CRIATIVIDADE QUÂNTICA como despertar o nosso potencial criativo
Amit Goswami
Tradução
Cássia Nasser Marcello Borges
Copyright © by Amit Goswami, 1999 Copyright © Editora Aleph, 2008 (edição em língua portuguesa para o Brasil) TÍTULO ORIGINAL: CAPA: PREPARAÇÃO DE TEXTO: REVISÃO: PROJETO GRÁFICO: EDITORAÇÃO: COORDENAÇÃO EDITORIAL: EDITOR RESPONSÁVEL:
Quantum creativity Thiago Ventura e Luiza Franco Ana Cristina Teixeira Hebe Ester Lucas Neide Siqueira Join Bureau Débora Dutra e Delfin Adriano Fromer Piazzi
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. EDITORA ALEPH Rua Dr. Luiz Migliano, 1110 – Cj. 301 05711-900 – São Paulo – SP – Brasil Tel: [55 11] 3743-3202 Fax: [55 11] 3743-3263 www.editoraaleph.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Goswami, Amit Criatividade quântica : como despertar o nosso potencial criativo / Amit Goswami ; tradução Cássia Nasser, Marcello Borges. – São Paulo : Aleph, 2008. – (Série novo pensamento) Título original : Quantum creativity : waking up to our creative potential ISBN 978-85-7657-048-6 1. Criatividade 2. Pensamento criativo 3. Teoria quântica I. Título. II. Série.
08-02436
CDD-153.35 Índices para catálogo sistemático: 1. Criatividade quântica : Psicologia 153.35
sumário
Prefácio .........................................................................................
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Part e 1 – Uma Perspect iva Int egral da Criat ividade ..... 17 1. Esta é a montaria que os criativos cavalgam: o quantum, o quantum, o quantum ..................................... 25 Criatividade e preparação para o século XXI ...................... 31 2. Criatividade, visões de mundo e integração ...................... A perspectiva material realista e a classe mecanicista de teorias da criatividade ................................................. A perspectiva organicista e a classe organicista de teorias da criatividade ...................................................... A metafísica idealista monista e a classe idealista de teorias da criatividade ...................................................... Um caminho para a integração? ...................................... Os pontos polêmicos: um debate imaginado .................. A física e sua visão de mundo .......................................... Uma perspectiva integrada e uma teoria integral da criatividade ........................................................................
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3. A essência da criatividade ................................................... O que há de novo? ............................................................ Do tijolo ao vestido vermelho: o contexto da criatividade...................................................................
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Exemplo: o problema dos nove pontos................................ Exemplos de criatividade fundamental: Guernica, de Picasso, e o átomo de Bohr ................................................... Exemplos de criatividade situacional .................................. O processo na criatividade ................................................... O processo criativo a longo prazo ........................................ E o método científico? Um diálogo com um aficionado do método científico..............................................................
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4. Criatividade interior ................................................................. Criatividade em crianças ...................................................... Criatividade interior em adultos: espiritualidade criativa ......................................................... Criatividade interior na interpretação ................................. Criatividade interior no relacionamento ............................. Religião e moralidade: criatividade interior no nível situacional .................................................................... O esplendor quádruplo da criatividade............................... Polaridade e integração ........................................................
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Part e 2 – Criat ividade Quântica ....................................... 77 5. Continuidade e descontinuidade............................................. Descontinuidade na criatividade ......................................... A descontinuidade na descoberta da gravidade de Newton ............................................................................. Entendendo a descontinuidade ........................................... Experimentos com golfinhos ................................................ Dando o salto quântico .........................................................
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6. De onde vêm as idéias criativas? ............................................. Criatividade e matemática ................................................... Verdade absoluta e relativa ................................................. Beleza .................................................................................... Transcendência e não-localidade quântica.........................
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Brainstorming ........................................................................
7.
104 Quem cria?............................................................................. 107 Auto-referência ..................................................................... 112 Como o gato de Schrödinger torna-se o cão de Pavlov...... 115
8. Significado, mente e caos ........................................................ 118 Solucionando o problema do dualismo ............................... 121 8
A natureza quântica do pensamento ................................... Cognição é recognição ......................................................... Por que os objetos mentais da experiência são particulares ..................................................................... Caos na criatividade ............................................................. Dinâmica do caos .................................................................. A dança de Shiva .................................................................. As descobertas de Piaget sobre o desenvolvimento infantil .................................................................................... Os selves quântico/ criativo e clássico/ determinado......... A mente é cérebro? Dados empíricos ..................................
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9. A importância do processamento inconsciente ...................... A importância do processamento inconsciente .................. Criatividade e o experimento da fenda dupla .................... Processamento inconsciente e o quantum: dados ..............
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10. Propósito e liberdade na criatividade...................................... A deliberação da criatividade .............................................. Descontinuidade, propósito e liberdade.............................. O cosmo criativo e o propósito cósmico............................... Personalizando o propósito do universo .............................. Criatividade na liberdade e liberdade na criatividade ...... A criatividade quântica até agora........................................
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Part e 3 – O Encont ro Criat ivo ......................................... 163 11. O encontro criativo ................................................................... O self quântico e o ego ......................................................... O encontro no estágio preparatório: desestruturando........ Busca e entrega alternadas: transpiração e inspiração ...... O insight ah-ha ..................................................................... Um Big Bang ou muitos pequenos bangs? .......................... O encontro na manifestação.................................................
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12. Insight e processo na criatividade científica........................... Paradigmas e mudanças de paradigma .............................. O processo criativo na ciência.............................................. Exemplo histórico: Darwin ................................................... Exemplo histórico: Einstein e a relatividade ....................... Conversa com um jovem cientista .......................................
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13. Criatividade nas artes............................................................... Insight repentino e processamento inconsciente ............... Paradigmas e mudanças de paradigma nas artes .............. Originalidade nas artes ........................................................ A importância do processo ................................................... Exemplo histórico: Guernica, de Picasso.............................
201 202 204 206 209 211
14. O processo na criatividade interior ......................................... Preparação inicial.................................................................. Trabalho e incubação alternados: vontade e entrega ........ O encontro na criatividade interior ..................................... Mini-insights e grandes insights.......................................... Manifestação ......................................................................... Será que a criatividade interior termina com o despertar de buddhi? ............................................................ O processo na criatividade interior: um resumo ................. A criatividade interior conduz à libertação? .......................
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Part e 4 – Gênio? Ou Qual quer Um Pode Ser Criat ivo? ... 231 15. Será a criatividade uma questão de traços de personalidade? .......................................................................... O significado da pesquisa de MacKinnon........................... Pensamento divergente ........................................................ E o que dizer dos genes e do cérebro? ................................ Algumas observações conclusivas sobre teorias dos traços de personalidade........................................................ 16. Criatividade, condicionamento precoce e desenvolvimento....................................................................... Da universalidade ao indivíduo criativo.............................. Criatividade e nuança .......................................................... Transcendendo o conflito e a ambivalência ........................ Por que nem todos são criativos? A perspectiva do desenvolvimento ...................................................................
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17. Criatividade e o inconsciente .................................................. 251 Será que a criatividade é um impulso do inconsciente? .... 252 Impulsos psicológicos inconscientes como guias de nossas ações .......................................................................... 255 18. Acaso e sincronicidade na criatividade................................... 259 Quando Jane conhece Krishna: um encontro criativo ....... 262 10
PARTE 5 – PREPARAÇÃO PARA O SÉCULO XXI .............................. 269 19. Polarizações culturais ............................................................... 273 Criatividade no Oriente e no Ocidente ............................... 276 Integração .............................................................................. 277 20. Criatividade e você ................................................................... O ato de equilíbrio ................................................................ Quão aberto é o seu ego? ..................................................... Discussão sobre o questionário ............................................ 21. Despertando para o nosso potencial criativo: o que podemos fazer? ............................................................... Como você pode praticar a criatividade? ............................ A prática de uma mente aberta, percepção e sensibilidade .................................................... A prática da concentração.................................................... A prática da imaginação e do sonho ................................... Trabalhando com arquétipos................................................ Criatividade e loucura: trabalhando com o arquétipo da sombra ............................................................. Crise pessoal, ética criativa e a oportunidade de transformação........................................................................ A prática da ética .................................................................. A visão mutável da vida ....................................................... 22. Rumo a uma sociedade criativa ........................................... Ensinando criatividade nas escolas ..................................... Intuição, imaginação e inspiração ....................................... O papel dos professores........................................................ A barreira social contra a criatividade ................................ O propósito das ciências sociais ........................................... Criatividade na economia e nos negócios ........................... A sociedade ética .................................................................. Criatividade harmônica ........................................................ Para concluir .......................................................................... Apêndice ..........................................................................................
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Notas ................................................................................................ 347 Bibliografia ....................................................................................... 351 Índice remissivo ............................................................................... 363
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prefácio
Minha primeira experiência adulta com a criatividade ocorreu um ano depois de eu vir da Índia para a Western Reserve University, em Cleveland, Ohio, como instrutor e pesquisador pós-doutorado em física nuclear teórica. Trabalhava com afinco na pesquisa de um novo tipo de fenômeno interativo referente aos núcleos atômicos, mas sem nenhum êxito. Naquele dia, comentei com meu orientador minha enésima idéia sobre o assunto, mas ele simplesmente apontou brechas tão grandes que a vi se desmoronar, mesmo diante de meus olhos preconceituosos. Depois da conversa, fui para o “Hospício”, como chamávamos a lanchonete no porão. Estava a ponto de desistir quando a solução surgiu subitamente, com tanta clareza que não tive nenhuma dúvida de que estava certo. Corri para encontrar meu orientador que, imediatamente, viu o potencial de minha idéia. Ainda me lembro da confusão alegre em que passamos aquela tarde. Continuei minhas pesquisas em física nuclear por mais dez anos depois desse incidente, resolvi muitos problemas e escrevi alguns trabalhos científicos, mas a alegria daquele dia dava a impressão de fugir à minha compreensão. Aos poucos, tornei-me cético. Como a maioria dos meus colegas, supus que toda pesquisa científica é criativa, mas que a criatividade não é necessariamente agradável e que aqueles que descreviam tal alegria sem dúvida estavam exagerando. A minha experiência memorável foi, talvez, conseqüência da exuberância ingênua de um iniciante. Supus que o trabalho criativo trazia apenas a satisfação madura que sentia cada
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vez que alcançava êxito em solucionar um problema flexível ou quando escrevia outro trabalho para aprimorar minha carreira. Então, uma grande mudança de vida foi precipitada por um divórcio e a perda de uma bolsa de pesquisa, acompanhada por um novo casamento e o abandono da física nuclear. Escrevi um livro didático sobre física básica e, depois, outro, sobre a física da ficção científica. Em determinado momento, mudei meu campo de pesquisa para a interpretação da mecânica quântica. A mecânica quântica, o novo paradigma da física deste século, é usada principalmente para calcular o movimento de objetos submicroscópicos, como átomos, núcleos e partículas elementares, mas, na verdade, aplica-se a todos os objetos materiais. A mecânica quântica despontou no horizonte na década de 1920 e, desde então, essa nova física ameaça destronar a visão de mundo predominante da ciência que se baseia na idéia de que tudo que é real é feito de matéria – qualquer fenômeno que pareça imaterial é ilusório. Contudo, somos confrontados com paradoxos ao tentarmos explicar fenômenos quânticos enquanto nos baseamos no materialismo estrito. São esses paradoxos que me propus resolver. Depois de anos de incerteza e tentativas malogradas, uma noite, enquanto conversava com um amigo, percebi que a resolução dos paradoxos quânticos dependia do rompimento completo com o atual paradigma materialista, cujos alicerces a mecânica quântica danificou irremediavelmente. Um novo fundamento, composto pela idéia de que a consciência, e não a matéria, é a base do ser deu origem a uma ciência revigorada, capaz de explorar territórios novos e interessantes, muito além de suas antigas fronteiras. Também notei que essa descoberta iluminou-me com a mesma intensa alegria, talvez até mais intensa, que senti no “Hospício”. Conforme detalhava esse novo paradigma da ciência com base na consciência, percebi que elaborar uma abordagem integrada para a criatividade, uma abordagem que inspirasse e admitisse o empenho criativo de todos, teria fundamental importância para o novo paradigma. A criatividade é um fenômeno visto com suspeita pelos materialistas, já que, de acordo com eles, tudo que acontece neste momento tem relação causal com o passado e nada novo é verdadeiramente possível. Minhas experiências pessoais já tinham me mostrado o contrário. Portanto, acolhi o desafio de expor os limites do materialismo e transcendê-los. Logo depois conheci Leonora Cohen, cujo interesse especial de pesquisa era a criatividade. Nora e eu fundamos um grupo de pesqui-
sa sobre criatividade na Universidade de Oregon, onde trabalho, e começamos a fazer reuniões regulares. Pouco depois, um psicólogo comportamental, Shawn Boles, e um antropólogo, Richard Chaney, juntaram-se ao grupo que, maior, desfez-se um ou dois anos mais tarde, mas Nora, Shawn, Richard e eu formamos um vínculo que foi fortalecido quando assinamos um contrato para escrever um livro conjunto sobre criatividade. Embora o livro nunca tenha sido concluído, já que nossas diferenças de abordagem eram enormes para chegarmos a um consenso, essa colaboração ensinou-me muito sobre as teorias e dados existentes referentes ao fenômeno da criatividade. Shawn e eu estávamos de acordo quanto a um aspecto importante de lidar e classificar os diversos dados sobre criatividade: ambos achávamos que o trabalho criativo precisa ser classificado em duas categorias básicas: uma, mais próxima à solução de problemas, semelhante à invenção tecnológica, e outra, uma descoberta de verdades mais profundas. Muitas das diferenças de concepção na pesquisa sobre criatividade surgem porque as questões são abordadas por apenas uma das duas categorias de criatividade. Em determinado momento, também reconheci que o crescimento espiritual é uma criatividade “interna”, ao contrário da criatividade nas artes e nas ciências, que é “externa”. Enquanto isso, Nora organizou dois congressos de pesquisa sobre as teorias de criatividade e conheci muitos expoentes da área, além de presenciar a profunda divisão que há entre eles. Contudo, a elaboração de uma síntese completa das idéias divergentes sobre criatividade teve de esperar até que se criasse o novo paradigma, com base na consciência, e se escrevesse e publicasse o livro definitivo. Quando esse livro, O universo autoconsciente, foi para a gráfica, senti que finalmente estava livre para trabalhar na integração das diversas maneiras de pensar sobre criatividade e como a abordamos, tanto pessoal quanto socialmente. O presente livro é o resultado desse trabalho. Comecei esta obra com a visão nítida da necessidade de uma classificação adequada de todos os diversos fenômenos que são uniformemente rotulados de criatividade. Conforme o escrevia, também constatei a necessidade de enfatizar uma abordagem integrada para todos esses tipos de criatividade. Quando reconhecemos a consciência como o tema central do universo, fica claro que toda criatividade é subjetiva. De fato, ela é a tábua de salvação para a consciência. Dessa forma, começamos a ver que cada um dos tipos de criatividade tem um papel a desempenhar para que adotemos nosso potencial total. E,
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sim, vemos perfeitamente que a criatividade não se limita aos gênios; todos nós temos o potencial de ser criativos, em qualquer idade. Tradicionalmente, o Ocidente favorece a criatividade externa em relação à interna, e o Oriente, a interna em relação à externa. As antigas sociedades ignoravam a invenção como modo de atingir a mudança social; as sociedades atuais enfatizam a invenção até demais por causa de sua orientação consumista. Mas essa polarização nos impede de atingir nosso potencial total. Essas formas polarizadas de colher a criatividade não serão suficientes para cumprirmos as tarefas do próximo milênio. Por isso, o tema deste livro é a canção criativa, com todas as diversas harmonias enfatizadas. Quando entoamos a música da criatividade, usando a harmonia mais apropriada para as demandas de um determinado momento criativo, nossos versos individuais e simples passam a fazer parte do multiverso cósmico abrangente – o verso unido que denominamos universo. Além das pessoas já citadas que desempenharam um papel importante em minhas pesquisas, sou grato a Paul Ray, Howard Gruber, Kathy Juline, Robert Tompkins, Shawn Boles, Jean Burns e Ligia Dantes pela leitura criteriosa do manuscrito. Agradeço também a Ann Sterling, Michael Fox e Anna St. Clair pelos comentários produtivos. A ajuda de Don Ambrose, Joe Giove e Nan Robertson com as gravuras é incomensurável. Também quero agradecer aos amigos pelo apoio durante o árduo processo de redação: Geraldine e Ed Black, Mike Croan, Phil Gill, Suart Over, Joanne Crandall, Henry e Hope Swift, Tera St. Johyn, Larry e Janie Brown, Hugh e Ruth Harrison, para citar apenas alguns. Agradeço a todos vocês.
PARTE
1
UMA PERSPECTIVA INTEGRAL DA CRIATIVIDADE
“Bem-vindo à feira anual de ensino de criatividade”, diz o jovem no portão quando você entra. Lá dentro, há muitos prédios de diversos tamanhos. Será que cada um deles é uma escola para ensinar criatividade? Por que tantas escolas? Você pensa consigo mesmo: por que não dar uma olhada e ver se descobre alguma coisa? Sempre podemos aprender mais sobre criatividade. O primeiro prédio que desperta seu interesse parece uma igreja. Lá dentro, há uma pessoa sentada, um sacerdote, em serena contemplação. Quando ele abre os olhos, você lhe pergunta o que ele tem a ensinar sobre criatividade. Ele responde: “Não leciono criatividade. Como é possível lecionar algo novo, uma criação ex nihilo? Criatividade é como apanhar uma flor do paraíso, o jardim de Deus. É um dom divino concedido a alguns escolhidos. Ela vem da inspiração divina”. Você respeita a sinceridade dele e talvez ele tenha razão, mas a inspiração divina parece algo um pouco vago e ultrapassado como motivo para a criatividade nesta era científica em que vivemos. Você prossegue. O segundo prédio parece um parque de jogos computadorizados. Há muita gente jogando. Ora, você pensa, talvez eles tenham
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a idéia correta. Supõe-se que criatividade seja um jogo. Em resposta ao seu questionamento, alguém explica: “Criatividade é resolver problemas por meio da combinação de idéias antigas para criar algo novo e brilhante. Os computadores podem fazê-lo. Ao estudar como eles solucionam problemas de modo criativo, você aprende a melhor solucionar problemas e, assim, encontra a sua criatividade”. – Mas não sou um computador. Não sou feito de silício – você protesta. – Não importa. Nunca ouviu falar da máquina de Turing? Um computador é um dispositivo que processa vários algoritmos para obter um resultado final. O hardware não faz nenhuma diferença. O seu hardware é orgânico e chama-se cérebro. E daí? Você continua sendo uma máquina de Turing. Já escreveu algum poema na vida? – Sim, mas nenhum bom – você admite com alguma relutância. – Na verdade, isso é um dos motivos pelo qual estou aqui para aprender sobre criatividade. Talvez possa criar poemas melhores que receberão a merecida atenção, pelo menos da minha amada. – Bom, isto aqui é um poema criado por computador. O homem lhe entrega um poema escrito por Arthur (“Arthur significa tabulador automático de registros, mas pensador heuristicamente não confiável”, explica o professor). Você percebe que alguns dos primeiros versos originaram-se na mente de poetas famosos, mas os últimos parecem vagos e, conseqüentemente, marcantes: Houve uma época de galinhas-d’angola no Ocidente Houve uma época de luz do dia no topo da montanha Houve uma época em que Deus não era uma pergunta Houve uma época de poetas E eu surgi.* (Boden, 1990, p. 1)
– Não entendo os últimos versos, por isso devem ter um significado sutil. Presume-se que a poesia seja ambígua, então acho que isso está correto. Eu não sabia que os computadores podiam escrever poesia. Você está curioso. – Não só poesia – responde o professor, entusiasmado. – Os computadores podem desenhar como artistas humanos, resolver problemas * No original: There was a time shen moorhens in the west / There was a time when daylight on the top / There was a time when God was not a question / There was a time when poets / Then I came. [N. 18
do E.]
científicos, provar teoremas de geometria. Se isso não é criatividade, então o que é? Você está pronto para experimentar uma das máquinas, mas outro pensamento o detém: – A criatividade vem com ansiedade e êxtase, até eu sei disso. Nas poucas vezes em que fui criativo, havia muita ansiedade que culminou em um grande êxtase quando surgiu a idéia. Minhas experiências subjetivas foram cruciais para moldar o produto final. Mas se um computador é capaz de escrever um poema, ele sente essas emoções? Ele tem experiências subjetivas que orientarão o seu trabalho? E a intuição? – Lá vem você outra vez com o antigo argumento sobre emoções, sentimentos, intuição e tudo o mais. Esqueça a subjetividade! Uma teoria científica da criatividade tem de ser objetiva. Além disso, você já entrou dentro de um computador para saber se ele não sente ou não intui? Porém, essa resposta apenas o confunde emocionalmente, e você decide não fazer o treinamento desse professor. Pelo jeito, ele é ocupado demais para se preocupar. No próximo prédio, você fica surpreso com a falta de publicidade. Há um homem sentado à mesa. Se há outras pessoas por ali, elas não estão se fazendo notar. Depois de ouvir a sua experiência com o cientista de computadores, o homem diz: – Eu tenho uma perspectiva bem diferente. Não discordo de que exista um tipo de criatividade mecânica, mais objetiva, que denomino criatividade secundária. Mas a criatividade máxima, a primária, é subjetiva. Ela abrange o nosso self ou “eu” transpessoal (ver Maslow, 1968). Você o interrompe: – O que é self transpessoal? – É o self além do ego – responde o homem. – Como faço para encontrá-lo? Você está curioso. – Empreenda a jornada da auto-realização. Como posso explicar de um modo melhor? Fique aqui mais um pouco. Mas você lhe diz que não tem tempo: – Lamento, cara. Você chega, então, em um prédio cujo interior parece a tenda de um mágico. Cartas estranhas, que vagamente lembram as cartas do tarô, estão à mostra. – Posso ajudá-lo? – uma mulher pergunta. – Sim. Ouvi dizer que vocês lecionam criatividade – você responde.
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– Criatividade é mistério, é magia. Quem pode ensinar criatividade? Mas talvez a magia esteja dentro de você. Posso ajudá-lo a aprender a explorá-la. Na verdade, se você ficar aqui por algum tempo, garanto que aprenderá a magia de criar vibrações mentais que podem materializar qualquer coisa: um poema, uma escultura ou uma canção. Você pensa que já ouviu algo parecido antes. – Não foi Bishop Berkeley que disse algo mais ou menos assim? O som de uma árvore que cai na floresta permanece em potentia até que um observador se depara com a cena e tem a vibração mental, ouve o som da árvore caindo. A criatividade é assim? Em resposta à sua pergunta, a mulher demonstra impaciência. – Não é nada disso. Não fique filosofando, nem tente escapar usando chavões moderninhos. Não há explicação racional para a criatividade. É um mistério. Você torna-se parte do mistério e simplesmente o coloca em prática. Infelizmente, mistério demais sempre o mistifica e, assim, você cai fora. Mas não vai muito longe. Logo, um homem o detém. – O que está procurando, amigo? – ele pergunta. – Criatividade – você responde. – Essa busca é em vão, não vê? Você já é criativo, todas as suas ações são criativas. Tudo no mundo é um ato criativo. – Talvez. Mas pensar assim não é muito útil. Não me faz feliz. Alguns atos me fazem muito feliz, alegre e são esses que gosto de chamar de criativos. Quero aprender o truque de como praticá-los o tempo todo. – Você está sofrendo de uma grande ilusão. Está discriminando entre os atos ilusórios do mundo: isto é bom, isto é ruim; isto é criativo, isto não é. Se você não discriminar, encontrará a felicidade eterna. Pode ser, mas essa felicidade indiscriminada e perpétua não lhe interessa. Você se afasta e entra no próximo prédio. Logo uma mulher vem ao seu encontro e sorri. – Do que está fugindo? – ela pergunta. Você lhe conta sobre o último encontro que teve. – Há uma certa verdade nas alegações daquele homem. A criatividade é ilusória, tem de ser. – Por quê? – você a desafia. – Por quê? Por causa das leis de Newton, só por isso. Tudo é determinado pelas leis físicas que Newton descobriu. Não negamos que há uma aparência de criatividade no mundo, mas isso é porque alguns sistemas físicos são imprevisíveis. Eles reagem a pequenos gatilhos impossíveis de acompanhar. Nós os chamamos sistemas caóticos.
– Você está dizendo que os meus pensamentos criativos, minha ansiedade e meu êxtase são aparências, por que há um sistema caótico em meu cérebro que reage a pequenas nuances de modo supostamente imprevisível? E que, na verdade, todo o meu comportamento é determinado? – Sim – reponde a mulher com simplicidade e firmeza. Você sente-se um pouco desmoralizado. Se a criatividade é apenas aparência, por que se preocupar em continuar investigando-a? Bingo! A resposta surge em um prédio com uma faixa enorme: Química para melhorar a criatividade. Venha nos conhecer. – Nós lhe damos um comprimidinho, a pílula da criatividade. É a única contribuição otimista da ciência para as pesquisas sobre criatividade – proclama a pessoa no prédio. Mas você faz objeções: – Não posso crer que o objetivo da pesquisa científica sobre criatividade seja criar uma pílula que nos dê criatividade instantânea. Todos sabem que tem de haver certa agonia antes do êxtase criativo. – Bobagem. Isso está ultrapassado. Nada tem de ser doloroso para ser prazeroso. Você pode ter tudo e merecê-lo. Diga a si mesmo: eu mereço, e tome a pílula. Você verá. – Não gosto da idéia de tomar remédio – você responde, na tentativa de superar a tentação. – Você não passa de uma dança de átomos, meu amigo. Por que não acrescentar mais alguns para que a dança fique mais exótica? É isso que chamamos criatividade – o homem insiste. Mas você se recusa a tomar a pílula. Ao prosseguir, um cartaz chama sua atenção: Descubra se você é criativo: faça nosso teste. Do que se trata? As pessoas no estande mal podem esperar para que você faça o teste. – De todos os testes elaborados para diagnosticar criatividade, o nosso é o melhor – dizem, orgulhosos. – Não sei – você hesita. – Para mim, a criatividade não é uma doença que possa ser diagnosticada. – Não é isso. O que acontece é que você tem ou não os traços certos para a criatividade. Se você tiver os traços certos, poderá ser criativo. Caso contrário, azar seu. Por isso, faça o teste e fique livre da agonia. – E também ficarei livre do êxtase se o teste não for válido. Não, obrigado.
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No fundo, você tem medo de fazer o teste. Talvez mais tarde, quando ninguém estiver olhando, sorrateiramente você pegará um dos testes e o fará sozinho. No prédio seguinte, uma mulher mostra-se solidária: – Pobre alma, precisando ouvir todos esses mecanicistas e místicos! De uma forma ou de outra, os mecanicistas dizem que a criatividade não existe, porque todos nós somos máquinas mecânicas e determinadas. Quanto aos místicos, ou mistificam a criatividade ou a tratam e a tudo mais no mundo como preocupações ilusórias, resultantes da ignorância. Felizmente, há um meio melhor. Agora você está atento para escutar. Talvez tenha encontrado o seu destino, o fim da sua busca, o oásis no deserto. A mulher continua a explicar: – A resposta é o holismo. Sem dúvida, os místicos têm alguma razão quando dizem que a criatividade é um mistério. É impossível dissecá-la em programas de computador que nos mostrem o como. Entretanto, dizer que o mistério está além de nosso controle e predição material é igualmente falso. A criatividade é um fenômeno holístico. – O que isso quer dizer? – você pergunta, intrigado com as palavras dela. – Estamos procurando um princípio organizador responsável por todo o comportamento criativo na natureza, inclusive o nosso. Como pode ver, este prédio está vazio, com exceção de alguns papéis de posição preliminar. Ainda não estamos lecionando. Quando encontrarmos o princípio organizador, começaremos a ensinar em grande estilo – promete, com um sorriso largo. É fácil falar sobre princípios organizadores, mas encontrá-los é outra história, você queixa-se a si mesmo e expressa a sua preocupação: – Não entendo esse princípio organizador. Vocês são vagos demais! Apenas o pessoal dos computadores e, talvez, os teóricos do caos parecem ter algo concreto a me dizer. O resto é só papo, sem nenhum embasamento. A mulher o encara e recita: Dizem que você é uma máquina clássica, seu self , uma miragem; você não tem liberdade, nenhum objetivo de ser, nenhuma transcendência. A sua criatividade é comportamental – simples condicionamento pavloviano.
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Você não tem circuitos cerebrais especiais? Sem eles, está perdido. Não acredita? Então a criatividade deve ser acaso ou, talvez, caos. Você é uma máquina caótica criativa. E aí, isso lhe parece melhor?
De repente, ela se conecta com você, que sorri timidamente: – Entendo a sua idéia. Não estou dizendo que sou uma máquina computadorizada, nem caótica. Mas seria melhor se tivesse algo concreto a oferecer – você murmura, desculpando-se. – Paciência – diz a mulher, desejando-lhe boa sorte. De repente, diante de você, surgem dois cavalheiros teutônicos. Provavelmente, você estava absorto em pensamentos e, sem perceber, entrou em outro prédio. Por que não? – Qual é a sua idéia de criatividade? – você pergunta aos dois homens. – Criatividade é um transbordamento do inconsciente. Da Vinci reprime a memória da mãe e de seu sorriso. Então, do seu pincel, surge a Mona Lisa com o famoso sorriso – responde um dos homens. – Não é nada disso – refuta o outro. A criatividade é o dom do inconsciente coletivo que transcende nosso inconsciente pessoal de memórias reprimidas.1 – Mas o que é inconsciente? Como sabemos que temos um inconsciente? – você pergunta, sem um pingo de escárnio. – É difícil explicar aqui. Talvez o seu psiquiatra lhe dê uma explicação. – E me cobrará uma fortuna! Não, obrigado – você diz entre dentes e afasta-se. Eu o detenho na saída: – Você parece decepcionado – comento. – E como poderia não estar? – você pergunta. – A maioria das pessoas ali que tocou meu coração dava a impressão de ser tão vaga sobre o que é criatividade – dom de Deus, princípio organizador, inconsciente. Não tenho certeza se alguém sabe o que essas coisas significam. Claro, confesso que tive medo de fazer o teste, mas não creio que a minha criatividade depende de como respondo a um questionário! Só as pessoas do computador deram a entender que tinham algo concreto sobre criatividade. Mostraram-me coisas sedutoras para o cérebro, mas crer que a arte computadorizada é criativa e, por conseguinte, que somos computadores é demais! E as experiências sub jetivas? Se nada significam, como é que algo que alguém diz pode me
E D A D I V I T A I R C A D L A R G E T N I A V I T C E P S R E P A M U
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A C I T N Â U Q E D A D I V I T A I R C
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ajudar a ser criativo? Pelo jeito, ninguém tinha uma perspectiva integral da criatividade. Um outro disse que não passamos de uma dança de átomos. – Quem quer dançar com os lobos não é uma mera dança de átomos – comento. A sua intuição está certa. Não temos de sucumbir aos computadores apenas porque os cientistas de informática são os únicos que até agora criaram modelos concretos de criatividade. A criatividade de que eles falam é apenas uma pálida versão da verdadeira. Usam uma lente muito estreita para ver o esplendor da criatividade. É preciso olhar por uma abertura maior, por uma nova visão de mundo que a física quântica nos dá, para encontrar a criatividade integral. – Como sabe? – você pergunta, esperançoso. – Leia meu livro e descubra – respondo.