EPENSAR SÉRIE R EPENSAR
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A SOCIAL DEMOCRACIA NO BRASIL E NO MUNDO Timothy J. Power
Instituto Teotônio Vilela Fundação Pedroso Horta
MERCADO ABERTO
SUMÁRIO
Apresentação / 03 Introdução / 04 A identidade não virá da base social / 05 Identidade e discurso social-democrata na era da globalização: de volta aos valores / 08 Comentário das Lâminas / 12 Debate / 20
APRESENTAÇÃO
O INSTITUTO TEOTÔNIO VILELA Seção Rio Grande do Sul e a FUNDAÇÃO MEDROSO HORTA do Rio Grande do Sul tiveram a grata satisfação de promover, em conjunto, no dia 21 de julho de 1997, palestra do Dr. Timothy J. Power, brasilianista norte-americano que desde 1985 desenvolve pesquisas junto ao Congresso Nacional Brasileiro. O Dr. Timothy teve como debatedores João Carlos Brum Torres e João Gilberto Lucas Coelho, os quais enriqueceram enriqueceram enormemente a reflexão política que então se fez. Coerentes com as finalidades das entidades promotoras, estamos publicando a referida palestra e o seu debate, que certamente será uma importante contribuição à reflexão de todos aqueles que pensam e fazem política, não só os militantes dos partidos pesquisados (PSDB e PMDB), como também os Professores, estudantes e o público em geral. Ler, estudar e informar-se sobre a situação, as perspectivas e as propostas da social democracia no Brasil e no mundo, assim como sobre a questão da identidade ideológica dos grandes partidos brasileiros, é um meio de aprimorarmos nossa consciência de cidadania e o objetivo maior da militância política: a busca do do bem-estar social. social.
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Antônio R. Henriques Henriques Presidente do Instituto Instituto Teotônio Vilela - RS Brites Jaques Presidente da Fundação Pedroso Pedroso Horta do RS RS
"É muito difícil uma reforma do Estado, que supostamente atenda a um programa liberal, ser realizada com eficácia por um governante de direita." Senador José Fogaça (PMDB-RS), sobre a derrota dos conservadores franceses, Senado, 3 de junho de 1997 no jornal do Senado, "A globalização deixou a esquerda sem alternativas." Paulo, 3 de junho de 1997 Editorial da Folha de S. Paulo,
Brasilianista norte-americano; Doutor em Ciência Política pela Universidade de Notre Dame 1993; Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Florida, 1994; Bacharel em Ciência Política pela Universidade de Massachusets, 1994; Professor de Ciência Política da Louisiana State University; Ex-Protessor Visitante da Universidade de Brasília, onde lecionou Política Comparada; Ex-Bolsista da Comissão Fulbright no Brasil, desenvolvendo Pesquisas junto ao Congresso Nacional Brasileiro. Autor de trabalhos científicos publicados nos EUA e na Europa.
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INTRODUÇÃO
Agradeço o convite para palestrar hoje sobre o tema "A Social Democracia no Brasil e no Mundo". O tema é fascinante e absolutamente relevante por, pelo menos, quatro motivos. Em primeiro lugar, a social democracia é um dos mais importantes movimentos políticos do século XX. A social democracia ou é o maior partido, ou é o segundo maior partido, em todas as principais democracias européias. É um dos mais bem-sucedidos movimentos democráticos de todos os tempos. Tanto o PMDB quanto o PSDB, os anfitriões de hoje, sempre procuraram inspiração externa nesse movimento, tendo os dois partidos o status de observadores junto à Internacional Socialista. Em segundo lugar, a social democracia, novamente, é tema de debate e de cobertura na mídia internacional, já que, nos últimos 18 meses, houve pelo menos três vitórias importantes dos social-democratas na Europa: primeiro, na Itália, no ano passado, e agora em 97, com a vitória dos trabalhistas britânicos no dia 19 de maio, e dos socialistas franceses no dia 1° de junho. As pesquisas na Alemanha mostram o desgaste do governo de Helmut Kohl e um surpreendente renascimento do SPD, o Partido Social-Democrata Alemão. Muitos analistas comentam que, nos últimos dois meses, o controle sobre o futuro da Europa parece ter passado das mãos das forças de centro-direita (Helmut Kohl, Jacques Chirac e o já esquecido John Major) para um novo eixo de centro-esquerda. As maiores estrelas da política européia no momento são o novo primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, e o novo premiê francês, Lionel Jospin. Fascinante é o fato de que, nesse final de século, período em que o maior fenômeno internacional parece ser a onda do chamado neoliberalismo, a social democracia mostre um desempenho eleitoral mais do que saudável. Dos 15 governos da União Européia, os socialistas participam de nada menos do que 13. Os únicos dois países que não têm participação dos social-democratas são a Alemanha, onde o SPD tem boas chances nas eleições de 98, e a Espanha. O terceiro motivo de nosso tema ser relevante tem a ver com a conjuntura brasileira. Aqui, no Brasil, um partido social-democrata está no poder desde 1994, participando de uma coalizão com outros partidos, mas com o Presidente da República e vários dos principais ministros do governo identificando-se como social-democratas. O quarto motivo da relevância do tema é o mais importante; refiro-me ao fato de que, ultimamente, a social democracia não parece estar comportando-se como a social democracia. A social democracia no Brasil, na Inglaterra, no Chile, na Espanha, etc., tem se destacado por ter implementado políticas chamadas "neoliberais". Esse fato - o fato de a própria social democracia ser o veículo do neoliberalismo e da globalização tem levado a uma crescente crise de identidade na social democracia contemporânea. Esta noção de crise de identidade vai ser o principal tema da minha breve palestra, e se constitui num fenômeno que merece muito mais atenção do que poderemos dar, pois hoje só será possível iniciar o debate. Tentarei falar um pouco sobre a identidade histórica ou "clássica" da social democracia, sobre como esta identidade tem sido transformada em anos recentes, e como alguns pensadores da social democracia estão procurando revigorar o seu discurso e o seu projeto social. Como ponto de partida, podemos tomar uma indagação que aparece com freqüência nas crescentes críticas, não só ao governo brasileiro, mas a outros partidos social-democratas, que estão implementando programas não tradicionais, ou seja, não identificados com a agenda histórica da esquerda democrática. Essa indagação é a
seguinte: quais são os valores da social democracia hoje? A questão dos valores levanos a uma consideração mais direta desse problema de crise de identidade. Gostaria de dividir a palestra em duas partes. Na primeira, vou entrar na questão de crise de identidade da social democracia no Brasil e no exterior, mas enfocando, principalmente, o caso do PSDB. Na segunda parte, gostaria de apresentar alguns dados de minhas pesquisas junto ao Congresso Nacional, em Brasília. Venho fazendo essa pesquisa, tipo survey (questionário fechado), desde 1990. Os dados dizem respeito a atitudes políticas e econômicas dos parlamentares brasileiros e, mostrando os dados, podemos situar os dois partidos, o PMDB e o PSDB, dentro das mudanças ideológicas dos últimos 10 anos, no Brasil. Vocês serão os primeiros a ver esses dados de 97. (Antes de continuar, eu, como convidado estrangeiro de dois partidos políticos brasileiros, tenho a obrigação de pedir licença para poder falar livre e abertamente sobre a política brasileira. Como analista político, não posso deixar de fazer algumas críticas. Mas quero enfatizar que qualquer crítica que venha a fazer, será feita com um espírito construtivo, como é de se esperar de uma pessoa que dedica sua vida ao estudo do Brasil. Não tenho uma agenda política, mas tenho uma agenda analítica, e agradeço o convite para estimular o debate entre os quadros dos dois institutos partidários.) Agora vamos diretamente ao nosso tema...
A identidade não virá da base social Para abordar o tema da social democracia no Brasil, quero enfocar dois problemas principais. O primeiro diz respeito à natureza do relacionamento histórico entre os partidos social-democratas e suas respectivas bases sociais. O segundo é o problema de compatibilizar o discurso tradicional da social democracia com as novas políticas reformistas que ela vem implementando nos anos 90. Na verdade, esses dois problemas são inseparáveis: precisa-se de um mínimo de base social para implementar políticas públicas com sucesso e, para se manter uma base social, é necessário desenvolver um discurso adequado, que torne compreensíveis as políticas públicas. Mas, para fins da análise, vamos enfocar os dois problemas separadamente. Quanto à base social, aqui, no Brasil, ouve-se sempre a mesma observação sobre o PSDB (e isto pode ser observação neutra, crítica externa ou auto-reclamação, dependendo do autor): que o PSDB tem pretensões de ser um partido social-democrata ao modelo europeu; mas que nunca poderá ser um partido verdadeiramente social-democrata, porque não é equipado de uma base sindical organizada. O observador dirá, com razão, que existem bases sindicais organizadas no Brasil, mas que estas, de modo geral, não "pertencem" ao PSDB, e sim a um outro partido, que é o Partido dos Trabalhadores PT. Toda vez que eu venho ao Brasil e compro um jornal, ligo a TV ou leio uma revista acadêmica, vejo esta mesma afirmação: que o PSDB nunca vai ser um partido autenticamente social-democrata, porque não tem uma base sindical. Essa afirmação precisa ser qualificada, porque ela representa uma visão ultrapassada da social democracia européia. A social democracia de 1910 ou 1930 era reduzível à sua base sindical, mas com a social democracia dos anos 90 não é bem assim. Na segunda metade do século XX, a Europa Ocidental passou por uma grande transformação social, e nessa transformação: 1º)os países ficaram mais ricos; 2º)o tamanho da classe operária diminuiu, primeiro em termos proporcionais e, mais tarde, até em termos absolutos; 3°)o tamanho da classe média aumentou fortemente, até dominar o cenário político nacional;
4º)o nível educacional da população subiu muito; 5º)a televisão e a mídia eletrônica tiraram das mãos de organizações complexas (partidos e sindicatos) sua função de provedores de informação política, e assim por diante. A natureza dessa transformação é bem conhecida de todos: ela reduziu, em grande medida, o espaço relativo das bases tradicionais da social democracia, que eram as bases sindicais. Surge então o grande paradoxo da social democracia européia: os social-democratas foram os inovadores e os criadores do welfare state (Estado do Bem Estar Social). Mas o próprio sucesso do welfare state diminuiu o espaço político, o oxigênio organizacional. da social democracia. O eleitorado transformou-se, gradualmente, em um eleitorado de classe média. E os partidos também, gradualmente, foram se adaptando a essa nova realidade. Já em meados dos anos 60, o cientista político alemão Otto Kircheimer publicou sua análise clássica deste processo de adaptação1. Ele argumentou que os partidos da social democracia, que até a Segunda Guerra Mundial eram partidos nitidamente ideológicos, estavam transformando-se em partidos do tipo catch-all (um partido que "pega tudo", no sentido de "partido-ônibus"). Ou seja, ao invés de buscar votos em determinados setores do eleitorado e da estrutura ocupacional, teriam que buscar votos de todas as classes sociais. Para usar uma analogia da indústria da televisão dos anos 90, a mudança estratégica dos partidos social-democratas é equivalente à diferença entre a estratégia de broadcasting, um canal de TV que atrai todo mundo, e narrowcasting, os novos canais por assinatura destinados a camadas muito estreitas do mercado, tipo atletas, roqueiros e até historiadores. Os partidos catch-all adotam a estratégia de broadcasting, isto é, uma estratégia majoritária. Resumindo, a social democracia européia teve sua base tradicional reduzida, mas reagiu, tentando apoiar-se em camadas bem mais amplas da população, e teve muito sucesso. Apesar da fantástica transformação social dos países europeus, que os transformou em sociedades pós-industriais, com uma maioria de classe média, os partidos social-democratas não morreram, muito pelo contrário. Hoje o partido da social democracia continua sendo o primeiro ou o segundo partido, em tamanho, em todas as democracias européias. Assim, quando a imprensa brasileira afirma que o PSDB não tem base sindical, essa é uma afirmação mais de interesse histórico que contemporâneo: faz muito tempo que a social democracia européia transformou-se em um movimento que vai além da estreita base tradicional, e que é um movimento catch-all. Agora, é verdade que o PSDB, ao ser fundado, em 1988, teve a péssima sorte de nascer depois das duas grandes incorporações políticas da classe operária brasileira: a primeira realizada por vias populistas entre os anos 30 e os anos 60; e a segunda, baseada no eixo CUT-PT, no período de 1978-80 até hoje. É verdade, também, que o PSDB não pode contar, como podem contar os partidos europeus, com fortes lealdades históricas no eleitorado, como, por exemplo, as que existem entre eleitores hoje privilegiados, mas cujos pais foram da classe trabalhadora. 2 Mas, mesmo assim, a crítica que tanto se ouve, de que o PSDB não pode ser um partido social-democrata, é injusta quando vista pela ótica da História. O modelo europeu de party building (construção de partidos), em que o partido cresce gradualmente com a classe operária 1
Otto Kircheimer, “The transformation of the Western European Party Systems", em Joseph LaPalombara e Myron Weiner, orgs., Political Parties and Political Development (Princeton: Princeton University Press, 1966). 2 Segundo os voting studies britânicos, o melhor preditor da intenção de voto de uni eleitor inglês não é a classe social, mas a classe social de seu pai.
durante 50 anos ou mais, representa um caminho que a História já fechou. Isto não vai acontecer no Brasil, nem mesmo com o PT, porque o momento de world time (atual momento mundial) não permite mais aos partidos pegarem a onda de uma fantástica e rápida expansão da classe operária, como aconteceu na industrialização européia. 3 O momento de world time não permite ao PSDB imitar os partidos social-democratas como eles eram, mas permite imitá-los como eles são hoje. Isto não significa que o PSDB não possa ser um partido social-democrata, pode. Mas seu enraizamento será diferente, aliás, bem diferente dos primos ultramarinos. Ao concorrer em um mercado político com outros partidos do tipo catch-all, hoje, o grande desafio da social democracia é construir uma maioria eleitoral que ganhe apoio de vários setores da sociedade. Aqui vê-se um outro paradoxo da social democracia nas democracias industrializadas: para construir essa maioria eleitoral, às vezes, é necessário manter a base sindical a uma certa distância, que o diga Tony Blair. De fato, o sucesso de Tony Blair, no Reino Unido (e, de certo modo, o de Bill Clinton nos EUA), é devido a reformas que desvincularam o partido do movimento sindical e, por sinal, diminuíram o poder dos líderes sindicais. Mas por que um social-democrata tomaria medidas que visam enfraquecer os próprios líderes sindicais? Ao meu ver, são duas as respostas a essa pergunta: primeiro, fizeram isso para facilitar a construção da maioria eleitoral temporária, que possibilita a chegada ao poder, "tranqüilizando" assim a classe média, e evitando a possibilidade de adquirir uma plataforma eleitoral radical e inviável. Ou seja, tomaram essas medidas para ganhar. As más línguas afirmam que a ideologia de Blair e de Clinton é simplesmente a ideologia da vitória. Segundo, reduziram o poder dos líderes sindicais para criar uma certa autonomia em relação às forças sociais, isto é, para que, uma vez no poder, pudessem ter a latitude (liberdade de ação) necessária para implementar (leia-se: manter) políticas públicas reformistas. Mas essa estratégia eleitoral leva a certos problemas quando os social-democratas reformistas instalam-se no poder (por exemplo: Felipe González, Michel Rocard e agora Blair). Em primeiro lugar, existe essa tendência de manter uma certa distância entre o partido e as partes remanescentes de um movimento sindical em fase de declínio (é bom lembrar que um movimento sindical em declínio tende a reduzir-se às suas parcelas mais radicais) e, em segundo lugar, existe o projeto de reforma do Estado (que não parece ser muito diferente do projeto histórico da direita). Esses dois fatores dão início a grandes problemas de identidade política para o Partido da Social Democracia. Este problema também é facilmente visível no Brasil: o PSDB tem uma enorme crise de identidade. Essa crise é até pior para o PSDB do que para os partidos europeus, porque, como já vimos, o PSDB não atravessou um longo período de construção de lealdades, um período que foi caracterizado na Europa por uma expansão da classe operária, do movimento sindical organizado e do sufrágio. Visto pela ótica da História, o PSDB perdeu esse bonde e acabou pulando diretamente para a era da globalização, da mídia eletrônica e da estratégia catch-all. Ou seja, o PSDB nasceu em uma época histórica em que as possibilidades para a construção de uma identidade social-democrata clássica são quase nulas.
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Para um excelente enfoque sobre o problema de world time no desenvolvimento do PT, ver Margaret Keck, The Workers' Party and Democratization in Brazil (New Haven: Yale University Press, 1992).
Não há dúvida de que os partidos social-democratas de orientação reformista enfrentam um dilema muito cruel: como prosseguir e, ao mesmo tempo, fazer três coisas, todas difíceis? Como manter intactas e, ao mesmo tempo, fazer: 1) a maioria eleitoral; 2) o projeto de reforma do Estado; e 3) a identidade social-democrática? Até a revolução de Thatcher, era comum, na Europa, ver os partidos social-democratas realizando os itens (1) e (3), simultaneamente. Nos anos 80, principalmente no Reino Unido e nos EUA, era a vez de os partidos de direita realizarem os itens (1) e (2), simultaneamente. Mas a alternância no poder sempre era inevitável e, agora no Reino Unido, depois de 18 anos de governos Tory (membro do Partido Conservador inglês, apelido dado pelos adversários, e que, originariamente, significava "ladrão") é a vez do Labour Party (Partido Trabalhista) tentar realizar os itens (1), (2) e (3), ao mesmo tempo. Por que todos os três? Na cabeça de Tony Blair, o item (2) não é mais opcional; é obrigatório. Isto pode ser resultado do fenômeno apontado pela Folha de S. Paulo, em editorial recente: "A globalização deixou a esquerda sem alternativas", ou pode resultar dos cálculos estratégico-eleitorais dos trabalhistas, que entenderam que sem o compromisso de responsabilidade fiscal, sem o compromisso de deixar "imexíveis" algumas reformas thatcherianas, nunca mesmo chegariam ao poder. Provavelmente, a decisão de assumir compromissos "neoliberais" resulta de ambos os fatores: de uma adaptação pragmática à globalização econômica e de uma racionalidade eleitoral. Independente do motivo, o dilema é o mesmo: como manter, ao mesmo tempo, uma maioria eleitoral, um projeto reformista e uma identidade social-democrata? Isto é possível?
Identidade e discurso social-democrata na era da globalização: de volta aos valores Essas perguntas levam-me à segunda colocação que fiz no início desta palestra: como achar um discurso que compatibilize e sistematize os três itens mencionados acima? Como compatibilizar o discurso tradicional da social democracia com as novas políticas públicas que ela vem implementando nos anos 90? Acredito que o caso de Tony Blair é esclarecedor. É muito cedo para julgar Blair como governante (hoje ele tem apenas dois meses no cargo de primeiro-ministro), mas pretendo julgá-lo apenas como inovador de um novo discurso social-democrata. Devo confessar uma certa admiração por Tony Blair. A imprensa do meu país, os EUA, foi muito injusta com ele durante os últimos meses: a imprensa americana caiu na interpretação simplista de pintar Blair como "outro Clinton, que conseguiu a vitória levando seu partido para o centro". É verdade que os dois líderes levaram seus respectivos partidos para o centro; mas Clinton fez isto com justificativas pouco explícitas e com iniciativas, às vezes, contraditórias, deixando o presidente vulnerável à crítica de que ele é simplesmente um oportunista, sem ideologia nenhuma. Em 1994, Blair, enfrentando uma eleição interna em um partido mil vezes mais organizado e mais intelectualizado do que o Partido Democrata americano, teve que se explicar e se justificar muito mais do que Clinton. Blair tem pensado muito mais que Clinton o significado dos novos desafios dos partidos progressistas em democracias avançadas. Estive na Inglaterra, em julho de 1994 quando, depois da morte de John Smith, os trabalhistas estavam para escolher seu novo líder, e Tony Blair era apenas um entre vários candidatos à liderança partidária. Fiquei impressionado com a maneira com que Blair enfrentava a pergunta inevitável dos jornalistas: "O senhor é socialista?" A
resposta de Blair era sempre a mesma. Era mais ou menos assim: "Se por socialista o interlocutor entende um compromisso com o tradicional programa de governo da esquerda, não sou socialista. Mas, se por socialista entende-se um compromisso com os valores tradicionais da esquerda, sim, sou socialista". A mensagem que Blair queria transmitir era a seguinte: o socialismo, como um conjunto de políticas públicas específicas, como um conjunto de políticas públicas "previsíveis", morreu. Mas o socialismo como um conjunto de valores continua vivo; aliás, muito vivo. O desafio da social democracia contemporânea, na visão de Blair, é manter as novas políticas pragmáticas; mas, ao mesmo tempo, trazê-las mais perto dos valores tradicionais da esquerda. De início é preciso articular e explicitar esse conjunto de valores ao qual Blair sempre se refere: quais são eles? São a igualdade, a participação política, a transparência no poder, a justiça social e o conceito de communitarianism, ou seja, a necessidade de construir uma única comunidade nacional. Nas palavras de Blair, we are one nation (nós somos uma nação). Isto é uma tentativa de reconciliar as classes sociais, tanto empregadores quanto empregados, em torno de um projeto de capitalismo progressista, com face humana, que atenda aos interesses de muitos setores e não apenas de um. Blair rejeita a visão thatcheriana de uma shareholder society (uma nação de acionistas), o seu desejo é o de construir uma stakeholder society, uma sociedade em que existe um espírito comunitário visando à saúde econômica, um projeto nacional que liga governo, empregados, empregadores, cidades, regiões e famílias, em um sistema de direitos e responsabilidades que funciona para o bem de todos. Levantar a questão de valores em si não resolve o problema de identidade na social democracia reformista, é apenas um começo. O grande desafio da social democracia reformista dos anos 90 é o de explicar à população como é que as políticas públicas atuais realmente conduzirão à realização desses valores progressistas. Mas o fato de Blair ter levantado a questão de valores, de ter traduzido a proposta reformista em valores, de ter abandonado políticas ultrapassadas em favor de valores de eterna relevância, é inovador. Quais são as vantagens de explicitar este discurso baseado em valores? As vantagens são várias: 1) o discurso possibilita uma continuidade histórica com o legado nobre da esquerda européia, ao qual todos nós devemos muito; 2) o discurso de Blair dá um conteúdo ideológico ao projeto reformista que o diferencia da ideologia da direita. Esses valores que mencionei acima não são valores da direita. Repito, não são; 3) o discurso ajuda a social democracia reformista a livrar-se da imagem de tecnocrata que ela vem adquirindo (vejam os casos de González, de Rocard). Quando a social democracia é atingida por essa crítica, os prejuízos são grandes, porque ela terá mais dificuldade ainda em estabelecer sua identidade política. O discurso de Blair, baseado em valores, reconstrói a identidade progressista e rejeita o tecnocratismo. O PSDB poderia aprender muito com ele, porque ele já está bastante contaminado pela imagem de tecnocrata; 4) O discurso de Blair torna explícita a preocupação intrinsecamente social das reformas econômicas. Sei que alguns de vocês irão discordar dessa afirmação, porque muita gente não vê preocupação social nenhuma em qualquer reforma que possa ser tachada de "neoliberal". Mas, mesmo que muitos dos principais autores dessas reformas, de Blair a Fernando Henrique Cardoso, estejam confusos", continuam acreditando que a reforma do Estado é, em primeira instância, um passo para a realização da igualdade e da justiça social. Eles sustentam que o que importa não é o tamanho do Estado, mas a sua capacidade administrativa, a sua capacidade de intervir e realizar sem ineficiências e distorções fiscais. Acreditam eles que o desafio do futuro é
how to do more with less (como fazer mais com menos). Os opositores da reforma do Estado preferem chamar atenção ao less, sustentando que a idéia de menos Estado é
simplesmente a manifestação atual do mesmo liberalismo ideológico de sempre. Mas os defensores da reforma preferem enfatizar o more, que, segundo eles, mostra que a intenção da reforma do Estado é fundamentalmente social. Para dizer isso de uma maneira mais clara, a estratégia dos social-democratas reformistas é mostrar que a reforma do Estado nas mãos deles, e não nas mãos de partidos de direita, tem uma orientação fundamentalmente social. Aqui, hoje, nós não temos como resolver este debate, que, na verdade, é o debate que está consumindo o Brasil, na segunda metade dos anos 90. Quem não aceita que a reforma do Estado possa ter um fundamento social e progressista não precisa refletir mais. Mas para quem admite que a reforma do Estado possa ter uma preocu pação que seja, pelo menos parcialmente, consistente com os valores tradicionais da social democracia, a principal questão passa a ser: como tornar explícita essa consistência? Aqui, no Brasil, o PSDB tem sido muito eficaz e eficiente no lançamento de propostas para a reforma do Estado. No poder desde 1995, o PSDB elabora propostas, apresenta emendas constitucionais ao Congresso, faz previsões orçamentárias, lança relatórios e envia planilhas detalhadas para a Gazeta Mercantil e a comunidade internacional. O partido, sem dúvida, é bom em termos de policy making (elaboração de políticas públicas), mas o partido é muito fraco no dever de justificar suas propostas. O PSDB, ao meu ver, não faz o esforço necessário para ligar os valores que defende às políticas públicas que administra. E essa conexão não é fácil de explicitar. Como mostrar claramente a conexão entre, de um lado, a privatização de uma grande empresa estatal e, do outro lado, a justiça social? Essa conexão não é óbvia nem para as parcelas mais altamente escolarizadas do eleitorado, nem, muito menos, para o eleitor comum, mas ela existe, pelo menos, na visão da social democracia reformista. O problema é como tornar essa conexão visível para o eleitorado, tornando-a explícita e compreensível à sociedade como um todo. O eleitorado precisa ter um mínimo de acesso às motivações que sublinham a reforma do Estado. Para o eleitor brasileiro, o espaço em que o PSDB devia ter escrito essas motivações ainda continua em branco, permitindo que a oposição preencha-o como bem quiser. Resumindo: a oposição é muito clara sobre aquilo a que se opõe, mas o PSDB é pouco claro sobre aquilo que defende. Para dizer isso de uma outra maneira: a oposição mostra seus valores, mas não mostra seu plano alternativo de governo, enquanto o PSDB revela seu plano de governo, mas não seus valores. Volto a enfatizar que não é nada fácil tornar compreensível ao eleitorado a necessidade da reforma do Estado, pois os custos são imediatos e concretos, enquanto os benefícios são distantes e abstratos. Vejamos, por exemplo, a questão da moeda comum na União Européia: a austeridade imposta pelos "critérios de convergência", isto é, os padrões de disciplina fiscal necessários para qualquer país participar do lançamento do euro em 1999, é dolorosa. As vantagens do euro são óbvias para qualquer economista, mas são difíceis de explicar ao cidadão comum. O economista vê eficiência, enquanto o eleitor pergunta-se por que ele, o cidadão comum, tem que se submeter a uma austeridade dolorosa por benefícios que ele não enxerga nem no horizonte. As justificativas usadas, por exemplo, apelos internacionalistas à unidade dos povos europeus, como também impenetráveis discursos macroeconômicos, nem sempre convencem. Mesmo na França, líder histórico do Processo de integração, esses argumentos, na voz de Jacques Chirac, não foram suficientes para construir uma aliança eleitoral a favor da austeridade. Os socialistas franceses prometem a "flexibilização"
(para usar este maravilhoso neologismo brasileiro) dos critérios de Maastricht, e foi assim que levaram as eleições do mês passado. A equação é bastante simples: não estando convencido da necessidade da reforma do Estado, o eleitor não vai apoiá-la. Voltando à questão dos partidos social-democratas, eles se encontram em uma posição difícil. Se não se mostram, pelo menos, abertos à reforma do Estado, correm o risco de não poderem construir uma maioria eleitoral. Se são eleitos e defendem energicamente a reforma do Estado, correm o risco de perder a identidade social-democrática. Se perdem a identidade social-democrática, correm o risco (além de enfrentar guerras internas) de perder também a capacidade de convencer o eleitorado de que o ajuste econômico será mais tolerável se for gerenciado por um partido progressista. Este último ponto é importante. Tony Blair, ao meu ver, entende que a globalização e a reforma do Estado são inevitáveis. Mas, ao invés de ver esta inevitabilidade como uma ameaça, a vê como uma oportunidade, Se os eleitores entenderem que essas mudanças vêm de qualquer jeito (e Blair pode agradecer aos Tories por terem explicitado isso), vão preferir que o ajuste seja liderado, seja "capitaneado", por um partido com valores progressistas. Uma vez convencidos dos novos rumos, vão preferir a versão social-democrática à versão social-darwinista, sempre. É por isso que acredito que o discurso do New Labour (Novo Trabalhismo) iniciado por Tony Blair e baseado nos valores tradicionais da social democracia representa uma importante inovação. Por que ponho tanta ênfase no discurso e não nos resultados? Primeiro, porque é muito cedo ainda para avaliar o Novo Trabalhismo no poder. Segundo, porque acredito que um discurso adequado, cuidadosamente construído e baseado nos valores tradicionais da esquerda, pode resgatar a social democracia de sua cri-se de identidade. Quem não acredita que a reforma do Estado e a globalização possam ser, pelo menos parcialmente, compatíveis com os valores tradicionais da esquer. da, obviamente não poderá compartilhar do meu raciocínio. Mas, como argumentei acima, a social democracia renovadora tem que manter intactas três coisas: a maioria eleitoral, o projeto reformista e a identidade social-democrática. Sem um discurso adequado, o Partido Social-Democrata não poderá compatibilizar esses três itens ao mesmo tempo. Sem um discurso adequado, o rótulo de "social-democrata" e as políticas "neoliberais" são coisas aparentemente contraditórias. E, sem um discurso adequado, o eleitorado não tem como "fazer sentido" acerca das várias propostas reformistas em andamento. Fica claro que na social democracia reformista falta comunicação social, e Blair está tentando resolver algumas de suas aparentes contradições. O PSDB poderia aprender muito com o discurso do New Labour. A conexão entre os valores que o PSDB defende e as políticas que administra deveria tornar-se mais nítida, mas esta tarefa cabe, não a cientistas políticos brasilianistas, e sim a políticos brasileiros. Achei proveitoso introduzir a questão dos valores no debate de hoje. Tenho sugerido aqui que, ao enfatizar os valores originais da social democracia, os social-democratas podem começar, apenas começar, a resolver sua crescente crise de identidade. Apesar de adotarem ou manterem muitas políticas públicas associadas com governos de direita, os social-democratas têm origens e, portanto, valores diferentes. Creio que esses valores possam ser compatibilizados com as novas políticas reformistas, porque a reforma do Estado e a preocupação social não são necessariamente incompatíveis. Muitos discordam, achando que a social democracia já desapareceu, engolida pela direita. Esta é uma afirmação para o nosso debate.
COMENTÁRIO DAS LÂMINAS Agora, gostaria de passar para a segunda parte da palestra, mostrando alguns dados das minhas pesquisas atuais e tentando situar o PSDB e o PMDB dentro de alguns desses debates. As perguntas que quero explorar são: -Quais são as semelhanças e diferenças entre os dois partidos? -Qual é a auto-imagem dos partidos referente ao espectro esquerda-centro-direita? -Quais suas atitudes em relação às várias propostas de neoliberalismo e ao papel do Estado? Vamos constatar que o PSDB, em particular, tem seguido o exemplo dos partidos social-democratas europeus, ao abandonar várias bandeiras tradicionais da esquerda... (Aqui o palestrante passou a comentar as lâminas reproduzidas nas páginas seguintes.)
CAPACIDADE DEMOCRÁTICA (PESQUISA 1997, POR PARTIDO) AVALIAÇÃO POR NÃO-MEMBROS, NOTA MÉDIA DOS PARTIDOS PMDB PFL PPB PSDB PDT PTB PL PT PPS PC do B PSB
7,02 6,03 5,75 6,89 6,20 5,61 5,60 5,72 5,97 5,12 5,92 Lâmina 1
CLASSIFICAÇÃO IDEOLÓGICA (l=esquerda, 5=centro, 10=direita)
PMDB PFL PPB PSDB PDT PTB PL PT PPS PC do B PSB
AUTOCLASS. 4,25 6,89 7,39 4,77 2,60 6,75 7,00 2,21 3,00 1,00 2,00
VISTO POR OUTROS 5,71 8,50 8,48 6,14 3,26 7,21 7,45 1,85 2,99 1,58 2,75 Lâmina 2
AUTOCLASSIFICASSÃO IDEOLÓGICA (l=esquerda, 5=centro, 10=direita)
PMDB PSDB PT CONGRESSO
48ª 1990 4,62 3,52 1,60 4,42
49ª 1993 4,71 3,81 2,57 4,49
50ª 1997 4,25 4,77 2,21 4,63 Lâmina 3
OPÇÃO 1 "Uma economia predominantemente de mercado, com a menor interferência possível do Estado" ("Liberais de mercado") Lâmina 4
OPÇÃO 2 "Um sistema econômico em que houvesse uma distribuição eqüitativa entre uma parte de responsabilidade das empresas estatais e outra das empresas privadas" ("Social- democratas") Lâmina 5 OPÇÃO 3 "Uma economia em que as empresas estatais e o Estado constituíssem o setor principal mas sem que a participação da economia de mercado fosse eliminada" ("Socialistas moderados") Lâmina 6 OPÇÃO 4 "Uma economia em que o capital privado fosse totalmente afastado dos principais setores econômicos, passando as grandes empresas para o controle estatal" ("Socialistas de Estado") Lâmina 7
PREFERÊNCIA POR TIPO DE SISTEMA ECONÔMICO. 1987 (RODRIGUES) E 1997 (POWER) 48ª 50ª 1987 1997 “LIBERAIS DE MERCADO” 40,0 56,8 “SOCIAL-DEMOCRATAS” 39,0 34,5 “SOCIALISTAS MODERADOS” 15,0 8,1 “SOCIALISTAS DE ESTADO” 6,0 0,7 Lâmina 8
PREFERÊNCIA POR SISTEMA ECONÔMICO (PESQUISA 1997, POR PARTIDO) % A FAVOR DE ECONOMIA "PREDOMINANTEMENTE DE MERCADO, COM A MENOR PARTICIPAÇÃO POSSÍVEI, DO ESTADO" PMDB PFL PPB PSDB PDT PTB/PL PT/PPS/PSB/PC do B CONGRESSO
43,8 69,4 94,7 61,3 60,0 75,0 0,0 56,8 Lâmina 9
PREFERÊNCIA POR TIPO DE SISTEMA ECONÔMICO. PMDB, 1987 E 1997 PMDB PMDB 1987 1997 “LIBERAIS DE MERCADO” 29,0 43,8 “SOCIAL-DEMOCRATAS” 49,0 40,6 “SOCIALISTAS MODERADOS” 19,0 12,5 “SOCIALISTAS DE ESTADO” 3,0 3,1 Lâmina 10
PREFERÊNCIA POR TIPO DE SISTEMA ECONÔMICO, PROTO-PSDB DE 1987 E PSDB DE 1997 PSDB PSDB 1987 1997 “LIBERAIS DE MERCADO” 30,6 61,3 “SOCIAL-DEMOCRATAS” 41,7 32,3 “SOCIALISTAS MODERADOS” 25,0 6,5 “SOCIALISTAS DE ESTADO” 2,8 0,0 Lâmina 11 AVALIAÇÃO DA DESCENTRALIZAÇÃO FISCAL E DA DESESTATIZAÇÃO DA ECONOMIA NOS ÚLTIMOS ANOS (PESQUISA 1997, POR PARTIDO) PMDB PFL PPB PSDB PDT PTB/PL PT/PPS/PC do B/PSB CONGRESSO
FISCAL DESESTAT. 5,94 5,79 5,88 6,80 5,26 6,42 6,15 7,33 6,40 5,60 5,50 6,25 6,47 3,06 5,94 6,09 Lâmina 12
AVALIAÇÃO DOS 4 GOVERNOS PÓS-1985(PESQUISA 1997) PMDB PFL PPB PSDB PDT PTB/PL PT/PPS/PC do B/PSB CONGRESSO
SARNEY COLLOR 5,35 3,39 5,34 4,44 4,42 4,63 4,86 3,39 3,80 2,80 4,75 4,75 4,30 1,75 4,90 3,63
ITAMAR 6,14 6,00 5,37 6,39 5,40 6,63 6,10 6,14
FHC 6,80 7,60 6,21 8,39 6,25 6,63 4,25 6,85 Lâmina 13
O primeiro quadro (lâmina 1) foi elaborado com base na pergunta da primeira página da minha pesquisa: como o senhor julgaria a capacidade dos seguintes partidos políticos para atuar de acordo com as regras do jogo democrático e contribuir para a estabilidade democrática (quer dizer, a capacidade democrática atribuída aos partidos)? Essas notas vão de 1 a 10 e representam a avaliação de não-membros dos partidos. Retirei as respostas de integrantes do partido para não distorcer os resultados. Verificamos que o PMDB é o partido brasileiro que tem a melhor imagem democrática. Essas são respostas de parlamentares do Congresso Nacional Brasileiro (Senado e Câmara), totalizando 158 respostas no período de abril a junho de 1997, representando uma amostra de 27% do Congresso. O que estamos analisando são as percepções subjetivas das elites brasileiras. Esse quadro mostra que a aliança que está sendo feita aqui no RS, entre o PMDB e o PSDB, é uma boa aliança, um bom casamento, porque os dois partidos, além de encontrarem-se no centro, também têm a melhor imagem democrática entre as outras elites brasileiras. E, segundo a teoria democrática, a melhor aliança para a estabilidade democrática é manter essa aqui intacta. Agora, analisaremos a classificação ideológica (lâminas 2 e 3), numa escala em que 1 é esquerda, 5 é centro e 10 é direita. São 2 colunas: a primeira mostra a autoclassificação do próprio partido (respondidas por membros do partido) e a segunda é a vista pelos outros. Percebe-se que há uma relação quase perfeita entre as duas colunas. Todo partido brasileiro coloca-se mais à esquerda do que os outros o colocam. É um fenômeno do Brasil, que o professor Leôncio Martins Rodrigues, da USP, chama de direita envergonhada. Todos deslocam-se à esquerda, com uma única exceção, o PT, que coloca-se um pouco mais à direita do que os outros o colocam. Nesta pesquisa foram enfocados os grandes partidos, porque quando se faz uma amostragem com 150 pessoas, e um partido tem 3 deputados, não se pode generalizar. O PSDB coloca-se entre 4,7 e 4,8, que é mais ou menos o centro ideológico do Congresso, como vou mostrar, mas os outros partidos colocam-no um pouco mais à direita do centro. Quanto ao PMDB, observa-se o mesmo fenômeno. Estes (lâmina 2) são dados de 1997, comparados com as duas legislaturas anteriores (90 e 93), a média do Congresso na Constituinte. O PMDB oscilou um pouco, mas agora encontra-se um pouco mais à esquerda do que anteriormente. Mas o resultado mais marcante é a marcha do PSDB em direção à direita. Os fundadores do PSDB foram os constituintes que se autoclassificaram com 3,5, exatamente na centro-esquerda do Congresso. Nas últimas três legislaturas, o PSDB tem-se deslocado da centro-esquerda para o centro do espectro brasileiro. Nas lâminas de 4 a 7, a pergunta que está no verso da folha é a seguinte: "Na sua opinião, que tipo de sistema econômico seria mais adequado para o Brasil? Marque apenas uma opção". Essa é uma pergunta feita pelo professor Leôncio Martins Rodrigues na Constituinte, em 1987, em um excelente livro, chamado Quem é quem na Constituinte. Opção 1: uma economia predominantemente de mercado, com a menor interferência possível do Estado (o professor Leôncio chamava de "liberais de mercado"). Opção 2: um sistema econômico em que houvesse uma distribuição eqüitativa entre uma parte da responsabilidade das empresas estatais e outra das empresas privadas - que ele chamou de "social-democratas". Opção 3: uma economia em que as empresas estatais e o Estado constituíssem o setor principal, mas sem que a participação da economia de mercado fosse eliminada - o que ele chamou de "socialistas moderados".
Opção 4: uma economia em que o capital privado fosse totalmente afastado dos principais setores econômicos, passando as grandes empresas para o controle estatal o que ele chamou de "socialistas extremados" e eu chamei de "socialistas de Estado". Vamos analisar a evolução desse quadro (lâmina 8): as respostas do professor Leôncio, em 1987, no primeiro ano da Constituinte, comparadas com a minha pesquisa, em 1997, mostram que na classe política brasileira (se tomarmos o Congresso Nacional como uma mostra representativa da classe política brasileira, e efetivamente o é, porque a proporcionalidade é muito alta no Brasil), os liberais de mercado passaram de 40% na Constituinte para mais ou menos 57% (maioria absoluta), em 1997. Não sei se isso qualifica-se como uma revolução ideológica no Brasil, mas é algo impressionante. Os chamados social-democratas, preferindo a participação eqüitativa entre Estado e mercado, ficaram mais ou menos no mesmo patamar; diminuiu um pouco, mas os dois tipos de socialistas quase desapareceram, agora têm menos de 9%. O liberalismo econômico avançou no Brasil nos últimos 10 anos, como já supúnhamos, embora seja bom constatarmos isto com dados estatísticos. Quem são os liberais, agora, no Brasil? Na lâmina sobre "Preferência por Sistema Econômico" (lâmina 9), a coluna representa a porcentagem de cada partido que se identifica como liberal econômico. O PMDB tem 43,8%, o PFL, 69%; o PPB, quase unânime, 94,7%; o PSDB, 61,3%. E o Congresso, como um todo, 56,8%. Quando o partido é muito pequeno, é difícil fazer essa avaliação, ou chegar a uma conclusão. Preferência por tipo de sistema econômico (lâmina 10): no PMDB, em 1987 e 1997, os liberais de mercado foram de 29% a 44%; os social-democratas diminuíram, e os socialistas de Estado ficaram na mesma. O PMDB continua tendo alguns socialistas de Estado dentro dos seus quadros, mas os liberais de mercado aumentaram seu espaço relativo. O PSDB não existia em 1987, então fiz a pesquisa com os constituintes que assinaram a ficha de fundação em 1988, voltei no tempo para 1987 e colhi as respostas: obtive assim um "proto-PSDB" de 1987 (lâmina 11). Os proto-tucanos tinham pouca simpatia pela economia pura de mercado, em 1987 eram 30,6%. Essa taxa dobrou nos últimos dois anos. Os social-democratas, ou seja, os que defendem a participação eqüitativa da economia do Estado e da economia privada, diminuíram de 41,7% para 32,3%, e a ala socialista do partido quase sumiu. Realmente, o resultado mais marcante da minha pesquisa é a transformação da auto-imagem do PSDB. A pesquisa foi feita com os deputados de 1987 e os atuais, de 1997, ou seja, os eleitos em 1986 e 1994. Fica evidente que não são as mesmas pessoas. Os pesquisados em 1987 estavam, principalmente, no PMDB; não sabiam, ainda, que seriam tucanos. Agora, as duas próximas perguntas (lâmina 12) tratam da avaliação de duas inovações econômicas brasileiras: a descentralização fiscal da Constituição de 1988 e a desestatização da economia nos últimos anos. Uma pergunta foi: como o senhor avalia a desestatização da economia nos últimos anos? Perguntei "nos últimos anos" para não identificar a pergunta com o Governo Fernando Henrique, mas sim identificá-la com o processo dos anos 90. Todos os partidos têm a mesma avaliação da descentralização fiscal, quase todos dão a nota 6, há um grande consenso, mas esse não é muito positivo. Quanto à descentralização da economia nos últimos anos, parece que eles interpretam a pergunta como uma avaliação do Governo Fernando Henrique, porque os tucanos têm a mais positiva avaliação entre todos os partidos (7,33; acima do PPB, que anteriormente era o partido mais liberal).
A última avaliação (lâmina 13) é dos 4 governos pós85, pós-transição democrática. Qual seria a nota (de 1 a 10) que seria dada aos quatro presidentes da Nova República? A primeira avaliação é a do Congresso: Sarney Collor Itamar FHC
4,90 3,63 6,14 6,85
O Presidente Fernando Henrique Cardoso é o que tem a melhor avaliação dos atuais deputados e senadores. O PMDB também dá a melhor nota para Fernando Henrique, e também o PSDB, como era de se esperar. Mas o interessante, para mim, é que os partidos de esquerda, PT - PPS PCdo13 - PSB, deram uma nota mais positiva para Itamar (6,10) do que para Fernando Henrique (4,25). É uma grande diferença, mesmo porque as políticas implementadas pelos dois governos têm algumas semelhanças. Por que essa reação contra Fernando Henrique? Primeiro, porque Itamar fez um gabinete muito inclusivo: Roberto Freire como líder no Congresso, Erundina no Ministério, etc. E também porque Itamar não se aliou a um partido que é inimigo declarado da esquerda. Fernando Henrique fez isso; então, ele tem uma avaliação bem mais negativa da esquerda, mesmo tendo continuado muitas políticas iniciadas por Itamar. Fernando Henrique tem notas bastante parecidas em todos os partidos, menos à esquerda. Pelo visto, tem um espaço para construir uma aliança, excluindo os partidos de esquerda. Vocês foram os primeiros a ver os resultados deste trabalho.
DEBATE 1° Debatedor:
JOÃO CARLOS BRUM TORRES* Primeiramente, registro que gostei muito da exposição. Ela é profundamente instigante e trata de questões que nos desafiam no nosso dia-a-dia. Falarei, não como ex-colega, mas como quem está com responsabilidades de governo e enfrentando, cotidianamente, essas questões. Acredito que a questão central, colocada na exposição, de que as políticas de reforma, especialmente as políticas de reforma do Estado, não estão encontrando, no Brasil, assim como não encontraram em outros países, exceto na Inglaterra, um discurso justificador que as vincule aos valores históricos da tradição de esquerda, parece-me muitíssimo relevante. Por que isto não acontece? Por que tem acontecido tão dificilmente isto? A explicação histórico-sociológica, que está implícita na análise feita do que ocorre na Inglaterra, parece-me muito relevante. A política lá exige argumentos, e impõe que seja feita mais arrazoadamente, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde, segundo o professor Power, as pessoas são menos reflexivas no plano político. Eu me atreveria a dizer que, sob este aspecto, o Brasil é misto: às vezes faz-se política com muito argumento, muito debate, outras vezes não, dependendo do contexto. Aqui, no Rio Grande do Sul, diria que a nossa política é bastante ideológica e, nesse sentido, é uma política que está profundamente baseada em um confronto de idéias. E, deste ponto de vista, diria que nós, que estamos a tomar decisões sobre reformas do Estado, reformas que estão dentro do figurino liberal, e que nós, que nos filiamos a uma tradição que, em princípio, estava contra esse tipo de programa de governo, estaríamos habilitados a tentar construir esse discurso e fazer essa ponte. Faz parte da nossa cultura política aduzir razões, produzir argumentos, dar explicações; e nós temos feito isso muito pouco. No nosso caso, por conseguinte, acredito que a falta de explicações deve-se menos a uma tradição de discussão, que nos faltaria, e mais à circunstância de que estamos instados a tomar decisões constantemente, e a enfrentar essas questões num plano muito pragmático. A nossa próxima campanha eleitoral talvez nos obrigue a construir uma justificativa e uma exposição das razões de opção por um determinado curso de política que, na prática de nossa administração, ainda não fizemos. O nosso dia-a-dia é de enfrentar desafios e enfrentá-los de uma maneira muito pragmática. Eu diria, também, que o próprio programa de reforma não foi assumido por nós de uma maneira muito ideologizada, muito articulada e programaticamente estabelecida e defendida. O nosso discurso, o discurso do Governador Antônio Britto, durante a eleição, foi um discurso que apontava na direção das parcerias, mas ele era vago com relação a como interpretaríamos essa proposta de parceria e de chamamento da iniciativa privada para concorrer conosco nas atividades de governo. Quando o governo estrutura-se, ele passa a tomar decisões que, no dia-a-dia, são feitas com pouca explicação sobre as razões de fundo, muito embora incorporem-se à justificativa *
Doutor em Ciências Humanas pela USP; professor titular do Departamento de Filosofia da UFRGS; Licenciado em Filosofia; Bacharel em Ciências Jurídicas; Secretário de Estado da Coordenação e Planejamento - RS; Secretário Executivo do Conselho Estadual de Política Social; Diretor do Badesul.
tradicional de que é preciso dar ao setor público maior eficácia e devolver ao setor empresarial e à iniciativa privada as responsabilidades que, na verdade, deveriam ter sido suas. E, nesse sentido, incorpora-se o discurso liberal. Por outro lado, subjacentemente a isso, no entanto, há uma profunda crise fiscal, uma grande crise dos governos em geral, de sustentarem os padrões tradicionais de prestação de serviço público, de remuneração dos servidores, com os recursos fiscais que têm à mão. E isso, talvez, seja a razão principal para um conjunto de decisões que estão sendo tomadas. Não preciso ir longe, posso ficar na questão do dia. Hoje, foi encaminhado à Assembléia Legislativa um conjunto de projetos que propõem a venda integral da nossa companhia de telefones. já havia sido vendida uma parte dela e, agora, será vendido o restante. Pelo menos, essa é a proposta do governo, essa é a mensagem que foi enviada à Assembléia Legislativa e esse foi o pedido de autorização para ali encaminhado. Que razões tem o governo para encaminhar o projeto? De um lado, sem nenhuma dúvida, a pressão de servidores, professores, policiais militares e policiais civis por maiores salários, e uma contingência, da nossa parte, uma incapacidade de atender a esses reclamos salariais sem aumentar o déficit fiscal, que é recorrente, que foi grande em 95 e em 96, e tende a ser ainda maior em 97. Neste sentido, a decisão de privatização é forçada, por razões de ordem financeira. De outra parte, porém, ocorre que há um processo de reestruturação de todo o setor de telecomunicações do Brasil e, provavelmente, a Telebrás será dividida em 3 ou 4 grandes empresas nacionais, e o risco de ficarmos com uma empresa isolada, dissociada deste processo de reestruturação do setor de telecomunicações pode colocarmos em uma situação de desvalorização do ativo principal que temos. É por isso que o governo quer ter um grau de liberdade para negociar com a venda desta empresa numa condição adequada ao processo de modificação de todo um setor de telecomunicações do Brasil. Este processo de modificação, por sua vez, é, obviamente, um desdobramento e o rebatimento, em nosso plano interno, de uma tendência mundial de redefinição dos papéis dos setores privado e público, na prestação de grandes serviços de infra-estrutura que compõem esse universo todo, da chamada globalização, e que está pautada pela necessidade de incrementar muito intensivamente a produtividade dos serviços de infra-estrutura que, por sua vez, são decisivos para assegurar padrões de competitividade em um mercado cada vez mais integrado e que pauta-se por padrões darwinianos, que só asseguram sobrevivência àqueles que são mais eficientes. Então, o que está acontecendo no Brasil é um esforço para colocar-se em condições de competição nas novas situações definidas pela globalização. Isso vai rebatendo-se em cascata e nós chegamos aqui, confrontados com uma decisão que, em última análise, aparece como simples. E nós não temos muito tempo para construirmos a racionalidade destas decisões e de produzir e aduzir suas justificações. Por outro lado, há uma curiosidade, e aqui farei outro registro da questão do dia: nós estamos acompanhando o nosso pedido de autorização legislativa para vender a nossa companhia de telefones de um projeto de aumento de impostos. Se o governo tomou esta iniciativa de encaminhar ao Legislativo um pedido de autorização para aumento de impostos, está fazendo isso não por fidelidade propriamente à idéia de que temos que repartir estes encargos todos e fazer com que os empresários também paguem um pouco dessa conta, mas sim porque a crise fiscal em que nos encontramos exige que haja essa contribuição. Por outro lado, é verdade que nos facilita um pouco a vida, na cena política, dizer que não estamos desonerando ninguém, que o enfrentamento do desafio de
melhorar as remunerações está tendo uma resposta que distribui ônus e encargos por todo o espectro social. Essas observações sobre questões do dia não têm por objeto desviar o foco do tema desse debate, que pode ser muito rico e interessante, para uma análise da conjuntura da política estadual. Meu propósito era ilustrar como estas questões vão se colocando para quem está nesse dia-a-dia. Também chama minha atenção que este movimento na direção de posições privatizantes, tradicionalmente tidas como de direita, seja forçado por determinadas circunstâncias que, essencialmente, dizem respeito à profunda crise fiscal do setor público. E é essa crise fiscal que torna o processo de reformas quase que fatal. É preciso entender isso. A questão é saber se neste conjunto de mudanças, em que se vão redefinindo os papéis do setor público, atribuindo responsabilidades à iniciativa privada e redefinindo a posição do governo, é possível manter o vínculo com uma tradição de esquerda. Para ficar na área das privatizações, um dos eixos de resgate, de restabelecimento de uma continuidade com as tradições da esquerda, parece-me estar na percepção de que estes serviços, grandes serviços de infra-estrutura que são passados à iniciativa privada, mesmo tendo a sua gestão e provisão asseguradas por investidores privados, não deixam de continuar a ser serviços públicos. É preciso que entendamos que a oferta da energia elétrica, dos serviços de telecomunicações, de serviços de saneamento básico, prestados por agentes privados, continua a ser ainda serviços públicos. Ora, a natureza essencialmente pública desses serviços nos leva ao seguinte ponto: é preciso ter agências de regulação da prestação desses serviços, agências que assegurem que a prestação de tais serviços não deixará de ser pública, ou seja, isonomicamente distribuída, feita com preços que sejam compatíveis com o custo desses serviços, tanto quanto possível, em situação de competição; e com uma avaliação tanto quanto possível transparente do que está a ocorrer na prestação de tais serviços. Atribuir importância aos instrumentos de regulação parece-me ser um mecanismo muito concreto de restabelecer um valor que é condizente com as idéias das esquerdas, um mecanismo adaptado a essa nova situação. Por outro lado, parece-me, também, evidente que a questão do serviço público propriamente dito, e de remuneração dos servidores, coloca-nos um problema de eqüidade, porque não há mais como deixar de reconhecer que, no Brasil, especialmente, a estruturação do serviço público é consagradora de grandes injustiças, de diferenças de remuneração enormes dentro do setor público, no qual não deveria haver disparidades tão grandes. Um coronel da nossa Brigada Militar pode ganhar R$ 9.000,00 por mês; um soldado ganha, em média, R$ 350,00. Será que esta é uma boa relação? Será que esta separação tão grande entre quem está em cima e quem está embaixo é justificada? Esta é uma questão que devolve-nos, também, para uma questão de justiça dentro do próprio setor público, que é a necessidade de ter um perfil de remuneração que seja mais eqüitativo. Isso também é um valor da cultura da esquerda, que precisa ser resgatado. Por outro lado, também não há argumento contra a necessidade de aumentar-se a produtividade global da nossa sociedade. Se esse esforço geral de aumento da produtividade não for feito, inclusive dentro do setor público, estaremos condenados a administrarmos uma sociedade cada vez mais isolada e separada dos grandes fluxos de modernização e de avanço que o mundo está vivendo. O que quero dizer é que, se não acompanharmos o processo de mudança social que está havendo no mundo, o nosso destino será o da marginalidade, da regressão e, por conseguinte, o destino descompassado com o que está acontecendo na história mundial e brasileira. Nesse sentido, o processo de mudanças das percepções da cultura e dos
posicionamentos ideológicos que se nota no conjunto de transparências apresentado pelo Sr. Power, na verdade, reflete uma reestruturação de todo o campo econômico-social em nível mundial. Evidentemente, essa reestruturação tem reflexos sociais graves, que colocam desafios, problemas, e que exigem uma atitude muito crítica. O maior deles, universalmente conhecido, é o grande aumento do desemprego que se transformou no grande flagelo social desta nova situação. O que eqüivale a dizer que querer resolver a questão do emprego ignorando o processo de modernização tecnológica, organizacional e de aumento global de produtividade, que elimina postos de trabalho, é condenar-se a viver fora da realidade que se impõe no mundo todo, no Brasil e no Rio Grande do Sul. Com essas observações, queria apresentar alguns dos fatores objetivos que explicam e que estão na raiz dessa mudança, nas atitudes, nos comportamentos, e que têm feito com que as pautas de governo também tenham se alterado em profundidade. Nada disso resolve o problema desta crise de identidade. E deve-se entender que a identidade de fenômenos institucionais, de processos culturais, não é definida no código genético de ninguém. As identidades são construídas, e o são na medida em que uma tradição é retomada, refeita, que reavaliações são feitas, em que a memória dos agentes procura estabelecer esses fios de continuidade, a fim de construir e reconstruir permanentemente esta identidade. A questão da nossa identidade não é de achar, levantar esta folha e descobrir aí a nossa identidade, é uma questão de construir. É por isso que esta conferência foi tão boa ao dizer que precisamos, na verdade estamos intimados e desafiados a isso, reconstruir uma identidade de esquerda numa situação que é inteiramente nova, que nos coloca parâmetros de decisão que são novos e, muitas vezes, confrontam com aqueles nos quais a nossa antiga identidade foi estabelecida. Este processo de ser fiel a si mesmo num contexto de mudanças é, talvez, o maior dos desafios, que é colocado para cada um de nós como pessoa e, também, para projetos coletivos, como são os dos partidos. 2° Debatedor:
JOÃO GILBERTO LUCAS COELHO* Acredito que a palestra do professor Timothy é extraordinária, nos dois campos que abordou: a grande questão da social democracia no mundo e no Brasil hoje, a mudança nos parâmetros de implementação do ideário, dos valores da social democracia; e naquele outro campo, que é o da análise da pesquisa, traduzindo o pensamento, a opinião, a formação do Congresso Nacional e a evolução que nele está acontecendo. Sobre esta pesquisa, vou me permitir fazer uma observação. Se tivesse de responder ao questionário - se deputado fosse passaria muito trabalho com aquela questão sobre modelo econômico, uma vez que ali não tem nada que caracterize o que está sendo a social democracia hoje. As alternativas são ou de um modelo liberal, ou de um modelo social-democrático antigo, que está em transformação em todo o mundo. Por isto, acredito que aqueles parâmetros têm uma certa relatividade. Para acompanhar a evolução de um pensamento, foi necessário buscar a pesquisa do professor Leôncio, na
*
Presidente Estadual do PSDB; Fundador Nacional do PSDB; ex-Vice-Governador do Estado do RS - 1991-1994; ex-Diretor do Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte - UnB; ex-Professor visitante do Departamento de Ciência Política da UnB; ex-Deputado Federal e Vereador pelo MDB e PMDB; ex-Presidente da Fundação Pedroso Horta; Bacharel em Direito.
época da Constituinte, e manter as mesmas perguntas. Mas creio que, para muitas pessoas desta sala, está difícil alojar-se em um daqueles itens, naquelas definições tão peremptórias. O comentário principal que desejo fazer é relativo ao cerne da palestra do professor Timothy - e ele foi muito feliz em abordar, em abrir perspectivas -, essa grave questão do que seria uma crise de identidade do pensamento social-democrático lato sensu no mundo, hoje. Gostaria de fazer algumas observações. Primeiro, estamos em um momento de turbulenta transformação. Diria que estamos iniciando uma nova fase da revolução industríal e tecnológica, que nós ainda não sabemos como se define - isso é natural que aconteça - e há uma enorme confusão entre posição ideológica e resultados deste momento da revolução industrial, A maior parte do que é tido como atos neoliberais corresponde a um conjunto de providências necessárias pelo estágio da revolução industrial, pelo fenômeno da mundialização. Tanto que o governo do Partido Comunista na República Popular da China tem que adotar. Governos socialistas, social-democratas, liberais ou conservadores estão adotando. Aí não e uma questão ideológica, mas, sim, uma transformação mundial pelos efeitos de algo que está nascendo, que se está afirmando, e que temos de administrar. Existirão algumas variações no gerenciamento, mas não serão intrinsecamente diversas umas das outras. Como não conseguimos compreender o momento que estamos vivendo na História, sempre é bom olhar o passado para recolher lições. Quando surgiu a máquina a vapor, esta ocasionou mudanças, começaram a surgir as indústrias como as conhecemos, e isto trouxe progresso, modificações, horizontes novos - pela primeira vez, a tração animal estava sendo substituída por uma outra força. Mas também trouxe problemas sociais e forte urbanização, para o que a humanidade não estava preparada. Poderia algum governo, naquele momento, impedir a máquina a vapor? Qual teria sido o custo histórico para a sociedade, naquele país, se um governo tivesse tomado essa posição? Isso parece um pouco distante. Pensemos, então, nas nossas cidades um pouco mais tarde. Hoje, temos a luz elétrica. No dia em que surgiu, qual foi o impacto? Certamente, pelo menos e de imediato, desempregou os lanterneiros que, durante a noite, iam acender os lampiões a óleo. Era possível um Prefeito barrar isto? O que poderia fazer, opor-se à energia elétrica? Qual teria sido o custo dessa Oposição para a sociedade em geral? Ou tentar reciclar os lanterneiros? É claro que o poeta, que cada um tem dentro de si, continua a escrever com saudades do lanterneiro, mas este não existe mais. Vejamos, o mundo está numa anunciada nova fase da revolução industrial. Anunciada porque, pela primeira vez, os eventos culturais vieram antes dos econômicos. A mundialização deu-se antes pelas comunicações, pela Internet, por essa fantástica formação de uma aldeia global, e o impacto econômico disso tudo teria que acontecer. Então, hoje, não dá para se traçarem limites ideológicos entre pessoas que querem fechar fronteiras de países e outras que não querem fechar. Na verdade, a discussão dá-se sobre qual é o ritmo, quais são os caminhos, quais são os processos de como integrar-se. De repente, vemos um país governado por um partido comunista, como a República Popular da China, e talvez achemos que a integração dela à economia mundial seja um tanto mais veemente, ou até com custos sociais um tanto maiores, do que a nossa integração. Mas seria possível não fazer isso? Não. Podemos discutir métodos e, certamente em alguns casos, governos estarão errados, sejam eles quais forem, inclusive aqueles nos quais eu possa participar ou que possa apoiar. É preciso retirar a magia com que é apresentada à opinião pública a possibilidade de não se
integrar à nova ordem ou desconhecer esta fase da revolução industrial. Nenhum partido em governo do mundo - a não ser o de Cuba, temporariamente, por um bloqueio injusto a que está submetido (retirem o bloqueio para ver o que acontece com Cuba) - pode deixar de integrar-se ao mundo que está em transformações, e muitos reflexos internos do que está acontecendo com o mundo transcendem os poderes de governo ou do próprio Estado. O segundo aspecto, bem abordado por Timothy, é a questão da reforma do Estado. Neste ponto, queria levantar o problema da social democracia hoje: os valores permanecem os mesmos e neles está a nossa identidade; agora, ao discutir os caminhos, há divergência geral seja na Segunda Internacional, seja num fórum na França, na Alemanha ou no Brasil. Por que isto? Esses caminhos são as políticas públicas, porque a social democracia (e hoje não há diferença substancial entre social democracia e socialismo democrático) usou, exatamente, o instrumento fiscal para chegar a mais igualdade. A carga tributária foi o instrumento para chegar a uma sociedade de alto padrão de vida na Suécia, nos países nórdicos em geral, na Alemanha e tantos outros. O instrumento fiscal não é mais hábil hoje, porque, na mundialização, temos perdas enormes de competitividade e na concorrência. Nenhum país de Primeiro Mundo chegou ao seu estágio sem carga tributária acima dos 30%. Nos países nórdicos é de 50%; na França é de 40%. Nós, no Brasil, estamos arrasados porque a carga tributária evoluiu de 23,24% do PIB, que era a média histórica brasileira, para próximo dos 30%. Técnicamente, pelo caminho tradicional da social democracia, um governo de eixo social democrata indiscutível, para promover o final da miséria no Brasil, teria que elevar essa carga tributária a 35%, 40%, ou ainda mais, se levarmos em consideração a dimensão do problema aqui, pelo tamanho da nossa população, que não é da dimensão da Suécia, da Dinamarca, da Alemanha. Isso é possível hoje? Não. E esse é um dos pontos cruciais em que se dá a questão: os valores são permanentes; mas não encontramos claramente, de forma consensual, quais são os novos mecanismos de implementação dos ideais de mais igualdade, de justiça social, de igualdade de oportunidades, enfim, de uma sociedade mais igualitária, mais justa. O grande ideal do pleno emprego, que é bandeira histórica da social democracia, tem que ser a bandeira, hoje, da plena renda, porque o mundo está demonstrando claramente que o emprego não é o único caminho para se ter renda e que o emprego não é o caminho suficiente para todos terem renda. Temos de encontrar as alternativas para o fato de que não mais, nas sociedades industrializadas ou nas sociedades em desenvolvimento, o em prego será o caminho bastante para que todos tenham acesso à renda. Estamos encontrando outros caminhos e a bandeira do pleno emprego virou bandeira da plena renda; isto é, ninguém sem renda suficiente, não mais ninguém sem emprego, porque fatores, que são independentes da ideologia ou da vontade dos governos, demonstram, aqui e em qualquer parte do mundo, que o emprego não é mais o caminho suficiente para que todos tenham acesso à renda. Nesse sentido, creio que o grande debate está em encontrar os caminhos eficazes para que nós consigamos afirmar os nossos valores, e estamos tateando, na Europa, aqui, ou em qualquer parte do mundo. Nossos valores permanecem imutáveis, mas os caminhos tornaram-se obstruídos, difíceis, a receita que ontem era fácil não é mais aplicável hoje, ou dificilmente será aplicada. Segundo, esse caminho, via tributação, foi um caminho exclusivamente estatal. Isto é outra coisa que está superada. Se me perguntassem qual é o maior fenômeno sociológico da segunda metade do século XX, não teria nenhuma dúvida em
responder que o fenômeno mais revolucionário da segunda metade deste século foram as organizações não-governamentais. A sociedade civil organizou-se para ter outras formas de representação que não somente a representação pelo poder estatal, e para ter outras formas de solução, que não a solução apenas via Estado, embasada no aspecto fiscal. Esta produziu um Estado muito pesado e que - aqui, na Europa, na Ásia - tende a uma esclerose, que em alguns países já é mais acentuada e noutros nem tanto ainda, mas tende a ser. Então, esse caminho de solução tradicional ficou contestado, e buscam-se outras alternativas, via formas autônomas de organização da sociedade, outros estamentos, que não os puramente estatais - coisa para a qual alguns países acordaram antes do que nós. Até hoje, no Brasil, não conseguimos reconhecer iniciativas como públicas se não forem de propriedade estatal. Esse é um grande erro, o direito brasileiro mantém-se conservador diante disso. A maior parte dos países que se reconstitucionalizaram depois da Segunda Grande Guerra foi assimilando essa vertente do público não estatal. E ela é uma vertente consolidada em algumas nações, mas não entre nós, ainda. Todavia, será um dos caminhos alternativos para as soluções dos problemas sociais, para a gerência dos mecanismos distributivos ou de igualação, que não vão ser geridos exclusivamente pela estrutura estatal, porque esta mostrou que quando engorda excessivamente, apressa a sua esclerose. E isso acontece em países de alto padrão de desenvolvimento e não apenas em países em desenvolvimento, como é o nosso caso. Por isso, gostaria de situar aí a nossa angústia e a necessidade que temos de buscar novos mecanismos de políticas públicas com o nosso ideário básico, com o nosso compromisso, com os nossos valores fundamentais. Mas acresceria que precisamos travar um debate na opinião pública - e me esforço muito por isso - para separar o que é contágio da doutrina neoliberal e o que é imposição de um momento da revolução industrial e tecnológica da qual ninguém consegue se afastar (nem os comunistas, nem os socialistas, nem os social-democratas, nem os conservadores). Todos nós estamos envolvidos por essas questões. É outro ponto fundamental, no qual nosso discurso não tem sido suficientemente preciso, não tem sido suficientemente pedagógico para haver esse discernimento. Há confusão na opinião pública, causada pelo descompromisso de alguns grupos ideológicos que, quando não estão no governo, fazem apenas o discurso simplista, porque desvinculado de qualquer responsabilidade, de negação ao que acontece no mundo e como se os governos pudessem estar imunes aos fatos mundiais e do tempo que vivemos. Aliás, esse é o problema de muito brasileiro. Como enfrentamos um regime autoritário, durante muito tempo, somos fruto da resistência. Os mais velhos, certamente, têm marcas da resistência. Todavia, temos também um vício, porque nós fizemos uma luta de bem/mal (MDB/Arena, regime militar/democracia, claro/escuro). Reconstruir uma idéia democrática depois disso é muito difícil. Temos uma certa tendência de confundir oposição ao governo (quando não se está no governo) com aquela posição sistemática, porque era um sistema que combatíamos no passado. Quando o regime militar propunha determinadas coisas, votava-se contra sem qualquer compromisso de racionalidade. Votava-se contra porque se estava travando uma verdadeira guerra contra um regime autoritário, e se queria vê-lo derrubado e substituído. Hoje, a questão é bem mais difícil, mas boa parte da esquerda brasileira, também entre nós - PSDB e PMDB -, sofremos de um complexo de ex-combatente, muito bem definido por um amigo. Quer dizer, voltamos da guerra, estamos no convívio social e, de repente, entramos em pânico e pensamos que estamos na trincheira,
passando a trabalhar com a idéia da guerra, do fuzil, do tiro. O complexo de excombatente é uma marca pesada que carregamos, porque estivemos na trincheira. A toda hora, agimos com se na trincheira estivéssemos, mas não estamos mais lá. Agora, estamos construindo um edifício, o que é algo bem diferente. Infelizmente, isso ataca com muita força. Conhecemos belas pessoas, em nosso meio e noutros partidos, que derivam da resistência democrática no Brasil, nas quais o complexo do ex-combatente é muito forte. Isto atrapalha construir. Atrapalha discutir. Tenho ouvido algumas críticas à situação atual no Brasil que, me parece, merecem uma avaliação mais profunda. Primeiro, essa questão de não diferenciar o que é feito porque há uma ordem mundial em evolução e o que é feito por vontade de governantes. Segundo, não perceber que havia poucos caminhos alternativos para o Brasil. As reformas poderiam ser mais à esquerda ou mais à direita. Mas o caminho que está sendo percorrido foi um caminho que não foi determinado, nem por um partido (chamado PSDB), nem por uma pessoa (chamada Fernando Henrique Cardoso). Foi determinado por uma conjuntura histórica a possibilidade de aliança possível naquele momento. Isso é algo externo. Os quadros definiram-se. Terceiro, a impossibilidade de negociações no Congresso Nacional, onde, pela primeira vez, formaram-se blocos governo/oposição, com uma faixa que ora vota aqui, ora vota lá, dependendo de algumas questões. A esquerda brasileira não quis sentar à mesa para discutir reformas. Faltou, nesse momento, o espírito da esquerda européia. Com isso, ela endireitou as reformas. Se estivéssemos em uma mesa plural, discutindo reforma, estaríamos conseguindo corrigir alguns eventuais desvios e colocar as coisas em determinada direção. Mas, infelizmente, não é isso o que acontece no Brasil. Outra grande questão, rio muito quando vejo brilhantes comentaristas endossarem, é que se dizem do atual Presidente brasileiro duas coisas exatamente contrárias: uma, que ele é um autoritário; e a outra, que ele está nas mãos de um partido, o PFL, que não é o seu. As duas afirmações já se anulam. Ou ele é autoritário, ou está submisso a um outro partido. As duas coisas não podem ser feitas ao mesmo tempo. Na verdade, as pessoas não percebem que o Brasil está vivendo uma extraordinária experiência de engenharia política, muito próxima do parlamentarismo sim, na qual, pela primeira vez, coligação de governo é coligação orgânica. E que, portanto, os membros da coligação têm força política dentro dela e do governo. Como já participei de coligações, não no papel do governante principal, sei bem o quanto a coligação deveria ser respeitada, ou seja, se é coligação, ela tem que ser orgânica. E a coligação federal é orgânica e, portanto, é verdade que qualquer um dos partidos da coligação, dependendo do nível em que os partidos posicionam-se dentro do governo, tem um peso bastante forte. Então, nem o Presidente é autoritário, nem o Presidente está submisso ao PFL, mas o governo é um governo de coalizão, coligação orgânica, na qual o nível de participação, de fidelidade, pesa muito. E aí, com o meu mais absoluto respeito, mas na condição de ex-peemedebista, posso afirmar que o PMDB tem uma dificuldade enorme, talvez até pelo legado da resistência, de sentir-se governo. Não conseguiu realizar essa tarefa de ser governo com o Sarney. E isso eu vivi, porque era deputado federal, à época. Não conseguiu com o Itamar e não está conseguindo com o Fernando Henrique Cardoso. É meio governo, meio oposição, com meio discurso. Vejam, isso é muito complicado, em um momento dramático de mudanças, de reformas, para um projeto de governo. Aí, o outro partido, que não é social-democrata, como o PMDB na sua maioria - ou pelo menos o PMDB gaúcho o é e não é social-democrata como o PSDB é, ou pretende ser, esse outro partido, que é o da
fonte liberal, passa a aumentar o seu cacife, porque é um partido que sabe ser governo, sabe até bancar ônus de governo, porque sabe ser intenso na hora da necessidade. Temos um quadro de caminhos em duas mãos e de recíproca dependência. O partido depende do Presidente e vice-versa, bem como de cada um dos partidos da sua coligação, e o governo é produto disto. Não diria que o Brasil vive um governo exclusivamente social-democrata. Estaria desconhecendo aquilo que o brasileiro precisa aprender, o que é uma coligação. Se é coligação, o governo tem programa de todos os partidos coligados. Portanto, é um governo com matiz social-democrata, com um eixo principal social-democrata, mas é um governo que tem um peso liberal significativo dentro dele. Esse peso liberal seria o sonho do João Gilberto? Não. Mas foi a possibilidade única no evento, no momento histórico. Até pensava que, com o andar da carruagem, alguns grandes partidos desse espectro, que poderiam chamar-se social-democratas lato sensu no Brasil, viriam somar-se ao governo, para torná-lo mais nitidamente social-democrata. Mas o que ocorreu foi muito diferente. E aí o peso liberal, naturalmente, qualificou-se. É um governo de coalizão, cuja locomotiva é social-democrata, mas tem importantes, significativos vagões liberais. Reafirmo que a palestra do professor Timothy desperta-nos para a essência da questão, que hoje não é só brasileira. É a questão presente nos grandes fóruns da esquerda democrática no mundo. Quem leu o jornal hoje viu uma questão bem atual, que deixo como lembrança. No Brasil, tem-se uma versão de que Tony Blair é uma coisa e o socialismo francês no poder é outra. Até já começaram a comemorar o socialismo francês como se fosse anti-reforma. Hoje está bem estampado no jornal que o governo socialista francês está tentando achar isso que o professor Timothy trabalhou, ou seja, mecanismos para compartilhar a integração e a nova moeda de um lado e a questão do desemprego, do custo social, do outro; mas que vai trabalhá-los no mesmo patamar, ou seja, quem esperava que o novo governo francês podia renunciar à velocidade da integração européia, ou renunciar à perspectiva de uma nova moeda, em função de desemprego na França, percebe, até porque o governo francês está deixando claro, que não é assim. São as duas coisas ao mesmo tempo. Como será bom o dia em que conseguirmos conduzir as duas coisas ao mesmo tempo, inclusive aqui no Brasil: a necessidade de reformas, de estabilizar o país e a moeda; e a ampliação dos direitos sociais ou da qualidade de vida das pessoas. Nem sempre isso é possível. Os franceses vão procurar, com insistência, essa solução, o caminho que nós aqui também gostaríamos muito de encontrar: como conduzir a questão da resposta à mundialização e, no nosso caso, da estabilização; e, ao mesmo tempo, a urgência que temos de políticas sociais, de mais emprego, mais renda, mais oportunidade para todos.
TIMOTHY POWER Agradeço muito os comentários dos dois debatedores. Gostaria de, rapidamente, voltar ao caso de Tony Blair. Em primeiro lugar, ressalto que sou americano, não sou inglês. Portanto, não estou aqui para defender o primeiro-ministro inglês. Também sou filho de irlandeses, em casa estava proibido de ver televisão britânica. Mas quero trazer um exemplo de como Tony Blair está cumprindo a sua proposta de ligar valores e política. Acho uma inovação fantástica o que ele fez, e que vem prometendo desde 94, quando assumiu a liderança do seu partido. Os conservadores privatizaram muitas empresas entre 79 e 97, algumas deram-se bem,
outras não. Mas a promessa dos trabalhistas, de Tony Blair, é: se uma empresa que foi construída com o dinheiro do povo lucrar em mãos privadas, vamos baixar o imposto único, para recuperar o lucro da empresa privatizada. Foi uma promessa que ele fez em campanha e que, agora, está sendo cumprida no governo. E não é uma coisa injusta, não é um atentado ao capital, porque temos que lembrar que empresa privatizada tem um preço, mas o preço representa o preço de mercado de hoje, não representa um valor cumulativo da empresa. Quanto custaria construir o metrô de Londres em 97? Com certeza, mil vezes mais do que o preço pelo qual será privatizado. Esse lugar, onde as pessoas abrigaram-se durante a blitz, tem um enorme valor na história britânica, mas será vendido. Se for para mãos privadas e a empresa lucrar, é justo que o governo baixe um tributo especial, uma única vez, para recuperar sua parte. É a importância disso que as pessoas percebem, os eleitores vêem que Tony Blair está do lado deles. Ele pode falar em fazer duas coisas ao mesmo tempo: privatizar e defender o povo. Ele pode dizer: eu privatizo, mas estou do lado de vocês. É uma inovação fantástica. Segundo o painel da Folha de S. Paulo, o Presidente agora está fazendo reuniões para aplicar os recursos das privatizações das "teles", daquela banda 13 inesperada, em ações sociais. Gostaria de ver esse efeito de Tony Blair a espalhar-se, inclusive no meu país. Nos Estados Unidos, não resta nada para ser privatizado, só o trem. Agora, o secretário Brum Torres falou sobre o pragmatismo, o que também foi abordado pelo João Gilberto. Temos um governo de coalizão aqui no Brasil: o PSDB, o PTI3 e o PFL formaram a coalizão formal em 94, e o governo ainda recebe apoio do PMDB, do PL e do PPB. Qualquer um dos partidos citados, que estivesse no poder, teria uma linha mais ou menos parecida com o atual governo. Isso quer dizer que existe um consenso pragmático no eixo desses partidos. O problema é quando falta uma comunicação social à social democracia, o que permite que o pragmatismo seja pintado de algo sinistro, aquilo de neoliberalismo, globalização, consenso de Washington, quando, na verdade, recebe apoio de seis grandes partidos. Ou seja: esse conjunto de políticas públicas pragmáticas recebe apoio de quase todos os partidos, menos a esquerda. Mas a esquerda ainda consegue tachar o pragmatismo de coisa sinistra. Se eu estivesse no governo, não permitiria isso, não permitiria que o pragmatismo fosse pintado desse jeito. Quero voltar ao ponto da importância da construção de lealdades. O PSDB, como partido social-democrata, não tem a mesma penetração no eleitorado que o PMDB, no sentido de lealdade histórica. O PMDB tem porque foi a frente de resistência ao regime militar. Como o governo do PSDB não pode contar com lealdades históricas, precisa sempre colocar o discurso à frente das coisas. Há outro aspecto que não levantei sobre a crise de identidade no PSDB. Alguns de vocês mostraram-se surpreendidos com os dados tão diferentes do PSDB de 87 com os de 97. Na verdade, o partido e seus quadros são bem diferentes hoje, e os peemedebistas sabem disso. Quando um partido vai para o governo, como o PMDB fez em 85, recebe adesões. O partido que entra para o governo, no Brasil, é alvo de adesões desenfreadas, e o PSDB tem sofrido isso também. As pessoas que fazem parte do PSDB, hoje, não têm muito a ver com aquele "proto-PSDB" de 87, que foi um partido paulista. Os originais são dinossauros. Essa é uma outra questão, sobre a crise de identidade no PSDB, que não levantei. Não tem nada a ver com neoliberalismo, mas com o risco de todo partido governista no Brasil transformar-se em partido de sustentação, em partido que se abre muito às adesões, criando debates internos e pontos de oposição.
Quanto aos comentários do João Gilberto, a pergunta do Leôncio Martins Rodrigues, que reproduzi, foi por uma razão científica. Tem-se que usar a mesma pergunta; chama-se replication. Incrível que uma pergunta de 87 não tenha muita relevância em 97. Nesses 10 anos, realmente, o mundo mudou bastante. Mas eu concordo e simpatizo com a queixa do João Gilberto, já que seria muito difícil, também para mim, me enquadrar em uma dessas quatro respostas. A segunda opção de participação eqüitativa entre Estado e mercado foi uma visão clássica da social-democracia, que talvez nem exista hoje. João Gilberto também levantou várias questões interessantes, relativas às transformações mundiais em andamento. Precisa ser dito que o neoliberalismo é uma tendência global, que afeta tanto os países avançados quanto os em desenvolvimento, não é um complô do consenso de Washington, nem um complô do capital americano, de por nova roupagem e invadir o mundo. Os Estados Unidos, a Inglaterra, países desenvolvidos, também sentem as dores do neoliberalismo. A globalização da economia está levando a grandes transformações nos sistemas partidários de vários países, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, onde existe, agora, uma crescente reação à abertura desenfreada da economia. Essa reação está sendo levantada tanto na esquerda quanto na direita, isso será percebido ao enfrentarmos a próxima eleição presidencial. Existe um nacionalismo econômico de direita e um de esquerda; este, baseado nas grandes confederações sindicais, vai apresentar como candidato Richard Gephardt, deputado americano, e na direita republicana também existe esse nacionalismo econômico, que foi encarnado por Patrick Buchanan, que seria o Enéas americano, só que sem barba. A resistência que ocorre é imprevisível. Está surgindo à direita, à esquerda e no centro. Então, essa onda de globalização está causando problemas políticos, transformações imprevisíveis em muitos países, e não somente no Brasil. Como João Gilberto falou, nós estamos vivendo um momento de transformações rápidas, a História é um cemitério de ocupações, de tecnologias, e, agora, a contagem de cadáveres está aumentando bastante, como foi no início da tecnologia do vapor. Verifiquei isso ontem à tarde ao passar pelo centro de Porto Alegre, quando vi, na Prefeitura, um movimento reivindicatório dos municipários contra a roleta eletrônica nos ônibus. Esse é, exatamente, um exemplo do que referiu João Gilberto. Daqui a 25 anos, as pessoas, quando ficarem sabendo que alguém opunha-se à roleta eletrônica, vão soltar gargalhadas, não vão acreditar que, em 97, teve esse movimento. Mas este é um movimento sério para quem enfrenta o desemprego em função da roleta eletrônica. Nós, às vezes, minimizamos esses desafios de mudança da tecnologia, porque estamos pensando no futuro. Mas, para quem vive isso no dia-a-dia, é uma ameaça ao bem-estar da pessoa. Sobre a austeridade francesa, deveríamos acrescentar que a austeridade à francesa é uma austeridade bem prazerosa, não tem nada a ver com a austeridade do Leste Europeu ou da América Latina. A globalização tem efeitos diferentes: aqui, na América Latina, o grande problema é a desigualdade, mas no Leste Europeu o grande desafio é a desigualização, uma é fato e a outra é um processo. E o processo está avançando muito no Leste Europeu e, pensando bem, não sabemos o que é pior: estar em um país onde a desigualdade é um traço permanente da geografia social ou estar vivendo a globalização em um país onde a estrutura ocupacional de classes está sendo desmontada a olhos vistos. A globalização está tendo efeitos diferentes nas duas regiões. O João Gilberto ainda apontou uma fraqueza do tipo de pesquisa que faço. Eu ainda trabalho em uma área de ciência política tradicional, em uma matriz partidocêntrica, como se os partidos fossem o centro da política. Ainda são, mas o espaço que os partidos ocupam está sendo cada vez menor, e as organizações
não-governamentais, os movimentos sociais, outras entidades particulares, lobbies, grupos de pressão, associações profissionais, estão ocupando cada vez mais espaço, principalmente aqui no Brasil. A transformação do Brasil, nos últimos 10 anos, é fantástica. A crescente densidade da sociedade civil, no Brasil, é algo impressionante. Então, o tipo de pesquisa que faço, tentando retratar as atitudes das elites, deputados e senadores, representa apenas uma pequena parte política brasileira. Quando o cidadão, hoje, faz uma avaliação do ambiente político, do mundo político, da vida política, não a faz somente à base do desempenho do Estado, dos partidos, mas também do desempenho de muitas outras organizações complexas que tocam a vida dele. O tipo de pesquisa que faço está traçando o debate entre as elites, mas o cerne da minha palestra é o de que precisamos externalizar o debate sobre a reforma do Estado. No Brasil, esse debate é um debate entre elites, entre políticos, líderes de sindicatos empresariais, etc. É um debate que está consumindo toda a energia da sociedade civil de elite. Mas o debate não está sendo externalizado para que a maioria dos cidadãos possa compartilhar dos raciocínios dos dois lados. Para mim, essa é a principal razão por que um discurso é necessário. Perguntas do plenário que foram respondidas em bloco: 1 - Sobre a metodologia da tua pesquisa: como pegaste essa amostra? Está garantida, na amostra, a representatividade de cada partido? 2 - Pode-se, com a pesquisa, medir o grau de homogeneidade partidária? 3 - Os dois debatedores e o professor Timothy fizeram um diagnóstico, afirmando que deveria ser feito um discurso: qual o tempo desse discurso? Qual o momento ideal para realizá-lo? Eu acredito que deva ser já, mas gostaria de saber a resposta dos senhores. 4 - Como buscar uma identidade social-democrática em um país que tem uma dívida social irresgatável? 5 - Qual o poder da mídia fora dos partidos políticos convencionais?
TIMOTHY POWER Sobre a metodologia da amostra, embora não tenha trazido esses dados comigo, explicarei como fiz a pesquisa. Remeti, via correio, um questionário a todos os chefes de Gabinete de todos os deputados e senadores: são 594, no total. Até o final da semana passada recebi 158 respostas, os demais perderam-se na papelada do Congresso. Em termos de distribuição partidária, a amostra é quase perfeita, assim como em termos de distribuição regional. Tem uma leve super-representação da esquerda, principalmente porque a esquerda trabalha, fica no Congresso, responde mais. Sobre medir as tendências centrais, a homogeneidade dos partidos, isto pode ser feito através do desvio padrão, que mostra se o partido é mais homogeneo ou heterogêneo. De modo geral, posso dizer que os partidos de esquerda, no Brasil, são mais homogêneos e os demais não são. Há uma divisão bastante clara entre os partidos de esquerda e os demais. O PSDB e o PDT têm um pouco mais de semelhança em termos de coerência do que os demais. Mas, de modo geral, há uma grande heterogeneidade dentro dos partidos. Quanto ao momento de fazer-se o discurso, deixo para os debatedores responderem. É difícil para mim responder como buscar identidade social-democrata em um país que tem uma dívida social irresgatável, porque o tema da palestra foi uma análise comparada com a social democracia da Europa. E, como já falei, não são necessariamente comparáveis. A austeridade francesa difere da brasileira, por exemplo.