ALEXANDRE LUÍS VICENTE
ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO E ARRANJO DE UMA COISA: “NANÔ, DE MOACIR SANTOS.
FLORIANÓPOLIS – SC 2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DEPARTAMENTO DE MÚSICA
ALEXANDRE LUÍS VICENTE
ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO E ARRANJO DE UMA COISA: “NANÔ, DE MOACIR SANTOS.
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Educação Artística: Habilitação em Música do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em música sob orientação do Professor Mestre Paulo Demetre Gekas.
FLORIANÓPOLIS – SC 2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DEPARTAMENTO DE MÚSICA
ALEXANDRE LUÍS VICENTE
ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO E ARRANJO DE UMA COISA: “NANÔ, DE MOACIR SANTOS.
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Educação Artística: Habilitação em Música do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em música sob orientação do Professor Mestre Paulo Demetre Gekas.
FLORIANÓPOLIS – SC 2008
ALEXANDRE LUÍS VICENTE
ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO E ARRANJO DE UMA COISA: “NANÔ, DE MOACIR SANTOS.
Trabalho de conclusão de curso aprovado como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado na graduação em Educação Artística - Habilitação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca examinadora: Orientador: _________________________________________________ Professor Mestre Paulo Demetre Gekas UDESC Membros:
________________________________________________ Professor Doutor Acácio Tadeu Piedade Pi edade UDESC
_______________________________________________ Professor Leonardo Corrêa Garcia UDESC
FLORIANÓPOLIS, SC Trinta de junho de dois mil e oito
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar à minha família, pelo amor, apoio e incentivo à música Ao maestro Moacir Santos Ao professor Paulo Demetre Gekas, pela orientação e amizade Aos membros da banca, professor Acácio Tadeu Piedade e professor Leonardo Corrêa Garcia, pela atenção e disponibilidade dedicada a este trabalho Ao professor e amigo Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas, pela grande influência em minha formação musical e acadêmica À professora Tereza Franzoni, pela orientação na elaboração do projeto deste trabalho Ao Gabriel Muniz Improta França, pela generosidade em partilhar sua dissertação A todos meus parceiros musicais, que com certeza influenciaram esta pesquisa Àqueles que por ventura venham a ler este trabalho e dele tirem algo para si
RESUMO
O objetivo deste trabalho de conclusão de curso é analisar a obra de Moacir Santos, levantando e problematizando aspectos concernentes à prática de composição e arranjo. Para isso, focamos nossa pesquisa em sua Coisa nº 5, presente no LP Coisas, de 1965. A análise privilegiará os elementos forma, harmonia, melodia e contraponto. As referências são as teorias da análise harmônica tonal, análise funcional, processo temático, análise motívica, e técnica de arranjo linear. Para apoiar nossa análise, contextualizaremos a trajetória do compositor, e o lançamento do disco Coisas, além de promover discussões sobre os termos arranjo e composição e os conceitos de popular e erudito na formação de Moacir Santos.
Palavras-chave: Moacir Santos. Composição. Arranjo. Análise. Motivo. Melodia em Bloco.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................10 1 BIOGRAFIA..........................................................................................................................12 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DAS COISAS............................................................................16 2.1 LP COISAS...........................................................................................................................16 2.2 COISA Nº 5..........................................................................................................................18
3 COMPOSIÇÃO E ARRANJO.............................................................................................21 3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS..................................................................21 3.2 O POPULAR E O ERUDITO EM MOACIR SANTOS......................................................24
4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE....................................................................................29 4.1 ESCOLHA DO REPERTÓRIO............................................................................................29 4.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO.........................................................................29 4.3 REFERÊNCIAS PARA ANÁLISE......................................................................................31
5 ANÁLISE DO PARÂMETRO ALTURA EM COISA Nº 5..............................................38 5.1 FORMA................................................................................................................................38 5.2 HARMONIA.........................................................................................................................40 5.2.1 Análise harmônica e funcional...........................................................................................40 5.2.2 Considerações sobre o tom................................................................................................42 5.2.3 Interpretações dos acordes.................................................................................................42 5.2.4 Sobreposição entre naipes..................................................................................................47 5.2.5 Aberturas dos acordes (drops)...........................................................................................49 5.3 MELODIA:ANÁLISE MOTÍVICA E PROCESSO TEMÁTICO.......................................54 5.3.1 Seções A e A’.....................................................................................................................54 5.3.2 Seção B..............................................................................................................................61 5.3.3 Soli de flauta e sax barítono...............................................................................................63 5.3.4 Seção C (Coda)..................................................................................................................71
5.4 CONTRAPONTO................................................................................................................75 5.4.1. Melodia em bloco.............................................................................................................75
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................83 PÁGINAS CONSULTADAS NA INTERNET.......................................................................86 REFERÊNCIAS FONOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS....................................................87 ANEXOS....................................................................................................................................88
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – cifra e partitura dos acordes para guitarra................................... guitarra.............................................................. ..............................40 ...40 Figura 2 – esquema de análise harmônica e funcional..................................... funcional............................................................ ..........................41 ...41 Figura 3 – modo blues completo..................................... completo............................................................ .............................................. .....................................43 ..............43 Figura 4 – escala de lá dominante diminuta.................................................. diminuta......................................................................... ..............................44 .......44 Figura 5 – escalas de sol lídio b7, frígio maior e alterada.................................... alterada..........................................................4 ......................455 Figura 6 – redução da harmonia da base introdutória............................................................... introdutória.................................................................47 ..47 Figura 7 – redução r edução da harmonia da introdução.................................. introdução......................................................... .........................................48 ..................48 Figura 8 – redução da harmonia da repetição da introdução.................................................. introdução......................................................48 ....48 Figura 9 – redução do bicorde final da introdução.................................. introdução......................................................... ...................................49 ............49 Figura 10 – drop do acorde D7(#9)....................................................... D7(#9).............................................................................. ......................................50 ...............50 Figura 11 – drop do acorde A7 (b9, 13)............................................ 13)................................................................... ..........................................50 ...................50 Figura 12 – drop dos acordes G7(9,13) e G7(#9, b13)........................................................... b13)...............................................................50 ....50 Figura 13 – drop do acorde C7(#9)......................................... C7(#9)................................................................ .............................................. .............................51 ......51 Figura 14 – drop do acorde Gm7......................................................... Gm7................................................................................ .......................................51 ................51 Figura 15 – drop do acorde Fm7......................................... Fm7................................................................ .............................................. .................................51 ..........51 Figura 16 – drop do acorde Bb7sus4.................................................... Bb7sus4........................................................................... ......................................52 ...............52 Figura 17 – drop do acorde A7(b5)........................................ A7(b5)............................................................... .............................................. ..............................52 .......52 Figura 18 – drop do acorde Eb7(#9)................................................... Eb7(#9).......................................................................... ........................................52 .................52 Figura 19 – drop do acorde Ab7(13)...................................... Ab7(13)............................................................. .............................................. ..............................53 .......53
Figura 20 – drop do acorde Db7(9)....................................................... Db7(9).............................................................................. ......................................53 ...............53 Figura 21 – drop do acorde final............................................. final.................................................................... .............................................. .............................53 ......53 Figura 22 – antecedente tema 1 e conseqüente tema 1B.............................................. 1B............................................................55 ..............55 Figura 23 – divisão do tema 1 em inciso1 e inciso 2.......................................... 2................................................................. ........................55 .55 Figura 24 – alturas do tema 1 em clave de sol....................................................... sol............................................................................5 .....................566 Figura 25 – comparação entre tema 1 e tema 1B e 1B casa 2....................................................5 2....................................................566 Figura 26 – análise intervalar do tema 1......................................................... 1................................................................................ ............................56 .....56 Figura 27 – tema 1 em movimento contrário..................................... contrário............................................................. .........................................57 .................57 Figura 28 – comparação entre tema 1B 1 B e inciso 1 em movimento contrário.............................57 contrário.............................57 Figura 29 – comparação comparação entre o tema 1B casa 1 e inciso 2 em movimento contrário...............58 contrário...............58 Figura 30 – comparação entre o tema 1B casa 2 e inciso 2 em movimento contrário................59 Figura 31 – comparação entre inciso 2 em movimento contrário e sobreposição da casa 1 e casa 2 do tema 1B.......................................... 1B................................................................. .............................................. .............................................. .......................................60 ................60 Figura 32 – conclusão do processo temático na seção A...................................................... A............................................................61 ......61 Figura 33 – origem do tema B........................................... B.................................................................. .............................................. ..................................61 ...........61 Figura 34 – tema da d a seção B............................................ B................................................................... .............................................. ....................................62 .............62 Figura 35 – alturas e fragmentos f ragmentos do tema da seção B.......................................................... B.................................................................62 .......62 Figura 36 – comparação entre tema da seção B e tema B....................................................... B..........................................................62 ...62 Figura 37 – comparação entre trecho do tema da seção A em Gm e Dm com o tema da seção B.............................................. B..................................................................... .............................................. .............................................. .............................................. ...............................63 ........63 Figura 38 – nossa transcrição tr anscrição do solo de flauta em A e A’........................................................64 A’........................................................64
Figura 39 – Nossa transcrição do solo de flauta em A e A’ analisada através de símbolos da legenda.................................. legenda......................................................... .............................................. .............................................. .............................................. .................................66 ..........66 Figura 40 – Legenda da análise motívica do soli.......................................................... soli........................................................................66 ..............66 Figura 41 – comparação entre contorno melódico do solo de flauta e tema 1 e tema t ema 1B casa 2............................................ 2................................................................... .............................................. .............................................. .............................................. ..................................67 ...........67 Figura 42 – aumentações do motivo no solo de flauta......................................................... flauta................................................................68 .......68 Figura 43 – elaborações elaborações motívicas do próprio solo de flauta.................................................. flauta.....................................................68 ...68 Figura 44 – elaboração motívica do próprio solo de flauta........................................................68 flauta........................................................68 Figura 45 – referências motívicas à harmonia no solo de flauta.................................................6 flauta.................................................699 Figura 46 – transcrição original do solo de sax barítono........................................ barítono............................................................70 ....................70 Figura 47 – nossa transcrição tr anscrição da melodia em bloco e análise motívica.....................................71 motívica.....................................71 Figura 48 – comparação entre trecho do tema t ema 1B e tema C.......................................................71 C.......................................................71 Figura 49 – análise motívica da introdução.................................................... introdução........................................................................... ............................73 .....73 Figura 50 – origem das partículas da introdução no tema 1B.................................................. 1B.....................................................73 ...73 Figura 51 – comparação entre o trecho do tema 1B e introdução........................................... introdução..............................................73 ...73 Figura 52 – sobreposição do início da introdução, tema 1B casa 2 e tema da seção B originando trecho da introdução..................................... introdução............................................................ .............................................. .............................................. .................................74 ..........74 Figura 53 – análise da melodia em bloco com base na técnica linear........................................76 linear........................................76 Figura 54 – tabela da classificação dos intervalos pela dissonância...........................................77 dissonância...........................................77
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INTRODUÇÃO Dois fatores principais foram responsáveis por dar impulso a esta pesquisa. Em primeiro lugar, a admiração pela música de Moacir Santos, da qual compartilho diversos ideais. Segundo, o desejo de aprofundar meus estudos na área de arranjo e composição. A partir disso, na fase de projeto deste trabalho de conclusão de curso, nos questionamos se existiria um método de análise que contemplasse arranjo e composição em um mesmo plano. A princípio isto surgiu pela necessidade de uma direção, pois estes conceitos estão intimamente ligados na concepção musical de Moacir. Percebemos através da pesquisa, que a literatura sobre música popular brasileira ainda é limitada, e visamos contribuir neste campo, iniciando por este trabalho. Uma parcela bastante ampla da experiência musical é abarcada no ato de compor e arranjar. Inicia por um embrião no processo compositivo, que sofre intensa elaboração até chegar ao arranjo em sua forma final. Este processo entrelaça a música a aspectos históricos, estéticos, socioculturais, econômicos, antropológicos, psicológicos, éticos e tantas outras variáveis. Tal amplitude gera uma infinidade de aspectos que podem ser incluídos numa tentativa de compreensão da composição e arranjo de uma obra através da análise musical. Disto nos veio a idéia de analisar a “Coisa Nº 5”, ou “Nanã” de Moacir Santos com a intenção de explicitar seu processo criativo como compositor e suas ferramentas como arranjador, levantando algumas destas variáveis no percurso da análise. Para tal, no primeiro capítulo iniciamos com uma biografia, que visa cobrir de forma concisa sua iniciação musical, carreira profissional e formação. O segundo capítulo busca contextualizar o lançamento do LP Coisas em 1965, onde está inserido nosso objeto de estudo, a Coisa nº 5. No terceiro capítulo, promovemos uma discussão sobre os termos composição e arranjo, e o hibridismo da música de Moacir Santos em relação aos conceitos de popular e erudito.
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Já no quarto capítulo, mencionamos as razões sobre a escolha do repertório, e fazemos considerações sobre o método de análise empregado e nossas referências . O quinto capítulo traz a análise propriamente dita dos elementos harmonia, melodia e contraponto. Por fim, fazemos considerações finais sobre nossa análise, levando em conta os resultados e particularidades do método que adotamos, e levantamos o que percebemos dos processos de composição e arranjo de Moacir Santos. Também trazemos sugestões de uma continuação deste trabalho, tanto na análise relacionada ao campo da composição e arranjo, quanto à pesquisa sobre o maestro.
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1.BIOGRAFIA Moacir Santos1 é um compositor e arranjador nascido em 26 de julho de 1926, em São José do Belmonte, no interior do estado de Pernambuco. Teve uma infância pobre, e iniciação musical precoce, através da atividade como músico e diretor de bandas de música, o que proporcionou uma intensa peregrinação pelas cidades nordestinas durante sua adolescência, assim
como seu contato com grande variedade de instrumentos. Podemos visualizar um pouco deste período através de suas próprias palavras: Eu fui criado em Flores até os quatorze anos. Eu tinha três aninhos quando minha mãe faleceu e deixou cinco filhos. Lembro-me que eu estava batendo latas no quintal e alguém falou: Moacir venha cá para ver sua mãe. Eu fui para parede e pus-me a chorar porque eu percebi que estava faltando algo na mamãe, eu acho que ainda não sabia o que era morte. Tinha umas quatro ou cinco crianças assistindo o meu choro ou talvez chorando por mim também. Essas crianças tomavam parte da minha banda, por que a gente imitava banda de música e eu era maestro. Todos nuzinhos, porque não tinha dinheiro para comprar roupa e também porque lá era muito quente.[...] Quando mamãe morreu, eu fui tomado por uma família em Flores. Flores tinha somente mais ou menos cinco ruas principais só. [...] Só sei que fui morar perto do ensaio da banda, muito pertinho. Então eu mexia nos instrumentos e ouvia me dizerem: não mexe aí não, moleque. Eu me lembro de ter sido repreendido. Mas no próximo ensaio eu estava lá de novo. Alguém me elegeu – eu já tinha cinco anos – para tomar conta dos instrumentos. Me disseram: não mexe aí não moleque. Mas eu não fui vaidoso a ponto de ficar dolorido. [...] Voltei 1
As informações contidas nesta biografia tiveram como fonte: ADNET, Mário e NOGUEIRA, Zé. Coisas: cancioneiro Moacir Santos. Rio de Janeiro, Jobim Music, 2005 . FRANÇA, Gabriel Muniz Improta Coisas: Moacir Santos e a composição para seção rítmica na década de 1960. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. http://www.dicionariompb.com.br http://www.marioadnet.com/ http://jc.uol.com.br/2006/08/07/not_116938.php
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e os rapazes da banda tanto fizeram que elegeram Moacir para tomar conta dos instrumentos. Então eu aprendi a tocar todos os instrumentos, porque já podia mexer e tocar e tal.[...]Eu não tinha nada. Eu nunca tinha passado mais do que um mês em cada cidade: Paraíba, Bahia, Pernambuco...Eu saí fugido de casa com catorze anos. A lei da libertação dos escravos ainda não tinha muito tempo. Nas escolas, no banco, as pessoas não estavam acostumadas a um negro. Em Flores, na escola, eu tinha sido aprovado com distinção e louvor. Então eu era um danadinho, mas eu não sei... eu não sou gênio, não. (SANTOS apud FRANÇA, 2007 p. 146147)
Moacir começa a atuar profissionalmente em 1944, na banda da polícia militar de João Pessoa, Paraíba, como sax-tenorista. Em 1945, desliga-se da banda e ingressa na jazz band PRI – 4 Rádio Tabajara como solista da jazz, e ainda clarinetista do conjunto regional desta emissora. Já em 1947 foi nomeado maestro diretor musical da PRI – 4. A atividade profissional de Moacir Santos foi muito intensa a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1948. Na então capital da República, ingressara na Rádio Nacional no mesmo ano de chegada, atuando como instrumentista. Em 1951 foi contratado como arranjador e regente desta emissora, que era a mais popular e poderosa da época, e que tinha em seu quadro importantes maestros, como Radamés Gnattali, Lírio Panicalli e Léo Peracchi. A partir de 1949 estuda Harmonia, Contraponto, Fuga e Composição com os professores mais renomados da época: Paulo Silva, José Siqueira, Virgínia Fiusa, Cláudio Santoro, João Batista Siqueira, Nilton Pádua, Guerra Peixe, e ainda H.J. Koellreutter, do qual se tornou assistente e substituto. Em 1951 torna-se um dos maestros arranjadores da PRE – 8, Rádio Nacional. No ano seguinte, estuda a técnica dodecafônica com o compositor Ernest Krenek, que havia vindo ministrar um curso de férias, em Teresópolis (RJ). O professor ministrou, na primeira aula os preceitos e regras da Técnica dos 12 Sons, sistema criado por Arnold Schoenberg. Como não falava inglês nessa época, Koellreutter, diretor artístico do curso, serviu de intérprete para a comunicação entre professor e aluno, que “foram surpreendidos por Moacir, ao compor, de imediato, uma música no novo método”(ALBIN, 2008).
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Em 1956, após dois anos trabalhando como maestro da TV Record de São Paulo, retomou suas atividades na Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. Ainda neste ano, trabalhou como assistente do compositor Ary Barroso, na gravadora Rosemblit, e como condutor de orquestras em gravações da Copacabana Discos. Os esforços de Moacir Santos o transformariam em um dos mais requisitados compositores/arranjadores do Brasil na primeira metade da década de 1960, compondo, arranjando e conduzindo orquestras para gravadoras, teatros de revistas, televisão e filmes para o cinema. Durante toda década de 60 Moacir Santos ministrou aulas particulares a inúmeros músicos, muitos deles ligados à bossa nova, a ponto de ter sido considerado “o patrono da bossa nova” (FRANÇA,2007, p.141). Dentre seus alunos podemos destacar: Baden Powell, Sérgio Mendes, Nelson Gonçalves, Pery Ribeiro, Nara Leão, Dori Caymmi, Darcy da Cruz, Carlos Lyra, Paulo Moura, Roberto Menescal, Maurício Einhorn, Oscar Castro Neves, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Marçal, Bola Sete, Dom Um Romão, João Donato, Airto Moreira, Flora Purim, Raul de Souza e Chico Batera. Em 1965 no Rio de Janeiro, compõe a trilha de Ganga Zumba, filme de Carlos Diegues, que dará origem ao LP Coisas, onde está inserido o objeto de estudo deste trabalho, a música Coisa nº5. Ainda neste ano, compõe trilha para seu primeiro filme americano, Amor no Pacífico,
de Zygmunt Sulistrowski. Seu êxito lhe valeu uma passagem aérea do Itamaraty
para assistir a pré-estréia do filme nos Estados Unidos da América. Neste país se estabelece, alegando os contratos musicais serem bem melhores que no Brasil, e lá residiu a partir de 1967 até o ano de sua morte, em 2006, onde exerceu também intensa atividade musical, trabalhando em trilhas para cinema, inclusive na equipe de Henry Mancini (em 1968) e Lalo Schifrin (em 1970). Por lá lançou três álbuns pelo selo Blue Note , o primeiro deles indicado ao Grammy Award , e um pelo selo Discovery Records. Moacir Santos prosseguiu com a atividade regular de professor nos EUA, tendo se tornado membro da MTAC ( Music Teachers Association of Califórnia ) em 1977.
A partir de então obtém maior reconhecimento no Brasil, recebendo diversos diplomas e homenagens, de 1985 a 1999. Volta ao Brasil em 2001, para acompanhar o projeto dos músicos Mario Adnet e Zé Nogueira, que iniciam um processo de reconhecimento do trabalho do maestro no Brasil e
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exterior, que iniciou com a gravação de uma coletânea, o cd duplo Ouro Negro. Retorna em 2005, quando é gravado o cd Choros & Alegria, com músicas inéditas, o DVD Ouro Negro e o lançamento de três songbooks, Coisas, onde Adnet e Nogueira transcreveram todos os arranjos originais, que haviam sido perdidos em 1970, Ouro Negro e Choros & Alegria.
Os dois
pesquisadores também foram responsáveis pelo relançamento e remasterização do disco Coisas de 1965, depois de 39 anos fora de catálogo no Brasil. Menos de um mês depois vencer o Prêmio Shell de Música, fruto dos recentes lançamentos, vem a falecer em 6 de junho de 2006, em Los Angeles, Califórnia.
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2. CONTEXTUALIZAÇÃO DAS COISAS 2.1. LP COISAS Coisas é o nome do primeiro álbum de Moacir Santos, lançado em 1965 pelo extinto selo Forma. Foi o único LP lançado no Brasil sob sua direção integral e anterior ao derrame cerebral que sofreu. Coisas tem parte de sua gênese no longa-metragem Ganga Zumba, de Carlos Diegues, filme de 1964, de temática afro-brasileira, sob direção musical de Santos. Nesta obra, ouvemse pela primeira vez gravações de trechos das Coisas nº 5, 4 e 9. O título abstrato das Coisas, numeradas de 1 a 10 fazem referência ao opus das composições eruditas, refletindo intenções de diálogo com este campo. A este respeito, Moacir declarou: [...]eu, quando na minha vida de estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudição, o clássico... eu fiquei agarrado com a palavra “opus”. Quando eu cheguei na gravação (do álbum “Swings with Jimmy Pratt, de Baden Powell), a convite do Baden, no estúdio, o moço desceu da técnica e disse: maestro, qual é o nome dessa (composição)? Eu disse: isso é uma coisa. Porquê? Porque eu gostaria de dizer opus 5, number tal, mas é uma coisa muito elevada para mim. Pelo menos naquela ocasião, naquela época...mas eu sei que eu estou muito mais maduro, em vez de opus qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda não posso dizer opus, não, porque eu sempre fui admirador do clássico também, a música erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... então é uma coisa: Coisa nº 1, Coisa nº 2...(SANTOS apud FRANÇA, 2007, p. 142- 143)
Quando o vanguardista selo Forma foi vendido para a antiga Philips, atual Universal, no início dos anos 70, Coisas saiu de catálogo, e assim permaneceu por 39 anos, até seu relançamento em 2005. O baú entregue à gravadora continha a fita da gravação, que estava intacta e as partituras originais que foram perdidas. Aqui, mencionaremos a recepção por parte de dois críticos renomados, Rui Castro e Hugo Sukman, respectivamente, ao álbum de Moacir Santos: “(O álbum Coisas possui uma)
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originalidade e uma beleza que, se disser que foi gravado ontem, ninguém terá razão para duvidar” (CASTRO apud FRANÇA, 2007, p10). Na verdade, mais do que os temas em si, a importância de“Coisas” é ter inventado uma língua própria para a orquestra brasileira.[...] se a língua de Pixinguinha curiosamente “embranquecia” as idéias musicais negras de sambas e batucadas, adaptando-as aos formatos orquestrais europeus, a de Moacir ia na direção oposta, tornava a música brasileira ainda mais negra. (SUKMAN apud ADNET e NOGUEIRA, 2005 p.19)
Segundo Zuza Homem de Melo, no prefácio do cancioneiro Coisas, o LP foi surpreendente para a época: A obra musical e orquestral do Maestro tem uma personalidade tão forte um perfil tão original que, rigorosamente não se encaixa em nenhum período da música popular brasileira de sua época. Nem de qualquer outra. Enquanto em 1960 a música brasileira que atraía o mundo era a Bossa Nova, o Maestro se dedicava a trilhas de cinema com sotaque afro que culminaram em 10 temas instrumentais dos mais intrigantes no cenário musical de então. (MELO apud ADNET e NOGUEIRA, 2005, pg.13)
Para uma contextualização da importância do lançamento de Coisas para a música brasileira e cenário musical da época, não podemos deixar de incluir aqui trechos do contundente texto(ANEXO A) escrito em 1965 pelo dono do selo Forma Roberto Quartin, para o encarte original de Coisas: Ao reunir suas composições, Moacir Santos criou, mais que um disco, um documento histórico autêntico dentro do mapa da música popular brasileira. Autêntico, pois, trata-se de um músico negro fazendo música negra. E não de um garoto de Ipanema contando as tristezas da favela, ou de um carioca que nunca foi além de Petrópolis a enriquecer o cancioneiro nordestino. Histórico, em primeiro lugar, por conter uma síntese completa e expressiva do formidável papel que o negro desempenhou em toda nossa música popular.[...] Também histórico, porque Moacir mostra [...] que se pode dar um sentido social à música, sem que para isso se precise mediocrizá-la.[...] Moacir esperou muitos anos, e só o fato de conseguir dizer o que queria num momento em que o panorama brasileiro anda conturbado, onde as maiores aberrações são aceitas e aplaudidas, o coloca definitivamente num pedestal de importância histórica de dimensões incalculáveis.[...] Esse seu disco pode ser um grito de desespero contra tudo isso que está errado, contra tudo isso que impediu que fosse ele reconhecido mais cedo.
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Percebemos que o disco Coisas carrega em si um expressivo e relevante posto dentro da história da música e cultura brasileiras. É impressionante e lastimoso perceber que a pesada crítica de Quartin ao cenário musical e indústria cultural do Brasil, revela-se atualíssima 43 anos depois, e que uma parcela do digno reconhecimento do maestro, ansiado por ele já na época, foi adiado pelo esquecimento por parte da indústria fonográfica, que fez ressurgir Moacir em nosso país somente em 2005, apenas um ano antes da sua morte.
2.2. COISA nº5 Coisa nº 5 é a terceira das dez faixas do LP Coisas, e certamente é a composição mais difundida de Moacir Santos. Tem seu primeiro registro na trilha sonora de Ganga Zumba (1964), filme de Carlos Diegues, voltado à temática da escravidão e cultura afro-brasileira. O longa-metragem, que chegou a ser exibido na Semana da crítica do Festival de Cinema de Cannes, no mesmo ano, apresenta duas versões da composição. A primeira é a mesma contida no LP Nara, da cantora Nara Leão, onde a autoria é creditada a Moacir Santos e Vinícius de Moraes, e a segunda versão, ouve-se somente a introdução, com arranjo praticamente idêntico ao de Coisas (FRANÇA, 2007, p.99). É muito conhecida sob o título de Nanã, letrada (ANEXO B) pelo compositor Mario Telles, em seu primeiro e único LP. Vinícius de Moraes, poeta já renomado na época, e coautor de algumas músicas de Moacir, escreveu uma letra anterior, que foi rejeitada pelo compositor, por não corresponder à sua imagem da entidade religiosa. 2 “O quadro não era 2
Nãnã,[sic] composição de Moacyr Santos,[sic] evoca uma divindade presente no panteão sincrético IorubáIslâmico, pelo que pudemos apurar no texto de Reis. ‘Os malês estão também presentes no sistema divinatório dos dezesseis búzios, mais simples que o Ifá e talvez por isso mais divulgado. Um dos versos do jogo com dez búzios explica nada menos do que a origem do Ramadã. Conta que Nãnã, a velha mãe-d’água, mãe de todos os malês segundo uma tradição iorubá, havia adoecido gravemente. O jogo de búzios indicava que seus filhos deveriam fazer sacrifícios aos orixás, mas em vez disso eles alimentaram a mãe diariamente com mingau de milho. Ao final de trinta dias Nãnã estava acabada e prestes a morrer chamou seus filhos. Disse ela: ‘De hoje em diante quando cada ano se completar vocês devem passar fome por trinta dias. Não devam comer durante o dia, nem beber água’. Assim começou o jejum, os imàle, não devem quebrar o jejum. Esta é a origem doJejum.’
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aquele com gente espiando um banho de Nanã”, explica o compositor. “Nanã é uma mistura de sons onomatopaicos e, ao mesmo tempo, o nome de uma divindade africana que pode ser a mãe de Nossa Senhora ou a deusa do mar, dependendo da religião” (SANTOS apud SEVERIANO e MELO, 1998 p. 76). Foram registradas centenas de gravações de Nanã, no Brasil e exterior. “Tenho em casa mais de cem Nanãs, sendo umas cinqüenta, americanas” (SANTOS apud SEVERIANO e MELO, 1998 p. 76). Destas versões, grande parte foi gravada em levada de samba, no compasso 2/4, como na transcrição de Almir Chediak (ANEXO C), que foi muito difundida. A Coisa nº 5 foi composta originalmente no compasso ternário 3/4, durante as caminhadas do compositor pelo Parque Guinle, no Rio de Janeiro (SEVERIANO e MELO, 1998, p. 79), quando imaginou uma “procissão de negros” (DVD OuroNegro, 2005). Estamos em desacordo com a transcrição 3 de Adnet e Nogueira no cancioneiro Coisas, em relação à métrica, pois traz a música inteira transcrita no compasso 6/8(ANEXO D). O caráter binário composto é coerente apenas na seção introdutória, de contexto fortemente africano. O restante da composição é sentido em ternário simples, com intenção afro-brasileira. Na constituição da música de caráter religioso no Brasil, os ritmos, ou toques presentes no candomblé afroreligioso brasileiro estruturam-se, em grande parte sobre compasso ternário. “Um processo rítmico comum a que foram provavelmente submetidos dois gêneros da música brasileira tomados de empréstimo a culturas estrangeiras: a polca paraguaia e toques de candomblé que transcorrem em base rítmica ternária” (LACERDA, 2008, p. 208): Nossa intenção ao relacionar sua levada (sobre Coisa nº5) ao jongo foi apenas mostrar a proximidade entre um ritmo considerado de origem negra e sua música, explicitando suas técnicas e estratégias de composição de música afro-brasileira. Enfatizamos ainda que a utilização da levada em 6/8 por si só vai neste mesmo sentido. Acontece que dentre as levadas consideradas brasileiras, e não, afrobrasileiras, como é o caso, raramente listam-se levadas ternárias ou em 6/8. (FRANÇA, 2007 p. 117)
In REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil.A história do levante dos malês em 1835.São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.Edição revista e ampliada. Pgs 241-242. (CARVALHO, 2003 p.66) 3
Esta transcrição de Adnet e Nogueira presente no ANEXO D é a referência para a análise feita neste trabalho.
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Ressaltamos aqui que nosso trabalho será focado na análise musical, e não temos pretensões de investigar as raízes de aspectos históricos e etnomusicológicos na música de Moacir Santos. Para nós, o relevante são suas intenções como compositor e arranjador. Porém, no intuito de enriquecer nosso trabalho, consideramos estes aspectos em vários momentos, visando proporcionar um ponto de vista mais amplo, e sem o qual a análise ficaria comprometida.
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3. COMPOSIÇÃO E ARRANJO 3.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS Pelo fato deste trabalho ter a intenção de analisar e compreender uma criação de Moacir Santos, torna-se imprescindível primeiramente conceituar os termos composição e arranjo, para que possamos fundamentar sobre o que se estrutura sua concepção musical. As palavras composição e arranjo permitem imensa flexibilidade de significados, e as sutilezas entre os limites que permeiam as diferentes ações que os termos abrangem, provocam freqüente indefinição conceitual na literatura. Em termos práticos, a clareza destes termos não é uma exigência, torna-se natural e inerente ao processos de composição e arranjo, que se entrelaçam. No entanto, para o estudo acadêmico, torna-se essencial definir o que podemos entender sobre estes termos, e qual sua abrangência dentro do objeto de pesquisa. No que se refere à definição de arranjo propriamente dita, Paulo Aragão chama atenção para o fato de que: A procura por fontes que pudessem auxiliar e alicerçar as discussões promovidas aqui [artigo Considerações sobre o conceito de arranjo na música popular] mostrou o quão limitada é, ainda, a literatura específica sobre música popular; especialmente a que se refere à música popular brasileira, e apesar de o arranjo ser um tema absolutamente fundamental dentro dessa modalidade de música. A grande maioria dos dicionários a que recorremos traz definições de arranjo a partir do ponto de vista da música clássica. (ARAGÃO, 2001 p. 94)
Tendo isso em vista, julgamos importante considerar a acepção do termo arranjo dentro das esferas erudita e popular, motivados pelo hibridismo da música de Moacir Santos. Assim, teremos como referência, os verbetes do New Grove Dictionary e do New Grove Dictionary of Jazz, para traçarmos paralelos e
particularidades.
A definição que o New Grove Dictionary dedica quase todo verbete, seria a “transferência de uma composição de um meio para outro ou a elaboração (ou simplificação) de uma peça, com ou sem mudança de meio” (apud ARAGÃO, 2001 p.95). Esta concepção
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de arranjo se aproxima do cotidiano erudito, explicitada pelas palavras transferência e elaboração, num sentido de não interferir no material original da composição. Na prática erudita, ocorrem basicamente quatro categorias de arranjo (ARAGÃO, 2001 p.96). Primeiro, são comuns “arranjos comerciais”, ou seja, partituras elaboradas com objetivo de fazer uma composição alcançar um público consumidor sempre maior. Tanto no sentido de diversas formações, quanto arranjos de “clássicos popularizados”. Também poderiam ser incluídos arranjos que não trazem mudança de meio, como simplificações de peças virtuosísticas visando atingir instrumentistas amadores. Segundo, os “arranjos práticos”, que seriam representados pelas reduções de partes orquestrais ou corais para piano, por exemplo. Terceiro, arranjos elaborados com a intenção de expandir o repertório de instrumentos que, por alguma razão, tenham um corpo de peças originais limitado. E quarto, arranjos representados por reorquestrações motivadas pela necessidade de melhor aproveitamento de instrumentos modernos. O Grove indica um parâmetro de comparação entre o arranjo meramente prático, no qual há “pouco ou nenhum envolvimento artístico por parte do arranjador” (apud ARAGÃO, 2001 p.96), ponto de vista que se assemelha às quatro modalidades propostas acima por Aragão, do arranjo mais criativo, no qual a composição original é “filtrada através da imaginação musical do arranjador” (apud ARAGÃO, 2001 p.96), que sinaliza claramente uma maior intervenção no material básico de uma composição por parte do arranjador. Vejamos, sob um cunho mais jazzístico, e popular, a descrição do verbete “arranjo”, encontrado no New Grove Dictionary of Jazz: “a reelaboração ou recomposição de uma obra musical ou de parte dela (como a melodia) para um meio ou conjunto diferente do original; também a versão resultante da peça” (apud ARAGÃO, 2001 p.96). Aqui, apesar de sutilmente modificada da definição anterior, torna-se fundamental a perspectiva da reelaboração e recomposição. Por este motivo, percebemos um tratamento mais maleável à estrutura da composição popular, que concede maior liberdade e expressão à figura do arranjador. Ainda, considera a versão resultante da peça, ou seja, o momento da execução e seu produto final, passíveis de originar um novo arranjo. Frisando este pensamento, menciona que “toda a performance
de jazz, mesmo que improvisada e completamente renovada, constitui uma
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forma de arranjo, uma vez que os executantes rearranjam o material básico a cada nova variação” (apud ARAGÃO, 2001 p.97). Aqui, somos obrigados a perceber diferenciações básicas entre os dois universos em relação ao material original de uma composição e a figura do arranjador. Na criação musical erudita, temos uma dinâmica que compreende basicamente duas etapas. A partir de um universo sonoro disponível, o compositor organiza o material de acordo com sua imaginação musical, numa etapa de composição que contempla além do material original, todas suas exigências do que virá a ser executado por parte dos instrumentistas. Ou seja, após a primeira etapa, torna-se possível diretamente a segunda etapa, a execução, pois geralmente o material original chega completo e totalmente discriminado às mãos dos instrumentistas. A grande diferença encontra-se sob a forma do material original da música popular. Pela sua maior liberdade de interpretação, é praticamente impossível definir os limites originais de uma música. O original seria a partitura, a primeira execução ou a primeira gravação? Todos estes aspectos estão sujeitos a modificações, se levarmos em conta que “toda a performance de jazz, (ou no caso, música popular) mesmo que improvisada e completamente renovada, constitui uma forma de arranjo”. Constantemente, no cotidiano popular, o material bruto de uma composição é resumido no par melodia e cifra, como vemos nos Songbooks e Real Books de jazz. A partir deste bruto surge a necessidade da etapa de arranjo, anterior à execução. Vemos então, a obra tomando forma a partir de três agentes, que podem, ou não se fundirem em um: o compositor, o arranjador e o intérprete. Portanto, na música popular é possível perceber mais claramente a distinção entre as etapas de composição e arranjo, fundamentais para viabilizar a terceira. Entendemos que, de forma generalizante, (pois é inviável cobrir aqui todas as gradações e ramificações quase infinitas dos conceitos) o popular prescinde do arranjo, indiferente do nível de formalização desta etapa, situada entre a composição e a execução. Já no meio erudito comumente, composição e arranjo são gerados num mesmo plano, sob tutela do compositor. Por estas questões, a figura do arranjador no meio erudito carrega menor expressão, onde geralmente detém “pouco ou nenhum envolvimento artístico”. Não está aqui em questão
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o julgamento de valores como criatividade ou liberdade neste segmento de música, e sim que o momento onde a composição é, “filtrada através da imaginação musical do arranjador” existe, porém torna-se função geralmente delegada ao próprio compositor.
3.2. O POPULAR E O ERUDITO EM MOACIR SANTOS Baseados na discussão promovida sobre os conceitos, podemos tentar situar a composição e arranjo em nosso objeto de pesquisa, a música de Moacir Santos. Percebemos que através da trajetória, influências, gravações e concepção, Moacir compõe e arranja de forma a aproximar-se do universo erudito. Detém, sob sua responsabilidade, o papel de compositor e arranjador. Sua obra tem o rigor da composição erudita, através do uso da escrita tradicional, inclusive para os instrumentos da seção rítmica, utilizando técnicas oriundas desta prática, assimiladas através de anos de estudos com músicos eruditos como Guerra-Peixe, E. Krenek e H. J. Koellreutter, chegando a substituir este último como professor em diversas ocasiões. Se comparado a vários compositores identificados com a música popular brasileira, suas músicas não podem ser reduzidas ao par melodia e cifra sem que se perca parte substancial da composição, que se revela nos contracantos, seção rítmica, timbres e instrumentação. Apesar disso, Moacir não é identificado e nem reconhecido como um compositor do meio erudito, e pertence ao segmento da música popular, o que denota o hibridismo de sua obra, constante na cultura brasileira. Esta peculiaridade não é exclusiva de Moacir na história da nossa música popular, que encontra antecedentes expressivos, como Pixinguinha, Radamés Gnatalli, e até Villa-Lobos, que comumente é escalado no time dos eruditos. A música destes compositores é reconhecida justamente por se originar da justaposição e fricção entre o universo popular e erudito, tradição brasileira que se manteve com Antônio Carlos Jobim, e atualmente Egberto Gismonti e Guinga, para citar alguns exemplos. Na valorização do popular por parte de Moacir, deve ter sido preponderante a influência de seu professor Guerra-Peixe, mestre do nacionalismo e defensor das idéias modernistas.
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A influência da música erudita pode ser verificada também nas composições e arranjos de alguns jazzistas norte-americanos, além de uma referência à concepção de composição de Duke Ellington, que é tido como o maior compositor e arranjador negro do jazz. Segundo Eric J. Hobsbawm em A História Social do Jazz, Ellington “deu ao blues sua forma orquestral” (1990, p.119). Esta afirmação revela que uma das maiores influências de Moacir já fazia em sua obra o intercâmbio entre conceitos e técnicas eruditas e populares, na relação da orquestra com a música negra das classes baixas dos Estados Unidos. Somente ao longo de algumas décadas, através do trabalho de arranjadores como Don Redman, Duke Ellington e John Nesbitt, é que se constatou que arranjo e improvisação não são procedimentos contraditórios, muito pelo contrário, o que de fato contribuiu para a consolidação do arranjo como uma necessidade no jazz. (ARAGÃO, 2001 p.98)
Quando questionado sobre a influência de Duke Ellington, Moacir comenta: Eu ouvi muito. Eu acho que ouvi as orquestras de jazz americano em João Pessoa, Paraíba. Eu ouvi bem a música americana [...] Pelo rádio. Então eu pensei que a musica americana era música de outro planeta, mais elevado. Então eu fiz a música de um filme americano e ganhei uma passagem [...] pensava que o músico americano era de um planeta mais elevado, quando eu ouvi o jazz na Paraíba. Mas, quando eu cheguei lá eu notei, bem mesmo, que o melhor músico do mundo está lá. Mas o pior do mundo está lá também. E trabalhando! Então, eu pensei, tem lugar para mim. (risos). (FRANÇA, p.149)
Esta resposta revela uma grande admiração de Moacir pela música americana, além do desejo e necessidade de se inserir neste ambiente, deixando claro que a influência das orquestras de jazz foi decisiva na formação de sua concepção musical. A música de Santos caracteriza-se muito pela presença de elementos populares, ligados a cultura afro-americana. Podemos ouvir constantemente em sua obra referências claras ao samba, afoxé, candomblé, jazz e blues de forma direta, nos planos harmônicos, melódicos e rítmicos. Uma das possíveis razões da identificação e busca de Moacir pela cultura afro-americana sendo um brasileiro, afro-descendente pode ser entendida através do conceito da transversalidade, onde podemos sentir o jazz e o blues como elementos de um
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legado cultural comum, compartilhado e sentido como autêntico e legítimo pelos descendentes da diáspora africana em todo continente americano. Para exemplificar brevemente este conceito citaremos a obra de Paul Gilroy,: Essas significações podem ser condensadas no processo da apresentação musical, embora, naturalmente não as monopolize. No contexto do Atlântico negro, elas produzem o efeito imaginário de um núcleo ou essência racial interna, por agir sobre o corpo por meio dos mecanismos específicos de identificação e reconhecimento, que são produzidos na interação íntima entre artista e multidão. Esta relação recíproca pode servir como uma situação comunicativa ideal mesmo quando os compositores originais da música e seus eventuais consumidores estão separados no tempo e no espaço ou divididos pelas tecnologias de reprodução sonora e pela forma de mercadoria a que sua arte tem procurado resistir.(GILROY apud CARVALHO, 2003, p.68).
A década de sessenta, e o fim da década anterior, representaram uma época em que houve grande exposição e valorização de elementos da cultura negra tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Na música brasileira, este processo aconteceu numa espécie de resgate ao samba e renovação da Bossa Nova. Podemos mencionar como exemplos, o espetáculo Orfeu da Conceição (1956), transposição da mitologia grega para o contexto das “favelas, macumbas, clubes e festejos negros” (CABRAL, 1997, p.100) do Rio de Janeiro, início da parceria Moraes e Jobim, em 1965; o show Elizeth sobe o morro, onde a cantora interpretava sambas de morro, acompanhada por Nelson Cavaquinho ao violão; o LP onde Nara Leão grava sambas de Zé Kéti e Cartola, este último encontrado e “resgatado”, após anos de ausência nos meios musicais, lavando carros como meio de subsistência; a “descoberta” da cantora negra Clementina de Jesus por Hermínio Bello de Carvalho; e o lançamento de Os Afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moares, um ano depois, em 1966, que deram continuidade ao movimento da Bossa Nova. Sobre o LP Os Afro-sambas, responsável por gerar um movimento relevante dentro da música popular brasileira, é importante frisar que foi fortemente influenciado por Moacir, de acordo com declaração do então seu aluno Baden Powell: Moacir me passava os exercícios de composição em cima dos sete modos gregos, os modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a se tornar, mais tarde, os afro-sambas” (Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, Segundo caderno, de 24 de março de 2000). (POWELL apud FRANÇA, p. 5)
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Podemos perceber que a valorização de elementos negros, em conjunto com elementos da música erudita na formulação da composição e arranjos da MPB foi vital neste momento da música brasileira: O cenário bossanovista pontua fortemente um momento de transição na música popular, um momento em que informações da cultura erudita penetram o campo do popular, tensionando esse domínio. Os compositores do final dos anos 1950, no Brasil, vivenciaram [...] a prática de experimentações formais condizentes com um mundo marcado pela transitoriedade e pelo excesso de informações (NAVES, 2004, p.84).
Por outro lado, tal transição tem como conseqüência promover o surgimento e confirmação de uma música com uma estética híbrida e de grande valor artístico, situada entre os dois universos. A bossa nova foi talvez o primeiro momento da chamada música brasileira no qual a artificialidade da discussão popular versus erudito foi revelada e desmoralizada. A falsa questão foi, por seu intermédio, superada. A bossa nova jamais se transformou em forma popular. Não toca nos bailes, o povo não a compõe nem a repete. Tampouco se fez música chamada erudita. Nem popular, nem erudita: gênero próprio, original, indefinível, por isso rico (TÁVOLA, 2002, p.55).
Portanto, tal hibridismo não é privilégio de Moacir Santos, está no âmago da própria música brasileira deste período, que parece estar situada entre classes altas e baixas, entre o erudito e o popular. Podemos aqui, traçar um paralelo desta situação com personagens que evidenciam tal dualidade em nossa música popular. Tom Jobim é o expoente de músico oriundo de uma família da classe alta e rica do bairro da Tijuca, que através de sua formação, influência, poderes e visão, dialogou com a classe baixa, com o povo, o morro, o samba, e a pobreza, gerando a profundidade de sua obra. O extremo oposto é a obra de Moacir, negro, nascido no interior de Pernambuco, órfão, paupérrimo, que através de um esforço brutal buscou a erudição e conhecimento, lutando pela excelência em sua música. Curiosamente, neste contrastante paralelo autenticamente brasileiro, de alguma forma ambos se interseccionam
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como alunos de Koellreutter, e Moacir tornando-se seu assistente e professor de inúmeros compositores da Bossa Nova.
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4. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE 4.1. ESCOLHA DO REPERTÓRIO A escolha de Coisa nº5 como objeto de análise para este trabalho deve-se ao motivo de ser a música mais difundida de Moacir, e, portanto mais representativa de sua obra. Outro fator preponderante ao selecionar uma música do LP Coisas, é que nossa intenção foi analisar uma música englobando as esferas do arranjo e composição. Dos três cancioneiros editados pela dupla Adnet e Nogueira, este é o único que traz os arranjos completos, com todos os instrumentos na grade. Nos songbooks Choros & Alegria e Ouro Negro, optaram por partituras reduzidas a piano e melodia, o que elimina a possibilidade de uma observação de suas técnicas como arranjador. Além disso, este foi o único LP lançado no Brasil sob sua direção integral e anterior ao derrame cerebral que sofreu, o que garante que os arranjos do LP Coisas traduzem exclusivamente a concepção musical de Moacir, em uma fase de completa integridade mental.
4.2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO A proposta inicial deste trabalho partiu da intenção de compor uma análise musical capaz de cercar a multiplicidade de aspectos concernentes a um arranjo, através da justaposição de diversas teorias, com o objetivo de compreendê-lo de forma integral. Para isso, deveríamos considerar aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos no mesmo estudo, numa tentativa de perceber amplamente a concepção de Moacir Santos. Devido à complexidade da proposta, consideramos sensato limitar a análise à somente uma música, pelos fatores condicionantes de um trabalho de conclusão de curso.
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Na composição deste método, procuramos uma fonte que fosse capaz de abranger tantas particularidades. Encontramos nas definições dos campos de análise de Dante Grela 4 a proposta da análise paramétrica, que foi de encontro aos nossos propósitos. Os parâmetros para a análise são as propriedades do som: altura, duração, intensidade e timbre. Por sua vez, cada parâmetro é dividido em elementos a serem analisados: altura divide-se em melodia, harmonia e contraponto; duração divide-se em tempo, métrica e rítmica intensidade divide-se em dinâmica e acentuação; e por fim, timbre divide-se em orquestração, textura e articulação. Por considerar como princípios as propriedades básicas do som, que se subdividem em elementos musicais, julgamos bastante completa a proposta de Grela como ponto de partida e guia formal para a análise. O próximo passo foi situar como estes elementos ocorrem em Coisa nº5, e a partir disto, definir autores e teorias específicas que apoiassem a análise dos parâmetros. Tendo isto determinado, partimos para a análise propriamente dita, que foi realizada em todos os parâmetros. Percebemos, com a coleta de dados em mãos, que tornar-se-ia inviável, num esforço desproporcional, descrever neste trabalho a composição e o arranjo de Moacir num ponto de vista tão amplo. A análise mostrou-se demasiado extensa, densa e até mesmo pretensiosa para as finalidades deste trabalho e momento da carreira acadêmica. No entanto, isto sinaliza uma real possibilidade de estudo no futuro. Tendo isto claro, julgamos de bom senso para este trabalho focarmos apenas no parâmetro altura, que consideramos como o mais apropriado dentro da proposta de revelar aspectos da concepção musical deste compositor e arranjador. Cabe mencionar aqui que de acordo com nossa análise, Moacir Santos destina uma parcela extremamente significativa em sua maneira de arranjar ao parâmetro duração, valorizando e explorando profundamente elementos como métrica e rítmica. Para um entendimento ainda mais completo do autor em questão, sugerimos atenção a este aspecto.
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Compositor argentino, natural de Rosário, professor de Composição, Orquestração, Acústica Musical e Análise na Escola de Música da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosário e no Instituto Superior de Música da Universidade Nacional do Litoral.
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4.3. REFERÊNCIAS PARA ANÁLISE Ao compor nossa proposta de análise, fomos compelidos a propor procedimentos que contemplassem tanto aspectos da composição quanto do arranjo no mesmo trabalho, pois entendemos que o processo compositivo de Moacir abarca estas duas práticas num mesmo plano, e este é nosso objetivo aqui. Devemos, para tanto, delimitar os processos relativos à composição dos relacionados ao arranjo. Tendo isto claro, tornou-se necessário empregar métodos de análise específicos, munidos de ferramentas capazes de traduzir estas duas instâncias. Para isso, recorremos ao pensamento de Nattiez, que divide o fato musical 5 em três dimensões analíticas: a) nível poiético (do grego: poietikós, que produz, que cria; poíesis, ação de fazer algo) – este nível é concernente ao processo de composição, em que são considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento do ato de criação, tais como sociologia e história da música, biografia do compositor, aspectos antropológicos, etc.; b) nível neutro – é a própria obra musical (neutro porque não existe por si mesmo, mas somente na medida em que há quem a realiza – compõe e/ou toca – e quem a percebe), são considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento da obra (independentemente de como foi concebida ou de como é percebida), tais como análise morfológica, análise harmônica, etc.; c) nível estésico (do grego: aisthetikós, sensível; aísthesis, ato de perceber) – este é o processo de recepção da obra musical por parte dos ouvintes, em que são considerados os aspectos que fazem parte da recepção da obra, tais como psicologia da audição, acústica musical, estética musical, etc. (MATTOS apud FREITAS, 2005, p 1-2)
Este modelo tripartido é representado por Nattiez da seguinte forma:
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Por fato musical, os semioticistas entendem a totalidade da experiência musical, em todas as suas nuanças e características, desde a primeira idéia construtiva do compositor até a audição por parte do público, passando por aspectos socioculturais, econômicos, históricos, estéticos, interpretativos, éticos, antropológicos, psicológicos, etc.
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Ao compreender a autonomia entre os três níveis, consideramos fundamental para o nosso trabalho levar em conta métodos de análise no nível poiético, relativas ao processo de composição, e teorias relacionadas ao nível neutro, visando descrever ferramentas utilizadas na produção do arranjo. A partir da tripartição, Nattiez apresenta outro quadro, em que distingue seis diferentes famílias da análise musical, compreendidas da seguinte maneira: a) Análise Imanente – esta é uma família de análise que, trabalhando com uma metodologia explícita ou implícita, aborda somente as configurações imanentes da obra, sem tomar parte na pertinência poiética ou estésica das estruturas assim discernidas. Em outras palavras, são as análises que somente consideram o texto musical e não os processos e condições de criação, execução ou recepção. Nattiez exemplifica esta família com a análise rítmica de Boulez da Sagração da Primavera (1966), a análise da música atonal com base na Teoria dos Conjuntos de Allen Forte, ou as análises com base na informática. b) Análise Poiética Indutiva – nesta família analítica procede a partir da observação da peça (o traço, ou nível neutro) chegando a conclusões sobre o processo compositivo. Esta é, segundo Nattiez, uma das situações mais freqüentemente encontradas na análise musical. O analista observa diversos procedimentos recorrentes em uma obra, ou conjunto de obras, e chega à conclusão: “é difícil de crer que o compositor não tenha pensado sobre isto”. Esta família é exemplificada com a análise motívico-temática de Schoenberg e Réti. c) Análise Poiética Externa – neste caso, a situação é o reverso da anterior, o musicólogo toma documentos deixados pelo compositor – cartas, projetos, esboços – como ponto de partida e analisa a obra com base nestas informações. O caso mais destacado deste tipo de análise é a obra de Paul Mies (1929) em que são descobertas características estilísticas da obra de Beethoven com base nos seus esboços. d) Análise Estésica Indutiva – pratica-se uma análise estésica indutiva quando se procura predizer como a obra será percebida pelo ouvinte com base nas estruturas musicais observadas pela análise no nível neutro (partitura). Esta projeção da audição pode ser tanto por meio da ampliação da própria experiência pessoal do analista (hipostasiada em consciência universal), quanto tendo em conta as leis perceptivas gerais desenvolvidas por pesquisas no campo da psicologia. Para Nattiez, este é o caso mais comum na análise musical, em primeiro lugar porque diversas análises desejam se colocar como sendo relevantes do ponto de vista da audição e, em segundo lugar, porque muitos analistas colocam a si mesmos como uma espécie de consciência coletiva de ouvintes, chegando à dedução “é isto o que se ouve”, porque é desta maneira que eles próprios ouvem. e) Análise Estésica Externa – esta família procede de pesquisas experimentais em que grupos de ouvintes são incentivados a dar respostas sobre aquilo que estão ouvindo. Desta forma, a análise fundamenta-se não sobre as obras, mas sobre as respostas de sujeitos que as percebem em situações experimentais. Assim, o processo analítico principia com as informações coletadas dos ouvintes dirigindose, posteriormente, à compreensão de como a obra (ou conjunto de obras) é percebida. Esta família é amplamente estudada nas pesquisas em psicologia da
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música, tendo ganhado considerável impulso nos últimos anos com as pesquisas cognitivas. f) Análise Holista – esta é a situação analítica mais complexa, na qual a análise imanente (do nível neutro) é tomada como sendo igualmente relevante tanto para o entendimento dos processos poiéticos quanto para os processos estésicos. Em outras palavras, o analista considera que as observações realizadas no campo da análise imanente correspondem tanto aos processos de composição e execução, quanto aos processos de recepção da obra (em todas as peculiaridades possíveis). A análise schenkeriana seria o exemplo mais conhecido desta família analítica, pois Schenker acreditava que o seu procedimento analítico iria revelar, por um lado, os passos da composição e, por outro lado, as estruturas que deveriam ser explicitadas pelo intérprete, pois, assim, seriam percebidas pelo ouvinte. (MATTOS apud FREITAS, 2005 p.3):
Baseados em Nattiez, definimos uma abordagem poiética indutiva no parâmetro melodia, assim poderemos perceber o processo de composição. Os parâmetros harmonia e contraponto foram tratados basicamente sob um ponto de vista da análise imanente, no nível neutro, com o objetivo de descrever técnicas de arranjo. Basicamente, porque em momentos oportunos são feitas considerações no nível poiético, onde considerarmos enriquecedor e significativo para nossa análise. Tendo esta abordagem em mente, a partir das categorias harmonia, melodia e contraponto definidas no parâmetro altura de Dante Grela, estabelecemos elementos a serem analisados em Coisa nº5. Harmonia: análise harmônica e funcional, sobreposições entre naipes, drops. Melodia: análise motívica e processo temático. Contraponto: técnica de arranjo linear. No elemento harmonia, a base para a análise harmônica e funcional foi a dissertação de mestrado do professor da UDESC Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas, Teoria da harmonia na música popular: uma definição das relações de combinação entre os acordes na harmonia tonal. Seu
trabalho propõe um conjunto de teorias para a compreensão da harmonia tonal,
popular e contemporânea. Segundo o resumo de sua dissertação: Essa dissertação é um programa expositivo circunstanciado e minudente de um tipo de raciocínio teorético que se tem sobre a prática atual da harmonia tonal na música popular. Limita-se a descrever uma razão sistêmica para as principais relações de combinação entre os acordes, averiguando a hipótese principal de que é possível um controle destas relações independente das questões de escritura da condução de vozes. A razão teórica do presente texto funda-se no ideário funcional, e se
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pretende como uma avaliação crítica formalizada sobre essa classe de entendimento que se tem sobre os eventos harmônicos. (FREITAS,1995) 6
Para viabilizar a realização da análise descrita acima, foi necessário compreender o que acontece no plano harmônico quando os naipes se sobrepõem. Para isso, realizamos uma redução da partitura a um sistema de pauta dupla, incluindo todos os instrumentos da grade, efetuando as transposições necessárias e excluindo os uníssonos. Compreendidos os acordes, analisamos a disposição das vozes através da técnica de drops, fundamentados por Ian Guest em seus três livros: Arranjo: método prático. O elemento melodia foi analisado através do processo temático, com base na teoria da análise motívica de Rudolph Réti que é exposta em seu The Thematic Process in Music 7
(1951) .
Rudolph Réti (1885-1957). Reti foi escritor (sobre música), pianista e compositor. Estudou em Viena, piano e teoria na Academia de Música e musicologia na universidade. Como pianista de concerto, realizou a primeira execução do opus 11, peças para piano de Schoenberg. Reti participou da criação do Salzburg Music Festival em 1922 e posteriormente, entre 1930 e 1938, tornou-se o principal crítico de música do jornal Das Echo em Viena. Nesta mesma década, emigrou para os Estados Unidos e foi editor do Musical Digest. Entre 1944 e 1948 Reti realizou análises das Sonatas de Beethoven com o intuito de compreender o como se dava o processo de composição em Beethoven. A sua teoria sobre composição foi baseada nestas análises algumas das quais encontram-se em Thematic Patterns in Sonatas of Beethoven, obra publicada dez anos após a sua morte, em 1967. No livro The Thematic Process in Music (1951) Reti sugeriu que os compositores desde o século XVIII basearam suas composições na evolução consciente de células motívicas dentro de um padrão temático e não no desenvolvimento estrutural da obra. O desenvolvimento de células motívicas dentro de um padrão temático determina a modulação, os acordes, as pontes, a carga emocional e a forma da música. A composição para Réti começa sem um esquema teórico, mas nasce a partir de um motivo. Este se desenvolve através da transposição, inversão, reiteração, paráfrase e variação.(MATTOS, apud FREITAS, 2006, p. 118)
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Como a paginação da dissertação não incluía o resumo e folhas anteriores a ele, a indicação da página não se faz aqui possível. 7 Devemos esclarecer aqui que este livro não foi editado em português. Como não tivemos acesso ao original, todas as citações deste livro fazem referência ao professor Sérgio Freitas, que incluiu em sua coletânea de textos da disciplina Análise musical II uma tradução integral do capítulo Various categories of transformation, realizada pelo professor Fernando Lewis de Mattos, da UFRGS. A paginação, portanto, refere-se a esta compilação.
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A escolha de Rudolph Réti se deve ao fato de que percebemos que Moacir Santos e de forma geral, a música popular brasileira herdou muitos procedimentos composicionais da técnica temática. Apesar de ter sido teorizada por Réti a partir dos clássicos, e em especial Beethoven, vemos que seus conceitos se adaptam perfeitamente ao repertório popular. Réti afirma que a técnica temática “tenha se tornado a base para todo o esforço compositivo de nossa época”. Vale lembrar que Moacir teve formação erudita, e estreita ligação com o alemão Koellreutter, além de ser assumidamente admirador da música clássica. Portanto, não é difícil imaginar que a técnica da transformação temática tenha sido incorporada subjetivamente, através da audição, ou diretamente, através das aulas com Guerra-Peixe, Ernest Krenek , Koellreutter, e Cláudio Santoro. Vale mencionar que Krenek era um divulgador dos preceitos e idéias de Schöenberg, que em seu Fundamentals of Musical Composition
considera (no capítulo O motivo, p. 25-42) que a ferramenta básica do
compositor é o trabalho motívico. No final da década de 70, Epstein (1979, p. 17-29) faz uma avaliação criteriosa do papel desempenhado por Schöenberg com relação ao desenvolvimento do conceito de Grundgestalt. Essa avaliação parte de uma crítica rigorosa às proposições de Rudolph Réti (1951), que apresenta a idéia do tematicismo sem maiores referências à contribuição de Schöenberg, embora tenha sido aluno do próprio. Para Epstein, Schöenberg foi, de fato, a matriz dos conceitos fundamentais que levaram ao desenvolvimento de duas correntes analíticas importantíssimas no Século XX, o tematicismo e a teoria dos conjuntos.(LIMA, 2004, p. 36)
O elemento contraponto em Coisa nº 5 surge sob a forma de uma melodia em bloco. A textura da música é polifônica, porém com um caráter de melodia acompanhada, e por este motivo, o arranjo de Moacir não privilegia aspectos contrapontísticos. Abordamos esta melodia com base nos conceitos expostos por Ian Guest e Joel Barbosa de Oliveira, que de acordo com nossa pesquisa, são as únicas publicações brasileiras que teorizam a técnica de arranjo linear. A tal melodia de Moacir vai de encontro à definição de Ian Guest sobre a técnica linear em bloco:
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A técnica linear em bloco descarta todos esses conceitos (sobre som do acorde, nitidez da harmonia e funções harmônicas). Em vez de se preocupar com o som do acorde, representa o som da escala do acorde, onde a 3ª e a 7ª não são mais importantes do que as outras notas. Na música tonal, feita de preparações e resoluções, isso produzirá uma sonoridade não-óbvia, sem explicitar cada acorde. (GUEST, 1996, p. 41)
Oliveira, em sua dissertação de mestrado, Arranjo Linear: uma alternativa às técnicas tradicionais de arranjo em bloco ,
afirma que “é importante citar que as anotações dos alunos
de Pomeroy, assim como um capítulo do livro”ARRANJO: Método Prático” volume 3, de Ian Guest, são as únicas fontes específicas de referência sobre o assunto. É provável que a técnica de arranjo linear seja, entre as técnicas de arranjo, a menos utilizada pelos arranjadores em seus trabalhos para formações instrumentais que utilizam as técnicas de arranjo em bloco. Dois motivos, pelo menos, explicam a sua pouca utilização na confecção de arranjos: o desconhecimento da técnica por parte de muitos arranjadores, e a falta de domínio dos seus procedimentos por aqueles que já tiveram algum contato com ela mas não desenvolveram sua prática.[...] Nessa técnica, desenvolvida por Herb Pomeroy, não é permitido que o resultado melódico de uma voz seja conseqüência de um procedimento baseado na condução “vertical” simultânea das vozes, ou seja, da condução de acordes.[...] Enquanto as técnicas verticais utilizam basicamente as notas dos acordes, a técnica de arranjo linear utiliza as notas da escala.[...] Enquanto as técnicas verticais evitam os “choques” provocados pelo uso das notas evitadas, as linhas da técnica de arranjo linear desconhecem qualquer nota evitada na escala.[...]É possível que algumas das práticas de Duke Ellington tenham sido tão contrastantes com o senso comum de sua época quanto é para muitos de nós a prioridade horizontal da técnica linear comparada ao pensamento vertical das técnicas em bloco.[...]Herb Pomeroy conseguiu fazer o que talvez poucos tenham feito. Analisar e sistematizar técnicas utilizadas por Duke Ellington em sua arte de orquestrar. E foram nos procedimentos técnicos desenvolvidos por Duke Ellington para a sua banda que Herb Pomeroy encontrou os elementos que, organizados, resultaram na técnica de arranjo linear.[...]Todo o material relacionado à técnica de arranjo linear é uma compilação de anotações detalhadas que, feitas em épocas distintas por três alunos de Herb Pomeroy, foram confrontadas para a verificação da imutabilidade dos conteúdos. (OLIVEIRA, 2004 p.19-25)
Como já mencionado anteriormente, os arranjos para big bands de Duke Ellington exerceram forte influência sobre Moacir. Portanto, os conceitos da técnica de arranjo linear servirão para fundamentar o trecho de caráter contrapontístico de Coisa nº5.
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Tendo estes autores como principais referências, e citando eventuais contribuições de outras fontes, analisamos a seguir os elementos harmonia, melodia e contraponto na Coisa nº 5 de Moacir Santos.
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5. ANÁLISE DO PARÂMETRO ALTURA EM COISA Nº 5 5.1 FORMA Primeiramente, vamos mapear a Coisa nº 5, compreendendo sua forma por seções: Forma geral do arranjo:
I
- Introdução
A A’ B A - Tema A A’ B A - Soli8 M
- Modulação
A A’ B A - Tema C
- Coda
Forma da geral da composição9: A A’ B A C Passemos, agora, a mapear as seções: I – Introdução: Total de 25 compassos Base introdutória: compassos 1 a 2 Introdução: compassos 3 a 10 Repetição da introdução: compassos 11 a 18 (orquestração diferente) Prolongamento do acorde final: compasso 19 Introdução de A10: compassos 20 a 25 (2 de percussão e 4 seção rítmico-harmônica 11)
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Soli, no jargão do jazz é um termo que designa um trecho do arranjo escrito para dois ou mais instrumentos, que simula uma improvisação criada espontaneamente. Ver capítulo Soli Writing, do livro Arranging for large jazz ensemble, de Dick Lowell e Ken Pullig. 9 Diferenciamos aqui a forma da composição considerando apenas suas partes fundamentais, excluindo introdução, repetições e modulação. Para comparação, trazemos a partitura de Almir Chediak no Songbook Bossa Nova 4 (ANEXO C), que apresenta também somente as seções A A’ B A C. 10 Este trecho inicia ao fim da introdução, e por sua vez e introduz o tema A. 11 Seção rítmica abrange no caso desta instrumentação, contrabaixo, violão e percussão. Veremos adiante, que Moacir utiliza timbres mistos. Desta forma, o trombone baixo dobra em todo arranjo a linha de contrabaixo, e trompete, sax alto, trompa e sax tenor são em vários momentos, dobrados pela guitarra, portanto, estes instrumentos agrupam-se formando uma grande seção rítmico-harmônica.
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Tema – A A’ B A Total de 16 compassos A: compassos 26 a 28 A’ compassos 30 a 33 (repetição de A com final casa dois) B: compassos 34 a 37 A12: compassos 38 a 41 Soli Total de 17 compassos O solo, sobre a forma A A’ B A antecedida pela anacruse de 1 compasso de flauta. Dos compassos 42 a 58. M – Modulação Total de 2 compassos, do 59 ao 60. Esta modulação súbita de meio tom prepara a reexposição da música, que de ré menor segue em mi bemol menor até o fim, incluindo a parte C da composição. A A’ B A Total de 16 compassos Reexposição do tema no tom de mi bemol menor, dos compassos 62 a 76 C - Coda Total de 9 compassos Seção final da composição, dos compassos 77 a 85.
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Esta seção A difere da primeira apenas pela sua última nota sol que é substituída por um ré. Por ser uma mudança sutil, não julgamos necessário simbolizá-la de outra maneira.
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5.2 HARMONIA 5.2.1 Análise harmônica e funcional Realizaremos a análise harmônica e funcional tomando como referência os instrumentos da base, que são violão 13, e contrabaixo. A figura abaixo traz os acordes para guitarra e cifra como na partitura:
Figura 1 – cifra e partitura dos acordes para guitarra
Exceto pela introdução, o violão soa em toda música. A transcrição de Adnet e Nogueira traz os acordes escritos apenas nas seções A e A’, onde o violão dobra em uníssono as vozes do naipe composto por trompete, sax alto, trompa t rompa e sax tenor, sempre a quatro vozes, deixando as fundamentais por conta do contrabaixo e trombone baixo. No restante, optaram por escrever apenas convenções14 na grade de guitarra no quarto compasso das seções B, e no primeiro e quinto compassos da seção C. O fato de escreverem os acordes em cifra nestas seções sinaliza, a princípio, uma maior flexibilidade na interpretação, o que dá margem à livre escolha das aberturas pelo violonista. Na seção B nota-se que Geraldo Vespar toca de maneira fixa, e sempre dedilhada, dedilhada, da mesma forma, então sem tal liberdade. Já na seção C, apesar de trazer somente cifra, o violão toca a mesma rítmica e dobra as alturas do naipe que realiza a harmonia. Fica claro que em A, A’ e C Moacir buscou propositadamente a integração da guitarra ao naipe, na intenção de ouvir um timbre misto. 13
A partitura anexa do arranjo traz uma guitarra na grade, que foi gravada por Ricardo Silveira no cd Ouro Negro. O arranjo original de Nanã foi gravado pelo violão de Geraldo Vespar. 14 Termo corrente na música popular significando um desenho rítmico, sem alturas definidas, que deve ser executado por toda a seção rítmica, e que muitas vezes tem o objetivo de interromper a continuidade da levada.
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Por não termos acesso à partitura original, não há como saber se Moacir discriminou todas as notas do violão, contudo fica claro que nesta música este instrumento é completamente integrado ao arranjo, diferentemente da relação comum entre harmonia e cifra em música popular, onde a abertura e rítmica dos acordes não são consideradas. O contrabaixo acústico é responsável por sempre tocar as tônicas dos acordes em A e A’. Já em B, tem uma atividade um pouco maior, utilizando utili zando tônicas e quintas. Em C, além das tônicas executa um intervalo de quinta sobre o acorde de Eb7(#9). A próxima figura traz um esquema de análise harmônica e funcional de Coisa nº5, Improvisação, de Almir Chediak: inspirado no livro Harmonia e Improvisação
Figura 2 – esquema de análise harmônica e funcional
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5.2.2 Considerações sobre o tom De acordo com a análise, estamos em concordância com os autores da transcrição, no fato de que Coisa nº5 foi composta sobre a tonalidade de ré menor, um bemol na armadura, diferentemente do autor do Songbook Bossa Nova vol.4 , que interpreta a música na tonalidade de dó maior ou lá menor. Isto levaria a uma interpretação totalmente diferente das funções harmônicas dos acordes, anulando, teoricamente, a ambigüidade existente no acorde de D7(#9), que certamente foi proposital no processo de composição de Moacir. 5.2.3 Interpretações dos acordes Seção A e A’ D7(#9) Acorde de função tônica, primeiro grau, simbolizado pela cifra I7. Traz duas terças em sua formação, portanto é um acorde maior e menor ao mesmo tempo, o que revela tal ambigüidade. Ocupa a posição do primeiro grau, originalmente ré menor com sétima. A este acorde, é adicionada a terça maior, fá sustenido, que lhe confere a sonoridade blues, presente na harmonia de toda seção A. O historiador Eric Hobsbawm cita algumas “peculiaridades” do jazz dentre as quais a “combinação de escalas africanas com harmonias européias. A expressão mais conhecida dessas peculiaridades é a combinação da escala blue – a escala maior comum com a terça e a sétima abemoladas” (1990, p.42). Esta informação sobre a origem sincrética da ambigüidade na utilização da terças na música negra, verdadeira ou falsa 15, pode ter chegado a Moacir Santos via EUA, país no qual é bastante difundida, e que sobre ele exerceu grande influência musical. Segundo as palavras do próprio compositor, chegou através do contato com GuerraPeixe, que instrumentava um negro, com aparato técnico t écnico para que sua música soasse negra:
15
Verdadeira ou falsa, porque não é o foco deste trabalho investigar raízes etnomusicológicas para a validação de nossas afirmações. Nos limitaremos aqui, a interpretar as intenções de Moacir Santos como compositor e arranjador.
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M: Isso é uma outra coisa [quando questionado sobre terça maior e menor]. Boa pergunta, que eu tenho o prazer de explicar: eu nas minhas aulas, na seção de aprendizagem do Moacir, eu fui formado pelo (compositor César) Guerra-Peixe, o finado Guerra-Peixe. Ele me ensinou uma coisa que, por exemplo... Guerra-Peixe era muito pesquisador. Então ele me disse em uma ocasião que há coisas que... (canta o arpejo de um acorde maior com sétima menor e nona aumentada) o negro nunca alcançou... (canta novamente, provavelmente referindo-se à terça menor/nona aumentada). E: O Sr. está dizendo que isto é um arpejo de um acorde maior com sétima menor com a terça menor oitava acima, que tem caráter “negro”? M: É isso, mas o Guerra-Peixe me falou que o negro não alcançou... isso é coisa dele, ele era muito pesquisador, então não sei aonde ele arranjou isto. Pode ser uma invenção dele, eu não sei. (FRANÇA, p 143)
Fica claro que para Moacir, a utilização ambígua das terças é uma referência direta à cultura negra. Não conseguimos, por outro lado, interpretar o que Guerra-Peixe afirmava exatamente ao dizer “que o negro nunca alcançou” pelas palavras de Moacir, pois a linha de raciocínio é interrompida. Moacir afirma não saber a origem da teoria de Guerra-Peixe sobre o que o negro não alcançou, que se refere às terças, pois diz que “ele era muito pesquisador, então não sei aonde ele arranjou isto. Pode ser uma invenção dele, eu não sei”. Ian Guest propõe uma escala relativa ao som deste acorde, e que fundamenta as escolhas de Moacir na melodia de Coisa nº 5, em questão à utilização dos intervalos de nona maior, nona aumentada e terça maior, que descaracteriza uma sonoridade puramente pentatônica. É o modo blues completo, que reúne as pentatônicas maior e menor e suas respectivas blues notes 16. Tal escala é concebida para a utilização em toda seqüência harmônica de 12 compassos de blues tradicional, como alternativa de rearmonização modal (1996, p.111):
Figura 3 – modo blues completo
16 O historiador Eric Hobsbawm cita algumas “peculiaridades” do jazz ,dentre as quais a “combinação de escalas africanas com harmonias européias. A expressão mais conhecida dessas peculiaridades é a combinação da escala blue – a escala maior comum com a terça e a sétima abemoladas” (1990, p.42).
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A7(b9,13) Acorde de função dominante, que resolve no primeiro grau sinalizado por uma seta. Quinto grau da tonalidade, traz a tensão b9 relativa a escala de ré menor, e a tensão 13, tomada por empréstimo modal da escala de ré maior, o que causa uma sonoridade mista entre os tons maior e menor. Relaciona-se à escala dominante diminuta, comum no contexto Jazz/Blues17.
Figura 4 – escala de lá dominante diminuta
G7(9,13) e G7(#9,b13) Acordes de função subdominante, quarto grau da escala de ré menor melódica. Novamente a sonoridade blues é presente, e este acorde é entendido como um IV7blues. Segundo Sérgio Freitas, “Todo acorde perfeito pode se fazer acompanhar por um IV7 grau a ele relacionado, coloquialmente chamado de “IV7blues”, em respeito a sua origem específica nesta forma de arte, mas que hoje se vê em uso nos mais diferentes contextos” (2002, p. 156). Suas tensões são, no primeiro tempo do compasso, 9 e 13, relacionadas à escala de ré menor melódica, ou ao modo correspondente, sol lídiob7. No segundo tempo, suas tensões #9 e b13 são originadas do tratamento deste acorde como sendo do tipo dominante, (não da função) que dá margem à utilização da escala alterada 18, proveniente do modo do sétimo grau
17
Segundo Dave Pozzi, em seu livro An approach to Jazz improvisation, “a escala diminuta é uma escala simétrica constituída por intervalos consecutivos de tom e semitom. [...] A terminologia para esta escala varia. Pelo fato da escala ser diminuta e posicionada sobre um acorde dominante com sétima, o termo mais comum é escala dominante diminuta”. No original: “ The diminished scale is a symmetrical scale consisting of consecutive whole and half-step intervals.[...] Because the scale is diminished and positioned against a dominant seventh chord, the most common term is the dominant-diminished scale”(1997, p.22) 18 “A escala alterada é outra escolha escalar para complementar um tipo particular de acorde dominante com
sétima. A escala alterada é o sétimo modo da escala menor melódica.[...] esta escala é perfeitamente construída para complementar um acorde dominante com sétima, nona menor e quinta aumentada.” No original: “ The altered scale is another scale choice to complement a particular dominant seventh chord’s design. The altered
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do tom de lá bemol menor melódico, ou escala frígia maior sobre um acorde de sol maior com sétima menor que teoricamente prepararia dó menor, procedimento também freqüente no meio Jazz/Blues. Sobre substituições e re-harmonizações estilísticas da música popular do século XX, Freitas afirma que: Do ponto de vista da Harmonia, o Blues é muito importante como uma espécie de formato laboratorial onde os músicos experimentaram os mais diversificados procedimentos de re-harmonização, de substituição e de teste das equivalências acórdico-funcionais, longínquas, e extremamente elaboradas. Foi sobre a forma rígida e fixa do Blues que a generalização radical dos preceitos funcionais encontrou campo restrito para as mais audaciosas, descompromissadas e irrestritas experiências harmônicas.(FREITAS, 1995 p. 155)
Figura 5 – escalas de sol lídio b7, frígio maior e alterada
C7(#9) O acorde de dó com sétima é encontrado no sétimo grau da escala de ré menor, e tem função subdominante. Aqui, o interpretaremos como um dominante de fá maior, terceiro grau da escala de ré menor. Tem a sensação de dominante secundária 19 numa cadência de engano 20, pois prepara uma função tônica, acorde de fá maior, e resolve num acorde de mesma função, primeiro scale is the seventh mode of the melodic minor scale. [...] this scale is perfectly constructed to complement a dominant seven flat-nine sharp-five chord”. (POZZI, 1996 p.22) 19 Dominante secundária, pois segundo Freitas o “ secundário aponta para um acorde que na hierarquia funcional do campo harmônico, não é o principal (não é o primeiro grau) e sim, um acorde encontrado a partir do estabelecimento deste principal”.(1995 p.75) 20 O princípio da cadência de engano estabelece que “quaisquer(sic) processo cadencial preparatório individualizado para um determinado acorde/grau, poderá preparar qualquer outro dos acordes/graus pertencentes ao mesmo conjunto funcional do acorde meta que originou esta preparação”(FREITAS, 1995 p.160)
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grau. O ritmo harmônico também lhe confere esta função dominante, está no segundo tempo do compasso, tempo fraco, posição de preparação e aproximação do repouso, ao contrário de uma função subdominante, que é sentida através do afastamento do repouso. Freitas diz que “essa posição, (métrica mais fraca) característica da função de dominante, em quaisquer das suas manifestações, desempenha sempre o papel de anunciar o próximo termo funcional” (2002 p. 80). Sua tensão #9 é explicada por este motivo: ela é disponível por empréstimo modal do dominante de fá menor. A sonoridade da nota ré sustenido sobre este acorde é proveniente da nota enarmônica mi bemol, sétima do tom de fá menor, que é mantida em conjunto com a terça maior adicionada pela escala de fá menor harmônica, o que gera um dominante com as duas terças. Este procedimento produz a sonoridade da escala frígia maior, ou alterada, como já comentado anteriormente. Seção B Gm7: Acorde de função subdominante, quarto grau da escala de ré menor. Fm7, Bb7sus4 Estes acordes estão simbolizando com um colchete uma cadência II V, e está tracejado porque substitui a cadência Bm7(b5) E7 que prepara o quinto grau. Configura-se aqui uma cadência substituta, simbolizada por subII e subV. Freitas (1995, p.116) propõe que: Essa é uma generalização do conceito de substituição por trítono que introduz na Harmonia acordes não diatônicos, mas funcionalmente estabelecidos e disponíveis para o uso nas estruturas cadenciais de [IIm7 V7] – I que, a partir deste novo conceito, passam a poder se manifestar também como [SubIIm7 SubV7] – I.
Esta cadência resolve no dominante da tonalidade que por sua vez resolve no primeiro grau, repetindo a seção A. Quanto à modulação para mi bemol, e seção C, os acordes explicam-se com base nos mesmos argumentos, salvo que tudo acontece meio tom acima, na tonalidade de mi bemol menor.
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5.2.4 Sobreposição entre naipes A partitura apresenta uma grade que conta com sete instrumentos no A e A’ e seis no B e C realizando a harmonia. Cinco são transpositores - trompete em si bemol, sax alto em mi bemol, sax tenor em si bemol, trompa em fá. Os outros, trombone, trombone baixo, guitarra e contrabaixo lêem em dó. Estão agrupados por naipes, e não por tessitura, então sax barítono e sax tenor estão acima da trompa. Tudo isto dificulta muito a visualização e compreensão de como acontece o plano harmônico. Visando analisar a harmonia quando os naipes se sobrepõem, reduzimos todos os instrumentos a um sistema com de pauta dupla. Este sistema conta com todas as notas da harmonia em dó, sem transposição e sem repetir os uníssonos. Os instrumentos que dobram a mesma nota foram colocados próximos em nossa redução. Notas da melodia soando com valor acima de um tempo, ou seja, o valor da mínima pontuada, foram consideradas atuantes na harmonia, e serão analisadas como notas de acorde. Primeiramente, na base introdutória, contrabaixo e trombone baixo dobram a tônica,e o sax barítono faz o intervalo de quinta, conforme figura abaixo:
Figura 6 – redução da harmonia da base introdutória
Com a entrada da melodia, ouvimos sax alto e tenor dobrando em uníssono a terça maior (c.4)21. Na continuação, a melodia toca terça menor e nona maior (c.5 e 6). Isto contribui para uma sonoridade dúbia na harmonia, a utilização, na melodia, de terça maior, 21
Simbolizaremos a palavra compasso daqui em diante como (c.)
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terça menor e nona maior, que remetem à sonoridade afro, modal e não tonal. É fato que não soam simultaneamente, poderíamos considerar que a harmonia produz um ré maior e a seguir um acorde de ré menor que logo substitui sua terça pela nona.
Figura 7 – redução da harmonia da introdução
Consideramos este argumento desconexo com o caráter afro desta introdução. A escala proposta por Ian Guest como o modo blues completo, caracteriza a sonoridade modal do momento, relativa a música negra 22, que gera a dubiedade pretendida por Moacir. Na repetição, a variação da orquestração adiciona trompete dobrando a terça uma oitava acima dos saxes e flauta dobrando novamente a terça uma oitava acima do trompete (c.12). O mesmo ocorre com a terça menor e nona logo adiante (c.14), enfatizando as notas que geram a ambigüidade do momento:
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“A grande matriz africana, expressão pura da música rítmica, cujo primado está no pulso, movimentando-se exclusivamente no campo modal, até seu encontro com as práticas musicais européias.” (MIRANDA, apud CARVALHO, 2003 p. 103)
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Figura 8 – redução da harmonia da repetição da introdução
No acorde final, (c.18 e 19) ouvimos um grande bicorde 23 de ré tocado por nove instrumentos, onde sax barítono toca a quinta e todos os instrumentos tocam tônica em cinco oitavas diferentes, com trompa, sax tenor e sax alto dobrando.
Figura 9 – redução do bicorde final da introdução
5.2.5 Aberturas dos acordes (drops): Analisando a seção A, percebemos que os acordes são formados por cinco sons. A harmonia é ouvida pelo trompete, sax alto, trompa e sax tenor, que são sempre dobrados em uníssono pela guitarra. Contrabaixo trombone baixo dobram em uníssono as tônicas. As notas dos acordes, exceto baixos, utilizam movimento paralelo, com base na lei do menor esforço 24. Desta forma, subindo D7(#9) meio tom e ouve-se A7(#9,13). Descendo D7(#9) meio tom, e repetindo a nota lá, ouve-se G7(9,13). Descendo D7(#9) um tom ouve-se C7(#9). As aberturas dos acordes, em drops 25 são: 23
Bicorde designa um acorde formado de apenas duas notas, tônica e quinta, excluindo a terça. Freitas, no Caderno de classe para a disciplina Harmonia e contraponto 1 da Udesc chama a atenção para “o ideal de beleza Socrático – meio estético mas também ético – onde o belo é o certo e o certo é bonito.(...) atentar para uma regra de beleza fundamental para a música tradicional, a Lei do menor esforço. Os movimentos que exigem o mínimo de ânimo, de força física, são considerados mais naturais (Lei da Imitação da Natureza) e assim, mais bonitos(mais adequados, mais fáceis...note que tudo está ligado no mesmo conceito de “Beleza”) (2002 p. 4) 25 “As tétrades abertas costumam ser pensadas e organizadas através da utilização do conceito de drops. A palavra da língua inglesa drop significa cair e representa, musicalmente, a técnica de se “deixar cair” oitava 24
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D7(#9) - 3, 7, #9, 5 – Drop2
Figura 10 – drop do acorde D7(#9)
A7(b9,13) – 7, 3, 13, b9 – Drop 2
Figura 11 – drop do acorde A7 (b9, 13)
G7(9,13) – 7, 3, 13, 9 – Drop 2
G7(#9,b13) – 7, 3, b13, #9 – Drop 2
abaixo uma das notas do acorde. Desta maneira, partindo-se de uma tétrade fechada, fazemos com que uma de suas notas desça uma oitava, de modo a obtermos uma tétrade aberta. A partir deste procedimento, obtemos os drops, que são classificados de acordo com a voz que desceu uma oitava. Assim, drop2 significa que a segunda voz (segunda nota a partir do agudo) “cai” uma oitava; drop3 significa que a terceira voz “cai” uma oitava; drop2 e 4 significa que a segunda e a quarta vozes “caem” uma oitava. Estas tétrades em drop também possuem suas inversões.”(ROCHA, 2005 p.114)
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Figura 12 – drop dos acordes G7(9,13) e G7(#9, b13)
C7(#9) - 3, 7, #9, 5 – Drop2
Figura 13 – drop do acorde C7(#9)
Seção B: Os acordes desta seção são formados por tétrades, e também realizam movimento paralelo. Gm7 – T, 7, 3, 5 – Drop 2 e 4
Figura 14 – drop do acorde Gm7
Fm7 – T, 7, 3, 5 – Drop 2 e 4
Figura 15 – drop do acorde Fm7
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Bb7sus4 – T, 4, 7, 9 – Posição fechada
Figura 16 – drop do acorde Bb7sus4
A7(b5) – T, 8, 3, 5 – Posição fechada
Figura 17 – drop do acorde A7(b5)
A seção C traz três acordes de quatro vozes, antes já utilizados um semitom abaixo, só que com novidades nas tensões e aberturas.Os instrumentos que fazem notas longas na melodia acrescentam fundamentais em oitavas diferentes. Eb7(#9) – T, 7, 3, #9 – Drop 2 e 4
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Figura 18 – drop do acorde Eb7(#9)
Ab7(13) – T, 7, 3, 9 – Drop 2 e 4
Figura 19 – drop do acorde Ab7(13)
Db7(9) – T, 7, 3, 9 – Drop 2 e 4
Figura 20 – drop do acorde Db7(9)
No acorde final da música, Eb7(#9), há apenas um dobramento entre contrabaixo e trombone baixo. Tem oito vozes diferentes, uma para cada instrumento, com cinco notas reais. As duas notas da ponta dobram as duas do grave, e as cinco vozes intermediárias configuram um drop 2. Eb7(#9) – T, 5, 8, 3, 7, 9, 5, 8 – Drop 2
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Figura 21 – drop do acorde final
5.3 MELODIA: ANÁLISE MOTÍVICA E PROCESSO TEMÁTICO 5.3.1 Seções A e A’ Em entrevista cedida a França, Moacir Santos comenta seu processo de criação: Eu tenho, posso dizer, alguns processos. Por exemplo, às vezes eu fico preso a umas notas, que possam causar uma composição. Eu desenvolvo aquelas notas. Por exemplo, três ou quatro notas. Eu desenvolvo aquelas quatro notas e chego a um auge interessante. Então geralmente eu tenho... não me perco naquela idéia inicial... eu desenvolvo... e pronto. (SANTOS, apud FRANÇA p.141)
Através desta descrição, o maestro nos leva a entender que vários processos concomitantes se entrelaçam em seu ato de compor. Contudo, percebemos uma forte inclinação ao plano melódico. O fato de Moacir afirmar que se prende um material melódico mínimo, “três ou quatro notas”, que vai sendo desenvolvido até um auge, sem perder a idéia inicial, revela claramente a concepção do processo temático desenvolvendo um motivo, que vai diretamente ao encontro da teoria analítica de Rudolph Réti. Portanto, trataremos aqui da melodia de Coisa nº 5 visando definir o motivo original, que através do processo temático desenvolvido ao longo da música será responsável por gerar outros temas, numa tentativa de compreender o processo composicional de Moacir Santos. Vemos abaixo a melodia do tema da seção A, que claramente apresenta duas frases, antecedente e conseqüente 26, que denominaremos tema 1 e tema 1B :
26 Segundo Schoenberg, a estruturação do início determina a construção da continuação. A primeira frase não é repetida imediatamente, mas unida a formas-motivo mais remotas, perfazendo assim, a primeira metade do período. O conseqüente pode ser entendido como a segunda metade do período, que pode ser construído com alguma repetição do antecedente. (1991, p. 51).
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Figura 22 – antecedente tema 1 e conseqüente tema 1B
Baseados em nossa percepção e intuição analítica, consideraremos que no tema 1 encontra-se o motivo de Coisa nº 5. Percepção esta feita tanto auditivamente, quanto pelo fato de estes serem os dois primeiros compassos da composição, antecedente do tema A, ou seja, o primeiro material melódico apresentado, aqui entendido como o embrião da música no processo criativo de Moacir. É fato que a introdução apresenta um tema, e ali se inicia a melodia. Trataremos dela mais adiante, e veremos que a introdução foi composta por último, completando o arranjo da composição, com material extraído das outras seções. A figura a seguir traz uma divisão do tema 1 em incisos 27:
Figura 23 – divisão do tema 1 em inciso 1 e inciso 2
A partir disto, centrados em perceber transformações motívicas dentro de um processo temático, isolaremos as alturas, descartando figuras rítmicas e repetições de notas, ficando apenas com o material melódico, processo este adotado por Réti na análise motívica. As notas da melodia, originalmente escritas na tessitura aguda do trombone, e em clave de fá, foram escritas a partir daqui em clave de sol com a finalidade de facilitar a visualização. 27
Para elucidar a divisão de membros da frase em incisos, sugerimos o livro Fraseologia Musical, de Esther Scliar (1982).
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Figura 24 – alturas do tema 1 em clave de sol
Simplesmente, ao sobrepormos o tema1 e o tema 1B (casa 1 e casa 2), sem suas figurações rítmicas, revela-se grande semelhança visual entre os dois, quase como espelhados.
Figura 25 – comparação entre tema 1 e tema 1B e 1B casa 2
A seguir, vemos uma figura que analisa os intervalos do tema 1:
Figura 26 – análise intervalar do tema 1
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Buscando entender a relação entre o tema 1 e o tema 1B, aplicaremos sobre o motivo uma das categorias de transformação 28 propostas por Réti no desenvolvimento do processo temático, o movimento contrário.
Figura 27 – tema 1 em movimento contrário
Se nos detivermos agora ao tema 1B, o conseqüente da seção A, veremos que suas três primeiras notas possuem a mesma seqüência de intervalos do ao inciso 1. No entanto, iniciase com a nota fá. Ao transpormos o inciso 1, em movimento contrário, iniciando pela mesma nota, vemos que são exatamente idênticos.
Figura 28 – comparação entre tema 1B e inciso 1 em movimento contrário
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Para esclarecer a terminologia, é necessário frisar as diferenças entre as categorias de transformação propostas por Réti como movimento contrário, inversão e reversão. Consideraremos duas notas, dó e mi ascendente. O movimento contrário gera dó e lá bemol descendente. A inversão gera dó e mi descendente, o intervalo de terça maior torna-se sexta menor. A reversão gera a melodia mi e dó descendente. (RÉTI apud FREITAS, 2006, p. 118-131)
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Observaremos que o inciso 2, em movimento contrário, é o gerador do restante do tema 1B, que tem duas versões de final, uma para a seção A (casa 1) e outra para A’(casa 2). Percebemos que guarda estreita relação com ambos, e que é o mesmo do final do tema 1B casa 1, inicia na mesma nota, com a inserção 29 de uma nota apenas:
Figura 29 – comparação entre o tema 1B casa 1 e inciso 2 em movimento contrário
O movimento contrário do inciso 2 torna-se idêntico em relações intervalares ao restante do tema 1B depois da inserção do lá, com a segunda maior descendente. Pode-se até especular, aqui, que talvez a mente compositiva de Moacir buscou este salto de quinta do ré até o lá, inserindo esta nota, pela necessidade de ouvir um correspondente invertido do salto de quarta que separa os dois incisos. Para ilustrar situação similar, traremos um trecho da análise de Réti do Rondó em Sol Maior de Beethoven: O que pretendemos demonstrar é que uma estrutura pode ser construída como uma inversão e ainda assim admitir uma superfície completamente nova . Pois o compositor, naturalmente, não produz tal característica ‘teoricamente’, primeiro decidindo utilizar uma ‘inversão’ e então tentando encontrar como escrevê-la. Não, quando quer que um tema aflore ao ouvido de um compositor treinado estruturalmente, todas as formas de possíveis transformações irão, de uma só vez, alcançar uma luz repentina em sua mente. Se entre estas formas, como neste exemplo em particular, a inversão parecer ser a mais apropriada, o compositor a 29
Réti trata deste processo de inserir notas em um motivo de preenchimento de estruturas temáticas. (RÉTI apud FREITAS, 2006, p.132)
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aceitará como uma base, porém irá estruturar o novo tema tão livremente quanto sua imaginação exigir, não se preocupando, não desejando que os detalhes do segundo tema devessem corresponder estritamente ao primeiro.(RÉTI apud FREITAS, 2006 p. 121)
O referido trecho de Coisa nº 5 não é composto tão livremente, percebemos a estrutura bem clara e até óbvia no movimento contrário. A análise de Beethoven por Réti serve para demonstrar a amplitude do processo temático, e não justificar uma argumentação distante na nossa análise. Já no tema 1B casa 2, Moacir apresenta um misto entre o movimento contrário do inciso 2 e o tema 1B casa 1, pois encontramos correspondências dos dois, como uma segunda elaboração do motivo.
Figura 30 – comparação entre o tema 1B casa 2 e inciso 2 em movimento contrário
Vemos que o final do tema 1B casa 2 apresenta também a nota lá, sobre a qual podemos fazer uma dupla interpretação. Podemos considerar que no tema 1B casa 2 há uma citação da nota lá inserida anteriormente. Ou ainda, é um simples movimento contrário de terça, que a partir da nota fá sustenido ao invés de gerar ré, acaba gerando lá. Portanto, o final do tema 1B casa 1 reelaborado tematicamente gera a casa 2.
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Percebemos que a nota mi do movimento contrário do inciso 2, ausente na casa 1, agora é presente na casa 2. Ao fim, temos a segunda maior novamente, só que invertida, em relação ao final da casa 1 e no mesmo sentido do movimento contrário. Por fim, é como se as duas versões finais, juntas, completassem o movimento contrário. E é exatamente o que vemos, na figura a seguir, ao sobrepor os dois finais.
Figura 31 – comparação entre inciso 2 em movimento contrário e sobreposição da casa 1 e casa 2 do tema 1B
Os dois finais juntos resultam em formar por completo o inciso 2 em movimento contrário, como se Moacir tivesse distribuído o motivo nos dois finais, que ainda, por sua vez, estão em movimento contrário um em relação ao outro. Réti cunha um termo para este procedimento, denominado interversão de temas. Segundo suas palavras, “as composições clássicas em geral, e as últimas obras de Beethoven em particular, estão cheias destas interversões”(apud FREITAS, 2006, p 122). Ele exemplifica através do movimento inicial (Adagio) do Quarteto, Op. 131, em Dó# Menor de Beethoven, e termina a análise do trecho chegando a seguinte conclusão: Devemos captar o impacto completo deste fenômeno: Beethoven constrói o segundo tema forjando, em um único plano, o primeiro tema e o tema da Introdução. O ritmo é variado, algumas notas ornamentais são modificadas, porém
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a totalidade do percurso melódico do novo tema é, claramente, o resultado da combinação dos dois temas precedentes – clara e conscientemente, visto que esta estruturação é muito complexa e específica para ser gerada instintivamente. Assim, como denominamos de interversão o recurso de alternar notas isoladas dentro de um motivo, podemos designar este fenômeno paralelo, porém ampliado, de interversão de temas. (RÉTI apud FREITAS p. 124)
Percebemos então, que Moacir constrói o tema de A e A’ baseado em dois compassos, elaborando o motivo através do movimento contrário. Para uma rápida conclusão, apresentamos a figura do tema, detalhados pelo processo temático:
Figura 32 – conclusão do processo temático na seção A
5.3.2 Seção B Seguindo com a análise motívica, adentramos a seção B. Esta seção por ser uma segunda parte da música, poderia apresentar um material motívico totalmente novo, que seria trabalhado internamente. Porém, tentando aplicar o motivo para uma verificação, descobriremos que sua melodia ainda é baseada na elaboração do tema da seção A. A música segue para a região da subdominante, acorde de Gm. Apresentamos, então o tema A, transposto para Gm, e afirmamos que a seção B da música foi construída a partir do trecho selecionado como tema B:
Figura 33 – origem do tema B
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Compararemos este trecho do tema A, com o real tema da seção B:
Figura 34 – tema da seção B
A figuração rítmica pode confundir a análise, então, novamente, isolando as alturas do tema da seção B, dividiremos em três fragmentos, denominados 1, 2 e 3:
Figura 35 – alturas e fragmentos do tema da seção B
Percebemos que o fragmento1 tem um correspondente exato no trecho selecionado como tema B, o fragmento 2 também, só que em uma altura diferente. O fragmento 3 é um elemento novo.
Figura 36 – comparação entre tema da seção B e tema B
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A altura do fragmento 2 vem da tonalidade original ré menor, ou seja, é exatamente o mesmo trecho. O fragmento 3, elemento novo, é originado do fragmento 1, que por sua vez é extraído do tema A. Em movimento contrário, suas notas lá e sol que viram sol e lá. Exemplificando, as áreas selecionadas apresentam a origem do tema B:
Figura 37 – comparação entre trecho do tema da seção A em Gm e Dm com o tema da seção B
Ao seguirmos o tema da seção B, vemos que no próximo acorde, Fm7, em termos de processo temático o tema B é apenas repetido um tom abaixo. Após esta repetição, junto com a convenção soa um intervalo de trítono na melodia (c.37), entre as notas mi bemol e lá, quinta diminuta e tônica do acorde em questão, A7(b5), que prepara o retorno da música a seção A. Baseados nesta análise, concluímos que o tema B foi composto a partir da elaboração do trecho de A, que por sua vez, é originado do motivo inicial de dois compassos. Então, Moacir desenvolve o antecedente pelo processo temático, dando origem às seções A, A’ e B de Coisa nº 5. 5.3.3 Soli de flauta e sax barítono
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Seguindo a forma, teremos o Soli de flauta e sax barítono sobre toda forma A A’B A. Analisemos este trecho, buscando identificar novas ocorrências e desenvolvimentos do motivo. Somos compelidos a esclarecer que para tal, realizamos nova transcrição do solo a partir da gravação original, pois a transcrição (ANEXO D) de Nogueira e Adnet, editada no songbook apresenta trechos que destoam da primeira gravação de Coisa nº 5, tanto no aspecto melódico quanto rítmico. O cd Ouro Negro, de 2001, foi gravado desta forma, então partimos do princípio que a gravação de 1965, executada por Copinha na flauta, e por Geraldo Medeiros no sax barítono, é fiel à composição e às partituras originais. Como estamos tratando de análise motívica, teríamos de fazê-la baseados exatamente no que Moacir compôs, para podermos chegar a conclusões plausíveis. Por ser um trecho bastante rebuscado, utilizamos o programa de computador Sound Forge Audio Studio 9.0 ,
e através de ferramentas como sound stretch e loop playback
pudemos reduzir a velocidade do solo, e ouvir nota por nota do que foi executado, assegurando que nossa transcrição é digna de crédito. Este solo inicia com uma anacruse de flauta, análogo aos pickups 30 em solos de jazz, e segue com este instrumento nas seções A e A’. Já na seção B ouve-se o sax barítono solando, e na reexposição de A, os dois instrumentos solam juntos, com sonoridade contrapontística, configurando uma melodia em bloco 31. Veremos, a seguir, nossa transcrição do trecho do solo de flauta em A e A’:
Figura 38 – nossa transcrição do solo de flauta em A e A’ 30
Pickup measure, no Jazz é uma prática comum, onde ao fim da exposição de um chorus a seção rítmica interrompe a levada, deixando que o improvisador inicie o solo com uma anacruse, geralmente de dois compassos. 31 Ian Guest diz que “ quando dois ou mais instrumentos estão tocando melodias diferentes em ritmo igual, estão tocando em bloco. Soli é o termo universal correspondente nas partituras, plural de solo em italiano.”(1996, vol I, p. 112 )
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Este trecho do solo de flauta foi certamente construído através dos processos de transformação motívica. Não são perceptíveis transformações como movimento contrário, reversão ou inversão de forma literal e direta. Este solo caracteriza-se por ser uma grande interversão, onde várias técnicas descritas por Réti são utilizadas em conjunto, para chegar a esta intrincada trama melódica: aumentações, rarefação e preenchimento de estruturas temáticas, contorno temático, e mudança de harmonia por meio de notas idênticas com mudança de acidentes 32. Vale ressaltar que este trecho possui um caráter melódico diferente do tema, pois é um Soli, ou seja, um trecho escrito no arranjo que simula uma improvisação criada espontaneamente. Desta forma, é natural esperar que em alguns momentos não possamos qualificar transformações temáticas sem lançar mão de argumentos que soariam forçados, numa tentativa de justificar variações afastadas dos traços motívicos iniciais, pois a concepção de improviso dá margem a grande liberdade na estruturação melódica por parte do instrumentista. Moacir transmite esta sensação, pois o caráter de solo é garantido pelo fato de que o instrumento solista é acompanhado somente pela seção rítmica, que se mantêm na estrutura da música, configurando um chorus 33, é iniciado em anacruse, referência aos pickups, e execução virtuosística, ou seja, todos procedimentos idiomáticos do jazz. Ao fim, flauta e sax barítono solam simultaneamente, configurando uma melodia em bloco, referência aos arranjos das big bands 34. Logo a seguir, podemos ver o solo permeado de símbolos e uma legenda, por meio da qual esclarecemos o processo temático.
32
Para elucidar os termos, todas estas técnicas são descritas no capítulo Various categories of transformation. Chorus, no vocabulário jazzístico refere-se a uma improvisação realizada sobre a estrutura fixa da harmonia do tema. 34 “ Big band, um tipo de formação orquestral surgida com o jazz norte-americano, presente no Brasil a partir da década de 30, consolidando-se na década seguinte. A big band (também conhecida como jazz band ou jazz orchestra) consta de saxofones (em muitos casos dois altos, dois tenores e um barítono, além de “dobras” na clarineta e flauta) trompetes (variando de dois a cinco) e trombones (entre um e cinco). A seção rítmica (também denominada "base" ou "cozinha”) pode ser composta por piano, contrabaixo, guitarra e bateria. Na vertente brasileira deste tipo de formação, agrega-se amiúde a percussão”. (CARVALHO p.19). 33
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Figura 39 – Nossa transcrição do solo de flauta em A e A’ analisada através de símbolos da legenda
Legenda: Notas do motivo Notas idênticas do motivo, com mudança de acidentes Notas de motivo referentes à harmonia Preenchimento de estrutura temática
Mudança de ritmo Reelaboração motívica do próprio solo Elementos novos, que guardam relação motívica entre si Figura 40 – Legenda da análise motívica do soli
As notas do motivo aparecem, neste segmento do solo, com a concepção de contorno temático. A linha melódica do motivo, entremeada por notas com função de preenchimento de estrutura temática é ouvida nos três primeiros compassos. Se isolarmos deste solo seu contorno melódico considerando notas do motivo e notas idênticas com mudança de acidentes, comparando com o tema 1 e tema 1B casa 2 da música vemos claramente:
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Figura 41 – comparação entre contorno melódico do solo de flauta e tema 1 e tema 1B casa 2
As pausas acima indicam rarefação da estrutura temática, e os parênteses indicam notas idênticas com mudança de acidentes. No interior dos retângulos, é utilizada a técnica de mudança de ritmo. No primeiro, a aumentação do motivo é conseguida através da repetição de suas três primeiras notas num padrão de quatro semicolcheias dentro de uma figura de seis semicolcheias, equivalendo a um tempo, o que dá origem a uma hemiólia 35. Já no segundo retângulo, o que ocorre é uma diminuição, gerando a aceleração do tempo. É o motivo escrito de forma literal, quatro vezes mais rápido. A primeira e últimas duas notas justificam-se pela idéia de notas idênticas com mudança de acidente. Dó aparece sustenizado, e fá sustenido surge como sol. A mudança de acidentes gera alterações de semitom, e o fá sustenido do motivo, terça do acorde D7 poderia ser entendido como sol bemol, que torna-se sol, tônica do acorde G7, adaptando-se à harmonia nova onde o motivo foi inserido.
35
“O sentido geral de hemiólia é: na proporção de um e meio para um. Isto quer dizer que duas quantidades que se relacionam de forma que uma contém a outra uma vez e meia constituem uma hemiólia. Essa proporção pode ser representada numericamente por meio da fração 1/1,5 (ou ainda, 1:1,5) e todos os seus múltiplos: 3/2 (3:2), 6/4 (6:4), 15/12 (15:12) etc. O termo tem sido utilizado tanto nas referências às relações intervalares quanto às rítmicas”(COHEN p.120).
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Figura 42 – aumentações do motivo no solo de flauta
Dentro das elipses, encontramos elaborações motívicas do próprio solo. A hemiólia, que surgiu no início da seção A aparece agora, no mesmo segmento de A’, transposta uma terça menor acima da primeira.
Figura 43 – elaborações motívicas do próprio solo de flauta
Na segunda, há uma elaboração do seguinte trecho do próprio solo(c.42), transposto um tom abaixo, com o preenchimento da nota si bemol:
Figura 44 – elaboração motívica do próprio solo de flauta
Quanto às notas que fazem referência à harmonia, configura-se também um processo temático. Réti deixa claro que os compositores modernos utilizam esta técnica, referindo-se ao quarteto de cordas nº4, de Bela Bartók: Também a linha melódica do próprio tema é construída com base nas mesmas notas dos acordes do grupo introdutório (com a mera introdução de um acidente).Todo este processo é uma ilustração instrutiva de como na técnica temática, até mesmo a esfera harmônica é, em geral, permeada pelo princípio temático. Estas harmonias são, claramente, expressões da idéia temática do movimento comprimida em acordes.(exemplo2.28). (RÉTI apud FREITAS, 2006, p. 129)
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No seguinte trecho, é exatamente isto que acontece. O naipe, composto por trompete, sax alto, trompa e sax tenor, responsável pela harmonia, é citado na melodia, exatamente nesta seqüência, através de arpejos, onde as notas são aproximadas por semitom, preenchendo a estrutura temática:
Figura 45 – referências motívicas à harmonia no solo de flauta
Há um padrão melódico e rítmico bem claro neste trecho, também caracterizando uma hemiólia. A nota lá circulada, no C7(#9) não foi aproximada para a sétima si bemol. Ao que parece, a nota suprimida teve razão pelo fato de que o padrão de tercinas foi interrompido por duas semicolcheias. Os padrões seriam idênticos se a figuração fosse conservada, isto causou um deslocamento rítmico na melodia, que por sua vez já era deslocada pela utilização da hemiólia. Seguindo a procura pelos motivos no solo de sax barítono, na seção B, nos deparamos com uma figuração divergente das que analisamos até aqui, que foram sempre justificáveis dentro de processos temáticos. Nesta seção acreditamos que a idéia de Moacir foi transmitir realmente a atmosfera de improviso, com liberdade na estruturação melódica, contrastando em relação ao restante da composição. Por isso, não vemos necessidade de argumentar em favor de transformações temáticas, pois estaríamos ingenuamente forjando explicações inconsistentes, passando despercebidos da intenção musical do compositor. Nota-se que nos compassos 51 e 52 há um padrão de três notas, que tem como o alvo o arpejo do acorde de Gm7. Sua finalização é a mesma das últimas quatro notas da melodia da seção B, transpostas um tom abaixo, num certo grau de referência ao tema. Isto para nós não é o bastante para desenvolver uma análise motívica. No compasso 53 há uma frase na escala de fá menor eólio, e no 54, notas do arpejo de A7(b5), com forte caráter de improviso jazzístico,
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e independentes em relação a materiais motívicos da composição. Nestes compassos, a transcrição de Adnet e Nogueira é fiel à gravação:
Figura 46 – transcrição original do solo de sax barítono
Em nosso ponto de vista, o exposto acima não indica uma falha analítica ou denigre a credibilidade da teoria do processo temático por não apresentar soluções. Apresentamos abaixo, a fim de enriquecer tal discussão um trecho do texto de Joseph Dubiel, intitulado Análise, Descrição, e o Que Realmente Acontece ,
que transmite sentimento similar ao nosso
quando é aberta a perigosa, porém comum, possibilidade da análise musical abstrair de seus objetivos:
Muitos teóricos têm sido provocados pelo chiste de Steve Reich “eu não sei de quaisquer segredos de estrutura que vocês não possam ouvir”; o sentimento de que isto é um desafio para os analistas, ou mesmo um insulto, depende completamente da noção ilegítima de que como analistas nós temos uma obrigação de falar sobre algo que não pode ser ouvido. E não ouvimos. [17] Por gentileza entendam que eu não estou dizendo que alguém aqui é surdo; se digo, é que estou impressionado com a habilidade destes escritores de conseguir a invenção que fazem dentro da visão da disciplina que impõe uma ansiedade sobre se alguém está subindo ao nível exaltado da análise. Eu aconselharia estes escritores – eu aconselharia a todos – simplesmente para parar de se preocupar com este problema. Se você está articulando uma concepção distinta e interessante de como uma peça procede, você está fazendo tudo que é necessário fazer. Se, por alguma razão, você permanece preocupado em definir um tipo especial de discurso sobre as peças que será especialmente identificável como teoria da música, então eu suponho que você possa pensar em nós teóricos como pessoas que falam sobre música que estão especificamente preocupadas em como as peças produzem o efeito que nós atribuímos a elas.(DUBIEL, 2000 p. 5-6)
Já na repetição de A’, o processo temático tem clara continuidade. A flauta repete os compassos 43, 44 e 45 do início do solo. O sax barítono traz nova melodia, e as duas soam juntas em bloco. Trazemos nossa transcrição deste trecho abaixo:
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Figura 47 – nossa transcrição da melodia em bloco e análise motívica
Em referência ao barítono, o primeiro retângulo é o mesmo já citado anteriormente pela flauta, com o motivo em mudança de ritmo. A figura que segue é a única novidade em termos de elaboração motívica deste trecho, e é a continuação do motivo, o conseqüente, com uma nota de preenchimento e uma idêntica com mudança de acidente. No segundo compasso temos exatamente o mesmo compasso da flauta, só que com as figuras invertidas literalmente no barítono. E por fim, a repetição da figura A no sax barítono. Ao término do solo, Coisa nº 5 sofre uma modulação para mi bemol menor, e toda a estrutura A A’ B A repete no novo tom. A seção C, coda que surgirá finalizando a música, é exposta no novo tom. Para evitar confusões na análise motívica pela diferença de semitom, apresentaremos os exemplos desta seção no tom de ré menor. 5.3.4 Seção C (Coda) Quanto à seção C, podemos perceber que é elaborada a partir do seguinte trecho selecionado do tema 1b:
Figura 48 – comparação entre trecho do tema 1B e tema C
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Em um primeiro momento, este trecho surge em C de forma literal. Logo após, há uma reelaboração deste material, gerando nova melodia. As notas lá e sol são modificadas, dentro deste motivo para fá e ré. Estes novos intervalos não são gerados a partir de elaboradas transformações. É simplesmente uma nova melodia, muito similar e coerente, idêntica ritmicamente, gerada a partir de uma raiz comum. Seu surgimento proporciona ao trecho final a sensação de resolução da temática gerada em toda música, entre maior e menor, e intervalos de 9, #9 e 3. Aqui, temos finalmente ré menor. É interessante observar que é extraída de um trecho do tema que promoveu intensa discussão pela sua elaborada transformação temática, justamente o momento da casa 1 e casa 2 do tema A. Com o fechamento da música, ouve-se uma resolução deste motivo, apontando o repouso. Por fim, veremos o processo temático na introdução. Esta seção ficou por último na análise motívica, porque ao que parece foi composta separadamente. Foi gravada no filme Ganga Zumba, com um arranjo um pouco modificado, (FRANÇA p. 99) e afastada do tema de Coisa nº 5. Por isso, talvez não tenha sido composta diretamente como introdução da música, pois traz elementos diferenciados de todo o restante, num contexto fortemente africano, relativo à percussão, compasso binário composto, malha polirrítmica, caracterizando a proporção 3:2 e modalismo, características que não se mantém nas seções subseqüentes. O restante da composição tem contexto mais ligado às temáticas afro-brasileiras, utiliza a bateria, o que generaliza a percussão em termos de timbre, é sentida em compasso ternário simples, e pode ser analisado com base nas teorias da música tonal. Pareceria então, um segmento criado à parte, que foi unido ao tema para a posterior gravação do álbum Coisas, ou propositadamente, por ser uma introdução tem a intenção de proporcionar uma sensação de contraste. Apesar disso, mantém extrema coerência em relação ao material melódico que virá nas seções A e B. Vejamos abaixo, a introdução analisada, onde são claras duas partículas principais. As elipses tracejadas têm raiz comum:
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Figura 49 – análise motívica da introdução
A origem destas partículas está no trecho do tema 1B, selecionado abaixo:
Figura 50 – origem das partículas da introdução no tema 1B
Vamos comparar estas alturas com a introdução:
Figura 51 – comparação entre o trecho do tema 1B e introdução
Há clara unidade entre os trechos, podemos perceber que na introdução houve um preenchimento com a nota mi, entre parênteses, e uma supressão da nota lá, simbolizada por pausa, que de certa forma compensa e equilibra a nova estrutura, uma adição e em contrapartida uma supressão. A seguir, a mesma partícula se repete, com uma variação. O fá sustenido torna-se natural, e logo após mi natural, expressando a dualidade já comentada anteriormente, referenciando a temática africana que será desenvolvida posteriormente na música. Ainda dentro das transformações motívicas propostas por Réti, podemos entender isto como um
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processo de nota idêntica com mudança de acidente. Após esta variação a primeira partícula se repete. Quanto à segunda elipse, acontece o fenômeno ampliado da interversão de temas descrito por Réti e já comentado anteriormente. Se analisarmos este trecho, veremos que nele sobrepõem-se o início da introdução, o tema 1B, e o tema B.
Figura 52 – sobreposição do início da introdução, tema 1B casa 2 e tema da seção B originando trecho da introdução
Parafraseando Réti, Moacir forja em um único plano a introdução, o tema A e o tema B, arquitetados de maneira impactante, pois todos estes temas são provenientes do elaborado
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processo temático que desenvolve o motivo inicial da música, o tema 1, antecedente da seção A. Podemos entender que a introdução é como um resumo da música, ambientando o ouvinte dos assuntos que virão a seguir. Encerra-se aqui a análise motívica , o processo temático foi percebido e analisado em toda a melodia de Coisa nº5. Pudemos compreender que a música, com exceção do solo de sax barítono, foi composta a partir de um motivo básico que, exposto nos primeiros dois compassos do tema1, antecedente da seção A, foi elaborado e percebido através de algumas das categorias de transformação teorizadas por Rudolph Réti, em seu livro The thematic Process in music, como movimento contrário, interversão, interversão de temas, preechimento
e rarefação de estruturas temáticas, mudança de tempo, altura idêntica com mudança de acidentes e contorno temático. Estas transformações, por sua vez, em vários momentos foram reelaboradas, gerando assim uma unidade em toda melodia, que remete a uma raiz comum, o motivo.
5.4 CONTRAPONTO 5.4.1. Melodia em bloco A textura de Coisa nº 5 tem um caráter polifônico, de melodia acompanhada. Por isso, este arranjo de Moacir não privilegia aspectos contrapontísticos. Temos, geralmente, a melodia, dobrada por alguns instrumentos, e um naipe executando a harmonia em segundo plano, como um fundo harmônico. O que gera o tempo todo uma sensação contrapontística é a rítmica e a métrica da música, baseadas em conceitos de música africana, como métrica múltipla, ritmos resultantes, hemíolas, e ritmos aditivos36, aspectos que não serão levantados neste trabalho. Os momentos onde há sobreposição de melodias, em analogia ao contraponto, são a introdução e a seção A’ do solo. Na seção introdutória, a trompa executa apenas um arpejo de 36
Utilizamos estes conceitos baseados no livro de Matthew Montfort , Ancient traditions, future possibilities, que contextualiza além da música africana, tradições de Bali e Índia.
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ré menor, numa sobreposição rítmica de um compasso binário de 4/4 sobre um binário composto de 6/8, onde as colcheias se enquadram na proporção 3:2, caracterizando uma hemíola. O que merecerá nossa atenção aqui é a seção final do solo, onde sax barítono e flauta executam, ao mesmo tempo, melodias diferentes. O caráter é contrapontístico, no entanto, o que realmente surge nestes quatro compassos é uma melodia em bloco, baseada na técnica de arranjo linear. Com base nos conceitos expostos por Ian Guest e Joel Barbosa de Oliveira, visando identificar o uso desta técnica a figura abaixo traz uma análise deste trecho, onde os números são os intervalos gerados pelas melodias:
Figura 53 – análise da melodia em bloco com base na técnica linear
Legenda: PH – pontos harmônicos PL – pontos de linha DP – dissonância primária DS – dissonância secundária DT – dissonância de terceiro grau DQ – dissonância de quarto grau CP – clímax primário CS – clímax secundário
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Identificamos os PHs acima, com base na riqueza gerada pelas duas vozes. Riqueza esta num sentido de tensão intervalar, considerada a partir da classificação dos intervalos pela dissonância, proposta por Guest e Oliveira de acordo com a série harmônica, demonstrados na tabela37 a seguir:
Figura 54 – tabela da classificação dos intervalos pela dissonância
Desta forma, identificamos seis PHs, onde três são comuns 38, um caracteriza um clímax secundário e dois caracterizam clímax primário. Os PHs comuns justificam-se pelo argumento de Guest, de que “a primeira nota importante em novo tom, acorde não diatônico ou em função harmônica diferente”(1996, vol III p.42) deve ser considerada como um PH. Estes três PHs são as primeiras notas da mudança dos acordes, portanto da função tônica para dominante, e a eles são adicionadas duas DS e uma DT. O CP e CS foram determinados pela presença das DPs sétima maior e nona menor, que de acordo com Oliveira (2004, pg.107), “a inserção da DP numa voicing deve recair preferencialmente sobre os intervalos de 9m (nona menor) ou a 7M (sétima maior)”. Notamos que foram atribuídos estes intervalos por Moacir, porque no CS ouvimos a terça menor do tom sobre o D7. Novamente ele cita a ambigüidade entre as terças, pois o intervalo de sétima maior é conseguido pela sobreposição de fá e fá sustenido. Já no CP, sobre a tônica do novo acorde A7 ouvimos a nona menor si bemol. Segundo o mesmo autor, CP e CS “sempre
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DP: dissonância primária, ou dissonância aguda; DS: dissonância secundária; DT: dissonância de terceiro grau; DQ: dissonância de quarto grau; CO: consonância. 38 PH comum é todo PH que não gera clímax.
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trazem consigo um fato novo, um demarcador, que precisa ser enfatizado no trajeto melódico em bloco” (2004, pg.104). Devemos observar que um clímax acontece uma vez apenas. Em nossa análise, consideramos o clímax primário duas vezes porque a estrutura na qual está inserido o CP é repetida, como pudemos perceber na análise motívica, as figuras são invertidas, então geram estruturas também em inversão intervalar. Portanto, o CP, que aparece como uma sétima maior num primeiro momento, surge a seguir como uma nona menor. O CS também é gerado a partir do intervalo de sétima maior. Foi classificado como secundário pelo menor impacto em relação ao contraste dos PL que o circundam.“É importante, para que haja maior impacto em CP e CS, que as voicings que os antecederem e sucederem lhes sejam contrastantes em tamanho e em quantidade de tensão intervalar” (OLIVEIRA, 2004 pg. 78). Assim, o CS é antecedido por duas DTs, que diluem, amenizam sua tensão. Já o CP, é circundado apenas por consonâncias, o que atribuem a este clímax maior contraste e impacto. Moacir constrói os PLs utilizando proeminentemente consonâncias de oitavas, terças e sextas, o que valoriza os PHs. Surgem duas DQs e duas DTs, que não são capazes de constituir um PH, porque são tensões mais brandas, e “pontos harmônicos devem ser escassos na melodia, deixando predominar as linhas. Algumas notas, mesmo que se enquadrem nas situações acima[localização dos pontos harmônicos], não serão PHs quando houver outras mais importantes por perto” (GUEST, 1996 vol III pg. 42). Percebemos que Moacir domina os conceitos desta técnica. O que nos desperta grande curiosidade, é como a segunda voz foi construída, incluindo o motivo literal no primeiro compasso, e inversão das figuras no compasso seguinte, ainda assim gerando pontos de linha e pontos harmônicos tão explícitos com as regras do arranjo linear.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao fim deste trabalho, concluímos que a tentativa de compreender uma obra sob o amplo ponto de vista da composição e arranjo não é tarefa das mais simples. A união destas duas práticas gera uma multiplicidade de elementos tão grande que é impossível de ser descrita com maior profundidade em um trabalho desta proporção. Por isso, fomos compelidos a restringir nossa análise ao parâmetro altura, privilegiando apenas harmonia, melodia e contraponto. Outros parâmetros fundamentais de uma composição e arranjo, como duração, intensidade e timbre não foram especificamente contemplados em nossa análise. Acreditamos que elementos essenciais como métrica, rítmica, dinâmica, acentuação, textura e articulação podem e devem ser também observados pelo analista que busca compreender uma obra na esfera da composição e arranjo.
Em um nível pessoal, entendemos que é
perfeitamente possível e enriquecedor, examinar todos estes aspectos, porém a responsabilidade da tarefa de descrição da análise em um trabalho científico exige ser feita de maneira criteriosa e fundamentada, e por isso necessita uma delimitação sensata. A tentativa de unir o máximo de elementos, com isso buscando descrever uma compreensão integral, geraria certamente um trabalho de dimensões desproporcionais e de utilidade duvidosa, por considerar também aspectos possivelmente de menor relevância. Isto aponta para que nossas futuras pesquisas sejam específicas, foquem nas particularidades mais proeminentes de compositores ou arranjadores. Consideramos ideal tratar de um arranjo de Moacir Santos sob a concepção de Nattiez da análise imanente, no nível neutro, pois esta abordagem objetiva explicitar somente suas técnicas como arranjador, viabilizando o conhecimento das ferramentas utilizadas. A abordagem poiética indutiva que adotamos no elemento melodia através das teorias de Rudolph Réti mostrou-se capaz de revelar parte bastante significativa do processo criativo do compositor. Este método foi diretamente ao encontro da concepção musical de Moacir. Especificamente sobre a Coisa nº 5, concluímos através de nossa análise que seu arranjo utiliza uma variedade de recursos reduzida. Tratando de técnicas, harmonia é
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relacionada à musica afro-americana, influenciada principalmente pelo Blues, com a utilização de poucos acordes e cadências, com tensões provenientes da prática de substituições e empréstimos mais relacionados ao Jazz. É distribuída nos naipes com a intenção de acompanhamento, num fundo harmônico que não privilegia a movimentação independente entre as vozes do naipe. A melodia é sempre arranjada com dobramentos em oitavas, e não proporciona diferença intervalar entre os instrumentos em nenhum momento. O caráter contrapontístico é verificado em apenas três compassos ao fim do soli de flauta e sax barítono. Em contrapartida, Moacir caracteriza sua música por outro viés. Apropria-se do conceito de melodia acompanhada para destinar especial tratamento à rítmica e métrica da seção harmônica. Os dobramentos, por sua vez, geram sempre riqueza timbrística e textural na melodia. A sensação contrapontística da música é conseguida através de recursos polirrítmicos obtidos pelo contraste métrico entre melodia e instrumentos da seção rítmica. De maneira geral esta análise revelou alguns recursos comumente empregados por Moacir Santos como: harmonias enriquecidas por rítmicas e levadas bastante ativas, que contrastam com a melodia ao invés de só acompanhá-la em segundo plano; melodias sempre tratadas especialmente em relação aos timbres escolhidos, originando timbres mistos pouco convencionais, impondo freqüências graves ao dobrar a melodia, na justaposição freqüente dos instrumentos de tessitura aguda como trompete e flauta aos graves sax barítono, e trombone baixo. Tais melodias muitas vezes geram deslocamento em relação às vozes da harmonia, numa sensação contrapontística, que é influenciada por conceitos freqüentes na música afro, como métrica múltipla, hemíolas, ritmos aditivos, ritmos resultantes e ostinatos. Com base no exposto anteriormente, em resumo a concepção de arranjo de Moacir Santos caracteriza-se por colocar em primeiro plano o parâmetro duração. Ele privilegia as estruturas rítmicas da melodia, da harmonia e obviamente, da seção rítmica, aliados à exploração de texturas. Por estes motivos, e pela abordagem que definimos baseados em Nattiez, as técnicas de arranjo do parâmetro altura, definidas por harmonia e contraponto ocuparam uma parcela reduzida no corpo do nosso trabalho, se comparadas à analise melódica, que visou o processo de composição. A esfera da composição na análise da Coisa nº 5 mostrou-se mais relevante e elaborada em relação a do arranjo. Portanto, o processo temático e transformações motívicas
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mereceram nossa atenção especial e descrição mais detalhada. Percebemos que Moacir Santos compôs toda música, com exceção do solo de sax barítono, elaborando um motivo inicial de sete notas, que é exposto nos primeiros dois compassos do tema1, antecedente da seção A. Várias das categorias de transformação teorizadas por Rudolph Réti foram percebidas no desenvolvimento deste motivo , como movimento contrário, interversão, interversão de temas, preechimento e rarefação de estruturas temáticas, mudança de tempo, altura idêntica com mudança de acidentes e contorno temático. Estas transformações, por sua vez, em vários momentos foram reelaboradas, gerando assim uma unidade em toda melodia, que remete a uma raiz comum, o motivo. A técnica temática empregada nesta pesquisa foi fundamentada por Réti a partir dos clássicos, e as referências bibliográficas sobre os motivos e unidades básicas na composição remetem principalmente à musica erudita, através dos estudos de teóricos consagrados como Arnold Schöenberg, Heinrich Shenker, Hans Keller, Allan Walker, além do próprio Réti. Análogos a Rudolph Réti, que afirma que a técnica temática “tenha se tornado a base para todo o esforço compositivo de nossa época”, pudemos comprovar nossa afirmação inicial, mencionada no ítem considerações sobre o método, que Moacir Santos utiliza muitos procedimentos composicionais da técnica temática. Várias das categorias de transformação foram verificadas na Coisa nº 5. Percebemos que além de Moacir, a música popular brasileira de forma geral herdou estes procedimentos. No jargão dos músicos populares, os motivos são referência constante, e utilizados amplamente como técnicas de composição, arranjo e improvisação, onde surgem muitas vezes através da prática, experiência e audição de forma intuitiva ou inconsciente. Segundo Réti, o período clássico utilizou ferramentas da era contrapontística e adaptou-as a seu propósito e espírito. Utilizou procedimentos já conhecidos de forma mais livre e flexível, ampliou e intensificou o desenvolvimento do processo temático. Ainda apontou para um futuro desenvolvimento, pois afirma que “as possibilidades são inumeráveis e todo o compositor genial inventa novos métodos”. As técnicas utilizadas por Beethoven datam de duzentos anos, e foram teorizadas como categorias de transformação há mais de cinqüenta anos por Réti. Adaptaram-se perfeitamente em nossa análise, porém é natural supor que novos e diferentes processos foram
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adicionados pela prática popular e brasileira. Vemos, portanto, uma lacuna na bibliografia da nossa música em relação aos motivos e processo temático, considerando que este é um tema absolutamente corrente e fundamental para esta modalidade de música. É necessário formular novas teorias, adaptadas ao nosso tempo, e sob um ponto de vista do fazer musical popular e brasileiro, que além de Moacir Santos possui uma infinidade de outros compositores geniais. Por fim, queremos deixar claro que esta pesquisa está longe de ser definitiva e não se encerra por aqui. Vislumbramos com certeza várias possibilidades futuras de estudo e sugerimos outras pesquisas. Em termos de arranjo, para compreender a concepção de Moacir Santos é necessário analisá-lo ainda mais profundamente sob os aspectos rítmicos e texturais. No plano da composição, seu disco Coisas como um todo é certamente uma grande fonte de pesquisa sobre transformações temáticas, pois sua unidade é latente. Acreditamos e percebemos motivos comuns entre as diferentes Coisas, possivelmente numa ampliação do processo temático exposto em nosso trabalho. Tratando de entender a composição brasileira, julgamos necessário desenvolver, teorizar e publicar novos argumentos e pesquisas em favor do processo temático.
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color.
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ANEXO A
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ANEXO B
Nanã (letra de Mario Telles) Esta noite, quando eu vi Nanã vi a minha deusa, ao luar Toda noite,eu olhei Nanã a coisa mais linda de se olhar Que felicidade achar enfim esta deusa vinda só pra mim, Nanã E agora, eu só sei dizer toda a minha vida, é Nanã é Nanã, é Nanã, é Nanã, é Nanã Nesta noite, dos delírios meus, vi nascer um outro amanhã Veio o dia com um novo sol Sol da luz que vem, de Nanã. Adorar Nanã é ser feliz Tenho a paz, o amor e tudo que eu quis E agora, eu só sei dizer Toda a minha vida, é Nanã é Nanã, é Nanã, é Nanã, é Nanã.
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ANEXO C Nanã Transcrição de Almir Chediak
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ANEXO D