As contribuições de Pierre Bourdieu para a análise do discurso político José Otacílio da Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Universidade Federal da Bahia (UFBA) Otací
[email protected] Resumo : O presente artigo tem o propósito de analisar a obra de Pierre
Bourdieu (1930-2002) com o intuito de trazer à tona suas contribuições para a análise do discurso político. Com muita lucidez, Bourdieu aplicou sua teoria sociológica em estudos dos fenômenos linguísticos, na analise da produção discursiva, inclusive da produção do discurso político. No entanto, suas sugestões teóricas têm sido pouco exploradas pelos analistas do discurso, inclusive pelos analistas do discurso político. No estudo de sua obra, pôde-se observar que sua teoria, em especial, o conceito de competência prática, proporciona uma profícua análise das questões discursivas, além de sugerir novas formas de estratégias discursivas no campo político. Palavras chaves: competência prática; discurso político; habitus linguístico; mercado linguístico; Pierre Bo urdieu.
Introdução Os estudos linguísticos, interessados em compreender o comportamento linguístico, assim como os estudos das demais áreas das ciências humanas e sociais que visam compreender o comportamento social em geral, sempre estiveram diante do antigo dilema: o comportamento humano é condicionado por estruturas objetivas ou o sujeito é autônomo na determinação do sentido de sua ação? Na linguística, quando, ainda em finais da década de 1920, se interessou em estudar os fatores extralinguísticos (ideológicos e sociais) que interferem nos atos da fala, isto é, na enunciação, nascia a análise do discurso e, com ela, os debates, que se prolongam até a atualidade, sobre os condicionantes do comportamento linguístico. Nesses debates, os estudiosos ora enfatizam os condicionantes sociais dos enunciados discursivos, ora enfatizam a autonomia do sujeito e ora buscam alternativas teóricas que contemplem os dois lados da questão. Patrick Charaudeau e Pierre Bourdieu estão entre aqueles estudiosos que, ao tratarem do comportamento linguístico, procuraram estabelecer mediações teóricas entre as estruturas objetivas e subjetividade dos indivíduos. Charaudeau, em suas obras Linguagem e discurso (2008a) e Discurso político (2008), constrói os conceitos de contrato de comunicação e de estratégias estratégias discursivas numa tentativa de valorizar não só os condicionamentos sociais da produção discursiva, mas também a relativa autonomia do sujeito na geração de seus enunciados. Bourdieu, da mesma forma, ao aplicar sua teoria sociológica, em especial os conceitos de fenômenos linguísticos, valoriza o lado l ado ativo e habitus e de campo, nos estudos dos fenômenos
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criativo do sujeito sem negligenciar os condicionantes sócio-históricos do comportamento discursivo. Entretanto, esse legado teórico de Bourdieu, ao contrário do que ocorre com a teoria elaborada por Charaudeau, tem sido pouco explorado pelos analistas dos discursos políticos. Daí, a proposta do presente estudo: analisar a obra de Pierre Bourdieu com o intuito de trazer à tona suas contribuições para a análise do discurso, em especial, para a análise do discurso político. Se, em seus estudos Economia das trocas simbólicas (1983b) e O mercado linguístico (1983), Bourdieu propõe os conceitos de habitus linguístico, campo linguístico, mercado linguístico, entre outros, para a compreensão e explicação do comportamento linguísticos em geral, em suas reflexões, A representação polí tica: elementos para uma teoria do campo político (1989), ele mostra os condicionantes da produção do discurso político e, desse modo, as estratégias discursivas utilizadas pelos políticos na interlocução com seus concorrentes e com os cidadãos. Na demonstração dessas contribuições teóricas de Bourdieu, serão discutidos, em primeiro lugar, os conceitos chaves de sua teoria sociológica; em seguida, os conceitos por ele criados para tratar especificamente do comportamento linguístico, e, por fim, suas reflexões sobre o funcionamento do campo político no que se refere à produção e difusão dos discursos políticos.
A teoria sociológica de Pierre Bourdieu Pierre Bourdieu, ao longo de suas pesquisas sobre os problemas sociais, procurou construir um arcabouço teórico-metodológico que suprisse as deficiências explicativas da fenomenologia e do objetivismo. Em recusa à fenomenologia que, tanto na vertente do interacionismo simbólico como na vertente etnometodológica, considera que o sentido da ação social é definido subjetivamente pelo próprio indivíduo, e em recusa ao objetivismo que, tanto na vertente culturalista como na vertente estruturalista, considera que as estruturas objetivas presidem o sentido das práticas sociais, Bourdieu (1989) propõe a sociologia reflexiva ou, como diz Ortiz (1983), o conhecimento praxiológico. Com essa proposta epistemológica e teórico-metodológica, Bourdieu sugere que longe de ser unilateralmente definido por estruturas objetivas ou pela subjetividade, o sentido da ação social é resultado da relação dialética que se estabelece entre as estruturas objetivas e a subjetividade dos agentes sociais. É com esse entendimento que Bourdieu constrói os conceitos de habitus e de campo numa tentativa de conciliar estruturas objetivas e subjetividade. A noção de habitus foi elaborada por Bourdieu para operacionalizar sua maneira de pensar praxiológica, ou seja, para fazer a mediação entre as estruturas objetivas que predispõem os indivíduos a agir em determinado sentido e o sentido da ação efetivamente realizado. Bourdieu define habitus como: sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações, que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e regulares’ sem ser o produto de obediência a regras; objetivamente adaptadas ao seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-lo, e coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um regente (BOURDIEU, 1983a, p. 60-61).
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Quer dizer, o habitus é o conjunto das idéias e representações que os indivíduos incorporam nas diversas trajetórias sociais que percorrem ao longo de sua vida. Em suas diversas trajetórias sociais – trajetórias familiares, educacionais, econômicas, políticas, religiosas, profissionais, etc. –, o indivíduo incorpora não apenas a sua maneira de pensar, mas também acumula certo capital social, certo poder simbólico que vai influir nas suas tomadas de posições, ou seja, na determinação do sentido de suas ações. Dizer que o habitus é uma “estrutura estruturada” é considerá-lo como conjunto de idéias e representações, ou seja, como “matriz de percepções, apreciações e ações” (MICELI, 1987, p. XLI) estruturados na subjetividade do indivíduo pelas experiências obtidas em suas trajetórias sociais. Trata-se, portanto, de predisposições que são subjetivamente estruturadas para a orientação da ação. Dizer que o habitus é uma “estrutura estruturante” é considerá-lo como um conjunto de predisposições capaz de estruturar a prática ou o sentido da ação do indivíduo. Em outras palavras, além de ser uma estrutura estruturada, o habitus é também uma estrutura estruturante, pois, como esquemas de percepções e de ações, como maneira de pensar dos indivíduos, ele condiciona, de certa forma, as maneiras de pensar, sentir e agir dos indivíduos. Deve-se notar, o habitus não exerce mediação apenas entre as estruturas objetivas e as práticas individuais. A mediação exercida pelo habitus ocorre, também, entre as estruturas objetivas e as práticas coletivas, ou seja, entre as estruturas objetivas do mundo social e as práticas dos grupos ou das classes sociais. Embora Bourdieu reconheça que, enquanto esquemas de percepções ou de disposições, o habitus seja produto de toda uma experiência biográfica, ele não descarta a possibilidade de formação do habitus de classe, isto é, de esquemas de percepções e de ações, comuns entre os membros de determinados agrupamentos sociais. Para Bourdieu (1983, p. 60), “o fato de não existirem duas histórias individuais iguais faz com que não existam dois habitus idênticos, embora haja classes de experiências ou classes de habitus” que fazem com que determinados indivíduos, consciente ou inconscientemente, orientem as suas ações num mesmo sentido. A constituição de grupos sociais predispostos, por exemplo, a seguirem as normas sociais ou a aderirem a um determinado discurso político torna-se possível porque é possível que determinadas normas e determinado discurso político oferecido no mercado de bens simbólicos encontrem indivíduos que, por possuírem trajetórias sociais comuns e por situarem-se em posições comuns da estrutura do espaço social, partilham de um mesmo habitus, de um mesmo esquema de percepções e ações afim com as normas ou com o discurso político em questão. Os membros de um grupo social assim constituído – é preciso notar – não necessariamente tomarão as mesmas posições, não necessariamente nortearão suas ações em um mesmo sentido. Ao contrário, para Bourdieu (1989, p. 136), um grupo constituído conforme as semelhanças das trajetórias sociais de seus membros não é outra coisa senão uma “classe provável”, isto é, “um conjunto de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes”. A noção de campo, interligada à noção de espaço social, é outra noção elaborada por Bourdieu para combater o objetivismo e a fenomenologia. Bourdieu considera o espaço social ou a sociedade como:
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um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinado quanto ao seu funcionamento e às suas transformações, de modo mais ou menos firme ou mais ou menos direto, ao campo da produção econômica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas) (BOURDIEU, 1989, p. 153).
Nesta perspectiva, Bourdieu distingue, no interior do espaço social multidimensional, uma diversidade de campos que possuem suas relativas autonomias: campo jurídico, campo artístico, campo da alta costura, campo educacional, campo religioso, campo político, etc. Nas lutas simbólicas que ocorrem no interior de cada um desses campos, se desenvolvem não só a produção, mas também a difusão dos bens simbólicos, ou seja, dos valores ou das visões de mundo. No entender de Bourdieu, o processo produção dos bens simbólicos, assim como o processo de propagação desses bens dependem do habitus adquirido pelos criadores ao longo de suas respectivas trajetórias sociais, mas também das posições que eles ocupam na estrutura de um determinado campo do espaço social. Com a noção de campo, Bourdieu quis evitar não só a explicação interna, mas também a explicação externa que muitos estudiosos davam às transformações ocorridas na cultura, na arte, na literatura, etc. Enquanto muitos estudiosos acreditavam que os fenômenos culturais, artísticos ou literários, tinham uma autonomia absoluta no processo de suas respectivas evoluções, isto é, que evoluíam independentemente da evolução social, outros estudiosos, ao contrário, limitavam-se a reduzir a transformação daqueles fenômenos às transformações que ocorriam em determinadas formas da vida social. Na avaliação de Bourdieu, essas correntes opostas de pensamento ignoravam que tanto o campo da cultura, como o campo da arte ou o campo da literatura, cada um por sua vez, são subespaços sociais onde se encontram agentes sociais específicos envolvidos em relações objetivas de concorrência pelo poder simbólico, e que são essas relações que condicionam a transformação ou a conservação dos fenômenos culturais, artísticos, ou literários. Quer dizer, entendendo que a transformação de um determinado fenômeno social não ocorre autonomamente, tampouco como um reflexo de mudanças que ocorrem em determinada estrutura social, Bourdieu pôde mostrar que o homem é um partícipe dessas transformações, mas que tal participação é limitada pelo grau das relações objetivas que se estabelecem entre os diversos agentes de um determinado campo do espaço social multidimensional. Com a noção de campo, Bourdieu quis designar o lugar onde ocorrem as lutas simbólicas pelo poder simbólico; um lugar onde as posições dos agentes sociais são estruturadas conforme o quantum de capital social ou de poder simbólico que cada agente adquire ao longo de suas trajetórias sociais. Neste campo, os atores ou agentes sociais só realizam as ações que podem efetivamente realizar. No campo, em conformidade com o habitus e com o capital social adquirido ao longo de suas trajetórias sociais, os agentes sociais se dividem em dominantes e dominados. Os dominantes, ou seja, a ortodoxia, lutam pela conservação da estrutura do campo em questão e, por meio dessa conservação, pela conservação do mundo social. Os dominados, ou seja, a heterodoxia, luta pela transformação da estrutura do campo em questão e, por meio dessa transformação, pela transformação do mundo social. Quer dizer, as tomadas de posições ou o sentido da ação dos agentes que se
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encontram em luta simbólica pelo poder simbólico num determinado campo do espaço social é condicionada não apenas pelas estruturas objetivas do campo, mas também pela subjetividade dos agentes, ou seja, pelas estratégias que eles podem elaborar para atingir os seus objetivos - a conservação ou a transformação do campo e do mundo social. Nesse espaço de lutas simbólicas pelo poder simbólico, isto é, pelo “poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e de fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão mundo, e, deste modo, a ação sobre o mundo” (BOURDIEU, 1989, p.15), a dominação de uma das partes sobre as outras ocorre através da violência simbólica, isto é, pelo “poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta a sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essa relações de força”. Enfim, no entendimento de Bourdieu, a prática, ou seja, o sentido da ação social é produto da relação dialética entre os habitus que os indivíduos adquirem em suas trajetórias sociais e as situações em que se encontram em determinado campo ou no espaço social como um todo. Nessa perspectiva, Bourdieu considera não apenas a subjetividade dos agentes sociais e a objetividade da sociedade na determinação da ação, mas também as estratégias que os indivíduos adotam em suas tomadas de posições nos diversos subespaços do espaço social multidimensional. Se essas estratégias não são livremente definidas pelo indivíduo, elas também não são rigidamente definidas por estruturas objetivas. As estratégias de ação, as tomadas de posições são definidas pelos indivíduos, isoladamente ou em grupo, em conformidade com os respectivos habitus e com as respectivas posições que ocupam na estrutura do espaço social.
A teoria sociológica e a análise do discurso Ao construir um arcabouço teórico para tratar dos fenômenos linguísticos, Bourdieu teve o propósito de tentar suprir certas deficiências das teorias linguísticas tradicionais, em especial, a concepção saussuriana de língua enquanto sistema abstrato de signos e a também abstrata concepção chomskyana de competência linguística. Diferentemente dessas concepções, Bourdieu considerou não os signos, mas o discurso como unidade básica de suas análises e não a competência abstrata chomskyana, isto é, a capacidade do indivíduo utilizar, de modo autônomo, a língua para “produzir uma infinidade de frases gramaticalmente coerentes”, mas aquilo que ele chama de competência prática, isto é, a competência linguística adquirida na prática, onde se obtém não só o “domínio prático da linguagem”, mas também o “domínio prático das situações, que permitem produzir um discurso adequado numa situação determinada” (BOURDIEU, 1983b, p. 158). Partindo desses pressupostos, Bourdieu utilizou os mesmos conceitos básicos de sua teoria sociológica – os conceitos de habitus, campo, mercado de bens simbólicos, capital social – muitas vezes acrescentando-lhes o adjetivo linguístico – habitus linguístico, mercado linguístico, campo linguístico, capital linguístico – justamente para fazer referência ao novo objeto de suas investigações: o comportamento linguístico. Com a utilização desses conceitos, Bourdieu pretendeu demonstrar a relativa autonomia dos agentes sociais no uso da linguagem e, ao mesmo tempo, as relações de força simbólica que se encontram presentes nas
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interações linguísticas ou, como diz Bourdieu (1983b, p. 157), nas relações de comunicação ou interações simbólicas que ocorrem entre os interlocutores, nas mais diversas situações comunicativas. Com a noção de habitus linguístico Bourdieu se refere ao conhecimento linguístico que o indivíduo adquire em suas trajetórias sociais. Isso significa dizer que o conhecimento ou o habitus linguístico de cada indivíduo varia conforme variam suas trajetórias sociais – trajetória escolar, trajetória familiar, trajetória profissional, etc. – onde obtêm o aprendizado da linguagem, não só em termos das normas linguísticas, mas também em termos da adequação entre formas linguísticas e situações de comunicação. Em outras palavras, o habitus linguístico é o conjunto de conhecimento linguístico que o indivíduo adquire ao longo de suas trajetórias sociais e que o predispõe a utilizar certas normas de uso da língua e não outras e que o capacita a avaliar quais normas linguísticas são mais adequadas ou convenientes aos contextos específicos de suas interações linguísticas. Note-se que o habitus linguístico exerce esse papel estruturador das práticas linguísticas tanto no indivíduo isolado, quanto dos agrupamentos ou classes sociais. Isso significa dizer que um conjunto de indivíduos que trilham trajetórias sociais semelhantes, pode obter um habitus linguístico semelhante e tende, portanto, a adotar práticas ou comportamento linguístico também semelhantes. Vale ressaltar que a noção de habitus linguístico é importante na análise do discurso proposta por Bourdieu, pois permite suprir deficiências teóricas da noção de competência linguística chomskyana. Enquanto a noção de competência linguística chomskyana se refere à capacidade ilimitada do indivíduo criar formas linguísticas a partir de princípios universais pré-definidos e de utilizá-las independentemente do contexto da comunicação, a noção de habitus linguístico indica a influência dos fatores sócio-culturais não só na criação das diferentes formas de expressões linguísticas, mas também no uso dessas formas. Em outros termos, com a noção de habitus linguístico, Bourdieu (1983b, p. 182) quer indicar não apenas “a capacidade de utilizar as possibilidades oferecidas pela língua”, mas também a capacidade do indivíduo “avaliar praticamente as ocasiões de utilizá-las”. Isso significa dizer que, em suas trajetórias sociais, os indivíduos aprendem não apenas as palavras gramaticalmente “corretas” ou “incorretas”, mas as palavras socialmente aceitáveis. Nas palavras de Bourdieu: o habitus linguístico se distingue de uma competência do tipo chomskyano pelo fato de ser produto das condições sociais e pelo fato de não ser uma simples produção de discursos, mas uma produção de discursos ajustados a uma ‘situação’, ou de preferência, ajustados a um mercado ou a um campo. (BOURDIEU, 1983c, p. 95)
A noção de mercado linguístico , ou mercado de bens simbólicos , foi construída por Bourdieu em analogia à noção de mercado econômico. Assim como as relações econômicas implicam a produção de bens materiais a serem oferecidos aos consumidores, no mercado de bens materiais, por um preço estabelecido pelas próprias situações de mercado, as relações linguísticas ou interações linguísticas implicam a produção de bens simbólicos, de discursos a serem direcionados a interlocutores que os aceitarão, ou não, dependendo do valor que tais discursos obtêm no mercado linguístico, nas específicas situações de comunicação. As palavras, os enunciados ou os discursos produzidos pelo locutor têm seu valor conforme o valor socialmente atribuído à língua que utiliza – língua padrão ou
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dialetos – e conforme a posição do locutor na estrutura do mercado linguístico, isto é, conforme o capital linguístico que o locutor acumulou em suas trajetórias sociais. Quer dizer, o mercado linguístico existe “sempre que alguém produz um discurso para receptores capazes de avaliá-lo e de dar-lhe um preço” (BOURDIEU, 1983c, p. 96). É o caso do pastor que produz um discurso religioso para a avaliação dos membros de uma igreja ou dos possíveis adeptos; do professor que direciona seu discurso aos seus alunos; do jornalista que se comunica com o público em geral; bem como de qualquer pessoa que se comunica com outra em conversas informais e cotidianas. Como diz Bourdieu (1983c, p. 97), “t odo ato de interação, toda comunicação linguística, mesmo entre duas pessoas; entre dois companheiros, entre um rapaz e sua namorada, todas as interações linguísticas são espécies de micro-mercados, sempre dominados por estruturas globais”.
Campo linguístico é outro conceito importante para a análise do discurso de Bourdieu. Ao que parece, Bourdieu construiu essa noção para demarcar setores específicos do espaço social onde o mercado linguístico funciona com certas especificidades. Além dos espaços onde ocorrem as conversas cotidianas, pode-se destacar como campo linguístico, por exemplo, o campo religioso, o campo político, o campo das artes, etc. Em cada um desses campos onde ocorrem interações linguísticas específicas, encontram-se específicos produtores de discursos, com capital linguístico diferenciado e com habitus linguístico também diferenciado. Os discursos produzidos em cada campo linguístico são destinados a interlocutores também específicos, isto é, à avaliação de interlocutores que, possuindo um habitus linguístico específico, podem compreender tais discursos, refutá-los ou a eles se submeterem, voluntária ou involuntariamente. Isso significa dizer que é na especificidade de cada campo linguístico que ocorrem as interações linguísticas, ou seja, a produção, a avaliação e o consumo de bens linguísticos, de discursos. Com a noção de capital linguístico, mais uma vez, Bourdieu pretende ampliar a idéia de competência linguística chomskyana e, ao mesmo tempo, mostrar as relações de poder ou de força simbólica presentes nas interações linguística que ocorrem nos diversos campos do espaço social. Aos olhos de Bourdieu, a competência linguística se refere não apenas à capacidade do indivíduo utilizar as palavras para se comunicar, mas também à sua capacidade de influenciar o comportamento do outro tendo em vista certos fins a serem atingidos. Essa capacidade de influenciar depende não só do habitus linguístico, mas também da posição que o locutor ocupa na estrutura social do campo, ou seja, da distribuição do capital linguístico acumulado nas experiências linguísticas. Uma vez que em cada campo linguístico há formas de expressões linguísticas com diferentes níveis de aceitabilidade por parte dos participantes daquele campo, ou seja, uma vez que em cada campo se encontra inscrito o que pode e o que não pode ser dito; quem está e quem não está autorizado a utilizar a palavra ou a produzir discursos, quanto maior é o nível de capital linguístico do locutor, maiores são suas possibilidades de utilizar os aparelhos discursivos e, assim, de garantir a aceitabilidade de seus enunciados. Daí, a afirmação de Bourdieu (1983b, p. 166): ”do mesmo modo que, ao nível dos grupos tomados em seu conjunto, uma língua vale o que valem aqueles que a falam, ao nível das interações entre indivíduos, o discurso deve sempre uma parte muito importante de seu valor ao valor daquele que o domina”. Enfim, com as noções de habitus linguístico, mercado linguístico, campo linguístico, capital linguístico, Bourdieu constrói sua teoria para compreender e
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explicar as interações linguísticas, ou seja, a produção e o consumo de bens linguísticos. Com esses conceitos, torna-se possível contemplar os fatores intralinguísticos e os fatores extralinguísticos, bem como as condições objetivas e subjetivas que interferem na interação linguística. Entendendo que “a verdade da relação de comunicação nunca está inteiramente no discurso, nem mesmo das relações de comunicação”, Bourdieu (1983b, p. 162) avalia que “uma verdadeira ciência do discurso deve buscar (essa verdade) no discurso, mas também fora dele, nas condições sociais de produção e de reprodução dos produtores e receptores e da relação entre eles”. Em outras palavras, Bourdieu considera que: a ciência da linguagem tem por objeto a análise das condições de produção de um discurso não somente gramaticalmente conforme e adaptado à situação, mas também e sobretudo aceitável, recebível, crível, eficaz ou simplesmente escutado, num determinado estado das relações de produção e de circulação (isto é, em relação a uma certa competência e um certo mercado) (BOURDIEU, 1083b, p. 163-164)
Na análise das condições produção de um discurso não se pode negligenciar o habitus linguístico dos produtores e receptores de discursos, tampouco as variações da estrutura das relações de produção linguística, isto é, as posições, social e historicamente determinadas, que os interlocutores ocupam na estrutura das relações de força simbólicas. Ao considerar o habitus linguístico e a posição dos interlocutores da estrutura das forças simbólicas de um determinado campo lingüístico, não se faz outra coisa senão atentar-se para as condições objetivas que interferem na produção discursiva. Nestes termos, Bourdieu (1983b, p. 182) considera que, na análise do discurso, deve-se, em primeiro lugar, atentar-se para o habitus linguístico dos interlocutores. Fazer isso é considerar a capacidade que os interlocutores possuem para “utilizar as possibilidades oferecidas pela língua e (para) avaliar, praticamente, as condições de utilizá-las”. Em seguida, trata-se de analisar “o mercado linguístico definido por um grau de tensão médio, ou, o que dá mesmo, por certo nível de aceitabilidade” dos enunciados produzidos. Finalmente, trata-se de avaliar o “interesse expressivo”, isto é, os objetivos que levam o locutor a produzir um discurso destinado à avaliação por parte de receptores do campo linguístico. Analisar a produção de discursos em determinado campo linguístico é ter em consideração também a relação de concorrência entre produtores de discursos daquele campo – produtores que possuem habitus e capital linguístico diferenciados – bem como as relações existentes entre os produtores e os demais interlocutores a quem o discurso se dirige. Uma vez que o produtor de discursos se encontra em concorrência ou luta simbólica, com outros produtores, pelo poder simbólico, os discursos que produz – dentro dos limites das coerções exercidas pela própria estrutura do campo – devem trazer marcas que os distingam dos discursos de seus concorrentes e devem, ao mesmo tempo, ser capazes de serem compreendidos, acreditados e aceitos pelos destinatários. Neste sentido, diz Bourdieu, o que pode ser dito e a maneira de dizê-lo numa circunstância determinada, dependem da estrutura da relação objetiva entre as posições que o emissor e o receptor ocupam na estrutura de distribuição do capital linguístico e de outras espécies de capital (BOURDIEU, 1983b, p. 173).
Essa relação objetiva entre locutor e receptor funciona como um mercado que atua como censura na produção discursiva e que confere aos diferentes discursos produzidos no campo valores muito desiguais. Mesmo os produtores que se
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encontram em uma posição privilegiada no campo e que, por isso, possuem melhor acessibilidade aos instrumentos de produção discursiva, podem encontrar a resistência dos destinatários. Daí, a possibilidade e a necessidade dos produtores elaborarem estratégias discursivas. As estratégias discursivas dos locutores visam atender aos seus objetivos expressivos: produzir um discurso que seja distinto dos discursos dos concorrentes e, ao mesmo tempo, que assegure a sua aceitabilidade entre os destinatários. Em ambos os casos, a elaboração das estratégias discursivas dependem da competência prática do produtor de discursos, isto é, de seu habitus e de seu capital linguístico, portanto, de sua capacidade de utilizar a língua e de compreender as situações discursivas. Pode-se dizer que quanto maior é essa competência, maior é a autonomia do produtor na elaboração de suas estratégias discursivas. A estratégia da distinção assegura um lucro linguístico ao produtor de discurso em conformidade com a competência linguística desse produtor. Na concorrência com os demais produtores, o produtor que possui uma competência linguística prática mais expressiva, é o mais capaz de “impô-la como sendo a única legítima nos mercados línguísticos legítimos” (BOURDIEU, 1983b, p. 168). Na relação com seus interlocutores, o que orienta as estratégias discursivas do locutor não é a busca de distinção, nem mesmo as chances de ser ouvido ou mal ouvido, “mas as chances de ser compreendido, acreditado, obedecido, nem que seja ao preço de um mal entendido (rendimento político ou chances de dominação e de lucro) [...]” (BOURDIEU, 1983b, p. 169). Aqui, também, é o nível de competência ampliada do locutor que assegura o êxito de suas estratégias discursivas: quanto mais significativa for essa competência, maiores são as probabilidades de adesão dos interlocutores, ou seja, as probabilidades do discurso assegurar sua credibilidade, legitimidade, obediência.
Campo político e a produção do discurso político Como o faz em suas análises dos fenômenos sociais em geral, Bourdieu trata os fenômenos políticos, de modo relacional. Isto significa que, longe de ver os fenômenos políticos ou as tomadas de decisões políticas como uma decorrência necessária de estruturas objetivas ou como resultado de livres iniciativas individuais, Bourdieu analisa a ocorrência dos fenômenos políticos considerando as relações que produtores e consumidores de bens políticos estabelecem entre si no processo de funcionamento do campo político. Ao que parece, ao tratar do funcionamento do campo político, Bourdieu está mais preocupado em demonstrar os objetivos e as estratégias utilizadas pelos políticos na busca de seus objetivos que em enfatizar a constituição das formas de linguagem por eles utilizadas na interação linguística com seus concorrentes e com os cidadãos. Entretanto, a ênfase de Bourdieu no estudo dos objetivos e estratégias políticas fornece, aos estudiosos do discurso político, pistas para a compreensão da competência prática dos políticos, senão no que se refere às condições e à sua capacidade de utilização de formas linguísticas, pelo menos no que se refere às condições e às capacidade dos políticos compreender as situações políticas e elaborar suas estratégias discursivas.
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Na terminologia de Bourdieu, o campo político, entendido como um subespaço do espaço social multidimensional deve ser “entendido, ao mesmo tempo, como campo de força e campo das lutas que têm em vista transformar as relações de força que confere a este campo a sua estrutura em um dado momento” (BOURDIEU, 1989, p, 164). É no campo político, ou seja, na concorrência e nas lutas que são travadas entre agentes específicos que se encontram em seu interior, que se efetuam as tomadas de posições políticas, isto é, que são produzidos os produtos políticos: problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos Em outras palavras, no entendimento de Bourdieu, são os profissionais da política, os representantes do povo que, em concorrência no interior do campo político, produzem as decisões políticas, os produtos políticos que são oferecidos ao consumo de cidadãos comuns que, desprovidos de competência política, se encontram na mera condição de consumidores dos bens políticos. A tomada de decisões políticas no campo político, ou seja, a produção de produtos políticos nesse subespaço do espaço social multidimensional, é um monopólio dos políticos profissionais. Sem pretender mostrar a formação das instituições políticas e nem mesmo do campo político, Bourdieu considera que a concentração do capital político nas mãos de um pequeno grupo é tanto menos contrariada e, portanto, tanto mais provável, quanto mais desapossados, de instrumentos materiais e culturais necessários à participação ativa na política estão os simples aderentes (BOURDIEU, 1989, p, 164). Quer dizer, no campo político, a probabilidade de uma minoria concentrar em suas mãos os instrumentos e os mecanismos de tomadas de decisões é tanto maior quanto menores forem as condições de participação dos cidadãos nas atividades políticas. Isto significa dizer que o acesso à participação política no campo político só é possível àqueles que possuem certo habitus político, certas predisposições para a atuação política e certo nível de capital social e cultural e, particularmente, tempo livre para dedicar-se ao desempenho das atividades políticas. Quanto mais os cidadãos estiverem desprovidos desses recursos, maior será a concentração e a monopolização das atividades políticas no campo político. O apolitismo, a apatia política dos cidadãos, às vezes, é uma consequência dessa monopolização das atividades políticas. Um partido político, enquanto organização permanente que visa à representação política permanente de uma classe social, exclui a participação política dos representados dessa classe por serem mais desprovidos de capital social, político, econômico e cultural. Assim, os que dominam o partido e têm interesses ligados com a existência e a persistência desta instituição e com os ganhos específicos que ela assegura encontram na liberdade que o monopólio da produção e da imposição dos interesses políticos instituídos lhes deixa, a possibilidade de imporem os seus interesses de mandatários como sendo os interesses de seus mandantes (BOURDIEU, 1989, p. 168).
Diante do monopólio das atividades político-partidárias de uma minoria de profissionais, a maioria constituída de cidadãos comuns se sente impotente para expressar seus interesses e aspirações. Como diz Bourdieu, esse apolitismo dos cidadãos tem suas raízes na impotência do indivíduo diante da política e das instituições políticas monopolizadas. Muitas vezes, esse apolitismo se reveste de uma “contestação do monopólio dos políticos que representam o equivalente
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político daquilo que foi, em outros tempos, a revolta dos religiosos contra o monopólio dos clérigos” (BOURDIEU, 1989, p. 169). Para compreender as tomadas de posições políticas ou a produção de discursos políticos no campo político, necessário se faz compreender os interesses que se encontram em jogo na luta concorrencial que se trava entre os profissionais da política. Como diz Bourdieu, tratando de compreender uma tomada de posição política, uma elaboração de programa político, uma intervenção política, um discurso eleitoral: é, pelo menos, tão importante conhecer o universo das tomadas de posições propostas em concorrência no interior do campo, como conhecer as pressões dos laicos de quem os responsáveis por tais tomadas de posição são os mandatários declarados (a base) (BOURDIEU, 1989, p. 172).
Trata-se, portanto, de saber quais são as tomadas de posições dos concorrentes e quais são as aspirações dos leigos, ou seja, dos cidadãos comuns que se encontram na mera condição de consumidores de produtos políticos, para que, a partir daí, se possa entender como se formula uma determinada tomada de posição política. É o jogo de interesses existente entre os políticos profissionais que os leva a considerar, a um só tempo, os interesses de seus concorrentes e os interesses dos leigos, em suas tomadas de posições políticas. A luta que os representantes de seus representados, os mandatários de seus mandantes, ou seja, a luta que os profissionais da política travam entre si no campo político é uma luta pelo poder simbólico e, ao mesmo tempo, pelo poder político com vistas a promover a conservação ou a transformação do mundo social. Nas palavras de Bourdieu, a luta que se trava entre os profissionais da política é, sem dúvida, a forma por excelência da luta simbólica pela conservação ou pela transformação do mundo social por meio da conservação ou da transformação da visão do mundo social e dos princípios de divisão deste mundo: ou, mais precisamente, pela conservação ou pela transformação das divisões estabelecidas entre as classes por meio da conservação ou da transformação dos sistemas de classificação que são a sua forma incorporada e das instituições que contribuem para perpetuar a classificação em vigor, legitimando-a (BOURDIEU, 1989, p, 173-174).
O que se joga no jogo político é, por um lado, o monopólio da elaboração e da difusão do princípio de divisão legítima do mundo social e, por outro lado, o monopólio da utilização dos instrumentos de poder objetivados, ou seja, do capital político objetivado. Essa luta assume a forma de uma luta pelo poder simbólico, isto é, “pelo poder de fazer ver e fazer crer, de predizer e de prescrever, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, que é ao mesmo tempo uma luta pelo poder sobre os poderes ‘públicos’ (as administrações do Estado)” (BOURDIEU, 1989, p, 174). Nas democracias parlamentares os partidos, agentes por excelência dessas lutas, visam, o tempo todo, mobilizar adeptos para alcançar seus objetivos políticos. Para garantirem uma mobilização duradoura, diz Bourdieu: os partidos devem, por um lado, elaborar e impor uma representação do mundo social capaz de obter a adesão do maior número possível de cidadãos e, por outro lado, conquistar postos (de poder ou não) capazes de assegurar um poder sobre os seus atributários. (BOURDIEU, 1989, p, 174).
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A representação do mundo social produzida pelos profissionais é tanto mais correspondente às aspirações dos leigos, dos cidadãos comuns, quanto mais homólogas forem as posições desses profissionais na estrutura do campo político e as posições que os leigos ocupam na estrutura do espaço social. Neste sentido, diz Bourdieu, a concordância entre o significante e o significado, entre o representante e o representado, resulta sem dúvida menos da procura consciente do ajustamento à procura da clientela ou do constrangimento mecânico exercido pelas pressões externas do que da homologia entre a estrutura do teatro político e a estrutura do mundo representado, entre a luta das classes e a forma sublimada desta luta que se desenrola no campo político. (BOURDIEU, 1989, p, 175-176).
A homologia existente entre a posição dos políticos profissionais e a posição dos leigos na estrutura do campo político, faz com que, ao buscar a satisfação dos interesses específicos que lhes impõe a concorrência no interior do campo, os políticos profissionais dêem satisfação, também, aos interesses de seus mandantes ou seja, de seus representados. Os profissionais da política servem aos interesses dos seus clientes na medida em que se servem também ao servi-los. Como diz Bourdieu (BOURDIEU, 1989, p, 177), os políticos profissionais servem aos interesses de mandantes “de modo tanto mais exato quanto mais exato é a coincidência da sua posição na estrutura do campo político com a posição de seus mandantes na estrutura do campo social”. Em outros termos, nessa dupla determinação da produção de produtos políticos, os profissionais procuram atender, a um só tempo, aos “fins esotéricos das lutas internas” e aos “fins exotéricos das lutas externas” (BOURDIEU, 1989, p. 176-177). Enfim, Bourdieu considera o campo político como o lugar onde os políticos profissionais se encontram em luta simbólica pelo poder simbólico e pelo poder político, uma luta que se faz contra adversários que possuem os mesmos objetivos e que visam, também, a adesão do maior número possível de cidadãos tendo em vista o alcance de seus objetivos finais. Nessas lutas, os políticos profissionais utilizam estratégias discursivas não só para distinguir-se de seus concorrentes, mas também para conquistar a adesão dos cidadãos aos seus objetivos políticos. Tratase, enfim, de uma luta estratégica visando o monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos membros da sociedade. O político profissional que conquista o direito de falar em nome de um grupo, ou seja, o direito de representar um grupo, “apropria-se não só da palavra dos membros de tal grupo, mas também da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui ao prestar-lhe uma palavra reconhecida como legítima no campo político” (BOURDIEU, 1989, p, 185). Ao obter essa força do grupo, o político profissional acumula seu capital político ou poder simbólico: “um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce [...], um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe” (BOURDIEU, 1989, p. 188).
Considerações finais Ao aplicar ou adequar sua teoria sociológica aos estudos dos fenômenos linguísticos, Bourdieu traz significativas contribuições para a análise do discurso em geral e, particularmente para a análise do discurso político. Os conceitos de habitus
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linguístico, campo linguístico, capital linguístico, mercado lingüístico, estratégias discursivas, competência prática sugerem a existência de relações dialéticas entre as condições objetivas e subjetivas na determinação da produção discursiva e, assim, a compreensão da relativa autonomia do sujeito no direcionamento de seu comportamento lingüístico. Ao substituir o abstrato conceito chomskyano de competência linguística, pelo conceito de competência prática, entendida como capacidade de elaborar expressões linguísticas para a interação linguística, mas também como capacidade de compreender as situações discursivas concretas e de elaborar estratégias discursivas na busca de suas intenções expressivas, chama a atenção para os complexos mecanismos das produções discursivas. A produção de discursos, nas conversas informais do cotidiano ou nos campos específicos do espaço social, não é um processo onde o sujeito constrói seus enunciados de modo livre, nem é um processo onde ele sofre coerções absolutas de estruturas objetivas. Se a construção dos enunciados sofre coerções do habitus linguístico e do capital linguístico do produtor, ou seja, da posição que ele ocupa na estrutura de determinado campo lingüístico, ela não deixa de reservar um espaço para uma atuação relativamente do sujeito. O mesmo habitus linguístico e o capital linguístico do sujeito que exerce certa coerção na produção das formas expressivas, fornece ao sujeito certa autonomia na elaboração de suas estratégias discursivas. Ao tratar especificamente da produção dos discursos políticos, ao que parece, Bourdieu estava mais interessado em mostrar os objetivos e as estratégias que os políticos adotam na sua busca do poder simbólico e, por esse meio, do poder político, que tratar das condições em que os agentes políticos adotam ou constroem suas formas de expressão linguística. Em seu estudo, além de mostrar que o que move o político é sua pretensão de ganhar credibilidade junto aos eleitores e cidadãos de modo a obter condições objetivas para conquistar o poder político, Bourdieu mostra também a relativa autonomia que ele desfruta na elaboração de suas estratégias visando conquistar os eleitores ou cidadãos. Observa-se que, para Bourdieu, quanto mais significativo é habitus e o capital linguístico do político, obtidos em suas práticas linguísticas, em especial, no campo político, maiores são as propensões para que ele elabore estratégias eficientes para o alcance de seus objetivos. Enfim, avalio que os estudos linguísticos de Bourdieu contribuem para a análise do discurso político, na medida em que oferece o referencial teórico fértil para a compreensão das condições objetivas e subjetivas da produção do discurso político, tanto no que se refere à construção das formas linguísticas de expressão, quanto na construção de estratégias discursivas. A noção de competência prática elaborada por Bourdieu – noção intrinsecamente relacionada com as demais noções por ele construídas – permite contemplar a relativa autonomia do político na elaboração de seus discursos políticos, bem como na elaboração de suas estratégias discursivas. Mais do que isso, a ideia de mercado lingüístico e de campo linguístico, consideradas como espaços sociais onde agentes específicos se encontram em luta simbólica pelo poder simbólico e em concorrência com adversários que possuem objetivos semelhantes e que buscam a conquista do maior número possível de adeptos, traz à tona a idéia de que, além das estratégias persuasivas – ethos, pathos e logos – sugeridas por Charaudeau (2008) e por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), entre outros, é possível pensar em outra
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forma de estratégia discursiva: na falta de outro termo, estratégia da distinção. Trata-se de estratégias discursivas que os políticos adotam em suas interações linguísticas no campo político, para distinguir os discursos que produzem, dos discursos de seus concorrentes.
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