o que ela é: sua natureza; as qualidades que ela pode ter; por que ela tem tais qualidades. Só a primeira dessas interrogações nunca gera pesquisa, uma vez que toda pesquisa pressupõe a significação do nome. A primeira pergunta que se poderá colocar é a da existência do que é significado por tal palavra, já que «procurar o que é uma coisa sem saber se ela existe, de certo, é procurar absolutamente nada.» 7 Mas, se essa questão questão pode engendrar um verdadeiro conhecimento científico, nem por isso é menos verdade que esse não pode existir se não temos já, graças à experiência, a certeza que certas realidades físicas existem, e se não captamos já, graças à indução, certos princípios próprios e
1 Segundos Analíticos, II, 19, 100 a 12-14. 2 Ibid ., 100 b 5 seg. O nous é tomado aqui
como o habitus dos princípios e não como a potência intelectual
considerada em toda sua universalidade. 3 Cf. ibid ., I, 30-31, 87 b 19 - 88 a 17. 4 Cf. ibid ., II, 4, 91 a 12 seg. 5 Ibid ., II, 1, 89 b 23-25. 6 Cf. ibid ., I, 1, 71 a 12 seg. 7 Ibid ., II, 8, 93 a 26-27.
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LÓGICA certos princípios comuns. 1 Todo raciocínio pressupõe certas apreensões e certos juízos, e todo raciocínio perfeito, científico, pressupõe certas apreensões perfeitas e certos juízos perfeitos. Então, pode-se precisar a estrutura de toda ciência no seu estado perfeito. Essa implica sempre três elementos essenciais: a propriedade, os axiomas, o gênero. 2 Com efeito, a ciência, partindo das premissas necessárias, conclui resolvendo tal questão colocada. Essa conclusão se expressa por uma afirmação de tal propriedade em relação a tal sujeito. Então conhece-se sua conexão e isso perfeitamente, isto é, graças ao termo médio, causa própria de sua conexão. Essa conexão essencial e necessária afirmada na conclusão pressupõe duas outras conexões essenciais e necessárias mais fundamentais, as que existem nas premissas entre o termo médio e os dois termos que constituem a conclusão. Portanto, há algo comum que une essencialmente esses três termos: eis o gênero. 3 A ciência pressupõe a existência desse gênero, não como gênero tendo um modo universal, evidentemente, mas segundo seu fundamento, e ela precisa as propriedades dele. É a natureza desse gênero que explica, a um só tempo, a autonomia da ciência, assim como suas relações de dependência ou de superioridade, 4 pois não se pode, na demonstração, 1 Cf.
ibid ., I, 1, 71 a 1 seg. Na linguagem de Aristóteles, princípio ( arké) significa aqui tudo o que está no ponto de partida intelectual da ciência; os axiomas ( axiôma), expressão tomada de empréstimo à matemática (cf. Met ., , 3, 1005 a 20), são, por um lado, os princípios comuns a todas as ciências e são como os reguladores gerais da démarche científica: «Eu chamo de princípios comuns aqueles que desempenham o papel de base na demonstração» (Segundos Analíticos, I, 11, 77a 26 seg.); esses princípios-axiomas não são nem os gêneros que são objeto da demonstração, nem os atributos demonstrados; portanto, eles não devem ser as premissas das demonstrações: não se raciocina a partir deles, mas segundo eles. Por outro lado, eles são os princípios próprios a cada ciência (ibid ., 10, 76 a 37 seg.) que fornecem o material às deduções; as definições ( logoi tès ousias) fazem parte desses princípios próprios. Aristóteles nota que certas ciências tomam como pontos de partida proposições não imediatas. Em relação aos objetos dessas proposições, essas ciências contentam-se em saber que são assim (to oti); essas proposições serão, de resto, objeto de uma outra ciência que os considera como conclusões de axiomas-princípios e conhece, portanto, seu porquê ( to dioti). Eis o esquema inicial da subalternação das ciências. A tese (thesis) é essa forma de princípio imediato do silogismo que não é preciso demonstrar. Ademais, o que aprende algo não deve necessariamente retê-lo no espírito, ponto em que a tese distingue-se da axioma (cf. ibid ., 2, 72 a 14 seg.). A hipótese (hypothesis) é uma tese concernindo ao que pode ser considerado em uma alternativa contraditória, e fixando momentaneamente o espírito sobre uma ou outra parte dessa alternativa; a hipótese está fora da ciência, uma vez que permanece no domínio da opinião. A definição é também uma tese, não uma hipótese. As teses que não olham senão a significação dos termos são definições; as que consideram também a existência da realidade são hipóteses. O postulado ( aitéma) é «o que é contrário à opinião do aluno, demonstrável, mas posto e utilizado sem demonstração» ( ibid ., 10, 76 b 32). (cf. Segundos Analíticos, I, 2, 72 a 5 seg.). 2 « Há três elementos na demonstração: o que se prova, a conclusão, um atributo que pertence por si a um certo gênero; os axiomas segundo os quais encadeia-se a demonstração; o gênero, o sujeito cuja demonstração faz aparecer as propriedades e atributos essenciais» (Segundos Analíticos, I, 7, 75 a 39 - 75 b 2). 3 Cf. ibid ., I, 7, 75 a 38 seg. «É do mesmo gênero que devem provir necessariamente os extremos e os termos médios» (ibid ., 75 b 10-11). A definição mesma, princípio próprio da demonstração, é contida no gênero, assim como ela o contém. Eis por que se pode determinar a natureza própria de uma ciência pelo seu «gênero» ou pelo princípio próprio (definição). 4 Hamelin pretende que há uma certa dualidade na concepção aristotélica da ciência, pois, diz ele, o Filósofo afirma ao mesmo tempo que a ciência é o conhecimento pela causa, o conhecimento do necessário, e também que ela é a ciência do universal e não do individual (cf. Le système d’Aristote, pp. 236-239). Ora, para Hamelin, o universal é um «resíduo morto» (ibid ., p. 237), e «a idéia de causa propriamente dita é absurda»; na ciência de Aristóteles, é «a idéia de razão» que existe ( ibid ., p. 240). Portanto, a ciência aristotélica é «quase limitada ao ponto de vista estático e, em oposição com o próprio fundo do espírito aristotélico, ela corre o risco de explicar o superior pelo inferior» (ibid ., p. 247). Esse juízo de Hamelin provém, por um lado, de uma confusão entre o universal tal como fala Aristóteles e o geral abstrato, por outro lado de um desconhecimento da noção de causa
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES passar de um gênero a um outro, 1 salvo em certos casos. 2 Eis a estrutura lógica de toda ciência. «Um fato digno de atenção, nota W.-D. Ross, é que quase todos o exemplos de pressuposição e de provas no primeiro livro dos Últimos Analíticos, são extraídos das matemáticas». 3 Deve-se concluir daí que a lógica da ciência é a das ciências matemáticas? Seria esquecer que, em boa lógica aristotélica, o raciocínio pelo exemplo não é científico, e sim retórico! Todo o capítulo 19 do segundo livro nos atesta explicitamente que não é a intenção de Aristóteles e que sua concepção da ciência olha antes de mais nada a ciência filosófica, sem excluir, de resto, as ciências matemáticas. Se o Estagirita usa tão freqüentemente exemplos tirados dos Elementos de geometria de Euclides, é precisamente que o exemplo é uma realidade mais conhecida por nós, que deve nos conduzir para o mais universal, menos conhecido. Visto o caráter próprio das ciências matemáticas, ciências muito conaturais à inteligência humana, e o estado histórico de sua elaboração, era normal que esse Mestre da lógica usasse delas para esclarecer seu ensino. O exemplo não é a doutrina, ele está a seu serviço. Aristóteles nota diversos tipos de demonstrações e estabelece um juízo de valor sobre cada uma delas. Esse juízo provém da natureza mesma da ciência, efeito próprio e fim próprio da demonstração. A demonstração mais perfeita é a que nos faz melhor saber. Certas demonstrações procedem de princípios necessários e imediatos, e outras de premissas não imediatas — isso dentro da mesma ciência ou em relação a duas ciências distintas. As primeiras demonstrações, na realidade, se realizam pelas causas, as segundas, pelos efeitos. As primeiras chegam ao conhecimento dos porquês ( dioti), as segundas, somente ao conhecimento do fato ( oti). É evidente que somente as primeiras são perfeitas e verdadeiramente científicas, as outras são sempre imperfeitas. 4 Notemos que as demonstrações procedendo de princípios imediatos expressam-se sobretudo segundo a
na filosofia aristotélica. Para Aristóteles, a causa é um princípio de ser e de inteligibilidade, ela não uma «idéia de razão» — não é uma lei. Na realidade, não há dualidade na concepção aristotélica da ciência, pois tudo se reduz a essa definição: a ciência é o conhecimento pela causa própria. A ciência, à diferença de nossos conhecimentos imediatos, olha uma proposição cuja afirmação do predicado e do sujeito não se faz senão graças a um termo médio que é a própria causa dessa afirmação. Essa definição implica como dupla conseqüência que a ciência olha o necessário e o universal. Com efeito, sendo conhecimento pela causa, a ciência requer esse conhecimento do necessário. Essa causa necessária deve ser universal para desempenhar seu papel de termo médio. Eis por que definir a ciência pelo conhecimento do universal ou do necessário não é de todo exato. Não se penetra, então, suficientemente no que constitui a ciência aristotélica como tal e não se vê senão tal ou tal de suas condições, de suas propriedades. Precisamente por causa disso é que não se pode mais compreender como a ciência segundo Aristóteles não é limitada ao estático. O movimento natural faz parte integrante da filosofia da natureza, portanto da ciência, a operação humana faz parte integrante da filosofia humana, portanto da ciência. 1 Segundos Analíticos, I, 7, 75 a 38. 2 Ibid ., I, 9 e 13. A unidade da ciência toma-se da unidade do gênero que ela considera (cf. ibid ., 28, 87 a 38 seg.). 3 W.-D. Ross, Aristote, p. 67. 4 Cf. Segundos Analíticos, I, 13, 78 a 22 seg.
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LÓGICA primeira figura do silogismo. Eis por que «a figura mais própria da ciência é a primeira figura».1 Certas demonstrações são universais, outras particulares (conforme a terceira figura). Somente as primeiras são perfeitas, pois somente provam na realidade a causa e o porquê, somente elas procedem exclusivamente segundo a inteligência. As segundas devem reduzirse em parte à sensação. 2 Algumas são afirmativas, outras negativas (conforme a segunda figura). As afirmativas são superiores às negativas, porque são mais simples, pressupõem menos princípios. Ademais, a natureza da demonstração afirmativa aproxima-se mais da do princípio. 3 Enfim, a demonstração afirmativa direta é superior à redução ao absurdo, porque ela faz conhecer o porquê; a outra não o faz. 4 Isso mostra bem o que é o conhecimento científico para Aristóteles. É um conhecimento que procede verdadeiramente de premissas necessárias, no sentido muito forte da palavra, e que chega a uma conclusão necessária. Vê-se tudo o que separa a ciência da opinião, a tal ponto que a ciência e a opinião de uma mesma realidade não podem coexistir na mesma pessoa: não se pode afirmar, ao mesmo tempo, que o homem é essencialmente animal e que ele não é essencialmente animal, já que poderia ser outro que animal. 5 Compreendemos, então, o papel capital da descoberta do «termo médio»: toda a pesquisa nos orienta para essa descoberta. Por isso, a vivacidade da inteligência consiste, antes de mais nada, em descobri-lo instantaneamente. Logo que a inteligência conhece os extremos, ela capta os termos médios, as causas, pelo menos se ela é verdadeiramente perspicaz e se ela tem sede de conhecer perfeitamente. 6 Demonstração e definição É normal que, após ter precisado o que é o conhecimento científico, Aristóteles mostre as relações que existem entre esse tipo de conhecimento e a definição. Os capítulos 3 a 7 do livro II dos Segundos Analíticos mostram, em uma longa discussão dialética, o caráter irredutível da demonstração em relação à definição. «Não se pode nunca ter de uma mesma coisa uma demonstração e uma definição». 7 De resto, a qüididade expressa expressa pela definição não pode ser provada nem por uma demonstração, nem por uma divisão, nem por uma hipótese, nem pela própria definição. 1 Ibid ., 14, 79 a 17-18. 2 Cf. ibid., 24, 85 a 13 seg. Aristóteles dá uma série de razões dialéticas e analíticas. 3 Cf. ibid., 25, 86 a 31 seg. 4 Cf. ibid ., 26, 87 a 1 seg. 5 Cf. ibid ., 33, 89 a 38 seg. 6 Cf. ibid ., 34, 89 b 10 seg; II, 2, 89 b 36 seg.; 3, 90 a 35 seg. 7 Loc. cit ., 3, 91 a 9-10.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES No capítulo 8, Aristóteles expõe sua doutrina própria. Primeiro, mostra logicamente como, de certa forma, pode haver demonstração da definição que expressa a qüididade: «Devemos examinar de novo o que, em tudo isso, é dito a justo título e o que não o é, o que é a definição, e se existe, ao mesmo tempo e de certa maneira, uma demonstração e uma definição da qüididade, ou se isso é absolutamente impossível». 1 Com efeito, conhecer o que é a definição de uma realidade, é conhecer sua causa. Ora, essa causa é ou a própria qüididade, ou uma outra realidade que não pode ser senão o termo médio. Se for sua qüididade, é bem evidente que seu conhecimento escapará à demonstração; se for uma outra realidade, esse conhecimento é demonstrável conforme uma demonstração da primeira figura. Então, demonstra-se a definição da realidade por um termo médio, que, propriamente, não pode ser senão uma outra definição. A verdadeira maneira de mostrar como pode haver demonstração da definição consiste em compreender a prioridade, para nós, do conhecimento do fato sobre o conhecimento do porquê, pois esse conhecimento da existência da coisa implica um conhecimento parcial do que é a coisa; conhecemos, ao menos, a significação de seu nome. Por exemplo, se conhecermos o que significa o termo «eclipsar», diremos que a eclipse é a extinção da luz, um fato constatado. A partir desse conhecimento nominal da realidade e da sua existência, podemos perguntar o que ela é e seu porquê. A descoberta dessa causa que explica o evento é a descoberta do termo médio que une os dois extremos constatados. A eclipse é a interposição da terra entre o sol e a lua. Portanto, passamos de uma definição nominal a uma definição pela causa, e é pela descoberta de um termo médio que chegamos a essa definição. De certa forma, tal definição é mais que uma demonstração, é mais que algo de demonstrado, pois o termo médio não é demonstrado, mas, descoberto explicitamente pela demonstração, ele constitui a própria demonstração. Evidentemente, tal raciocínio não olha senão as realidades que têm uma causa outra que sua substância (isto é, os eventos ou os atributos), e não as realidades cujas causas são suas próprias substâncias (a unidade para o aritmético), pois tais realidades não podem ser conhecidas a não ser imediatamente. Quando falamos em definição, isto é, em discurso ( logos) que explica o que é uma realidade, cumpre sempre bem distinguir: a definição nominal que explica o que significa o nome (o que significa o termo triângulo, por exemplo) e que não exprime senão essa significação; a definição causal que mostra por que a realidade é — ela é diferente da demonstração somente pela posição dos termos: o conteúdo é o mesmo, mas a maneira de expressar é diferente; enfim, a definição dos termos imediatos é indivisível, indemonstrável: ela expressa a qüididade das realidades que não têm causas extrínsecas. 2 1 Loc. cit ., 93 a 1-3. 2 Cf. ibid ., 10 93 b
29. Notemos a conclusão desse capítulo: «A definição é, em um primeiro sentido, um discurso indemonstrável do ti esti; em um segundo sentido, um silogismo do ti esti que não é diferente da demonstração senão pela posição dos termos; e, em um terceiro sentido, a conclusão da demonstração do ti esti.» (loc. cit ., 94 a 11- 14). Nessa conclusão, Aristóteles omite a definição nominal e considera os dois aspectos sob o quais se pode considerar a definição causal.
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LÓGICA Mas a definição causal não é única, pois as causas são quatro. Para mostrar os diversos termos médios possíveis, Aristóteles lembra aqui o que se deve entender por essas diversas causas: «Em primeiro lugar, a qüididade; em segundo lugar, que certas coisas sendo dadas, uma outra segue necessariamente; em terceiro lugar, o princípio do movimento da coisa; e em quarto lugar, o fim em vista do qual a coisa tem lugar». 1 O Filósofo mostra, por múltiplos exemplos, como essas causas servem de termos médios e, por essa razão, nos dão diversas definições causais. Quando se trata de «realidades em devir», a noção de tempo não deve ser negligenciada na relação entre a causa e o efeito, já que há sempre uma certa simultaneidade entre a causa e o efeito.2 Enfim, Aristóteles mostra como, pelas divisões, podemos precisar os predicados contidos na qüididade e, dessa forma, estabelecer uma verdadeira definição dela: «A divisão é o único método possível para se evitar omitir algo na qüididade». 3 Três regras são a observar para constituir uma definição por divisão: tomar os predicados contidos na qüididade (o gênero e a diferença); colocá-los na sua ordem; tomá-los todos sem exceção. 4 O Filósofo precisa o caráter próprio de cada uma dessas condições e a maneira como devemos aplicá-la, em seguida ele dá certos exemplos. Se tivermos que buscar a qüididade do orgulho, será preciso estar atentos a alguns homens orgulhosos, bem conhecidos por nós, e considerar quais elementos eles têm em comum, enquanto tais. Por exemplo, o fato de não poder suportar uma injúria, etc. Em seguida, examinamos outros casos: se eles têm em comum a indiferença à boa ou à má sorte, tomamos esses dois elementos e consideramos o que há em comum entre essas duas qualidades. Se não houver, é porque há duas espécies de orgulho; e recomeçamos com vista a achar o elemento genérico. Como Aristóteles precisou que a demonstração perfeita é a demonstração universal, ele nota igualmente aqui que «toda definição é sempre universal». 5 E como é mais fácil definir cada um em particular do que o universal, devemos passar das espécies particulares aos gêneros universais. Como a qualidade da demonstração é a necessidade, a qualidade da definição é a clareza; para tanto, cumpre evitar a homonimia e as metáforas. «Na definição, não se deve usar metáforas». 6
1 Ibid ., 11, 94 a 20-23. 2 Cf. ibid ., 12, 95 a 10
seg; 16, 98 b 30: a essa instância: «a causa estando presente, é necessário que o efeito seja; porém, o efeito existindo, não é necessário que tudo o que pode ser causa dele exista; é necessário que uma causa exista e não todas as causas», Aristóteles responde: «Uma vez que a questão a resolver é universal, não somente a causa será uma totalidade, mas também o efeito será universal. Haverá uma adequação entre o efeito e sua causa. E, por isso, o termo médio e seu efeito devem ser convertíveis um ao outro.» 3 Cf. ibid ., 13, 96 b 35 seg. 4 Cf. ibid ., 97 a 23 seg. 5 Ibid ., 97 b 26. 6 Ibid ., 97 b 37.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES Isso permite a Aristóteles mostrar como não somente a definição não é alheia à demonstração, pois a definição causal a implica, como também que toda ciência parte de uma definição, exprimindo a qüididade da realidade. 1
5. As enunciações: Da interpretação Os Analíticos, estudando nossos diversos raciocínios, não podem ser a última pesquisa da lógica, pois todo raciocínio supõe certos conhecimentos anteriores. Nossos raciocínios implicam certas proposições. É o tratado Da Interpretação que estuda do ponto de vista lógico a estrutura das proposições, não mais como premissas, mas como os frutos próprios de nossos juízos, como enunciações complexas. Com efeito, toda proposição é um todo complexo, cujos elementos essenciais são o nome e o verbo. «O nome é definido como um som ( phôné) que tem um significado convencional ( sémantiké kata synthékén), sem referência ao tempo e do qual nenhuma parte apresenta significação quando tomada separadamente». 2 O verbo, como o nome, é um elemento simples do ponto de vista da significação, porém, à diferença do nome, «acrescenta à sua própria significação a do tempo». 3 O verbo é o elemento qualitativo da proposição; ele é sempre o signo do que dizemos de uma outra coisa. O verbo acrescenta-se não como algo de secundário, mas como algo de essencial. Se ele significa o tempo, significa também a composição do sujeito e do atributo. «O discurso ( logos) é um som que tem uma significação ( phôné sémantiké), do qual cada parte tomada separadamente apresenta uma significação como enunciação e não como afirmação». 4 Todo discurso implica, portanto, uma certa composição, mas não é necessariamente uma proposição. Com efeito, esta é um discurso no qual residem o verdadeiro e o falso. «A primeira espécie de proposição é a afirmação; a seguinte, a negação»: 5 eis a primeira distinção lógica das proposições. Com efeito, uma declara que tal atributo, tal verbo pertence a tal sujeito; eis por que a proposição se chama também discurso declarativo ( logos apophantikos). A outra declara que tal atributo não pertence a tal sujeito. Num caso, afirmase uma identidade, no outro uma separação. 6 E visto que tudo o que é afirmado de alguém como lhe pertencendo pode também ser negado como não lhe pertencendo, a toda afirmação
1 Cf. ibid ., 17, 99 a 22. 2 Da interpretação, 2, 16 a 19-20. 3 Ibid ., 3, 16 b 6. 4 Ibid ., 4, 16 b 26-28. 5 Ibid ., 5, 17 a 8-9. 6 Cf. ibid ., 6, 17 a 25-26.
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LÓGICA pode corresponder uma negação oposta e vice-versa. Eis o que se chama de contradição. Esta é a oposição maior, pois tudo o que é afirmado por um é negado e rejeitado pelo outro. 1 A segunda distinção que Aristóteles ressalta entre as proposições é a entre as universais e as singulares. 2 «Todo homem é branco»: eis uma proposição universal, que é enunciada universalmente de um universal. Entre proposições universais afirmativas e negativas, «todo homem é branco», «nenhum homem é branco», há uma oposição de contrariedade. Quanto à proposição singular: «Sócrates é branco», ela se opõe de maneira contraditória à mesma proposição singular tomada de modo negativo: «Sócrates não é branco». 3 É preciso distinguir as proposições universais das proposições indefinidas. Estas fazem como que abstração da universalidade e da singularidade. Embora tendo como objeto o universal, por exemplo «homem é branco», elas não são enunciadas universalmente. Como a proposição na sua significação implica o tempo, é preciso reconhecer que as proposições que têm por objeto futuros singulares contingentes possuem algo de muito particular. Aristóteles as estuda longamente no capítulo 9, em que sublinha entre outras coisas todas as impossibilidades às quais seremos conduzidos, se reconhecermos que tudo acontece necessariamente. Do ponto de vista lógico, cumpre compreender que essas proposições não podem ser nem verdadeiras nem falsas e, portanto, nesse caso, a afirmativa não exclui a negativa; o princípio de contradição não se aplica mais. Pois não se pode captar qual das duas opostas será verdadeira, nem qual será falsa. «Por conseguinte, evidentemente, não é necessário que, de duas proposições opostas entre si como a afirmação e a negação, uma seja verdadeira, outra falsa».4 Pois as realidades que ainda não existem e só existem em potência não se comportam da mesma maneira que as que estão em ato. Após ter estudado as oposições que podem existir entre essas diversas proposições simples, Aristóteles aborda o problema das proposições compostas e o das proposições modais e de suas oposições próprias. 5 Com o tratado Da Interpretação, poderíamos acreditar estar no termo do estudo lógico aristotélico, pois é um erro de perspectiva bem evidente considerar que há em Aristóteles uma lógica do «conceito», como alguns pretenderam. O próprio Filósofo declara que o estudo das modificações da alma compete a uma outra disciplina, que ele aborda no tratado Da alma.6 A 1 Cf.
ibid ., 17 a 33. Ela tem como caráter especial que, se uma das partes da oposição é verdadeira, a outra é necessariamente falsa; o inverso é igualmente verdadeiro, uma vez que essa oposição não admite posição intermediária. 2 Ibid ., 7, 17 a 38 seg. «Chamo de universal aquilo cuja natureza é de ser afirmado de vários sujeitos; de singular o que não pode sê-lo» (ibid ., 17 a 39-40). 3 Cf. ibid ., 17 b 16 seg. 4 Ibid ., 9, 19 b 1-2. 5 Ibid ., 12, 21 a 34 seg. As proposições modais são as que expressam o possível e o não-possível, o contingente e o não-contingente. 6 Ibid ., 1, 16 a 6-9.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES A lógica de Aristóteles não estuda os conceitos, mas os símbolos dessas modificações da alma, «os nomes e os verbos» enquanto são parte da proposição. 1 É de todo normal, pois, como instrumento do pensamento, a lógica não pode intervir senão no momento em que há possibilidade de erro. Quando se trata estritamente da formação dos conceitos, ela não pode dizer nada, já que é uma atividade natural perfeitamente determinada. Portanto, isso não significa que a lógica de Aristóteles não considera senão o aspecto simbólico, o aspecto exterior e convencional de nossa vida intelectual, aquilo pelo qual ela pode se comunicar aos outros: a palavra ou a escrita. Com efeito, não esqueçamos que «a demonstração, não mais que o silogismo, não se dirige aos discursos exteriores, mas aos discursos interiores da alma». 2 Na realidade, para Aristóteles, o Organon se distingue, a um só tempo, do tratado Da alma, que estuda imediatamente a vida própria de nossa inteligência, suas diversas operações vitais, e da gramática, que ensina a maneira correta e exata de falar e a arte de se fazer compreender. O Organon, essa arte filosófica, nos ensina como nossa inteligência deve operar para evitar os erros e atingir a verdade com mais rigor possível. Essa arte ocupa-se de nossa atividade intelectual e tem como função própria permitir-lhe desenvolver-se conforme suas exigências naturais. Portanto, ela não a considera enquanto ela é uma certa natureza ou uma certa potência vital espiritual — isso é o objeto da filosofia da natureza e particularmente do tratado Da alma, como também da filosofia primeira. Mas ele a estuda enquanto ela é capaz de desviar, capaz de errar e, portanto, suscetível também de ser retificada. Ora, o primeiro desvio pode se encontrar de fato na proposição, isto é, na composição ou na divisão do nome e do verbo e nas relações das proposições entre si. Eis por que o primeiro tratado de lógica, segundo a ordem de natureza, é o Da Interpretação. O segundo desvio pode ser encontrado no raciocínio, no silogismo e na indução. Os Analíticos, os Tópicos, as Refutações sofísticas vêm sucessivamente dar regras a nossa inteligência para suas múltiplas atividades silogísticas e indutivas.
6. Os elementos da enunciação: as Categorias Parece, no entanto, que se deva vincular ao tratado Da Interpretação o das Categorias, como o tratado fundamental da lógica de Aristóteles, o que expõe os elementos primeiros da lógica na sua irredutibilidade. Com efeito, se toda proposição implica dois elementos, nome e verbo, sujeito e atributo, podemos, em uma derradeira análise lógica, precisar as determinações gerais do sujeito e dos atributos, assim como os caracteres de certos dados tais como os opostos, o anterior, o simultâneo, o devir, o ter. Assim, as Categorias, relativamente aos outros livros do Organon, parecem desempenhar em lógica um papel semelhante ao livro 1 Cf.
ibid ., 1, 16 a 3 seg; e 4, 17 a 5-6, onde Aristóteles ressalta que ele não estuda no tratado Da interpretação senão o discurso no qual reside o verdadeiro e o falso, isto é, a proposição. Os outros discursos que não contêm nem o verdadeiro nem o falso dependem da retórica ou da poética, mas não da lógica propriamente dita. 2 Segundos Analíticos, I, 10, 76 b 24-25.
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LÓGICA em
filosofia. Com efeito, é uma classificação orgânica e minuciosa dos sentidos das «palavras não compostas». A primeira dessa expressões simples é a substância: «A substância no sentido mais fundamental, primeiro e principal do termo, é o que não é afirmado de um sujeito, nem em um sujeito; por exemplo, o homem individual», 1 Pedro. A substância primeira é o substrato de todo o resto. Ela se distingue das substâncias segundas, isto é, das espécies e dos gêneros dessas espécies — o homem, o animal. Ambas, todavia, convêm nisso: nem uma, nem outra estão em um sujeito, elas não têm nenhum contrário, são incapazes do mais e do menos e, no entanto, embora permaneçam as mesmas, elas são aptas a receber os contrários. Trata-se aqui do fundamento de toda a lógica: o sujeito no sentido forte, a substância primeira exprimindo a realidade individual substancial; em seguida, a substância segunda2, o atributo essencial, o atributo primeiro, por excelência (primeiro modo de necessidade, de «perseidade»:3 Pedro é um homem). Nisso, captamos o quanto a lógica de Aristóteles, lógica da atribuição e não lógica da relação, funda-se sobre a substância. Da mesma forma que sua filosofia primeira descobre em primeiro lugar a substância como princípio próprio de o-que-é como tal, segundo o aspecto da forma, assim sua lógica é em primeiro lugar, fundamentalmente, a lógica da atribuição que exige a substância primeira (sujeito) e a substância segunda (atributo essencial). Segunda categoria: a quantidade.4 A quantidade é discreta (o número, os discursos) e contínua (a linha). A quantidade é constituída ou de partes que têm entre elas uma posição uma em relação à outra, ou de partes que não têm posição uma para com a outra. A quantidade não tem contrário, não admite o mais nem o menos, mas o igual e o desigual. Terceira categoria: a relação. «Chamamos relativas as coisas das quais todo o ser é de ser dito de outra coisa». 5 Os relativos podem ter contrários (a virtude é o contrário do vício, ambos sendo relativos). Admitem o mais e o menos. Todos esses relativos são correlativos (o escravo é dito o escravo do mestre). Entre os relativos, há simultaneidade de natureza e de conhecimento. Quarta categoria: a qualidade. «Chamo de qualidade aquilo em virtude do qual é-se dito ser tal ».6 A primeira espécie de qualidade é o estado ( hexis) e a disposição (diathesis); a segunda espécie é a possessão de uma virtude perfeita; a terceira é composta das qualidades
1 Categorias, 5, 2 a 11-13. Cf. acima, pp. 188-189. 2 A lógica não pode reduzir-se à unidade como a filosofia; ela deve permanecer em uma dualidade: a do sujeito
e do predicado. O universal que ela considera é uma relação de razão e, portanto, implica sempre dois termos relativos um ao outro. A lógica permanece, pois, necessariamente na dualidade da substância primeira e da substância segunda e não pode reduzir essa dualidade à unidade. 3 «Perseidade» significa a qualidade do vínculo de necessidade que existe por si na realidade e que é expresso na atribuição (N. do T.). 4 Cat ., 6, 4 b 20 seg. 5 Ibid ., 7, 6 a 36-37. 6 Ibid ., 8, 8 b 25.
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INTRODUÇÃO A ARISTÓTELES afetivas, das afeições; a quarta é a figura ou a forma. A qualidade pode ter um contrário; ela é suscetível do mais e do menos. Somente ela admite o semelhante e o dissemelhante. Quinta categoria: a ação (to poïein) e a paixão (to paskein). A ação e a paixão admitem também a contrariedade e são suscetíveis do mais e do menos. 1 Outras categorias: o tempo ( pote), o lugar ( pou), a possessão (to ekein). Enfim, depois de ter precisado o essencial de cada categoria, Aristóteles fala da oposição de um termo a um outro. Constata que há quatro oposições-tipo: a dos relativos, a dos contrários, a da privação em relação à possessão, a de contradição. 2 Quanto à anterioridade e à simultaneidade, elas permitem ordenar esses termos diversos. O grande mérito do Organon é ter discernido com uma notável nitidez o domínio próprio da lógica e ter eliminado dela todos os elementos que não são de sua natureza própria. A lógica aristotélica, contrariamente ao que alguns puderam afirmar, não é nem racionalista, nem empirista; ela se situa além dessas distinções, ao nível mesmo do pensamento filosófico.3 Ela considera todo o saber humano, desde o da filosofia primeira até o da opinião e da dialética. É capaz de retificar e de dirigir a inteligência do metafísico, que procura conhecer o-que-é; do matemático, que não se ocupa senão com a forma abstrata; do dialético, que permanece no provável. Pretender igualmente que a lógica aristotélica da proposição é uma lógica da compreensão e a do silogismo, uma lógica da extensão, é desconhecer sua unidade e seu caráter próprio.4 Compreensão e extensão são duas propriedades que afetam todos os nossos conceitos em razão mesma de sua universalidade. Pois todo conceito universal tem uma certa significação — ele tem, portanto, uma certa compreensão — e tem uma certa capacidade mais ou menos grande de ser atribuído — ele tem, portanto, uma certa extensão. Evidentemente, essas duas propriedades não os afetam sempre da mesma forma, mas nem por isso deixa de ter todo conceito uma certa compreensão e uma certa extensão. 5 Eis por que a lógica da proposição, como a do silogismo, implica necessariamente esses dois aspectos. 1 Ibid ., 9, 11 b 1 seg. 2 Ibid ., 10, 11 b 17 seg. 3 Hamelin censura Aristóteles
por não ter se colocado a um ponto de vista exclusivamente racionalista: «Se ele quisesse que o sujeitos de suas proposições fossem sempre noções perfeitamente definidas, assim como ocorre nas matemáticas, ele não teria dado muita importância à quantidade lógica e considerado a proposição indeterminada como o verdadeiro tipo da proposição lógica... Mas isto se realiza de outra forma quando nos colocamos com Aristóteles a um ponto de vista mais empirista» ( Le système d’Aristote, p. 164). Robin, por sua vez, acha que Aristóteles permanece «platônico na sua maneira de conceber a demonstração» ( Aristote, p. 50), isto é, que sua lógica permanece puramente formal. 4 Hamelin não hesita em afirmar que Aristóteles, na realidade, se coloca «do ponto de vista da compreensão na teoria da proposição» e que ele passa ao da extensão na teoria do silogismo ( op. cit ., pp. 178; 181). 5 Poderíamos precisar que essas duas propriedades, compreensão e extensão, progridem de modo inverso quando se trata de conceitos unívocos; o que o conceito genérico ganha em extensão em relação ao conceito específico, ele o perde em compreensão atual e formal. Todavia, em relação aos conceitos analógicos, extensão e compreensão vão de par, já que o conceito analógico de ser compreende em ato todos os diversos «analogués» do ser, embora não os compreenda explicitamente.
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LÓGICA Acrescentemos que Aristóteles em sua lógica não considera o conceito em si mesmo, mas o «nome» e o «verbo», o «sujeito» e o «predicado» como elementos da proposição, e por isso distingue as proposições afirmativas e negativas, universais e particulares, indeterminadas e singulares. Ora, ao afirmar que uma proposição é universal, quer-se dizer que o atributo pertence ao sujeito considerado em sua total universalidade. Então, qualifica-se a maneira como o atributo pertence ou não pertence a seu sujeito e, sendo assim, é inútil e impossível distinguir e opor compreensão e extensão; pois, na exata medida em que o predicado pertence ao sujeito, ele o qualifica e o compreende. Enfim, a lógica aristotélica é capaz de se adaptar diversamente a cada ciência particular, sem ser dependente de nenhuma, pois ela se situa no nível mesmo do universal ; este é o fruto próprio de nosso conhecimento intelectual que não pode nascer senão graças a uma certa abstração (o universal é o fruto próprio de um conhecimento abstrativo). Esse conhecimento filosófico que implica esse modo abstrato, no entanto, permanece realista, porque ele não se separa nunca do juízo de existência. Provavelmente por causa disso é que se capta com tanta dificuldade sua unidade profunda e que, freqüentemente, se reconhece nela diversos elementos heterogêneos, uma «constante dualidade», 1 provindo de uma certa permanência da dialética platônica e, além do mais, do que compete propriamente ao gênio de Aristóteles. Não se pode negar que, na elaboração da lógica, assim como na de toda a filosofia, Aristóteles tenha sofrido a influência de seu mestre; pode-se mesmo dizer, em um certo sentido, que ele conduz à perfeição e a plenitude o que Platão começou. Mas nem por isso permanece menos verdade que sua lógica, como sua filosofia, possuem uma profunda coerência que é o caráter próprio do gênio do autor. 2 Sua filosofia teorética é a do-que-émovido, do-que-se-move, do-que-é; sua filosofia prática é a do homem que transforma o universo, do homem amigo do homem e que procura contemplar o Ser Primeiro, Ato puro, Deus-Criador e, enfim, do homem político engajado em uma comunidade humana. Sua lógica, o Organon, está a serviço desta filosofia; ela é a lógica dos cinco predicáveis, as cinco modalidades do universal; ela é a lógica da atribuição, do silogismo e da demonstração, porém, permanecendo a lógica dos tópicos.
1 Hamelin crê descobrir duas concepções diferentes na teoria aristotélica do termo médio ( ibid ., p. 176). 2 Hamelin estima o estudo da proposição no tratado Da Interpretação muito diferente da dos Analíticos.
Na realidade, parece que esses dois estudos, longe de se oporem, se completam, considerando a proposição sob dois aspectos muito diferentes: como composição própria do nome e do verbo, como premissa princípio do raciocínio.
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Conclusão
Compreendemos agora o quanto é verdade dizer que a filosofia de Aristóteles enraíza-se profundamente em todo o patrimônio filosófico da Grécia e o quanto, no entanto, ela permanece original e pessoal. Aristóteles não é um simples compilador que estuda o que os outros disseram e se contenta em redizê-lo; não é um enciclopedista que quer reunir uma suma de todo o saber de seu tempo; ele não é um eclético que tenta conciliar tudo por amor à conciliação e à adaptação; nem tampouco um professor, como alguns ainda o pretenderam, que procura simplificar as questões que estuda, para torná-las mais acessíveis à inteligência de seus ouvintes. Aristóteles é verdadeiramente um filósofo, um amigo da sabedoria. É como amigo da verdade que consulta os predecessores, que os estuda, retém o que lhe parece ser verdadeiro em suas pesquisas e, da mesma forma, critica seus erros; é como amigo da sabedoria que tenta explicar por que e como certos filósofos opuseram-se tão violentamente — ele quer aproveitar-se de suas oposições, para melhor penetrar a verdade. É, ainda, como amigo da sa bedoria que ele ordena as diversas espécies de conhecimento, mostrando suas conexões e o que as distingue. Decerto, por essa razão, ele é mais capaz de os ensinar... Se este é de fato um dos caracteres próprios do sábio, não se trata do fim próprio da sabedoria. Este não pode ser senão a contemplação do Ser primeiro, graças a uma procura da verdade. Aristóteles sabe muito bem da diferença entre a filosofia e a retórica, para confundir a procura da verdade com o prazer de se adaptar a uma platéia no único objetivo de convencê-la ou de lhe agradar. Assim, Aristóteles «apodera-se» de todas as tendências filosóficas dos predecessores, mas sem copiar, nem repetir: ele as transpõe e freqüentemente lhes dá uma significação toda nova. Ele se serve de tudo quanto foi dito antes dele, do ponto de vista filosófico, assimilando-o ou criticando-o. Uma coisa permanece muito nítida: discípulo de Platão durante vinte anos, Aristóteles sempre recusou taxativamente as formas ideais. Ao recusar a intuição primeira da filosofia de Platão, a que está na origem de sua síntese genial, Aristóteles separa-se radicalmente de seu mestre no nível da inteligência, embora continue a amá-lo... É em nome da experiência, que por sua vez compreende-se em razão da unidade substancial do homem, que Aristóteles recusa as idéias e a reminiscência. Ele outorga toda a sua atenção à experiência e funda sobre ela toda sua reflexão filosófica. Trata-se da experiência no sentido forte, implicando as sensações externas, o contato direto com as realidades físicas enquanto elas existem, pelo juízo de existência. A experiência é de fato o ponto de partida de toda a filosofia de Aristóteles, ele volta a ela constantemente.
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES Essa experiência implicando os sentidos externos não exclui em nada a experiência interna da consciência que temos de amar um amigo, de realizar uma obra, de cooperar com um outro homem — a união mesma destes dois tipos de experiência é, para Aristóteles, a experiência no sentido mais forte, caracterizando o conhecimento humano. Sendo assim, nesta experiência é implicada a vivência do homem, a lucidez própria que ele tem de ser um vivente que se move. Porém, a vivência não é nunca separada de suas duas fontes, objetiva e subjetiva. Nisso Aristóteles, elaborando sua própria filosofia ética, considera-se mais próximo do ensino de Sócrates que Platão. Ele não hesita em afirmar que a doutrina moral de Platão afasta-se nitidamente da de Sócrates! Portanto, Aristóteles é certamente o filósofo da experiência, tanto no domínio propriamente humano quanto no domínio especulativo. No mundo hodierno, é muito importante colocar em plena luz este ponto de partida da filosofia aristotélica, que a caracteriza de maneira tão nítida. De fato, esta é a razão pela qual a filosofia permanece em contato com as ciências experimentais e as ciências humanas. Se a filosofia de Aristóteles é a da experiência e a da vivência, porém ela não fica neste nível; a experiência é seu ponto de partida. Com efeito, ela é fonte de admiração, como Aristóteles o sublinha; e a própria admiração está na origem da interrogação. Experiência e interrogação são inseparáveis como verdadeiro ponto de partida da filosofia. Graças à interrogação, a inteligência pode engajar-se mais profundamente na procura da verdade, ultrapassando a experiência. A interrogação permite descobrir, através da realidade experimentada e nela, algo de novo que somente a inteligência no seu apetite de verdade pode captar: os princípios próprios. É a démarche muito qualitativa da indução; ela permanece verdadeiramente toda qualitativa, e é o que a diferencia da indução baconiana... Seríamos tentados em dizer que a distinção destes dois tipos de indução é muito semelhante à que Pascal opera entre o espírito de finura e o espírito de geometria, distinção que só o espírito de finura capta! Somente o que compreendeu a indução de Aristóteles compreenderá o que queremos dizer... A indução é verdadeiramente a démarche mais qualitativa da inteligência: ela passa do visível ao invisível, da experiência que se pode descrever à apreensão do princípio próprio, da causa própria que só a inteligência pode atingir — é o seu domínio próprio. Mas as interrogações são diversas: Aristóteles soube precisá-las e servir-se delas na pesquisa propriamente filosófica, o que lhe permite colocar em luz o caráter próprio de cada uma das quatro causas. Interrogando «o que é?», a inteligência descobre a forma; interrogando «de que?», ela descobre a matéria; interrogando «de onde?», ela descobre a origem, a causa eficiente; interrogando «em vista de que?», ela descobre o fim. E, por vezes, Aristóteles não hesita em acrescentar, em relação a certas realidades experimentadas, a pergunta «sob qual modelo?», que permite captar o modelo, a causa exemplar (o paradigma). Estas quatro ou cinco interrogações (que dão a conhecer o que é a realidade, seu ti esti) pressupõem a interrogação que vem antes de toda outra interrogação e que nos faz sair do 264
CONCLUSÃO sonho e de nossas imaginações (e, portanto, das formas ideais): «isto existe?» ( ei esti). Isto é capital para se compreender o que é original no pensamento de Aristóteles. Ele é o filósofo de o-que-é e não dos possíveis — embora saiba que a atividade poética, artística, olha uma qualidade particular de possíveis, precisamente os que o homem é capaz de realizar. Logo, se a filosofia de Aristóteles não parte dos possíveis, ela não os negligencia, mas os situa. Eles são sempre segundos. Enfim, as quatro interrogações, precisamente por causa do juízo de existência (que está no princípio de toda indução filosófica, e do qual depende sempre a apreensão das causas próprias), requerem esta nova interrogação do como ( pôs). Esta tem como objeto a realidade existente considerada através de seus diversos princípios. Assim, há uma apreensão singular dos princípios filosóficos, em sua própria maneira de existir. Portanto, de fato, encontramos três grandes interrogações, tendo cada uma seu caráter próprio; elas implicam também uma certa ordem, já que a interrogação do ti esti pressupõe o ei esti, e que a interrogação do pôs pressupõe as duas precedentes. Esta ordem implica algo comum: o-que-é enquanto ser. Este une a realidade existente imediatamente atingida pela experiência no juízo de existência, a apreensão dos princípios próprios, e esta mesma realidade existente atingida filosoficamente, através do irradiar de seus diversos princípios próprios, na sua maneira de existir. A inteligência pode, então, captar as qualidades próprias da realidade. O «algo comum» é captado em três níveis diferentes, de três maneiras diferentes. Dar razão dele requer a analogia, isto é, a proporção, a unidade na diversidade. Então, compreendemos que, se a filosofia de Aristóteles é a da experiência, ela atinge, no entanto, uma estrutura propriamente científica graças à apreensão dos princípios próprios e ao irradiar destes princípios na realidade existente — lembremos que nos referimos a um estatuto científico no sentido em que Aristóteles o define nos Segundos Analíticos. Este estatuto científico implica o conhecimento de termos universais simples, que são os elementos de toda proposição, de toda enunciação atingida pela indução. De fato, esses termos universais estão em níveis diferentes de extensão e de compreensão tais como o universal genérico (animal), o universal específico (homem), assim como o próprio e o acidente. O nascimento deste universal põe um problema a todo filósofo: não é o problema fundamental de toda crítica do conhecimento? Com efeito, o universal não é experimentado e ele é condição sine qua non de nosso conhecimento científico. Não é a primeira passagem do visível ao invisível, de Pedro a homem? Poder-se-ia dizer: a passagem do singular à sua qüididade, da substância primeira à substância segunda. Para Aristóteles, filósofo da experiência, este problema toma uma importância capital. Ele lhe permite, de resto, criticar positivamente a filosofia das Idéias. E volta a ser capital para nós face a todas as ideologias modernas, pois se trata de derrubá-las dos seus tronos: trata-se de suprimir o imperialismo das idéias inatas de Descartes, dando à experiência toda sua importância filosófica. A experiência é certamente o que nos permite ter o primeiro conhecimento da realidade existente distinta de 265
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES nosso pensamento e à qual nosso pensamento permanece sempre relativo. A passagem da imagem — fruto último da sensação, colocando em plena luz a figura, a forma sensível, — à forma intencional universal não pode ser feita senão por uma potência separada da matéria. Esta revela-se a nós através de nosso conhecimento intelectual; constatamos, com efeito, que a imagem tem a capacidade de representar a realidade experimentada e que nosso conhecimento intelectual implica a significação. Há um vínculo entre os dois e, a um só tempo, trata-se de dois níveis de conhecimento totalmente outros. Um e outro são próprios ao nosso conhecimento. Vivemos ao nível sensível quando sonhamos, imaginamos, nos representamos tal pessoa encontrada, tal realidade experimentada. Vivemos ao nível intelectual quando pensamos a significação própria de «homem». Estes conhecimentos são operações vitais imanentes, cada uma no seu nível, que dependem da mesma fonte. Cada um pode dizer: eu imagino, eu penso. Portanto, é preciso pôr uma fonte intelectual, iluminando a imagem, para extrair dela a forma intencional universal. Ela realiza uma abstração radical, da qual não temos consciência, mas que somos obrigados a pôr para explicar esta passagem do visível ao invisível, do «imagino» ao «penso». Por outro lado, entre a representação de Pedro e o conhecimento intelectual de homem, há uma continuidade na ordem da determinação, da forma: homem provém de Pedro. Evidentemente, em Pedro, homem está oculto através da individualidade, da originalidade, da existência singular; em homem, a qüididade é perfeitamente exprimida. A significação da qüididade provém, portanto, de Pedro que foi imediatamente atingido pela experiência. É necessário, pois, que o intelecto agente posto seja uma potência intelectual eficaz sem nenhuma determinação própria, para colocar em luz a qüididade de Pedro, sua forma específica. Sublinhemos que esta continuidade entre Pedro e homem é a da vivência ao nível de nossa vida intelectual; sendo assim, o intelecto agente é posto como uma potência intelectual imanente a toda nossa vida de conhecimento. É um poder de eficiência espiritual, que ilumina do interior e faz parte de nossa vida intelectual. Ele ilumina, abstraindo a forma intencional qüiditativa, deixando de lado tudo o que é individual, singular em Pedro. Esta iluminação, de fato, realiza-se de cinco maneiras diferentes, segundo as cinco modalidades do universal que lembramos. Esta diversidade não deve ser compreendida também em função das diversas modalidades da experiência que temos da mesma realidade existente, singular, em função de nossas diversas sensações? Aristóteles não fala disso, mas é fácil, na sua perspectiva, levar até o fim este primado da experiência e o papel próprio do intelecto agente, cujo fruto vemos no que se chama os cinco predicáveis. Quanto à categorias, seria interessante situá-las a partir de nossas experiências. Já situamos as duas primeiras (substância primeira e substância segunda, qüididade): é fácil compreender que, quando estamos em contato direto com Pedro, nosso amigo, podemos rapidamente distinguir, se quisermos descrevê-lo em sua integridade, qual sua quantidade (grandeza e peso), suas qualidades, sua inteligência, sua capacidade de amar, sua fisionomia, sua maneira de andar, etc. Nisso vemos o realismo muito simples das categorias, que 266
CONCLUSÃO permanecem ao nível descritivo de nossas diversas maneiras de olhar, de experimentar a realidade existente complexa outra que nós. Os predicáveis são as diversas maneiras como nosso intelecto agente abstrai a realidade. As categorias ordenam nossos diversos conhecimentos experimentais da realidade singular existente mais perfeita: o homem, Pedro. Os predicáveis estão do lado de nosso conhecimento intelectual abstrativo e dão as modalidades do universal, fruto deste conhecimento. Ao contrário, as categorias consideram a realidade existente segundo suas diversas determinações: a determinação fundamental — a substância primeira, Pedro — , a determinação essencial — a substância segunda, homem. A inteligência humana manifesta-se em primeiro lugar, para nós, no conhecimento artístico; é um conhecimento de realização, como vimos. Se Aristóteles não o tematiza senão em sua Poética, é preciso reconhecer que ele está sempre presente em todas as partes de sua filosofia: ele desempenha um papel fundamental, primeiro conforme a ordem genética. O conhecimento artístico não determina toda a filosofia de Aristóteles, mas ele a condiciona, porque nossa inteligência, como vimos, está ligada à experiência em todo seu desenvolvimento. O conhecimento artístico coloca em plena luz esta aliança de nossa inteligência e das sensações, sem esquecer a imaginação nem todo um desenvolvimento afetivo. A pintura ou a escultura não manifestam uma inteligência realizadora, capaz de expressar em uma matéria o que trazemos no mais íntimo de nós mesmos na inspiração, o que Platão chamava um «delírio divino»? Aristóteles se serve freqüentemente deste conhecimento artístico. Não é analisando a obra artística que ele distingue em primeiro lugar a forma e a matéria, já que, precisamente, a forma pode ser realizada em diferentes matérias? O círculo pode ser de bronze ou de madeira. Esta distinção da matéria e da forma impõe-se imediatamente à nossa reflexão, pois ela pode ser realizada numa separação. O círculo permanecerá sempre círculo em sua qüididade, em sua forma, mas ele é outro se ele é feito de chumbo ou de madeira. Na experiência da atividade artística, é fácil também distinguir a fonte do trabalho artístico e sua finalidade; poder-se-á também precisar o arquétipo. Estas diferentes causalidades, quando se trata da obra e do conhecimento artístico, impõe-se à nossa análise filosófica. Também podemos descobrir facilmente o que representa nosso conhecimento afetivo no amor de amizade. O amor que temos por nosso amigo transforma o conhecimento que temos dele. Não se trata de um simples conhecimento exterior (o que poderíamos ter descrevendo-o psicologicamente, em suas qualidades e seus defeitos). É um conhecimento que se vale do amor para penetrar mais adiante no conhecimento do amigo, do homem-amigo. Então, estamos na presença da aliança da inteligência e do amor, a um só tempo, voluntário e passional. Graças ao amor, nossa inteligência penetra mais profundamente no conhecimento do amigo que ela considera, que ela deseja conhecer. O amigo que conhecemos, então, nos é intimamente ligado, e o conhecemos como muito próximo de nós, muito intimamente ligado 267
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES a nós. Com isto, captamos nele, de modo muito mais profundo, suas qualidades, suas disposições e mesmo suas falhas, seus limites. Este conhecimento afetivo conhecerá diversos estados. Ele é perfeitamente ele mesmo na escolha da amizade: aí a inteligência e o amor são tão ligados, que se pode dizer que esta escolha é tanto um ato de amor, como um ato de inteligência. Como o amor é o ponto de partida de uma certa eficácia — a união afetiva nos conduz à união efetiva — , este conhecimento afetivo poderá ser fonte de um certo olhar prudencial com relação aos meios que nos permitem cooperar, realizar obra comum com o amigo, para estar mais próximo dele e levar uma vida comum com ele. Ordinariamente diz-se que este conhecimento prudencial é prático, indicando com isso que já não é a vontade afetiva que especifica nosso conhecimento ou o modifica profundamente, mas que é nossa vontade de eficácia prudencial. Assim, podemos distinguir estas duas orientações do conhecimento prático: prudencial, por um lado, e realizador de uma obra, por outro lado. Uma é finalizada pela união com o bem que procuramos e que consideramos como nosso fim; a outra é finalizada pela obra. Existem duas eficácias voluntárias especificamente diferentes e fontes das duas procuras muito tipicamente humanas da ética e da arte. Aristóteles, filósofo da ética, sempre soube discernir e analisar estas duas eficiências, tão freqüentemente confundidas nas ideologias modernas. Enfim, Aristóteles discerniu e precisou bem a diferença destas duas atividades com a atividade propriamente política que é finalizada pelo bem comum. Este não é uma obra no estado puro, nem uma pura procura ética dos meios em vista do fim; ele harmoniza estes dois tipos de conhecimento prático, de maneiras diferentes segundo a diversidade dos regimes políticos, porém mantendo o caráter próprio de cada uma e descobrindo o seu próprio caráter. Portanto, dever-se-á sempre distinguir o que é verdadeiro no plano artístico, no plano político e no plano ético. Algo pode ser verdadeiro artisticamente e não o ser politicamente. Algo pode ser verdadeiro politicamente e não o ser no plano da ética pessoal. No entanto, é preciso manter uma ordem entre os três e tender para o fato de um governo político poder ao menos respeitar as exigências éticas dos cidadãos. A nível do conhecimento e da prudência política, encontramos de novo a aliança da inteligência e da vontade prática, porém de uma vontade prática toda ordenada para a concórdia entre os cidadãos. Nosso conhecimento intelectual pode, no entanto, penetrar mais adiante nas realidades existentes, na procura da verdade amada por si mesma. É o que Aristóteles chama de filosofia teorética, que compete ao nosso enquanto separado da matéria, não tendo órgão próprio. Nosso nous é, então, determinado pela descoberta dos princípios próprios da realidade experimentada com o socorro das sensações. Nossa inteligência é capaz de captar a substância, embora, no seu exercício, ela tenha sempre um vínculo com nossos conhecimentos sensíveis e imaginativos, com a imagem. Nossa inteligência é capaz de 268
CONCLUSÃO procurar a verdade por ela mesma, como seu bem próprio; ela não é finalizada pela obra ou pela atividade ética, como nos conhecimentos artísticos ou éticos. Esse conhecimento teorético permanece na sua pura imanência. Evidentemente, sempre há nisso um perigo de se separar do fim próprio do homem, de sua felicidade, enquanto a inteligência, na procura da verdade, não descobrir a existência do Ser primeiro. Mas, tendo-o descoberto como a verdade última, ela pode contemplá-lo e atinge nisto a plena felicidade humana. Aqui se vê como o conhecimento afetivo — dizemos bem afetivo e não prático — pode permitir ao conhecimento teorético atingir aquilo para o qual ele é feito de modo último: a contemplação do Ser primeiro. Não é preciso amar a verdade para descobri-la no que ela tem de mais ela mesma? De fato, o conhecimento especulativo conhece diferentes níveis de penetração, captando os princípios próprios de o-que-é-movido, de o-que-se-move e de o-que-é enquanto ele é. O primeiro permanece sempre ligado ao sensível. O segundo escapa ao sensível pelo conhecimento da alma imortal, embora permaneça ainda muito ligado a ele pelo conhecimento do corpo vivente. Quanto ao terceiro nível, ele se separa totalmente do sensível e pode atingir de modo último o Ser primeiro e as substâncias separadas. Esta distinção da verdade intelectual prática, afetiva e teorética, Aristóteles a descobre em face ao pensar de Platão que nunca pôde apreendê-la em razão mesmo da dialética das Idéias. Esta distinção não se impunha a Platão que se situava imediatamente no mundo invisível das formas-em-si, rejeitando o mundo sensível como uma zona infra-inteligível. Esta distinção permite compreender de maneira orgânica e intelectual as grandes partes da filosofia de Aristóteles, uma vez que tudo parte da experiência. A experiência nos coloca sempre em contato com realidades móveis. Portanto, é necessário estudar especulativamente o que é a realidade movida como tal. As realidades movidas existem; logo, eu devo estudar através delas o que é o ser. Por outro lado, devo estudar o vivente. Quanto aos conhecimentos práticos, são nossas três atividades humanas, face ao universo (face à matéria), face ao homem, face à comunidade. É de fato a experiência, perfeitamente respeitada e, no entanto, ultrapassada graças à indução, que nos dá a chave desta ordem interna da filosofia de Aristóteles. Esta importância da experiência, implicando o juízo de existência «isto é», nos mostra bem como o pensamento filosófico é verdadeiramente ordenado a o-que-é como ser — diríamos hoje: é uma filosofia realista (objetiva). Poderíamos perguntar se ela não exige ser completada por uma filosofia do espírito, na qual o que é ordenado ao pensamento depende do mesmo, e, por esta razão, mostra-se a superioridade do pensamento sobre o-que-é, na qual exalta-se a subjetividade transcendental do espírito. Esta filosofia subjetiva mostra o primado do pensamento sobre o ser, à diferença da filosofia de Aristóteles, que mostra o primado de oque-é enquanto ser sobre o pensamento humano. Portanto, há duas metafísicas, e devemos 269
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES tentar a síntese? Devemos dizer que há como dois momentos na nossa filosofia européia? Haveria um primeiro momento com o desenvolvimento desta filosofia realista (objetiva) na Grécia, e um segundo momento durante o qual uma filosofia subjetiva se desenvolve de Descartes até Hegel, com um primado da idéia cada vez mais manifesto. Se se pergunta qual destas duas filosofias é a mais verdadeira, é evidente que se responderá imediatamente: «Sua concepção da verdade depende de sua concepção filosófica. As duas não têm sua verdade?» No entanto, parece que, comparando-as para saber qual se impõe a nós, em primeiro lugar é um critério de extensão que é o mais manifesto. Uma filosofia do primado da experiência e de o-que-é enquanto ser tem uma extensão maior, já que, de certo modo, ela pode englobar uma filosofia do espírito e compreendê-la, embora reconhecendo que não se pode mais afirmar o primado do pensamento sobre o ser. Ela a engloba, portanto, transformando-a. Ela a engloba, porque nosso conhecimento intelectual é sempre o de algo, de alguém. O cogito «em estado puro» não existe. Ou este alguém e este algo existem e, então, reconhecemos que antes do pensamento há uma realidade outra que o pensamento; ou este algo não passa de um possível. Mas o próprio possível não está sempre em referência com o-que-é, mesmo na ordem do devir? Para que uma realidade venha a ser, é preciso que haja uma fonte anterior que não seja mais da ordem do possível. Este critério de extensão é interessante, mas permanece sempre um pouco material... Portanto, não pode ser senão um sinal . O verdadeiro critério será a descoberta da finalidade, do bem e da relação do bem com o-que-é, com o ser. Terminando, sublinhemos que a apreciação segundo a qual o hilemorfismo seria a distinção capital da filosofia de Aristóteles implica a confusão de dois pontos de vista. A distinção, porém, é constante e muito importante na sua filosofia: o que é primeiro na ordem genética e o que é primeiro na ordem de natureza. Aristóteles a coloca em luz quando mostra a anterioridade do ser-em-ato sobre o ser-em-potência (do ponto de vista da ordem de perfeição) e, no entanto, a anterioridade do ser-em-potência sobre o ser-em-ato na ordem do devir (a ordem genética). Decerto, a distinção da matéria e da forma é fundamental e primeira geneticamente; mas ela não é capital, porque ela não caracteriza a ordem de perfeição. O-queé implica a primazia da substância sobre os acidentes e a primazia do ser-em-ato sobre o serem-potência. São estas duas distinções que caracterizam verdadeiramente a filosofia de Aristóteles. Enfim, a partir de um certo tempo, tem-se costume de qualificar a «metafísica» de Aristóteles de ousiologia, 1 como se a pesquisa do ser-em-ato não fosse o cume de sua pesquisa filosófica. Ainda aqui não se confunde o primeiro conforme a ordem genética com o 1 Assim
é que se opõe freqüentemente a «metafísica» de Aristóteles e a que São Tomás usa para elaborar a teologia científica. A metafísica de São Tomás seria a do esse; a de Aristóteles, uma ousiologia. Ora, o próprio Tomás afirma que o esse é o actus essendi. É pelo ato que ele precisa o que é o esse: o esse é um modo particular do ato. Não é o ser-em-ato. E Aristóteles é certo o que descobriu o ser-em-ato como causa final de oque-é.
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CONCLUSÃO primeira conforme a ordem de perfeição? Decerto, é evidente que a filosofia primeira de Aristóteles é, em primeiro lugar, a descoberta da substância, o primeiro conforme a forma de o-que-é enquanto ser. Mas sua análise filosófica não termina com esta descoberta da substância, causa segundo a forma de o-que-é. Toda a sua filosofia, na dimensão da análise, encontra sua plenitude na descoberta do fim. E, quando se trata da filosofia primeira, o fim próprio de o-que-é enquanto ser é precisamente o ser-em-ato. Assim, se a nota especial da filosofia aristotélica é de fato a ordem — o que é normal, uma vez que, para o Filósofo, «o próprio do sábio é ordenar» e, portanto, em primeiro lugar, ordenar seu próprio pensamento — , compreendamos bem que esta ordem não é factícia, uma simples classificação artificial, a priori e arbitrária. É o fruto de uma pesquisa filosófica que não se contenta em descrever fatos, mas que quer penetrar até suas causas próprias, respeitando sua diversidade. Eis o que caracteriza mais profundamente esta filosofia. Porque ela procura as causas próprias, ela exige um rigor intelectual muito grande; porque estas causas são diversas, exige uma grandíssima flexibilidade. Mas como esta diversidade das causas implica uma certa proporção, a grande flexibilidade intelectual que ela exige não é outra coisa senão o sentido desta proporção. Precisamente é por isso que é tão difícil compreender bem o pensamento de Aristóteles, e é a razão pela qual, tomada materialmente e de modo exterior, ele aparece tão freqüentemente caótico e repleto de contradições, mesmo para espíritos muito distintos. Se se quer abordá-lo com um espírito de finura e de rigor científicos, saber-se-á descobrir, sob essas pretendidas contradições e incoerências, o esforço maravilhoso do filósofo que quer remontar até às causas e aos princípios próprios. Decerto, não pretendemos que Aristóteles tenha dito tudo e que tudo o que disse seja sempre perfeito. Certas conclusões, sobretudo em filosofia da natureza ou em política, devem ser revistas e criticadas. Mas não são principalmente as conclusões de sua filosofia que nos interessam: é o sentido filosófico e o «método» utilizado. Nisso, Aristóteles nos aparece como incomparável e merece verdadeiramente o título que a Idade Média lhe dava: «O mestre dos que sabem».
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BIBLIOGRAFIA
Sendo nosso objetivo introduzir a uma leitura filosófica dos próprios textos do Estagirita, não quisemos estabelecer uma bibliografia completa sobre Aristóteles — outros estudos o fizeram. Além das referências das obras citadas, indicamos trabalhos ou artigos que propiciam desenvolvimentos sobre tal ou tal ponto particular.
Traduções brasileiras consultadas: ARISTÓTELES: - A Metafísica. Trad. Editora Globo. Porto Alegre, 1969 - Ética a Nicômacos, Trad., introd. e notas de Mário da Gama Kury, 2a edição, Edunb, Brasília 1992.
Outras obras: ARNIM, Hans von P - Die drei aristotelischen Ethiken, Vienne und Leipzig 1924. - Zu W. Jaegers Grundlegung der Entwicklungsgeschichte des Aristoteles, Wiener Studien, XLVI 91928), pp. 1-48. - Die Entstehung der Gotteslehre des Aristoteles, Hölder, Vienne und Leipzig 1931. AUBENQUE, Pierre: Le problème de l’être chez Aristote, 5e édition, PUF, Paris 1983. BONITZ, Hermann: Index aristotelicus, Berlin 1870, 2a ed. Akademische Drukc und Verlagsanstalt, Graz 1955. BRAGUE, Rémi: Aristote et la question du monde, PUF, Paris 1988. DIELS, Hermann und Dranz Walther: Die Fragmente des Vorsokratiker , 3 vol. Weidmann, Zürich - Hildesheim 1987. DUMONT, Jean-Paul : Les Présocratiques, Intro. trad. et notes, Bibliothèque de la Pléiade, gallimard, Paris 1987. DÜRING, Ingemar: Aristotle in the ancient biographical tradition, (Acta Univ. Gothoburgensis, LXIII,2) Stockolm 1957. FESTUGIÈRE, André-Jean : L’idéal religieux des Grecs et l’Évangile, (coll. Études bibliques), Gabalda, Paris 1932. GAUTHIER , René-Antoine: - Magnanimité. L’idéal de la grandeur dans la philosophie païenne et dans la théologie chrétienne, (Bibliothèque thomiste, 28), Vrin, Paris 1951.
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES - Introduction, traduction et commentaire de l’ Éthique à Nicomaque (en coopération avec J.-Y. JOLIF), 2e éd. Publications universitaires — Béatrice-Nauwelaerts, Louvain - Paris 1970. HAMELIN, Octave: Le système d’Aristote, 2e éd. revue, Librairie Félix Alcan, Paris 1931. HÉSIODE : Théogonie, Les travaux et les jours, Le Bouclier , texte établi et traduit par Paul Mazon, 12e tirage, «Les Belles Lettres», Paris 1986. JAEGER , Werner : - Das Pneuma in Lykeion, Hermes, 48, 1913. - Aristoteles Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung , Berlin 1923; Tr. inglesa por R. Robinson, Aristotle, Fundamentals of the history of his development , translated with the Author’s corrections and Additions, 2e ed. Oxford UP, réimp. 1967. (citamos segundo a traduçõa inglesa). LE BLOND, Jean-Marie: - Logique et Méthode chez Aristote, Vrin, Paris 1939, (3e ed. 1973) - Aristote, philosophe de la vie. Le livre premier du traité sur les Parties des animaux, texte et traduction avec intr. et commentaire, Aubier Montaigne, Paris 1945. LORITÉ Mena, José: Pourquoi la métaphysique? La voie de la Sagesse selon Aristote, Téqui, Paris 1977. LOUIS, Pierre: - La découverte de la vie. Aristote (coll. Savoir), Hermann, Pris 1975. - Vie d’ Aristote (coll. Savoir) Hermann, Paris 1990. MAIER , Heinrich: Die Syllogistik des Aristoteles, Tübingen, 1896-1900. MANSION, Auguste: - La genèse de l’œuvre d’Aristote d’après les travaux récents, Revue néoscolastique de philosophie, 1927, p. 297-341, 423-466. - Introduction à la Physique aristotélicienne, 2e éd. revue et augmentée. Éditions de l’Institut supérieur de Philosophie - Vrin, Louvain-Paris 1946; réimp. 1973. MONLÉON, Jacques de : Marx et Aristote, (coll Réfléchir), FAC, Paris 1984. MORAUX, Paul P - Les listes anciennes des ouvrages d’Aristote, Éditions universitaires de Louvain, 1951. - Recherches sur le De Caelo d’Aristote, objet et structure de l’ouvrage, Revue Thomiste 1951, pp. 170-196. MOREAU, Joseph: - L’âme du monde de Platon aux Stoïciens, Olms, Hildesheim and New York 1971. - Aristote et son école, (coll, Dito), 2e éd. PUF, Paris 1985. MURALT, André de : L’invention du discours métaphysique chez Aristote, (coll. reprise), Vrin , Paris 1985.
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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
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INDEX NOMINUM Alexandre 12 Lutero 24 Anaxágoras 13, 17, 106, 118, 159, 160, mecanicistas 116, 150 205 Megáricos 190 Anaximandro 15 Melissos 18, 105, 106 Anaxímenes 15 Mênon 13 Antipater 13 Nicômacos 12 Calipe 135 Occam 24 Demócrito 106, 118, 149 Demófilo 13 Parmênides 16, 17, 100, 105, 106, 110, Descartes 14, 24, 266 201 Pitagóricos 15, 18, 32, 97, 118, 159, 162, Eleatas 105, 232 178, 201, 204 Empédocles 17, 18, 106, 134, 136, 159, Pítias 12 160 Platão 9, 10, 11, 12, 19, 20, 21, 22, 23, 24, Espeusipo 11 25, 27, 28, 30, 36, 37, 40, 47, 49, 58, 63, Eudemo 10 65, 66, 79, 85, 86, 87, 90, 93, 94, 97, 99, Eudemo de Rhodes 13 100, 101, 102, 103, 105, 110, 111, 113, Eudoxo 135 116, 117, 118, 134, 136, 150, 151, 154, Eurimedon 13 156, 157, 159, 160, 162, 176, 177, 178, 188, 189, 193, 196, 201, 204, 215, 216, Filipe 11, 12 227, 228, 231, 232, 240, 257, 259, 260, Filolau 17 263, 265 Filopon 10 Plotino 193, 201 físicos 15, 18, 20, 102, 105, 106, 108, 111, Protágoras 190 112, 113, 118, 159, 162, 178, 179, 188, pseudo-Amônio 10 189, 196, 201 Hegel 266 Heráclito 16, 24 Hérmias 11, 12, 13 Herpillis 12 Hesíodo 14 Jaeger 154 Leucipo 17, 149, 216 Lísis 17
Sócrates 13, 18, 19, 23, 27, 30, 58, 85, 86, 87, 94, 232, 260 sofistas 18, 19, 21, 27, 40, 61, 94, 97, 172, 179, 232, 235, 237, 244 Tales 15 Teofrasto 13 Xenócrates 11 Zenão 18