FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO
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ÉH SARAIVA
FRANCISCO DE ASSIS TO LE D O Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro e Coordenador das Comissões de Reforma Penal de 1984. Professor visitante da Universidade de Brasília. '
S1SB1/UFU
íYiON , S./ u 3 . a T
1000229211
p r in c íp io s b á s ic o s
DE DIREITO PENAL
5? edição 1994
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WÊÊÊ e d it o r a
■ sA R A I V A
SISBI/UFU
3 ) 229211 ISBN 85-02-00785-8 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Toledo, Francisco de Assis, 1 9 2 8 Princípios básicos de direito penal : de acordo com a Lei n. 7 .2 0 9 , de 1 1 -7 -1 9 8 4 e com a Constituição Federal de 1 9 8 8 / Francisco de Assis Toledo. 5. ed. — São Paulo : Saraiva, 1 9 9 4 . Bibliografia. 1. Direito penal 2. Direito penal - Brasil I. Título. 9 3 -3 5 3 6
C D U -3 4 3 índices para catálogo sistemático:
1. Direito penal
343
__________________ -4219__________ editora
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Dedico esta obra à minha esposa Neuza.
Nota a 4a edição
A presente edição apresenta-se atualizada frente ao novo texto constitucional e recebeu alguns acréscimos, para esse fim, bem como para suprir omissão das edições anteriores, no tocante ao concurso aparente de normas e de leis penais e ao estudo da causalidade nos crimes de ação e de omissão. Houve, igualmente, outros pequenos retoques de atualização facil mente perceptíveis pelo leitor. O Autor Brasília, agosto de 1990
VII
Nota à 3 a edição
A rapidez com que se esgotou a 2.a edição desta obra e sua ado ção em alguns cursos, tomando aconselhável, ao ver da Editora, a imediata reedição, são as causas que nos impedem, por ora, de in troduzir acréscimos no texto, sobretudo quanto à bibliografia que se seguiu à edição da reforma penal. Esperamos poder realizar esse intento no futuro. Desejamos, contudo, aqui registrar profunda preocupação pelo recrudescimento, no país, de certa tendência para transformar o nos so ordenamento jurídico-penal em algo parecido com o direito penal “equivocado” de que falavam Radbruch e Gwinner, espécie de panacéia para todos os males de uma sociedade em transformação. Não se deve esquecer, já o dissemos, que pretender-se combater a criminalidade contemporânea com a edição de leis novas mais se veras eqüivale a desconsiderar ou a desconhecer o estágio atual das investigações criminológicas segundo as quais o fenômeno do crime é efeito de muitas causas, pelo que não se deixa vencer por armas exclusivamente jurídico-penais. A lei penal mais repressiva, com penas cruéis, já foi utilizada, aqui e alhures, mas contraditoriamente deu como resultado novos tipos de crime, como ocorreu com o gangsterismo por ocasião da lei seca, com a criminalidade profissional na Idade Média, com o mer cado negro durante os tabelamentos de preço, apesar das punições estabelecidas. É um círculo vicioso interminável. No Brasil, não faz muito, tivemos o exemplo da criminalidade política violenta, a despeito da extrema rigidez de textos já revoga dos da denominada Lei de Segurança Nacional. Atenuada esta e IX
abolidos inúmeros dos crimes então tipificados, aquela forma de ma nifestação criminal tendeu a desaparecer ante a simples alteração do quadro político brasileiro. Tais leis severas, responsáveis diretas pelo surgimento de uma ousadia e engenhosidade sem precedentes de seus infratores, deixaram, porém, como resíduo, o aprendizado em modalidades até então inusitadas de atentados ao patrimônio e às pessoas, de que se servem hoje — ao que parece com grande aproveitamento — nossos primitivamente bisonhos delinqüentes co muns. Uma análise desse quadro histórico parece indicar-nos que a situação atual do país — realmente preocupante sob o aspecto da ausência de efetiva inibição dos crimes de ação violenta, devido à carência de recursos humanos e materiais dos órgãos de prevenção e repressão — poderá ser pior em futuro próximo se, ao invés de ado tarmos uma estratégia pragmática, ampla e abrangente de controle do fenômeno do crime, persistirmos na repetição enfadonha de sur rados e envelhecidos refrões que já se revelaram seguramente ina dequados. O problema — assim pensamos — não reside na questão de ser ou não ser benevolente com o crime (ninguém razoavelmente po deria sê-lo), mas de saber como contê-lo dentro de limites social mente toleráveis, de modo sério e verdadeiramente eficiente. Sem retóricas que a nada têm conduzido. Sem leis que ficam no papel e não são executadas. Sem as sentenças que não são cumpridas, pelas razões mencionadas ou por falta de estabelecimentos penais apropriados. Por último, sem penas eternas, postas em confronto com a duração média da vida humana, que tomem irrealizáveis a disciplina nos presídios e o trabalho do Estado em prol da emenda do delinqüente. O Autor Brasília, agosto de 1986
X
Nota à 2.a edição
Esta edição, em confronto com a anterior, apresenta-se inteira mente revista e ampliada, além de oferecer seqüência de matérias mais adequada ao ensino jurídico. Com isso, o que antes era um livro de “princípios básicos”, adquire agora a fisionomia de introdução ao moderno direito penal. Assim o esperamos. Foi esse o nosso desejo. O texto ajustou-se à nova Parte Geral, em vigor desde janeiro de 1985, o que nos foi facilitado pela coincidência entre algumas das idéias por nós defendidas e as adotadas pela reforma penal bra sileira, a respeito da qual oferecemos esboço histórico. Uma coisa, porém, permanece constante na obra, nesta como na primeira edição. O homem que ela considera para o estudo do direito penal não é o homem segundo Descartes, mas sim o homem segundo Pascal, a cujo respeito assim se expressa Émile Bréhier: “L’homme, tel qu’il ressort des méditations de Descartes, est un homme construit méthodiquement par une addition de parties, la pensée d’abord, puis l’âme unie au corps et les passions. L’homme des Pensées de Pascal, c’est 1’honime de la destinée, jeté dans un coin perdu de 1’univers, avec sa grandeur et sa misère, problème pour lui-même” 1. O Autor
1.
Les thèmes actuels de la philosophie, p. 28.
índice Geral Nota
à 4 “ edição ................................................................................................
VII
Nota
à 3.“ edição ...................................................... .........................................
IX
Nota
à 2.“ edição ................................................................................................
XI
I — Ordenamento jurídico e ciência penal ................................................ § 1.° Conceito de direito penal .......................................................... §
2.° Missão e limites do direito penal ............................................. a) Non omne quod licet honestum est ................................... b) O bem jurídico protegido ...................................................
§ 3.° Princípio da legalidade ou da reserva legal e seus desdo bramentos ........................................................................................ a) Lex praevia (exigência de lei anterior). Decreto-lei e Me dida Provisória ...................................................................... b) Lex scripta (hipóteses de exclusão e de admissibilidade dos costumes) ........................................................................ c) Lex stricta (exclusão e admissibilidade da analogia) d) Lex certa ............................................................................... § 4.” Vigência da lei penal no tempo (princípios de direito pe nal intertemporal) ......................................................................... a) Lex gravior. Irretroatividade absoluta ............................. b) Tempo do crime para fixação da lei aplicável ............. c) Abolitio criminis ................................................................... d) Lex mitior ............................................. ............................ e) Combinação de leis (lex tertia) , ....................................... f) Normas de direito processual penal e de execução . . . g) Medidas de segurança ......................................................... h) Problemas particulares de direito intertemporal ............ § 5.° Vigência da lei penal no espaço (princípios de direito pe nal internacional) .......................................................................... a) Princípio da territorialidade. Território nacional. Prin cípio do pavilhão ou da bandeira b) Princípio da personalidade (ou da nacionalidade) ...... c) Princípio da defesa (ou real) .............................................. d) Princípio da universalidade (ou dajustiça universal) .. e) Lugar do crime ....................................... ........................
1 1 6 8 15 21 23 25 26 29 30 31 32 34 35 36 39 40 42 45 45 47 47 48 48
XIII
§ 6 ° Concurso aparente de normas oude leis penais .................... a) Lex specialis derogat legi gen erali................................... b) Lex primaria derogat legi subsidiariae ............................... c) Lex consumens derogat legi consumptae ...................... d) Antefato e pós-fato impuníveis .......................................
50 51 51 52 54
§ 7.° O Código Penal brasileiro. Evolução histórica ..................... a) Direito penal indígena e Ordenações do Reino. Livro V das Ordenações Filipinas..................................................... b) O Código Criminal do Império (1830) ........................... c) O Código Penal Republicano (1890) e a Consolidação das Leis Penais (1932) ....................................................... d) O Código Penal de 1940 ..................................................... e) A Reforma Penal de 1984 ..................................................
55 55 57 60 62 66
II — O fato-crime ............................................................................................
79
§ 8.° Conceito de crime. Elementos.....................................................
79
III — O injusto típico ........................................................................................
90
§ 9° A ação humana ............................................................................ a) Teoria causai da ação .......................................................... b) Teoria finalista da ação ...................................................... c) Teoria “social” da ação ...................................................... d) Teoria jurídico-penal da ação ............................................ e) O nexo de causalidade ........................................................ f) Causalidade nos crimes de ação e resultado ................... g) Causalidade nos crimes de omissão ..................................
90 93 .95 103 105 110 112 116
§ 10. Tipicidade ...................................................................................... a) Injusto. Conceito. Injusto e ilicitude. Tipo de injusto e tipo legal ........................................................................... b) Tipo. Tipo legal. Tipo permissivo ................................ c) Princípio da adequação social ............................................ d) Princípio da insignificância ................................................ e) Algumas variações no conceito de tipo. Tipo em sentido amplo. O Tatbestand. Tipo objetivo. Tipo total de in justo. Tipos abertos e tipos fechados ........................... f) O tipo legal de crime. Estrutura. Tipo fundamental e tipos derivados ..................................................................... g) Denominações mais freqüentes das várias espécies de crimes .................................................................................... h) O tipo legal de crime. Elementos. Elementos objetivos e subjetivos. Elementos normativos. Elementos estranhos ao tipo. Condições de punibilidade e de procedibilidade. Escusas absolutórias ou causas pessoais de exclusão de pena .......................................................................................
119
XIV
119 126 131 133 134 137 140
152
r
§
11. Ilicitude ......................................................................................... a) A questão terminológica e areformapenal ...................... b) Ilicitude formal e material.Conceito deilicitude .......... c) Concepção unitária ................................................................ d) Ilicitude penal e extrapenal ..........................................
159 159 161 162 165
§ 12. Causas de exclusão da ilicitude .......................................... a) Tipo e ilicitude. As causas justificativas e a reforma penal. Causas legais e supralegais .................................... b) A terminologia. Elementos objetivos e subjetivos ........
167 167 173
§
175
1
§
§ j
j
13. O estado de necessidade ........................................................... a) Estado de necessidade. Conceito. Estado de necessidade defensivo e estado de necessidade agressivo .................. b) Estado de necessidade justificante e estado de necessida de exculpante. Teoria unitária e teoria diferenciadora. O direito legislado brasileiro .................................................. c) O estado de necessidade justificante. Requisitos. Con ceito de perigo atual e de dano. Provocação dolosa e culposa do perigo. Inevitabilidade da lesão. Conflito de bens e deveres ........................................................................ d) Estado de necessidade de direito civil ........................... 14. A legítima defesa ......................................................................... a) Conceito de legítima defesa. Requisitos essenciais . . . . b) A ação agressiva e a reação defensiva. Características. Agressão de inimputáveis. Provocação do agente. Aberratio ictus ................................................................................ c) O direito defendido: vida, liberdade, patrimônio, honra etc. Bens do Estado e das pessoas jurídicas de direito público .................................................................................... d) Necessidade dos meios utilizados. Princípio da propor cionalidade. A moderação .................................................. e) O elemento subjetivo. Animusdejendendi ........................ f) Ofendículas. Emprego de animais e engenhos mortíferos na defesa da propriedade ........... ...................................... g) Legítima defesa putativa e excesso de legítima defesa exculpante. Excesso resultante de casofortuito ................ h) Excesso de legítima defesa. Excesso doloso e excesso culposo ....................................................................................
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15. Outras causas de exclusão da ilicitude. Estrito cumprimento de dever legal. Exercício regular de direito. Consentimento do ofendido ................................................................................... 211 a) Estrito cumprimento de dever legal. Requisitos. Excesso. Abuso de autoridade ............................................................ 211 b) Exercício regular de direito ........................■:..................... 213 c) Consentimento do ofendido ........................................................... 214
XV
IV — Culpabilidade
...........................................................................................
§ 16. Noção e evolução da idéia da culpabilidade. Culpabilidade por fato doloso ......................................................................... a) Nullum crimen sine culpa ............................................. b) Concepção psicológica da culpabilidade ...................... c) Concepção normativa da culpabilidade ....................... d) Concepção da culpabilidade na doutrina finalista ... e) Culpabilidade de autor. Culpabilidade do caráter. Cul pabilidade pela conduta de vida. Culpabilidade pela de cisão de vida. Culpabilidade da personalidade ou da pessoa ................................................................................. f) Culpabilidade e liberdade. O poder-de-outro-modo ... g) Culpabilidade pelo fato. Direito penal do fato .......... § 17. Culpabilidade e a problemática do erro. A consciência da ilicitude. Falta de consciência da ilicitude e ignorância da lei. Erro de tipo e erro de proibição ................................. a) Culpabilidade normativa e erro ..................................... b) A consciência da ilicitude (ou da antijuridicidade) . . . . c) Falta de consciência da ilicitude e ignorância da lei .. d) Erro de tipo, erro de proibição .................................... e) Erro de tipo essencial e acidental ................................. f) Erro de proibição escusável, só quando inevitável . . . . g) Descriminantes putativas ................................................. h) O erro na reforma penal. Teorias do dolo e teorias da culpabilidade. Teorias extremadas e teorias limitadas. Opção do legislador brasileiro .....................................
216 216 217 219 222 224
233 242 250
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§ 18. A culpa em sentido estrito .................................................... 288. a) Culpabilidade por fato culposo. A problemática da culpa em sentido estrito (negligência, imprudência eimperícia) 288 b) Princípio da confiança. Culpa consciente e dolo even tual. Culpa inconsciente, caso fortuito erisco tolerado 301 c) Voluntariedade na causa. Co-autoria em crime culposo. A tentativa ......................................................................... 304 d) Versari in re illicita. Responsabilidade penal pelo resul tado. Crimes qualificados pelo resultado 307 § 19. Causas de exclusão da culpabilidade .................................. a) Imputabilidade e inimputabilidade ............................. b) Inexigibilidade de outra conduta .................................. c) Estado de necessidade exculpante ................................. d) Excesso de legítima defesa exculpante ...................... e) A emoção e a paixão ..................................................... f) Coação irresistível, caso fortuito e força maior ........ g) Erro de proibição. Descriminantes putativas. Obediência hierárquica ........................................................................ Bibliografia
...........................................................................................................
Índice alfabético de matérias ......................................................................
XVI
310 312 327 329 330 337 338 342 345 353
I — Ordenamento jurídico e ciência penal
§ 1.° Conceito de direito penal 1. Quando se fala em direito penal pensa-se logo em fatos humanos classificados como delitos; pensa-se, igualmente, nos res ponsáveis por esses fatos — os criminosos — e, ainda, na especial forma de conseqüências jurídicas que lhes estão reservadas — a pena criminal e a medida de segurança. Sob esse ângulo, o direito penal é realmente aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispõe • "sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medi das de segurança a serem aplicadas1. Usa-se também a expressão como sinônimo de “ciência penal” 2. No último sentido, direito penal é um conjunto de conhecimentos
1. “Direito penal é aquela parte do ordenamento jurídico que fixa as características da ação criminosa, vinculando-lhe penas ou medidas de segu rança” (Welzel, Das deutsche Strafrecht, p. 1). “Direito penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado., associando ao delito, como pressuposto, a pena como conseqüência” (Mezger, Tratado de derecho penal, v. 1, p. 3 ). “Costuma-se definir o direito penal como o conjunto das noTmas jurídicas nas quais, para o crime como pressu posto, são previstas penas e/ou medidas de correção ou de segurança, como conseqüência jurídica” (Bockelmann, Strafrecht, AT, p. 1). Consultem-se, ainda: Wessels, Direito penal, p. 5; Aníbal Bruno, Direito penal, t. 1, p. 11-2 etc. 2. V. Bettiol, Diritto penale, p. 51; Basileu Garcia, Instituições de di reito penal, v. 1, t. 1, p. 9.
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e princípios, ordenados metodicamente, de modo a tomar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos ocorrentes, segundo critérios rigorosos de justiça, é , assim, a ciência penal uma “ciência prática”, como ensina Welzel, não apenas porque se põe a serviço da administração da justiça (Rechispflege) , mas com significado mais profundo, por ser uma teoria do agir humano justo e injusto 3. Com esse sentido, atribui-se à ciência penal uma fun ção criadora, não se limitando ela a repetir as palavras da lei ou a traduzir-lhes o sentido estático, ou a vontade histórica do legislador. Em nosso livro O erro no direito penal ressaltamos, em mais de uma passagem, essa importante função da ciência penal (Prefácio, p. VII; p. 43 etc.)4.
3. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 1. 4. Santiago Mix Puig, em comunicação ao “Coloquio Regional de la Asociación Internacional de Derecho Penal” ( Madrid-lPlasencia, 19/22 out. 1977), conclui, a respeito desse mesmo tema: “1.°) Una ciência penal reconocidamente valorativa y esencialmente crítica, que no rehuya su innegable responsabilidad política, implica una doble exigencia: a) de lege ferenda: una política criminal auténticamente política — y no sólo tecnocrática — que fije los objetivos que debe perseguir el derecho penal, con la consiguiente apertura a su posibilidad de crítica; b) de lege lata: una dogmática crèadora esencialmente orientada en el sentido de las finalidades político-criminales de la ley, que no sólo constituya la superación de una dogmática ‘ciega’, de espaldas a la realidad, sino también la evitación de una dogmática acrítica y puramente ‘técnica’. 2.°) Una dogmática que pretenda ser realista ha de empezar por admitir que unicamente será válida si sirve adecuadamente a la finalidad de aplicación de la ley, postulado que le impone un caráter fun damentalmente práctico (de ‘ciência aplicada’). Esta ooncepción de la dog mática conduce a situar en el centro del interés del penalista Ia resolución de casos prácticos. Se trata de una perspectiva a veces olvidada por la ‘ciên cia de profesores’ en contraposición al ‘derecho del caso’ característico de los países del âmbito anglosajón. Por fortuna, las diferencias intentan aminorarse y tras la 2.a Guerra Mundial el país más tipicamente ‘teórico’, Alemania, ha experimentado una clara aproximación al caso práctico. Probablemente influyó en ello el contacto de los juristas alemanes de la postguerra con el derecho anglosajón de ocupación. Lo cierto es que desde hace algunos anos se ha abierto paso una importante corriente metodológica que, acertadamente, centra su atención en el proceso de aplicación de Ia ley a la realidad y ca racteriza a la dogmática como ciência que persigue la decisión de casos. Y, en efecto, si — como quiere Habermas — todo conocimiento se halla presidido por un interés, el específico interés que debe guiar al conocimiento jurídico es el ‘interés de la decisión’ ” ( Dogmática crèadora y política criminal).
2
I
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2. A característica do ordenamento jurídico penal que primeiro salta aos olhos é a sua finalidade preventiva: antes de punir, ou com o punir, quer evitar o crime. Com razão assinala Radbruch: “ . . .im porta não esquecer que o direito não pretende somente julgar a conduta humana; pretende também determiná-la em harmonia com os seus preceitos e impedir toda a conduta contrária a eles” 5. Com efeito, por meio da elaboração dos tipos delitivos — modelos de comportamento humano — revela o legislador penal, de modo nítido e visível, aos que estejam submetidos às leis do País aquilo que lhes é vigorosamente vedado fazer ou deixar de fazer (exemplo: homicídio — CP, art. 121; omissão de socorro — CP, art. 135). Por outro lado, por meio da cominação de penas, para o comportamento tipificado como ilícito penal, visa o legislador atingir o sentimento de temor (intimidação) ou o sentimento ético das pessoas, a fim de que seja evitada a conduta proibida (prevenção geral). Falhando essa ameaça, ou esse apelo, transforma-se a pena abstratamente cominada, com a sentença criminal, em realidade concreta, e passa, na fase de execução, a atuar sobre a pessoa do condenado, ensejan do sua possível emenda ou efetiva neutralização (prevenção especial). Prevenção geral e especial são, pois, conceitos que se completam. E, ainda que isto possa parecer incoerente, não excluem o necessário caráter retributivo da pena criminal no momento de sua aplicação, pois não se pode negar que penafcominadà não é igual a pena con cretizada, e que esta última é realmente pena da culpabilidade e mais tudo isto: verdadeira expiação, meio de neutralização da atividade criminosa potencial ou, ainda, ensejo para recuperação, se possível, do delinqüente, possibilitando o seu retorno à convivência pacífica na comunidade dos homens livres 6.
5. Filosofia do direito, p. 105. 6. Claus Roxin (Problemas básicos del derecho penal, p. 20), embora com conclusões diferentes, põe em destaque, neste tópico, de modo correto, a problemática dos fins da pena: “Nuestro punto de partida es que el Derecho penal se enfrenta al individuo de tres maneras: amenazando con, imponiendo y ejecutando penas, y que esas tres esferas de actividad estatal necesitan de justificación cada una por separado. En este punto hay que tener ciertamente en cuenta que los distintos estádios de la realización del Derecho penal se estructuran unos sobre otros y que, por tanto, cada etapa seguiente ha de acoger en sí los princípios de la precedente. La necesidad de esá consideración gradual se ha hecho patente ya en la breve, ojeada que hemos dado. Cada una de las teorias de la pena dirige su mirada unilateralmente a 3
3. Falávamos sobre o caráter preventivo do ordenamento jurí dico penal. Convém a propósito acrescentar que, sob este aspecto, o direito penal é mais eficaz e bem menos romântico do que se tem, por vezes, erroneamente pensado. É que, a nosso ver, os tipos legais de crime constituem verdadeira autorização primária para que o Es tado possa intervir em certas áreas reservadas, na esfera da liberdade individual. Assim, a atuação dos órgãos estatais, na prevenção e repressão do crime, encontra apoio primário na tipificação legal dos delitos, fora do que, no Estado de Direito, tal intromissão, na esfera da liberdade e dos direitos individuais, encontraria muitas limitações. Essa constatação conduz a esta outra: a cominação legal de penas projeta-se e toma-se visível, no ambiente social, por intermédio de entidades, órgãos e pessoas, cuja presença, em cada ponto do terri tório nacional, representa, aos olhos de todos e de cada um, a real e palpável possibilidade de aplicação dá pena criminal ao agente de um fato-crime. É possível que a grande maioria dos criminosos potenciais não deixe de levar a cabo os seus intentos ilícitos ou de dar vasão a seus impulsos, diante da simples previsão legal da pena. Não menos pro vável, porém, é que bom número deles deixe de concretizar o pro jeto criminoso, ou se iniba, diante de um guarda ou do policiamento ostensivo em local próximo ao daquele em que seria cometido o cri me, o que, segundo assinalamos, não deixa de ser conseqüência da previsão legal da pena. Se, de um lado, não se deve generalizar a eficácia do caráter intimidativo-pedagógico da pena, pela simples existência da comina ção legal, de outro, parece-nos igualmente irrealístico deixar de ad mitir que a prevenção geral do crime, por meio da elaboração dos determinados aspectos del Derecho penal — la teoria preventivo-especial a la ejecución, la idea de la retribución a la sentencia, y la concepción preventivogeneral al fin de las conminaciones penales — y desatiende a las demás for mas de aparición de la potestad penal, aunque cada una de ellas Ueve consigo intervenciones específicas en la libettad del individuo. Como hemos visto, queda fuera del campo visual de todas las teorias de la pena, el comprender que todos los parágrafos, que de momento sólo están sobre el papel, ya requieren una legitimación suficiente aparte de la voluntad subjetiva del legislador. Y sin embargo está claro que, tanto la sentencia como el sistema penitenciário mejor y más progresivo carecen de sentido si, a causa de la legislacíón penal, se les someten hombres sobre los que pesa injustamente la mácula de delincuentes”. 4
tipos e da cominação das penas, é algo, do ponto de vista do Estado e do indivíduo, bem mais concreto do que meros artigos de lei colo cados sobre o papel. É, com efeito, uma autorização para agir, passada em favor dos órgãos estatais; é, em suma, ameaça bem real que se exterioriza e se prolonga, no meio social e comunitário, pela presença física e atuante dos vários organismos empenhados na persecutio criminis. Com o que ficou dito, toma-se consciência de um importante desdobramento do direito penal, como instrumento eficaz de pre venção do crime. Não se deve, entretanto, supervalorizar sua apti dão nesta área. O crime é um fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídico-penais. Em grave equívoco incorrem, freqüentemente, a opinião pública, os responsáveis pela Administração e o próprio legislador, quando su põem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da crimina lidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, ape sar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, freqüentemente, a operar ou como importante fator criminógeno 7, ou como intolerável meio de opressão. Isso nos leva a ter que dedicar algumas linhas ao intricado tema: a missão e os limites do direito penal.
7. Esse é um mal que vem de longe, tendo sido identificado por Radbruch e Gwinner na Idade Média: “Los proscritos llegaron a ser el núcleo central de la criminalidad profesional. Ya en los comienzos de la criminalidad profesional existia un Derecho Penal equivocado, productor de criminalidad. . . ” ( Historia de la criminalidad, p. 104).
§ 2.° Missão e limites do direito penal 4. Quando se diz que “a tarefa do direito penal é a luta con tra o crime” afirma-se algo verdadeiro, conforme admitimos linhas atrás. Todavia, não se pode dizer que essa missão seja exclusiva do direito penal. Pelo menos na luta preventiva contra o crime estão (ou deveriam estar) envolvidos, cada um a seu modo, impor tantes setores da vida comunitária: família, escola, órgãos assisten ciais, sobretudo os de proteção ao menor etc. Há que se investi gar, portanto, qual a tarefa específica do direito penal, dentro da quele objetivo amplo, o que implica a necessidade de colocação de metas mais restritas. Os autores não coincidem perfeitamente a respeito dessa colo cação e delimitação de objetivos. Bettiol, para quem o direito penal deve estar orientado “para a idéia suprema da retribuição justa” e que por isso “só pode ser um direito penal de fundo nitidamente ético” 2, considera objetivo fundamental da norma penal a tutela de bens, valores e interesses, para além dos quais inexistiria tutela pos sível, bem como norma penal3. Welzel acentua a “função ético-
1. Maurach, Deutsch.es Strafrecht, AT, p. 55. No mesmo sentido Aní bal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 11-2. 2. Diritto penale, cit., p. 179. 3. Diritto penale, cit., p. 180. Note-se que, para o penalista citado, é sempre o Estado que se leva em consideração quando se trata de interesses 6
social” e, partindo da distinção entre “valor do resultado” e “valor da ação” (pode-se valorar, por exemplo, o trabalho por seu produto material, pela obra que produz — valor do resultado — mas pode ele ser igualmente valorado como tal, isto é, independentemente do seu produto — valor da ação), diz que a tarefa do direito penal é a proteção dos elementares valores ético-sociais da ação e só por extensão a proteção de bens jurídicos 4. Afirma, entretanto, o ilustre penalista — isto nos parece de grande importância — o caráter fragmentário, limitado, dessa proteção, já ressaltado anteriormente por Binding e H. Mayer 5. Engisch parece aproximar-se dessa última colocação, neste tópico: “O direito em geral e o direito penal em particular já se nos não apresentam somente como proteção de inte resses e decisão de conflitos de interesses, mas também como porta dores de um pensamento ético. O desvalor jurídico de delitos tais como o perjúrio, o incesto, a homossexualidade, o lenocínio, a rufiania e também a receptação não se esgota no fato de serem lesados ‘interesses merecedores de tutela’ rigorosamente determinados, mas assenta também na circunstância de estes delitos abalarem a ordem moral que o direito é chamado a consolidar. Neste sentido, por exemplo, H. Mayer, que no seu Lehrbuch des Strafrechts (1953, p. 50), diz certeiramente: ‘O crime é violação de bens jurídicos, mas, para além disso, é violação intolerável da ordem moral’ ” 6. Com visão algo diferente, Jescheck enxerga no direito penal um ordenamento de proteção e de paz para as mais essenciais relações humanas, por isso que a sua tarefa “é a proteção da vida comuni tária do homem, na sociedade” 7. Com orientação idêntica Wessels, que também fala em proteção dos valores elementares da vida comu nitária e na manutenção da paz social8. Nessa brevíssima resenha, três notas se destacam: a) o fundo ético do ordenamento penal; b) o seu caráter limitado, ou fragmen tário; c) o estar dirigido para a proteção de algo. Comecemos pelo exame conjunto das duas primeiras questões. penalmente tutelados. Se a norma penal tutela interesses individuais e sociais é porque o Estado assume como próprios tais interesses, no momento da tutela penal (p. 181). 4.. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 4-5. 5. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 6. 6. Introdução ao pensamento jurídico, p. 154-5. 7. Lehrbuch des Strafrechts, AT,p. 1. 8. Direito penal, cit., p. 3,
7
a)
“Non ornne quod licet honestum estf*
5. A máxima pauliana, segundo a qual nem tudo o que é lícito (conforme ao direito) é honesto (conforme à moral), indica certa distinção entre o direito e a moral. É discutível, porém, tivessem tido os romanos séria preocupação no sentido de estabelecer nítida separação entre a ordem jurídica e a ordem moral, visto como defi niam também o direito como sendo algo de fundo eminentemente ético, isto é, ars boni et aequi (Celso). Certo é, contudo, que a problemática da distinção, ou da identificação, entre direito e moral, já presente entre os latinos, haveria de constituir uma vexata quaestio, cujas soluções propostas, em épocas diversas, mal disfarçariam a influência de circunstâncias históricas. Entre os escolásticos, que sobrepunham a Igreja ao Estado, o direito mesclava-se com a moral, daquela derivando diretamente, em linha reta, nesta ordem: lex aeterna, lex naturalis, lex humana (note-se que essa construção re monta aos estóicos e fora adotada pela patrística, por intermédio de Santo Agostinho). A lei humana, a menos perfeita, por ser elabo rada pelos homens, deveria refletir princípios da lei natural que, segundo Santo Tomás, representava a participação da criatura ra cional na lei eterna “secundum proportionem capacitatis humanae naturae”. Assim, a lei humana, embora mereça ser obedecida, em qualquer circunstância, para evitar a desordem, não é uma verdadeira lei, quando colidente com a lei natural; se, porém, colidente com a lei divina, apenas parcialmente revelada aos homens, não deveria sequer merecer obediência. Com isso, conforme observa Del Vecchio, a moral confunde-se com o direito, “é quase legalizada” 9. No plano do direito penal, tivemos como reflexo direto dessa eticização superlativa do direito, ou, como quer Del Vecchio, dessa “legalização” da moral, algumas conseqüências desastrosas, como, por exemplo, os crimes de heresia e a interferência, sem limites, dos que encarnavam os poderes tem poral e espiritual na esfera da consciência individual, como se o modo de pensar ou de sentir, de cada um, pudesse ser plasmado ou indu zido, pela força, na direção do bem: a coação, nessa linha de idéias, não seria um mal em si; o que importava saber é se ela era empre gada para o bem ou para o mal. Paradoxalmente, porém, em nome do “bem” se fizeram não poucas vítimas. 9.
8
Lições de filosofia do direito, v. 2, p. 93.
Contra essa ordem de coisas, e Cónlo preparação parâ o sur gimento de uma nova forma de Estado, onde não houvesse peias à liberdade de religião e de pensamento, surge, a partir do século XVIII, com Thomasius, Kant e outros adeptos das doutrinas contratualistas, um esforço sério para distinguir a moral do direito, de sorte que àquela ficasse reservado o foro íntimo e a este o foro externo. Cada indivíduo seria responsável perante sua própria cons ciência pela observância das regras morais, pela construção de uma existência virtuosa. Ao direito caberia regular heteronomamente as ações humanas, desde que, porém, exteriorizadas naS mais variadas formas de comportamento, verificáveis nas relações de convivência ou de tráfico social. Essa distinção não resistiu às críticas que se lhe seguiram. O direito, que não pode prescindir das noções de dolo, culpa, boa-fé etc., precisa, a todo instante, considerar o foro íntimo, isto é, o aspecto interno da ação; por sua vez, a moral que se mantivesse neutra diante do aspecto externo do comportamento humano seria uma ética justificadora de toda espécie de monstruosidade ingênua, como no caso de certas formas de eutanásia etc. Não consideramos necessário aprofundar, aqui, o exame desse tema, que constitui importante capítulo da filosofia do direito. Im porta, porém, registrar que a separação entre moral e direito, levada a certos extremos, deu como resultado, em fase mais avançada, o oposto do que inicialmente se pretendia. O Estado, tomando-se todo-poderoso, desvinculado de qualquer limitação na elaboração e imposição da lex humana (limitação essa que só poderia resultar da aceitação de valores éticos supralegais, únicos aptos a estabelecer tensão com determinada ordem jurídica “injusta” ), embrenha-se no perigoso terreno preparado pelas teorias da profilaxia e da defesa social, sem limitações de qualquer ordem. Com isso, no plano do direito penál, se a separação em foco produziu, de início, grandes frutos, findou, contraditoriamente, por não ser menos desastrosa, com a instrumentalização do ordenamento jurídico-penal, em certos períodos históricos, para fins condenáveis, com requintes de uma barbárie que a ingenuidade de muitos levara a supor já estivesse ba nida da face da terra. Ressurge, então, a preocupação dos juristas, sobretudo a partir da Segunda Grande Guerra, com o velho tema do direito natural e, 9
conseqüentemente, com o da relação entre moral e direito10.. Welzel, que colocara no centro do problema penal os “valores ético-sociais da ação” (supra), afirma, textualmente, em artigo publicado em 1960 e também na sua obra Direito natural e justiça material (Naturrecht und materiale Gerechtigkeit), que um ordenamento social só é direito quando for mais do que uma contingente manifestação de força, quando procurar realizar o que é socialmente verdadeiro e justo. . . e assim puder apresentar-se ao indivíduo não apenas como constrição, mas também com a pretensão de obrigá-lo em consciên cia al. Observa-se, pois, em importantes penalistas modernos, uma ní tida tendência para a “constante e gradual eticização do direito puni tivo” 12, não obstante exista ainda significativa corrente que pretenda transformá-lo em puro instrumento de profilaxia ou de defesa social. Que se há de dizer, conclusivamente, na área penal, a respeito da questão acima versada? 6. A nosso ver, não se pode, de início, deixar de enfrentar o difícil problema de duas proposições igualmente válidas e aparente mente contraditórias. A primeira é a afirmação incontestável de que o direito penal tem um fundo ético. Os conceitos de culpabili dade, de ação injusta, de punição, nele entranhados, são indubita velmente de fundo e de origem ética. A segunda é a afirmação da máxima pauliana, inicialmente citada, válida igualmente no campo penal, segundo a qual “nem tudo o que é lícito é honesto”. Uma compatibilização dessas duas proposições poderia ser buscada na teo ria do “mínimo ético”, desenvolvida por Jellinek e outros, segundo a qual o direito representaria apenas aquele núcleo mínimo de mora], indispensável para a vida em sociedade. E nisso vai uma boa dose de verdade, se considerarmos que os princípios e as máximas morais (tenha-se em mente, por exemplo, o Decálogo) forjam os costu mes que, por sua vez, fornecem grande parte da matéria utilizada para a elaboração legislativa, fato facilmente verificável pela coinci dência existente entre o conteúdo da proibição da grande maioria 10. Sobre a tendência moderna de eticização do direito, pode ser consul tado Thomas Würtenberger, La situazione spirituale delia scienza penalistica in Germania, p. 94 e s. 11. Diritto naturale e giustizia materiale, p. 381. 12. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 100.
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das normas penais e idêntico conteúdo das normas costumeiras de conduta. Como, entretanto, os critérios jurídicos de valoração e de seleção do que deva ser erigido em penalmente relevante — aquilo que seria o mínimo ético — são próprios do direito e nem sempre inteiramente coincidentes com os da moral, não será difícil aponta rem-se normas penais de natureza diversa das normas éticas. Tomese, por exemplo, o crime de estelionato do art. 171 do Código Penal. Tem-se entendido que, para a sua configuração, não basta o logro decorrente da esperteza usualmente empregada nas relações de negó cio. é preciso mais que isso, ou seja, que o agente do crime tenha induzido a vítima em erro com o emprego de “ardil”, “artifício” ou “meio fraudulento” '13. Será ético — indaga-se — segundo o mandamento cristão (não fazer aos outros o que não queres que te façam), ou segundo o imperativo categórico kantiano (atuar segun do máxima que possa erigir-se em princípio de legislação universal), extrair-se vantagem excessiva de um semelhante menos dotado de inteligência, ou mal iniciado no difícil jogo das manipulações comer ciais? Parece-nos óbvio que não. Nota-se, portanto, no exemplo dado, que o legislador penal, ao elaborar a norma proibitiva do estelionato, desconsiderou o con teúdo ético, esqueceu-se completamente da máxima “faça o bem e não o mal”, e, por razões pragmáticas, optou por uma fórmula jurí dica que permitisse o livre desenvolvimento das relações de negócio, 13. Há julgados que vão além, utilizando-se da distinção entre ilícito civil e fraude penal, como ocorreu com este do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, proferido em pedido de revisão formulado em favor de réu condenado por estelionato: “ . .. Teria, é verdade, o peticionário usado do argumento de dizer que, se a vítima não comprasse as ações, seriam suas terras desapropriadas. Mesmo em se tratando de um indivíduo bastante ingênuo, é pouco crível que fosse acreditar na palavra de quem não era autoridade e nem agente do poder público. Trata-se, como se vê, de dolo tolerado admitido pelo direito civil, cuja conseqüência é contaminar o ato jurídico de nulidade reconhecível pela via ordinária civil. Como salienta lucidamente Carvalho Santos, ‘o dolo tolerado, podendo ser facilmente verificado, não exige senão uma prudência ordinária e prática comum dos negócios para ser evitado; a lei não pode levar seus escrúpulos a ponto de defender a ingenuidade ou simplicidade das pessoas, únicas hipóteses em que estas serão vítimas de dolo dessa natureza’ ( Código Civü brasileiro interpretado, v. 2, p. 342). Pelo exposto, tratando-se na espécie de inadimplência de negócio de natureza civil que não se contém no âmbito da fraude criminal, típica da burla, mas sim do dolo tolerado, é de rigor a absolvição do peticionário. Defere-se, pois, o pedido para se absolver o pos tulante da imputação que lhe foi in ten tad a...” ( RT, 425:364-5).
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SISBI/UFU
reputadas necessárias para o tráfico de bens materiais. O ético cede lugar ao utilitário. A teoria do mínimo ético falha, igualmente, em relação aos crimes de pura criação legislativa, que não correspondem a um con ceito de injusto material. Mas não se pode — e aqui surge a dificuldade da questão em exame — admitir contradição ou oposição entre o direito e a moral, pois ambos contêm princípios reguladores do comportamento huma no. Assim, embora não se possa afirmar a existência de perfeita coincidência entre o conteúdo da norma moral e o da norma penal, fora de dúvida é que um ordenamento penal em contradição com a ordem moral que lhe é coetânea não teria eficácia ou seria verda deira monstruosidade. Baumann, empregando imagem expressiva, assim destaca a impossibilidade de contradição entre a norma penal e a norma moral: “Uma coletividade que, para a vida comunitária, tenha editado normas com cominações penais que contrariem a lei moral não é uma comunidade jurídica, mas um bando de ladrões” a4. Não obstante, forçoso é reconhecer — e assim também pensa o autor por último citado — que se, de um lado, não pode o ordenamento jurídico pretender organizar a vida comunitária de forma contrária às regras morais dominantes, de outro, conforme assinala Radbruch, “a norma moral, que só se satisfaz com o cumprimento dos seus preceitos por amor deles próprios, nada tem a ganhar com o fato de ao lado dela poderem surgir, a reforçá-la, outros imperativos de diferente natureza, embora com um conteúdo idêntico” 15. Além disso, se é da própria natureza das normas morais essa exigência de adesão espontânea dos obrigados 16, seria verdadeiramente desastroso, como ocorreu com os já mencionados crimes de heresia, pretenderse intervir em regiões tão delicadas com o pesado e rude instrumental de que dispõe o direito penal. Disso resulta, pois, que o direito penal, como não poderia deixar de ser, quer também contribuir para a construção de um mundo valioso, razão pela qual não pode colocar-se em oposição aos valores morais dominantes. Não obstante, pela inutilidade de sua interven ção e para não causar males irreparáveis, limita extremamente o campo de sua atuação. Não deve, pois, ser chamado a tudo resolver 14. 15. 16.
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Grundhegriffe und System des Strafrechts, p. 9. Filosofia, cit-, p. 111. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 44.
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e menos ainda deve transformar-se em desajeitado modelador do caráter, da personalidade, ou em sancionador da formação moral profunda da pessoa, isto é, da Gesinnung. Não é, por fim, o direito penal instrumento de depuração ou de salvação espiritual de quem quer que seja17. Embora, pois, não se possa equacionar, em termos exatos e bastante nítidos, até onde o jurídico coincide com o ético, o certo é que, no estágio atual do direito penal, entendido este como parte do ordenamento jurídico, non omne quod licet honestum est. Esse é também o pensamento de um importante teólogo moderno para quem: “Nem tudo que é imoral tem logo de ser castigado. Só quando a vida comunitária for afetada de maneira grave ou quando os direitos da pessoa forem desprezados é que o direito penal tem de cuidar da proteção correspondente. Assim, é preciso distinguir claramente entre imoralidade e punibilidade. . . ” (grifamos)18. E prossegue, páginas adiante: “Não são as medidas morais, mas sim as criminais e políticas que determinam a punibilidade de um crim e... Do que se disse ainda resulta: mesmo nãõ se punindo uma ação imoral ou deixando livre de pena uma ação que até agora se casti gava (por exemplo, a simples homossexualidade, o adultério, a inseminação artificial heteróloga de uma mulher), ainda não significa que este comportamento também seja moralmente livre e permitido. Por isso o cristão também pode, absolutamente, pleitear a isenção de pena de um comportamento imoral, se não estiver convencido de que ele prejudique a comunidade ou se este comportamento é de muito difícil apreciação” 19. 7. A tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens 17. “Ao menos para a lei penal, o homem tem o direito inalienável de ir para o infemo vestido com as suas próprias roupas, desde que, pelo caminho, não ofenda diretamente a pessoa ou a propriedade alheia. O direito penal é um meio inadequado de impor aos outros uma correta condução de vida” (Morris & Hawldns, apud Figueiredo Dias, Direito penal, p. 18). Também Baumann: “Não é tarefa do direito forçar a conduta moral ou um âmbito nuclear de comportamento moral. Isso, aliás, seria irrealizável por meio de proibições jurídicas e de sua imposição de fora” (Grundbegriffe, cit., p. 11). A respeito do sentido de Gesinnung, consulte-se Bettiol, Sobre o direito penal da atitude interior, RT, 442:315. 18. Johannes Gründel, Temas atuais de teologia moral, trad. port. de Acktuelle Themen der Moraltheologie, p. 169-70. 19. Johannes Gründel, Temas, cit., p. 233-4.
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jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo ò ordenamento jurí dico. E aqui entremostra-se o caráter subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso. Fica, pois, esclarecido o caráter limitado do direito penal, sob duplo aspecto: primeiro, o da subsidiariedade de sua proteção a bens jurídicos; segundo, o dever estar condicionada sua intervenção à importância ou gravidade da lesão, real ou potencial. Pode-se eluci dar o que foi dito com alguns exemplos, a saber: a) numa socie dade em que o casamento perdeu o caráter de vínculo jurídico indis solúvel, com a instituição do divórcio, não há razão para manter-se a tipificação do crime de adultério (CP, art. 240), embora se reco nheça ser esse fato moralmente condenável; b ) em certos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça por agente não-perigoso, a efetiva reparação do dano deveria ser causa extintiva da punibilidade; c) certas ações, que causem danos despre zíveis, mesmo potencialmente, ao bem jurídico tutelado, devem con siderar-se desde logo, em uma concepção material do tipo, não abrangidas pelo tipo legal de crime (princípio da insignificância)20. E assim por diante. 8. O conjunto de idéias que estamos expondo não conduz necessariamente à negação da denominada autonomia do direito pe nal, reduzindo-o à condição de mero sancionador de ilícitos cons truídos em outras áreas do direito. Ao confiná-lo dentro de certos limites, situando-o harmoniosamente no ordenamento jurídico total, não pretendemos outra coisa senão extrair as conseqüências lógicas da definição de um dos elementos estruturais do conceito de crime — a ilicitude ou antijuridicidade — ou seja, ver no crime a relação de contrariedade entre o fato e o ordenamento jurídico no seu todo. Que quer isso dizer? Quer dizer que se, de um lado, nem todo fato ilícito reúne os elementos necessários para subsumir-se a um fato típico penal, de outro, o crime deve ser sempre um fato ilícito para o todo do direito. Eis áí o caráter fragmentário do direito penal: dentre a multidão de fatos ilícitos possíveis, somente alguns 20.
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Sobre o “princípio da insignificância”, v., infra, n. 112.
— os mais graves — são selecionados para serem alcançados pelas malhas do ordenamento penal. Todavia, na construção do injusto típico penal, opera esse mesmo ordenamento autonomamente, sem subaltemidade a outros ramos do direito. Assim, por exemplo, na apropriação indébita (CP, art. 168), o conceito de posse pode ser mais extenso no direito penal do que no civil, o mesmo podendo acontecer com o de coisa móvel, no furto (art. 155) etc. E, embo ra não seja isto desejável, não se deve afastar a hipótese de ter o direito penal, excepcionalmente, que “adiantar-se” na incriminação de fatos danosos para os quais ainda não se haja encontrado solução adequada em outras áreas extrapenais. São casos, entretanto, bas tante raros, que não negam a regra geral e que, por isso mesmo, devem ser vistos e tratados com muita cautela, para evitar-se a criminalização de condutas reprováveis mas de relevância jurídicopenal duvidosa.
b)
O bem jurídico protegido
9. Dissemos, linhas atrás (supra, n. 5), que o ordenamento jurídico-penal está dirigido para a proteção de algo; mais adiante identificamos o objeto dessa proteção como sendo certos bens jurí dicos. Importa, agora, elucidar o conceito de bem jurídico. Bem, em um sentido muito amplo, é tudo o que sé nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso. É tudo aquilo que “est objet de satisfaction ou d’approbation dans n’importe quel ordre de finalité: parfait en son genre, favorable, réussi, utile à quelque f in .. . ” 21. Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de “valor”, isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são, “valem”. Por isso são, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razão, expostos a certos peri gos de ataques ou sujeitos a determinadas lesões. Aristóteles não faz exceção ao afirmar que “toda ação e toda eleição parecem tender a algum bem” e, logo em seguida, define o “bem” como sendo “aquilo a que todas as coisas tendem” 22. Dentro desse quadro, se considerarmos que cada indivíduo leva consigo um sistema de preferências e desdéns, armado e pronto a 21. 22.
Lalande, Vocabulaire technique et critUfue de la philosophie. Éthiq-ue à Nicomaque, 1094 a, trad. fr. J. Tricot.
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disparar, contra ou a favor de cada coisa, uma bateria de simpatias e de repulsões 23, não será difícil compreender que, sem um conjunto de medidas aptas a proteger certos bens, indispensáveis à vida comu nitária, seria impossível a manutenção da paz social. Por isso, dentre o imenso número de bens existentes, seleciona o direito aqueles que reputa “dignos de proteção” e os erige em “bens jurídicos”. Para Welzel, o “bem jurídico é um bem vital ou individuahque, devido ao seu significado social, é juridicamente pro tegido. Pode ele apresentar-se, de acordo com o substrato, de dife rentes formas, a saber: objeto psicofísico ou objeto espiritual-ideal (exemplo daquele, a vida; deste, a honra), ou uma situação real (respeito pela inviolabilidade do domicílio), ou uma ligação vital (casamento ou parentesco), ou relação jurídica (propriedade, direi to de caça), ou ainda um comportamento de terceiro (lealdade dos funcionários públicos, protegida contra a corrupção). Bem jurídico é, pois, toda situação social desejada que o direito quer garantir contra lesões” 24. 10. Em vez de “situação social desejada” ( erwünschte soziale Zustand), poderíamos dizer “situação social valiosa”, ou melhor, valores ético-sociais, com o que teríamos a seguinte definição: bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas. O conceito de bem jurídico, assim sintetizado, resultou de lenta elaboração doutrinária, empenhada na busca de um conteúdo mate rial para o injusto típico, do qual se pudesse deduzir orientação sega ra para a aplicação da lei penal25. Primeiramente, procurou-se esse conteúdo material na lesão ou exposição a perigo de direitos subje tivos (época das luzes, especialmente Feuerbach); depois, na lesão ou exposição a perigo de interesses vitais (fins do século X IX ); por 23. Ortega y Gasset: “Antes que vejamos o que nosrodeia somos um feixe original de apetites, de afãs e de ilusões. Viemos ao mundo dotados de um sistema de preferências e desdéns, mais ou menos coincidentes com o do próximo, que cada qual leva dentro de si armado e pronto a disparar contra ou a favor de cada coisa; uma .bateria de simpatias e repulsões” (Que é filo sofia?, trad. bras., p. 186). 24. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 4. 25. Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 398 e s. 16
fim, chegou-se à conclusão de que o conteúdo material do injusto só poderia ser a lesao ou a exposição a perigo de um bem jurídico™. Frisé-se, porém — e isto está implícito nas considerações iniciais —^ que nem todo bem é um bem jurídico. Além disso, nem todo bem jurídico como tal se coloca sob a tutela específica do direito penal. Essa é uma conclusão que decorre do caráter limitado do direito penal, já estudado (supra, n. 7). Do ângulo penalístico, portanto, bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficien tes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurí dico, em outras áreas extrapenais. Não se deve, entretanto — e esta é uma nova conseqüência do já referido caráter limitado do direito penal — supor que essa especial proteção penal deva ser abrangente de todos os tipos de lesão possíveis. Mesmo em relação aos bens jurídico-penalmente protegidos, restringe o direito penal sua tutela a certas espécies e formas de lesão, real ou potencial27. Viver é um risco permanente, seja na selva, entre insetos e animais agressi vos, seja na cidade, por entre veículos* máquinas e toda sorte de inventos da técnica, que nos ameaçam de todos os lados. Não é missão do direito penal afastar, de modo completo, todos esses riscos — o que seria de resto impossível — paralisando ou impedindo o desenvolvimento da vida moderna, tal como o homem, bem ou mal, a concebeu e construiu 25. Protegem-se, em suma, penalmente, certos bens jurídicos e, ainda assim, contra determinadas formas de agres são; não todos os bens jurídicos contra todos os possíveis modos de agressão. 26. Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 398 e s. Afirma Mauraeli que, desde Bimbaum (1832), tem-se considerado o delito como lesão ou exposição a perigo de um “bem” garantido pelo poder estatal, opondo-se, com isso, os bens jurídicos individuais aos da coletividade, concepção essa aceita por Binding e von Liszt, e que permaneceu dominante até surgir a “escola de Kiel”, identificada com os princípios do nacional-socialismo ( Deutsches Strafrecht, cit., p. 213). 27. Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 5. 28. Binding percebeu isso com clareza ao admitir a existência de um risco juridicamente permitido para certas ações indispensáveis: “Je unentbehrlicher eine Handlung im Rechtssinne desto grõsser das Risiko, das ohne rechtliche Missbilligung, bei ihr gelaufen werden darf” ( Die Normen tind Ihre Übertretung, v. 4, p. 440).
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11. O “como” da proteção penal reside precisamente n a se leção das situações de perigo e das formas de agressão que se quer evitar, para transformá-las em tipos delitivos, com o que se aciona o mecanismo da prevenção geral e especial, inicialmente referido (supra, n. 2 e 3).
Do que foi dito, percebe-se que a idéia de “bem jurídico” se coloca no centro do problema penal, impondo-se como critério limi tador, fundamental, na formação do ilícito penal29. Essa é uma tendência que se acentua, nos tempos modernos, apesar de alguma crítica e das objeções que, por vezes, lhe têm sido feitas 30. No Pro jeto Alternativo, da Alemanha Federal, chegou-se a incluir um pará grafo estabelecendo, para não deixar dúvidas, que “as penas e medi das se destinam à proteção dos bens jurídicos” (§ 2 .°, 1.°). Não é sem razão que uma preocupação dessa natureza tenha surgido precisamente na Alemanha, onde a “escola de Kiel”, para redefinir o delito como uma vazia “infração de dever”, ao gosto do Estado totalitário de então, teve que primeiro procurar remover de sua fren te o sério obstáculo, enraizado no liberalismo contratualista, repre sentado pela idéia do “bém jurídico”, que se mantinha dominante há cerca de um século. Não o conseguiu, porém. As tentativas de deslocar a tônica da proteção de bens jurídicos, fundamento de um direito penal de cunho liberal democrático, para um direito penal do ânimo ou da vontade, porta aberta para o desconhecido, para abusos de toda ordem, se não restou totalmente estéril, conforme 29. Thomas Würtenberger, La situazione spirituale, cit., p. 90. 30. Segundo Eduardo Correia, “esta crítica esquece toda a elaboração que o conceito tem sofrido, desde Bimbaum, que pela primeira vez o formulou, até hoje, sobretudo pela influência de Honig. Por “bem jurídico' não se entende- hoje, de nenhuma maneira, um dado da realidade empírica colocado sob a protecção da ordem jurídica, como o concebia Bimbaum. Tal concepção dava afinal lugar, no seu positivismo estreito, a confundir o objecto da tutela jurídico-criminal com o objecto da acção, ou seja, a pessoa ou coisa sobre que, no plano causai, a actividade criminosa se exerce. Os conceitos dè interesses, de bens jurídicos, compreendem-se antes moder namente, conforme já acentuamos, e como depois da penetrante exposição de Honig parecia dever considerar-se patrimônio líquido da ciência do direito criminal, como aqueles valores que, num dado sistema jurídico, quando negados por um comportamento humano, colocam este na esfera das actividades crimi nosas. São, pois, conceitos do plano normativo, que de modo algum se podem confundir com interesses ou bens dos indivíduos singulares, materiais ou morais, que daqueles são apenas um possível substracto, apenas seus possíveis por tadores noutro plàno” ( Direito çriminal, v. 1, p. 278).
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ressalta Maurach ^ pode-se considerar de pouco alcance, em nossos dias, por não encontrar eco entre a maioria dos penalistas. O próprio Wélzel, que fez alguma concessão ao “desvalor da ação”, à punição das “violações dos elementares deveres ético-sociais”, não abandona totalmente a noção de bem jurídico. Apesar disso, tem merecido críticas nesse ponto, inclusive de adeptos da teoria finalista32. A criação legal de figuras delitivas que não impliquem lesão real, ou potencial, a bens jurídicos seria, com efeito, a admissão de um sistema penal que pretendesse punir o agente pelo seu modo de ser ou de pensar. Apesar disso, não se pode negar a existência de re síduos dessas figuras em certos tipos penais, ou em alguns códigos vigentes. A punição da tentativa impossível, contemplada em vários países latino-americanos (não no Brasil) e na atual legislação penal alemã (StGB, § 23, III), é um exemplo de punição do ânimo33. Os denominados crimes de perigo abstrato são outro exemplo. É de se prever, porém, que, permanecendo as tendências da sociedade atual em profunda e rápida transformação, na qual ence na-se, com grande gala, a tragédia da ascensão dos crimes violentos, o legislador penal, daqui e dalhures, sofrendo influência das doutrinas que pregam, há algum tempo, a descriminalização de certos fatos 31. Deutsches Strafrecht, cit., p. 213. 32. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 225-6. 33. Juan Bustos Ramírez, em trabalho apresentado no “Colóquio Regio nal”, referido na nota 4 do § 1.° supra, após criticar a punição da tentativa impossível, salienta, a certa altura: “Pero la exigencia de que todo delito ha de estar construído sobre un bien jurídico, no sólo se refiere a estos casos analizados, que son más bien una derivación de la teoria del delito, sino que implica sobre todo una revisión exhaustiva y constante de la Parte Especial de los códigos. En ellos, sobre todo en los códigos iberoamericanos, y en especial en el caso de los delitos contra el estado, la moralidad, los delitos sexuales, se encuentrán delitos sin bien jurídico. En todos ellos lo que en realidad se pena son ideas, pensamientos, estados ide conciencia, ânimos, se anatemiza desde determinados modos religiosos o filosóficos de ver el mundo. Naturalmente, los términos y objetivo de este artículo no me permiten hacer tal revisión, pero no hay duda que es necesario abogar por la supresión de todos esos delitos. Otro aspecto, que sólo podemos aludir es que los bdenes jurídicos tienen una determinada preeminencia entre ellos, lo cual surge en gran medida de la relación social concreta misma, pero también en ello enfluyen critérios polí ticos jurídicos posteriores, basados sobre todo en la lenta superación social cultural que ha alcanzado la Humanidad. Ello lleva también a determinar donde debe estar el acento de los tipos penales y también una graduación en las penas y otras consecuencias punitivas” ( Política criminal e injusto).
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ainda considerados criminosos, mas sem repercussão na consciência social de nosso tempo, marchará certamente, cedo ou tarde, para uma profunda reforma do direito penal legislado, revalorizando e recolocando no centro da construção do novo sistema a proteção de bens jurídicos, por forma e dentro de limites que reflitam as reais necessidades do mundo em que vivemos. E de tal sorte que a justiça criminal, emperrada por uma enorme carga de delitos de pequena importância, possa afinal dedicar-se aos fatos e delinqüentes mais graves que, desafiadoramente, aí estão crescendo e se multiplicando diante de nossos olhos atônitos. Diga-se, ainda, que não se deve confundir bem jurídico tutelado com objeto material do crime 34. No crime de homicídio, por exem plo, objeto material é o corpo humano, bem jurídico é a vida. Isso revela, conforme acentuamos de início, que o objeto de tutela são valores ético-sociais, não apenas as coisas materiais sobre que recai a ação criminosa 35. 12. Por último, é oportuno acentuar que, se o crime deve ser ofensa real ou potencial a um bem jurídico, tal ofensa não basta para a caracterização do ilícito penal. O crime tem uma estrutura jurídica complexa, devendo somar-se à ofensa ao bem jurídico outras circunstâncias não menos importantes para o seu aperfeiçoamento. Pode-se, pois, afirmar que o bem jurídico orienta a elaboração do tipo, esclarece o seu conteúdo, mas não o esgota. Os elementos subjetivos do tipo são igualmente importantes. O mesmo se diga da antijuridicidade e da culpabilidade, sem as quais não há que se falar em crime. É um equívoco, porém, a nosso ver confundir-se dano, evento danoso, com ofensa ao bem jurídico. Isso seria incor rer na confusão inicialmente apontada entre objeto material do crime e bem jurídico tutelado. Na tentativa idônea de homicídio pode não haver dano algum, mas, apesar disso, haverá sempre um ataque ao bem jurídico vida humana. O que faz com que a pena seja, nessa hipótese, menor que a do crime consumado são fatores de política criminal, o grau e a intensidade da ofensa, a frustração do ato crimi noso, o que não significa ausência de ofensa ao bem jurídico, por falta de um resultado meramente material.
34. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 177; Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 215. 35. No mesmo sentido, Bettiol, Diritto penale, cit., p. 177.
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§ 3.° Princípio da legalidade ou da reserva legal e seus desdobramentos 13. O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser apli cada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. Daí sua inclusão na Constituição, entre os direitos e garantias fundamen tais, no art. 5.°, XXXIX e XL, in verbis: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. O princípio da legalidade costuma ser enunciado por meio da expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege, esta última construída por Feuerbach, no começo do século XIX L Significa, em outras palavras, que a ela boração das normas incriminadoras e das respectivas sanções cons titui matéria reservada ou função exclusiva da lei. Embora Feuer bach tenha tido o mérito da construção da fórmula latina, além de dar-lhe uma fundamentação jurídico-penal, não só política, o certo é que esse princípio já se encontra na Magna Charta Libertatum (século XIII), no Bill of Rights das colônias inglesas da América 1. Lehrbuch des Gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Recht, 1. ed., 1801.
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do Norte e na Déclaration des Droits de VHomme et du Citoyen, da Revolução Francesa, de onde se difundiu para os demais países2. Fúnda-se na idéia de que há direitos inerentes à pessoa huma na que não são nem precisam ser outorgados pelo Estado. Sendo assim, e como não se pode negar ao Estado o poder de estabelecer certas limitações ou proibições, o que não estiver proibido está per mitido (permittitur quod non prohibetur). Daí a necessidade de editarem-se proibições ç^suísticas, na esfera penal, o que, segundo o princípio em exame, compete exclusivamente à lei. 14. O nullum crimen, nulla poena sine lege tem sua longa his tória, por vezes acidentada, com fluxos e refluxos. Por isso já foi objeto de muitas interpretações, conforme acentua Maurach, cada uma delas desempenhando papel político de realce, -antes que se che gasse à concepção atual, mais otj menos cristalizada na doutrina. Presentemente, essa concepção é obtida no quadro da denominada “função de garantia da lei penal” 3 que provoca o desdobramento do princípio em exame em quatro outros princípios, a saber: á)
nullum crimen, nulla poena sine lege praevia;
b)
nullum crimen, nulla poena sine lege scripta;
c)
nullum crimen, nulla poena sine lege stricta;
d)
nullum crimen, nulla
poena sine lege certa.
Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam par tem) . Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas 4. Com a aplicação concomitante desses quatro princípios, conti dos por implicitude no princípio geral antes referido, constrói-se a denominada função de garantia da lei penal, que pode também ser 2. v. 1, t. 3. cit., p. 4.
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Com mais detalhes, consulte-se Hungria, Comentários aoCódigoPenal, 1, p. 25 e s. Cf. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit'., p. 106; Jescheck, Lehrbuch, 103 e s.; Heinz Zipf, lntroducción a la política criminal, p. 69. Albin Eser, Strafrecht, v. 1, p. 32 e s.
entendida como autêntica “função de garantia individual das cominações penais” 5.
a) “Lex praexna” (exigência de lei anterior). Decreto-lei e medida provisória 15. A lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao fato que se quer punir. E só a lei em sentido estrito pode criar crimes e perlas criminais. 16. O extinto Tribunal Federal de Recursos assim decidiu, em sessão plenária, em incidente de inconstitucionalidade (RTFR, 82:15, e 85:209). O Supremo Tribunal Federal não teve ainda, ao que parece, oportunidade de enfrentar diretamente a questão. Não obs tante, o voto do Min. Moreira Alves, no HC 55.191, sugere clara mente, de passagem, idêntica conclusão, in verbis: “. . .Se se enten der — como pretende o impetrante — que esse artigo criou um novo tipo delituoso como modalidade de apropriação indébita, é indubitável que incursionou ele em área que lhe era vedada: o direito penal. Nem se diga, como o faz o voto do Sr. Ministro Aldir G. Passarinho, que se trata de sanção pelo não-recolhimento de imposto, motivo por que diz respeito a matéria referente a finanças públicas. Em se tratando de definição de crime novo, ainda que o ato tido como delituoso seja lesivo às finanças públicas, a norma que esta belece é penal, e não financeira ou tributária, tanto que a ela se apli cam os princípios gerais do direito criminal. Por outro lado, e ainda partindo da premissa que partiu o impetrante, não se pode afastar o vício da incompetência para legislar sobre direito penal por meio de Decreto-Lei, sob o fundamento de que o Diploma impugnado foi aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 28 de 1967, havendo, assim, ocorrido a manifestação concorde dos dois Po deres — o Legislativo e o Executivo — tal como sucede as mais das vezes em se tratando de lei. Não procede tal fundamentação, porque a Lei e o Decreto-Lei são figuras diversas no processo legislativo, somente se admitindo este em circunstâncias e em hipóteses taxativas. A aprovação do Congresso Nacional não tem o condão de mudar a natureza do Decreto-Lei, transformando-o em Lei, e permitindo-lhe, portanto, extravasar do âmbito estreito em que é admitido. Portanto, 5. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 107. 23
se correta estivesse para mim a premissa assentada pelo impetrante — o artigo 2°, caput, do Decreto-Lei 326/67 criou modalidade nova de apropriação indébita — não teria dúvida em considerá-lo incons titucional. . . ” (RTJ, 86:412-3). 17. A Constituição de 1988, no art. 62, substitui o decreto-lei pela medida provisória, sem tradição no direito brasileiro, e não esta beleceu, de modo expresso, limites objetivos para a edição desta última, exigindo apenas “relevância e urgência”, requisitos genéricos e pouco confiáveis. Parece-nos, contudo, que a exigência de lei for mal, em sentido estrito, permanece e deve permanecer, entre nós, por duas ordens de consideração: l.a) a medida provisória, pelos seus contornos constitucionais, é espécie do gênero “lei delegada”, de efi cácia condicionada à expressa aprovação do Congresso Nacional; 2.a) a Constituição veda delegação em matéria de legislação sobre direitos individuais (art. 68 , § 1 .°), dentre os quais se destaca de modo maiúsculo o direito à liberdade, enunciado no caput do art. 5.° e explicitado em vários dos incisos da proclamação dos direitos e ga rantias fundamentais. Tal vedação será atingida, por via reflexa, se permitida for a criação de tipos penais por medida provisória. Ora, a medida provisória, por não ser lei, antes de sua apro vação pelo Congresso, não pode instituir crime ou pena criminal (in ciso XXXIX). Se o faz choca-se com o princípio da reserva legal, apresentando um vício de origem que não se convalesce pela sua even tual aprovação posterior, já que pode provocar situações e males irre paráveis. Considere-se o que foi dito inicialmente: os tipos legais de crime constituem verdadeira autorização primária para que o Estado possa intervir em certas áreas reservadas, na esfera da liberdade indi vidual (supra, n. 3). Sendo assim, não se faz necessária muita acuidade para perceber que a criação de figuras penais e até a simples agravação de penas através de medida provisória poderiam prestar-se para coisas desta natureza: a) extirpação da liberdade de ir e vir, através da prisão em fla grante por crimes recém-criados, por medidas provisórias; b) extirpação da inviolabilidade da residência e do sigilo ,da cor respondência, nas mesmas hipóteses, pondo por terra as garantias dos incisos XV, XI e XII, já que a possibilidade de criação de tipos penais novos é quase ilimitada. 24
Note-se que, nesses exemplos, o mal causado (prisões, arrombamentos, violações de sigilo) é irreversível, mesmo na hipótese de desaprovação pelo Congresso da medida provisória. Isso sem falar nas conseqüências funestas de certas atividades policiais ostensivas, praticadas com grande publicidade, em geral causadoras de desonra ou ofensas à integridade física de pessoas, as quais de repente poderão ser transformadas em vis criminosos pelo curto espaço de tempo de trinta dias durante a vigência do malogrado arremedo de lei. Aos brasileiros que, nos dias de hoje, assistem atônitos à edição em série dessas medidas provisórias, é bom lembrar que, por decretolei, já tivemos “leis” de segurança nacional, o que poderá sugerir, a qualquer momento, uma tentativa de recaída nessa linha de orien tação, desta feita obviamente por “medida provisória”. Fiquemos, pois, com o princípio, da reserva legal em suas linhas tradicionais. Disso não teremos que nos penitenciar, um dia, como ocorreu em alguns países da Europa, em épocas de triste memória.
b)
“Lex scripta” (hipóteses de exclusão e de admissibilidade dos costumes)
18. Da afirmação de que só a lei pode criar crimes e penas resulta, como corolário, a proibição da invocação do direito consuetudinário para a fundamentação ou a agravação da pena, como ocor reu no direito romano e medieval. Não se deve, entretanto, cometer o equívoco de supor que o direito costumeiro esteja totalmente abo lido do âmbito penal. Tem ele grande importância para elucidação do conteúdo dos tipos. Além disso, quando opera como causa de exclusão da ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou da culpa, constitui verdadeira fonte do direito penal. Nessas hipóteses, como é óbvio, não se fere o princípio da legalidade por não se estar piorando, antes melhorando, a situação do agente do fato. 19. Note-se, porém, que a simples omissão da autoridade em reprimir determinados crimes ou contravenções não basta para revo gar por desuetudo a norma incriminadora penal. Nesse sentido re cente julgado do Superior Tribunal de Justiça, de que foi relator o autor desta obra, assim ementado: “Penal. Contravenção do ‘jogo do bicho'. Acórdão absolutório fundado na perda de eficácia da norma contravencional (‘a conduta embora punível deixa de sê-lo social mente’). Decisão que nega vigência ao art. 58, § 1.°, ‘b ’, do De 25
creto-Lei 6.259/44. Reconhece-se, em doutrina, que o costume, sem pre que beneficie o cidadão, é fonte do Direito Penal. Não obstante, para nascimento do direito consuetudinário são exigíveis certos requi sitos essenciais (reconhecimento geral e vontade geral de que a norma costumeira atue como direito vigente), não identificáveis com a mera tolerância ou omissão de algumas autoridades. A circunstância de o próprio Estado explorar jogos de azar não altera esse entendimento porque, no caso em exame, o que se pune é uma certa modalidade de jogo: a clandestina, proibida e não fiscalizada” (REsp. 2.202-SP, DJ, 2 abr. 1990, p. 2461).
c)
“Lex stricta” (exclusão e admissibilidade da analogia)
20. Outro corolário do princípio da legalidade é a proibição da aplicação da analogia para fundamentar ou agravar a pena (ana logia in malam partem). A analogia, por ser uma forma de suprirem-se as lacunas da lei, supõe, para sua aplicação, a inexistência de norma legal específica. Baseia-se na semelhança. Estando regulamentada em lei uma situação particular, aplica-se por analogia essa mesma regulamentação a outra situação particular, semelhante mas não regulamentada. Ê uma conclusão que se extrai do particular para o particular6. Conclui a respeito de um caso o que se aplica a outro caso semelhante. Um exemplo, citado por Engisch, é a aplicação da eficácia justificadora do consentimento do ofendido, em certas lesões corporais, para excluir igualmente o crime na privação da liberdade (cárcere privado), sob fundamento de que a ofensa corporal e a privação da liberdade apresentam certas seme lhanças, de sorte que aquilo que for justo para a primeira sê-lo-á igualmente para a segunda 7. A analogia pode ser considerada sob o aspecto da lei ou do direito: analogia da lei e analogia do direito. No primeiro caso, parte-se de um preceito legal isolado; no segundo, parte-se de um conjunto de normas, extraem-se delas o pensamento fundamental ou os princípios que as informam para aplicá-los a caso omisso, seme lhante ao que encontraria subsunção natural naquelas normas ou princípios. \ 6. Karl Engisch, Introdução, cit., p. 234. 7. Introdução, cit., p. 234. 26
De um modo geral é possível, portanto, afirmar-se, conclusiva mente, com o autor por último citado, que: “Toda regra jurídica é suscetível de aplicação analógica — não só a lei em sentido estrito, mas também qualquer espécie de estatuto e ainda a norma de direito consuetudinário. As conclusões por analogia não têm apenas cabi mento dentro do mesmo ramo do direito, nem tampouco dentro de cada Código, mas verificam-se também de um para outro Código e de um ramo do direito para outro” 8. Essa a regra. 21. No direito penal, contudo, importa distinguir duas espé cies de analogia: a analogia in malam partem e a analogia in bonam partem. A primeira fundamenta a aplicação ou agravação da pena em hipóteses não previstas em lei, semelhantes às que estão previstas. A segunda fundamenta a não-aplicação ou a diminuição da pena nas mesmas hipóteses. A primeira agrava a situação do acusado, a segun da traz-lhe benefícios. 22. A exigência da lei prévia e estrita impede a aplicação, no direito penal, da analogia in malam partem, mas não obsta, obvia mente, a aplicação da analogia in bonam partem, que encontra justi ficativa em um princípio de eqüidade. É preciso notar, porém, que a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quan do estiver claro no texto legal que a mens legis quer excluir de certa regulamentação determinados casos semelhantes. Segundo Bettiol, “a proibição do procedimento analógico em matéria penal há que assi nalar limites precisos. Recai sobre todas as normas incriminatórias e todas as que (mesmo eximentes) sejam verdadeiramente excepcio nais . .. Quaisquer outras normas do Código Penal são suscetíveis de interpretação analógica” 9. 23. As restrições feitas à analogia não se aplicam por inteiro à denominada interpretação extensiva, ou analógica, embora esta apresente problemas semelhantes. Na interpretação extensiva am plia-se o espectro de incidência da norma legal de modo a situar sob seu alcance fatos que, numa interpretação restritiva (procedi mento oposto), ficariam fora desse alcance. Não se trata, aqui, de analogia, visto que a ampliação referida está contida in potentia nas palavras, mais ou menos abrangentes, da própria lei. O tema é controvertido, pois quase sempre, nestes casos, tropeça-se com a 8. Introdução, cit., p. 238. 9. Instituições de direito e de processo penal, p. 111. 27
dúvida, hipótese em que o princípio in dubio pro reo afasta a pos sibilidade da extensão. Pensamos, contudo, qué a melhor solução não está na exclusão dessa forma de interpretação, ou na sua subs tituição simplista pela restritiva ou pela puramente gramatical, mas sim na utilização adequada de todas as formas de interpretação. Haverá, pois, interpretação restritiva, quando o exigir a compatibilização do preceito com a sua finalidade ou com o todo do sistema. Um exemplo nos é dado por Hungria: “Quando, no seu art. 24, o Código declara que a emoção, a paixão ou a embriaguez (voluntária ou culposa) ‘não excluem a responsabilidade penal’, tem-se de enten der que se refere a esses estados psíquicos quando não patológicos, pois, de outro modo, seria irreconciliável o citado art. 24 com o art. 22” 10. Outro exemplo do mesmo autor: quando o Código incri mina a bigamia (art. 125), está necessariamente implícito que abrange na incriminação a poligamia. E assim por diante. Esse problema agrava-se quando, no tipo, encontramos elemen tos normativos. Dependendo eles de um juízo valorativo, ensejam a interpretação restritiva ou ampliativa. É óbvio que o princípio do in dubio pro reo, bem como o da prevalência dos elementos descri tivos sobre os normativos, além dos já mencionados critérios siste mático e teleológico, constituem pontos de referência seguros para a decisão final sobre a ampliação ou restrição do preceito que se quer interpretar. 24. O Supremo Tribunal Federal, em acórdão do Pleno, da lavra do Min. Bilac Pinto, teve a ocasião de estabelecer a distinção acima apontada, entre analogia e interpretação extensiva ou analó gica, decidindo que a vítima de um crime somente através da analo gia poderia ser equiparada a “testemunha” para a configuração do tipo do art. 343 do Código Penal (corrupção ou suborno de teste munha). Na hipótese, foi concedida a ordem para trancamento da ação penal, concluindo o voto do Relator, após transcrever citação de Alípio Silveira: “ . . . ‘Devemos repelir a analogia, porque, se o Direito Penal é um direito liberal, não admite de modo algum esses perigos à liberdade do homem e do cidadão. Mas uma coisa é repelir a analogia, e outra admitir interpretação analógica. A analogia é a aplicação, a um caso concreto, de uma lei, cuja vontade não era captar este fato que aparece no horizonte da realidade quotidiana. 10. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 80. Note-se que o autor se refere aos arts. 24 e 22, substituídos pelos de n. 28 e 26 pela Lei n. 7.209/84. 28
Ao invés, a interpretação analógica é uma forma de interpretação extensiva, como dizia Bobbio; é simplesmente um raciocínio jurídico, uma aplicação imanente do Direito, que às vezes se encontra, de modo taxativo, exigida pelos códigos, até empregando a palavra analogia5 (Normas para la interpretación en El Criminalista, tomo V, pág. 195, Hermenêutica no Direito Brasileiro, pág. 182-4). Estamos em que, na espécie, o egrégio Tribunal a quo valeu-se da analogia para configurar um tipo não previsto em lei. Se o ofendido não figura,’no art. 343 do C. Penal, como agente passivo do delito, não se pode recorrer à analogia para inserir na norma legal um novo tipo. Pelo exposto, proponho o exame dessa preliminar. O meu voto é no sentido de reconhecer que a condenação dos pacientes fun dou-se na analogia e de conceder o habeas corpus por falta de justa causa para o processo” (RTJ, 66:687-8). 25. Note-se, finalmente, que a analogia é admitida sem restri ções no processo penal. Assim já decidiu o Supremo Tribunal Fe deral, em acórdão que traz a seguinte ementa: “I. O art. 3.°, do C. P. Penal, admite expressamente a aplicação analógica e o suple mento dos princípios gerais de Direito. II. Não viola a Constituição Federal, nem discrepa de jurisprudência do Supremo Tribunal Fe deral, o acórdão que condena o querelante vencido a indenizar os honorários do advogado que defendeu vitoriosamente o querelado. Essa decisão, longe de ofender o art. 114 do C. P. Civil de 1939, interpretou-o bem razoavelmente em harmonia com os arts. 4.° e 5." da Lei de Introdução ao Código Civil e com o art. 3.°, do C. P. Penal” (Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ, 73:909).
d)
“Lex certa”
26. A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas. Infelizmente, no estágio atual de nossa legislação, o ideal de que todos possam conhecer as leis penais parece cada vez mais longínquo, transformando-se, por imposição da própria lei, no dogma do conhecimento presumido, que outra coisa não é senão pura ficção jurídica. 29
§ 4.° Vigência da lei penal no tempo (prin cípios de direito penal intertemporal) 27. A eficácia da lei penal no tempo subordina-se a uma re gra geral e a várias exceções, como se infere dos preceitos contidos no art. 5.°, XL, da Constituição, e nos arts. 2 .° e 3.° do Código Penal. A regra geral é a da prevalência da lei do tempo do fato ( tempus regit actum), isto é, aplica-se a lei vigente quando da rea lização do fato. Com isso preserva-se o princípio da legalidade e da anterioridade da lei penal. Havendo, porém, sucessão de leis penais que regulem, no todo ou em parte, as mesmas questões, e se o fato houver sido cometido no período de vigência da lei anterior, dá-se, infalivelmente, uma das seguintes hipóteses: a) a lei posterior apresenta-se mais severa em comparação com a lei anterior (lex gravior); b) a lei posterior aboliu o crime, tornando o fato impunível (abolitio criminis); c) a lei posterior é mais benigna no tocante ã pena ou à me dida de segurança (lex mitior); d) a lei posterior contém alguns preceitos mais severos e outros mais benignos, em determinados aspectos. Cada uma dessas situações, que podem ocorrer sempre que se dá a edição de nova lei, com a derrogação (revogação parcial) ou 30
a ab-rogação (revogação total) de uma lei penal por outra, deve encontrar solução por meio da aplicação das regras dos arts. 2 .° e 3.° do Código Penal.
a) “Lex gravior”. Irretroatividade absoluta 28. A lei penal mais grave não se aplica aos fatos ocorridos antes de sua vigência, seja quando cria figura penal até então ine xistente, seja quando se limita a agravar as conseqüências jurídicopenais do fato, isto é, a pena ou a medida de segurança. Há, pois, uma proibição de retroatividade das normas mais severas de direito penal material. (Sobre as normàs de processo ou de execução, não submetidas a essa proibição, v., infra, n. 41.) Note-$e, porém, que a questão de saber quando uma norma é, ou não, de direito material deve ser decidida menos em função da lei que a-contenha do que em razão da natureza e essência da própria norma, pois o Código de Processo Penal e a Lei de Execução contêm normas de direito ma terial, assim como o Código Penal contém normas de direito pro cessual. 29. Segundo Maurach, os preceitos que estabelecem a exigên cia de representação (querela) ou o caráter público da ação penal, bem como os que fixam os prazos prescricionais, são de natureza processual, apesar de constarem do Código Penal. Assim, em re lação a eles não prevaleceria a proibição em exame. Sem comprometermo-nos, por ora, com o tema polêmico da natureza das nor mas sobre prescrição, que no Brasil têm sido consideradas de direito material (STF, RHC 55.294, RTJ, 83:746), concordamos com a parte essencial da observação do penalista citado, pois, no ordena mento jurídico brasileiro, há igualmente certa arbitrariedade na lo calização de determinadas normas, parecendo-nos fora de dúvida que a Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84) possui inúmeras de direito penal material (exemplo: arts. 49 a 56, 126, 130 etc.), ao passo que os arts. 100 a 102 do Código Penal contêm várias de direito processual, identificáveis com relativa facilidade. 30. Em suma, a norma de direito material mais severa só se aplica, enquanto vigente, aos fatos ocorridos durante sua vigência, vedada em caráter absoluto a sua retroatividade. Tal princípio 31
aplica-se a todas as normas de direito material, pertençam elas à Parte Geral ou à Especial, sejam normas incriminadoras (tipos legais de crime), sejam normas reguladoras da imputabilidade, da dosimetria da pena, das causas de justificação ou de outros institutos de direito penal. Além disso, para aferir-se da maior gravidade de iam dispositivo legal, é necessário verificar-se não o dispositivo isolado e sim o conjunto de determinações ou de conseqüências acarretadas pela norma em questão, devendo afastar-se aquela que produzir o resultado final mais gravoso para o agente do fato.
b) Tempo do crime para fixação da lei aplicável 31. A nova Parte Geral (Lei n. 7.209/84) dispõe-no art. 4.° que o crime se considera praticado “no momento da ação ou omis são, ainda que outro seja o momento do resultado”. Esse dispo sitivo fundado na denominada “teoria da ação”, que já era acolhida pela doutrina para solucionar questões de direito intertemporal1, tem inteira aplicação para a fixação do tempo do crime e da lei aplicável. Assim, se a ação era lícita, no momento de sua realização, mas já não o era, no momento do resultado (delitos à distância, nos quais um é o momento da ação, outro o do resultado), não haverá puni ção possível, pois, conforme destaca Bettiol, “é no momento da ação que o imperativo da norma pode atuar como motivo no processo psicológico da própria ação” 2. Nos crimes permanentes, cuja exe cução tenha tido início sob o império de uma lei, prosseguindo sob o de outra, aplica-se a lei nova se esta tem início de vigência en quanto dura a conduta ilícita3. Nos crimes continuados, se a nova lei intervém no curso da série delitiva, só se pode aplicar a lei nova — se mais grave — ao segmento da série continuada ocorrido du rante a sua vigência, caso os fatos anteriores sejam impuníveis pela lei da época. Se os fatos anteriores já eram punidos, tendo ocorri do somente a agravação da pena, aplica-se, em princípio, salvo hi pótese adiante examinada, o critério da lei nova a toda a série deli1. cit., p. 2. 3. 32
Maggiore, Diritto penale, v. 1, t. 1, p. 152-3; Bettiol, Diritto penale, 146-7; Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 109. Diritto penale, cit., p. 146-7. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, t. 1, p. 153.
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tiva, pois, no crime continuado, tanto se considera momento da ação o do primeiro fato parcial quanto o do último. O agente que prosseguiu na continuidade delitiva após o advento da lei nova tinha possibilidade de motivar-se pelos imperativos desta ao invés de persistir na prática de seus crimes. Submete-se, portanto, ao novo re gime, ainda que mais grave, sem surpresas e sem violação do prin cípio da legalidade. Há, entretanto, um caso que merece melhor atenção. Com o advento da nova Parte Geral, que inovou o tra tamento do crime continuado, no parágrafo único do art. 71, per mite-se o aumento de pena até o triplo (anteriormente o aumento não poderia ir além de dois terços — CP de 1940, art. 50, § 2.°) nos crimes dolosos cometidos com violência ou grave ameaça à pes soa. Assim, podem ocorrer duas hipóteses: a) o agente de crimes de roubo, por exemplo, cometeu vários roubos antes e depois do início de vigência da nova Parte Geral; b) o agente dos mesmos crimes cometeu vários roubos antes da vigência da lei e apenas um depois dessa vigência. Admitindò-se que tanto na primeira como na segunda hipótese configura-se uma única série de delitos continua dos, parece-nos que só na primeira (vários roubos antes e depois da vigência da nova lei) se poderá aplicar o aumento de um triplo, tendo em conta que o seguimento da série, situado sob a lei nova, bastaria para tanto. Como os fatos anteriores integram a continui dade delitiva, aplica-se a pena de um só dos crimes, ou a mais grave, aumentada até o triplo. Na segunda hipótese (somente um roubo na vigência da lei nova), parece-nos que, levando-se em conta o conjunto das determinações e das conseqüências acarretadas pela nova regulamentação do crime continuado, não se poderá fazer in cidir o critério mais grave da lei nova (aumento até um -triplo), porque isso significaria aplicar-se, a uma hipótese de delitos conti nuados, pena mais grave do que a devida se fosse tomada a série delitiva anterior em concurso material com o único delito posterior. Neste caso, para não ser infringido o preceito constitucional da anterioridade da lei penal, a única solução possível será a punição de toda a série pelo critério da lei anterior.
r 32. E se o crime ocorre no período de vacatio legis, ou seja, depois da publicação da lei nova mas antes do dia fixado para início de sua vigência? 33
Predomina o entendimento da plena aplicabilidade da lei antiga até que a lei nova tenha início efetivo de vigência 4. Não nos cons ta, aliás, que o malogrado Código de 1969, que não conseguiu ultra passar o seu longo período de vacatio, tenha tido alguns de seus preceitos aplicados a algum caso, em algum lugar.
c)
“Abolitio criminis”
33. Verifica-se a abolitio criminis quando a lei nova exclui da órbita penal um fato considerado crime pela legislação anterior. Trata-se de uma hipótese de descriminalização. Quando isso ocorre, extingue-se a punibilidade (CP, art. 107, III), arquivando-se os pro cessos em curso, no tocante 90 crime abolido, ou cessando a exe cução e os efeitos penais da sentença condenatória, ainda que tran sitada em julgado. Assim dispõe o art. 2.°, caput. 34. Nos processos pendentes, o juiz ou o tribunal, em qual quer fase, declarará de ofício a extinção da punibilidade (CPP, art. 61). Nos processos findos, compete ao juízo da execução tal providência (LICPP, art. 13, e LEP, art. 66 , I), nos termos da ju risprudência sobre aplicação da lex mitior (R T J, 87:1067, 85:1098, Súmula 611). 35. Note-se, contudo, que, segundo o entendimento do Supre mo Tribunal Federal, “para haver abolitio criminis deve haver uma ^b-rogação completa do preceito penal, e não somente de uma nor ma singular referente a um fato que, sem ela, se contém numa incri minação penal” 5. É o caso do roubo a estabelecimento de crédito anteriormente abrangido pelo tipo do art. 157 e parágrafos do Códi go Penal, depois erigido em crime contra a segurança nacional pelo Decreto-lei n. 898/69, finalmente excluído desse último estatuto pela Lei n. 6.620/78. Entendeu a Suprema Corte não ter ocorrido, em tal caso, a abolitio criminis porque o fato sempre fora incriminado pelo Código Penal cujas normas voltaram a incidir sobre ele, após a .4. Assim Frederico Marques, Tratado de direito penal, v. 1, p. 229; Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 109, nota 9. 5. RCrim 1.381, Pleno, Rel. Min. Cordeiro Guerra, Um decênio de fudicatura, v. 1, p. 112; RTJ, 94:504. 34
revogação dos preceitos que o transformaram em crime contra a se gurança nacional. Cabia, pois, diante da revogação da norma da lei especial, aplicar-se o Código Penal como lei geral mais benigna (RCrim 1.331, 1.378 e 1.381, R T J, 94:501). Esse entendimento tem apoio doutrinário, pois aqui não se trata de fazer ressurgir das cinzas norma revogada. Cuida-se, ao contrá rio, de fazer aplicar a norma geral, de vigência incontestável, que todavia cedia lugar à norma especial prevalecente por força do prin cípio da especialidade. Revogada esta, a norma geral volta a inci dir por inteiro para regular os fatos antes abrangidos pela norma de caráter especial.
d)
“Lex mitior”
36. Denomina-se mais benigna a lei mais favorável ao agente, no tocante ao crime e à pena, sempre qüe, ocorrendo sucessão de , leis penais no tempo, o fato previsto como crime tenha sido prati cado na vigência da lei anterior. Será mais benigna a que “de qual quer modo favorecer o agente”, podendo, portanto, ser a lei ante rior ou a posterior. Nos termos do art. 5.°, XL, da Constitui ção, a lei mais benigna prevalecerá sempre, em favor do agente, quer seja a anterior (ultra-atividade) quer seja a posterior (retroatividade). Já vimos que a abolitio criminis — hipótese mais evi dente de lei posterior mais benigna — retroage sempre em benefício do réu; vimos, igualmente, que a lex gravior só se aplica aós fatos cometidos sob sua vigência, vedada em caráter absoluto sua retroação. Fixados tais limites extremos, há uma gama variada de hipó teses intermediárias nas quais a definição da lei mais benigna só pode ser obtida em concreto, ou seja, diatíte da avaliação, caso a caso, do resultado a ser obtido com a aplicação de uma ou de outra lei6. A lei cuja aplicação produzir resultado final mais favo rável para o agente é a que deve ser aplicada. 37. Pode-se, entretanto, afirmar que, de um modo geral, salvo excepcional demonstração em contrário, reputa-se mais benigna a lei na qual: 6.
Assim, Heleno Fragoso, Lições de direito penal; parte geral, p. 108. 35
à) a pena cominada for mais branda, por sua natureza, quan tidade, critérios de aplicação e dosimetria ou modo de execução; b) forem criadas novas circunstâncias atenuantes, causas de diminuição da pena ou benefícios relacionados com a extinção, sus pensão ou dispensa de execução da pena, ou, ainda, maiores facili dades para o livramento condicional; c) forem extintas circunstâncias agravantes, causas de aumen to de pena ou qualificadoras; d) se estabelecerem novas causas extintivas da punibilidade ou se ampliarem as hipóteses de incidência das já existentes, notadamente quando são reduzidos prazos de decadência, de prescrição, ou se estabelece modo mais favorável de contagem desses prazos; e) se extinguirem medidas de segurança, penas acessórias ou efeitos da condenação; • /) forem ampliadas as hipóteses de inimputabilidade, de atipicidade, de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpabilidade ou de isenção de pena. Note-se, contudo, que o rol acima apresentado, que é com pe quenas variações muito semelhante ao oferecido por Nélson Hun gria 7, estará submetido sempre à ressalva da avaliação final do re sultado, já que, em concreto, o enunciado mais benigno de uma lei pode ser apenas ilusório se acarretar maiores ônus para o agente, no instante da aplicação da sanção ou no momento de sua execução.
e)
Combinação de leis (“lex tertia”)
38. Questão polêmica é a de saber se, na determinação da lei mais benigna aplicável, pode o juiz tomar os preceitos ou os crité rios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei posterior, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a ex trair o máximo benefício resultante da aplicação conjunta só dos aspectos mais favoráveis de duas leis. Nélson Hungria opina con trariamente a essa possibilidade de o jiiiz, arvorando-se em legisla dor, criar “uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qual 7.
36
Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 109 e s.
quer das leis em jogo” 8. No mesmo sentido, Heleno Fragoso 9, e Aníbal Bruno 10. Opinam favoravelmente à possibilidade da combi nação de leis, Basileu G arcia 11 e Celso Delmanto 12, entre outros. Frederico Marques, partidário desta última corrente, é o que ofere ce melhores argumentos em prol da tese, in verbis: “Dizer que o Juiz: está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções consti tucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obe diência a princípios de eqüidade consagrados pela própria Consti tuição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciá rio não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio material for necido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o man damento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, "a que lhe pareça mais benigna, não vemos porque se lhe vede a com binação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constitui ção. Se lhe está afeto escolher o ‘todo’, para que o réu tenha o tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que-lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico, mesmo por que a própria dogmática legal obriga a essa subordinação, pelo papel preponderante do texto constitucional. A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e tomar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem” 13. 39. O Supremo Tribunal Federal tem decidido pela impossi bilidade dessa combinação de leis, a partir do acórdão do Pleno, no já citado RCrim 1.381, no qual se discutiu a aplicação do Código 8. 9. 10. 11. 12. 13.
Comentários, cit.r v. 1, t. 1, p. 109-10. Lições, cit., p. 108. Direito penal, cit., t. 1, p. 256. Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 150. Código Penal anotado, p. 5. Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 210-1.
37
Penal, como lei mais benigna, a crime de roubo contra estabeleci mento de crédito, após o advento da Lei n. 6.620/78. Nesse jul gado, por votação unânime, no particular, afirmou-se que “é lícito ao juiz escolher, no confronto das leis, a mais favorável, e aplicá-la em sua integridade, porém não lhe é permitido criar e aplicar uma ‘terza legge diversa’ de modo a favorecer o réu, pois, nessa hipóte se, se transformaria em legislador” (RTJ, 94:505). Em julgado posterior, a 2.a Turma do mesmo Pretório deu como assente aquele entendimento (RCrim 1.412, RTJ, 96:547). 40. Nossa opinião é a de que, em matéria de direito transi tório, não se pode estabelecer dogmas rígidos como esse da proibi ção da combinação de leis. Nessa área, a realidade é muito mais rica do que pode imaginar a nossa “vã filosofia”. Basta ver que, no próprio julgado relativo ao RCrim 1.412, em que a 2.a Turma do Supremo Tribunal Federal reafirmava a proibição de combina ção de leis, não se logrou impedir, em certa medida, esse mesmo fenômeno ao reconhecer-se a impossibilidade de aplicação da pena de multa do Código Penal (a lei mais benigna aplicada), para não incorrer-se na reformatio in peius. Com isso o resultado final do julgamento foi o seguinte: no tocante à multa, prevaleceu o critério do Decreto-lei n. 898/69 (lei de segurança nacional revogada) que não a previa; no tocante à pena privativa da liberdade, prevaleceu o Código Penal. É certo que, se tivesse havido recurso do Ministé rio Público, a decisão poderia ter sido outra, para manter-se a coe rência com a doutrina acolhida pelo acórdão. Essa possibilidade, entretanto, não nega o fato de que, no mundo da realidade, alguma forma de combinação de leis pode ocorrer, sem nenhum prejuízo para a ordem e a segurança jurídicas. Feita essa constatação, parece-nos que uma questão de direito transitório — saber que normas devem prevalecer para regular de terminado fato, quando várias apresentam-se como de aplicação pos sível — só pode ser convenientemente resolvida com a aplicação dos princípios de hermenêutica, sem exclusão de qualquer deles. E se, no caso concreto, a necessidade de prevalência de certos princípios superiores (como, no exemplo do acórdão citado, a proibição da reformatio in peius) conduzir à combinação de leis, não se deve temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois de acordo com os que profligam, como regra geral, a alquimia de preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as 38
outras. Não obstante, não vemos como negar razão a esta prudente observação de Basileu Garcia: “Esse critério, como orientação geral, é exato. Mas há casos em que a sua observância estrita leva a con seqüências clamorosamente injustas, e será necessário temperá-lo com um pouco de eqüidade. . . ” 14.
f)
Normas de direito processual penal e de execução
41. A Constituição Federal, ao estabelecer o princípio da anterioridade da lei, em matéria penal, diz expressamente que tal prin cípio se aplica ao crime e à pena (art. 5.°, XXXIX).' O Código Penal, nos arts. 1.° e 2.°, tem igualmente endereço certo ao “crime” e à “pena”, por se apresentar como regulamentação da norma constitu cional. Nada impede, pois, tratamento diferenciado em relação às normas de processo e de execução, não abrangidas pelos menciona dos preceitos. É o que dispõe expressamente o Código de Processo Penal: “Art. 2.° A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei ante rior. Art. 3.° A lei processual penal admitirá interpretação exten siva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. O Projeto de Código de Processo Penal de 1983, em tramitação no Congresso Nacional, contém idênticos dispositivos nos arts. 2.° e 3.°. Frise-se, porém, que nos referimos a “normas de processo e de execução”, o que significa, conforme já foi dito (supra, n. 28), nor mas que não sejam de direito material, isto é, que tenham a natureza e a essência de normas puramente processuais, não aquelas que, ape sar de se localizarem no estatuto processual ou na lei de execução, disciplinam uma relação de direito material como as que regulam, v. g., a decadência do direito de queixa ou de representação, a re núncia, o perdão (CPP, arts. 38, 49, 51), direitos do preso ou do con denado etc. 42. Assim, a dificuldade maior consistirá em separar-se o que há de direito material no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal e o que há de direito processual no Código Penal, 14.
Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 150.
39
para, após tal separação, aplicarem-se às normas de direito material os princípios de direito penal intertemporal, aqui estudados, e às normas de direito processual os princípios que lhes são próprios. (Sobre o tema, consultem-se: Frederico Marques, Tratado de direito processual penal, v. 1, p. 68 e s .; Rogério Lauria Tucci, Direito in tertemporal e a nova codificação processual penal, p. 114 e s.; Fer nando da Costa Tourinho Filho, Processo penal, v. 1, p. 91 e s.) Segundo lição de Hélio Tomaghi, “a norma de Direito judiciário penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma de lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior, à infração penal. Não há, nesse caso, retroatividade da lei proces sual, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria se a lei -pro cessual nova modificasse ou invalidasse atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor” 15. 43. Convém, entretanto, alertar para o fato de que, mesmo na área do direito processual intertemporal, há exceções à regra da aplicação imediata estatuída no art. 2.° do Código de Processo Penal, que podem derivar de disposições transitórias, geralmente editadas pelo legislador, ou da aplicação de princípios adotados pela jurispru dência, como ocorre em certas hipóteses de modificação da compe tência do juízo, com repercussão sobre o julgamento dos recursos, ou, ainda, em relação ao procedimento aplicável aos recursos inter postos na vigência da lei anterior (R T J, 96:541).
g)
Medidas de segurança
44. O art. 75 do Código Penal de 1940, não reeditado na Lei n. 7.209/84 (nova Parte Geral), dispunha: “As medidas de segurança regem-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevale cendo, entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução”. Como í.-tais medidas não são penas, sobre elas assim se expressou a Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos: “Preliminarmen te, é assegurado o princípio da legalidade das medidas de segurança; mas, por isso mesmo que a medida de segurança não se confunde 15. 40
Instituições de processo penal, v. 1, p. 174.
com a pena, não é necessário que esteja prevista em lei anterior ao fato, e não se distingue entre a lex rràtior e a lex gravior no sentido da retroatividade: regem-se as medidas de segurança pela lei vi gente ao tempo da sentença ou pela que se suceder durante a exe cução (art. 7 5 )”. 45. Apoiados em tais afirmações, alguns autores têm dito que, a respeito de medidas de segurança, vige o princípio da legali dade (exige-se previsão legal) mas não o da anterioridade da le i16. Vimos, contudo, que o princípio da legalidade se desdobra em quatro outros princípios, dentre os quais se inclui necessariamente o da lex praevia. Falar-se em legalidade sem anterioridade da leiem relação à conduta que autoriza a medida, é dizer-se muito pou co, pois sabido é que a lei retroativa pode igualmente, em certas circunstâncias, ser posta a serviço do arbítrio, do autoritarismo. Daí as restrições feitas por Heleno Fragoso17 quanto à inobservân cia do princípio em exame, em relação a tais medidas. Parece-nos, não obstante, que o tema perde boa dose de im portância, entre nós, diante da reformulação da Parte Geral (Lei n. 7.209/84), com a extinção da medida de segurança para os agentes imputáveis, bem como diante da abolição das medidas de segurança meramente detentivas ou de caráter patrimonial. Tais inovações, por serem induvidosamente mais benéficas, devem mesmo ter aplicação imediata, sem acarretar problemas maiores. Para o futuro, se o legislador pátrio pretender restabelecer algumas das medidas abolidas, que apresentam aspectos comuns com as penas (medidas detentivas, confisco, interdições e semelhantes), seria pru dente que, como consta do Código Penal da Áustria (art. 1.°, 2), se lhes estendesse a exigência de anterioridade da lei em relação ao fato causador da medida, admitindo-se tão-somente a aplicação ime diata da lei nova a fatos anteriores quando a medida da cpoca da sentença seja pelo menos comparável à que estava prevista na lei vigente à época da realização da conduta. Em relação às medidas de caráter puramente assistencial ou curativo, estabelecidas em lei para os inimputáveis, parece-nos evidentemente correta a afirmação 16. Assim Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 138; Salgado Martins, Direito penal, p. 433; Magalhães Noronha, Direito penal, v. 1, p. 542. 17. Lições, cit., p. 111,
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de sua aplicabilidade imediata, quando presente o estado de perigo sidade, ainda que possam apresentar-se mais gravosas, pois os remé dios reputados mais eficientes não podem deixar de ser ministrados aos pacientes deles carecedores só pelo fato de serem mais amargos ou mais dolorosos. Aqui, sim, se poderia falar em diferença subs tancial entre a pena e a medida, para admitir-se a exclusão da última das restrições impostas à primeira pelo art. 5.°, XXXIX e XL, da Constituição. Cavaleiro de Ferreira, comentando a legislação portuguesa, cuja Constituição, diversamente da nossa, dispõe que “ninguém pode so frer medida de segurança privativa da liberdade mais grave do que as previstas no momento da conduta”, conclui: “não é assim quanto a todas as medidas de segurança; há medidas de segurança que se justificam não só pelo interesse social mas são também justificadas inteiramente pelo interesse da pessoa a quem são aplicadas: só me didas terapêuticas ou curativas poderão ser aplicadas imediata mente . . . ” 18. Não há razão, pois, para pensar diferentemente no Brasil, onde a Constituição e a lei não impõem as mesmas restrições da legislação portuguesa.
h)
Problemas particulares de direito intertemporal
46. Sucessão de várias leis. Nos termos da Exposição de Mo tivos do Min. Francisco Campos, “ . .. no caso de sucessão de várias leis, prevalece a mais benigna, pois é evidente que, aplicando-se ao fato a lei posterior somente quando favorece o agente, em caso algum se poderá cogitar da aplicação de qualquer lei sucessiva mais rigorosa, porque esta encontrará o agente já favorecido por lei intermediária mais benigna”. Tais considerações continuam plenamente válidas, nada havendo a aduzir. 47. Norma penal em branco. Denominam-se normas penais em branco aquelas que estabelecem a cominação penal, ou seja, a sanção penal, mas remetem a complementação da descrição da con 18.
42
Direito penal português, v. 1, p. 127.
duta proibida para outras normas legais, regulamentares ou adminis trativas. Um exemplo temo-lo no art. 269 do Código Penal (“dei xar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja noti ficação é compulsória” ). Para saber, em concreto, se determinada conduta omissiva realiza o tipo penal em foco, torna-se necessário recorrer-se às normas complementares extrapenais que relacionam quais sejam as doenças de notificação compulsória. Como esses ti pos penais sofrem alteração de conteúdo sempre que se alteram as respectivas normas complementares (no exemplo, o rol das doenças de notificação compulsória), surge a questão de saber se, em relação a essas alterações, deve incidir a mesma regra da retroatividade da lex mitior, considerando-se abolido o crime sempre que a alteração da norma complementar importar na cessação da exigência cuja inob servância caracterizava o crime. A questão é bastante controver tida, conforme resenha apresentada por Frederico M arques19. Pen samos que, também aqui, não se deve adotar um pensamento radical, que, em direito penal, qUase sempre não é o melhor. O decisivo, no caso, é saber se a alteração da norma extrapenal implica, ou não, supressão do caráter ilícito de um fato. No exemplo do citado art. 269, a revogação da norma que incluía certa doença no rol das que eram de notificação compulsória, torna a omissão do médico, em relação a essa doença, um fato lícito penal, pelo que não pode deixar de ser retroativa. Nessa hipótese o que se alterou foi a própria matéria da proibição, com redução da área de incidência do tipo, o que, evidentemente, diz respeito ao “crime e à pena”. Não assim, porém, quando, para simples atualização de valores monetários, se modificam os quantitativos de tabelas de preço, como no exemplo da transgressão de tabelas de preço do art. 2.°, VI, da Lei n. 1.521/51. Frederico Marques, embora manifestando-se pela não-retroatividade das regras extrapenais, não deixa de admitir a distinção em foco, in verbis: “Não há dúvida de que certas distinções podem ser feitas. Se uma lei penal fala em menoridade pura e simples, para a tutela, então à lei civil cumpre cobrir o branco assim existente. Alterada a última, com a fixação do termo final da situação de aliem juris em idade inferior à da lei até então vigente, não há dúvida de que deve ser aplicado retroativamente o novo preceito, embora extra penal, porque a tutela da menoridade pela norma punitiva está liga da estreitamente ao conceito desta pelo Direito privado. Nos cri 19.
Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 222 e s.
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mes, entretanto, que dependem de tabelamento administrativo, a fCtroatividade não se justifica. Seria o mesmo que admitir-se a eficá cia retroativa de uma noíma técnica de trânsito posta em vigor para facilitar o tráfego e a circulação, tal como se o trânsito à direita passasse a ser contramão, e à esquerda a mão de direção. Em face dessa mudança, poder-se-ia declarar extinta a punibilidade por novatio legis, do motorista que fora declarado imprudente (e por isso condenado) por trafegar contramão? A norma penal não proíbe a venda pelo preço X, e sim, a venda acima do tabelamento, como imprudência também existe em trafegar contramão, e não pela es querda ou pela direita” 20. 48. Lei excepcional ou temporária. Dispõe o art. 3.° do Có digo Penal que “a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a deter minaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”. O ca ráter excepcional da lei, editada em períodos anormais, de convulsão social ou de calamidade pública, justifica a solução adotada. Como tal lei é promulgada para vigorar por tempo predeterminado, seria totalmente ineficaz se não fosse ultra-ativa. Assim, ainda quando mais severa, a lei temporária, por sua natureza, será sempre apli cável aos fatos cometidos durante sua vigência. E isso não fere, segundo se tem entendido, o princípio da retroatividade da lei pos terior mais benigna 21.
20. 21,
Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 227-8. Frederico Marques, Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 222.
5.° Vigência da lei penal no espaço (prin cípios de direito penal internacional) 49. A solução de problemas relacionados com a vigência espa cial da lei penal se resolve de acordo com as normas de direito po sitivo, aí compreendidos os tratados e as convenções internacionais, bem como segundo certos princípios aceitos, em doutrina, sem muita variação. São esses princípios: o da territorialidade, o do pavilhão (ou bandeira), o da personalidade (ou nacionalidade), o da defesa (ou real), o da universalidade (ou da justiça universal). Dentre todos, o princípio da territorialidade é o mais funda mental, por apresentar-se como norma geral, no art. 5.°, caput, do Código Penal. Os demais são princípios complementares que- ope ram como norma especial, nas hipóteses específicas em que têm aplicação.
a)
Princípio da territorialidade. Território nacional. Princípio do pavilhão ou da bandeira
50. Diz o art. 5.° do Código Penal: “Aplica-se a lei brasi leira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito inter nacional, ao crime cometido no território nacional”. Isso significa que, como regra, são submetidos à lei brasileira os crimes cometidos dentro da área terrestre, do espaço aéreo, e das águas fluviais e ma 45
rítimas, sobre os quais o Estado brasileiro éxércé sua soberania, pouco importando a nacionalidade do agente. A lei prevê algumas exceções a essa regra, ressalvando as convenções, tratados e regras de direito internacional. Um exemplo temo-lo nos agentes diplo máticos que, pela Convenção de Viena, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 56.435, de 8 de junho de 1965, gozam de “imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado” (art. 31, 1), sujeitando-se exclusivamente à jurisdição do Estado acreditante (art. 31, 4). As sim, tais agentes, quando praticam crime no território do Estado onde desempenham suas funções diplomáticas, não se submetem ao prin cípio da territorialidade, mas só respondem pelo fato perante a jus tiça do próprio Estado que representam. 51. O território nacional abrange toda a extensão terrestre situada até os limites das fronteiras do país, incluindo mares inte riores, lagos e rios; abrange ainda o mar territorial, as ilhas, sobre os quais o Brasil exerce a sua soberania, e o espaço aéreo que cobre essas extensões 1. Consideram-se, igualmente, extensão do território nacional “as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a ser viço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras mercantes ou de proprie dade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo cor respondente ou em alto-mar” (art. 5.°, § 1.°). 52. O princípio do pavilhão (ou da bandeira) atribui ao Es tado sob cuja bandeira está registrada a embarcação ou aeronave o poder de sujeitar à sua jurisdição penal os responsáveis por crimes praticados a bordo dessa embarcação ou aeronave, ainda que em alto-mar ou em território estrangeiro2. Trata-se de um princípio complementar ao da territorialidade, previsto nas convenções de Chicago e de Tóquio. Em razão desse princípio, adotado no art. 7.°, II, c, do Código Penal, aplica-se a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou navios brasileiros, mercantes ou de proprie dade privada (hipótese diversa da prevista no art. 5.°, § 1.°, que trata de embarcações ou aeronaves públicas, militares, ou a serviço do governo), quando no estrangeiro e ãí não tenham sido punidos 1. 2. 46
Cf. Heleno Fragoso, Lições, cit., p. 114. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 131-2.
(cf. Exposição de Motivos ao Código de 1969, fonte de inspiração do preceito). 53. O princípio da territorialidade, aparentemente de aplicação rnuito simples, pode oferecer dificuldades inesperadas nos delitos permanentes e continuados que, em certas circunstâncias, se consi deram praticados em mais de um país. Assim ocorre, freqüente mente, com as quadrilhas internacionais de tráfico de drogas, hipó tese em que o princípio da territorialidade e o da universalidade entram em questão. Recentemente o Supremo Tribunal, ao julgar o caso Buscetta, manifestou entendimento segundo o qual: “O princí pio da universalidade, inspirado no art. 5.°, II, a, do Código Penal (atual 7.°, II, d), não obsta a concessão da extradição ao Estado no qual ocorreram as práticas delituosas. Preferência da extradição re querida pelo Estado que — em caso de prática de crimes de igual gravidade, admita-se — pediu, em primeiro lugar, a entrega do extra ditando (art. 79, § 1.°, II, da Lei 6.815/80)” (Extradição 415).
h) Princípio da personalidade (ou da nacionalidade) 54. O Brasil não concede extradição de nacionais, exceto o naturalizado quando se tratar de crime comum (CF, art. 5.°, LI, e Lei n. 6.815, de 19-8-1980, art. 77, I). Conseqüência disso é submeter à lei brasileira os nacionais que tenham cometido crime no estrangeiro (CP, art. 7°, II, b), desde que ingressem no território nacional e se cumpram os demais requisitos do § 2.° do art. 7.° do Código Penal. Esse é hoje o principal fundamento do denominado princípio da nacionalidade, que portanto é subsidiário do princípio da territoria lidade 3. Tanto é assim que um dos requisitos para aplicação do prin cípio em exame é o de que o agente já não tenha cumprido pena ou sido absolvido no país onde praticou o crime (§ 2.°, d).
c)
Princípio da defesa (ou real)
55. Este princípio tem em vista a titularidade ou a naciona lidade do bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão pelo 3.
Nesse sentido, Cavaleiro de Ferreira, Direito penal, cit., v. 1, p. 139.
47
crime cometido. £ assim que o art. 7.°, 1, a a c, sujeita à lei bra sileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República, contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Municípios etc. Anota Nélson Hungria que o princípio em causa resulta da ne cessidade “de se acautelarem os Estados contra os crimes que se praticam no estrangeiro contra seus interesses vitais” 4.
d)
Princípio da universalidade (ou da justiça universal)
56. À luz do princípio da universalidade, os Estados, em es treita cooperação na luta contra o crime, deveriam obrigar-se a punir o criminoso que se encontra em seu território, seja qual for a nacionalidade do agente ou o lugar da prática do crime. Este prin cípio não pode, obviamente, ter aplicação senão secundária, em ca sos restritos, dada a diversidade dos sistemas penais existentes e os problemas resultantes dos denominados crimes políticos. Nossa legislação, contudo, o adota restritamente no art. 7.°, II, a (crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir), sendo exemplos mais freqüentes: o tráfico internacional de drogas, a falsificação de moeda, o tráfico de mulheres e outros. O Supremo Tribunal, contudo, tem afirmado o caráter subsidiário desse princí pio, dando prevalência ao da territorialidade, em matéria de extra dição (cf. Extradição 415).
e) Lugar do crime 57. Os princípios anteriormente examinados servem, como se viu, para possibilitar a definição dos limites da jurisdição penal do Estado, bem como para fixar as hipóteses de aplicação do direito estrangeiro. Questão prévia, entretanto, nessa matéria, que interessa igualmente à teoria do crime, é a fixação do lugar do delito, o locus delicti commissi. Por isso o Código Penal, no art. 6.°, adotando doutrina predominante da ubiqüidade, estatuiu que o crime se
4. 48
Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 144.
considera praticado “no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou cm parte, bem como onde produziu ou deveria produzirse o resultado” (art. 6.°). A teoria da ubiqüidade não tem acarretado na prática grandes problemas (v. g. duplicidade de julgamentos, no país e no estran geiro), visto como a exigência de entrada ou permanência no terri tório, ou de extradição, bem como a possibilidade de detração penal (art. 8.°), afastam os possíveis inconvenientes.
49
§ 6.° Concurso aparente de normas ou de leis penais
58. A tipicidade de uma conduta, ou seja, a subsunção de de terminada ação humana a um tipo legal de crime, pode oferecer ao aplicador da lei dificuldades significativas quando a mesma conduta criminosa apresente características previstas em mais de um tipo incri minador. Assim, por exemplo, no tráfico internacional de entorpecentes, sob a modalidade de importação clandestina, concorrem para a puni ção dessa conduta criminosa o art. 12 da Lei n. 6.368/76 (“impor tar . . . substância entorpecente . . . sem autorização legal”) e o art. 334, caput, do Código Penal (“importar . . . mercadoria proi bida”). Ocorrendo uma hipótese de “contrabando” internacional de tóxi cos, surge então a questão de saber se o agente praticou aqueles dois delitos ou apenas um deles, e, neste caso, qual deles. Um exame mais acurado, porém, dos tipos penais acima referi dos leva-nos à conclusão de que a carga de ilicitude e de culpabili dade do tráfico internacional de drogas encontra descrição e punição exaustiva e mais específica no art. 12 da Lei de Tóxicos, sem deixar margem à incidência concorrente de outro tipo penal. É que, entre as duas normas penais em foco, existe uma certa relação de hierarquia *, de modo que a aplicação de uma esgota a punição do fato, excluindo a aplicação cumulativa da outra. O con curso de normas não existia, em verdade, era só aparente. 1. Consulte-se a respeito Eduardo Correia, Teoria do concurso em direito criminal, p. 124; Damásio de Jesus, Direito penal, v. 1, p. 98. 50
Trata-se, pois, nesse exemplo, de uma das várias espécies de “concurso aparente de normas", para cuja solução a doutrina pre dominante oferece alguns critérios a seguir expostos.
a) “Lex specialis derogat legi generali” 59. Se entre duas ou mais normas legais existe uma relação de especialidade, isto é, de gênero para espécie, a regra é a de que a norma especial afasta a incidência da norma geral. Considera-se especial (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da geral (lex generalis) e mais o elemento especializador 2. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral. No exemplo do tráfico internacional de drogas, o legislador acrescentou, na Lei de Tóxicos, a capacidade de certos produtos de entorpecer ou de causar dependência, para dis tinguir tais espécies de produtos do gênero, isto é, de todos os demais que possam ser objeto de importação clandestina ou proibida. Logo, se a substância contrabandeada tem essa característica particular, o fato realiza o tipo especial do art. 12 da Lei n. 6.368/76, não o geral do art. 334, caput, do Código Penal. Há, exemplificativamente, rela ção de especialidade entre tipos básicos e tipos privilegiados (furto simples e furto privilegiado, homicídio simples e homicídio privile giado), entre tipos básicos e tipos especiais autônomos (homicídio e infanticídio) etc.
b) “Lex primaria derogat legi subsidiariae” 60. Segundo Honig, há subsidiariedade quando diferentes nor mas protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases, etapas ou graus de agressão. Nessa hipótese o legislador, ao punir a conduta da fase anterior, fá-lo com a condição de que o agente não incorra na punição da fase posterior, mais grave, hipótese em que só esta última prevalece. Expor a perigo a vida de outrem constitui o crime do art. 132 do Código Penal, cuja pena é de detenção de três meses a um ano “se o fato não constitui crime mais grave”. Essa norma é 2.
Bettiol, Diritto penale, cit., p. 620.
51
subsidiária em relação à da tentativa de homicídio, etapa mais grave subseqüente da mera exposição a perigo. A norma secundária só é aplicável na ausência de outra norma — a norma primária — , já que esta última envolve por inteiro a primeira. A subsidiariedade é expressa quando a própria lei ressalva a possibilidade de ocorrência de punição por fato mais grave, como ocorre no art. 132, citado. São exemplos de tipos expressamente sub sidiários: o do art. 177, § 1.°, I, do Código Penal, em relação ao do art. 3.°, X, da Lei n. 1.521/51; o do art. 132 em relação ao do art. 133 do Código Penal; o do art. 129, § 3.°, em relação ao do art. 121 do Código Penal etc. Nem sempre, porém, a subsidiariedade vem expressa na lei. Há subsidiariedade tácita nos tipos delitivos que descrevem fase prévia, de passagem necessária para a realização do delito mais grave cuja punição abrange todas as etapas anteriores de execução. Assim ocorre com a tentativa em relação ao crime consu mado, com as lesões corporais em relação ao homicídio etc. Note-se que há uma zona cinzenta entre o princípio da subsi diariedade e o da consunção a seguir examinado, a ponto de não se poder distinguir com clareza, em certas hipóteses, o domínio de um ou outro, divergindo os autores a respeito.
c) “Lex consumens derogat legi consumptae” 61. O princípio ne bis in idem, freqüentemente invocado em direito penal, impede a dupla punição pelo mesmo fato. Esse o pensamento orientador do princípio da consunção, muito discutido, de conceituação pouco precisa e, em alguns casos, de utili dade problemática ante a possibilidade de solução satisfatória com a aplicação dos princípios anteriormente examinados. Todavia, há casos sem dúvida não abrangidos pela especialidade ou subsidiariedade (pós-fato impunível) que encontram solução com aplicação do princípio da consunção, motivo suficiente para sua acei tação doutrinária. Há, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais específicos que, por visarem a proteção de bens jurídicos diferentes, não se situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade) 52
nem se colocam numa posição de maior ou menor grau de execução do crime. Um exemplo disso temos na violação do domicílio (CP, art. 150), que lesa a liberdade da pessoa, e no furto (art. 155), lesivo ao patrimônio. Se, todavia, a violação da residência é o meio empregado para a consumação do furto, a punição deste último crime absorve a puni bilidade do primeiro. A norma mais ampla, mais abrangente, do furto, ao incluir como um de seus elementos essenciais a subtração, ou seja, o apossamento da coisa contra a vontade do dono, abrange a hipótese de penetração na residência, contra a vontade do dono, para o apossamento da coisa. Essa norma mais ampla consome, absor ve a proteção parcial que a outra menos abrangente objetiva. Note-se que a violação do domicílio não é etapa ou passagem necessária para o furto, como ocorre com a lesão corporal em rela ção ao homicídio, pelo que a aplicação do princípio da subsidiariedade tácita seria discutível, embora defensável. Mas, estando esse fato prévio abrangido pela prática do crime mais grave, numa relação de meio para fim, é por este consumido ou absorvido. O mesmo ocorre com certas modalidades de falsum e estelio nato, quando aquele se exaure na fraude, que constitui elemento essencial deste último. Isso acontece, por exemplo, na falsificação de um documento que, usado como fraude para obtenção de lucro patrimonial indevido, se esgota em sua potencialidade lesiva, per manecendo sem qualquer outra finalidade ou possibilidade de uso (ex.: alguém falsifica a assinatura do correntista em um cheque e obtém, no Banco sacado, o pagamento indevido). Como o cheque esgotou-se na consumação do estelionato, não podendo mais ser utili zado para outros fins, o crime-fim de estelionato absorve o falsum. Assim, porém, não ocorre na falsificação de certos documentos que, utilizados na prática do estelionato, continuam com a potencia lidade lesiva para o cometimento de outros delitos da mesma ou de variada espécie. Nesta hipótese verifica-se o concurso formal de crimes (falso e estelionato), como ocorre, por exemplo, com a falsi ficação de um instrumento de mandato para a emissão de cheque do pretenso mandante e seu recebimento no Banco sacado. Consumado o estelionato, a procuração, se contiver poderes para outros saques ou para outros fins, não se exaure na fraude daquele delito. 53
d) Antefato e pós-fato impuníveis 62. Hipótese de antefatos impuníveis temo-los nos exemplos acima da violação de domicílio, no furto, e de certas falsificações, no estelionato. Alguns autores (caso de Wessels) consideram que, no antefato impunível, verifica-se um caso de subsidiariedade tácita 3. O resultado não se altera essencialmente. O pós-fato impunível se ajusta, sem dúvida, ao princípio da consunção. Ocorre, em geral, com atos de exaurimento do crime consu mado, os quais estão previstos também como crimes autônomos. A punição do primeiro absorve a dos últimos. Assim, o furto consu mado com a posterior destruição ou danificação pelo uso da coisa pelo próprio agente do furto. Como o agente, ao furtar a coisa, fê-lo para uso ou consumo, a punição pela lesão resultante do furto abran ge a lesão posterior pelo crime de dano (art. 163). Note-se, porém, que, se o agente vende a coisa para terceiro de boa-fé, comete estelionato em concurso material, com o antece dente furto, por empreender nova lesão autônoma contra vítima dife rente, através de conduta não compreendida como conseqüência na tural e necessária da primeira 4.
3. Direito penal, cit., p. 181. 4. Wessels, Direito penal, cit., p. 181.
§ 7 . ° O Código Penal brasileiro. Evolução histórica a)
Direito penal indígena e Ordenações do Reino. Livro V das Ordenações Filipinas
63. O direito penal dos povos indígenas, nas terras brasileiras, na época do descobrimento (século X V I), era tão primitivo e rudi mentar quanto a formação cultural dos aborígenes que habitavam esta parte do continente americano. Baseava-se, exclusivamente, em costumes e crenças tribais que, segundo documentos da época, in cluíam, entre outras práticas, o canibalismo (geralmente em ritual no qual se devorava o prisioneiro), a vingança compensatória (es pécie de talião aplicado pelo próprio ofendido), sem falar na jpermissividade, em certos casos, do uxoricídio, do infanticídio, do abor to, da eutanásia etc. L Tratava-se de um direito penal — se é que assim poderia denominar-se — difuso, inexorável, pautado pela res ponsabilidade objetiva e coletiva, que facilmente transitava do agente para terceiros 2, permeado de mitos e tabus. Comõ salienta o autor citado, é extremamente difícil tentar compreender a vida de um
1. Cf. Bemardino Gonzaga, O direito penal indígena, p. 85-6, 109, 125, 134-7, 157. 2. Bernardjno Gonzaga, O direito penal, cit., p. 113-4, 119.
55
povo assim primitivo, pois além de animista, místico, envolvido por tabus, possuía uma lógica que não era a nossa 3. Salienta, corretamente, Pierangelli, que, “dado o seu primarismo, as práticas punitivas das tribos selvagens que habitavam o nosso país, em nenhum momento influíram na nossa legislação” 4. 64. A verdadeira história do direito penal brasileiro começa, pois, no período colonial, com as Ordenações Afonsinas, vigentes em Portugal à época do descobrimento, seguidas pelas Manuelinas e, por último, pelas Filipinas. Mas, na verdade, em relação ao Brasil, as Afonsinas não chegaram a ter aplicação, por ausência de mma organização estatal adequada; as Manuelinas, publicadas em 1521, tiveram, por sua vez, aplicação escassa, até que foram substituídas pelas Filipinas, publicadas em janeiro de 1603 e revalidadas por D. João IV em 1643. Estas últimas, as Filipinas, em cujo Livro V se encontra a codificação penal do Reino, é que foram aplicadas, com toda a sua dureza, durante o Brasil colonial e, depois disso, até a edição e início de vigência do Código Criminal do Império, de 1830. Note-se que, mesmo depois da Independência (7-9-1822), conti nuou o país a reger-se por aquelas ordenações até se dar a sua substituição pelo ordenamento jurídico editado pelo Estado recémcriado. 65. As Ordenações Filipinas refletiam o espírito então do minante, que não distinguia o direito da moral e da religião. Tanto é assim que logo nos primeiros títulos do famigerado Li vro V tem início a previsão de penas para hereges e apóstatas, que arrenegam ou blasfemam de Deus ou dos santos, para feiti ceiros, para os que benzem cães etc. A palavra “pecado” abunda no texto dos tipos penais e até em título, como ocorre com o de n. XIII, in verbis: “Dos que commetem pecado de sodomia, e com alimárias”. A pena criminal, extremamente rigorosa, fre qüentemente a de morte, era utilizada para os atentados contra o rei e o Estado, para repressão do pecado, dos desvios de normas éticas e, por fim, dos atos que produziam danos. O crime de Iesa-majestade, ou de traição ao rei ou ao Estado — comparado, no Título VI, à lepra incurável que contaminava os descendentes 3. 4. 56
O direito penal, cit., p. 60. Códigos Penais do Brasil, p. 6,
— era punido com “morte natural cruelmente” e confisco de todos os bens em prejuízo dos filhos e de outros descendentes ou her deiros. Tenha-se em mente o dramático exemplo do nosso Tiradentes. Segundo Basileu Garcia, “tão grande era o rigor das Orde nações, com tanta facilidade elas cominavam a pena de morte, que se conta haver Luiz XIV interpelado, ironicamente, o embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida” 5. A severidade desse Código não contrastava, contudo — repi ta-se — com o espírito dos colonizadores da época, pois se as leis eram cruéis os homens não deixavam por menos. Relata o Pe. Vieira, referindo-se ao Maranhão, em carta de 20 de abril de 1657, dirigida ao Rei D. Afonso VI, sucessor de D. João IV, o seguinte: “As injustiças e tiranias que se têm executado nos na turais destas terras excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram, por esta costa e sertões, mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades; e disto nunca se viu castigo”. E que dizer da escravidão? O Livro V das Ordenações Filipinas continha, em resumo, um direito penal de origem e conteúdo medievais, traduzido em uma legislação qualificada por Melo Freire, de “inconseqüente, injusta e cruel”.
b)
O Código Criminal do Império (1830)
66. Proclamada a Independência do Brasil (1822) e promul gada a nossa primeira Carta Constitucic^al (1824), contendo im portantes dispositivos que repercutiam diretamente na esfera da le gislação criminal, não mais seria possível retardar a elaboração de um novo código substitutivo das velhas Ordenações do Reino. A mesma preocupação, aliás, já existia em Portugal onde o professor de Coimbra Melo Freire, sob a influência das idéias do iluminismo e particularmente do pensamento de Beccaria, elaborara o Projeto de Código Criminal, impresso em 1823, mas que, por razões polí ticas, não chegou a transformar-se em lei, apesar de redigido pri 5,
Instituições, cit.? v. 1, t. 1, p. 116. 57
morosamente e de possuir uma sistemática razoável dos diversos crimes, segundo Eduardo Correia6. No Brasil, contudo, onde as razões políticas já atuavam em sentido oposto, foi possível chegar-se a bom termo com a -aprova ção, em dezembro de 1830, do Código Criminal do Império do Brasil. Esse Código, que mereceu muitos louvores e, na época, influiu sobre a legislação penal de outros países, resultou principal mente do Projeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos, formado em Coimbra e perfeitamente atualizado com os ideais do iluminismo e da Revolução Francesa, que constituíam a tônica dos movimentos renovadores da época. Sobre a significativa importância dessa nova codificação, assim se manifestou, entre outros, conhecido penalista: “Gran importancia tuvo el código del Brasil de 1830, elaborado fundamentalmente por José Clemente Pereira y Bernardo Vascon celos. Era un código de corte kantiano, com penas fijas y racionales, que debían tener en cuenta la ‘sensibilidad’ de la víctima, elemento característico del talión kantiano. Fue de trascendencia superlativa para América Latina, porque servió de modelo al código espanol de 1848, debido a Joaquín Francisco Pacheco. "El código espanol fue reformado en detalle en 1850 y en 1870, y estos sucesivos códigos espanoles (particularmente el de 1870) fueron se guidos por la mayoría de los códigos latinoamericanos del siglo pasado” 7. 67. Divide-se o Código em exame em quatro partes: a pri meira, a Parte Geral, as restantes, a Parte Especial, embora sem essas denominações. Entre as inovações importantes nele contidas, destacam-se: nos arts. 1.° e 33, o princípio da anterioridade da lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia); no art. 9.°, o reconhecimento da liberdade de informação e de opinião, con tanto que sem deturpações, sem provocação de desobediência às leis e, quando se constituírem em censura aos atos do governo e da pública administração, que se faça “em termos, posto que vigo rosos, decentes e comedidos”; no art. 36, a proibição de condena ção baseada em mera presunção, “por mais veemente que seja”. Somem-se a isso os princípios liberais contidos na Carta de 1824 6. 7. 58
Direito criminal, v. 1, p. 105. Raúl Zaffaroni, Manual de derecho penal, p. 123.
(proibição de perseguição por motivos religiosos, proibição de pri são sem culpa formada, sem flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade, instituição da fiança, do juiz natural, do princípio da personalidade da pena, com a abolição do confisco de bens e das penas cruéis de açoites, tortura e marca de ferro quente etc.) e se terá um quadro bem nítido da verdadeira revolução, na esfera do direito penal, representada pela nova legislação do nascente Im pério do Brasil. 68. O Código de 1830 conservou, entretanto, a pena de morte pela forca, com um ritual macabro que acompanhava o condenado e impunha a proibição de enterro “com pompa” (arts. 38 a 42). Conservou, ainda, a pena de galés, com “calceta no pé e corrente de ferro”, além do trabalho forçado (art. 44); manteve o bani mento do país (art. 50), o degredo para lugar determinado (art. 51) e o desterro para fora do lugar do delito ou da principal residência do réu e do ofendido (art. 52). Por fim, abriu uma negra exceção contra o réu escravo, permitindo a condenação deste a pena de açoites, quando incorresse “em pena que não seia a capital ou de g a lé s ...” (art. 60). 69. Vê-se, pois, que o festejado Código em exame, ao lado das virtudes inegáveis que o ornavam, exibia, ainda, alguns resíduos de uma sociedade escravocrata, que não abria mão de certos ins trumentos de repressão, utilizados no passado. Mas, para surpresa dos pesquisadores de hoje, as críticas da época se concentravam não sobre esses aspectos mas sobre o caráter liberal do novo código que se supunha responsável pelo recrudescimento da criminalidade 8. E, assim, não tardou o surgimento de uma reação antiliberal que, durante a vigência do novo estatuto, logrou editar algumas leis de cunho retrógrado, principalmente contra escravos. Não há dúvida, entretanto, que, apesar disso, o Código de 1830 — o primeiro do Brasil — pelo que representa de desvinculação com o anterior sistema penal medieval, por ele revogado, pelo que significa de expressão das idéias liberais e humanistas, nascidas com o iluminismo, e pela singular circunstância histórica de situar-se entre os primeiros, no mundo, a adotar tais idéias, constitui monu mento legislativo de que devem orgulhar-se os estudiosos brasileiros. 8.
Cf. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 122. 59
c)
O Código Penal Republicano (1890) e a Consolidação das Leis Penais (1932)
70. Com a abolição da escravidão (1888), o desmoronamento da monarquia e a proclamação da República (1889), abre-se uma nova época que se caracterizará pela inadiável necessidade de adap tação das leis vigentes às exigências da burguesia urbana e da aris tocracia que então se forma sobre a nova ordem de coisas. Assim, com impressionante velocidade, os novos detentores do poder cuida ram de substituir o Código do Império. Não foi tarefa difícil, pois o Conselheiro Batista Pereira já vinha trabalhando em um projeto de reforma penal, ao ser proclamada a República. Designado pelo Min. Campos Sales, do Governo Provisório, para a elaboração do Código republicano, desincumbiu-se logo da missão entregando, em prazo curtíssimo, o projeto que, em 11 de outubro de 1890, veio a transformar-se no segundo Código Penal do Brasil, primeiro da República. Não teve, porém, esse Código o mesmo sucesso do anterior, provavelmente pela pressa com que foi feito e promulgado ou, talvez, por não ter sido bem aceito e convenientemente aplicado. As crí ticas que sobre ele desabaram foram numerosas e contundentes. E a tal ponto que mal entrara em vigor teve início o movimento para reformá-lo com a apresentação pelo Deputado Vieira de Araújo, em 1893, menos de três anos depois, de projeto de um novo código. A partir de então, sem longos hiatos, outras iniciativas idênticas marcaram a vida atribulada do Código em exame que, se não foi logo substituído, sofreu a interferência de inúmeras leis modificativas. Em 14 de dezembro de 1932, outro Governo Provisório, considerando que essas modificações constavam de grande número de leis esparsas, algumas das quais profundamente alteradas, o que dificultava não só o conhecimento como a aplicação da lei penal, resolveu adotar, “como Consolidação das Leis Penais”, o trabalho de Vicente Piragibe, publicado sob o título de “Código Penal Bra sileiro, completado com as leis modificadoras em vigor”. Essa Consolidação passou a fazer o papel de Código Penal até o advento do Código de 1940. 71. A má fama do Código de 1890 foi, contudo, posta sob reservas por Nélson Hungria, em conferência proferida na Facul 60
dade de Direito de São Paulo, em 1943, com o título de “A evo lução do direito penal brasileiro” 9. Nessa conferência, o grande penalista atribui os males do referido Código menos a seus defeitos do que à precariedade da cultura jurídica da época, onde a oratória pomposa ocupava o lugar da pesquisa científica e bem orientada. Fala Hungria no predomínio entre nós, no início do século, das idéias “mal compreendidas e tendenciosamente utilizadas” da escola positiva, quase sempre manipuladas por advogados de júri, aos quais “nada mais era preciso que cultivar o gênero patético ou o estilo condoreiro e imprimir a marca de ciência exata às lucubrações do nihilismo penal, cuja bandeira vermelha fora desfraldada por Cesar Lombroso”. Nessa mesma conferência, referindo-se à pobreza da bibliografia jurídico-penal de então, “enfezada e carrasquenha”, cita Hungria passagem de Esmeraldino Bandeira, na qual este último critica, “molhando a pena em vinagre”, os anotadores do Código que “não faziam avançar um passo na evolução da ciência jurídica” e que para esta estavam como certos indivíduos para a indústria nacional: “Mandam estes últimos vir do estrangeiro um por um dos elementos de que se compõem um determinado produto, inclu sive o invólucro. Reúnem e colam esses elementos e, metendo-os depois no invólucro referido, os expõem à venda como produto nacional. Mutatis mutandis é o que praticam aqueles anotadores. Apanham aqui e recortam ali as lições de uns juristas e as decisões de uns tribunais. Reúnem e colam tudo isso e metem depois num livro, que fazem publicar. Põem na lombada o seu nome de autor, e nesse nome circula e é citado o livro. . . ” 72. Compreende-se que, em um panorama como esse, des crito por quem o conhecia bem de perto, carecia o país não só de um bom código penal como, e principalmente, de uma ciência penal que pudesse oferecer os métodos de pesquisa e os fundamentos científicos para a modernização de nossa legislação penal. Essa deficiência começaria a desaparecer com o surgimento de uma nova plêiade de penalistas, atualizados com os autores ita lianos e alemães, dentre os quais se destacam, de modo especial, Galdino Siqueira, Costa e Silva e Nélson Hungria. 9.
RF, 95:5 e s. 61
73. A Consolidação das Leis Penais, aprovada pelo Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de 1932, não constituía um novo Código, pois esse mesmo Decreto dispunha, no parágrafo único do art. 1.°, que “a Consolidação assim aprovada e adotada, não revo gará dispositivo algum da legislação penal em vigor, no caso de incompatibilidade entre os textos respectivos”. Era, entretanto, um precioso trabalho de composição do Código de 1890 com a frag mentária legislação posterior, levado a cabo, “com paciência bene ditina e habilidade de um mosaísta” (Hungria), pelo Des. Vicente Piragibe. Situa-se a Consolidação como um texto de transição entre o Código de 1890 e a grande reforma penal que seria empreendida durante o Estado Novo, em 1940/1941, sob os auspícios do Mi nistro da Justiça Francisco Campos, abrangendo não só a legislação penal material como também a processual.
d)
O Código Penal de 1940
74. Do que foi dito anteriormente, conclui-se ser inteiramente procedente a afirmação do Min. Francisco Campos de que com o Código de 1890 nasceu a tendência de reformá-lo. E houve ten tativas concretas nesse sentido. Relata, a propósito, a Exposição de Motivos do Código de 1940: “Já em 1893, o Deputado Vieira de Araújo apresentava à Câmara dos Deputados o projeto de um novo Código Penal. A este projeto foram apresentados dois subs titutivos, um do próprio autor do projeto e o outro da Comissão Especial da Câmara. Nenhum dos projetos, porém, conseguiu vin gar. Em 1911, o Congresso delegou ao Poder Executivo a atri buição de formular um novo projeto. O projeto de autoria de Galdino Siqueira, datado de 1913, não chegou a ser objeto de consideração legislativa. Finalmente, em 1927, desincumbirido-se de encargo que lhe havia sido cometido pelo Governo, Sá Pereira organizou o seu projeto, que, submetido a uma Comissão Revisora composta do autor do projeto e dos Drs. Evaristo de Morais e Bulhões Pedreira, foi apresentado em 1935 à consideração da Câ mara dos Deputados. Aprovado por esta, passou ao Senado e neste se encontrava em exame na Comissão de Justiça, quando sobreveio o advento da nova ordem política”. Instituído o Estado Novo, de inspiração ditatorial, em 10 de novembro de 1937, e concentrados 62
nas mãos do Presidente Getúlio Vargas os Poderes Executivo e Legislativo, confiou-se logo, a Alcântara Machado, Professor da Faculdade de Direito de São Paulo, a incumbência de elaboração do projeto de Código Penal, visto que a Conferência de Criminologia de 1936, realizada no Rio de Janeiro, apontara defeitos e la cunas no projeto de Sá Pereira. Em maio de 1938, entregou o Professor paulista ao Governo o projeto da Parte Geral e, em agosto do mesmo ano, fê-lo em relação à Parte Especial. Houve louvores e críticas ao projeto que, segundo Hungria, corrigiu vários defeitos do anteriormente elaborado por Sá Pereira, mas, por sua vez, apresentava “algumas falhas de técnica e certas soluções desatentas aos conselhos da mais recente política criminal”. Assim, foi constituída Comissão Revisora, integrada por Vieira Braga, Nélson Hungria, Narcélio de Queiroz e Roberto Lyra, a qual, com a colaboração epistolar de Costa e Silva, desincumbiu-se da redação do Projeto que, pelo Decreto-lei n. 2.848, de 7 de de zembro de 1940, se transformaria no Código Penal de 1940, o ter ceiro do Brasil, com virtudes e defeitos que serão a seguir apon tados dentro de um enfoque amplo, desprezando-se detalhes e aspectos secundários, já por demais conhecidos. 75. O Código Penal de 1940 recebeu influência marcante do Código italiano de 1930 (o famoso Código Rocco) e do suíço de 1937. Essa influência é geralmente reconhecida e foi atestada por Costa e Silva1,(). O curioso é que, fruto de um Estado dita torial e influenciado pelo código fascista, manteve a tradição liberal iniciada com o Código do Império. São palavras de Costa e Silva, não contraditadas pelos demais autores: “Nascido embora sob o regime do Estado Nacional, o código não apresenta peculiaridades que lhe imprimam o cunho de uma lei contrária às nossas tradições liberais” 11. Basta mencionar que não adotou a pena de morte nem a de ergástulo (prisão perpétua), do modelo italiano. Uma das maiores virtudes do novo Código — senão a maior — é a boa técnica e a simplicidade com que está redigido, tor nando-o uma lei de fácil manejo, fato que lhe tem acarretado me recidos elogios. Por outro lado, na época em que veio à luz, incor 10. 11.
Código Penal, v. 1, p. 8. Código Penal, cit., p. 9. 63
porava o que se tinha de melhor em outros códigos, circunstância que levou o 2.° Congresso Latino-Americano de Criminologia, rea lizado em Santiago, no ano de 1941, a dedicar-lhe moção de aplauso pela sua estrutura, técnica e adiantadas instituições. 76. A novidade mais saliente, em relação ao sistema anterior, está na adoção do duplo binário de acordo com o modelo italiano (cf. Exposição de Motivos, n. 33, segundo parágrafo), que se uti liza, conjuntamente, da pena e da medida de segurança como res postas básicas ao crime cometido. Tal inovação resultou de uma política criminal híbrida, ou de transação, expressamente confessada neste tópico da Exposição de Motivos: “Coincidindo com a quasetotalidade das codificações modernas, o projeto não reza em car tilhas ortodoxas, nem assume compromissos irretratáveis ou incon dicionais com qualquer das escolas ou das correiítes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele, os postu lados clássicos fazem causa comum com os princípios da Escola Positiva” (n. 3). Entre os “postulados clássicos”, adotou a pena retributiva com “finalidade repressiva e intimidante”, a que se re fere a mesma Exposição, linhas adiante (n. 5 ); entre os “princípios da Escola Positiva”, acolheu as medidas de segurança, definidas também nessa Exposição, como “medidas de prevenção e assistência social relativamente ao ‘estado perigoso’ daqueles que, sejam ou não penalmente responsáveis, praticam ações previstas na lei como cri me” (n. 33). 77. O Código de 1940 possui, entretanto, a mácula indelével do período histórico de entre-guerras em que foi gerado. É um estatuto de caráter nitidamente repressivo, construído sobre a crença da necessidade e suficiência da pena privativa da liberdade (pena de prisão) para o controle do fenômeno do crime. A própria me dida de segurança que deveria distinguir-se da pena, outra coisa não tem sido, na prática brasileira, senão privação da liberdade, com todos os aspectos de pena indeterminada e, em alguns casos, de arremedo de prisão perpétua. Essa deturpação, que também se ve rificou na aplicação de outros institutos 12, revelou, logo cedo, aos 12. Segundo René Dotti, “o fracasso, das penas institucionais e entre elas, por excelência, a prisão, não reside em sua natureza mesma — poir64
nossos olhos, que a bondade de uma lei está mais na sua eficácia do que nas soluções mais avançadas e pouco factíveis, diante de uma certa realidade sócio-econômica. Assim, não se tendo cons truído, no Brasil, em número suficiente, os estabelecimentos pêhais necessários (penitenciárias, colônias, casas de custódia e tratamento, institutos de trabalho, reeducação e ensino, cadeias públicas etc.), restou do Código de 1940 apenas o seu lado repressivo, como instrumento de rotulagem e marginalização de grande massa de in divíduos, condenados a penas quase sempre não executadas, mas suficientemente poderosas para colocá-los, como foragidos, na clan destinidade onde sobreviver significa, em regra, praticar novos de litos ou, no mínimo, passar ao rol dos malditos e explorados que, para não serem presos, têm que submeter-se a toda ordem de acha ques e humilhações. Ao lado disso, no interior dos presídios, a superpopulação e a falta de condições mínimas a um tratamento penal adequado transformavam o período de execução da pena em verdadeiro estágio para incremento das tendências delinqüenciais. O sursis transformou-se em “impunidade” ; o livramento condicional, em mero encurtamento de pena. É assim que a própria lei penal, de meio de controle do crime, transmuda-se em fator criminógeno13. 78. Essas circunstâncias e outras aliadas às profundas muta ções ocorridas no quadro social, político e econômico brasileiro, após a década de 50, levaram o próprio Nélson Hungria a aceitar a incumbência de elaborar anteprojeto de novo Código Penal, apre sentando-o ao Governo no ano de 1963. Esse anteprojeto, sub metido a revisão final por Comissão integrada pelos Professores Benjamin Moraes Filho, Heleno Cláudio Fragoso e Ivo D’Aquino, veio a transformar-se, em circunstâncias pouco esclarecidas (consta que o projeto não estava concluído), no Código Penal de 1969, editado pela Junta Militar então no Poder. Mal recebido pela crí tica, teve o novo estatuto o seu início de vigência adiado por mais de uma vez até que, no Governo do Presidente Geisel, optou-se pela reforma parcial do Código de 1940 e pela revogação definitiva quanto devem ser mantidas para reagir às expressões mais graves de crimes e da condição pessoal de alguns autores — porém na modalidade como são executadas e nos lugares onde são cumpridas: as chamadas instituições com pletas e austeras" (Os limites democráticos do novo sistema de. penas, p. 9-10). 13. Cf. Radbruch e Gwinner, Historia de la criminalidad, cit., p. 104. 65
do Código de 1969, o que de fato se deu, respectivamente, pelas Leis n. 6.416, de 24 de maio de 1977, e 6.578, de 11 de outubro de 1978. Sobre o Código que jamais entrou em vigor, diz Heleno Fra goso, membro da Comissão Revisora, o seguinte: “Após longa va cância, de quase dez .anos, o CP de 1969 foi finalmente revogado pela Lei n. 6.578, de 11 de outubro de 1978. É evidente que aquele código, elaborado em época bem diversa, não correspondia, às exigências atuais de nosso direito penal, e sua revogação merece aplauso” 14. 79. Prossegue, então, o Código de 1940 a sua vigência, já agora com as alterações determinadas pela Lei n. 6.416, de 1977, que nele introduziu significativas modificações no título relativo às penas 15. Tais modificações, porém, embora bem recebidas nos meios jurídicos, caracterizaram uma providência urgente e de transição, de claradamente “com a finalidade de buscar eficiente solução, a curto prazo, das mais agudas dificuldades no campo da execução pe n a l . . . ” (cf. Exposição de Motivos do Min. Armando Falcão). Assim, se, de um lado, amenizaram o problema da superlotação dos estabelecimentos prisionais, de outro, não poderiam ser tidas como solução definitiva para tal problema e menos ainda conside rar-se reforma penal verdadeiramente significativa e profunda. Essa reforma seria, com efeito, encetada em outro Governo, com o Mi nistro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, conhecedor dos problemas que nos afligiam no âmbito da administração da Justiça criminal, por ter sido Relator, na Câmara dos Deputados, da CPI do Sistema Penitenciário (1976) e do Projeto que se transformou na Lei n. 6.416, de 24 de maio de 1977.
e)
A Reforma Penal de 1984
80. Tão logo empossado no cargo, o Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel deu início aos estudos para a reforma penal 14. Lições, cit., p. 68. 15. Para maiores informações sobre essa lei e seus antecedentes his tóricos, consulte-se Armida Bergamini Miotto, A reforma do sistema de penas, Revista de Informação Legislativa, 54:153. 66
constituindo, através da Portaria n. 359, de 22 de abril de 1980 (DOU, 24 abr. 1980, p. 7190), Comissão integrada pelo Prof. Manoel Pedro Pimentel, pelo Dr. Hélio Fonseca e pelo autor destas linhas para examinar e emitir parecer sobre o Projeto de Código de Processo Penal, aprovado pela Câmara mas retirado pelo Go verno, quando em tramitação no Senado Federal. Outra Comissão, constituída pelo autor destas linhas, pelo Dr. Hélio Fonseca e pelo Prof. Rogério Lauria Tucci (Portaria n. 839, de 1-9-1980, DOU, 18 abr. 1980, p. 18698), deveria incumbir-se da compatibilização do texto do estatuto processual com o Anteprojeto de Código de Execuções a ser elaborado pelo antigo Conselho Nacional de Política Penitenciária — CNPP. Com p. evolução dos trabalhos dessas duas Comissões, que nessa altura já estavam informalmente acrescidas de outros colaboradores espontâneos, chegou-se à conclusão da neces sidade de estender-se a reforma ao Código Penal, sem o que pre judicados ficariam os dois outros projetos em estudo. Convencido igualmente dessa necessidade, constituiu o Ministro da Justiça, em 27-11-80, pela Portaria n. 1.043 (DOU, 1.° dez. 1980) outra Comissão para elaborar anteprojeto de reforma do Código Penal. Compuniiam essa Comissão, além do autor deste estudo — que tfeve a honra de a presidir — mais os seguintes juristas: Francisco Serrano Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale Júnior, Rogério Lauria Tucci, René Ariel Dotti e Hélio Fonseca. Foi assim que, em dezembro de 1980, após debates realizados no Instituto dos Advogados Brasileiros (julho de 1980) e no Con selho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (julho de 1980), definiu-se o quadro de uma ampla reforma do sistema criminal brasileiro, a ser empreendida em duas etapas, a saber: na primeira, seriam concluídos e devidamente encaminhados os Anteprojetos de Código Penal — Parte Geral, de Código d,e Processo Penal e de Lei de Execução Penal; na segunda etapa, cuidar-se-ia do Código Penal — Parte Especial e da Lei das Contravenções Penais. Essa divisão da reforma em duas fases distintas ensejaria an tecipar-se a inadiável reformulação do anacrônico, deficiente e insu portável sistema penitenciário brasileiro, bem como encetar-se a tão reclamada atualização dos métodos e da própria estrutura da Jus tiça criminal de primeira instância. Além disso, permitiria que a elaboração da Parte Especial — onde se situavam temas extrema mente polêmicos, ainda não suficientemente debatidos e amadure cidos — pudesse desenvolver-se sem pressa, sem correrias, sem 67
perigosas improvisações que tanto comprometeram, como se viu, o primeiro Código republicano. 81. A primeira etapa desenvolveu-se dentro das melhores ex pectativas. Em 18 de fevereiro de 1981, encaminhou-se ao Minis tério da Justiça o Anteprojeto de Código Penal — Parte Geral, pu blicado logo a seguir pela Imprensa Nacional para recebimento de sugestões. Em 27 de março de 1981, seguiu-se o Anteprojeto de Código de Processo Penal, igualmente publicado pela Imprensa Na cional, em junho do mesmo ano, para críticas e sugestões. Final mente, em 21 de julho de 1981, fez-se a entrega do Anteprojeto de Lei de Execução Penal, também publicado para os mesmos fins. 82. O ano de 1981 foi praticamente dedicado à realização, em todo o País, de ciclos de conferências e debates sobre a projeta da reforma penal. Entrementes, chegavam ao Ministério da Justiça sugestões e críticas sobre os anteprojetos dados à publicação. Em junho desse ano, constituiu o Ministro da Justiça, pela Portaria n. 371, de 24 de junho de 1981 (DOU, 24 jun. 1981, p. 11880), as seguintes Comissões Revisoras, que se incumbiriam do exame das sugestões, da revisão dos anteprojetos, e da redação dos textos de finitivos: Código Penal — Professores Francisco de Assis Toledo, coordenador, Dínio de Santis Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior; Código de Processo Penal — Professores Francisco de Assis Toledo, coordenador, Jorge Alberto Romeiro, José Frederico Marques e Rogério Lauria Tucci; Lei de Execução Penal — Profes sores Francisco de Assis Toledo, coordenador, Jason Soares Albegaria, René Ariel Dotti e Ricardo Antunes Andreucci. No período de 27 a 30 de setembro de 1981, realizou-se, em Brasília, o I Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária, patrocinado pelo Ministério da Justiça, pela Universidade de Brasí lia e pelo Governo do Distrito Federal, que teve a expressiva parti cipação de cerca de 2.000 congressistas, vindos de todas as regiões do País, dentre os quais as figuras mais proeminentes de nossos meios jurídicos. Nesse Congresso foram intensamente debatidos os ante projetos anteriormente referidos e colhidas inúmeras sugestões para a elaboração dos textos definitivos. 83. Concluídos, depois disso, os trabalhos das Comissões Re visoras, durante o ano de 1982, e encaminhados os projetos defini 68
tivos à Presidência da República, com as respectivas Exposições de Motivos do Ministro da Justiça, datadas de 9 de maio de 1983, re meteu o Presidente João Figueiredo, ao Congresso Nacional, os três projetos de reforma penal (Código Penal — Parte Geral, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal), em 29 de junho de 1983, o primeiro e o último promulgados pelas Leis n. 7.209 e 7.210, ambas de 11 de julho de 1984 (DOXJ, 13 jul. 1984). 84. Os trabalhos de reforma da Parte Especial e da Lei das Contravenções (segunda etapa da reforma) foram atribuídos a outra Comissão (Portaria n. 518, de 6-9-1983, alterada pelas Portarias n. 193 e 194, de 10-4-1984), da qual nos afastamos, a pedido, por entender que, no quadro de nossas próprias atribulações, não nos so braria tempo para levar a cabo, com a metodologia até então ado tada e que nos parecia indispensável, tão gigantesca empreitada, no curto prazo que, para tanto, nos era concedido, sem alternativas, pelo Ministério da Justiça (necessidade de se concluir a segunda e derra deira etapa da reforma ainda durante o Governo cujo mandato se findava). 85. Reproduziremos, a seguir, para melhor compreensão do pensamento orientador da reforma, os tópicos fundamentais da con ferência que proferimos no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 18 de abril de 1983, publicada na íntegra na Revista n. 60 do mes mo Instituto e na Revista do Serviço Público n. 2, 1983. Eis a parte essencial do que então dissemos. 86. A reforma penal, presentemente, como em outras épocas, decorreu de uma exigência histórica. Transformando-se a socieda de, mudam-se certas regras de comportamento. Isso é inevitável. E que a fisionomia da sociedade contemporânea não é a mesma da quela para a qual se editaram as leis penais até aqui vigentes, é coisa que não deixa margem a dúvidas. A inteligência do homem contem porâneo parece, cada vez mais, compreender que a sociedade hu mana não está implacavelmente dividida entre o bem e o mal, entre homens bons e maus, embora os haja. Mas sim parece estar pre dominantemente mesclada de pessoas que, por motivos vários, obser vam, com maior ou menor fidelidade, as regras estabelecidas por uma certa cultura, e de pessoas que, com maior ou menor freqüência, contrariam essas mesmas regras. Não há dúvida, porém, que tanto 69
os primeiros como os últimos fazem parte, dentro de uma visão mais ampla, de um certo modo de ser e viver prevalecente em determi nada época, modo esse que talvez explique, senão todos, pelo menos um bom número de desvios de comportamento. Um importante teólogo, para justificar o fim não exclusivamente retributivo da pena, chega a fazer a seguinte afirmação: “Quase sempre a culpa do de linqüente é o resultado de uma forma conjunta de viver e das re lações com o mundo que o rodeia; fracassos próprios e alheios se entrelaçam aí de maneira incrível. Por isso não se pode evitar que o delinqüente, quando é castigado, faça também penitência e repa ração pela culpa dos outros. Quando se tem isto em conta a obri gação da comunidade torna-se mais clara para se esforçar mais e mais pela reaceitação e reincorporação do delinqüente (e da sua parte por uma reparação). Por isso a comunidade não tem apenas o direito de castigar, mas até o dever de realizar o castigo de tal maneira que não impeça uma ressocialização” 16. Se essa consideração estiver correta, a pena justa será somente a pena necessária (von Liszt) e, não mais, dentro de um retributivismo kantiano superado, a pena-compensação do mal pelo mal, segundo o velho princípio do talião. Ora, o conceito de pena ne cessária envolve não só a questão do tipo de pena como o modo de sua execução. Assim dentro de um rol de penas previstas, se uma certa pena apresentar-se como apta aos fins da prevenção e da preparação do infrator para o retorno ao convívio pacífico na comu nidade de homens livres, não estará justificada a aplicação de outra pena mais grave, que resulte em maiores ônus para o condenado. O mesmo se diga em relação à execução da pena. Se o cumpri mento da pena em regime de semiliberdade for suficiente para aque les fins de prevenção e de reintegração social, o regime fechado será um exagero e um ônus injustificado. E assim por diante. Contudo, como é fácil de perceber, para a aplicação desses novos princípios, será imprescindível, em um direito penal democrá tico, apoiado no princípio da legalidade dos delitos e das penas, que a legislação penal reconstrua uma gama variada de penas criminais, dispostas em escala crescente de gravidade, a fim de que o juiz, segundo certos critérios, possa escolher a pena justa para o crime e seu agente. Igualmente, as formas de execução da pena privativa 16. 70
Johannes Gründel, Temas atuais de teologia moral, p. 232.
da liberdade, quando esta tiver de ser aplicada, deverá desdobrar-se em etapas progressivas 'e regressivas, para ensejar maior ou menor intensidade na sua aplicação, bem como maior ou menor velocidade na caminhada do condenado rumo à liberdade. E assim terá que ser para cumprirem-se as diretrizes da individualização. Nenhuma pena terá, pois, um período rígido de segregação social. Os limites da sentença condenatória passam a ser limites máximos, não mais limites certos. A pena passa a ser, pois, uma pena programática. Por fim, a mais grave das penas — a privação da liberdade em regime fechado — deverá ser executada de modo adequado, enqUanto durar, assegurando-se ao condenado o trabalho interno remune rado, higiene, educação e outras formas de assistência. As leis de reforma penal cumpriram essas exigências, de modo cauteloso, dentro do possível e de uma certa realidade brasileira. Elaborou-se um rol de penas que vão desde a multa e a simples restrição de certos direitos até a privação da liberdade em regime fechado. Estabeleceu-se a escala de aplicação dessas penas, reservando-se as não privativas da liberdade para as infrações de menor importância, as privativas da liberdade para os crimes mais graves e para os delinqüentes perigosos ou que não se adaptem, por rebel dia, às outras modalidades de pena. Dentre as penas não privati vas da liberdade, acolheram-se as seguintes: multa, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana. Não vingou, entretanto, na Comissão Revisora, contra meu pensamento — diga-se de passagem — a multa reparatória do Anteprojeto de 1981, devido às sérias críticas apresentadas a essa inovação. Nos projetos de reforma (agora transformados em lei) a pena criminal adquire, pois, para o direito brasileiro, um novo sentido, ao qual estará indissoluvelmente ligada a mencionada exigência de “necessidade de pena”, com as significativas conseqüências daí de correntes. Mas não é só. 87. Adotou-se, igualmente, sem as restrições e as reservas do passado, o princípio da culpabilidade. Assim, com a reforma em exame, não se admitirá a aplicação de pena sem que se verifique a culpabilidade do agente por fato doloso ou pelo menos por fato culposo. E dessa tomada de posição extraíram-se as devidas con 71
seqüências: aboliu-se a medida de segurança para o imputável; diversificou-se o tratamento dos partícipes, no concurso de pessoas;; admitiu-se a escusabilidade da falta de consciência da ilicitude, sem contudo confundir a última com a mera ignorantia legis; extirpa ram-se os vários resíduos de responsabilidade objetiva, principal mente nos crimes qualificados pelo resultado. Com isso, conforme tivemos oportunidade de afirmar17, adotou-se um direito penal do fato-do-agente que não descura o agentedo-fato, num esforço de compatibilização, nos limites do possível, entre as teorias da culpabilidade pela condução de vida e da culpa bilidade pelo fato singular, dando-se, não obstante, nítida prevalên cia à segunda corrente, ou seja, àquela que se traduz em um direito penal do fato. 88. O resultado dessa tomada de posição aponta em duas di reções com importantes conseqüências. A primeira delas revela a dupla função limitadora do princípio da culpabilidade: uma com poder de despenalização, ou seja, excluindo de pena os fatos típicos não censuráveis ao agente; outra, com renovado poder sobre a dosimetria da pena, estabelecendo que o limite máximo daquela não possa ultrapassar o grau de culpabilidade do agente. Julgamos des necessário justificar o evidente significado prático da adoção desses princípios. Considere-se, porém, que, em um direito penal assim concebido, a aplicação da pena criminal restringir-se-á aos casos em que a exijam a necessidade de proteção da comunidade (prevenção) e a necessidade de preparação do infrator para uma razoável con vivência pacífica no mundo social (ressoeialização) 18. A segunda direção, de maior importância, envolve-se com as três colunas de sustentação de um direito penal de índole democrática, a que nos referimos, em outra ocasião, in verbis: “Na culpabilidade pelo fato. . . é o fato que dará os concretos e definitivos limites para a atuação do Estado na esfera penal. Franz von Liszt percebeu bem isso quando afirmava que, em sua opinião, por paradoxal que p u desse parecer, ‘o Código Penal é a Magna Carta do delinqüente’, protegendo não a coletividade, mas o indivíduo que contra ela se 17. Perspectivas do direito penal brasileiro, Jornadas de Estudo do Mi nistério Público, Anais, Porto Alegre, 1981, p. 194. 18. Cf. Claus Roxin, Iniciación al derecho penal de hoy, p. 48-9. 72
rebela, ao garantir-lhe o direito de ser castigado só quaíido ocorre rem os pressupostos legais e dentro dos limites legais. Ora, esses pressupostos e limites muito pouco valeriam se estivessem referidos a conceitos variáveis, pouco seguros, e não a características objeti vas que só podem ser oferecidas pelo fato. Daí a já mencionada tipologia de fatos, não de autores. E aqui tocamos, com a lem brança da conhecida passagem de von Liszt, o fundo da questão. O direito penal moderno está moldado segundo princípios liberais, elaborados, lenta e penosamente, através dos séculos. E, até hoje, não se conseguiu encontrar algo melhor para substituí-los. Tenta tivas e experiências nesse sentido têm sido desastrosas. Dentro desse quadro, o nullum crimen nulla poenn sine lege, o direito penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se imponentemente, numa perfeita seqüência e implicação lógicas, como colunas de sustenta ção de um sistema indissoluvelmente ligado ao direito penal de ín dole democrática. Por isso merecem ser preservados. Assim, apesar do crescimento dos índices de criminalidade e — o que é pior — do recrudescimènto do crime atroz, violento, ao lado do aparecimento de novas formas delinqüenciais que se valem dos próprios instrumen tos da técnica e do progresso, parece-nos que a procura de instru mental mais adequado de combate ao crime deve ser feita com muito engenho e arte, para não se pôr em risco o que já constitui valiosa conquista da humanidade” 19. 89. Para concluir, duas palavras sobre as medidas de seguran ça, tema ainda hoje bastante polêmico, diante das soluções contradi tórias adotadas pela maioria dos estatutos penais vigentes, com a co nhecida fórmula híbrida do duplo binário. 90. As medidas de segurança, introduzidas na lei penal brasi leira pelo Código de 1940, são consideradas “medidas de prevenção e assistência”, pelaExposição de Motivos do Min. Francisco Campos. A experiência brasileira, contudo, não se revelou muito feliz na apli cação de tais medidas. Levantamento feito nos estabelecimentos penais do Estado de São Paulo, em 25 de agosto de 1981, encami nhado à Comissão Revisora pelo Des. ítalo Galli, em nome da Co missão de Desembargadores, levantamento esse restrito aos condena dos imputáveis, revela os seguintes dados: 19.
O trecho citado pertence à l.a edição deste livro, p. 57-8. 73
Quadro A
a)
condenados cumprindo medida de segurança . . . .
240
b)
condenados aguardando cumprimento de medida de segurança ............................................................
1.594
c)
condenados a penas superiores a 30 a n o s ............
840
d)
condenados a penas superiores a 30 anos, que já tinham cumprido mais de 15 anos ......................
23
Entre os condenados referidos na letra a (em cumprimento de medida de segurança), somente 7, portanto aproximadamente 3% , tinham sido declarados portadores de periculosidade real; os restan tes, em número de 233, aproximadamente 97%, sofreram imposição de medida de segurança por periculosidade presumida. Entre os que aguardavam o momento oportuno para cumprimento da medi da (não foram fornecidos dados completos neste particular), pre dominava elevado índice dos que receberam a medida por periculo sidade presumida. Na grande maioria dos condenados que receberam medida de segurança, o crime imputado era de roubo e furto (arts. 157 e pará grafos e 155 e parágrafos), registrando-se número menor de homicí dio e cifras inexpressivas em relação a outros delitos, tais como: estupro, estelionato, lesões corporais, entorpecentes, receptação, dano e seqüestro. Na Penitenciária do Estado de São Paulo, que possuía o maior contingente de condenados aguardando cumprimento de medida de segurança, a situação era a seguinte, em 29 de junho de 1981: Quadro B Condenados com medida de segurança não cumprida:
74
— roubo (incluindo 80 casos de latrocínio) .................
370
— furto ........................................... ......................................
28
— homicídio
49
.......................... ...............................................
— entorpecente .....................................................................
7
— estelionato .........................................................................
5
— estupro .................................................. ...........................
2
— lesão c o rp o ra l...................................................................
1
— segurança nacional ...........................................................
1
Total .........................................................................
463
Condenados a mais de 30 anos: — roubo (incluindo 69casos delatrocínio) ....................... — furto
274
................................................................................
5
— homicídio .........................................................................
33
— entorpecente
...................................................................
——
—■estelionato .......................................................................
2
— estupro ............................................................ .................
......
— lesão co rp o ra l................................................................... ....... — segurança nacional .......................................................... Total
.......................................................................
....... 314
Condenados a mais de 30 anos que, em 29 de junho de 1981, haviam cumprido mais de 15 anos de pena: — roubo (incluindo 5casosde latrocínio) ........................
9
— homicídio .........................................................................
1
Total ..................................................................... ..
10
Os condenados imputáveis,emnúmerode 240, que cumpriam efetivamente medida de segurança, no Estado de São Paulo, assim se distribuíam: Quadro C Presídio de São Vicente Periculosidade presumida .
1
Periculosidade real ...........
1
Penitenciária de P. Wenceslau Periculosidade presumida ....................................................
1
Periculosidade real .................................................................
0
Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté Periculosidade presum ida......................................................
99
Periculosidade r e a l ................................................................
1
Instituto de Reeducação de Tremembé Periculosidade presum ida......................................................
131
Periculosidade real ...............................................................
2
Instituto Penal Agrícola Dr. Javert de Andrade Periculosidade presum ida......................................................
1
Periculosidade real .................................................................
0
Penitenciária Feminina da Capital Periculosidade presum ida.......................... .....................
0
Periculosidade real ....................................... .........................
2
Penitenciária de Pirajuí Periculosidade presumida ....................................................
0
Periculosidade real ...............................................................
1
Total .............................. .................................................
240
91. Embora a prudência mande que não se extraiam conclu sões apressadas e definitivas, é possível dizer-se que esses dados, pelo menos, não enfraquecem a orientação da Reforma no sentido de extinguir-se a medida de segurança para os agentes imputáveis. Com efeito, o quadro A faz supor que um bom número de delin qüentes, que além da pena receberam imposição de medida de segu rança, não necessitariam desta última por já estarem condenados a mais de 30 anos de prisão, tempo mais que suficiente para qualquer trabalho de “prevenção e assistência”, perfeitamente realizável du 76
rante o cumprimento da pena. Ou se pretenderá realizar a “pre venção e assistência”, nestes casos, após a extinção da pena, isto é, na velhice ou post mor temi O quadro B induz-nos a pensar que o roubo (incluído o latro cínio) comanda as hipóteses de imposição de medida de segurança, mas comanda igualmente as condenações a penas superiores a 30 anos. E isso é explicável diante do fato incontestável de que o ladrão que age com violência ou grave ameaça à pessoa, além de sujeito à pena elevada, é quase sempre reincidente, dificilmente fica no primeiro crime. Por outro lado, sugere o mesmo quadro B, que, com alguma ampliação na possibilidade de agravamento de pena para os crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, teria o legislador “absorvido” na pena do sistema atual — dentro do que seria razoavelmente necessário para a pretendida “assistência e pre venção” — quase todas as demais hipóteses de cumprimento efetivo de medida de segurança, ficando de fora o furto, o entorpecente e o estelionato. Como os crimes de tráfico de entorpecentes, assim como os cometidos contra a Segurança Nacional, são objeto de legis lação especial, não revogada pela Reforma (art. 12), sobrariam apenas o furto e o estelionato, os quais, evidentemente, não justifi cariam, por si sós, a acolhida, no sistema, de um corpo eslranho, qual seja, a medida de segurança para o agente culpável e já punido com pena de longa duração. 92. Excluiu-se, portanto, do sistema a medida de segurança para o imputável, fazendo-se com que a pena criminal absorvesse a função de “prevenção e assistência” antes conferida à primeira. Para que isso fosse possível, reformularam-se os institutos do crime continuado e do livramento condicional, além de estabelecerem-se novas regras sobre unificação da pena. Por outro lado, deu-se maior maleabilidade à execução da pena, conforme salientamos anterior mente, de modo que o tempo de permanência no regime fechado possa ser alterado no curso do cumprimento da pena, segundo o mé rito ou o demérito do condenado. Com essas diretrizes, a reforma penal brasileira, longe de re tornar a fórmulas clássicas, dá um passo adiante, com solução coe rente para o sério problema do agente imputável que já se tenha revelado um delinqüente habitual ou por tendência, sem necessidade de recorrer-se à pena totalmente indeterminada ou à fórmula do du77
pio binário que, como se viu, não foi bem assimilada pela experiên cia brasileira. Por outro lado, os interesses da sociedade, da ma nutenção da paz social e da prevenção do crime são preservados com a possibilidade de aplicação de penas de longa duração para os de linqüentes que, na terminologia atual, seriam considerados “peri gosos”. 93. É certo que essa reforma penal tem encontrado certa resis tência em algumas esferas dominadas por um pensamento de cunho autoritário e repressivo, o que tem dificultado a sua implementação, principalmente na área da execução penal. É comum ouvirem-se expressões semelhantes a estas: “a reforma penal, no tocante à execução das penas, não condiz com a realidade brasileira”; “a lei de execução penal foi feita para a Suíça, não para o Brasil” etc. A esses críticos, saudosistas de instituições reconhecidamente falidas (ou, quem sabe, de coisa pior), cabe observar que a decantada “realidade brasileira”, em matéria de prisões e de execução da pena, tem sido de uma notória, proclamada e brutal monstruosidade, pelo que a reforma penal só teria mesmo significado na medida em que se propusesse a reconstruir algo de novo nesse terreno. Ou será que, em matéria penal, ao invés de projetar instituições saudáveis e procurar realizá-las, deveríamos proceder como certos dirigentes políticos, que se comprazem em “urbanizar” favelas, para não ter que enfrentar o problema da falta de moradia, para cuja solução iriam certamente consumir os recursos que pretendem em pregar para outros fins? A reforma penal, como toda reforma inovadora, quer modificar o que está errado; volta-se para o futuro; não pretende remendar ou camuflar os males do passado; por isso constitui, em boa parte, um projeto de modificação da realidade que se tem por insuportável, ape sar de brasileira (sem qualquer orgulho). Comporta eventuais correções de falhas, não o retrocesso, já que o curso da história felizmente não enseja esse fenômeno mecânico.
78
II — O fato-crime
§ 8.° Conceito de crime. Elementos 94. O crime, além de fenômeno social, é um episódio da vida de uma pessoa humana. Não pode ser dela destacado e isolado. Não pode ser reproduzido em laboratório, para estudo. Não pode ser decomposto em partes distintas. Nem se apresenta, no mundo da realidade, como puro conceito, de modo sempre idêntico, estereo tipado. Cada crime tem a sua história, a sua individualidade; não há dóis que possam ser reputados perfeitamente iguais. Mas não se faz ciência do particular. E, conforme vimos inicialmente, o di reito penal não é uma crônica ou mera catalogação de fatos, quer ser uma ciência prática. Para tanto, a nossa disciplina, enquanto ciência, não pode prescindir de teorizar a respeito do agir humano, ora submetendo-o a métodos analíticos, simplificadores ou generali zadores, ora sujeitando-o a amputações, por abstração, para a ela boração de conceitos, esquemas lógicos, institutos e sistemas mais ou menos cerrados. Isso mutila, sem dúvida, a realidade, pondo em destaque aspec tos e elementos de um todo que permanece inapreensível. Não sem razão afirma Roxin que “ quase todas as teorias do delito, apresen tadas até agora, ‘são sistemas de elementos’ que desintegram a con duta delitiva em uma pluralidade de características concretas (obje tivas, subjetivas, normativas, descritivas etc.), as quais são incluídas nos diferentes graus da estrutura do crime e depois reunidas, como 79
um mosaico, para a formação do fato punível” L Tal procedimento, porém, desde que se queira fazer ciência, é inevitável, pois — afirma, de outra parte, Radbruch — “não constitui segredo pára ninguém que é justamente da essência do direito a que não é possível renun ciar, o ele achar-se eternamente condenado a só poder ver as árvores e jamais a floresta que elas constituem^ 2. Talvez assim seja — su pomos nós — porque essa floresta é realmente uma indecifrável selva oscura. Contentemo-nos, pois, com as árvores, sem todavia cometer o desatino de esquecer ou de negar a existência da floresta. 95. Da exposição feita sobre o bem jurídico protegido e das conclusões a que então se chegou, extrai-se, sem muito esforço, que, substancialmente,/o crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico-penalmente) protegidos^8. Essa de finição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime. E dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fun damentais do fato-crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpáVel (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpávelá. 1. Política criminal y sistema del derecho penal, p. 79. 2. Filosofia, cit., p. 211. 3. Nesse sentido, Bettiol: “II reato, importa, quindi, sempre la les,lone di un bene giurídico. Questo non è solo critério fondamentale per la formulazione dei concetti penali indíviduali (singoli reati o concetti relativi a un momento del reato singolarmente considerato), ma anche per i concetti penali generali i quali sono pure concetti teleologici. Nella disputa, quindi, intomo alia nozione del reato, se essa cioè debba essere costituita delia lesione di un bene giuridico o dalla violazione di un dovere, si deve dare la prevalenza alia lesione del bene giuridico, perchè la nozione del dovere non ptiò avere una autonomia funzioncãe própria. II dovere si specifica solo a contatto con gli interessi protetti e da questi acquista tono e rilievo. Esso è di per sè una categoria formale, anche nella sua forma concreta, che non può, come tale, servire per inquadrare il reato nelle sue realistiche condizioni. La soggettivazione del reato, se tende ad escludere la rilevanza del bene giu ridico, non può costituire un progresso e deve perciò essere decisamente rifiutata, anche se alcune delle esigenze espresse da tale tendenza possono esse re tenute in considerazione” (Diritto penale, cit., p. 195). 4. Essa definição é adotada, entre outros, por: Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 274; Magalhães Noronha, Direito penal, cit., v. 1, p. 98; 80
Alguns autores 5 acrescentam um outro elemento — a punibilidade — a nosso ver sem razão. A pena criminal, como sanção espe cífica do direito penal, ou a possibilidade de sua aplicação, não pode ser elemento constitutivo, isto é, estar dentro do conceito do crime. Ao contrário, pressupõe a existência de um crime já aperfeiçoado. É conseqüência do crime. Não faz, pois, dele par te, conforme ressalta Bettiol: “Da definição apresentada excluí mos aparentemente o elemento ‘punibilidade’, porque este não é um elemento que possua autonomia estrutural. A punibilidade é antes, uma nota genérica de todo o crime, ao passo que este, quando se apresenta estruturalmente perfeito em todos os seus elementos, é um fato ‘punível’ que reclama necessariamente a pena” 6. De resto, quando se fala em elemento ou em nota essencial de um conceito, está-se referindo a um quid sem o qual esse conceito se desfaz, ou não se aperfeiçoa. Ora, em relação ao conceito analítico de crime, isso ocorre com a tipicidade (ação típica), com a antijuridicidade e com a culpabilidade. O mesmo não acontece com a punibilidade, pois a exclusão desta não suprime a idéia do crime já perfeito, como ocorre, por exemplo, quando falta uma condição objetiva de puni bilidade. Nessa hipótese, o fato torna-se impunível, apesar da exis tência de um crime anteriormente consumado 7. Isso evidencia a Heleno Fragoso, Lições, cit., p. 164; Wessels, Direito penal, cit., p. 17; Baumann, Grundbegriffe, cit., p. 23 etc. 5. Assim Basileu Garcia, Instituições, cit..) v. 1, t. 1, p. 195; Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 7; Battaglini, Direito penal, v. 1, p. 135 etc. 6. Diritto penale, cit., p. 212-3. 7. Fernando da Costa Tourinho Filho admite isso claramente, distin guindo o crime “consumado anteriormente” de sua punibilidade ( “o fato não se toma punível"), ao examinar, neste tópico, o art. 558 do Código Penal italiano em frente ao art. 236 do Código Penal brasileiro: “. . . Não há absoluta similitude entre a redação do art. 558 do Código- Penal italiano e a do nosso 236. Ali se diz: ‘Chiunque, nel contrarre matrimonio awente effetti civili, con mezzi fraudolenti occulta all’altro ooniuge 1’esistenza di un impedimento che non sia quello derivante de un precedente matrimonio è punito, se íl matrimonio è annullato a causa delTimpedimento occultato. . . ' Infere-se pois, claramente, que a anulação do casamento toma aplicá vel a pena. De conseqüência, enquanto não for satisfeita a condição, o fato não se toma punível, muito embora o crime se tenhaconsumado anterior mente. Na verdade, segundo o magistério de Manzini, ‘il delitto in esame si consuma nel momento e nel luogo in cui il colpevole, che ha fraudolentamente occultato Timpedimento alfaltro soggetto, ha contratto il matrimonio 81
X.
afirmação inicial de que a punibilidade é efeito, conseqüência jurí dica, do crime, não um seu elemento constitutivo 8. Do que foi dito, conclui-se que a base fundamental de todo fato-crime é um comportamento humano (ação ou omissão). Mas para que esse comportamento humano possa aperfeiçoar-se como um verdadeiro crime será necessário submetê-lo a uma tríplice ordem de valoração: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Se pudermos afir mar de uma ação humana (a ação, em sentido amplo, compreende a omissão, sendo, pois, por nós empregado o termo como sinônimo de comportamento, ou de conduta) que é típica, ilícita e culpável, teremos um fato-crime caracterizado, ao qual se liga, como conse qüência, a pena criminal e/ou medidas de segurança. 96. Vejamos, agora, numa rápida visão panorâmica, o signifi cado que atribuímos aos termos ação, tipicidade, ilicitude e culpabi lidade. Mais adiante, nos títulos seguintes, examinaremos de novo, com mais detalhes, esses mesmos conceitos penalísticos, ocasião em que se fará o estudo das teorias que, no particular, se nos afiguram aceitáveis. Por ora — repita-se — é nosso desejo antecipar o sentido das palavras, ou pouco mais que isso, com o objetivo de facilitar a com preensão dos temas em desenvolvimento. 97. Ação (ou conduta) compreende qualquer comportamento humano, comissivo ou omissivo, abrangendo, pois, a ação propria mente dita, isto é, a atividade que intervém no mundo exterior, como também a omissão, ou seja, a pura inatividade. Todavia, para que um comportamento humano, comissivo ou omissivo, possa ter a awente effetti civili, poscia annullato’ (cf. Diritto penale, UTET, 1951, v. 7, p. 664). Por outro lado, quando se disse na Relazione del Presidente delia Commissione per il Progeto del Codice Penale que ‘il momento consumativo se verifica quando il matrimonio sia annullato’, não tardou a crítica de Manzini: ‘Sarebbe assurdo ammettere, ad. es., che ia consumazione avvenga nella sede delia corte di appello che ha reso esecutiva una sentenza del giudice ecclesiastico mentre il matrimonio annullato fu contratto in un luogo diverso del distretto. . .’ (cf. ob. cit., p. 664). E, em seu prol, cita Saltelli e Romano (Commento, v. 2, p. 833)” (Processo penal, cit., v. 1, p. 505). 8. Em sentido diametralmente oposto, Battaglini, Direito penal, cit., v. 1, p. 136. 82
aptidão para qualificar-se como crime, é necessário que se tenha de senvolvido sob o domínio da vontade. O comportamento puramen te involuntário, resultante de caso fortuito ou de força maior, não constitui ação digna de castigo para o direito penal. A exigência de voluntariedade na conduta é imprescindível tanto para a ação do losa quanto para a culposa. Em ambas a vontade domina a con duta, com a diferença de que, na primeira, a voluntariedade alcança até o resultado da conduta; na segunda, a voluntariedade vai só até a causa do resultado não querido. A voluntariedade é que dá o conteúdo intencional — ou finalístico — de toda ação relevante para o direito penal, distinguindo-a dos meros “fatos”, isto é, dos acontecimentos físicos ou daqueles produzidos pelas mãos do homem, mas sem a intervenção da vontade. Tais acontecimentos são pu ramente causais, derivados do fortuito ou da força maior. Quando operam através do homem, atuam com o mesmo fatalismo das leis da naturez^ Como não se pode punir uma pedra que cai, ou um raio que mata, não se deve igualmente punir quem não age mas “é agido”. Por isso é que, para o direito pena], só interessam as con dutas que tenham um certo conteúdo finalístico, ou seja, toda e qualquer ação que possa ser reconduzida à vontade humana como razão de ser de seu aparecimento no mundo exterior. Dentro de uma concepção jurídica, ação é, pois, o comportamento humano, do minado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para exposição a perigo de lesão de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma possível lesão a um bem jurídico. Na concepção jurídica de ação, acima exposta, a orientação de ânimo do agente, ou o objetivo por ele perseguido com sua conduta, é parte insepa rável dessa mesma conduta, como seu elemento intencional ou fina lístico. Isso traz como conseqüência necessária o reconhecimento de que, como acentuou Welzel, o dolo e a negligência fazem parte da ação (não do juízo de culpabilidade), fato que, por si só, justi fica a primeira grande divisão dos crimes em crimes dolosos e culpo sos, ou melhor, em crimes de ação dolosa e crimes de ação culposa. Note-se que essa concepção da ação humana não nega o princípio da causalidade. Reconhece, porém, como ensina Welzel, que o ho mem, com base no conhecimento dessa causalidade, que lhe é dado pela experiência, pode prever os acontecimentos (efeitos de deter minadas causas) e com isso querê-los, produzindo-os ou provocando-os. Nessa hipótese, a causalidade, vista do ângulo de um com portamento voluntário, que lhe tenha orientado ou impulsionado, 83
passâ a ser causalidade dirigida. Assim, certos efeitos abrangidos pelo querer do agente deixam de sèr mera conseqüência mecânica de fenômenos físicos, no mundo exterior, para apresentarem-se como algo que se realiza de modo orientado pelo “fim” mentado. pelo agente. A grande e irremovível distinção entre o crime doloso e o cul poso está em que, no primeiro, a voluntariedade do agente alcança todo o seguimento do mundo da realidade descrito no tipo, inclusive o resultado típico; no segundo, essa voluntariedade esgota-se na causa de um resultado por ela não alcançado. 98. Tipo é a descrição abstrata da ação proibida ou da ação permitida. Há, pois, tipos incriminadores, descritivos da conduta proibida, e tipos permissivos ou justificadores, descritivos das con dutas permitidas. Os primeiros são os tipos legais de crime, que só podem ser criados pelo legislador (nullum crimen sine lege); os segundos são as denominadas causas de justificação ou de ex clusão da ilicitude. Tipicidade é a subsunção, a justaposição, a adequação de uma conduta da vida real a um tipo legal de crime. Dependendo da concepção que se tenha do tipo, o fenômeno da tipicidade ocorrerá com maior ou menor extensão. Assim, na cons trução originária de Beling (1906), o tipo tinha uma significação puramente formal, meramente seletiva, não implicando, ainda, um juízo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas ca racterísticas. Modernamente, porém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentido formal, um sentido material, como veremos mais adiante. Sendo o tipo um modelo de ação proibida, deve ele exprimir os elementos essenciais da ação descrita. Como a ação contém o dolo ou a negligência, pelo que os crimes se dividem em crimes de ação dolosa e crimes de ação culposa, os tipos legais de crimes exprimem (contêm) igualmente o dolo ou a negligência e, portanto, se dividem em tipos dolosos e tipos culposos; os primeiros des crevem explícita ou implicitamente, como um de seus elementos essenciais (elemento subjetivo do tipo), o dolo; os últimos, a culpa stricto sensu. Conforme temos sustentado, o tipo, como expressão esquemática da ação ilícita, contém: a) a proibição da conduta descrita, ou seja, o elemento valorativo que espelha o seu conteúdo material e atua como fator limitativo do juízo de adequação típica (as ações ou omissões ético-socialmente permitidas não podem estar 84
abrangidas por üm modelo de conduta proibida) ; b) a modelagem, a descrição da conduta proibida, isto é, 0 aspecto íático sobre que incide a valoração e a proibição da norma. Esse aspecto fático compõe-se de elementos objetivos e de elementos subjetivos. (O termo fático está aqui empregado com o sentido de relativo a fe nômenos que podem ser objeto de observação e de descrição.) São objetivos todos aqueles elementos que devem ser alcançados pelo dolo do agente. Dividem-se em descritivos e normativos. Os pri meiros — os descritivos — exprimem juízos de realidade (exemplo: “matar”, “coisa”1, “filho”, “mulher” etc.). Os segundos — os nor mativos — são termos ou expressões que só adquirem sentido quando completados por um juízo de valor, preexistente em outras normas jurídicas (exemplo: “coisa alheia”, “funcionário público”, “domicílio” etc.), ou em normas ético-sociais (exemplo: “mulher honesta” ), ou a ser emitido pelo próprio intérprete (exemplo: “dig nidade”, “decoro”, “reputação” etc.). Elementos subjetivos são os fenômenos anímicos do agente — o dolo, especiais motivos, ten dências e intenções. Não adotamos a terminologia tipo objetivo e tipo subjetivo, por nos parecer que o tipo legal de crime é um só, contendo elementos objetivos e subjetivos. Resumindo, o tipo legal, conforme o entendemos, abrange, ao descrever a conduta proibida: o sujeito da ação, isto é, o agente do crime; a ação, com os seus elementos objetivos e subjetivos; e, se for o caso, o objeto da ação, bem assim o resultado, com a respectiva relação de causalidade. A linha divisória entre o injusto típico e a culpabilidade não mais residirá entre os dados objetivos e subjetivos 9, mas deverá fundar-se em outros critérios. 99. Ilicitude, ou antijuridicidade (palavras sinônimas), tem sido entendida como a relação de contrariedade entre certa conduta da vida real e o ordenamento jurídico (Welzel, Das deutsche Straf recht, cit., p. 50; Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 175; Petrocelli, Uantigiuridicità, p. 13). Esse conceito, segundo supomos, é insuficiente por revelar o aspecto puramente formal do ato ilícito, sem um conteúdo material. Por isso definimos a ilicitude assim: “A relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o orde namento jurídico, de sorte a causar lesãó ou expor a perigo de 9.
Cf. Baumann, Grundbegriffe, cit., p. 43. 85
lesão um bem jurídico tutelado” 10. Para o direito penal, o com portamento totalmente involuntário ou o absolutamente inócuo está fora de consideração, não merece a qualificação de ato penalmente ilícito, mas sim a de fato penalmente irrelevante. Por isso é que, entre nós, não se pune o fato que resulta de caso fortuito ou de força maior e, diferentemente do que ocorre em alguns países (den tre os quais a Alemanha Federal, StGB, § 23, III), também não se pune a tentativa impossível, exemplo de punição do ânimo, da mera intenção irrealizável, sem conseqüências lesivas para o bem jurídico tutelado. O crime, como ato ilícjo, é, pois, a expressão de um ato de vontade (comissivo ou omissivo) apto a causar dano. Fora disso, ou seja, para além da vontade e do dano potencial ao bem jurídico, não se estendem os domínios do ilícito penal. Na linha das idéias até aqui expostas, a ilicitude penal só pode referir-se à ação humana. Conseqüentemente, a contrariedade ao direito — essência do conceito em exame — se caracterizará fun damentalmente, conforme se verá no título próprio, com mais de talhes, por dois pressupostos: primeiro, a existência de uma conduta voluntária na origem, positiva ou negativa (ação ou omissão), em antagonismo com o comando normativo (fazer o que está vedado ou não fazer o que está determinado); segundo, a existência con comitante de possíveis ou reais conseqüências danosas, sobre o meio social, dessa mesma conduta (lesão real ou potencial ao bem jurí dico tutelado). O primeiro pressuposto exclui da área do juízo de ilicitude os fenômenos puramente causais, inevitáveis, ocorridos sem qualquer interferência da vontade humana, ou seja, o puro resultado físico. O segundo — a exigência de lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado — revela o conteúdo material da ilicitude que deixa de ser um conceito puramente formal, ou seja, a mera infração de um dever. Não haverá, pois, dua.& ilicitudes, uma for mal outra material, mas apenas uma — a que se diz material. 100. Culpabilidade é o terceiro elemento do conceito jurídico do crime. Nullum crimen sine culpa. Deve-se entender o princípio da culpabilidade como a exigência de um juízo de reprovação jurí dica que se apóia sobre a crença — fundada na experiência da vida cotidiana — de que ao homem é dada a possibilidade de, em 10. 86
Ilicitude penal e causas de sua exclusão, p. 8.
certas circunstâncias, “agir de outro modo”. A não-utilização dessa faculdade, quando da prática do ilícito penal, autoriza aquela re provação. A noção de culpabilidade está, pois, estreitamente vin culada à de evitabilidade da conduta ilícita, pois só se pode emitir um juízo de reprovação ao agente que não tenha evitado o fato incriminado quando lhe era possível fazê-lo. De uns tempos para cá tem-se questionado — e muito — esse fundamento da culpabi lidade. Autores há que não hesitaram em negá-lo; outros preten dem fazer a culpabilidade derivar da idéia de prevenção ou dos fins da p en a11. O certo, porém, é que o princípio da culpabili dade, fruto de lenta e penosa elaboração dos povos civilizados, entendido como censurabilidade da formação e manifestação da vontade, constitui, ainda hoje, a base irredutível de nosso sistema penal. E nada indica que venha a ser substituído em futuro pró ximo. Podem-se distinguir duas concepções de culpabilidade, que agrupam as várias teorias a respeito. De um lado a concepção psicológica, segundo a qual a culpabilidade se esgota na ligação psíquica entre o agente e o seu fato. Pressuposto da culpabilidade seria a imputabilidade; o dolo ou a culpa stricto sensu seriam seus elementos. Essa noção de culpabilidade, predominante durante largo tempo, muita influência exerceu sobre os penalistas brasileiros mais tradicionais. Hoje, porém, cede lugar, entre nós, para a de nominada concepção normativa, precisamente aquela que concebe a culpabilidade como a já referida “censurabilidade da formação da vontade”. Para a doutrina finalista, que adota uma concepção normativa, a censura de culpabilidade pressupõe a capacidade de culpa (imputabilidade), ou seja, que o agente tenha a idade mínima prevista na lei penal (no Brasil, dezoito anos) e que, além disso, possua ao tempo do fáto a higidez biopsíquica (saúde men tal) necessária para a compreensão do injusto e para orientar-se de acordo com essa compreensão. Excluem-se, portanto, da capa cidade de culpa os menores de dezoito anos e os portadores de perturbação, doença ou debilidade mentais. Elementos da culpa bilidade são: a consciência potencial da ilicitude (possibilidade, nas circunstâncias, de compreensão do injusto); exigibilidade de outra conduta — o “poder evitar” — isto é, a inocorrência de uma 11. bilidad.
Cf. Stratenwerth, El futuro del principio jurídico-penal de culpa-
87
causa de exculpação. Assim, mesmo em relação aos imputáveis, excluem-se da censura de culpabilidade os que atuam em estado de erro de proibição inevitável e os que tenham agido diante de si tuações extraordinárias que lhes hajam reduzido, de modo sig nificativo, a possibilidade de motivar-se de acordo com a norma (exemplo: excesso exculpante de legítima defesa, estado de ne cessidade exculpante, coação moral irresistível, obediência hierár quica etc.). A doutrina finalista, além disso, transferiu o dolo e a culpa em sentido estrito da culpabilidade para o interior do injusto, con siderando-os elementos característicos e inseparáveis do comporta mento ilícito. Com isso revalorizou-se a conhecida distinção de Graf zu Dohna entre “objeto da valoração” e “valoração do ob jeto”. O dolo como parte da ação e, por isso mesmo, elemento do tipo (o tipo é a descrição abstrata da ação), está no objeto da valoração, ao passo que a culpabilidade, como censurabilidade, é o especial juízo de valoração (juízo de censura) que irá recair sobre aquele “objeto”, isto é, a ação ilícita e obviamente o seu agente. O juízo de culpabilidade distingue-se, de modo nítido, do juízo de ilicitude. Se neste último, predominam as características do fato, naquele prevalecem as do agente. Por isso é que Jescheck salienta ser indiferente, na proibição do furto, ser o agente rico ou pobre; na dos delitos sexuais, ser o agente um psicopata ou psiquicamente sadio; e assim por diante. Já o mesmo não ocorre quando se trata de apreciar os mesmos fatos no âmbito da culpabilidade, pois, aqui, a nível do juízo de reprovação, sobrelevam os pressupostos a partir dos quais cabe responsabilizar como pessoa o agente de um com portamento ilícito 12. Não se deve, porém, esquecer que, em um direito penal do fato, a culpabilidade deverá ser, antes de tudo, culpabilidade pelo fato singular, sem que isso implique insuperável contradição com o que foi dito anteriormente. O que se quer com a última afirmação é dizer que, em qualquer hipótese, o juízo de culpabilidade jurídico-penal, embora considere as características do agente, não deve desligar-se dos limites objetivos do fato, contidos na conduta criminosa, para penetrar no terreno inseguro do julga mento do homem pelo que ele é, pelo seu caráter, pela sua decisão
12.
Lehrbuch, cit., p. 301,
ou condução de vida. Isto seria, talvez, pretender usurpar funções reservadas ao Tribunal do juízo final. A vinculação da culpabilidade ao fato singular enseja, por ou tro lado, a graduação da censurabilidade em função da gravidade do injusto. Corretamente, afirma Bacigalupo que a “maior ou me nor gravidade da culpabilidade dependerá da maior ou menor gra vidade do injusto” 13. Estabelece-se, assim, uma perfeitacorrespon dência entre o injusto e a culpabilidade. ' 101. Apesar da inclusão do dolo no tipode injusto, fala-se ainda em formas de culpabilidade, como quer Wessels, in verbis: “Com os conceitos de ‘dolo’ e de ‘negligência’ contidos na lei não se devem indicar somente duas formas diferenciadas de conduta, mas igualmente duas formas diversas de culpabilidade ( = tipo de culpa), nas quais o ‘dolo’, no sentido de culpabilidade dolosa, re presenta o degrau mais elevado e a ‘negligência’, no sentido de culpabilidade negligente, o mais diminuto” 14. Aceito o princípio, inicialmente referido, da vinculação entre o grau da censurabilidade e da gravidade do injusto, não basta to mar apenas um fator isolado (a dolosidade ou a culposidade da ação) para a quantificação da censura de culpabilidade. Nem isso ocorre na prática. O grau da culpabilidade é, com efeito, deter minado, em concreto, não só pelo caráter doloso ou culposo do ato, mas por outros elementos subjetivos (os denominados elemen tos do “tipo de culpabilidade” : a cobiça, o motivo fútil, torpe ou egoístico, a perversidade e outros), bem como por determinados elementos objetivos (a idade, relação de parentesco etc.). É ine gável, porém, a existência da culpabilidade por fato doloso e da culpabilidade por fato culposo, com alguns problemas particulares. 102. Diga-se, finalmente, que, por uma questão puramente di dática, ou melhor, para facilitar o confronto das doutrinas clássicas com as modernas, principalmente a finalista, sem necessidade de repetições, estudaremos o dolo e a culpa em sentido estrito no ca pítulo da culpabilidade, pondo em relevo as formas de culpabilidade antes referidas.
13. Lineamientos de la teoria del delito, p. 92. 14. Direito penal, cit., p. 37. 89
III — O injusto típico
§ 9.° A ação humana 103. O sistema penal vigente está substancialmente formado por um conjunto de normas, que proíbem, determinam ou simples mente permitem fazer ou não fazer. Essas normas, que podem ser deduzidas facilmente da lei penal mas que com esta nem sempre se confundem, dirigem-se a todo aquele que seja capaz de realizar a ação proibida, ou de omitir a determinada, e que, nas circuns tâncias, tenha o dever de realização ou de abstenção do a to 1. Às normas proibitivas correspondem os denominados delitos de ação (o agente faz o que estava proibido: mata um ser humano contra riando a norma “não matar” ínsita no tipo do art. 121 do CP), Às normas preceptivas correspondem os delitos de omissão (o agente não faz o que podia e estava obrigado a fazer: omite o dever jurídico de prestar alimentos ao filho menor — CC, art. 397 — e realiza com isso o tipo do art. 244 do CP). Pode ainda dar-se a hipótese híbrida de o agente^ com o não fazer, contrariar duas normas, uma preceptiva, outra proibitiva, como ocorre nos denominados delitos comissivos por omissão2 (exemplo: a mãe, desejando livrar-se do filho recém-nascido, propositadamente, cau sa-lhe a morte, omitindo-se em ministrar-lhe a alimentação devida). Finalmente, às normas permissivas correspondem as causas de jus-
1. 2. 90
Armin Kaufmann, Teoria ãa norma jurídica, p. 355 e 359. Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 166-8.
tificação, ou de exclusão de crime (legítima defesa, estado de ne cessidade etc.). Do que foi dito, deduz-se que o fato-crime consiste sempre e necessariamente em uma atividade humana, positiva ou negativa, pois a contrariedade ao comando da norma, que concretiza a reali zação de um tipo delitivo, só se estabelece diante da existência de uma ação ou omissão, que seja fruto de uma vontade, capaz de orientar-se pelo dever-ser da norma. E assim é, conforme observa Armin Kaufmann, porque “o elemento teleológico da norma levanos a enxergar nela um fator de motivação do homem. . . ”. “Uma proibição dirigida à neve, de não se aglomerar numa avalancha, não teria o menor sentido nem preencheria qualquer finalidade, tal qual uma proibição dirigida à raposa, para que deixasse de roubar gan sos” 3. Poder-se-á, pois, dizer, parodiando o poeta, que, no mundo social, só os seres humanos são capazes de ouvir e de entender as normas, portanto só eles podem cometer crimes. E o fazem por meio das duas formas básicas de comportamento já referidas — a comissão e a omissão de atos. Essas duas modalidades de conduta são comumente designadas pela expressão “ação humana”, empre gada em sentido amplo para significar tanto a ação propriamente dita (atividade positiva) como a omissão (atividade negativa, ou au sência de ação em sentido estrito). Há, entretanto, os que prefe rem conservar a diferença entre a ação e a omissão (não-ação), con siderando-as espécies distintas que se unificariam no conceito mais abrangente de “conduta humana” (Arthur Kaufmann e Wessels)4. Essa questão puramente terminológifca parece-nos irrelevante, no caso. Não tem evidentemente o condão de solucionar problemas que, se realmente existentes, seriam de natureza insuperável por uma simples troca de expressão lingüística e, além disso, não oferece utilidade prática para o direito penal, em cujo domínio a ação e a omissão apresentam um aspecto comum, verdadeiramente relevante: ambas são, em certas circunstâncias, domináveis pela vontade e, por isso, podem ser dirigidas finalisticamente, isto é, podem ser orientadas para a consecução de determinados objetivos. Por essa razão, em
3. Teoria, cit., p. 143. 4. Radbruch, no início do século, chegou a negar a possibilidade de unificação da ação e da omissão debaixo de um conceito superior ( Der Handlungsbegriff in seiner Bedeuttung für das Strafrechtssystem). 91
pregamos, indiferentemente, como sinônimos, os termos “ação”, “comportamento” e “conduta”. Do exposto, pode-se afirmar, conclusivamente, com Bettiol, nullum crimen sine actione. Esse é um princípio doutrinário que, entre nós, constitui regra legislada (CP, art. 13). 104. Se a respeito da conclusão por último enunciada (não há crime sem ação humana) inexiste divergência digna de desta qu e5, o mesmo não se pode dizer em relação ao conceito de ação, bastante controvertido nos dias atuais. Costuma-se apontar três ten dências doutrinárias, nessa área: a primeira, a mais antiga, a que concebe a ação como um fenômeno causai, naturalista; a segunda, em oposição à primeira, concebe-a como um processo teleológico, orientado para a consecução de fins predeterminados; a terceira, num esforço de superação das críticas opostas às duas correntes anterior mente mencionadas, quer pôr em destaque o momento da relevância social da ação humana. E, para complicar ainda mais os debates, não falta quem sustente, com certa argumentação capaz de impres sionar, que o conceito de ação, por muito tempo, não fez falta à dogmática penal; ainda hoje, não serve para nada fora do direito penal e dentro dele deveria ter escassa importância teórica e nenhum valor prático 6. 5. Manzini sustenta a existência de crimes sem ação, por ele deno minados “crimes de mera suspeita”. Aponta, como exemplo, as figuras das contravenções dos arts. 707 e 708 do Código Penal italiano (posse injustifi cada de chaves alteradas ou gazuas e posse injustificada de valores) ( Trattato di dirítto penale italiano, v. 1, p. 649 e s.). Na mesma linha, Alfredo de Marsico, com apoio em Bellavista, que chegou a escrever sob este título: I reati senza azione ( Diritto penale, p. 77 e s.). A nosso ver, o argumento desses autores peca pela base. A posse de instrumentos ou de objetos que o legislador, em certas circunstâncias, presume sejam destinados à prática de crime, ou produto de crime, não é uma “situação” ou um “estado”, como se pretende, mas sim uma verdadeira ação, pois o exercício da posse pres supõe os atos para possuir. A circunstância de se tratar de uma ação que se presume eventualmente criminosa não autoriza a conclusão de que se está diante de uma situação, sem ação ou omissão. Para Bettiol, nas hipóteses em exame, ‘Tazione. .. non manca, ma è semplicemente presunta” ( Diritto penale, cit., p. 242). 6. Claus Roxin: “ .. . Si queremos saber por qué durante decenios la dogmática del derecho penal sólo se ha ocupado en escasa medida del concepto de acción, hemos de tener clara la función que éste debía cumplir. Desde la monografia de Radbruch, aparecida em 1903 y famosa aún hoy, 92
Como se vê, em nossa caminhada introdutória çela ciência pe nal, penetramos repentinamente em uma zona turbulenta, na qual não se pode permanecer e da qual não se pode sair sem uma tomada de posição. Façamos, pois, um resumo crítico do conteúdo essen cial das correntes já referidas.
a)
Teoria causai da ação
105. Esta corrente, a mais antiga, considera a ação humana um processo mecânico regido pelas leis da causalidade. Daí a definição de von Liszt: “ ...c a u s a voluntária, ou não impeditiva, de uma modificação no mundo exterior” 7. Reflete, como facil mente se observa, a influência das idéias positivistas, dominantes em fins do século XIX, que empreendiam transplantar para a área das ciências humanas (psicologia, história, direito etc.) os métodos e as leis das ciências da natureza, cujos resultados ja mais cessaram de deslumbrar o homem. Essa concepção e res pectiva orientação metodológica deram como subproduto, na área penal, o que Welzel denomina o sistema clássico de Liszt-BelingRadbruch 8, responsável pela divisão da ação humana em dois seg mentos distintos: de um lado, o “querer interno” do agente; de outro, o “processo causai” visível, isto é, a conduta corporal do agente e o seu “efeito” ou resultado9. Situava-se no injusto o encadeamerito causai externo e, na culpabilidade, todos os elementos subjetivos, isto é, os elementos internos, anímicos, do agente. Tais idéias, além
esa función consistia en que tal concepto debía reunir las características vá lidas por igual para todas las formas de manifestarse la conducta delictiva. Se buscaba para toda la teoria del delito un concepto superior, ‘del cual, en cuanto genus proximum, tienen que deducirse todas las differentiae specificae. Y aún hoy se sigue considerando que la elaboración de dicho concepto su perior a efectos sistemáticos es la misión esencial de la teoria de la acción. En relación con nuestro tema se pueden decir dos cosas de un concepto de acción semejante: 1.°) que no sirve absolutamente para nada fuera del derecho penal, y 2.°) que incluso dentro del campo del derecho penal sólo tiene escasa importancia teórica y carece totalmente de importancia práctica”' ( Contribuición a la crítica de la teoria final de la acción, in Problemas básicos, cit., p. 84-5). 7. Tratado de derecho penal, t. 2, p. 297. 8. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 40. 9. Veja-se Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 173. 93
de ajustadas à psicologia associativa da época, ofereciam base segura à primitiva concepção do tipo de Beling (mera descrição do aspecto externo da conduta), que, por sua simplicidade e facilidade de ma nejo na prática judiciária, teve forte poder de atração e grande in fluência sobre juristas, juizes e advogados. O sistema, entretanto, começaria a desmoronar-se, na área penal, com a descoberta dos elementos anímicos, subjetivos, do tipo, nos denominados “delitos de intenção”, circunstância que, por si só, revelaria o equívoco da sepa ração já referida. Fora da área penal, ganhava terreno a reação antipositivista, iniciada pelo neokantismo e impulsionada pelas novas correntes de pensamento que iriam tomar conta da primeira metade do século XX. Note-se que o filósofo austríaco Franz Brentano, nem sempre lembrado, já em fins do século XIX, procurava dife renciar os fenômenos psíquicos dos físicos, atribuindo aos primeiros a característica da intencionalidade. Para Brentano, diversamente do que ocorre com os fenômenos físicos, todo ato psíquico aponta para um objeto: pensar é pensar algo; querer é querer algo; sentir, amar ou odiar é sentir, amar ou odiar algo; e assim por diante. Dessa forma, reelaborando a noção de intencionalidade, tomada de empréstimo aos escolásticos, Brentano a erige em atributo necessá rio de todo e qualquer verdadeiro ato psíquico10. E com isso veio 10. Julián Marias ( Historia de la filosofia, p. 362-3) assim resume o panorama histórico e a influência, neste aspecto, de Brentano: “La psico!o|pa de tiempos de Brentano era el intentode convertirla en ciência positiva experimental; una psicologia asociacionista, relacionada con la filosofia ingícSa, que pretendia explicarlo todo mediante asociaciones de ideas, y además intervenir en las demás disciplinas, por ejemplo, en la lógica, en la ética, en la estética, para convertirlas a su vez en psicologia. La de Brentano va a tener un carácter completamente nuevo. Fenômenos físicos y psíquicos — El primer problema esencial que se plantea es él de diferenciar netamente los fenômenos físicos de los psíquicos. La Edad Media — sobre todo Avicena — había conocido un carácter de los fenômenos psíquicos, que después se había olvidado; era lo que llamaban inexistencia intencional (donde el in significa en y no negación; existencia en), o simplemente intencionalidad. Brentano recogió este carácter, dándole un alcance y una precisión que no tuvo en Ia Escolástica. Intencionalidad quiere decir referencia a algo distinto; en el caso de los actos psíquicos, referencia a un contenido, a un objeto (lo cual no quiere decir que el objeto sea real). Pensar es siempre pensar algo; sentir es sentir algo; querer es querer algo; amar u odiar es amar u odiar algo. Todo acto psíquico apunta, pues, a un objeto; este objeto puede no existir, como cuando pienso el centauro o, más aún, el cuadrado redondo o el pentaedro regular; 94
a exercer importante influência sobre os filósofos do nosso século, desde Husserl até Heidegger 11. Dentro desse quadro, estavam criádas todas as condições ne cessárias para o surgimento de uma nova concepção de ação, apta a substituir, na ciência penal, o clássico conceito causai. E isso realmente ocorreu, conforme se verá a seguir. Frise-se, contudo, que a evolução do conceito em foco não caminhou no sentido da negação do fenômeno causai, posto em destaque pela doutrina tra dicional, mas consistiu, principalmente, em adicionar-se-lhe o ingre diente da intencionalidade (mais tarde, finalidade). Não se aban donou, pois, a idéia de causalidade, mas foi ela substituída por outra mais enriquecida — a de causalidade dirigida. Muitos debates se travaram e muito se escreveu, nas últimas dé cadas, sobre o conceito de ação. Tudo indica que a discussão do tema ainda não esteja totalmente esgotada, embora já se note entre os contendores algum desejo de superação de impasses, ou melhor, a possibilidade de “um razoável final pacífico” 12. Pode-se, contudo, afirmar que o antigo conceito puramente causai está sepultado na história. Perdeu atualidade, depois de um predomínio mais ou me nos longo, inclusive no direito penal brasileiro.
b)
Teoria finalista da ação
106. A doutrina finalista, que revolucionou o direito penal moderno, foi proposta, pela primeira vez, por Hans Welzel, em pero existen ambos como correlatos de mi pensamiento, como objeto al que apunta mi acto de imaginar o pensar. Si se le muestran a Brentano actós no intencionales, dirá que no son actos psíquicos; por ejemplo, la sensación de verde o el dolor de estômago; según Brentano, las sensaciones son sim ples elemento no intencionales delacto psíquico, (intencional) que es mi percepción de un árbol verde; y el acto psíquico es elsentimiento de desa grado cuyo objeto intencional es el dolor de estômago. Esta idea de la intencionalidad tiene largas consecuencias. Va a llevar, en primer lugar, al resurgimiento de los objetos ideales, y entre ellos lo que Husserl Uamará significaciones. Además, Üeva a la idea de que el pensa miento es algo que no se agota en sí mismo, que está apuntando esencialmente a algo distinto de el. Va a dar lugar, por último, a considerar que el hombre es algo intencional, excêntrico, y que senala algo distinto de él. La idea del hombre como un ente ‘abierto a las cosas’ radica en esta idea de Brentano”. 11. V. Nicola Abbagnano, Intencionalidade, in Dicionário de filosofia. 12. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 167. 95
trabalho publicado, nos idos de 1931, sob o título Kausalitãt und Handlung (causalidade e ação)13. Depois disso, foi desenvolvida e reelaborada, em alguns aspectos, pelo mesmo autor e por seus seguidores, em trabalhos e obras posteriores. Ganhou inúmeros e importantes adeptos, dentro e fora da Alemanha, e chega aos nossos dias prestigiada com a aceitação de algumas de suas pro posições pela jurisprudência e pela reforma penal da Alemanha Ocidental. Parte a doutrina em exame de um conceito ontológico de ação humana. E assim procede por considerar, sem rodeios, que o ordenamento jurídico também tem os seus limites: pode ele sele cionar e determinar quais os dados da realidade que quer valorar e vincular a certos efeitos (efeitos jurídicos), mas não deve pretender ir além disso, porque não pode modificar os dados da própria reali dade, quando valorados e incluídos nos tipos delitivosa4. Isso sig nifica que a ciência penal, embora tenha sempre como ponto de partida o tipo delitivo (Tatbestand) , necessita transcendê-lo para descer à esfera ontológica e, com isso, conseguir corretamente com preender o conteúdo dos conceitos e igualmente o das valorações jurídicas15. Ora, o resultado dessa descida, uma vez empreendida., é a revelação da estrutura “finalista” da ação humana, que não pode ser negada nem modificada pelo direito, ou pelo legislador. E, para demonstrar, nessa linha de pensamento, que o direito penal está defi nitivamente vinculado à estrutura finalista da ação, argumenta Welzel com estes exemplos: “ . . .O direito não pode ordenar às mulheres que apressem a gravidez e que em seis meses dêem à luz crianças capazes de sobreviver, como também não pode proibi-las de terem abortos. Mas pode o direito ordenar-lhes que se comportem de modo a não facilitar a ocorrência de abortos, assim como proibi-las de provocarem abortos. As normas jurídicas não podem, pois, orde nar ou proibir meros processos causais, mas somente atos orientados finalisticamente (ações) ou omissões desses mesmos atos” 16. Desse fato, dificilmente contestável — afirma textualmente o autor citado — deriva, por si mesmo, todo o restante17. 13. Welzel, Das neue Bild des strafrechtssystems,Prefácio à4. ed., p.IX. 14. Welzel, Das neue Bild, cit., p. X. 15. Welzel, Das neue Bild, cit., p. X. 16. Das neue Bild, cit., p. X. Assim, também, emDiritto naturale e giustizia materiale, cit., p. 369-70. 17. Das neue Bild, cit., p. X. 96
Dito isso, apresenta Welzel, logo no início do primeiro pará grafo da obra por último citada, o conceito de ação que serve de base para a construção de uma “nova imagem” do sistema penal: “Ação humana é exercício de atividade finalista. Ação é, portanto, um acontecimento finalístico ( = dirigido a um fim), não um acon tecimento puramente causai” 18. Assim é porque o homem, com base no conhecimento causai, que lhe é dado pela experiência, pode prever as possíveis conseqüências de sua conduta, bem como (e por isso mesmo) estabelecer diferentes fins ( = propor-se determinados objetivos) e orientar sua atividade para a consecução desses mesmos fins ou objetivos'19. A finalidade é, pois, “vidente”; a causalidade, “cega” 20. E nisso reside, precisamente, a grande diferença entre o conceito “clássico” causai da ação e o novo conceito finalista. No primeiro, a ação humana, depois de desencadeada, é considerada em seus aspectos externos, numa seqüência temporal “cega”, de causa e efeito, como algo que se desprendeu do agente para causar modifi cações no mundo exterior. No segundo, é ela considerada, em sen tido inverso, como algo que se realiza de modo orientado pelo “fim” (pelo objetivo) antecipado na mente do agente, é uma causalidade dirigida 21. As conseqüências teóricas e práticas dessa revisão conceituai são inúmeras e profundas. Delas trataremos oportunamente. Por ora importa assinalar que nenhum dos aspectos mais importantes da doutrina em exame tem permanecido imune a críticas. Ora im pugna-se a viabilidade de um conceito ontológico, pré-jurídico, de ação, ou a sua virtude de opor limites ao legislador; ora ataca-se o próprio conceito de ação finalista, com a alegação de que nem toda conduta humana possui como nota característica a “finalidade”, po 18. Das neue Bild, cit., p. 1; também Das deutsche Strafrecht, cit-, p. 33. 19. Welzel, Das neue Bild, cit., p. 1. 20. Welzel, Das neue Bild, cit., p. 1. 21. O conceito de ação apresentado por Welzel é, essencialmente, o mesmo que encontramos em Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 161. E ecoa, em boa parte, nesta definição de Bettiol: “Possiamo, quindi, definire 1’azione come un movimento muscolare volontario conscientemente diretto alia realizzazione di un fine” (Diritto pgTiale, cit., p. 240). Entre nós, Heleno Fragoso: “Ação é atividade humana conscientemente dirigida a um fim” (L i ções, cit., p. 167). Vê-se, pois, que as divergências existentes não impedem uma certa concordância a respeito do finalismo da ação. 97
dendo ser citados, como exemplo disso, os atos automáticos, incons cientes, bem como o comportamento culposo, sobretudo na culpa inconsciente; por fim, opõem-se restrições ao novo sistema, cons truído sobre a idéia central da ação finalista, principalmente na parte em que desloca o dolo e a culpa para o interior do injusto, porque, consoante por vezes se afirma, isso representaria um indevido esva ziamento da idéia de culpabilidade. Não pretendemos, aqui, aprofundar essas críticas, ou rebatê-las casuisticamente. Muitos já se encarregaram da primeira tarefa 22; e da segunda incumbiram-se, de modo insuperável, o próprio Welzel, Maurach, Armin Kaufmann e outros finalistas. Julgamos indispen sável, porém, formular, desde logo, algumas considerações a respeito dos pontos acima destacados, para não deixar incompleta esta breve exposição crítica. ■107. Não damos, com a devida vênia, grande importância ao ingente esforço que se tem desenvolvido no sentido de se obter um conceito “ontológico” ou “pré-jurídico” da ação. O que realmente importa, nesta área, é verificar se a noção que se tem do compor tamento humano é a que melhor atende às necessidades e exigências da ordem jurídica, o que implica — é claro — a sua adequação à realidade ético-social existente. E a exigências dessa ordem só pode dar respostas adequadas uma autêntica concepção jurídica da ação, não conceitos pré ou metajurídicos. A não ser assim, teríamos que admitir, no fato-crime, a separação entre o fato humano (a ação), de um lado, e a ilicitude, uma de suas características essenciais, de outro, para situar o primeiro em algum lugar perdido do universo
22. Entre outros, podem ser consultados: Wilhelm Gallas, La teoria del delito en su momento actual; Paul Bockelmann, Relaciones entre autoria y participación; Juan Córdoba Roda, Una nueva concepción del delito; Giorgio Marinucci, II reato come “azione”; Thomas Würtenberger, La situazione spirituale, cit.; Claus Roxin, Problemas básicos, cit.; Marcello Gallo, La teoria delVazione “finalistica”; Miguel Reale, Preliminares ao estudo da estrutura do delito, separafa da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; José Arturo Rodríguez Munoz, La doctrina de la acción finalista; Heleno Fragoso, Conduta punível (citamos algumas obras monográficas de mais fácil acesso ao leitor brasileiro, dispensando-nos de fazer referência aos tratados e manuais, visto que os mais recentes, como é óbvio, sempre cuidam do tema). 98
e a segunda dentro da ordem jurídica23, o que exigiria alquimia grotesca, posterior, para reunir coisas que jamais estiveram separa das. Impossível nos parece, com efeito, deslocar-se, no todo ou em parte, a problemática da ação humana, eminentemente éticojurídica, de um enfoque global valorativo-normativo. E há mais. O direito, para estender suas malhas sobre as pedras, as árvo res, os rios etc., necessita adicionar-lhes alguma utilidade, social ou econômica, transformando-os em bens jurídicos (propriedade públi ca ou privada) suscetíveis de regulamentação. E não seria errôneo dizer-se que as coisas do mundo físico, além de preexistentes à or dem jurídica, possuem a sua própria natureza, que não pode ser modificada pelo direito. Se assim é em relação ao mundo da na tureza, que dizer a respeito da ação humana? Note-se que esta já surge e se realiza, por inteiro, dentro de um determinado sistema ético-social do qual é condição, mas pelo qual é também condicio nada. Diante disso, se, por meio de abstrações, tentarmos apre endê-la depurada de qualquer valoração jurídica, correremos o risco de lograr o mesmo desapontamento do caçador que qtjis pegar o pássaro com as mãos mas só conseguiu ficar com algumas penas entre os dedos. Não obstante, precisamente por considerarmos a ação humana um fenômeno ético-social, é que damos um passo além para nela também identificar, de um ponto de vista jurídico, a finalidade, o seu aspecto teleológico, como nota fundamental. Com efeito, o que há de mais nítido e axiologicamente irredutível no comportamento 23. Neste aspecto, estamos de inteiro acordo com estas afirmações de Miguel Reale: “5. As considerações acima expendidas demonstram que não há que falar em fato-puro, nem em ação natural ou incolor, à qual se agregue, por justaposição normativa posterior, um sentido de antijuridicidade, pois todo fato, juridicamente relevante, já surge, ‘qualificado ao nível da causalidade motivacionar, sendo insuscetível de ser explicado segundo os esquemas da causalidade natural, ou liames mensuráveis e mecânicos de causa e efeitos. Na realidade, o fato que está na base de delito nasce, por assim dizer, colorido ou embebido de valorações correspondentes ao sistema cultural vigente, o que não significa que essa dimensão axiológica se reduza ao sentido finalista da ação” (Preliminares ao estudo da estrutura do delito, Revista, cit., p. 163-4). 99
humano, enquanto fenômeno ético-social, é o estar sempre dirigido para a realização de algo24. E sobre esse finalismo, ou seja, sobre a capacidade humana de orientar-se na área de sua própria atividade, diferentemente de uma pedra que cai, de um raio que fulmina ou de um animal que ataca, é que se construiu a moral e o direito. Note-se que tanto aquela como este são ciências normativas, isto é, que estabelecem regras de comportamento. Ora, como bem ob servaram Welzel e Armin Kaufmann, de forma irrespondível, não se podem traçar regras de conduta para fenômenos causais, não di rigidos, mas só se pode pretender ordenar ou proibir o factível ou o evitável, isto é, ações ou omissões finalisticamente orientadas. 24.L. Recaséns Siches observa: “Ahora bien, nótese que el hacer humano, como tal, no consiste en la actividad de sus procesos fisiológicos, ni tampoco en la de sus mecanismos psíquicos (de imaginación, percepción, pensamiento, emoción, voluntad, etc.). Tanto esos mecanismos psíquicos, como los resortes corporales, son meros instrumentos con los cuales el hombre efectúa sus haceres. La esencia del hacer, de todos los humanos haceres, no está en los instrumentos anímicos y fisiológicos que intervienen en la actividad, sino en la decisión del sujeto, en su determinación, en un puro querer, previo al mismo mecanismo volitivo. Ese puro querer, esa determi nación radical y primera, pone en funcionamiento los mecanismos, las actividades de que el hombre dispone (su imaginación, su voluntad, sus brazos, etc.). Tanto es así — que no se confunde el hacer humano con sus medios o instrumentos —, que décimos: ponerme a razonar, ponerme a imaginar, ponerme a andar, etc. Lo que radicalmente procede de mí, es el ponerme a hacer todas esas cosas, y no esas cosas (el razonamiento, la imaginación, el andar, etc.) que son mecanismos, actividades, instrumentos, La vida radica en la decisión mia. Cada uno de nosotros consiste en un ser que ha de decidirse, que ha de decidir lo que va a ser(lo que va a hacer) en el venidero instante. A veces parece que no decidimos lo que vamos a ser, lo que vamos a hacer en el momento siguiente; pero lo que ocurre en estos casos es que estamos manteniendo, reiterando una resolución tomada anteriormente; mas esa decisión anterior puede ser o modificada o corroborada. Al no modificaria y mantenerla, la corroboramos. Ahora bien, la estructura del hacer consiste en que se quiere hacer lo que se hace, por algo (por un motivo, que es una urgência, un afán) y para algo (con una finalidad, que es el resultado de la actividad, esto es, la obra). Así, pues, la vida humana, es decir, lo que el hombre hace, se califica por tener un porquê (motivo) y un para qué (finalidad), lo cual constituye un sentido, un poseer sentido. (Anotemos en este momento que acabamos de tropezar con algo que no habíamos encontrado en el mundo de la naturaleza: con el sentido o significación.)” (Vida humana, sociedad y derecho, p. 03-4). 10 0
Não deve ser outra a razão peta qual o direito, por meio de conceitos negativos como os de “caso fortuito”, “força maior”, “incapacidade”, “irresponsabilidade” etc., esforça-se, a todo custo e sempre, por reduzir a extensão do conceito de ação, de modo a limitá-lo a certos comportamentos humanos dominados ou domináveis pela vontade, isto é, àquelas condutas que tenham ou que pos sam ter um mínimo de coloração teleológica, mas tanto quanto su ficiente para apresentarem-se como juridicamente relevantes. O que acaba de ser dito pode ser melhor compreendido se considerarmos alguns dos diferentes sentidos com que se emprega o termo “ação". No campo científico, fala-se na “ação” do calor sobre os corpos sólidos, na “ação” da luz, na “ação” dos ácidos, na “ação” do tem po etc. Com esse significado de “influência” sobre alguma coisa, qualquer modificação do mundo exterior seria efeito de alguma ação. A moral e o direito reelaboram, porém, o conceito de ação para restringi-lo a certas formas de conduta humana, precisamente aque las que se concentram em tomo da “execução de uma volição”, excluindo da compreensão pelo conceito grande número de atos humanos que não possam ser reconduzidos a alguma forma de ma nifestação da vontade. Daí a distinção que antigamente se fazia entre actus humani e actus hominis: os primeiros seriam ações cons cientes e voluntárias; os segundos, pelo menos involuntários25. Diante do exposto, parece-nos rematado equívoco (e este é o argumento-chave de alguns críticos) pretender-se que a teoria fi nalista falharia nos crimes culposos. Não perceberam os que for mulam essa crítica que também aqui, embora de modo diferente, a finalidade da ação humana desempenha papel fundamental. Con sidere-se, inicialmente, que, se as normas não podem proibir, ou ordenar, meros fenômenos físicos (a morte causada por uma faísca elétrica, por um caminhão sem freios), também nos crimes culpo sos (e com mais razão nestes) deve o ordenamento jurídico estar proibindo ou ordenando ações ou omissões, sob pena de se cindir por inteiro todo o arcabouço normativo do sistema. Depois, façase um exame menos superficial dos delitos culposos e se verá que, no centro de todos eles, está a inobservância de um dever de cuidado (fazer instalações elétricas de modo a que possam expor ao perigo a vida de alguém; dirigir um caminhão sem freios) ou a violação 25.
André Lalande, Vocabulaire, cit., v. notas ao verbete “Action”. 101
de uma proibição (dirigir veículo sem a necessária aptidão), o que já constitui, de si mesmo, uma conduta voluntária na causa, portanto, finalista. Por outro lado, a exigência de "previsão” ou de “previ sibilidade” do resultado, para a configuração do delito culposo, cons titui, quando menos, um sinal de alerta normativo para a realização de um comportamento bem orientado, de modo a não incorrer o agente na ação ou na omissão causadoras de resultados que o direito quer sejam “finalisticamente” evitados. De qualquer ângulo que se examine a questão, topamos com a “finalidade” da ação humana. Mas, ainda aqui, mesmo que assim não fora, inexistiriam maio res problemas para o finalismo, pois, conforme observou agudamente Bockelmann, um de seus críticos, se há dificuldades, na teoria fi nalista, para subordinar a ação dolosa e a culposa a um conceito superior, unitário, o mesmo ocorre nos demais sistemas, pois a na tureza oposta do dolo e da culpa não deixaria de provocar as mes mas dificuldades em todas as teorias26.
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108. Fala-se, igualmente, nos atos inconscientes, automáticos, e no esvaziamento da culpabilidade. Também aqui não vemos obs táculos sérios para a aceitação de um conceito finalista. Não se deve confundir “domínio da vontade” com “finalidade”. Embora aquele seja pressuposto desta, é perfeitamente admissível uma varia ção de graus, ou de intensidade, em relação ao primeiro. E isso é da tradição do direito penal, como se infere dos arts. 26, parágrafo único, e 59 do Código Penal. Além disso, parece-nos necessário dis tinguir, de um lado, os atos impulsivos (a “impulsão” ) e, de outro, os movimentos automáticos. Em relação aos primeiros, ou se está diante de uma impulsividade descontrolada por insuficiência das funções de inibição e controle (epilepsia, demência, debilidade men tal etc.), e então poderá inexistir uma verdadeira ação finalista (o que não nega o finalismo, porque, nesse caso, o agente será inimputável), ou o fato resulta de paixão ou emoção violenta, o que, segundo revela a experiência, não exclui uma predeterminação finalística, como ocorre com os crimes contra a vida — os mais fre qüentes nesta área — cometidos sob o domínio de violenta emoção, mas, a despeito disso, com o agente percorrendo todo um com plexo iter criminis, como que obcecado pelo “objetivo” de eliminar* 26. 102
Relaciones, cit., p. 40-1.
ou destruir, a vítima. São “impulsos dirigidos”, no dizer de Welzel, com apoio em Lersch27. Os movimentos automáticos, congênitos ou adquiridos pelo há bito, podem apresentar relevância, a nosso ver, para o delito culpo so, pois se deles resulta algum fato “involuntário” (involuntariedade no resultado), o problema desloca-se para o campo da negligência, imprudência ou imperícia, onde, conforme vimos, encontra solução adequada. Ou se pretenderá condenar por crime doloso (e isso ne garia realmente o finalismo da ação) o fato que, involuntariamen te, tenha sido provocado pelo agente ao tropeçar na vítima quando caminhava? Em relação ao pretendido esvaziamento da culpabilidade, pela deslocação do dolo e da culpa para o injusto, remetemos o leitor ao título sobre a culpabilidade, onde pensamos ter demonstrado que o conceito de crime ficou, ao contrário, enriquecido e o de culpa bilidade revalorizado. a.
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c) Teoria “social” da ação 109. Vimos que, na doutrina clássica, concebia-se a ação hu mana de um ponto de vista naturalístico: tomava-se um fenômeno extremamente complexo e nele se acentuava exclusivamente o aspecto da causalidade. A doutrina finalista, pondo em relevo a insuficiência da concepção puramente causai, agregou-lhe outra nota característica — a finalidade. Com isso obteve-se um conceito dogmático mais enriquecido da ação humana. Vários autores, porém, dentre os quais podemos citar E. Schmidt, Bockelmann, Engisch, Jescheck, Wessels, Maihofer e outros, entendem ser igualmente insuficiente a noção finalista, porque desconsideraria ela outra nota essencial do com portamento humano — o seu aspecto social. Construiu-se, assim, o que se convencionou chamar, um tanto quanto equivocamente, a teoria “social” da ação (soziale Handlungslehre) . No dizer de Bo ckelmann, o mérito dessa teoria consiste em que, ao decidir-se sobre a tipicidade de uma ação, são considerados não só os aspectos causai e finalístico, mas também o aspecto social 28. Jescheck, que se filia 27. 28.
Welzel, Das neue Bild, cit., p. 48, Strafrecht, cit., p. 50. 103
à corrente doutrinária em exame, define a ação nestes termos: " . . . comportamento humano socialmente relevante” (Handlung ist danach sozialerhebliches menschliches Verhalten) 29. E explica que: se deve entender por “comportamento” ( Verhalten) a resposta do homem a exigências situacionais, por meio da concretização da pos sibilidade de reação que lhe é ensejada pela sua liberdade 30. Assim, prossegue o mesmo autor, o comportamento humano tanto pode consistir no exercício de uma atividade finalista (finalidade), como pode restringir-se à causação de efeitos domináveis pelo homem (causalidade); finalmente, pode manifestar-se pela simples inativi dade diante de uma determinada ação que se espera 31. Nessa linha., “socialmente relevante” seria a conduta capaz de afetar o relacio namento do indivíduo com o seu meio social. Essas mesmas idéias vamos encontrar em Wessels, para quem a “teoria social não exclui, mas inclui os conceitos final e causai de ação” 32. Do exposto, observa-se que a teoria “social” da ação, conce bida inicialmente por E. Schmidt, como forma de aprimorar o con ceito naturalístico de ação de von Liszt33, partiu para incorpora]' igualmente o finalismo de Welzel; mas, por considerar que este não esgotava todas as condutas jurídico-penalmente relevantes, findou poir 29. Lehrbuch, cit., p. 168. 30. Lehrbuch, cit., p. 168-9. 31. Lehrbuch, cit., p. 168-9. 32. Textualmente: “A preferência deve recair sobre a teoria social da ação, que expõe uma solução conciliadora entre a pura consideração ontológica e a normativa. Ação no sentido do direito penal é, de acordo com esta construção aqui representada, a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana. Este conceito se associa, na vontade da ação e na sua manifestação, à estrutura pessoal da conduta e, com isso, aos dados ontológicos. Igualmente oferece a possibilidade de compreender o conteúdo de sentido social do acontecimento, em seu integral significado obje tivo, sob a consideração do fim subjetivo do autor e da expectativa normativa de conduta da comunidade jurídica. O conceito de ‘conduta’ engloba o fazer ativo e a omissão. Ao contrário do que ocorre no conhecimento ontológico, ação e omissão não constituem, sob análise normativa, antagonismos incompatíveis, mas unicamente formas diversas de aparecimento da conduta volitiva (mais detalhes infra, § 16, I). Socialmente relevante é toda conduta que afeta a relação do indivíduo para com o seu meio e, segundo suas conseqüências ambicionadas ou não desejadas, constitui, no campo social, elemento de um juízo de valor” ( Direito penal, cit., p. 22). 33. Nesse sentido,Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 175. 104
unificá-las todas sob a capa larga da “relevância social”, conceito este que, pela vastidão de sua extensão, se presta para tudo, po dendo abarcar até os fenômenos da natureza, pois não se há de negar “relevância social” e jurídica à mudança do curso dos rios, por “ação” da erosão, com repercussão sobre os limites das pro priedades; à morte, causada pela “ação” do raio, com a conseqüente abertura da sucessão hereditária; e assim por diante. Ressabido é, porém, que os acontecimentos naturais por último mencionados, ape sar de socialmente relevantes, pois que afetam o relacionamento dos indivíduos com o respectivo meio social, são neutros para o direito penal, que só se interessa por condutas humanas e, mesmo assim, por algumas formas qualificadas delas, e não por fenômenos pura mente físicos. Isso mostra, a nosso ver, que a relevância social não é um atributo específico do delito, mas antes uma característica ge nérica de todo fato jurídico, tomado este em seu sentido mais amplo. Sendo assim, se, de um lado, não se pode negar “relevância social” ao crime, de outro, é fora de dúvida que essa é uma qualidade que lhe advém da circunstância de pertencer à família dos fatos jurídicos, estes sim portadores originários de um indefectível aspecto social. Mas, se é inegável que o direito penal não regula todos os fatos ju rídicos e sim uma pequena parcela deles — algumas formas dè atos ilícitos — toma-se imprescindível, na área penalística, sob pena de nela introduzir-se o caos, a construção de um conceito de ação que sirva para alguma coisa, ou seja, pelo menos possibilite uma pronta distinção entre o comportamento relevante para o direito penal e outras formas de comportamento e os fatos que, embora juridica mente relevanteis, devam ser reputados extrapenais. Daí, a nosso ver, o ter-se que buscar — para a superação do impasse estabele cido entre as várias doutrinas — um conceito de ação que satisfaça , 9 as exigências do direito penal, o que conduz necessariamente, cona forme já o percebera Mezger, a uma “teoria jürídico-penal da ação”.
d)
Teoria jurídico-penal da ação 34
110. O exame crítico das várias teorias (a causai, a finalista e a social) ensejou-nos indicar, em todas elas, pontos que, a nosso 34. A expressão foi empregada por Mezger ( Tratado, cit., v. 1, p. 220). Utilizamo-la, porém, sem compromisso com a concepção de ação do grande
105
ver, podem ser reputados positivos ou negativos. Numa visão retros pectiva, poderíamos agora, conclusivamente, pôr em destaque os pri meiros, ou seja, os positivos. A causalidade dos fenômenos, noção da qual ainda não nos desvencilhamos 35, continua sendo uma idéia válida e necessária para o direito, que projeta sua força reguladora para o futuro mas é sempre chamado a solucionar situações pretéritas. E, com efeito, só se pode pretender ordenar ou proibir condutas futuras. Mas só se julga, no sentido da práxis jurídica, comportamentos realizados. Nesta dupla e aparentemente contraditória função, o direito envolvese, a um só tempo, com a esfera ideal da “possibilidade”, que se penalista. O mesmo se diga em relação a Baumann, igualmente partidário de um particular “conceito jurídico” de ação, in verbis: “Unser Handlungsbegriff ist ein Rechtsbegriff, dèr, von vorgeblich ontologischen Gegebenheiten unabhángig, für alie Deliktsarten praktikabel sem muss. Es ist weder kausal noch final, weil er ím ersteren Falle den schlichten Tàtigkeitsdelikten, im zweiten den Fahrlassigkeitsdelikten nicht gerecht wiirde ( Grundbegriffe, p. 68). 35. J. Wahl assim resume o progressivo esvaziamento da idéia de causa lidade: “Repasando, en suma, la historia de la idea de causalidad desde Aris tóteles, podemos decir que primero (con Aristóteles) había cuatro causas; luego hubo (con las clásicas concepciones de Descartes, Spinoza y Leibniz) dos causas, la formal y la eficiente, unidas tan estrechamente como posible; y luego, en una tercera etapa, sólo quedó una causa, la- causa eficiente, fundada más racionalmente en Kant, más empíricamente en Comte y 'los empiristas. Pudiéramos incluso decir que en Comte, al menos según su propio modo de expresarse, se esfuma la idea de causa para ôeder su sitio a la idea de ley. Y ahora podemos plantear la cuestión de si no estamos en camino de una transformación de està idea de ley, concebida por muchos físicos mo dernos, no como la enunciación de secuencias particulares, sino tan sólo como el resultado estadístico de muchos acontecimientos prácticamente impredecibles. La historia de la teoria filosófica de la causalidad es la historia de la disminución del número de causas, y finalmente incluso de la desaparición de la idea de causa. El siglo XIX fué testigo de la sustitución de la idea de causa por las ideas de ley, de condiciones necesarias y de relación funcional. Partiendo de las cuatro causas aristotélicas y pasando luego por la causa eficiente interpretada como formal, ha ido el espíritu humano desde aceptar solamente la causa eficiente hasta transformar la idea de causa en la idea de ley y aún hasta transformar la idea clásica de ley en la idea estadística de ley, que casi no deja lugar a la consideración de causas particulares, al menos en los fenômenos elementales, microscópicos” (Introducción a la filo sofia, p. 133-4). 106
situa no tempo futuro, e com o mundo dos acontecimentos já rea lizados, que jaz no passado. Naquela há uma visível réstia de li berdade; neste, tudo parece estar determinado, numa seqüência ló gica de causa e efeito. Ê provável que essa seja uma visão dema siado humana dos fenômenos. Mas, conforme afirma J. Wahl, é muito discutível que nos seja dado imaginar como seria o mundo sem nós próprios, sem a nossa existência. Se a idéia de causalidade] está em nós e se dela nos servimos para transfprmarmo-nos em . agentes produtores de fatos que o direito qualifica como crimes, j isso só se torna possível, por outro lado, graças a nossa capacidade : de prever e de manipular, provocando e dirigindo, essa mesma cau salidade, ou deixando de utilizá-la convenientemente36. Parece-nos, pois, inegável que, apoiados nessa enraizada idéia de causalidade e nesse sentimento de virtual liberdade, acionamos os nossos músculos, ou os paralisamos em certas circunstâncias, para nos situarmos na posição de instrumentos de nós mesmos, para a realização de fins, para a consecução de objetivos, alguns claròs, outros mais ou menos obscuros, alguns conscientes, outros não. É certo, igualmente, que, por vezes, participamos dos acontecimentos, neles influindo de algu ma forma; outras vézes, nada mais sómos do que o palco, ou especta dores, desses acontecimentos. Não obstante, sob o ângulo visual da imputabilidade, tomado este termo no sentido de atribuibilidade, só se podem reconduzir ao homem, por meio de algum nexo de causa lidade, fatos de cuja produção tenha ele participado com um mínimo de voluntariedade, não acontecimentos que, como sucede por ocasião dos grandes vendavais, passam sobre tudo e sobre todos, sem que nada possa ser feito para impedir suas inesperadas e dramáticas conseqüências. A finalidade, não no sentido estritamente welziano de algo planlficado e executado, mas em sentido mais amplo como um “modo de ser” paradigma do agir humano que, em concreto, ora pode apresentar-se como pernicioso para a paz social, ora valioso e ne cessário a essa mesma paz social, é outra idéia válida e necessária para o direito. O gênio de von Ihering já percebera isso, ao afir mar que entender-se a liberdade da vontade no sentido de que esta possa manifestar-se espontaneamente, sem um motivo que a deter mine, é o mesmo que acreditar no Barão de Münchhausen que con 36.
A doutrina finalista, neste aspecto, tem toda Tazão. 107
segue desenterrar-se do lodo puxando-se a si proprio pelos cabelos,, Todavia, na área psicológica, diferentemente do que ocorre na n a tureza inanimada, não se está diante de uma causa mecânica (causa effidens), mas diante de uma causalidade psicológica, de feitio di verso, ou seja, de uma causa finalis, pois a vontade atua na direção de um fim, de um objeto 37. Ora muito bem. Essas duas notas — causalidade e finalidade — não esgotam, evidentemente, todo o vasto conteúdo do agir hu mano. Ê possível mesmo que esse conteúdo, em sua maior parte, não se deixe apreender em um rígido esquema causal-finalista, ou em qualquer outro. A ação real — acentua Max Weber — desenvolve-se, na maior parte dos casos, com escura semiconsciência ou com plena inconsciência de seu “sentido mentado”. “O agente. . . atua na maior parte dos casos por instinto ou por costume” 38. Não obstante, o direito não está, ou pelo menos não deveria estar, em penhado na busca de um conceito pré-jurídico ou ontológico da ação humana, que possa abranger todas as formas de comportamen to. Para o direito penal, dado o seu caráter fragmentário {supra, n. 7 ), a grande massa de comportamento humano (ingerir alimen tos, caminhar descuidadamente pelas ruas e avenidas, comunicar-se com o vizinho, freqüentar clubes, vestir-se etc.) constitui matéria 37. El fin en el derecho, p. 7 e s. 38. Economia y sociedad, v. 1, p. 20: “Los conceptos constructivos de la sociologia son típico-ideales no sólo externa, sino también internamente. La acción real sucede en la mayor parte de los casos con os cura semicons ciência o plena inconsciência de su ‘sentido mentado’. El agente más bien ‘siente’ de un modo indeterminado que ‘sabe’ o tiene clara idea; actúa en la mayor parte de los casos por instinto o costumbre. Sólo ocasionalmente — y en una masa de acciones análogas unicamente en algunos indivíduos — se eleva a consciência un sentido (sea racional o irracional) de la acción. Una acción con sentido efectivamente tal, es decir, clara y con absoluta consciência, es en la realidad un caso limite. Toda consideración histórica o sociológica tiene que tener en cuenta este hecho en sus análisis de la realidad. Pero esto no debe impedir que la sociologia construya sus conceptos mediante una clasificación de los posibles ‘sentidos mentados’ y como si la acción real transcurriera orientada conscientemente según sentido. Siempre tiene que tener en cuenta y esforzarse por precisar el modo y medida de la distancia existente frente a la realidad, cuando se trate del conocimiento de ésta en su concreción. Muchas veces se está metodológicamente ante la elección entre términos oscuros y términos claros, pero éstos irreales y típico-ideales. En este caso deben preferirse cientificamente los últimos. (Cf. sobre todo esto, Arch. f. Sozialwiss., XIX, lugar citado.)”.
108
simplesmente irrelevante, totalmente estranha e fora de consideração. Assim, como convém a um “pensamento problemático”, isto é, a um “pensamento tópico” 39, capaz de conduzir-nos, talvez, a uma coincidentia oppositorum, urge, aqui, partindo de “proposições jurídicas”, empreender a descoberta de “pontos de vista” e de uma “argumen tação” apta à solução dos conflitos. Daí julgarmos imprescindível, dentro desse objetivo que não se pode contestar, deslocar a nossa preocupação da tentativa infrutífera de elaboração de um conceito filosófico ou científico da ação humana para a utilização de todo o esforço disponível, com maior proveito, na procura e no encontro de idéias diretivas que nos permitam, com alguma técnica, não per manecer imóveis e confinados em um beco sem saída. Daí preco nizarmos o regresso a um conceito jurídico de ação, de conteúdo, porém, diferente daquele que lhe foi dado por Mezger. Para nós, de um ponto de vista jurídico-penal, a ação é o comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico. É uma de finição que se poderia dizer discursiva, sem rigor lógico, mas que nos localiza diante da problemática jurídica da ação humana, pondo em destaque: a) o comportamento humano, abrangente da ação e da omissão; b ) a vontade, sem a qual nada mais somos do que “fenômenos”, como quaisquer outros; c) o “poder-de-outro-modo”, que nos enseja algum domínio da vontade sobre nosso agir, sem o que não se pode cogitar de um direito penal da culpabilidade; d ) o aspecto causal-teleológico do comportamento; e, ainda, e) a lesão
39. Theodor Viehweg afirma: “Pode-se aceitar que qualquer disciplina especializada se constitui através do aparecimento de uma problemática qual quer. Neste sentido, Max Weber escreve: ‘Temos de partir, no meu entender, de que, em geral, as ciências e aquilo com que elas se ocupam se produzem quando surgem problemas de um determinado tipo que postulam alguns meios específicos para sua solução'. Porém, enquanto algumas disciplinas podem encontrar alguns princípios objetivos seguros e efetivamente fecundos em seu campo, e por isto são sistematizáveis, há outros, em contrapartida, que são não-sistematizáveis, porque não se pode encontrar em seu campo nenhum princípio que seja ao mesmo tempo seguro e objetivamente fecundo. Quando este caso se apresenta, só é possível uma discussão problemática. O problema fundamental previamente dado torna-se permanente, o que, no âmbito do atuar humano, não é coisa inusitada. Nesta situação encontra-se, evidentemente, a jurisprudência” (Tópica e jurisprudência, p. 88). 109
ou exposição a perigo de um bem jurídico. No tópico final, alar gamos o aspecto causal-teleológico para abarcar os delitos culposos, com expressa referência à voluntariedade na causa. Essa colocação, por si só, exigiria uma monografia ou um tra tamento mais extenso, incomportável no âmbito deste trabalho. Fi cam, entretanto, lançadas, apenas no essencial, as linhas básicas de sua problemática.
e)
O nexo de causalidade
111. Dentro de uma concepção “jurídica” da ação, que acolhe também o princípio da causalidade, como acima ficou exposto, o correlato “problema causai” (causalidade entre a ação e o resulta do), sobre o qual tanto se tem escrito, poderá ser visto de um ângulo igualmente jurídico. Corretamente, a nosso ver, acentua Maurach que a “teoria jurídico-penal da causalidade” (strafrechtliche Kausallehre) procura interrogar por um “vínculo de conhecimento” entre a ação do agente e o resultado por ela produzido40, o que não se compraz com uma noção puramente filosófica ou científica de causa. Segundo Wessels, o conceito de causalidade jurídico-penal “é um conceito de relação jurídico-social, que conduz a conteúdos ontológicos e normativos, não sendo, portanto, idêntico nem aos conceitos causais das ciências naturais nem aos filosóficos...” 41. Assim, também, Baumann, para quem o conceito penalístico de causalidade “é um conceito jurídico” 42. Considere-se o que, entre nós, dispõe o Código Penal, in verbis: “Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, so mente é imputável -a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. § 1.° A superveniência de causa relativamente independente exclui a impu tação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. § 2.° A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por 40. 41. 42. 110
Deutsches Strafrecht, cit., p. 193. Direito penal, cit., p. 40. Gnindbegriffe, cit., p. 54.
lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu com portamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. De um ponto de vista naturalístico, ou científico, não se po derá, obviamente, reputar “causa” da morte de um doente a “omis são” da enfermeira em ministrar-lhe o remédio na hora certa. Nessa hipótese, a necrópsia apontará como causa mortis algum fenômeno relacionado com a própria doença. Não obstante, não violenta o pen samento jurídico nem a lei penal, dizer-se que a omissão da enfer meira pode ser igualmente reputada uma causa do resultado morte. Note-se que, no exemplo em exame, o direito penal põe entre parêntesis inúmeros antecedentes físicos do evento morte para, sem desco nhecê-los, emprestar especial relevância à violação de um dever por parte da enfermeira. E, com isso, transforma um “nada”, para o mundo físico (a omissão), em algo dotado de relevância jurídico-social diante de um resultado físico (a morte de um ser humano). A esse desfecho conduz a denominada teoria da equivalência, ou da condido, acolhida pelo nosso legislador penal, como consta da Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos: “ . . . 1 1 . Se guindo o exemplo do Código italiano, o projeto entendeu de formu lar, no art. 11, um dispositivo geral sobre a imputação física do crime. Apresenta-se, aqui, o problema da causalidade, em torno do qual se multiplicam as teorias. Ao invés de deixar o problema às elucubrações da doutrina, o projeto pronunciou-se expressis verbis, aceitando a advertência de Rocco, ao tempo da construção legisla tiva do atual Código italiano: ‘ ...adossare la responsabilità delia resoluzione di problemi gravissimi alia giurisprudenza è, da parte del legislatore, una vegliaccheria intellettuale’ (Lav. prep., IV, 2.°, 117). O projeto adotou a teoria chamada da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua non. Não distingue entre causa e condição: tudo quanto contribui, in concreto, para o resultado é causa. Ao agente não deixa de ser imputável o resultado, ainda quando, para a produção deste, se tenha aliado à sua ação ou omissão uma concausa, isto é, uma outra causa preexistente, concomitante ou super veniente. Somente no caso em que se verifique uma interrupção de causalidade, ou seja, quando sobrevêm uma causa que, sem cooperar propriamente com a ação ou omissão, ou representando uma cadeia causai autônoma, produz, por si só, o evento, é que este não poderá ser atribuído ao agente, a quem, em tal caso, apenas será imputado 111
SISBI/UFU
o evento que se tenha verificado por efeito exclusivo da ação ou omissão" 43. Tem-se criticado a teoria da cGnditio sine qua non, atribuindose-lhe o perigo de um regresso ao infinito, na cadeia causai. Se “tudo quanto contribui, in concreto, para o resultado é cau sa”, não se poderá, por exemplo, negar, em um homicídio cometido por meio de um tiro de revólver, que a venda do revólver é igualmente causa desse homicídio; mas a fabricação da arma também o seria, e assim, sempre regredindo, não se chegaria jamais a um fim, na cadeia causai. Se, todavia, aceitarmos a idéia de que, na esfera jurídica, trabalha mos com conceitos jurídicos, ainda quando elaborados sob influência de concepções construídas em outras áreas, não será difícil aceitar a advertência de Baumann, para evitar interpretações errôneas, de que, quando falamos em problemas da causalidade, queremos signi ficar “somente a relação existente entre a ação e o resultado típico” 44. Isso revela, com efeito, que o direito reconstrói a noção de causali dade que lhe é oferecida pelas outras ciências e a amplia ou limita, sem violentar o id qu od pleru m qu e accidit, para ajustá-la às suas próprias exigências.
f)
Causalidade nos crimes de ação e resultado
112. O Código Penal, no art. 13, reproduz a noção de causa lidade contida no art. 11 da anterior Parte Geral, o que significa que o legislador de 1984 rejeitou a proposta da Comissão de Refor ma Penal de suprimir da lei penal a definição de causa, deixando para a doutrina a tarefa de elaborar conceitos, de modo a ensejar a evolução, entre nós, das teorias a respeito de tão debatido tema,. 43. O art. 11 e seu parágrafo único do Código de 1940 foram integral mente reproduzidos nos atuais art. 13 e § 1.°. A novidade está no § 2.° que, sob a rubrica “relevância da omissão”, define a posição de garantidor, in verbis: “§ 2.° A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu com portamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. 44. Grundbegriffe, cit., p. 54. 112
Feita a opção legislativa pela teoria da equivalência das condi ções, segundo a qual causa de um fenômeno é a totalidade e cada uma das condições produtoras desse fenômeno, ou mais especifica mente, a conduta sem a qual “o resultado não teria ocorrido”, res ta-nos, a partir dessa tomada de posição, examinar algumas questões que ocorrem na prática. Considere-se, inicialmente, que os tipos legais de crime são dolosos ou são culposos. Fora do dolo e da culpa penetramos na área do fortuito ou da força maior, onde não há crime. Isso nos leva à conclusão de que a causalidade, ou seja, o elo de ligação entre a ação humana e o evento, não é puramente naturalístico, pois deve ser valorado, aferido, conjuntamente com o elemento súbjetivo do agente. Em outras palavras, a causalidade relevante para o direito penal é aquela que foi ou pelo menos deveria ter sido visualizada, prevista, antecipada em mente pelo agente. Com isso, o dolo e a culpa limitam, na cadeia causai, que pode ser infinita, o seguimento dessa - " cadeia relevante para o direito penal. Assim, por exemplo, no crime de homicídio, o fabricante ou o vendedor da arma, se não o podia prever, não responde por co-autoria ou participação, embora a fabri cação ou a venda da arma tenha sido conditio sine qua non do resul tado. O mesmo se diga do fabricante do veículo, nos delitos de trânsito. 113. Segundo importantes autores, dentre os quais Bettiol, a concepção puramente naturalista de causalidade deve ser tida como limite ao problema causai, em direito penal, não como critério único e definitivo. Assim, onde a causalidade física estiver excluída, não se pode considerar presente um vínculo causai normativo. Exempli ficando, a ação de Caio, ao cortar o pulso de Tício, não pode ser considerada causa da morte de Tício, se se demonstrar que Tício morrera de síncope cardíaca sem vínculo com o ferimento recebido. Nessa hipótese, a exclusão da causalidade física afasta necessaria-, mente a possibilidade de uma vinculação normativa entre o fato e o agente. Todavia, a presença da causalidade física, naturalista, pode não ser suficiente para a caracterização da causalidade normativa, de que trata o Direito Penal, como se viu nos exemplos anteriores em que certos antecedentes causais, naturalisticamente irrecusáveis, são excluídos da área de interesse do Direito Penal. Note-se, por outro lado, que há delitos para os quais não se exige a presença de qualquer vínculo de causalidade, como ocorre 113
! 1 I 1
com os denominados delitos de mera conduta ou de atividade, nos quais o legislador pune determinada conduta, sem preocupar-se com o resultado. Acrescentando-se a isso o que foi dito anteriormente, somos levados a concluir, com Maurach, que nem a afirmação nem a negação do nexo causai bastam para acarretar a presença ou a ausên cia de urn crime 45. A teoria da causalidade, em direito penal, tem, pois, aplicação restrita aos denominados delitos materiais, isto é, àqueles para cuja consumação se exige a presença de um resultado. Nesses delitos, há que se indagar a respeito da existência de um nexo causai entre a ação do agente e o resultado típico. 114. importante é frisar que, para a teoria da conditio sine qua non, adotada pelo art. 13 do Código Penal, a causalidade deve reputar-se presente mesmo quando a conduta do agente não seja a única condição do resultado. Sustenta, contudo, Maurach 46, que esse princípio não pode ser absoluto. Assim, se A e B, com intenção de matar, ministram, separadamente, sem conhecimento recíproco, um da conduta do outro, veneno insuficiente para a morte da vítima, mas esta vem a falecer por efeito da soma das doses ministradas, A e B devem responder por tentativa de homicídio, não por homicídio con sumado. Em que pese opinião em contrário, parece-me possível defender-se idêntica solução, no direito brasileiro, apesar da teoria da equivalência das condições, porque, no exemplo, uma das doses de veneno pode ser reputada causa superveniente relativamente inde pendente (difícil pensar-se, nessa hipótese, na ministração concomi tante do veneno), sem potencialidade para, “por si só”, produzir o resultado (art. 13, § 1.°). Como, entretanto, não poderia ingressar na esfera de conhecimento ou de previsibilidade dos agentes, não deve acarretar-lhes a responsabilidade pela totalidade do resultado. Respondem ambos por tentativa de homicídio. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Rel. Des. Adria no Marrey) confirmou sentença de pronúncia por tentativa de ho micídio em um caso em que o réu desferiu vários tiros na vítima, errando o alvo mas causando-lhe a morte em decorrência de graves 45. Deutsches Strajrecht, cit., p. 193. 46. Deutsches Strafrecht, cit., p. 207. 114
problemas cardíacos de que não tinha conhecimento (RT, 405:128). Fosse do conhecimento do agente as precárias condições cardíacas da vitima, certamente o resultado desse julgamento seria outro. 115. Não afastam o nexo causai a possibilidade de obstar-se o resultado pelo auxílio de terceiros, ou de intervenção médica. Assim, se a vítima morre quando poderia ter sido salva se levada, logo após o fato, a um pronto socorro médico, responde o agente por homicídio consumado. Assim também quando outro tipo de auxílio pudesse interromper o curso dos acontecimentos. 116. Cuida o Código, no § 1.° do art. 13, da causa superve niente, relativamente independente, que “por si só” produz o resul tado. Nessa hipótese o agente responde pelos fatos anteriores ao início do novo curso causai. Exemplo de Nélson Hungria: Tício, ferido mortalmente por Mévio, é levado ao hospital onde morre por efeito de substância tóxica ministrada por engano pela enfermeira. A nova causa que “por si só” provocou a morte, considerando-se que sem a ação de Tício não teria sido Mévio levado ao hospital, ense jando o erro da enfermeira, é relativamente independente, mas instau rou um novo curso causai, em substituição ao primeiro, acarretando a morte por sua exclusiva atuação. Tício responde por tentativa de homicídio, não por homicídio consumado. Se existe cooperação ou conjugação de causas, isto é, se a causa relativamente independente não produz “por si só” o resultado, res ponde o agente pelo crime consumado, pois, nesta hipótese, costuma-se dizer que o resultado se insere na linha de desdobramento físico do encadeamento causai. Assim, no último exemplo, se Mévio, levado ao hospital, vem a morrer por deficiência do atendimento médico ou por infecção hospitalar, o curso causai anterior continuou atuando em certa medida, o que não foge da previsibilidade do agente. 117. Se assim é com a causa relativamente independente — o menos — fica implícito que não se poderia deixar de considerar excluída a causa absolutamente independente — o mais. Se a vítima de envenenamento vem a falecer, pela queda de uma viga em sua cabeça, antes que o veneno opere em seu organismo 47, quem minis trou o veneno responde por tentativa, não por homicídio consumado. 47.
Júlio Fabrini Mirabete, Manual de direito penal; parte geral, p. 114-5. 115
g) Causalidade nos crimes de omissão 118. O crime, conforme já vimos, consiste basicamente em jazer o que está proibido ou em não jazer o que está determinado por norma preceptiva. Os crimes de omissão correspondem a esta segun da categoria de infração: o agente não faz o que podia e estava obrigado a fazer. Estes crimes — os omissivos — se dividem em duas grandes classes: omissivos próprios e omissivos impróprios ou comissivos por omissão. Os primeiros, os omissivos próprios, são crimes de mera con duta (exemplo: omissão de socorro) para cuja configuração se pres cinde do nexo causai. Já nos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão, há sempre um resultado em consideração, atribuível à conduta do omitente, surgindo a questão de saber se se deve, ou não, exigir algum nexo causai — e de que tipo — entre essa conduta omissiva e o resultado. Note-se que os crimes omissivos próprios são necessariamente previstos em tipos específicos (arts. 135, 244, 246, 269 etc.), ao passo que os omissivos impróprios, ao contrário, se inserem na tipificação comum dos crimes de resultado, de que são exemplos o homicídio (art. 121), a lesão corporal (art. 129) etc., passíveis em bom número de serem cometidos por omissão. 119. O problema da causalidade nesses delitos comissivos por omissão tem ensejado inúmeras disputas doutrinárias que, entre nós, com a reforma penal, perde relevância. Com efeito, o legislador pátrio estabeleceu um nexo de causalidade normativo entre a omissão e o resultado, no art. 13 e parágrafos do Código Penal, especificando as hipóteses em que esse nexo deva ser reputado presente, a saber: a) tenha o agente, por lei, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrên cia do resultado. A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação quando o omi tente se colocar, por força de um dever jurídico (art. 13, § 2.°), na
posição de garantidor da não-ocorrência do resultado. Não se trata, pois, como salienta Wessels, de um “não-fazer” passivo, mas da “não-execução de uma certa atividade juridicamente exigida” 48. Nessa linha, que é a mesma que temos sustentado, o Supremo Tribunal Federal, acolhendo parecer que emitimos, decidiu: “A causalidade, nos crimes comissivos por omissão, não é fática, mas jurídica, con sistente em não haver atuado o omitente, como devia e podia, para impedir o resultado” 49. 120. A primeira hipótese (art. 13, § 2.°, a) cuida do dever legal, derivado de norma legal. O Código Civil impõe aos pais o dever de guarda, criação e educação dos filhos (art. 384, I e II) prestando-lhes alimentos (art. 397). A omissão no cumprimento desse dever, quando o omitente podia cumpri-lo, caracteriza o crime omis sivo próprio de abandono material (art. 244) ou, tal seja a situação do menor, se sobrevêm lesão ou morte, por não ter o responsável diligenciado para obstar o resultado, o crime será comissivo por omis são, de lesões corporais ou até homicídio50, conforme o caso. Note-se que o dever de evitar o resultado é sempre um dever derivado da norma jurídica. Deveres puramente religiosos, morais ou da ética individual não entram em consideração51. 121. A segunda hipótese (letra b) refere-se a quem tenha assu mido, de algum modo, o dever de agir para impedir o resultado. O Código, todavia, não definiu o “modo” ou os casos em que o obrigado assume a posição de “garante”. Nem se deve restringir esta hipótese às obrigações de índole puramente contratual de sorte a permitir-se o transplante, para a área penal, de infindáveis dis cussões sobre questões prejudiciais em torno da validade ou da eficá cia do contrato gerador da obrigação. Penso que, aqui, a solução deve apoiar-se no princípio de que a posição de garante surge para todo aquele que, por ato voluntário, promessas, veiculação publici
48. 49. 50. presídio p. 107). 51.
Direito penal, cit., p. 161. RTJ, t16:\77. Júlio Fabrini Mirabete inclui nessa hipótese o dever do diretor de e dos carcereiros de zelarem e protegerem os presos (Manual, cit., Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 601. 117
tária ou mesmo contratualmente, capta a confiança dos possíveis afe tados por resultados perigosos, assumindo, com estes, a título oneroso ou não, a responsabilidade de intervir, quando necessário, para impe dir o resultado lesivo. Nessa situação se encontram: o guia, o salva-vidas, o enfermeiro, o médico de plantão em hospitais ou prontos-socorros, os organizadores de competições esportivas etc. Note-se que a posição de garantidor ou de “garante” é excep cional, atinge apenas quem por lei ou voluntariamente tenha assu mido essa responsabilidade. Não se estende, pois, generalizadamente a todo e qualquer indivíduo que eventualmente esteja em condições de prestar auxílio ou socorro, como ocorre no crime omissivo pró prio de omissão de socorro (art. 135) 52. 122. A terceira e última hipótese é a do agente que, por seu comportamento anterior, criou o risco do resultado. Quem produz o perigo, no meio social, tem o dever jurídico de atuar para impedir o resultado danoso. Assim, quem provoca incêndio ou queimadas está obrigado a intervir para evitar mortes, queimaduras nas vizinhanças, ou danos à propriedade alheia. Se se omite, será autor dos crimes que, por sua omissão, lesem aqueles bens jurídicos, ante a propa gação do incêndio. Quem, por brincadeira dé mau gosto, empurra o amigo para dentro da piscina, estará obrigado a salvá-lo, se ne cessário, para que o fato não se transforme em crime de homicídio, no caso de eventual morte por afogamento. Segundo Maurach, a ação precedente, criadora do perigo, pode ser conforme ou contrária ao direito, culposa ou não, punível ou não. Sua qualificação jurídica é irrelevante 53. Frise-se, por último, que o omitente, para que se transforme em autor de um crime comissivo por omissão, deve ter tido a pos sibilidade de agir para impedir o resultado. Não basta, pois, o dever de agir. É preciso que, além do dever, tivesse a possibilidade física de agir, ainda que com risco para sua pessoa. Faltando essa possibilidade, em qualquer das hipóteses examina das (ausência do local do perigo, desmaio, imobilização, ferimento grave etc.), a omissão deixa de ser penalmente relevante, à luz do texto do art. 13 anteriormente citado. 52. Júlio Fabrini Mirabete, Manual, cit., p. 110. 53. Deutsches Strajrecht, cit., p. 608-9. 118
§ 10. Tipicidade a)
Injusto. Conceito. Injusto e ilicitude. Tipo de injusto e tipo legal
123. Injusto e ilicitude (ou antijuridicidade). Distinção. Jes check salienta que freqüentemente se confundem os conceitos de “ilicitude” (Rechtswidrigkeit) e de “injusto” ( XJnrecht), o que deve ser evitado, pois, conforme esclarece o mesmo autor, ilicitude é a contradição que se estabelece entre a conduta e uma norma jurídica, ao passo que o injusto é a própria conduta valorada como antijurídica L O injusto tem assim um caráter substantivo que é posto em destaque nesta definição singela mas bastante expressiva de Schmidháuser: injusto é algo que não nos é permitido fazer2. Note-se que o conceito de injusto engloba toda e qualquer ação típica e antijurídica, mesmo que não seja culpável3. O crime é, pois, um injusto culpável; mas o injusto é uma conduta ilícita que pode não se aper feiçoar como um verdadeiro crime, pela ausência da culpabilidade. A distinção conceituai entre injusto e ilicitude tem importância para 1. Lehrbuch, cit., p. 176. Sobre ilicitude e “antinormatividade”, v., infra, n. 105. 2. Einführung in das Strafrecht, p. 128. No mesmo sentido, Welzel, para quem a antijuridicidade é um “predicado”, o injusto um "substantivo” ( Das deutsche Strafrecht, cit., p. 52). 3- Wessels, Direito penal, cit., p. 6. 119
o direito penal, visto como, conforme ressaltam Schõnke, Schrõder e Lenckner, somente o injusto possui qualidade e quantidade, pelo que pode ser diferençado qualitativa e quantitativamente. Já a ili citude é sempre a mesma, não ensejando diferenciações materiais ou escalonamentos. Assim — prosseguem os autores por último citados — um assassinato não é mais antijurídico do que uma lesão corporal, um homicídio culposo não menos antijurídico do que um doloso, inexistindo, pois, “graus da antijuridicidade”, como equivocadamente supôs Kern. Já no que diz respeito ao injusto, existe distinção qua litativa e quantitativa entre um homicídio qualificado e um furto, entre uma lesão grave e uma leve, entre um fato doloso e um culpo so 4. Tais considerações apresentam-se evidentes por si mesmas, dis pensando maior demonstração. Uma conseqüência, que desde logo se pode extrair do que foi dito, relaciona-se com o tema do erro: o desconhecimento do in justo jamais poderia, como imperdoavelmente se fez no passado, ser confundido com o desconhecimento da lei 5. Outra conseqüência, ressaltada por Welzel6, é a constatação de que, se a ilicitude é uma só para o todo do direito, o mesmo não ocorre com o injusto que, admitindo gradação qualitativa e quantitativa, pode apresentarse de modo diverso ou localizado. Assim, por exemplo, nem todo injusto civil, ou administrativo etc., será necessariamente um injusto penal (isso ocorre, freqüentemente, com os fatos culposos). Cor reta, pois, a afirmação de Baumann de que o injusto penal é um injusto mais concentrado de exigências em comparação com o injusto civil 7. 124. O conceito de injusto ( Unrecht), aqui esboçado de forma tão resumida e didática quanto possível, revela a correlação íntima entre tipo e ilicitude e põe à tona o intercâmbio existente entre am bos. Tanto isso é verdade que, se, de um lado, não há dificuldades para traçar-se a linha divisória entre injusto e culpabilidade (o crime é um injusto culpável), o mesmo não ocorre entre injusto e tipicidade ou entre esta e ilicitude, circunstância que levou Miguel Reale 4. Strafgesetzbuch Kommentar, p. 124. 5. Assim, Córdoba Roda, El conocimiento de la antijuricidad en la teoria del delito, p. 13. Assim, também, nosso O erro no direito penal. 6. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 52. 7. Grundbegriffe, cit., p. 75. 120
Júnior a afirmar: “Constituem um mesmo momento o juízo de tipi cidade e o de antijuridicidade, correspondendo à culpabilidade, como juízo de valor, significar a reprovabilidade da ação injusta” 8. E mais adiante: “A antijuridicidade não é algo que se acrescenta ao fato através de um juízo de valor” 9. É antes — poder-se-ia acres centar — um elemento do injusto que só se dá, na esfera penal, en quanto típico. Isso não significa, porém, conforme veremos logo adiante, que se deva confundir, no plano puramente dogmático, o tipo com a antijuridicidade e renunciar a busca de qualquer distinção conceituai entre esses dois elementos do conceito dogmático de crime, pois ambos se implicam mas não se eqüivalem 1!). Dentro dessa concepção, o tipo deixa de ser simples imagem orientadora, ou mero indiciador da antijuridicidade, para erigir-se em portador de um sentido de ilicitude, dotado, portanto, de con teúdo material, com verdadeira função seletiva, ou seja, apto a dis tinguir, entre a multidão de comportamentos humanos, aquelas con dutas que, por se apresentarem “dignas de castigo” 11, necessitam efetivamente submeter-se a processo e julgamento por parte da jus tiça criminal. Não obstante, como as causas de exclusão da ilicitude sur gem destacadanlente na lei, delineadas pelo legislador com a mes ma técnica utilizada na elaboração dos tipos legais de crime (nestes se descreve a conduta proibida; naquelas, a conduta permitida), parece-nos irrecusável ter-se que aceitar, como de boa filiação, a au8. Antijuridicidade concreta, p. 49-50. 9. Idem, textualmente, p. 93: “Antijuridicidade não é algo que se acrescenta ao fato através de um juízo de valor. A ação ao se realizar já é antijurídica, por se efetuar em contraposição aos valores impostos pelo direito. A contraposição só pode ser captada, por vezes, em concreto, atra vés da modalidade da ação, dos elementos subjetivos que a animam, dos dados normativos todos eles reveladores da posição axiológica negativa. Por ser o conteúdo do tipo uma ação dotada de sentido valorado nega tivamente, na adequação típica já se realiza o juízo de antijuridicidade, que se efetiva em concreto, deduzida através do caráter da ação singular e pes soal, em confronto com o tipo. Assim sendo, só é antijurídica a ação concreta realizada com conhe cimento e querer de um fim, querer este fundado em uma posição axiológica do agente”. 10. Cf. Figueiredo Dias, O problema da consciência da ilicitude em direito penal, p. 83. 11. Expressão utilizada por Gallas, La teoria del delito, cit., p. 26. 121
tonomização formal dos tipos em tipos incriminadores e tipos fustificadores, a que se refere Figueiredo Dias. Isso conduz à obtenção de resultados práticos valiosos, justificando a técnica de aferi ção da ilicitude de uma conduta concreta através da dupla via tra dicionalmente percorrida pelo juiz — única realizável na praxis — consistente, primeiro, em constatar-se a subsunção da conduta con creta ao tipo legal; depois, passar-se à verificação da inexistência das causas de exclusão de ilicitude. Assim, como bem salienta Figueiredo Dias, nesta área, a questão não se coloca em termos de verdade ou de falsidade, “mas em termos de maior ou menor utilidade na construção sistemática do conceito de crime”. “Em face do exposto” — prossegue o autor citado — “pode formalmente aceitar-se a doutrina dos elementos negativos do tipo e conceber-se este como ‘tipo total’ que engloba todos os elementos relevantes para a valoração da ilicitude; ou pode, diversamente, considerar-se que ele abrange apenas os elementos configuradores de uma espécie de delito (que ele é, nesta acepção, um tipo-de-delito), sendo depois, na perspectiva da ilicitude, limitado por causas justificativas que do exterior se lhe impõem, de tal modo que o tipo é só uma expressão provisória de ilicitude e que esta se afirma só sob reserva da nãointervenção de uma causa justificativa” 12. Preferimos a segunda alternativa, por parecer-nos que a pri meira representaria um parcial retorno na direção do tipo em sentido amplo, de antes de Beling. Além disso, a concepção do tipo como portador de um juízo de desvalor condicionado tem contado com o apoio de prestigiosos penalistas, dentre os quais Mezger (Von Sinn der Strafrechtlichen Tatbestãnden) e Sauer (Grundlagen). Nessa linha de pensamento, não vemos contradição em aceitarse o conceito tripartido de crime (ação típica, antijurídica e culpá vel), bem como a afirmação de que o tipo contém um sentido, não definitivo, de ilicitude, pois a presença desta, na esfera penal, só se revela, por inteiro, de modo perfeito, quando: a) o fato está previsto em lei como crime, e b ) o fato não está autorizado por alguma norma jurídica per missiva (causa de justificação). Sendo pragmaticamente irrealizável a verificação instantânea dessas duas características do injusto (a tipicidade e a ilicitu12.
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O problema, cit., p. 88-9.
de), já que o processo mental do juiz se desdobra, necessaria mente, em duas fases distintas, torna-se inarredável este paradoxo epistemológico: na elaboração do conceito de crime, há que se levar em conta esses dois momentos, necessariamente percorridos pelo ra ciocínio do julgador, mas não se deve ao mesmo tempo esquecer a unidade concreta do injusto penal. Saliente-se, por oportuno, o seguinte: os autores que, numa fi liação estritamente welziana, vêem no tipo apenas o indício da anti juridicidade, caem freqüentemente no dilema de terem que aceitar a distinção, preconizada por Welzel, entre antinormatividade e anti juridicidade. O fato típico é sempre antinormativo, mas ainda não antijurídico, porque, apesar de típico, pode ser lícito 13. A artifi cialidade dessa construção se revela por inteiro quando se considera a contradição lógica nela contida: um fato antinormativo que, a um só tempo, esteja autorizado por alguma norma (Welzel, em vez de norma, fala em proposição, ou melhor, “proposições permissivas” — “Erlaubinissãtzen” — o que nos parece a mesma coisa). Ora, uma conduta lícita, autorizada, e, concomitantemente, “antinormativa”, é qualquer coisa parecida com o “permitido-proibido”, algo muito difícil de se pensar. 13. Assim, Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 50. Assim; tam bém, por exemplo, Zaffároni: “El tipo no nos permite el aeceso al conocimiento de los preceptos permisivos, porque su función es proporcionamos el conocimiento de la prohibición. De su lectura no podemos deducir los permisos y, consecuentemente, tampoco nos permite el conocimiento de la efectiva contrariedad de la conducta individualizada con el orden jurídico. El tipo nos permite conocer la norma prohibitiva y si todo precepto permisivo presupone una prohibición (proposición analítica), la averiguación del permiso (presencia de causa de justificación) debe ser necesariamente pos terior a la de la norma prohibitiva. La circunstancia de que, eventualmente, el conocimiento de la norma prohibitiva lo logremos a través de dos o más preceptos legales, no implica que nos hallamos en presencia de ninguna causa de justificación si ninguno de ellos es un permiso. En síntesis, con la averiguación de la tipiddad no conocemos aún la con trariedad de esta conducta con el orden jurídico, sino con una norma prohi bitiva (la antinormatividad), que no debe confundirse con la antifuridicidad: antinormatividad es la contradicción de una conducta con una norma prohi bitiva, y antifuridicidad es la contrariedad de esa conducta con el orden jurí dico (en que armónicamente se complementan normas prohibitivas con pre ceptos permisivos). La antinormatividad se conoce a nivel de la tipicidad, pero la antijuridicidad no” ( Teoria del delito, cit., p. 218-9). 123
Resumindo: a tipicidade e a ilicitude implicam-se, numa relação indissolúvel no interior do injusto, mas conceitualmente não se confundem. O tipo, para não reduzir-se a um abstrato Leitbild, ou a um “princípio formal”, só pode ser a descrição de condutas proibidas, portanto um “tipo de injusto” (Unrechtstypus) . A ex clusão do injusto, pela incidência de uma norma permissiva (causa de justificação ou de exclusão da ilicitude), opera-se no momento mesmo da realização do fato justificado, não depois, quando do desenvolvimento do raciocínio do julgador, este sim condicionado a um processo cognoscitivo bifásico. O tipo de injusto, assim entendido, está infiltrado pela ilicitude, que lhe dá o verdadeiro con teúdo material. Não contém, porém, como elementos negativos, as causas de justificação, tal como propõe a teoria dos elemeritos ne gativos, a qual, todavia, chega a resultado idêntico, por meio de um procedimento invertido em relação ao que estamos preconizando. Assim, quem propositadamente fere outrem, em legítima defesa, comete a ação de ferir um ser humano, contudo, induvidosamente, não pratica um crime de lesões corporais. Para chegar-se a essa conclusão, diante de um caso concreto, há que se examinar primei ro a tipicidade legal do fato; depois, a. exclusão da ilicitude desse fato pela incidência preponderante da norma específica que o jus tifica (a legítima defesa). O fato, todavia, já nasce por inteiro de modo justificado. Sua completa cognição, por parte do órgão jul gador, esta sim é que exige o exame da subsunção ao tipo legal em momento anterior ao da verificação da presença de uma causa de justificação. Esse raciocínio mais se reforça na hipótese inversa, isto é, quando o fato se realiza sem a presença de qualquer causa de justificação — o que é bem mais freqüente nos casos judiciais. Nesta hipótese, a adequação típica já dá o conteúdo de ilicitude do fato, não apenas o “juízo condicionado” de ilicitude. Seria até mesmo irrealístico supor-se que o juiz, ao julgar autor de latro cínio, cometido com exclusivo propósito de lucro, uma vez com provada essa imputação e constatada a adequação típica, deva, ainda, percorrer toda a doutrina, bem como a totalidade do ordenamento jurídico vigente, na tentativa inútil de surpreender alguma inespe rada causa de justificação que exclua , a ilicitude do fato que já se revela, em concreto, um ilícito penal. Apenas, para efeitos proces suais, isto é, para acertamento do injusto diante da prova produzida, é que não se exclui, em princípio — mesmo nos casos limites, de 124
que é exemplo o latrocínio — a possibilidade de invocação pela defesa da ocorrência de alguma causa de justificação, caso em que o julgador deve empregar a técnica de examiná-la, em momento posterior ao do juízo de subsunção do fato ao tipo legal de crime. Daí a diferenciação que se poderia fazer entre “tipo legal” e “tipo de injusto”. O segundo contém os elementos essenciais do primeiro, mais a nota da ilicitude. O primeiro seria um tipo de injusto condicionado, isto é, um tipo legal de crime. 125. Tipicidade formal. Atipicidade. Ao estudar o conceito dogmático de crime, salientamos que a tipicidade é uma de suas no tas essenciais. Para que uma conduta humana seja considerada cri me, é necessário que dela se possa, inicialmente, afirmar a tipicidade, isto é, que tal conduta se ajuste a um tipo legal de crime. Quando se diz, por exemplo, que Caio, desferindo um tiro fatal em Tício, cometeu delito de homicídio, o que em última análise se está a di zer é que a ação de Caio, causadora da morte de Tício, coincide em seus elementos essenciais com a figura do homicídio descrita no art. 121 do Código Penal (tipo legal). Temos, pois, de um lado, uma conduta da vida real; de outro, o tipo legal de crime, constante da lei penal. A tipicidade formal consiste na correspondência que possa existir entre a primeira e a segunda 14. Sem essa correspon dência não haverá tipicidade. Um fato da vida real será, portanto, típico na medida em que apresentar características essenciais coinci dentes com as de algum tipo legal de crime. Será, ao contrário, atí pico se não se ajustar a nenhum dos tipos legais existentes. Essas considerações põem em destaque a necessidade de se con tar com um rol exaustivo dos tipos delitivos, o que será objeto de exame a seguir. Frise-se, contudo, que a tipicidade aqui referida é, antes, um juízo formal de subsunção (mera tipicidade formal), que decorre da “função de garantia” do tipo, para que se observe o princípio da anterioridade da lei penal. A adequação típica, den tro de uma concepção material, exige mais que isso, conforme ve remos logo adiante.
14.
Nesse sentido, Dreher e Trõndle, Strafgesetzhuch und Nebengesetze,
p. 6. 125
b)
Tipo. Tipo legal. Tipo permissivo
126. O termo “tipo” exprime a idéia de “modelo”, “esquema”. B utilizado em todas as áreas do conhecimento para separar e agru par em classes objetos particulares que apresentem algo de comum. Em criminologia, por exemplo, desde Lombroso, tem-se procurado realizar a classificação dos delinqüentes em tipos, isto é, em grupos homogêneos de criminosos que apresentam traços característicos co muns. Em direito penal classificam-se em tipos algumas formas de comportamento humano. De um modo geral, o tipo é, pois, um conceito abstrato elaborado com o material obtido daquele “algo de comum” que retiramos de uma variedade de entes particulares. Não obstante, por um processo de reversão, depois de elaborado o tipo, dele extraímos, igualmente, certo significado que, silogisticamente, passamos a atribuir aos entes que sob ele se agrupam. Esta belece-se, com isso, uma verdadeira interação entre o tipo e os entes particulares que dele participam. Pode-se, pois, afirmar que, nessa acepção, o tipo não é pura criação mental, mas sim descrição esquemática de indivíduos, coisas, objetos ou fenômenos. Apesar disso, não deixa de ser abstração e também uma idéia-força que agrupa e retém entes particulares, que apresentam certas características uni formes, deles recebendo mas igualmente transmitindo-lhes signifi cado 15. 15. Consulte-se, a propósito, esta passagem de Engisch: “El tipo es, aunque un universale, un ‘universale in re’, es inmanente a la realidad como ‘entelequia’, o ‘plano’, o ‘estructura’, o ‘tendencia estructuradora real’, o prin cipio dinâmico. No es por tanto, simple residuo de consideración de cosas similares, ni simple síntesis mental, ni simple universale ‘post rem’, o ‘in mente’. En este sentido se ha considerado logicamente a la filosofia platónico-aristotélica como un pensamiento tipológico. La misma concepción se encuentra en Goethe. Actualmente no la encontramos en los citados trabajos de Troll. Para él, el tipo es ‘el principio estructurador unitário capaz de regir la pluralidad de formas’, es el plan’, conforme al que ‘se unen los diversos miembros en el todo de la Organización’, el ‘protótipo’ ( Studium generale, IV, 17). ‘El concepto de tipo propio de Ia morfología hace refe rencia a algo hallado previamente en los objetos, a una ordenación previa que sirve de base, como estructura planificada, para la edificación del orga nismo’, de manera que sólo una ‘consideración realista permite llegar a Ia esencia del tipo’ ( Philosophisches Jahrbuch, 61, cap. 2, § 1). El tipo es ciertamente una abstracción, pero de tal especie que se refiere a un orden hallado previamente en la naturaleza (Ibidem, § 5 ) ” (La idea de concreción en el derecho y en la ciência jurídica actuales, p. 418-9). 126
O direito penal, para usar-se uma expressão de Sauer, trabalha com tipos e pensa por meio de tipos. Na Parte Especial do Código e na legislação complementar ou especial, vamos encontrar o já re ferido rol de fatos típicos penais, isto é, os tipos legais de crime. Na Parte Geral, encontramos os tipos permissivos (causas típicas de exclusão de crime: legítima defesa, estado de necessidade etc.). A própria causalidade entre a ação e o resultado não deixa de ser, na área penalística, conforme vimos, uma causalidade típica que, em confronto com a causalidade física, pode apresentar-se ampliada ou limitada pelo tipo legal. “Dentro do tipo — afirma Sauer —• está a conduta típica, sob o signo da causalidade típica ou adequada” 16. Da conexão entre o tipo legal e os tipos permissivos, extrai-se o “tipo de injusto”, anteriormente examinado. Não será, pois, incorreto afirmar-se que a aplicação do direito penal constitui uma complicada arte de manipulação de tipos. 127, Aplicando-se as noções anteriormente expostas, concluise que o tipo penal17 é um modelo abstrato de comportamento proi bido. É, em outras palavras, descrição esquemática de uma classe de condutas que possuam características danosas ou ético-socialmente reprovadas, a ponto de serem reputadas intoleráveis pela ordem ju rídica» A noção de tipo, como um dos elementos estruturais do conceito de crime — não o çrime na sua totalidade — se deve a Beling (Die Lehre von Verbrechen, 1906) que a concebeu, inicial mente, como pura descrição objetiva, algo desprovida de valoração. Dessa concepção inicial evoluiu-se, através dos anos, para uma con cepção material que vê no tipo uma dupla ordem de valoração. A primeira consiste no juízo de desvalor ético-social que está na origem da própria elaboração do tipo. A segunda está na carga valorativa contida no tipo, que permite a este último desempenhar importante função seletiva sobre as mais variadas formas de comportamento hu mano, com isso estabelecendo a grande linha divisória entre o que é permitido e o que não o é, na esfera do direito penal. O legis lador seleciona os tipos, transformando-os, com a edição das leis penais, em tipos legais de crime; estes últimos selecionam as con 16. Derecho penal, p. 114. 17. Não adotamos as distinções feitas por Zaffaroni, entre tipicidade legal e tipicidade penal, in Manual de derecho penal, p. 318 e s. 127
dutas humanas, transformando-as em fatos típicos penais e em fatos atípicos penais. Nessa ordem de idéias, parece-nos perfeitamente possível admitir-se a estrutura tíipartida do crime (ação típica, antijurídica e culpável), sem cair-se necessariamente no “tipo indiciador” ou “orientador” (Leitbild) de Beling. Atribui-se ao tipo um conteúdo material, além de funções bem nítidas e inconfundíveis, o que pode ser melhor compreendido quando, numa inversão do ra ciocínio usual, se considera não apenas o papel negativo do injusto típico, mas também o positivo, a saber: o tipo não serve apenas para identificar as condutas criminosas, mas se presta igualmente para des criminar os fatos atípicos; todavia, ao fazê-lo, não exclui a possível ilicitude desses mesmos fatos que podem configurar algum ilícito nãopenal (exemplo: o dano culposo). O fato atípico pode, pois, ser antijurídico; não pode, todavia, ser um injusto penal (isso revela a precedência da ilicitude). Nessa acepção, o tipo é mais do que mero portador de um indício da antijuridicidade: é, com efeito, uma visão esqúemática do injusto 18 que, em concreto, pode ficar excluído pela incidência de uma norma permissiva ou causa de justificação. Mas uma coisa é a exclusão da tipicidade — função privativa do juízo de atipicidade — outra é a exclusão da ilicitude — função do juízo de licitude do fato. Não há como confundir-se, portanto, o papel do tipo com o da ilicitude, nem é possível reduzir-se o pri meiro à segunda, ou vice-versa. Ambos os conceitos são dogma ticamente distintos e necessários, conforme se viu, por se referirem a momentos cognoscitivos diferentes. 128. Observamos, linhas atrás, que os tipos são, de um modo geral, frutos de um juízo de desvalor ético-social, tanto que apre sentam denominações bastante vulgarizadas (homicídio, assassinato, 18. Leciona Reale Júnior: “O tipo penal assume a estrutura da ação e se instaura ele próprio como uma estrutura, que se caracteriza pelo seu con teúdo axiológico, ponto de convergência de todas as partes que o integram. O tipo revela uma ação paradigmática objetivada e portanto praticamente pos sível, cujas partes se integram e apenas ganham significado no todo. O tipo é análogo à realidade, uniformizando e harmonizando, pelos seus caracteres essenciais, o que surge de modo heterogêneo na realidade. O tipo penal como estrutura normativa, como modelo jurídico, é a descrição de conduta para digmática, que se sujeita a uma conseqüência penal, em razão de uma qua lificação valorativa” (Antijuridicidade concreta, cit., p. 32).
128
furto, roubo, estupro etc.). Não obstante, em razão do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, que entre nós é regra legislada (CF, art. 5.°, XXXIX; CP, art. 1.°), só a lei federal pode criar tipos penais (CF, art. 22, I). Assim, um fato, por mais danoso que seja, não poderá jamais ser reputado crime antes de ser ex pressamente previsto em lei como tal. Essa previsão, como se dis se, se faz por meio do tipo legal de crime. Como os tipos são con ceitos abstratos, é impossível evitar que sua previsão legal tenha um alcance maior do que aquele que deveria ter. São, por isso, limi tados pelos tipos permissivos (causas de justificação). Além disso, condutas socialmente adequadas e até socialmente necessárias podem, pelo seu aspecto externo, ser atraídas para o campo de força do tipo legal de crime. Exigir-se que, nesse caso, o agente se defenda utilizando-se de alguma causa de justificação ou de exclusão da cul pabilidade é permitir-se que o cidadão, que age dentro dos padrões dominantes na sociedade em que vive, deva prestar contas, isto é, deva justificar-se a respeito de um comportamento aceito,, normal, praticado pela generalidade das pessoas ou, em certos casos, até ne cessário pàra o bom desenvolvimento das relações sociais. O ab surdo de uma exigência dessa natureza confirma a conclusão de que o juízo de tipicidade, para não reduzir-se a quase nada, terá que partir de uma concepção material que veja no tipo algo dotado de conteúdo valorativo, verdadeiro modelo de conduta proibida, não apenas pura imagem formal, diretiva. O conceito de tipo legal deve, pois, tanto quanto possível, com os recursos da hermenêutica, coin cidir com o conceito de tipo de injusto. Com isso, o tipo legal passa a desempenhar, ao lado da “fun ção de garantia”, autêntica função seletiva, decidindo, em primeira mão, sobre: a) o que é crime; b) o que não é crime. Na primeira hipótese tem-se o juízo de tipicidade que, confor me vimos, pode não ser decisivo, a menos que se pretenda conceber um tipo total de injusto, ou aceitar a teoria dos elementos negativos do tipo, o que representaria inegável retrocesso em relação à evo lução do conceito dogmático de crime, operada a partir do início do século, dificultando a aplicação do direito. Na segunda hipó tese, tem-se o juízo de atipicidade que, este sim, é definitivo, pres cindindo de qualquer outra valoração na órbita penal. 129
Para melhor compreensão do que foi dito, consideremos dois exemplos bastante simples: 1.°) Tício é autor de lesões corporais em Caio. Se pudermos afirmar que a conduta de Tício realiza o tipo legal do art. 129, caput, do Código Penal, isto é, que Tício dolosamente causou lesões leves em Caio, proferimos um juízo de formal tipicidade. Mas isso é ainda insuficiente para que se possa saber se Tício realmente cometeu um verdadeiro crime, pois, para tanto, torna-se necessário prosseguir em nossa apreciação da con duta típica em exame para submetê-la a outros dois juízos: o de ilicitude e o de culpabilidade. 2.°) Suponhamos, todavia, que al guém seja acusado de peculato, por apropriar-se temporariamente de máquina de escrever da repartição em que trabalha, devolvendo-a espontaneamente após algum tempo de uso. Como inexiste em nos sa legislação previsão para o denominado peculato de uso, podemos emitir a respeito dessa conduta o juízo de atipicidade, que será único e decisivo para encerramento do caso na esfera penal. 129. O que foi dito, por ser óbvio, pode parecer desprovido de importância. A grande e imprevista significação de observações tão óbvias surge, porém, dentro de uma concepção material do tipo, onde o juízo de atipicidade adquire proporções verdadeiramente inu sitadas. é que, se considerarmos o tipo não como simples modelo orientador, ou diretivo, mas como portador de sentido, ou seja, como expressão de danosidade social e de periculosidade social da con duta descrita19, ampliar-se-á consideravelmente esse poder de de cisão a nível do juízo de atipicidade, fato que conduz a efeitos prá ticos tão evidentes que quase não precisariam ser demonstrados. Não será demasiado, contudo, salientar que, se o fenômeno da sub sunção ( = sotoposição de uma conduta real a um tipo legal) es tiver subordinado a uma concepção material do tipo, não bastará, para a afirmação da tipicidade, a mera possibilidade de justaposição, ou de coincidência formal, entre o comportamento da vida real e o tipo legal. Será preciso algo mais, conforme tivemos oportunidade de salientar em outro trabalho: “Na construção originária de Beling (1906), o tipo tinha uma significação puramente formal, me ramente seletiva, não implicando, ainda, um juízo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas características. Moderna mente, porém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentido formal, 19.
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Sauer, Derecho penal, cit., p. 111; nosso O erro, cit., p. 45 e s.
um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precisa ser típica, precisa ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito (nullum crimen sine lege). Não obstante, não se pode falar ainda em tipicidade, sem que a conduta seja, a um só tempo, material mente lesiva a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovável” 20 Isso nos leva, ecleticamente, a ter que adotar dois importantes princípios modernos de direito penal — o da adequação social e o da insignificância, a seguir examinados.
c)
Princípio da adequação social
130. Trata-se, segundo Welzel — responsável pela sua intro dução no direito penal — de um princípio geral de hermenêutica S1. Pode ser enunciado em poucas palavras: se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo, em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutas lícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas. Não se deve, con tudo, confundir “adequação social” com “causa de justificação”, pecado que o próprio Welzel confessa ter cometido inicialmente22. A ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo, porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social, ao passo que a ação amparada por uma causa de justificação só não é crime, apesar de socialmente inadequada, em razão de uma autorização
20- Nosso O erro, cit., p. 46. Gallas salienta, a propósito do tema: “La punición de una conducta está subordinada a la subsunción del comportamiento en un tipo en sentido no sólo formal, sino también material. Esta subsunción no será posible si el acto concreto muestra los caracteres de la descripción legal del hecho, pero no concurre el contenido material del injusto al que tiende el tipo de delito sujeto a discusión. Se manifiesta en esta misma dirección la teoria dominante que niega en las operaciones mé dicas llevadas a cabo conforme a las regias del arte médico, en beneficio de la salud de un sujeto, la presencia del tipo de lesiones a la integridad cor poral. Desde el momento en que se produce una limitación del tipo formal y no una extensión del mismo, no existen obstáculos de orden político frente a una tal corrección de la tipicidad formal por la material” (La teoria del delito, cit., p. 31). 21. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 58. Esta parece ser a posição mais recente do grande penalista. 22. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 57. 131
especial para a realização da ação típica23. Veja-se o exemplo da lesão corporal cometida em legítima defesa. Embora o fato esteja justificado por uma causa de exclusão do ilícito, tratando-se de uma ação que foge aos padrões normais de comportamento social, o juízo de tipicidade formal autoriza submeter-se o agente aos ônus e dissabores do processo, no qual se irá averiguar e proclamar a existência da legítima defesa. Tome-se, agora, este outro exemplo: o ferimento resultante de um pontapé durante o jogo de futebol. Embora, na última hipótese, também possa ocorrer uma lesão cor poral dolosa, se o agente, apesar disso, agiu dentro do que é nor malmente aceito e tolerado24, em disputas dessa natureza, não há que se falar, desde o início, em tipicidade material, dispensando-se o agente de ter que recorrer a uma causa de justificação para al cançar a impunibilidade do fato. A “adequação social” exclui desde logo a conduta em exame do âmbito de incidência do tipo, situando-a entre os comportamentos normalmente permitidos, isto é, materialmente atípicos. Escolhemos esses dois exemplos para confronto, por serem bas tante expressivos e apresentarem inegável valor didático, é preci so, porém, frisar que, nesta área, atua conjugadamente, com certa freqüência, este outro princípio, já inicialmente examinado: non omne quod licet honestum est (supra, n. 5). Com isso, o princípio da adequação social se desdobra para alcançar inúmeras situações nem sempre ajustadas a regras éticas. t Vale dizer: podem as con dutas socialmente adequadas não ser modelares, de um ponto de vista ético. Delas se exige apenas que se situem dentro da moldura do comportamento socialmente permitido ou, na expressão textual de Welzel, dentro do quadro da liberdade de ação social (. . . im Rahmen der sozialen Handlungsfreiheit)25, o que, em última análise, como bem observa Mir Puig, se reduz a esta afirmação apodítica: “Não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto” 26. 23. Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 57. 24. Note-se que não estamos defendendo certas agressões desleais que ultimamente se têm verificado no esporte brasileiro, que, infelizmente, para desespero do público, perde em grandeza e beleza na mesma proporção do que ganha em violência. 25. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 56. 26. Introducción a las bases del derecho penal, p. 154. 132
d) Princípio da insignificância Í3Í. Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes27. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do in justo, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpre tação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca impor tância28. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à con cepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietá rio da coisa; o descaminho do art. 334, § 1.°, d, não será certa mente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem con seqüências palpáveis; e assim por diante. Ouçamos o que diz a respeito o próprio criador do princípio em exame: “ . . . hacen falta princípios como el introducido por Welzel, de la adecuación social, que no es una característica del tipo, pero sí un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de conductas socialmente admisibles. A esto 27. 28.
Das deutsche Strafrecht, cit., p. 56. Claus Roxin, Política criminal, cit.,, p. 53133
pertenece además el llamado principio de la insignificancia, que per mite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio danos de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de dano de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a Ia pretensión social de respeto. Como ‘fuerza’ debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia. Igual mente también la amenaza debe ser ‘sensible’ para pasar el umbral de la criminalidad. Si con estos planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente la instrumentación de nuestra interpretación del tipo, se lograria, además de una mejor interpretación, una im portante aportación para reducir la criminalidad en nuestro país” 2S. Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, referida inicialmente (supra, n. 123), permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado — se necessário — como ilícito civil, admi nistrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais. Aqui, mais uma vez, se ressalta a maior am plitude e a anterioridade da ilicitude em relação ao tipo legal de crime.
e)
Algumas variações no conceito de tipo. Tipo em sentido amplo. O “Tatbestand”. Tipo objetivo. Tipo total de injusto. Tipos abertos e tipos fechados
132. Estudamos o conceito geral de “tipo”, bem como os conceitos penalísticos de “tipo de injusto” e de “tipo legal de cri me”, ou simplesmente, “tipo legal” ou, ainda, “tipo delitivo”. Vi mos, também, que o “tipo de injusto” nem sempre coincide com o “tipo legal”, ou seja, com a descrição do crime e suas circuns tâncias feitas pelo legislador. A noção de “tipo de injusto” se constrói com os elementos essenciais do “tipo legal”, necessaria mente constante de lei escrita, mas contém, além desses elementos, 29. Claus Roxin, Política crimirud, cit., p. 52-3. O Supremo Tribunal Federal, embora sem mencionar expressamente o princípio, declarou desca bida ação penal intentada por “dano de pequena valia”, em um caso de corte de folhas de palmeira (RTJ, 100: 157).
134
a nota de ilicitude do fato. O tipo de injusto desempenha impor tante função no juízo de adequação típica (função fundamentadora), restringindo o âmbito de incidência do tipo legal. Nem tudo que é formalmente típico ( = subsumido a um tipo legal) é ma terialmente típico ( = adequado a um tipo de injusto). O tipo legal, por sua vez, é fiador da garantia constitucional de que nin guém será punido por fato não previsto anteriormente, como crime, em lei escrita. Certos autores consideram-no mais amplo que o tipo de injusto porque, para que possa cumprir a sua “função de garantia”, deve englobar não só o crime e suas circunstâncias como também as condições de punibilidade (sobre isto, v. infra). Convém, pois, em um estudo introdutório, como o que estamos empreendendo, registrar, senão todas, pelo menos algumas varia ções do conceito de tipo, mais freqüentemente encontráveis nos tratados. Ei-las. 333. Tipo em sentido amplo. O “Tatbestand”. Tinha o Tatbestand, anteriormente à construção de Beling, significado equi valente à expressão latina corpus delicti. Sua origem é, pois, pro cessual e compreendia todas as características e elementos do deli to 30. O termo Tatbestand, na atualidade, é empregado, mais fre qüentemente, na literatura penalística alemã, ora para exprimir a ti pificação legal dos delitos (assim, Maurach ao falar nas diferentes categorias de tipos do Código Penal — “ . . . die Tatbestande des StGB. . . ” 31), ora para expressar um sentido complexo de tipo que se subdivide em uma parte objetiva (tipo objetivo), correspondente, ou melhor, idêntica ao “tipo legal”, e em outra parte subjetiva, abrangente do dolo e das intenções ou tendências com ele concor rentes 32. O tipo, assim entendido, é a ação antijurídica, legalmente tipificada, abrangente do resultado 33.
30. Jiménez de Asúa, Tratado de derecho penal, v. 3, p. 751; Zaffaroni, Teoria del delito, cit., p. 191-2. 31. Deutsches Strafrecht, cit., p. 222. 32. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 233. Essa, aliás, é, em essência, a definição apresentada por Ermin Briessmann para o vocábulo Tatbestand ( Straftatbestand, in Strafrecht und Strafprozess, 2. ed.). 33. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 245.
135
134. Tipo total de injusto. Concepção do tipo segundo a de nominada teoria dos élerrtentos negativos do tipo. De acordo com esta teoria, os pressupostos das causas de justificação integram o tipo como elementos negativos. Assim, adaptando-se um exemplo de Wessels, na figura do homicídio do art. 121 (“matar alguém”), deveríamos ler o seguinte: “matar alguém, salvo em legítima defesa, estado de necessidade” etc.34. Vimos, no título anterior, que, para se obter uma concepção material do tipo, não é imprescindível, nem aconselhável, fundi rem-se os conceitos de tipo e ilicitude, reduzindo-se a segunda ao primeiro. O tipo total de injusto fundamenta a teoria do erro, predomi nante na jurisprudência alemã, segundo a qual o erro que recai so bre os pressupostos de uma causa de justificação deve ser tratado como “erro de tipo” ou “erro de proibição”. Chegamos a idên tico resultado, por outra via, isto é, considerando “erro de tipo” o que recai sobre os elementos objetivos de um “tipo permissivo”. 135. Tipos fechados e tipos abertos. Na criação dos tipos penais, pode o legislador adotar dois critérios. O primeiro consiste na descrição completa do modelo de conduta proibida, sem deixar ao intérprete, para verificação da ilicitude, outra tarefa além da constatação da correspondência entre a conduta concreta e a des crição típica, bem como a inexistência de causas de justificação. Tal critério conduz à construção dos denominados “tipos fechados”, do qual seria exemplo o homicídio do art. 121 do Código Penal. A descrição “matar alguém”, por ser completa, não exigiria do intér prete qualquer trabalho de complementação do tipo. A imensa va riedade .da ação de matar um ser humano cairia facilmente sob o domínio desse tipo; a ilicitude resultaria da simples inincidência de normas permissivas. O segundo critério consiste na descrição in completa do modelo de conduta proibida, transferindo-se para o in térprete o encargo de completar o tipo, dentro dos limites e das indicações nele próprio contidas. São os denominados “tipos aber tos”, como se dá em geral com os delitos culposos que precisam ser completados pela norma geral que impõe a observância do dever de cuidado 35. 34. Direito penal, cit., p. 33-4. 35. Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 49-50. trário, Baumann, Grundbegriffe, cit., p. 40. 136
Em sentido con
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Ao ver de Roxin, crítico ardoroso desta construção welziana, só o tipo total seria realmente um tipo “fechado”, já que apenas ele compreende a totalidade do conteúdo do juízo de injusto, dispen sando a complementação por parte do juiz 36.
f)
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O tipo legal de crime. Estrutura. Tipo fundamental e tipos derivados
136. Tipo legal de crime. Estrutura. Tipos legais incriminadores) são encontrados na Parte Especial do Código Penal e na legislação complementar. Estruturam-se basicamente sobre a descrição sintética da conduta proibida, que pode ser uma ação ou uma omissão, expressa pelo verbo. Como inexiste ação ou omissão sem o sujeito que age ou omite, prevê-se, na descrição típica, quem pode ser o autor do comportamento proibido. Em certos casos esse autor é indeterminado, hipótese em que se identifica com o conceito de pessoa humana (qualquer pessoa humana), como no exemplo do homicídio (“matar alguém”, art. 121). Em outros, restringe-se o círculo de agentes de forma a limitar-se o número de pessoas que podem cometer o fato tipificado (assim, por exemplo, no crime de prevaricação do art. 319, que só pode ser cometido por funcionários públicos; no crime de abandono material do art. 244, cuja autoria reserva-se para o cônjuge, ascendentes ou descendentes da vítima). Disso resulta que, no estágio atual, do direito legislado brasileiro, só a pessoa humana pode ser agente de crime, por inexistir tipos que incluam, em sua previsão, a pessoa jurídica ou entes coletivos. Acre ditamos, porém, que, no futuro, o direito penal poderá estender suas malhas sobre a pessoa jurídica, desde que, para tanto, alargue e modifique o atual conceito de pena. Em um direito penal do fato, a tipificação deve acentuar um comportamento particular, isto é, o fato-do-agente, não a pessoaagente por sua forma de vida. Assim é que, no tipo do roubo (art. 157), pune-se determinada ação dé roubar, não a circunstância de alguém ser tido por ladrão contumaz. Essa é a regra. Não obstante, não se pode negar que o ordenamento vigente abre al36. Para tuna crítica aprofundada sobre o tema, consulte-se a preciosa monografia de Claus Roxin, Offene Tatbestande und Rechtspflichtmerrmale, traduzida parar o espanhol por E. Bacigalupo sob o título Teoria del tipo penal. 137
gumas exceções a essa regra, como no caso do rufianismo (art. 230), onde o que se pune é uma certa conduta de vida reprovável ou um tipo-de-autor. Examinados os tipos legais, conjugadamente com o preceito do art. 18 e seu parágrafo único, do Código Penal, que a todos ilumina, chega-se à conclusão de que as condutas tipificadas, sejam quais forem, devem conter a nota da voluntariedade. Assim, ficam ex cluídos do tipo todos os fenômenos a respeito dos quais se possa afirmar que o agente deu causa ao resultado típico sem contudo deter o “domínio do fato” . Não fazemos exceção sequer aos crimes culposos, pois, como vimos, nestes, está sempre presente a “volun tariedade na causa”. Assim, os fatos que não puderem ser recon duzidos a alguma forma de vontade do agente, por se apresentarem puramente causais, devem ser reputados atípicos. Para ser-se agente de um crime não basta, pois, figurar fisicamente na cadeia causai como natureza morta. É preciso contribuir para o resultado como pessoa humana, dotada de vontade, mal utilizada (nos crimes de ação) ou não utilizada (nos crimes de omissão). Todavia, para o aperfeiçoamento do injusto isso é suficiente. A reprovabilidade, ou não, do desempenho da vontade é problema para o juízo de culpabilidade. Sendo inseparável da ação humana, descrita no tipo, a inten cionalidade que a preside, ou o seu finalismo, incluímos igualmente, no tipo, o dolo, nos crimes dolosos, e a negligência, imprudência ou imperícia, nos crimes culposos. Sobre essa controvertida ques tão, remetemos o leitor aos esclarecimentos feitos no capítulo em que tratamos da evolução da idéia de culpabilidade. Pode o legislador decidir-se pela punição de uma simples con duta humana, cómo no exemplo da prevaricação (art. 319), inde pendentemente dos efeitos externos que possa causar essa mesma conduta, ou, ao contrário, pretender punir a conduta que produza certo resultado danoso, como ocorie com o crime de homicídio (art. 121), onde a morte da vítima é o resultado que se liga à con duta do agente. Se o legislador optar pela segunda hipótese — e isso geralmente acontece — o resultado precisa estar descrito ou implícito no tipo, o que se obtém, freqüentemente, com o emprego do verbo adequado a exprimir ação que implica resultado ( “matar”, “abandonar”, “subtrair”, “destruir”, “alterar” etc.). 138
Disso resultam importantes conseqüências práticas, seja para o exame da adequação típica de condutas que não chegaram a pro duzir o resultado típico, seja para a configuração de um crime apenas tentado. 137. Tipo fundamental ou básico e tipos derivados. O tipo legal pode conter, ainda, o que é mais raro, a descrição da vítima, para submeter o fato a um tratamento especial (parricídio, infanticídio). Pode, igualmente, conter a descrição de circunstâncias que agravem ou atenuem a punibilidade do fato (homicídio qualificado, privilegiado, furto qualificado, de pequeno valor etc.). Nesta última hipótese, temos o tipo fundamental, ou básico, e os tipos derivados também denominados tipos “atenuados” ou “agravados” (Maurach). O tipo fundamental, ou básico, é o que nos oferece a imagem mais simples de uma espécie de delito. Dele não se pode extrair qual quer elemento sem que se desfigure a imagem do delito de que ele é a expressão. Assim ocorre, por exemplo, com o tipo fundamental do homicídio, instituído pelo art. 121, caput, do Código Penal (“matar alguém”). São seus elementos: a) o agente ativo (uma pessoa humana); b) a conduta (ação ou omissão causadora da mor te); c) o dolo (voluntariedade consciente da ação); d) o agente passivo (uma pessoa humana); e) o resultado (evento morte); /) o nexo de causalidade. Se fizermos abstração de qualquer um des ses elementos essenciais, o fato poderá ser tudo menos um crime de homicídio. Consideremos, porém, o homicídio qualificado pelo acréscimo aos elementos já mencionados de mais um — o “motivo fútil” (art. 121, § 2.°, II). Já aqui, se excluirmos este último ele mento, o fato não deixa de ser um crime de homicídio, apenas transmuda-se de homicídio qualificado em homicídio simples. A imagem do crime continua, porém, a mesma, isto é, a eliminação injusta da vida de um ser humano por ação voluntária de um outro ser hu mano. Tipos derivados são, pois, os que se formam a partir do tipo fundamental, mediante o destaque de circunstâncias que agravam ou atenuam o último. Se ocorre a agravação, dá-se um tipo qualifi cado; se a atenuação, tem-se o tipo privilegiado (exemplo deste, o homicídio do art. 121, § 1.°, ao CP). O tipo derivado pode constituir-se em uma figura caudatária do tipo fundamental, ou em uma figura autônoma (delito independente, delictum sui generis). Na primeira hipótese, as regras que se aplicam ao delito básico apli139
cam-se também aos crimes qualificados ou privilegiados que dele derivam. Na segunda hipótese, o surgimento de um delito indepen dente faz com que este se coloque fora da incidência daquelas re gras. Exemplo disso está no furto qualificado (art. 155, § 4.°, I a IV) que, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ, 81:362), não se beneficia com a possibilidade de substitui ção ou diminuição de pena do § 2.° do art. 155, aplicável ao tipo fundamental do furto (art. 155, caput). Não se podem, entre tanto, traçar critérios rígidos, a priori, para a identificação de um tipo derivado autônomo. Só um exame acurado da moldura tí pica poderá fornecer ao intérprete o material necessário a um juízo de sua autonomização. Assim, em certos casos, de que é exemplo o tipo do art. 121, § 2.°, do Código Penal, não será difícil per ceber-se a autonomia em foco, pois uma coisa é o homicídio do caput do art. 121, ou seja, eliminar-se alguém com qualquer pro pósito reprovável; outra, o homicídio cometido “sob o domínio de violenta emoção”, causada até por sentimentos nobres (homi cídio eutanásico), não obstante esta última conduta seja também tipicamente antijurídica. Quando, entretanto, a circunstância qualificadora ou atenuadora não altera a substância da conduta des crita no tipo básico, limitando-se o legislador a aduzir ao último características meramente agravadoras ou atenuadoras da pena, é de se concluir pela existência de um tipo agravado ou atenuado, não autônomo. Nesse sentido, Maurach (Deutsches Strafrecht, cit., p. 241).
g)
Denominações mais freqüentes das várias espécies de crimes 37
.138. A partir do conteúdo dos tipos incriminadores, pode-se empreender uma classificação dos crimes, por espécies, a saber:
37. A enumeração que apresentamos neste título não é exaustiva. Visa apenas esclarecer o sentido da terminologia freqüéntemente utilizaria. Para in formação mais completa, podem ser consultados: James Tubenchlak, Teoria do crime, p. 61 e s.; Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 40 e s.; Eduardo Correia, Direito criminal, cit., v. 1, p. 285 e s.; Wessels, Direito penal, cit., p. 7 e s.; e outros autores a seguir citados. 140
j
— Crimes comuns e crimes de responsabilidade. A expressão crime comum é empregada em doutrina para designai aqueles delitos em que o agente do fato pode ser qualquer pessoa, não uma classe determinada de autores. No direito brasileiro, contudo, por força de dispositivos constitucionais, essa mesma expressão tem sido utilizada em contraposição a crimes de responsabilidade (v. CF, arts. 52, I e II, 102, I, b e c etc.). Todo crime que não for crime de “res ponsabilidade” será, portanto, nesse sentido, crime “comum”. Já o crime de responsabilidade tem o significado de crime funcional; é o crime da função pública (RTJ, 22:58). Trata-se, não obstante, de uma expressão bastante equívoca, conforme salienta Frederico Mar ques: “A expressão crime de responsabilidade tem, no Direito brasi leiro, um sentido equívoco, pois que não designa apenas figuras deli tuosas de ilícito penal, mas também violações de deveres funcionais não sancionadas com pena criminal. Empregou-a, pela primeira vez, a Constituição do Império, em seu art. 5.°. Usou-a, por outro lado, em leis ordinárias, de tal alocução, pela primeira vez, no art. 308, o Código Criminal de 1830. Seguiram-se-lhe, logo depois, o Cód. de Proc. Criminal de 1832 e a Lei de Interpretação de 1840. Desde então, passou a circular, como assinala o Prof. Raul Chaves, ‘a lo cução viciosa — com foros de linguagem legislativa — ora aludindo àqueles delitos por que são responsáveis os ministros e secretários de Estado, ora designando certas espécies de crimes comuns, definidos no Código de 1830, ou seja, delicta in ofjicio, crimes de função, delicta própria dos que exercem funções públicas’ ” 38. Em acórdão relativamente recente, reafirmou o Plenário do Supremo Tribunal Federal a dicotomia “crimes comuns-crimes de responsabilidade”, incluindo entre os “comuns” os que “estejam defi nidos na lei penal comum ou nas leis especiais” e até mesmo os “cri mes contra a segurança nacional impróprios”, isto é, aqueles que não sejam crimes políticos puros de que são exemplos as ofensas à honra do Chefe de Estado (Ação Penal 271-9-DF, RTJ, 706:449-51). — Crimes gerais, especiais e crimes de mão própria. O tipo legal de crime pode circunscrever ou ampliar os agentes possíveis de um certo delito. Assim, nos denominados crimes gerais ou crimes comuns o agente é indeterminado, podendo ser qualquer um (exem plo: homicídio, furto, roubo). Já nos crimes especiais o círculo de 38.
Elementos de direito processual penal, v. 3, p. 327.
agentes possíveis fica reduzido àquelas pessoas designadas pelo legis lador (exemplo: funcionário público, no peculato; militar, nos cri mes militares). Nestes últimos — os especiais — quem não pos suir a característica prevista no tipo só pode ser considerado coautor ou partícipe, jamais autor do crime. Delitos de mão própria são os que só podem ser cometidos por ação direta, pessoal, do agen te referido no tipo (exemplo: adultério, estupro incestuoso, aban dono de função, deserção). — Crimes comissivos e crimes omissivos. Crimes comissivos por omissão. Crimes de atividade (ou de mera conduta) e crimes de resultado39. Crimes formais e crimes materiais. Nos crimes co missivos está tipificada uma ação em sentido estrito, ou seja, uma atividade positiva. Proíbe-se “fazer” algo (matar, subtrair etc.). Nos crimes omissivos, o núcleo do tipo é a inatividade do agente. Proíbe-se “não fazer” algo, em contrariedade com o dever jurídico (deixar de prestar socorro, deixar o médico de comunicar à autori dade certas doenças etc.). Os crimes omissivos se dividem em pró prios e impróprios. Estes últimos são também denominados comis sivos por omissão. A diferença específica entre os omissivos pró prios e os omissivos impróprios (comissivos por omissão) reside em que os primeiros são crimes de mera atividade (exemplo: omissão de socorro), os segundos são crimes de resultado (exemplo: homi cídio de um lactente cometido por meio de propositada omissão de assistência alimentar por quem podia e tinha o dever de prestá-la)40. Os crimes de atividade (do alemão Tãtigkeitsdelikte) são aqueles em que, no dizer de Maurach, a ação humana esgóta a descrição do tipo: “a própria ação constitui o ponto final do conteúdo típico”. Em tais crimes, o resultado causai da ação, se eventualmente existente, não entra em consideração para o juízo de tipicidade, pois o tipo desses delitos encerra, de forma nítida, um desvalor da ação proibida. E o que se dá com a tentativa e com os delitos dos arts. 319 e 333, 39. SobTe o tema, consulte-se substanciosa monografia de Manoel Pedro Pimentel, Crimes de mera conduta. 40. Correta a observação de Alcides Munhoz Netto, segundo a qual: “Tanto comete crime comissivo por omissão o garantidor que se abstém de evitar o resultado por desejar a sua superveniçncia, quanto o que, embora não o querendo, aquiesce em seu advento, ou o que, simplesmente, omite deveres de cuidado, conhecendo ou podendo conhecer o resultado que lhe cumpria evitar” (Crimes omissivos, Revista da Associação dos Magistrados do Paraná, 36:116-7). 142
caput, do Código Penal. Crimes de resultado (Erfolgsdelikte) ou crimes materiais (Materialverbrechen) são aqueles cuja conduta está relacionada com o resultado previsto no tipo. A não-ocorrência desse resultado impede a consumação do crime. Ainda sob o as pecto da exigência típica de determinado resultado no mundo exte rior, temos os crimes formais e os crimes materiais. Os primeiros abrangem os já mencionados delitos de atividade e os omissivos pró prios. Os últimos, os delitos comissivos, de que a lei faça depender a existência de um evento, e os omissivos impróprios ou comissivos por omissão. Manoel Pedro Pimentel distingue os crimes formais dos crimes de mera conduta, tendo em vista o resultado. Nos primeiros have ria um resultado naturalístico requisitado pelo tipo (exemplo: na falsificação exige-se o “falsificado” ), nos segundos, n ã o 4** — Crimes de dano e crimes de perigo. Crimes de perigo. Cri mes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato ou presumido. Com vista ao bem jurídico protegido, é que se fala em crimes de dano e em crimes de perigo. Os primeiros causam lesão efetiva, os últimos conduzem uma potencialidade de lesão, realizável ou não, em concreto, que o legislador deseja cortar no nascedouro. Estes — os de perigo — se subdividem em crimes de perigo concreto e em crimes de perigo abstrato ou presumido. Nos de perigo concreto, a realização do tipo exige constatação, caso a caso, de perigo real, palpável, mensurável42. Nos de perigo abstrato, ao contrário, dis pensa-se essa constatação, por se tratar de perigo presumido de lesão, como ocorre na formação de quadrilha ou bando (art. 288), punível ainda quando a associação de malfeitores não chega a cometer os crimes a qüe se propunha; assim, também, a falsificação de papelmoeda, punível mesmo que o dinheiro falso não tenha sequer sido objeto de troca ou de introdução na circulação. É oportuno frisar que os crimes de perigo não se equiparam rigorosamente aos formais. Conforme registra Eduardo Correia, o 41. Crimes de mera conduta, cit., p. 84-6. 42. No RE 92.449, acolheu o Supremo Tribunal Federal parecer nosso no sentido de que, nas lesões corporais graves, para caracterização do “perigo de vida” (CP, art. 129, § 1.°, II), não basta o perigo abstrato ou potencial, mas é preciso mais, ou seja, um perigo concreto de morte, ainda que fugaz. Esse ponto de vista foi, aliás, sustentado por Nélson Hungria, Magalhães Noronha e Aníbal Bruno, devidamente citados naquele parecer. 143
crime de perigo pode ser formal do ângulo do resultado final que se quer evitar, mas é um crime material, como no exemplo da fabrica ção de moeda falsa, considerado o fato que caracteriza o perigo. Tal distinção, segundo o autor citado, tem relevância para a admis sibilidade da tentativa43. — Crimes qualificados pelo resultado. Crimes preterintencionais ou preterdolosos. Estudo à parte merecem Os denominados de litos qualificados pelo resultado. São crimes materiais (de resulta do) que possuem, comó especial característica, a conjunção em seu interior do dolo e da culpa, de modo que o agente atua com dolo em relação ao fato antecedente e culpa quanto ao fato conseqüente (le são corporal seguida de morte — § 3.° do art. 129). Às vezes, ocorre culpa no antecedente e dolo no conseqüente (homicídio cul poso com omissão de socorro — § 4.° do art. 121), ou (hipótese mais freqüente) dolo no antecedente e dolo no conseqüente (lésão corporal seguida de perda de membro, deformidade permanente etc.). Nesses delitos, para evitar-se uma pura responsabilidade objetiva, há que ser exigida, pelo menos, culpa no resultado mais grave (impru dência ou negligência), o que significa ser indispensável, no mínimo, a previsibilidade desse resultado. Sem essa previsibilidade ocorre o caso fortuito, interrompendo-se o vínculo existente entre a ação e o resultado naturalístico mais grave, hipótese em que só poderá o agen te responder pelo fato antecedente 44. é o que dispõe a nova Parte Geral: “Art. 19. Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. O Código italiano, no art. 43, estipula que “o delito. . . é preterintencional, ou além da intenção, quando da ação ou omissão de riva evento danoso ou perigoso mais grave do que aquele querido pelo agente”. Como se vê, trata-se do nosso delito qualificado pelo resultado, embora alguns autores tenham pretendido estabelecer dis tinções entre este último e o primeiro45. Bettiol, examinando o mencionado art. 43, indaga se é possível considerar a preterintencionalidade uma forma independente de elemento psicológico, ao lado do dolo e da culpa. E conclui em sentido negativo, afirmando: “ . . . parece-nos mais convincente a opinião segundo a qual, no deli 43. Direito criminal, cit., p. 288. 44. Assim Hungria, Comentários, cit., v. 5, p. 319. 45. Consulte-se, a respeito, Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 269-73;. James Tubenchlak, Teoria do crime, cit., p. 154-5. 144
to preterintencional, encontramo-nos diante de uma hipótese de dolo misto com a culpa, no sentido de que há dolo no que concerne ao crime menos grave, previsto e querido pelo agente, e culpa em rela ção ao resultado mais grave realizado” 46. Nada a acrescentar a essas considerações do penalista penin sular. A expressão “crime qualificado pelo resultado” é, todavia, mais abrangente do que as expressões “crime preterintencional” ou “crime preterdoloso”, por alcançar também a hipótese inicialmente mencio nada de culpa no antecedente 47, mais uma razão de sua preferência. — Crimes simples e crimes complexos (ou compostos). Cri mes pluriofensivos. Segundo Nélson Hungria, “simples é o crime que se identifica com um só tipo legal; complexo, o que representa a fusão de mais de um tipo” 48. Exemplo do primeiro seria a lesão corporal; do segundo, o roubo, no qual se fundem o constrangimen to ilegal (CP, art. 146) e a subtração (CP, art. 155). Autores há, porém, que tomam a palavra complexo em sentido mais amplo para designar também o crime que resulta da fusão de um crime com outro elemento que pode não ser um crime (exemplo: denunciação caluniosa, calúnia mais instauração de processo ou de investiga ção)49. Note-se que os crimes complexos são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado. Assim, no roubo, atinge-se, a um só tempo, o patrimônio, através da subtração, e a liberdade individual, por meio do constrangimento ilegal. Aplica-se-lhes a regra do art. 1CT1 do Código Penal, no tocante à ação penal pública (caso do estupro, com violência real, segundo jurisprudência do STF). Tema bastante discutido, que por ora só pode ser aflorado, é a tentativa nos crimes complexos. Tomemos o seguinte exemplo do latrocínio, que ocorre freqüentemente nos tribunais: Tício mata a vítima, para roubar; todavia, por circunstâncias alheias à sua von tade, não chega a consumar a desejada subtração da coisa. Sabendo-se que o latrocínio é um crime composto de homicídio e de rou bo, indaga-se, no exemplo dado, em que o homicídio se consumou 4647. 48. 49.
Diritto penale, cit., p. 453. Magalhães Noronha, Direito penal, cit., v.1, p. 150. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 50. Cf. Magalhães Noronha, Direito penal, cit., p. 113. 145
mas a subtração da coisa permaneceu tentada, se ocorre igualmente tentativa do crime complexo ou se este pode ser considerado con sumado, ou, ainda, se ocorre desclassificação do fato unitário para outra ou outras figuras típicas penais. A questão é muito contro vertida, inexistindo acordo entre os autores. O Código Penal vi gente deixa em aberto a possibilidade de qualquer dessas soluções, por não ter o legislador de 1940 tomado posição a respeito. Já o legislador de 1969, tanto no frustrado Código Penal de 1969, revo gado antes de entrar em vigor (art. 167, §§ 4.° e 5.°), como no vigente Código Penal Militar (art. 242, § 3.°), considera consuma do o crime complexo, independentemente da consumação da subtra ção, desde que haja consumação do homicídio. Essa solução tem sido aceita pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo e, mais recentemente, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Fe deral, diante das dificuldades intransponíveis apresentadas, no Có digo vigente, para a adoção de qualquer outra das soluções possíveis (ressurgimento da competência do júri, para o latrocínio, se adotada a tese da desclassificação do fato para homicídio qualificado, ou punir-se, ilogicamente, no juízo monocrático, a tentativa de latrocí nio, que contém um homicídio consumado, qualificado pelo motivo torpe, de modo extremamente mais benigno do que qualquer das figuras previstas para o homicídio qualificado) 50. — Crimes instantâneos e crimes, permanentes. Crimes instan tâneos de efeitos permanentes. A distinção entre estas espécies de delito oferece alguma dificuldade. Dentre as definições que têm sido apresentadas, destacamos a de Bettiol, segundo a qual: são instan tâneos os crimes que possuem como objeto jurídico bens destrutíveis; permanentes, aqueles cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado. Dentro 50. Eis alguns acórdãos do Supremo Tribunal Federal que adotaram a tese da consumação do crime complexo de latrocínio, apesar de não consu mada a subtração: HC 56.704, DJ, 23 mar, 1979, p. 2100; HC 57.420, DJ, 14 dez. 1979, p. 9443; HC 57.387, DJ, 29 fev. 1980, p. 973; HC 57.586, DJ, 7 mar. 1980, p. 1174. O último aresto contém esta significativa ementa: “Penal — Latrocínio — Subtração tentada e homicídio consumado — Con trovérsia a respeito da exata qualificação do crime — Opção pela solução menos imperfeita, que afiima, nessa hipótese, o latrocínio consumado” (Rel. Min. Decio Miranda). 146
dessa concepção, poder-se-á concluir que, no delito instantâneo (furto, injúria etc.), a consumação ocorre em um momento certo, definido; no permanente, o momento consumativo é uma situação duradoura, cujo início não coincide com o de sua cessação (seqües tro, cárcere privado, usurpação de função pública etc.). Denominam-se crimes instantâneos de efeitos permanentes aqueles em que não a conduta do agente, mas apenas o resultado da ação é permanente. Isso ocorre no homicídio (exemplo de Bettiol), cujo resultado (a morte) é irreversível, portanto permanente, mas seguramente marcado por um momento consumativo certo — aquele em que a vítima deixa de viver. Esta classificação dos crimes tem, entre outras, conseqüências processuais relevantes na caracterização do flagrante delito, pois, nos crimes permanentes, enquanto não ces sada a permanência, pode haver prisão em flagrante. — Crimes políticos e crimes comuns. Crimes de opinião. Há sérias dificuldades na conceituação dos denominados crimes políticos, visto como, de um modo geral, os fatos abrangidos por esta cate goria de delitos nem sempre se diferenciam, no aspecto exterior, da queles previstos na legislação penal como crimes comuns (explosão, incêndios, assassinatos, sabotagem etc.). Daí a distinção entre de litos políticos puros e relativos (ou próprios e impróprios), os pri meiros ofensivos tão-somente à ordem política (exemplo: propagan da revolucionária ou subversiva — art. 22 da Lei n. 7.170/83), os últimos possuindo, também, o caráter de ofensivos aos bens tutela dos pela legislação penal ordinária (exemplo: o roubo e o seqües tro, do art. 20 da Lei n. 7.170, contemplados igualmente nos arts. 157 e 148 do CP). Se em relação aos primeiros não há obstá culos intransponíveis para a caracterização dos motivos do agente que dão o cunho político ao fato (quase sempre manifesto), nos últimos o hibridismo da infração oferece inúmeros problemas de aplicação prática, diante de certos benefícios concedidos aos crimes políticos, dentre os quais se avultam a prisão sem regime penitenciário (Lei n. 7.210/84, art. 200), o asilo e a proibição da extradição. Tanto é assim que o Estatuto do Estrangeiro, no título que trata da extra dição, após proibi-la por crime político (art. 77, V II), de acordo com norma do art. 5.°, L1I, da Constituição, ressalva a hipótese dos crimes políticos relativos ou impróprios (art. 77, § 1.°) e atribui ao Supremo Tribunal Federal a faculdade de, em concreto, dar a última palavra sobre o “caráter da infração” (§ 2.9), possibilitan 147
do-lhe “deixar de considerar crimes políticos os atentados contra Chefes de Estado ou quaisquer autoridades, bem assim os atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, seqüestro de pessoa, ou que im portem propaganda de guerra ou de processos violentos para sub verter a ordem política ou social” (§ 3.°). Da mesma forma, a Lei n. 2.889, de 1.° de outubro de 1956, que após definir o crime de genocídio o exclui do conceito de crime político, “para efeitos de extradição” (art. 6.°). Tais disposições legislativas agravam, obviamente, as dificulda des na elaboração do conceito do crime político, devido à amplitu de das exceções acima referidas, que praticamente anulam a regra, e diante da omissão do legislador pátrio na definição desse delito, cujo tratamento legal foi sempre polêmico e variável. O legislador italiano, diferentemente do brasileiro, enfrentou o problema definindo no Código Penal, art. 8.°, como delito político todo aquele que “ofende um interesse político do Estado ou um di reito político do cidadão”. A seguir, equipara a delito político todo “delito comum determinado, no todo ou em parte, por motivos po líticos”. Baseado nesses preceitos, Manzini apresenta dois critérios — um objetivo outro subjetivo — para a caracterização do crime em exame. De um ponto de vista objetivo, seriam políticos todos os delitos contra a personalidade do Estado, quaisquer que sejam os seus motivos; de um ponto de vista subjetivo, sê-lo-iam os delitos comuns praticados com motivação política. Amplia, ainda, o autor citado o conceito de crime político para abranger igualmente os de litos comuns conexos aos primeiros, ou seja, os crimes comuns pra ticados para execução, ocultação ou para assegurar o produto, o proveito, o preço ou a impunidade dos crimes políticos 51. Tal conceituação não se aplica, contudo, ao direito legislado brasileiro que, como vimos, trata como “crime comum”, entre ou tros, os delitos de seqüestro e de terrorismo com fins políticos, por força do disposto no art. 77, § 3.°, da Lei n. 6.815/80, cuja constitucionalidade, nesse aspecto, não tem sido posta em dúvida. Nota-se, aliás, que, se na lei italiana a tendência é para ampliação do crime político, no Brasil ocorre o inverso, inclinando-se nossa legis lação pelo tratamento de atos de fins evidentemente políticos como crimes comuns. Essa inclinação tem sido apoiada pelo Supremo 51. 148
Trattato, cit., v. 1, p. 481,
Tribunal Federal, onde muito se discutiu sobre a natureza do “crime complexo” ou “crime político relativo”, isto é, daquele delito que é “um misto de crime comum e de crime político”. Em pedido de extradição formulado pelo governo francês, entendeu-se que o de finitivo “caráter do crime decorrerá da predominância da infração política ou comum”. E, no voto prevalecente do Min. Moreira Alves, ficou dito, em síntese, que a aferição dessa “predominância” é facultada ao Supremo Tribunal Federal que, para tanto, examina as circunstâncias do fato e considera certos princípios inspiradores de nossa legislação. Assim é que, ainda conforme o voto mencio nado, leva-se em conta a confiança que inspira a justiça do país que requer a extradição, como aconselha Coelho Rodrigues. Além disso, considera-se: a) a finalidade do ato criminoso orientada no sentido de realizar um atentado contra a organização política ou social do Estado; b) a relação, que deve ser clara e nítida, entre o ato criminoso e o objetivo revolucionário de algum partido; c) a possibilidade de preponderância do delito comum sobre o caráter político do crime (ainda quando o objetivo final visado seja um fim político), “em razão da atrocidade do meio empregado” para a con secução do fim perseguido. Além disso, consoante dizia Bento de Faria, deve preponderar o crime comum “quando a violação do in teresse privado sobrepuja em gravidade a do delito político” (Extra dição 399-França, RTJ, 108:18). Em outro julgado (caso Firmenich), reiterou o Supremo Tri bunal Federal esse entendimento (Extradição 417-Argentina), que fornece atualmente os critérios para a caracterização, entre nós, do crime político. Pode-se, em conclusão, dizer que a expressão “crime político” enuncia fatos típicos penais qualificados pela motivação política do agente ou pela natureza do bem jurídico ofendido (a organização política do Estado). Distinguem-se, pois, ôs crimes políticos dos crimes em sentido amplo na medida em que estes últimos predomi nantemente “atacam os bens ou interesses jurídicos do indivíduo, da família, da sociedade”, ao passo que os primeiros — os crimes po líticos — “agridem a própria segurança interna ou externa do Es tado ou são dirigidos contra a própria personalidade deste” 52. Note-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal inclui na classificação de crimes comuns (em oposição a crimes de responsa 52.
Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 55. 149
bilidade) os crimes políticos relativos (ou crimes contra a segurança nacional impróprios), conforme salientamos antèriormente. Não se confundem, outrossim, os crimes políticos com os crimes de opinião, embora estes possam, em certas circunstâncias, adquirir o caráter daqueles (exemplo: incitar à subversão da ordem política — art. 23 da Lei n. 7.170). São delitos de opinião as manifestações escritas ou orais que constituem abuso da liberdade de expressão ou de pen samento (crimes de imprensa, crimes contra a honra). Mesmo nos regimes amantes da liberdade não se pode prescindir da punição dos abusos nas várias formas de manifestação do pensamento, quando se passa da mera liberdade de pensamento para a esfera da agressão a bens jurídicos fundamentais, penalmente protegidos. É certo, porém, que regimes ditatoriais, totalitários, têm abusado da mani pulação dos delitos de opinião como instrumento de opressão e de perpetuação no poder, por meio da equiparação extensiva destes a delitos políticos, o que é lamentável. — Crime qualificado e crime privilegiado. Tipo fundamental ou básico e tipo derivado. “Delictum sui generis”. Tipo funda mental ou básico é o que nos oferece a imagem mais simples de uma espécie de delito. Dele não se pode extrair qualquer elemento sem que se desfigure a imagem do delito de que é expressão (exemplo: homicídio simples — art. 121, caput). Tipo derivado é o que se forma a partir do tipo fundamental mediante o acréscimo de circuns tância que exprime uma agravação ou uma atenuação do conteúdo do injusto ou da culpabilidade do delito-base 53. Quando o tipo de rivado constitui modalidade agravada, o crime por ele modelado de nomina-se qualificado (exemplo: homicídio qualificado pela traição ou emboscada — art. 121, § 2.°, IV ); se, ao contrário, constitui modalidade atenuada, o crime se diz privilegiado (exemplo: homicí dio privilegiado pelo motivo de relevante valor social ou moral — art. 121, § 1.°). Estas variantes do delito-base podem adquirir um aspecto de total independência do delito de que derivam, constituin do um delito autônomo ou delictum sui generis (exemplo: o infanticídio — art. 123). — Delitos de intenção. Delitos de resultado cortado e delitos mutilados de dois atos. Segundo Maurach, o tipo delitivo é “con gruente” quando existe uma coincidência entre as suas partes subje tiva e objetiva (entre o dolo e o acontecimento objetivo). Para a 53.
150
Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 201-2.
realização do tipo congruente, de que sao exemplos o homicídio, a apropriação indébita etc., é necessário e suficiente que o tipo obje tivo — o acontecimento — se mantenha dentro da imagem da re presentação e vontade abrangida pelo dolo — o tipo subjetivo. Há, entretanto, tipos estruturalmente incongruentes quando a lei estende o tipo subjetivo além do objetivo. Isso acontece com o rapto do art. 219, para cuja consumação basta que o “fim libidinoso” esteja na intenção do agente, não necessitando, porém, concretizar-se em atos no mundo exterior. Ocorre, igualmente, segundo o mesmo autor, defeito de congruência quando a lei restringe o tipo subjetivo frente ao objetivo (delitos qualificados pelo resultado, nos quais o dolo vai até o resultado parcial — o minus delictum), ou quando, no caso concreto, falta a coincidência, exigida pelo tipo legal, entre a parte subjetiva e a objetiva (caso da tentativa). Denominam-se delitos de intenção (ou de tendência interna transcedente) aqueles em que o agente quer e persegue um resulta do que não necessita ser alcançado de fato para a consumação do crime (tipos incongruentes). Dividem-se em delitos de resultado cortado e delitos mutilados de dois atos. Nos primeiros, o agente espera que o resultado externo, querido e perseguido — e que se situa fora do tipo — se produza sem a sua intervenção direta (exem? pio: extorsão mediante seqüestro — art. 159 — crime no qual a vantagem desejada não precisa concretizar-se, mas se vier a concretizar-se será por ato de outrem). Nos últimos, o agente quer alcan çar, por ato próprio, o resultado fora do tipo (exemplo: a falsifi cação de moeda — art. 289 — que supõe intenção de uso ou de introdução na circulação do dinheiro falsificado). — Delitos de fato permanente e delitos de fato transeunte. Esta classificação adquire especial relevância no processo penal, para efeito de exigir-se ou não o exame de corpo de delito. Trata-se de uma classificação muito antiga (delicta facti permanentis e delicta facti transeuntis) conceituada nestes termos por Pereira e Souza: “A inspeção ocular é absolutamente necessária nos delitos de fato permanente, isto é, nos delitos que deixam vestígios depois de si. Nos delitos que não deixam vestígio presente, e que por isso se cha mam de fato transeunte, bastam as conjeturas legítimas para forma rem o corpo de delito” 54. 54. v. 2, p. 16.
Apud João Mendes de Almeida Jr., O processo criminal brasileiro,
151
•— Crimes de ação violenta e crimes de ação astuciosa. A re forma penal, em várias passagens (CP, arts. 16, 71, parágrafo único, 83, parágrafo único, e 107, V III), refere-se a crimes cometidos com ou sem violência, com ou sem grave ameaça à pessoa, para o fim de determinar o tratamento penal com maior ou menor severidade, conforme ocorra uma ou outra hipótese. Isso revela de forma evi dente a atual e crescente preocupação com as duas formas de mani festação da criminalidade dos nossos dias: a criminalidade violenta e a criminalidade astuciosa, posta em destaque pelos criminólogos 55. Denominamos, pois, “crimes de ação violenta” aqueles delitos para cuja execução o agente emprega a força bruta ou a grave ameaça, conjugadamente ou não com armas ou instrumentos, para matar, ferir ou subjugar pessoas (exemplo: crimes de sangue, estupro, aten tado violento ao pudor, seqüestro, roubo, latrocínio, e outros seme lhantes). Crimes de ação astuciosa são, ao contrário, aqueles em que o agente substitui aqueles meios cruéis de execução pela astúcia ou estratagemas mais ou menos bem engendrados, geralmente ardilo sos (exemplo: furto, estelionato, apropriação indébita, as várias mo dalidades de falso e de fraude etc.). — Outras categorias de crime, tais como crime consumado e tentado, crime falho, frustrado e impossível, crime continuado, crime doloso e culposo, crime de ação penal pública e de ação penal pri vada, crime de concurso necessário etc., não podem ou não devem ter o seu estudo destacado do instituto no qual se inserem, onde serão melhor compreendidos.
h)
O tipo legal de crime. Elementos. Elementos objeti vos e subjetivos. Elementos normativos. Elementos estranhos ao tipo. Condições de punibilidade e de procedibilidade. Escusas absolutórias ou causas pes soais de exclusão de pena
139. O tipo delitivo, com o expressão esquem ática de uma ação ilícita, ou com o norm ação da conduta ilícita, contém , segundo supom os: a ) a proibição da conduta descrita, ou seja, o elem ento
55. tiaire, p. 65.
152
Cf. Stefani, Lavasseur e Merlin, Criminologie et Science péniten-
valorativo que espelha o seu conteúdo material e atua còmo tatof limitativo do juízo de adequação típica (as ações ou omissões éticosocialmente permitidas não podem estar abrangidas por um modelo de conduta proibida)', b) a descrição da conduta proibida, isto é, o aspecto fático sobre que incide a valoração e a proibição da norma. Este aspecto fático compõe-se de elementos objetivos e de elementos subjetivos (o termo fático está aqui empregado com o sentido de relativo a fenômenos que podem ser objeto de verificação e de descrição). 140. A proibição não vem expressa no tipo por meio de um preceito normativo direto, como ocorre quando se diz: deves não matar, não furtar etc. Está, porém, normada no tipo que a implica, e, sob este ângulo visual, constitui-se em um signo de funções múl tiplas. Agora, importa esclarecer que este signo — o modelo de con duta punível — além da função de garantia e fundamentadora, possui função pedagógica, na medida em que se nos apresenta como algo diretamente revelado pelo legislador para que todos possam conhecer, de modo fácil e simples, as normas que impõem aos súditos de um determinado Estado o dever de não matar, não furtar etc. Isso quer dizer, como bem assinalou Binding, que o comportamento criminoso não transgride a lei penal, por ajustar-se ao tipo legal de crime, mas sim transgride o mandamento normativo subjacente no tipo. Daí a fundamental diferença existente entre o desconhecimento da norma e o desconhecimento da lei penal, embora se possa atingir o primeiro por meio do segundo e vice-versa. Na descrição da conduta proibida o tipo abrange ou pode abran ger: o sujeito ativo e o passivo da ação, a ação com seus elementos subjetivos e objetivos, o objeto da ação, o resultado e a relação de causalidade. 141. Elementos objetivos. Designamos com a expressão ele mentos objetivos todas as circunstâncias da ação típica que não per tençam ao psiquismo, ao mundo anímico do agente. Esses elementos são objetivos porque são independentes do sujeito agente, possuem uma validade externa que não se restringe ao agente, mas que pode ser aferida, constatada, por outras pessoas, além do agente, é claro. Com isso não estamos afirmando que o termo objetivo só se refira a objetos perceptíveis pelos sentidos. São objetivos todos aqueles 153
elementos que devem ser alcançados pelo dolo do agente56. Dividem-se em descritivos e normativos. Os primeiros — os descri tivos — são os que exprimem juízos de realidade, isto é, fenômenos ou coisas apreensíveis diretamente pelo intérprete (exemplo: “matar”, “coisa”, “filho”, “mulher” etc.). Os segundos — os normativos — são os constituídos por termos ou expressões que só adquirem sen tido quando completados por um juízo de valor, preexistente em outras normas jurídicas ou ético-sociais (exemplo: “coisa alheia”, “propriedade”, “funcionário público”, “mulher honesta” etc.) ou emi tido pelo próprio intérprete (exemplo: “dignidade”, “decoro”, “repu tação” etc.). 142. Elementos subjetivos. São elementos subjetivos os fe nômenos anímicos do agente, ou seja, o dolo, especiais motivos, ten dências e intenções. Presentemente, não se discute sobre a existência de elementos subjetivos nos denominados delitos de intenção (exemplo: o ânimo de lucro indevido, na extorsão do art. 158 do CP) e em todas as formas de tentativa punível. O que ainda se discute é se o dolo deve estar igualmente incluído no tipo, ou não. Temos sustentado que sim. Agora, essa nossa posição mais se reforça com a reforma penal (Lei n. 7.209/84) que, na regulamen tação do erro (arts. 20 e 21), não deixa dúvidas sobre a localização do dolo no interior do injusto. Voltaremos ao tema no capítulo da culpabilidade. O que se poderia aqui repetir é o seguinte: em um sistema como o nosso, marcado por tipos dolosos e por tipos culposos, o que distingue os primeiros dos segundos é a presença do dolo nos tipos dolosos e da negligência, imprudência ou imperícia nos tipos culposos, já que são esses os únicos elementos internos ao tipo que lhe dão essa especial fisionomia. Os que ainda teimam em situar o dolo e a culpa stricto sensu na culpabilidade não podem, por dever de coerência, falar em tipos dolosos e em tipos culposos, mas apenas em “tipos”, que não seriam tipos legais de crime, mas tipos vazios, a um só tempo abrangentes de condutas dolosas e culposas, as quais só poderiam distinguir-se em momento posterior ao do juízo de tipi cidade, isto é, quando do exame da culpabilidade. Isso significa, de 56. 15 4
Nosso O erro, cit., p. 48.
um ponto de vista processual, que ò reconhecimento da inexistência de um crime culposo, por ausência de previsão legal, só poderia ser proclamado pelo juiz na sentença de mérito que absolvesse o réu. A realidade, entretanto, é bem outra, visto que, como se sabe, nenhum juiz brasileiro ultrapassaria, corretamente, a fase de recebimento da denúncia que, por exemplo, descrevesse um inequívoco furto culposo não previsto em lei (alguém que por comprovado equívoco, mas por negligência, apanhasse um objeto alheio e o levasse para casa). O juízo de atipicidade do fato determinaria, certamente, a rejeição de tal denúncia. E, a nosso ver, assim deve ser, porque, diante dos expressos termos do parágrafo único do art. 17 do Código Penal, “salvo os casos expressos em lei” ( = salvo previsão legal de um tipo culposo), todos os tipos legais de crime são dolosos ( = contêm o dolo). Inexistindo previsão legal para o furto culposo, faltaria, no exemplo dado, uma condição da ação — a possibilidade jurídica do pedido — hipótese em que, no dizer de Tomaghi, “o Direito bra sileiro, expressamente, manda que o juiz rejeite a queixa ou a de núncia (CPP, art. 43, I e I I ) ” 57. Não fora assim, ter-se-ia que admitir o monstro de uma ação penal por fato culposo, não previsto em lei como crime, para, após cumprido extenso e penoso ritual, só então, absolver-se o réu por ausência da culpabilidade.. . Sem mais comentários. 143. Condições objetivas de punibilidade e condições de procedibilidade ou de perseguibilidade. A doutrina penal costuma dis tinguir asi primeiras das segundas, sem contudo definir-lhes, com a desejada exatidão, a natureza e o perfil. E não há concordância entre os autores quando procuram enumerar as hipóteses abrangidas por umas e por outras 58. Isso conduz a perplexidades, sobretudo na área penál, onde pelo menos o conteúdo conceituai do crime pre cisa ser convenientemente esclarecido. Como as denominadas con dições de punibilidade não são, em geral, alcançadas pelo dolo ou pela culpabilidade do agente, para os autores que as fazem abranger o evento danoso — caso de Nélson Hungria, quanto ao crime culpo so — fica muito difícil, nessa e em outras hipóteses, evitar a intro missão no sistema penal, que tem por base o princípio da culpabili 57. 58.
Instituições, cit., v. 2, p. 316. Cf. Asúa, Tratado, cit., v. 7, p. 18 e s.
155
dade, de uma responsabilidade objetiva, o que se dá pela transfor mação de um verdadeiro elemento objetivo do tipo (o resultado) em mera condição de punibilidade. Por outro lado, para aqueles que, num louvável esforço de superação desse problema, consideram tais condições “ . . . elementos constitutivos do crime. . . ” 59, fica igual mente difícil, no exemplo da sentença declaratória de falência, erigi da em condição para a punição do crime falimentar, deixar de admi tir um conceito de tipo em sentido amplo, abrangente da totalidade dos pressupostos da punibilidade, o que evidentemente representa um retorno à antiga noção do tipo, de origem processual, equivalente ao corpus delicti. Vimos, linhas atrás, algumas importantes varia ções no conceito de tipo, cada uma delas com função específica e filiada a determinada perspectiva. Não nos parece, porém, dogma ticamente aceitável tomar-se o tipo, com a mesma função e dentro da mesma perspectiva, ora num, ora noutro sentido. Por isso nos recusamos a aceitar o elastério que dá Nélson Hungria às condições de punibilidade, bem como discordamos dos que pretendem trans formá-las em elementos do crime. Estes últimos, além de esbarra rem na referida problemática da conceituação do tipo delitivo, tro peçam em uma dificuldade ainda maior: como tais condições, em certos casos de que seriam exemplos a sentença de quebra ou a anulatória do casamento, nada mais são do que atos judiciais, para considerá-las elementos do crime ter-se-á que admitir que tais crimes se consumam nos tribunais e. . . por ato do juiz, não do criminoso. Por último, os que as colocam fora do tipo, mas junto a ele, como um anexo ou apêndice, criam uma categoria nova de elementos do crime, que não são típicos!. . . Dentro dessa enorme confusão, pensamos nós que o exame mais detido dos casos apresentados para justificar a existência das men cionadas “condições” revela, sem muita dificuldade, que alguns deles se identificam perfeitamente com as denominadas “condições de procedibilidade” (condições específicas da ação penal); os demais ou são características da conduta típica, portanto elementos do tipo, ou dizem respeito ao resultado, também elementos objetivos do tipo. Armin Kaufmann, em certa passagem de sua preciosa obra sobre a teoria das normas de Binding, indaga a respeito do fundamento universalmente válido da proposição segundo a qual o desígnio não 59.
156
Assim, Heleno Fragoso, Lições, cit., p. 233.
precisa estender-se às “condições objetivas de punibilidade”. E, a seguir, responde com estas palavras que merecem transcrição inte gral, negando a existência autônoma de tais “condições” : “Sem du vida a admissão dessa classe de características não é corroborada pela insegurança na sua delimitação, reinante na doutrina e na juris prudência. O que induz maior dose de ceticismo é o fato de não existir um único ‘marco objetivo de punibilidade’ cujo enquadra mento nesse grupo não tenha provocado divergências. Assim surge desde logo a idéia de que as ‘condições objetivas de punibilidade’ talvez se tenham transformado numa concepção abrangedora duma série de características, cuja classificação oferece margem a dúvida. Na verdade, entre as mais diversas correntes de opinião vem obtendo aceitação cada vez maior a idéia de que as chamadas características objetivas de punibilidade em parte devem ser incluídas entre os pres supostos da perseguibilidade, em parte entre as características de tipicidade (características da ação) ou entre as ‘características puras do dever’ ” 60. E, logo adiante, após demonstrar essa afirmação, conclui que aquilo que Binding designa como “condições objetivas de punibi lidade” não forma um grupo perfeitamente delimitado de caracte rísticas, que possam ser reconhecidas por sua estrutura específica; antes, trata-se duma série de casos diversificados, para os quais não podemos encontrar um denominador comum no terreno dogmático 61. Subscrevemos essas conclusões. E mais: se não estivermos equi vocados, os exemplos que, entre nós, são geralmente apresentados para as “condições” em exame não fogem à crítica acima formulada. Com efeito, tanto no crime falimentar, para cuja punição se exige a sentença declaratória da falência, como no do art. 236 do Código Penal, para o qual se exige o trânsito em julgado da sentença anulatória do casamento (parágrafo único), pode-se, com enorme dose de razão, sustentar que o que fica em suspenso, na dependência da superveniência daquelas condições legalmente estabelecidas, não é o crime ou a tipicidade da conduta, mas sim e tão-somente o exer cício da ação penal. A inclusão na lei substantiva dessa autêntica “condição da ação” pode ser, talvez, a causa da confusão que se tem feito sobre a sua verdadeira natureza. Correta, pois, afigura60. 61,
Teoria, cit., p. 27f Armin Kaufmann, teoria, cit., p. 275, 157
se-nos a colocação de Tourinho Filho, ao reduzir as denominadas “condições de punibilidade” a meras “condições de procedibilidade” ( = condições específicas da ação penal), isto é, condições “a que fica subordinado, em determinadas hipóteses, o direito de ação penal” 62. Só não estamos de inteiro acordo com o processualista citado porque, conforme se viu, reduzimos também algumas dessas “con dições” a meros elementos do tipo, ou seja, a características do fato típico penal. 144. Escusas absolutórias ou causas pessoais de exclusão de pena. Não incluímos as escusas absolutórias na categoria de “con dição” de punibilidade ou de procedibilidade63. São antes causas pessoais de exclusão de pena que operam incondicionadamente, nos casos expressos em lei, em benefício de um círculo restrito de agentes ligados geralmente à vítima por vínculo de parentesco (CP, arts. 181 e 348, § 2.°) ou por outra circunstância que o legislador queira instituir, por razões de política criminal. Nessa hipótese,, o crime subsiste, tanto que delas não podem valer-se os co-autores que não apresentam as características personalíssimas do tipo de agente bene ficiado pela norma legal (cônjuge, ascendente, descendente etc.). W esseis distingue as causas pessoais de exclusão de pena das causas pessoais de extinção de pena. As primeiras, segundo esse mesmo autor, são “circunstâncias legalmente reguladas, que de ante mão conduzem à impunibilidade e que devem ter-se constituído no momento em que o fato é cometido” 64 (relação de parentesco e outras); as segundas são “circunstâncias que só ocorrem depois do cometimento do fato e que impedem novamente, de modo retroativo, a punibilidade já fundamentada” 65 (desistência voluntária e arrepen dimento eficaz). Tais causas, como é óbvio, por se situarem fora do tipo, não precisam ser abrangidas pelo dolo do agente, quando do cometi mento do fato. Assim o filho que, equivocadamente, furta coisa per tencente ao pai, por desconhecer essa última circunstância, bene ficia-se com a isenção de pena do art. 181 do Código Penal. 62. 63. Heleno 64. 65. 158
Processo penal, cit., v. 1, p. 486, 502 Assim, Asúa, Tratado, cit., v. 7, p. 56. Fragoso, Lições, cit., p. 234Wessels, Direito penal, cit., p. 109-10. Wessels, Direito penal, cit., p. 109-10.
e s. Em sentido contrário,
§ 11. Ilicitude a)
A questão terminológica e a reforma penal
145. Ilicitude e antijuridicidade são termos empregados como sinônimos. Nossos penalistas, porém, por influência dos autores de língua espanhola e italiana, utilizam com maior freqüência, ao invés do primeiro, a palavra antijuridicidade, para exprimir um dos ele mentos fundamentais do conceito jurídico do crime. Essa opção, entretanto, não é muito feliz, conforme temos advertido desde a publicação de nosso livro O erro no direito penal1. Camelutti já apontara o equívoco de se atribuir ao delito, fenômeno jurídico por excelência, o caráter de algo antijurídico, pondo em destaque que, com isso, se costuma afirmar do delito estas duas coisas, pelo menos na aparência contraditórias: “ ...q u e o delito seja um fato ou um ato jurídico e, ao mesmo tempo, um fato ou um ato anti jurídico” 2. Para extirparmos essa aparente contradição, será necessário rever a segunda expressão, não a primeira, já que a inclusão do de lito no gênero dos “fatos jurídicos” não pode ser impugnada diante da constatação óbvia de que o crime é uma criação do direito po sitivo (nullum crimen sine lege). Além disso, apresenta-se ele aos 1. 2.
V. p. 70, nota de pé de página n. 131. Teoria general del delito, trad., p. 18. 159
nossos olhos com aquela característica que, segundo Miguel Reale, define todo e qualquer fato jurídico, ou seja, “um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as normas jurídicas já atribuíram determinadas conseqüências, configurando-o e tipificando-o objeti vamente” 3. Nessa linha de pensamento, o certo será, pois, dizer-se que o delito é um fato jurídico, classificado, em uma das ramificações deste, entre os denominados atos ilícitos. Podemos, portanto, atri buir-lhe correntemente, como fazem, aliás, os autores portugueses (dentre os quais Eduardo Correia, Figueiredo Dias e Cavaleiro de Ferreira), a ilicitude, sem incorrer naquela contradição apontada por Camelutti. Note-se que a questão é mais do que meramente terminológica, como poderia parecer. É, na verdade, uma questão de fundo que, assim resolvida, permitirá situar o delito, como ato ilícito, no único local que verdadeiramente lhe cabe, em uma visão sistemática do direito. 146. A reforma penal brasileira (Lei n. 7.209/84), ao dar nova redação à Parte Geral do Código Penal, adotou, portanto, o termo correto ilicitude: fê-lo no art. 21, onde fala em “erro sobre a ilicitude do fato”; no parágrafo único desse mesmo dispositivo, quando menciona “consciência da ilicitude do fato”; e, notadamente, na rubrica lateral do art. 23, que relaciona as causas de justifi cação, ao dizer “exclusão da ilicitude,\ Andou bem, portanto, o legislador de 1984, no particular, ao retomar a melhor tradição portuguesa, contribuindo para afastar, segundo se espera, daqui por diante, o equívoco lingüístico que pa rece ter sido fruto de importação de uma tradução pouco precisa da palavra composta alemã Rechtswidrigkeit, que significa, literal mente, contrariedade ao direito (não ao jurídico). Com efeito, “ilí cito é o fato que contraria o ordenamento jurídico” 4. Por isso é que Welzel define a ilicitude como sendo “a contradição entre a realização do tipo de uma norma proibitiva e o ordenamento jurí dico como um todo. . . ” 5. 3. 4. 5. 160
Lições preliminares, cit., p. 198. Dreher e Trõndlc, Strufgesetzbuch, cit., p. 13. Das- deutsche Strafrecht, cit., p. 50.
h)
Ilicitude formal e material. Conceito de ilicitude
147. Conforme salientamos páginas atrás, ilicitude (ou anti juridicidade) é algo que se afirma do fato típico penal, diante da ordem jurídica. A ilicitude é, pois, em outras palavras, uma re lação ou propriedade que se atribui ao fato típico penal. Com isso queremos dizer que o termo ilicitude exprime a idéia de contradição, de antagonismo, de oposição ao direito6. Nesse sentido, um fato humano — qualquer que seja — será ilícito sempre que se apre sente em oposição à ordem jurídica, estabelecendo com esta uma relação de contraposição. E isso ocorre tanto com o fazer o proi bido pelo ordenamento jurídico quanto com o não fazer o que está determinado por esse mesmo ordenamento. A ilicitude penal é, assim, a propriedade de certos comportamentos humanos, seja sob a forma de ação, seja sob a forma de omissão, de se oporem à ordem jurídica. Em um sistema como o nosso, em que vige o princípio permititur quod non prohibetur, o círculo dos atos ilícitos é bem mais reduzido do que o dos atos lícitos. Fazem parte deste último todas as ações ou omissões ordenadas, toleradas ou apenas não expressa mente vedadas pelo direito, mesmo quando não ajustadas a rigo rosos conceitos éticos (honradez, lealdade etc.). Pertencem à esfera dos atos ilícitos os comportamentos comissivos ou omissivos porta dores de um conteúdo antagônico ao dever-ser da norma jurídica. Ê como se o ordenamento jurídico, ao organizar a vida em socie dade, estabelecesse, para a proteção de bens jurídicos, inúmeras vias sinalizadas. A inobservância destas sinalizações pode dar nas cimento àquela relação de antagonismo entre o comportamento vio lador e o comando normativo, caracterizando a ilicitude do fato. 148. A ilicitude, assim entendida conio relação de contrarie dade entre o fato e a norma jurídica, tem sido qualificada de con ceito puramente formal. Por isso certos autores, a partir de von Liszt, ao lado da denominada ilicitude (ou antijuridicidade) formal, se esforçam em desenvolver outro conceito mais enriquecido, ou seja, o de ilicitude material. Modernamente, Jeschek, para quem a ilicitude não se esgota na relação existente entre a ação e a norma, 6. Assim Jeschek: “Rechtswidrigkeit bedeudet Widerspruch gegen das Recht” ( Lehrbuch, cit., p. 175).
161
afirma que a ilicitude material leva igualmente em consideração a lesão ao bem jurídico protegido pela norma respectiva 7. E disso extrai o autor citado o que reputa de “relevante sentido prático”, a saber: a) a ilicitude material seria ponto de referência parg. a cria ção de tipos legais e sua aplicação ao caso concreto, para a gra duação do injusto e sua influência na dosimetria da pena, final mente, para a interpretação teleológica dos tipos; b ) conseqüência da ilicitude material seria a possibilidade de admissão de causas supralegais de justificação, com base no prin cípio da ponderação de bens 8.
c)
Concepção unitária
149. Há, porém, outra corrente de pensamento que considera a distinção anteriormente examinada perfeitamente dispensável. E, a nosso ver, com razão. Um comportamento humano que se ponha em relação de antagonismo com a ordem jurídica não pode deixar de lesar ou de expor a perigo de lesão os bens jurídicos tutelados por essa mesma ordem jurídica. Isso leva à conclusão de que a ilicitude só pode ser uma só, ou seja, aquela que se quer denominar “material”. Pensar-se em uma ilicitude puramente formal (desobediência à norma) e em outra material (lesão ao bem jurídico tutelado por essa mesma norma) só teria sentido se a primeira subsistisse sem a segunda. Embora não se possa negar, conforme observa Jiménez de A súa9, essa possibilidade no plano do dualismo entre direito natural e direito positivo, o certo é que o conceito de ilicitude, ainda que não se confunda com a mera inobservância de um certo preceito legal — o que seria anacrônico positivismo jurídico — não pode deixar de ser considerado dentro dos limites de um de terminado ordenamento jurídico. Correta, pois, a afirmação de Bettiol de que a contraposição dos conceitos em exame — antijuridicidade formal e material — não tem razão de ser mantida viva, “porque só é antijurídico aquele 7. 8. 9. 162
Léhrbuch, cit., p. 176Léhrbuch, cit., p. 176-7. La ley y el delito, p. 278.
fato que possa ser reputado lesivo a um bem jurídico. a antijuridicidade não existe” 10.
Fora disso,
150. Assim, em nossa definição, ilicitude é a relação de an tagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a pe rigo de lesão um bem jurídico tutelado 11. Dentro dessa concepção, a ilicitude só poderá referir-se à ação humana. Conseqüentemente, a contrariedade ao direito — essência do conceito em exame — se caracterizará fundamentalmente por dois pressupostos, a saber: primeiro, a existência de uma conduta voluntária na origem, positiva ou negativa (ação ou omissão), em antagonismo com o comando normativo (fazer o que está vedado ou não fazer o que está determinado); segundo, a existência conco mitante de possíveis ou reais conseqüências danosas, sobre o meio social, dessa mesma conduta (lesão real ou potencial ao bem ju rídico tutelado)32. 151. O primeiro pressuposto exclui da área do juízo de ili citude os fenômenos puramente causais, inevitáveis, ocorridos sem qualquer interferência da vontade humana, ou seja, o puro resultado físico. Isso quer dizer que somente as condutas dolosas ou, no mínimo, as culposas, nas quais a vontade está presente (nas pri meiras a vontade vai até o resultado típico, nas segundas a vontade só alcança até a causa desse resultado), serão passíveis de se submeterem ao juízo de ilicitude. Conseqüência desta colocação, dentro de uma visão finalista do tipo, que nele inclui o dolo e a negligência, é a afirmação de que a ilicitude do delito será necessa riamente e sempre uma ilicitude típica. O tipo, por sua vez, conterá um juízo de ilicitude condicionado. O injusto, a ação típica e ilí cita. O crime será, conclusivamente, um injusto culpável ( = ação típica, ilícita e culpável). O segundo pressuposto — a exigência de lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado — revela o conteúdo material da ilicitude que deixa de ser um conceito puramente formal, ou seja, a mera infração de um dever. Não haverá, pois, duas ilicitudes, uma formal e outra material, mas apenas uma — a que se 10. 11. 12.
Diritto penale, cit., p. 292. Ilicitude penal, cit., p. 8. Com mais detalhes, consulte-se nosso Ilicitude penal, cit. 163
diz material. As conseqüências de ordem prática serão enormes. Em primeiro lugar, dentro desta concepção material, permite-se a construção de causas supralegais de justificação, ao lado das causas legais. Com isso, dar-se-á maior dinamismo ao direito penal que, a nível dogmático, procederá, sempre que necessário, à despenalização dos fatos que, diante de sensíveis mutações sociais, perderam o caráter lesivo ou a reprovabilidade ético-social. Assim é que, por exemplo, a esterilização consentida do homem ou da mulher já poderá não ser um ilícito penal, pois a ilicitude desse fato estará excluída pelo consentimento do ofendido. Certas lesões cometidas durante práticas esportivas não constituirão um injusto penal, pela observância de certas regras e de sua aceitação generalizada, causa excludente da tipicidade. As lesões insignificantes, inexpressivas, ficarão igualmente excluídas do tipo de injusto, porque, realmente, de minimis non curat pretor. E desse estreito intercâmbio entre o tipo e a ilicitude, no interior do conceito de injusto, que os unifica, surgirá, seguramente, um renovado direito penal. 152. Por fim, a ilicitude, na área penal, não se limitará à ilicitude típica, ou seja, à ilicitude do delito, esta sempre e necessa riamente típica. Um exemplo de ilicitude atípica pode ser encon trado na exigência da ilicitude da agressão ( “agressão injusta” significa “agressão ilícita” ) na legítima defesa. A agressão que autoriza a reação defensiva, na legítima defesa, não precisa ser um fato previsto como crime, isto é, não precisa ser um ilícito penal, mas deverá ser no mínimo um ato ilícito, em sentido amplo, por inexistir legítima defesa contra atos lícitos. Essa constatação, que nos parece óbvia, revela-nos que a jlicitude possui mais de uma função no direito penal: ora atua como elemento geral e estrutural de todo delito, com função delimitadora do ilícito penal; ora ca racteriza o ato ilícito, em sentido amplo, penetrando na esfera penal para aí produzir efeitos distintos e atuar como fator de identifi cação daquelas lesões a bens jurídicos que podem ser legitimamente repelidas pela reação defensiva e daquelas outras que estamos obri gados a suportar, contra as quais nada podemos fazer. Essa di versidade de funções conferida pelo legislador ao conceito de ilici tude foi enfatizada, na área do direito civil, por Karl Larenz13. Não vemos como negá-la, igualmente, no direito penal. 13. 164
Metodologia da ciência do direita, trad. port., p. 558 e s.
d) Ilicitude penal e extrapenal 153. Note-se que a ilicitude penal não se restringe ao campo do direito penal: projeta-se para o todo do direito. Por isso é que Welzel define a ilicitude como sendo “a contradição da reali zação do tipo de uma norma proibitiva com o ordenamento jurídico como um todo” 14. Disso resulta que um fato ilícito penal não pode deixar de ser igualmente ilícito em outras áreas do direito, pois um ato lícito civil, administrativo etc., não pode ser ao mesmo tempo um ilícito penal. Não se deve, entretanto, confundir o con ceito de ilicitude com o de injusto, conforme ressaltamos nesta obra, pois este último, por exigir também a tipicidade, pode apresentar-se, em certos casos, localizado em determinada área do direito (ilícito civil, administrativo etc.). Apenas o injusto típico penal não dis pensa a nota da contrariedade com o ordenamento jurídico total, pelo que não pode deixar de ser, igualmente, um ilícito global. Poderíamos representar graficamente essa distinção através de dois círculos concêntricos: o menor, o do injusto penal, mais con centrado de exigências; o maior, o do injusto extrapenal (civil, administrativo etc.), com exigências mais reduzidas para sua con figuração. O fato ilícito situado dentro do círculo menor não pode deixar de estar situado também dentro do maior, por localizar-se em uma área comum a ambos os círculos que possuem o mesmo centro. Já o mesmo não ocorre com os fatos ilícitos situados fora da tipificação penal — o círculo menor — mas dentro do círculo maior, na sua faixa periférica e exclusiva. Assim, um ilícito civil ou administrativo pode não ser um ilícito penal, mas a recíproca não é verdadeira. Enganam-se, pois, os que supõem, sem considerar que a ilici tude penal só existe enquanto típica, que á ilicitude é sempre a mesma para o todo do direito. Trata-se de uma conclusão válida somente para a ilicitude penal, não para o que se reputa ilícito, localizadamente, apenas em áreas extrapenais, hipótese em que, na ausência de tipicidade, inexistirá ilicitude penal. Assim, por exem plo, o dano culposo, seguramente um ilícito civil (CC, art. 159), por não estar tipificado como crime em nossa legislação penal, não se considera um ilícito penal. 14.
D as deutsche Strafrecht, cit., p. 51.
165
154. Nessa linha, reputamos desvio dos princípios enunciados a pretensão de se condenar por delito de trânsito (lesão corporal provocada por acidente de veículos) quem já havia sido julgado e absolvido, pelo mesmo fato, no juízo civil, com sentença transitada em julgado, na qual se reconhecera a inexistência de culpa sequer levíssima. A inexistência, assim proclamada, do ilícito civil cons titui obstáculo irremovível para o reconhecimento posterior do ilícito penal, pois o que é civilmente lícito, permitido, autorizado, não pode estar, ao mesmo tempo, proibido e punido na esfera penal, mais concentrada de exigências quanto à ilicitude. Não obstante, no único caso concreto de que temos conhecimento, decidiu o Su premo Tribunal Federal, por razões de ordem puramente processual, que a sentença civil “não tem influência nem precedência lógica sobre o juízo criminal, ainda quando negue a existência do fato e da autoria constitutivos da responsabilidade penal, salvo no caso das prejudiciais heterogêneas contempladas nos arts. 92 e 93 do CPP” 15. Embora esse julgado esteja apoiado em sólida doutrina pro cessual, portanto fundamentado dentro dessa perspectiva, pãrece-nos que outra poderia ter sido a sua conclusão se alegados e enfren tados os princípios de direito material aqui examinados.
15. 166
RHC 59.716-PR, DJ, 11 jun. 1982, p. 5678.
§ 12. Causas de exclusão da ilicitude a) Tipo e ilicitude. As causas justificativas e a reforma penal. Causas legais e supralegais 155. O tipo legal, segundo temos sustentado, não é mera ima gem orientadora ou mero indício da ilicitude. É antes um portador da ilicitude penal, dotado de conteúdo material e, em razão disso, de uma função verdadeiramente seletiva. Essa, aliás, é uma resul tante de ser a ilicitude do delito “necessariamente e sempre uma ilicitude típica”. Relembremos o que foi dito a respeito dos tipos incriminadores: servem eles para fundamentar o juízo de tipicidade de certos comportamentos humanos, juízo esse que constitui tam bém um juízo condicionado de ilicitude. Não obstante, os tipos legais de crime — e esta é provavelmente a sua mais importante função, a denominada função de garantia, vinculada ao princípio da reserva legal — servem também, como se viu, para fundamentar o juízo de atipicidade da grande maioria dos comportamentos hu manos, dando-lhes o caráter de comportamentos lícitos penais, ao situá-los fora dos limites da tipicidade legal. Este juízo de licitude penal é definitivo no âmbito do exame da tipicidade do fato. Não depende de qualquer outra condição ou de qualquer outro exame posterior. Veja-se o exemplo de Tício que, por imprudência na condução de um veículo, provoca acidente culposo de que resultam tão-somente danos materiais em outro veículo alheio. Nessa hipó tese de dano culposo, o mais simples exame do tipò legal do crime 167
de dano (CP, art. 163), por não contemplar a figura culposa, per mite, com o juízo de atipicidade do fato, afirmar-se, sem mais, a ausência de ilicitude penal desse mesmo fato, que, por isso, deverá encontrar remédio na área exclusiva do direito civil. Por que é assim? Ora, porque a ilicitude penal é uma ilici- ~ tude típica, inseparável do tipo legal de crime. Vale dizer: não pode haver ilicitude penal sem a tipicidade legal do fato, e onde houver essa tipicidade há ilicitude que se condiciona, nos casos con cretos, à não-ocorrência de uma causa de justificação. O tipo legal de crime é, portanto, em princípio, um verdadeiro tipo de delito, ou seja, um modelo de ato ilícito penal, com aptidão para separar os fatos penalmente lícitos dos que não o são. Do contrário, se os tipos incriminadores não possuíssem nem mesmo essa importante função seletiva, pouco restaria do princípio da legalidade ou da reserva legal, pois dentro de um tipo meramente indiciador caberia tudo. Caberia, por exemplo, na lesão corporal, tanto o ferimento provocado por uma facada, quanto o causado pelo bisturi, em uma cirurgia; tanto o hematoma resultante do soco de um inimigo, na esquina, quanto o do soco de um boxeador, no ringue. Sabemos contudo, por um dado da experiência, que nada disso é exato, cir cunstância que confirma aquela aptidão seletiva dos tipos. Tanto é assim que nenhuma autoridade policial submete, nos mesmos exemplos, cirurgiões e boxeadores, após cada cirurgia ou cada luta, a inquérito policial para apurar se agiram, ou não, sem culpabili dade, ou ao abrigo de alguma causa de justificação. A questão se resolve, de plano, a nível do juízo de atipicidade. E, com efeito, dentro da concepção material que sustentamos, bastam a adequação social e a difundida noção de atipicidade dessas espécies de lesões corporais para caracterizar a sua licitude, salvo se algum fato novo e significativo introduzir-se no quadro dos acontecimentos para al terar-lhes completamente a fisionomia. 156. Do que foi dito, conclui-se que a ilicitude penal é ex cluída, seguramente em grande número dos casos, por ocasião do juízo de atipicidade do fato. No exemplo, do dano culposo (e em outros), afirma-se a inexistência de ilicitude penal do fato com a mera afirmação da atipicidade penal desse mesmo fato. Essa é uma conseqüência — repita-se — de ser a ilicitude do delito uma ilicitude típica. 168
Não obstante, a afirmação positiva da tipicidade do fato po derá, em algumas hipóteses, não significar um juízo definitivo de ilicitude desse fato, pois se incidir alguma das denominadas causas de exclusão da ilicitude, o fato, embora aparentemente típico, não será um crime mas sim um lícito penal. Tomemos o exemplo de Mévio que desfere um tiro causador da morte de Caio. O fato ajusta-se, aparentemente, à figura do homicídio. Se todavia ficar demonstrado que Mévio agiu em legítima defesa ou ao abrigo de outra causa de justificação, não haverá o crime de homicídio. Por isso é que se diz que o juízo de atipicidade é um juízo definitivo de licitude penal, ao passo que o de tipicidade é um juízo condi cionado. Note-se, porém, que, constatada a incidência (ou a nãoincidência) de qualquer das causas de justificação, essa constatação opera ex tunc, ou seja, retrotrai para caracterizar a inexistência ou a existência do injusto penal. Isto significa que, no exemplo dado, se comprovada a legítima defesa, Mévio não praticou, desde o iní cio, um verdadeiro fato típico penal, já que sendo um ato lícito aquele que se realiza em defesa de um direito reconhecido e dentro dos limites autorizados, será enorme incongruência supor-se que o tipo legal do crime de homicídio, que é um modelo de conduta ilícita, esteja modelando ou alcançando também um ato lícito. A conseqüência prática desta colocação teórica se projeta para a área processual. Assim é que onde houver uma causa de justificação, já suficientemente caracterizada, faltará uma condição da ação pe nal, pois se o fato, que deve ser narrado com todas as suas cir cunstâncias (CPP, art. 41), não constitui crime, autorizado está o pedido de arquivamento pelo Ministério Público ou a rejeição da denúncia ou da queixa pelo juiz (CPP, art. 43, I ) 1. Creio que aqueles que militam nas atividades forenses com preenderão o alcance dessa conclusão, bem como o equívoco de certos julgados que simplesmente recusam o exame dessa questão por ocasião do despacho de recebimento da denúncia ou da queixa, mesmo quando o inquérito contenha suficientes elementos de con vicção. 157. Já nesta altura, podemos, em resumo, apontar as se guintes conclusões: a) a ilicitude penal exprime-se através dos ti 1. Cf. Frederico Marques, Tratado de direito processual penal, cit., v. 2, p. 73. 169
pos; é, portanto, uma ilicitude típica; b) por isso mesmo, na téc nica penal, o primeiro grande momento de exclusão da ilicitude está no juízo de atipicidade do fato imputado ao agente; c) as de nominadas causas de justificação constituem, na verdade, um se gundo modo de constatação da exclusão da ilicitude, quando a aparente tipicidade do fato imputado não tenha permitido anterior mente uma solução definitiva. Dito isso, examinemos, numa rápida visão, a posição dessas causas de justificação na reforma penal. 158. A lei de reforma do Código Penal (Lei n. 7.209, de 11-7-1984), ao dar nova redação à Parte Geral, reproduziu, no art. 23, as mesmas causas do art. 19 do Código de 1940, ou seja: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito. Os conceitos de estado de ne cessidade e de legítima defesa foram mantidos; da mesma forma, manteve-se o silêncio a respeito das duas outras causas de justifi cação* Alterou-se, como já vimos, a rubrica lateral que, no art. 19 do Código de 1940, era “exclusão de criminalidade”, passando, agora, a ser, no art. 23, “exclusão da ilicitude”. O § 2.° do art. 24 (anterior § 2.° do art. 20), relativo ao estado de necessidade, teve sua redação modificada sem alteração de conteúdo. O preceito do excesso punível teve a redação reformulada, para explicitar as duas formas possíveis do excesso punível (o doloso e o culposo), e foi deslocado do parágrafo da legítima defesa (parágrafo único do art. 21) para situar-se como parágrafo genérico de todas as causas de justificação (parágrafo único do art. 23). Assim sendo, no tocante às causas de justificação, pode-se di zer que a lei de reforma não introduziu modificações profundas, prevalecendo em linhas gerais a regulamentação do Código de 1940, com as soluções e os problemas que antes se ofereciam. Note-se, porém, que tanto o Código de 1940 como a nova Parte Geral, na redação determinada pela lei de reforma em exame, foram extre mamente sóbrios na regulamentação das referidas causas de justifi cação, limitando-se, praticamente, ao enunciado das quatro causas legais, já mencionadas, bem como à definição do estado de neces sidade, da legítima defesa e do excesso punível. Com isso, o perfil definitivo e o alcance dessas importantes causas legais de exclusão 170
da ilicitude ficam, em boa parte, cometidos à doutrina e à jurispru dência. E isso é bom porque no âmbito doutrinário e jurisprudencial é que deverá, a meu ver, ter início a atualização de que carecem esses mesmos institutos. Penso que essa atualização seja, realmen te, necessária e inadiável. Muita coisa mudou, no Brasil, nos qua renta e poucos anos de vigência do Código de 1940. Mudou o nosso conceito de propriedade, que hoje já não se considera um direito absoluto. Assim, não terá sentido, hoje, dizer-se, por exem plo, como fazem certos penalistas, que “a legítima defesa do mais humilde dos bens pode ir usque ad necem .. . ” 2 Se não há direi tos absolutos, a defesa dos bens jurídicos, ainda que legítima, deverá sofrer igualmente certas limitações. À doutrina incumbe traçar es sas limitações. Por outro lado, em um Estado Social de Direito, que não admita a pena de morte, como é aquele que pretendemos estar construindo, as causas legais do estrito cumprimento do dever e do exercício regular de direito deverão ser repensadas para que não venham a servir de suporte à prática do abuso de autoridade ou do abuso de direito. Novas limitações se acrescentarão nésta área. E assim por diante. 159. Em relação às denominadas causas supraíegais de ex clusão da ilicitude, silenciou-se a reforma penal brasileira, tal como o Código de 1940. Isso, entretanto, não deverá conduzir o intér prete a afirmar o caráter exaustivo das anteriormente citadas cau sas legais de justificação, como fez Bataglini, em relação ao Código italiano3. É que as causas de justificação, ou normas permissivas, não se restringem, numa estreita concepção positivista do direito, às hipóteses expressas em lei. Precisam igualmente estender-se àquelas hipóteses que, sem limitações legalistas, derivam necessaria mente do direito vigente e de suas fontes. Além disso, como não pode o legislador prever todas as mutações das condições materiais e dos valores ético-sociais, a criação de novas causas de justificação, ainda não traduzidas em lei, toma-se uma imperiosa necessidade para a correta e justa aplicação da lei penal4. Assim, por exem plo, como recusar-se efeito excludente da ilicitude ao consentimento expresso do ofendido, em relação a danos que atingem bens plena 2. Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 298-9. 3. Direito penal, cit., trad., v. 1, p. 375. 4. Assim, Jeseheck, Lehrbuch, cit., p. 244.
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mente disponíveis? Vejamos dois exemplos. Destruir coisa alheia caracteriza o crime de dano do art. 163 do Código Penal. Se, con tudo, o proprietário da coisa, que a possua livre e desembaraçada, autoriza a sua destruição, quem executa essa destruição não pratica ato ilícito, por encontrar-se ao abrigo da causa da justificação supralegal — o consentimento do ofendido. Privar alguém da liber dade mediante cárcere privado constitui o crime do art. 148 do Código Penal. Se, todavia, esse alguém consentiu no encarcera mento para submeter-se a uma experiência científica, o fato não será um ilícito penal, pois a ilicitude se exclui pelo consentimento do ofendido. E assim por diante. Ante o exposto, colocando-nos em divergência com Hungria, defendemos a existência, no direito brasileiro, do consentimento do ofendido, como causa supralegal de justificação. Note-se, contu do, que nos referimos ao consentimento justificante, isto é, àquele que se impõe de fora para a exclusão da ilicitude (em alemão, Einwilligung) , não ao consentimento que exclui a adequação típica, quando a própria norma incriminadora pressuponha o dissenso da vítima (exemplo: invasão -de domicílio) ou quando o consentimento seja elemento essencial do tipo (exemplo: rapto consensual). 160. Não vemos, entretanto, no momento, espaço no direito brasileiro para outras causas supralegais de justificação e menos ainda para o extenso rol de causas legais, geralmente citado nos tratados de origem alemã. É que, entre nós, a inclusão, no Código Penal, como causas legais, do exercício regular de direito e do estrito cumpri mento do dever legal, inexistentes no Código alemão, fez com que tais causas legais operem como verdadeiros gêneros das mais varia das espécies de normas permissivas espalhadas pelo nosso ordena mento jurídico, abrangendo-as todas. Assim, por exemplo, a “atua ção como representante do poder estatal”, o “direito de correção e de educação” etc., do direito alemão, ou o uso legítimo de armas, do direito italiano, se incorporam, entre nós, em uma das causas legais antes mencionadas. 161. Em conclusão, as causas legais de exclusão da ilicitude, no direito brasileiro, previstas nos arts. 23 a 25, 128, I e 146, § 3.°, I, do Código Penal, são as seguintes: a) b) 172
estado de necessidade; legítima defesa;
c)
estrito cumprimento de dever legal;
d)
exercício regular de direito.
A essas acrescentamos mais o consentimento do ofendido, co mo causa supralegal, subjacente.em nossa ordem jurídica. Logo adiante, empreendemos o estudo detalhado de cada uma dessas causas, ocasião em que se examinarão os respectivos princí pios reguladores. Vejamos, porém, antes, um tema que diz respeito a todas elas.
b)
A terminologia. Elementos objetivos e subjetivos
162. As causas de exclusão da ilicitude são também denomi nadas causas de exclusão da antijuridicidade, causas de justificação ou justificativas, causas de exclusão de crime, descriminantes, eximentes, tipos permissivos. Registramos essa variação terminológica para conhecimento dos que se iniciam no estudo do direito penal. Os tipos permissivos possuem igualmente elementos objetivos e subjetivos, conforme temos sustentado 5, com apoio em importantes autores 6. Essa posição resta, porém, polêmica, havendo penalistas que defendem o caráter puramente objetivo <{las causas de justifica ção, para as quais não se exigiria qualquer orientação de ânimo do agente, em relação ao fato justificado7. Continuamos com aquele ponto de vista inicial. Um médico que, com mera intenção de lucro criminoso^ provocasse aborto sem qualquer verificação prévia do estado de saúde da paciente, não poderá valer-se da causa prevista no art. 128, I, do Código Penal, sob alegação de que constatara a posteriori que a gestante não poderia, de qualquer sorte, ter suportado o prosseguimento da gra videz sem expor-se a grave perigo de vida 8. Nesse exemplo, embora pudessem estar .presentes os elementos objetivos do estado de necessidade, faltou o seu elemento subjetivo, 5. Nosso O erro, cit., p. 107-8. 6. Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 83-4; Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 301 e s.; Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 366-7. 7. V. Juarez Tavares, Teorias do delito, p. 69-70. 8. Exemplo colhido de Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 301 e s. 173
ou seja, o intuito de salvar a gestante, por parte do profissional do aborto. Por isso é que Maurach preconiza a impossibilidade de reco nhecimento de uma causa de justificação, quando: a) que, por b) resultado
9. 174
o agente não tenha querido atuar juridicamente, mesmo mero acaso, realize com seu ato um resultado valioso; o agente tenha querido, atuar conforme ao direito, mas o de seu ato seja desaprovado pela ordem jurídica9.
Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 301 e s.
§ 13. O estado de necessidade a)
Estado de necessidade. Conceito. Estado de necessi dade defensivo e estado de necessidade agressivo
163. Ê o estado de necessidade a situação de perigo atual, para interesses legítimos, que só pode ser afastada por meio da lesão de interesses de outrem, igualmente legítimosí . Assemelha-se à le gítima defesa, com a qual possui vários pontos comuns. Percebese, contudo, que na legítima defesa há sempre uma opção pela pre valência do interesse legítimo que se opõe a uma agressão ilícita. O conflito se decide, pois, naturalmente, contra o ilícito. No esta do de necessidade, por inexistir a agressão ilícita, o deslinde da co lisão de interesses legítimos apresenta dificuldades para cuja sõlução toma-se necessário recorrer a outros critérios. Possuem, po rém, ambos o caráter de uma agressão autorizada a bens jurídicos, com a diferença, entretanto, de que no estado» de necessidade ocor re uma ação predominantemente agressiva com aspectos defensivos, ao passo que na legítima defesa se dá uma ação predominantemente defensiva com aspectos agressivos. Essa última distinção não pode contudo ser levada a extremos, pois há situações de estado de necessidade que se diferenciam entre 1. p. 320.
Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 261; Maurach, Deutsches Strafrecht, cit.,
175
si pela maior intensidade, em umas, do caráter defensivo do ato necessário; em outras, pela do caráter agressivo. Daí a distinção entre o estado de necessidade defensivo e o agressivo. Estado de necessidade defensivo ocorre quando o ato necessá rio se dirige contra a coisa de que promana o perigo para o bem jurídico defendido. Exemplos: quem é atacado por um cão alheio, mata o animal agressor; quem, para evitar a propagação de um in cêndio que põe em perigo a vida ou o patrimônio de pessoas, abate árvores da propriedade alheia incendiada. Estado de necessidade agressivo é aquele em que o ato necessá rio se dirige contra coisa diversa daquela de que promana o perigo para o bem jurídico defendido. Exemplos: quem, para prestar so corro a um doènte ou ferido em estado grave, toma um veículo alheio estacionado e dele se utiliza, sem autorização do dono; quem, perdido em local ermo, comete furto de víveres ou de provisões alheios para saciar a fome. As espécies mais importantes de estado de necessidade são, todavia, as seguintes, que serão estudadas destacadamente: estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante; estado de necessidade jurídico-civil e estado de necessidade jurídico-penal.
b)
Estado de necessidade justificante e estado de necessi dade exculpante. Teoria unitária e teoria diferenciadora. O direito legislado brasileiro
164. O estado de necessidade está incluído, no Código Pe nal, entre as denominadas causas de justificação. Exclui, pois, à luz dos arts. 23, I, e 24, a antijuridicidade do fato. É o estado de necessidade justificante. Não obstante, tendo em vista que, em doutrina, se fala também em uma espécie de estado de necessidade que exclui a culpabilidade, cabe examinar-se a distinção entre am bos e indagar-se em que medida ou dentro de que limites se pode ria acolher, entre nós, o estado de necessidade exculpante. A resposta não é tão simples como. poderia parecer, exigindo algumas considerações prévias. !65. O tema foi muito debatido na Alemanha. O já revo gado § 54 do Código Penal alemão cuidava de algumas hipóteses 176
muito restritas de estado de necessidade (ato não-culposo, necessá rio, praticado “para salvar de perigo atual o corpo ou a vida do próprio agente ou de um parente” ) 2. Isso levou a doutrina e a ju risprudência daquele país, diante de casos concretos insolúveis perante o dispositivo mencionado (necessária interrupção da gravidez por indicação médica), a construir, sob influência de idéias jusnaturalistas, o estado de necessidade justificante “supralegal”, apoiado no princípio da ponderação de bens e deveres. Esse princípio, que já se achava incorporado ao Código Civil alemão (§§ 228 e 904) para atos defensivos ou agressivos dirigidos contra coisas, institui um “direito de necessidade” (Notrecht), pelo qual, diante de perigo iminente, inevitável, não provocado, o indivíduo, para salvar um bem de valor superior, pode sacrificar o de valor inferior, se essa for a única forma de salvação do primeiro. Faz-se a ponderação dos bens e deveres em conflito; o que for reputado de menor valor 0 pode ser licitamente sacrificado para proteção do de maior valor./* Assim, a jurisprudência alemã passou a . admitir, com ou sem lei, a exclusão da antijuridicidade em determinadas situações de estado de necessidade e, com isso, consagrou a denominada “teoria diferenciadora”, que acolhia as duas formas básicas do estado de ne cessidade, mais tarde incorporadas ao texto ora em vigor do StGB (§§ 34 e 35), isto é, o estado de necessidade justificante (excludente da ilicitude) e o estado de necessidade exculpante (excludente da culpabilidade). O primeiro se configura quando o agente co mete o ato para afastar, de si ou de outrem, perigo inevitável para a vida, para o corpo, para a liberdade, para a honra, para a pro priedade ou para um outro bem jurídico, se, na ponderação dos in teresses conflitantes, o interesse protegido sobrepujar sensivelmente aquele que foi sacrificado pelo ato necessário (§ 34). O segundo se verifica quando o agente realiza uma ação, ilícita (o texto legal fala em “fato ilícito”, rechtswidrige Tat) para afastar de si, de um parente ou de uma pessoa que lhe é próxima, perigo não-evitável, por outro modo, para o corpo, para a Vida õu para a liberdade, excluída a hipótese em que o mesmo agente esteja obrigado, por uma 2. Atualmente o estado de necessidade ( Notstand) está regulado nos §§ 34 e 35 do StGB sob as rubricas, respectivamente, de “estado de neces sidade justificante” ( Rechtfertigender Notstand) e “estado de necessidade exculpante” ( Entschuldigender Notstand). 177
especial relação jurídica, a suportar tal perigo e também a de que este último tenha sido por ele provocado ( § 3 5 ) . Como se vê, no direito alemão, o princípio da ponderação de bens e deveres está presente no estado de necessidade justificante e o esgota. Como, entretanto, esse princípio, portador de um crité rio puramente objetivo — a diferença de valor entre os bens e de veres em conflito — não consegue fundamentar a impunibilidade do fato necessário, quando esses bens e deveres sejam de igual va lor (vida contra vida, no exemplo da tábua de salvação) ou quando o bem sacrificado seja maior do que o protegido, reservou-se para estas últimas situações, que traduzem verdadeiros comportamentos ilícitos, a possibilidade de incidência de uma excludente da culpa bilidade — a do estado de necessidade exculpante — se e quando as circunstâncias do fato revelarem um quadro de inexigibilidade de outra conduta. Daí o tratamento bifronte dado ao estado de neces sidade pela referida teoria diferenciadora, a respeito da qual assim se manifesta Eduardo Correia: “Efetivamente, o princípio da ponderaçãQxde bens exclui inevitavelmente a possibilidade de o estado de necessidade explicar a não-punição de factos que sacrificam in teresses maiores a interesses menores; e o mesmo se poderá dizer relativamente a casos em que colidem interesses de igual valor, v. g., a hipótese — de que partiram Cameades, Cícero e Kant — de vida contra vida. Certo que Haelschner também neste caso afirmava a existência de um verdadeiro direito de necessidade, tal como mais tarde viria igualmente a acontecer com Stammler. Mas isto só por que em tais hipóteses faziam transitar o problema para um plano em que as coisas se decidem pelo direito do mais forte, que nem só por isso pode ser direito. Daqui mesmo que já Bemer limitasse a sua teoria aos casos de direitos ou valores desiguais, afirmando que nos casos de direitos de igual valor o sacrifício de qualquer deles, em caso de colisão, será sempre antijurídico, embora sob certos aspectos o facto se possa considerar praticado sem culpa e não seja, por con seguinte, punível. Isto significa, porém, o reconhecimento da teoria diferenciada', umas vezes o estado de necessidade exclui a ilicitude (casos de sacrifício de valores menores para salvar valores maiores), outras vezes exclui a culpa (casos de sacrifício de valores iguais aos que se salvam, ou mesmo de valores maiores, quando ao agente não era exigível outro comportamento). Esta é a teoria que hoje, pra ticamente, se pode considerar dominante, mesmo relativamente aos 178
autores que aceitam e defendem o princípio da ponderação de in teresses” 3. 166. No Brasil, contudo, o panorama não é o mesmo. Em primeira lugar, o Código Penal vigente acolheu o estado de necessi dade, sem as restrições casuísticas da legislação alemã, como causa de justificação e tão-só (arts. 23, I, e 2 4 )4. Assim, se se quiser, entre nós, descobrir alguma forma de estado de necessidade supralegal, será ela, sem dúvida, a exculpante, não a justificante. Por outro lado, como os preceitos do Código não exigem — pelo menos não o fazem expressamente — a ponderação de bens nem definem a natureza do bem protegido ou a condição de seu titular em relação ao agente (contenta-se com dizer . . direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” ), é fora de dúvida que o legislador pátrio adotou a teoria unitária, que no Brasil sempre teve importantes adeptos, dentre os quais encon tramos Costa e Silva, Aníbal Bruno e Nélson Hungria. O primeiro proclamava a teoria unitária, “que vê no estado de necessidade uma circunstância que tira ao fato o caráter criminoso, reputando-o con forme ao direito. . . ”, a única capaz de levar a resultados satisfató rios 5. O segundo afirmava textualmente que a dualidade de solu ções oferecidas pela teoria diferenciadora não se aplicava ao direito positivo brasileiro6. O último, com a autoridade de quem partici pou da elaboração do Código, dizia, em seu estilo candente: “ . . .Na atualidade, entretanto, já repudiada a bizantina distinção en tre imputabilidade e responsabilidade, pode dizer-se que a solução pacífica e definitiva é a de que, no estado de necessidade, não há crime, o que vale dizer: o fato necessitado é objetivamente lícito. Foi este o ponto de vista consagrado pelo nosso Código, que; acertadamente, destacou da fórmula do estado de necessidade a ‘coação irresistível’ (exercida diretamente de homem para homem), pois não se pode dizer que esta elimine a injuricidade objetiva do fato con seqüente, desde que subsiste, em razão dele, a punibilidade do coator (n. 89). Eberhard Schmidt (que atualizou o Tratado de von Liszt), ao entrosar o critério da inexigibilidade ( Unzumutbarkeit) 3. 4. 5. 6.
Direito O texto Código Direito
criminal, cit., v. 2, p. 82-3. anterior dos arts. 19, I, e 20 eram idênticos. Penal, cit., v. 1, p. 156. penal, cit-, t. 1, p. 379. 179
no conceito do estado de necessidade (como faz o nosso Código)., volta a insistir em que este não exclui a ilicitude objetiva, mas a culpabilidade. Ora, a inexigibilidade é, precisamente, o fundamento central da licitude que na espécie se reconhece e declara. Não é preciso referi-la à culpabilidade, cuja existência ficaria tolhida. Como acentua Helmuth Mayer, o que não pode ser razoavelmente exigido a um homem não lhe pode ser imposto pelo direito positivo. A inexigibilidade só se apresenta em particulares circunstâncias de fato e, portanto, entende também como o lado objetivo da conduta. O que se dá, em tal caso, é, simplesmente, uma ação lícita ou não proibida juridicamente. Não se apresenta um crime, nem mesmo do ponto de vista abstrato. No estado de necessidade, entrando em conflito bens ou interesses que merecem igualmente a proteção jurídica, é concedida a faculdade da própria ação violenta para o salvamento de qualquer deles. Faculdade, e não propriamente di reito, porque a este deve corresponder necessariamente uma obri gação (jus et obligatio sunt correlata) e, no caso, nenhum dos titu lares dos bens ou interesses em colisão está obrigado a suportar o sacrifício do seu. A lei, aqui, assume uma atitude de neutralidade e declara sem crime o vencedor (seja este o mais forte ou o mais feliz)” 7. 167. Diante do exposto, de lege lata, parece-nos insustentável a posição de Heleno Fragoso ao defender, por evidente influência da doutrina alemã, a aplicação no Brasil, por inteiro, da teoria diferenciadora, na linha da legislação alemã. Eis o que diz o autor citado: “ .. . A legislação vigente, adotando fórmula unitária para o estado de necessidade e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, compreende impropria mente também o caso de bens de igual valor (é o caso do náufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre é o estado de necessidade como excludente da culpa (inexigibilidade de outra con duta), que a seu tempo examinaremos (cf. n. 200, infra)” 8. E logo mais adiante: “O estado de necessidade exclui a ilicitude quando, em situação de conflito ou colisão, ocorre o sacrifício do bem de menor valor (cf. n. 167, supra). A inexigibilidade de outra conduta, 7. 8. 180
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 267-9. Lições, cit., p. 213.
no entanto, desculpa a ação quando se traía do sacrifício de bem de igual ou de maior valor, que ocorra em circunstâncias nas quais ao agente não era razoavelmente exigível comportamento diverso. O estado de necessidade previsto no art. 20 do Código Penal vigente, portanto, pode excluir a antijuridicidade ou á culpabilidade, conforme o caso” 9. Não podemos aderir integralmente a esse entendimento pelo fato de que o estado de necessidade exculpante pressupõe a existência do injusto, isto é, de uma ação típica e antijurídica, o que induvidosamente não poderá ocorrer no direito brasileiro, enquanto perdurar a redação dada ao art. 24 do Código Penal, pelo menos em relação a bens de igual valor (vida contra vida, por exemplo). Diante de uma norma permissiva, não há como falar-se em ilicitude do fato que a ela se ajusta. É a lição conhecida de Graf zu Dohna: “Uma ação juridicamente permitida não pode ser ao mesmo tempo proibida pelo direito. Ou, em outras palavras: o exercício de um direito nunca é antijurídico” 10. Estamos, não obstante, de acordo com aquele autor, na parte em que admite a teoria diferenciadora no tocante ao sacri fício de bens de maior valor, é que, em princípio, não nos parece “razoável” — para usar-se ao pé da letra a terminologia do art. 24 do Código Penal — permitir-se o sacrifício de um bem de maior valor para salvar-se o de menor valor. Assim, inaplicável a essa hipó tese é a causa de exclusão de crime do art. 23, I, tal como a define o art. 24. Todavia, caracterizando-se, nessa mesma hipótese, o injusto, a ação típica e antijurídica, há que se passar ao exame da culpabilidade do agente, sem a qual nenhuma pena lhe poderá ser infligida. E, nesta fase, a nível do juízo de culpabilidade, não há dúvida de que o estado necessário, dentro do qual o bem mais valioso foi sacrificado, poderá traduzir uma situação de inexigibilidade de outra conduta, que se reputa, conforme sustentamos no título anterior, uma causa de exclusão da culpabilidade. 168. Admitimos, pois, com as ressalvas expostas, o estado de necessidade exculpante, como causa extralegal de exclusão da culpa bilidade, por ser isso resultado de simples desdobramento do prin cípio da culpabilidade que, conforme já foi dito, está na base do sistema penal vigente, anteriormente às próprias normas legisladas. 9. Heleno Fragoso, Lições, cit., p. 235. 10. La estructura de la teoria del delito, p. 47. 181
c)
O estado de necessidade justificante. Requisitos. Con ceito de perigo atual e de dano. Provocação dolosa e culposa do perigo. Inevitabilidade da lesão. Conflito de bens e deveres
169. Estado de necessidade justificante é, como se viu, aquele que exclui a ilicitude do fato. Está, entre nós, expressamente regulado nos arts. 23, I, 24 e parágrafos, 128, I, 146, § 3.°, do Código Penal, e no art. 160, II, e respectivo parágrafo único do Código Civil. Pode ser identificado, a nosso ver, quer na hipótese de sacrifício de bem de menor valor, quer na hipótese de sacrifício de bem de igual valor. Pensamos, entretanto, ser possível, mesmo dentro dessa perspectiva, recorrer-se ao princípio da ponderação de bens, conforme já tivemos ocasião de sustentar11: é que esse princípio, se de um lado justifica a prevalência óbvia do bem mais valioso sobre o de menor valor, também leva a ordem jurídica a, necessariamente, não estabelecer pre ferências ou predominâncias entre bens fundamentalmente iguais 12. Assim, o “salve-se quem puder”, no entrechoque irremovível de vida contra vida, por exemplo, longe de ser o reconhecimento do direito do mais forte, como erroneamente supõem alguns autores, é, ao con trário, o reconhecimento de igual direito a dois sujeitos de direito, colocados em uma situação de conflito que não elegeram, não pro vocaram nem podem evitar. O argumento tópico, cuja validade não contestamos, de que o direito não pode ceder diante da força, está aqui evidentemente mal colocado pelo simples fato de que, no estado de necessidade, não se trata de contrapor à força de um o direito do 11. Ilicitude penal, cit., p. 46 e s. 12- Na Espanha, como na Alemanha, a doutrina predominante não admité o estado de necessidade justificante no conflito de bens iguais, prefe rindo tratar esta hipótese como causa de exclusão da culpabilidade. Como, entretanto, essa opção conduz a dificuldades intransponíveis na área da cum plicidade, da participação e do erro (consulte-se, a respeito, o precioso trabalho de Gimbemat Ordeig, El estado de necesidad: un problema de antijuridicidad, in Estúdios de derecho penal, p. 110 e s.), resolve-se o impasse cui dando desta espécie de causa de exculpação como se fosse causa de justificação, fato que conduziu Gimbemat Ordeig a formular esta indagação oom uma res posta incontestável: “Pocos consideran el estado de necesidad por conflicto entre bienes iguales una causa de justificación, pero muchos lo tratan como si lo fuere. Por que? Pues porque es una causa de justificación’ ( Estúdios, cit., p. 114).
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outro, mas antes o direito de um ao direito do outro; Na hipótese de conflito entre bens de igual valor, se a força do mais forte fizer prevalecer o seu direito em frente a igual direito do mais fraco, ou se, ao contrário, a engenhosidade do mais fraco fizer prevalecer'o seu direito em frente a igual direito do mais forte, ambos estarão justificados. A ordem jurídica, numa situação dessas (bens de igual valor), não dispõe, infelizmente, de critérios seguros para escolher entre o ardiloso Ulisses e o gigantesco Polifemo. Proclamada a nãoilegitimidade de qualquer dos dois resultados possíveis, deixa-sè o caminho aberto para o julgamento do vencedor nos tribunais da ética e da religião. O direito, porém, não deve penetrar nesse terreno. 170. O Código Penal declara, no art. 23, I, não haver crime (exclui-se, portanto, a ilicitude do fato) quando o agente pratica o fato “em estado de necessidade”. E assim o define: “Art. 24. Con sidera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas cir cunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1.° Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. § 2.° Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”. Pelos termos bastante abrangentes do tipo permissivo, em exame, percebe-se que, diferentemente do que ocorre com dispositivos do Código Civil, aqui, as limitações não se relacionam à natureza do benj jurídico defendido ou agredido, mas se estabelecem com outros cri térios. Com efeito, bens jurídicos como a vida, à integridade física, a honra, a liberdade, a família, o patrimônio etc., tanto podem pola rizar-se diante do perigo em termos de necessitados de defesa quanto como suscetíveis de serem sacrificados. O primeiro requisito do estado de necessidade justificante é, pois, o perigo de lesão a um bem jurídico. Esse perigo deve ser atual e não pode ter sido volun tariamente provocado pelo agente do fato necessário. Há que resultar de caso fortuito ou força maior. Desse modo, quem voluntariamente provoca um incêndio, não pode legitimamente ferir um semelhante, na disputa da fuga para salvar-se, ainda que essa seja a sua única esperança de salvação. Assim, também, quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo (exemplo: agentes da Administração Pública, incumbidos dé combater o fogo). O segundo requisito é a inevitabi lidade da lesão ao bem de outrem. Na situação de conflito entre bens 183
juridicamente protegidos, o sacrifício de um deles somente está auto rizado quando a salvação do outro só possa fazer-se à custa desse sacrifício. Se houver alguma possibilidade razoável de salvação do bem ameaçado, de modo que evite ou que, pelos menos, reduza o dano a bem de outrem, a inevitabilidade do dano causado, ou do dano maior, desaparece. Quem mata ou fere, para salvar-se, quando podia fugir do perigo, mesmo com desprestígio para sua fama de homem corajoso, não se ampara na excludente de ilicitude em exame, que não se confunde, neste aspecto, com a legítima defesa. O terceiro requisito é a existência de um conflito entre bens reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica. No estado de necessidade, não podem prevalecer, sobre direitos protegidos, vícios ou práticas desvaliosas,, O quarto requisito é o balanceamento dos bens e deveres em conflito,, que possibilite identificar no bem sacrificado valor igual ou inferior ao do bem defendido. Afasta-se, pois, nesta área, qualquer possi bilidade de justificação do sacrifício do bem maior para salvação do menor, transferindo-se, nesta última hipótese, a solução para o juízo de culpabilidade. Essa ponderação de bens, para observância do cri tério de razoabilidade recomendado pelo legislador, não deve fazer-se dentro de um rigorismo lógico incompatível com os fenômenos da vida humana. Com efeito, se é fácil negar o estado de necessidade no entrechoque vida versus patrimônio, o mesmo não ocorre quando se está diante de lesões gravíssimas contra lesões graves, ou de patri mônio contra patrimônio, com diferença de valores pouco significativa. O quinto e último requisito é o elemento subjetivo do agente, a sua orientação de ânimo no sentido de salvar o bem ameaçado. O mero acaso, ou a coincidência ocasional de fatores desconhecidos, não basta para justificar um fato previsto em lei como crime e realizado com propósitos criminosos. Embora não se exija do autor do fato neces sário a exata consciência da licitude de seu ato, exige-se que, pelo menos, se tenha motivado pelo desejo de salvação do direito em perigo. Só essa motivação, diferentemente da premeditação criminosa, dá à conduta necessária a tônica de um fato conforme ao direito, ou seja, não oponível a esse mesmo direito. Questões particulares a respeito desses requisitos serão referidas a seguir. 17!. Perigo. Perigo atual ou iminente. Dano. Perigo é a pro babilidade de dano. Perigo atual ou iminente (a atualidade engloba 184
a iminência do perigo) 13 é o que está prestes a concretizar-se em um dano, segundo um juízo de previsão mais ou menos seguro. Se o dano já ocorreu, o perigo perde a característica de atualidade. Se existe mera possibilidade de dano futuro, ainda incerto, o perigo deixa de ser iminente. Dano (do latim damnum, detrimento, perda, lesão) não deve ser confundido com prejuízo. O primeiro — já o dis semos 14 — pode ou não estar acompanhado do segundo. O dano, como lesão real ou potencial a bens jurídicos, está sempre presente em todo fato criminoso. O prejuízo, como perda quantitativa ou qualitativa de algum bem, pode não ocorrer em certos crimes (crimes de mera conduta, crimes tentados etc.), estando presente em outros (crimes consumados contra o patrimônio, por exemplo). 172. Nos termos da lei, o perigo, além de atual (ou iminente), não deve ter sido voluntariamente provocado pelo agente (art. 24 “pe rigo atual, que não provocou por sua vontade” ). Daí, porém, não se conclua, como fazem alguns autores, que só o ato doloso, não o culposo, afasta o estado de necessidade. Esses autores confundem “provocação do perigo” com “provocação do resultado”, duas situa ções bastante diversas. Quem provoca conscientemente um perigo (engenheiro que, na exploração de minas, faz explodir dinamites, devidamente autorizado para tanto) age “por sua vontade” e, em princípio, atua licitamente, mas pode causar, por não ter aplicado a diligência ou o cuidado devidos, resultados danosos (ferimentos ou mortes) e culposos. Nessa hipótese, caracteriza-se uma conduta cul posa quanto ao resultado, portanto, crime culposo, a despeito de o perigo ter sido provocado por um ato voluntário do agente (a deto nação do explosivo). Por isso é que em nosso estudo sobre a causa de justificação em exame, após salientar que a vontade está igual mente presente na culpa stricto sensu (vontade na causa de um resul tado não querido), salientamos que, no particular, a melhor doutrina está com Nélson Hungria 15 e Magalhães Noronha. Este último afirma textualmente o seguinte: “o fato de no art. 20 ler-se ‘. . .perigo atual, que não provocou por sua vontade. .. ’ não é indicativo de dolo, já 13. Reale Júnior, Dos estados de necessidade, p. 60, define: “Atual é o que é presente, subsiste e persiste. Iminente é o que está prestes a ser atual, mas ainda não o é”. 14. Ilicitude penal, cit., p. 56-8. 15. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 269.
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que na culpa (stricto sensu) também existe vontade — vontade na ação causai, e, por exceção, até no próprio resultado. A nós nos parece que também o perigo culposo impede ou obsta o estado de necessidade. A ordem jurídica não pode homologar o sacrifício de um direito, favorecendo ou beneficiando quem já atuou contra ela, praticando um ilícito, que até pode ser crime ou contravenção. Re conhecemos, entretanto, que na prática é difícil aceitar solução unitária para todos os casos. Será justo punir quem, por imprudência, pôs sua vida em perigo e não pode salvar-se senão lesando a propriedade alheia? ” 16. A dúvida final do autor simplesmente não existe, se considerar mos que, no exemplo infeliz que cita, se menciona lesão à proprie dade alheia, portanto, estado de necessidade de direito civil, contra coisas, onde não se exige, conforme veremos, que o perigo não tenha sido provocado. Por isso, aliás, é que o Código Civil permite o fato necessário (art. 160, II), mas submete o agente à reparação do dano (arts. 1.519 e 1.520), aliás, muito sabiamente17. A respeito consulte-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (R T , 546:357). 175. Inevitabilidade da lesão. Inevitável é a lesão necessária, na medida da sua necessidade para salvar o bem ameaçado. Enten dem os tribunais que a prova dessa necessidade ou inevitabilidade deve ser cabal e incumbe à defesa (RT, 418:287, 535:304). A dou trina, como já foi dito, diversamente do que ocorre com a legítima defesa, inclui a fuga, quando o perigo recai sobre a pessoa, como um dos meios menos gravosos de que se deve valer aquele que se encon tra em perigo, para conjurá-lo18. Nessa mesma linha de pensamento, a lesão de menor vulto, quando suficiente para o mesmo fim, afasta o caráter justificante da lesão maior, que se reputa excessiva, por tanto desnecessária. Onde bastava a lesão corporal e houve morte, o fato não se considera justificado pelo estado de necessidade 19. Nesse caso, há que se pesquisar a natureza do excesso que pode ser doloso, culposo (art. 23, parágrafo único) ou escusável se decor rente de perturbação, medo ou susto. 16. Í7. 18. 19.
186
Direito penal, cit., v. 1, p. 195. Cf. nosso Ilicitude penal, p. 66-7. Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 272. Cf. Magalhães Noronha, Direito penal,cit., v. 1, p. 194.
Para exame mais detalhado dessa última questão, remetemos o leitor ao título da legítima defesa, em cujo âmbito o excesso ocorre com maior freqüência. 174, Conflito de bens. O estado de necessidade pressupõe conflito entre bens ou interesses legítimos. Se um dos interesses em conflito não é legítimo, desaparece a possibilidade de sua defesa e com isso o estado de necessidade. Por outrò lado, no direito bra sileiro, a natureza ou a titularidade do direito não é fundamental. Todos os direitos (vida, honra, patrimônio etc.) são defensáveis, sejam próprios ou alheios, exista ou não relação de parentesco entre o agente e o titular do bem. A intervenção de terceiros, contudo, quando se trate de bens disponíveis, não pode prescindir dá aquiescência do titular do direito exposto a perigo de lesão, pois, nesse caso, o titular do direito pode preferir outra solução ou até, se lhe aprouver, sofrer o dano. 175. Ponderação de bens e deveres. O bem de maior valor prefere ao de menor valor. Não há, entretanto, critérios milimétricos para o balanceamento dos bens em conflito. A lei fala em sacrifício “não razoável”. O princípio da razoabilidade preside, portanto, a opção. Não se deve, contudo, esquecer que a própria lei penal con tém importantes valorações. Assim, por exemplo, no entreçhoque entre a vida da mãe e do ser que traz em gestação, o maior valor da vida da gestante pode ser deduzido das cominações para os crimes de homicídio (art. 121) e de aborto (arts. 124 e 125). Havendo identidade ou equivalência entre os bens, o sacrifício de qualquer deles, para salvação do outro, estará autorizado, como já se disse. Os princípios são fundamentalmente os mesmos na colisão de deveres. Assim, o médico, para evitar contágio de doenças ou um crime iminente, pode quebrar o dever de sigilo profissional, se isso for absolutamente necessário para a salvação de vidas ou da saúde de pessoas. O dever maior predomina sobre o menor. Em certas circunstâncias, havendo conflito entre deveres de igual valor, predo mina a manutenção da situação preexistente. Não pode, pois, o mé dico, diante de dois pacientes necessitados do socorro e só dispondo de um único aparelho salvador, cessar o socorro já iniciado, em relação 187
a um, para instalar o aparelho no que chegou por último, com sacri fício da vida do primeiro. 176. Elemento subjetivo. O fato necessário deve ser prati cado com o intuito de salvar o bem em perigo. Isso basta para satis fazer a exigência de elemento subjetivo. Com mais detalhes, veja-se 0 que foi dito no título anterior. 177. Reparação do dano. O tema será melhor estudado no título seguinte, relativo ao estado de necessidade de direito civil. Diga-se, entretanto, desde logo, que, diante da diferença existente entre responsabilidade penal e responsabilidade civil, não há contra dição nem razão para espanto no fato de se considerar cabível a in denização civil na presença de sentença criminal absolutória pelo reconhecimento do estado de necessidade. A regra do art. 65 do Código de Processo Penal deve ser vista dentro de seus próprios limi tes, pois a jurisprudência dominante tem entendido que, mesmo na presença de sentença criminal absolutória, fundada no reconhecimen to do estado de necessidade, o causador de grave dano não se exime de repará-lo (RTJ, 81:542). Por outras palavras, “o estado de ne cessidade não elide a responsabilidade civil” (RT, 477:104).
d)
Estado de necessidade de direito civil
178. O Código Civil regula o estado de necessidade contra coisas e animais, in verbis: “Art. 160. Não constituem atos ilícitos:; 1 — . . . II — A deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente (arts. 1.519 e 1.520). Parágrafo único. Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circuns tâncias o tomarem absolutamente necessário, não excedendo os limi tes do indispensável para a remoção do perigo”. Conforme sustentamos em nosso livro Ilicitude penal e causas de sua exclusão, cujos argumentos a seguir reproduziremos, parecenos que esta subespécie de estado de necessidade não se confunde com as mais abrangentes reguladas no art. 24 do Código Penal, nem foi modificada pelo advento deste último estatuto. Não há incom patibilidade entre a primeira e as últimas; são elas manifestamente distintas e todas são aceitas e devidamente diferenciadas em doutrina. Para se chegar a essa conclusão basta notar que, no Código Civil.,
ao contrário do que ocorre no Penal, não se exige que o perigo não tenha sido provocado pelo agente do fato necessário, embora certos autores sustentem isso, por influência da regulamentação penal. Ora, a não-exigência desse requisito é precisamente uma característica do denominado estado de necessidade defensivo (Verteidigungsnotstand) da doutrina alemã, construída sobre o art. 228 do Código Civil alemão, o qual, segundo Jescheck, subsiste mesmo que o perigo tenha sido provocado, só não sendo reconhecido se a provocação se fizer com a finalidade de criar o ensejo para a destruição da coisa (exemplo: atração deliberada de um animal para matá-lo) 20. Isso explica, aliás, entre nós, a responsabilidade instituída nos arts. 1.519 e 1.520 do Código Civil, tão mal e injustamente compreendida pelos penalistas. 179. Todavia, a dificuldade de desenvolvimento da distinção em foco, no direito brasileiro, deve ser, a nosso ver, debitada aos próprios civilistas que, ao examinar o estado de necessidade do Có digo Civil, se valem freqüentemente de exemplos específicos do direito penal em que surgem como sacrificados bens personalíssimos (vida humana ou a integridade física da pessoa), que não são coiáas e que, portanto, não poderiam mesmo encontrar solução no citado art. 160, II, e sim no Código Penal, art. 24. A questão da reparação civil do dano (CC, arts. 1.519 e 1.520) — outra razão dessa confusão — não deveria, a nosso ver, suscitar maiores problemas para a aceitação da distinção em causa, visto como a responsabilidade civil tem exi gências bem menores do que a penal, admitindo-se a subsistência da primeira onde inexiste a segunda, como no exemplo do dano culposo (CC, art. 159). Permite-se, pois, dentro de um razoável balanceamento de bens, a destruição de coisas e de animais desde que o fato se apresente como “absolutamente necessário” e “não exceda os limites do indis pensável para a remoção do perigo”. São exemplos mais comuns: a morte de um cão raivoso, o dano à propriedade alheia para evitar a propagação de incêndio, inundação, desmoronamentos etc. A causa de justificação afasta, se presentes os requisitos objetivos e subjetivos, a ilicitude penal, caracterizando, portanto, o ato defensivo um ato lícito penal que, não obstante, pode produzir efeito na esfera 20.
Lehrbuch, cit., p. 264.
18 9
civil, qual seja, a obrigação de reparar o dano, ao dono da coisa, se este último não for culpado do perigo. Se a culpa for de terceiro, a obrigação subsiste, cabendo ao autor do fato necessário ação regres siva contra o responsável pelo perigo. 180. Carvalho Santos situa-se entre os que, por influência da lei penal, reputam requisito essencial do estado de necessidade jurídico-civil que o perigo seja acidental, “isto é, seja resultado de um caso fortuito e não voluntariamente provocado” 21. Não nos parece ser essa a melhor interpretação. A definição de que parte o autor citado (“situação de fato, em que uma pessoa, para se livrar de um outro perigo desencadeado, sacrifica uma outra pessoa ou coisa alheia” ) revela a confusão já apontada entre duas subespécies de es tado de necessidade (o penal e o civil). Ora, a doutrina alemã reco nhece, como se viu, o estado de necessidade jurídico-civil mesmo que o perigo haja sido provocado, com a única exigência de que a pro vocação não se tenha engendrado, deliberadamente, para a preme ditada destruição da coisa. A ser exata a notícia, que se lê nos comen tários de Clóvis Beviláqua22, de que o art. 160 se inspirou no art. 228 do Código Civil alemão, não' vemos razão para chegar-se, aqui, a outra conclusão. Admitindo-se, como quer Carvalho Santos, que o perigo referido no art. 160, II, seja unicamente o resultante do caso fortuito, ter-se-ia que concluir pela proibição de dano à propriedade alheia, em caso de incêndio ou inundação culposos, por exemplo, mesmo que esse dano se apresentasse, nas circunstâncias, como abso lutamente necessário para a salvação de bens consideravelmente maio res, o que não faz sentido diante dos dispositivos dos arts. 1.519 e 1.520 do mesmo Código, onde se poderia ver, melhor do que a pura responsabilidade objetiva, pelo menos algumas hipóteses de culpa levíssima, irrelevantes na área penal, mas suficientes para fundamen tar a responsabilidade civil23. 21. CódigoCivil brasileiro interpretado, v. 3, p. 336. 22. CódigoCivil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v. 1, p. 345. 23. O Min. Themístocles Cavalcanti,no RE 66.799-SP, revelou nítida preocupação com o estado de necessidade contra “coisas”, bem como com o correlato problema da responsabilidade penal e civil, fundada na culpa, em bora o caso concreto não oferecesse, infelizmente, oportunidade para o deslinde dessas questões: . . Tenho como certo que o art. 1.519 do C. Civil só se aplica às coisas e não às pessoas e a remissão do artigo 160 o confirma. A responsabilidade é regulada pelos arts. 159 e 1.525 e a existência da culpa 190
181. Os requisitos que identificamos no estado de necessidade jurídico-civil são os seguintes: a)
o perigo atual ou iminente;
b)
a ponderação dos bens em conflito;
c) ser o fato necessitado absolutamente indispensável, ouseja, a única forma de salvação do bem ameaçado; d) a moderação, de sorte que o dano causado não exceda limites do indispensável para a remoção do perigo.
os
Caracterizados esses requisitos, exclui-se o crime de dano (CP, arts. 163 a 165), mas não a responsabilidade civil.
é indispensável para que se verifique. Não cabe, a meu ver, examinar aqui o estado de necessidade porque o evento fatal não foi por ele determinado, mas por mera manobra do motorista que se enquadra em mero ato de rotina de sua profissão. Ele não previu certamente as suas conseqüências e, por tanto, não atingiu as vítimas para atender a esse estado de necessidade. Não me parece justo que, pelo fato de ter salvo a sua própria vida, ele tenha de ressarcir o dano causado a terceiro, pelo menos integralmente. Há, entretanto, no acórdão-padrão duas expressões — primeira, o reconhecimento da inexistência de imprudência, segunda, a culpa exclusiva da vítima — que levam à justificativa da exclusão da responsabilidade civil. Não me parece que o recurso possa ser admitido pela letra d porque não há no acórdão recorrido referência à conduta das vítimas. O caso- mereceu exame para melhor análise do mérito. Foi o que fiz, mas não posso conhecer do recurso” (RTJ, 49:802-3). 191
§ 14. A legítima defesa a)
Conceito de legítima defesa. Requisitos essenciais
182. O reconhecimento da faculdade de autodefesa contra agressões injustas não constitui uma delegação estatal, como já se pensou, mas a legitimação pela ordem jurídica de uma situação de fato na qual o direito se impôs diante do ilícito. Significativo, pois, é que, no direito alemão, o instituto tenha o nome de defesa neces sária (Notwehr). Segundo Dreher e Trõndle, “a defesa necessária (legítima defesa) é uma causa de justificação que se baseia no prin cípio de que o direito não precisa retroceder diante do injusto. . . ” pelo que “ . . . a defesa vale, pois, não só para o bem jurídico ameaçado mas também, simultaneamente, para a afirmação da or dem jurídica” 1. E como todos têm fundado interesse nessa afirmação, aplica-se, aqui, o princípio da solidariedade com apoio no qual quem estiver em condições de exercer a legítima defesa, própria ou de outrem, estará legitimado a fazê-lo, desde que se contenha nos limites da norma permissiva2. 183. Jiménez de Asúa assim define a legítima defesa: “La le-, gítima defensa es repulsa de la agresión ilegítima, actual o inmi1. 2.
Strafgesetzbuch, cit., p. 32. Cf. nosso Ilicitude penal, cit., p. 69,
nente, por el atacado o tercera persona, contra el agresor, sin tiaspasar la necesidad de la defensa y dentro de la racional proporción de los médios empleados para impediria o repeliria” 3. Nessa de finição podemos identificar alguns requisitos fundamentais do insti tuto em estudo: 1.°) agressão injusta, atual ou iminente; 2.°) de fesa necessária, moderada e proporcional à agressão 4. A seguir examinaremos se esses requisitos são suficientes — e em que medida — no direito legislado brasileiro. 184. O Código Penal vigente, mesmo após a reforma de 1984, que, nesse ponto, nada inovou, assim dispõe sobre a legítima defesa: “Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderada mente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou imi nente, a direito seu ou de outrem”. E no art. 23, II, inclui a legítima defesa entre as causas de justificação, ou seja, entre as excludentes da ilicitude. O Código Civil igualmente contempla a legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, no art. 160, I, instituindo uma forma especial de autodefesa da posse, no art. 502, abrangente até de atos posteriores ao esbulho. Pensamos que os elementos que. se podem extrair dessa regu lamentação da causa de justificação em exame são os seguintes: — repulsa a agressão atual ou iminente e injusta; — defesa de direito próprio ou alheio; —1 emprego moderado dos meios necessários; — orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos. Vejamos o significado e o alcance de cada um desses requisitos, com seus desdobramentos.
b)
A ação agressiva e a reação defensiva. Características. Agressão de inimputáveis. Provocação do agente. “Aberratio ictus”
185. Repulsa a agressão atual ou iminente e injusta. A le gítima defesa, desde o primitivo direito romano, era considerada 3. La ley y el delito, cit., p. 289. 4. Cf. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 303; Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 282-
Nelson
193
uma reação defensiva (v/m vi repellere licet). O direito canônico assim também a admitia, quando exercida nos limites da necessidade e dentro de certa proporcionalidade (cum moderamine inculpatae tutelae), segundo as fontes romanísticas e bíblicas em que se inspi rava. E ainda a admite, desde que mantida a devida moderação (debitum servans moderamen)5. Esses princípios, desenvolvidos através dos séculos, deram os contornos definitivos de um dos ins titutos mais bem elaborados da ciência penal. O primeiro aspecto da legítima defesa é, pois, o seu caráter inarredável de reação de fensiva, o que exclui de seu âmbito todo e qualquer ato agressivo na sua origem. Quem não age para repelir ou impedir uma agres são atua fora dos limites de uma justa defesa, não age cum mode ramine inculpatae tutelae. Como toda reação supõe uma ação opos ta e contrária, a reação defensiva só existe diante da ação agressiva que lhe dá origem, ê resistência contraposta à agressão. Mas não se trata de toda e qualquer agressão. Exige a lei e a doutrina que essa agressão seja atual ou iminente e, além disso, injusta ou ilícita. 186. Agressão atual. Entende-se por agressão a lesão ou ameaça de lesão, provenientes de uma ação humana, a bens jurídi cos (Stratenwerth). é atual a agressão já em curso no momento da reação defensiva. Se a agressão, porém, já se consumou e pro duziu os seus efeitos danosos, é agressão transata, não atual. Se ainda está na fase de simples ameaça e não se revela um perigo concreto, presente, é promessa de agressão futura, para cuja repulsa estão legitimados os órgãos do Estado incumbidos da prevenção do crime. “A legítima defesa” — ensina Magalhães Noronha — “não se funda no temor de ser agredido nem no revide de quem já o foi” 6. Para esses males dispõe o ordenamento jurídico de outros remédios. Note-se, porém, que, conforme exprime um antigo brocardo jurí dico, ninguém (para defender-se) está obrigado a esperar até que seja atingido por um golpe (nemo expectare tenetur donec percutietur). Isso poderá ser fatal. Admite-se, pois, a justa reação defensiva diante de uma agressão iminente. 5. Antigo cânon 2.205, § 4, atual 1.323, 5.°, do Codex Juns Canonici. Ê conhecido o princípio adotado pela teologia moral: vim vi repellere licet, sed cum moderamine inculpatae tutelae (permite-se repelir a força pela força, mas com a moderação de uma justa defesa). 6. Direito penal, cit., v. 1, p. 201. 194
187. Agressão iminente. É iminente a agressão que está para acontecer. A possibilidade concreta de agressão autoriza os atos necessários de defesa. Agressão iminente é, pois, sinônimo de pe rigo concreto de agressão, a ser aferido dentro de um quadro de probabilidades reais, não apenas fantasmagóricas. Se o agente for ma em sua mente, turbada pelo medo, o fantasma de uma agressão sem aquelas características, não agirá em legítima defesa mas em es tado de erro que poderá ser relevante (cf. legítima defesa putativa). Nos crimes permanentes, a agressão será sempre atual enquanto não cessada a permanência, enquanto durar o estado antijurídico. 188. Agressão injusta. Injusta é a agressão ilícita antijurí dica. Um ato lícito pode ser até uma agressão, em certos casos (v. g.: penhora), mas não será uma agressão ilícita. Não há, pois, legítima defesa contra legítima defesa ou contra o agente que atua ao abrigo de outra causa de justificação. Admite-se, porém, o es tado de necessidade contra estado de necessidade. A razão dessa diferença de tratamento está em que, na legítima defesa, a reação defensiva se faz contra uma agressão injusta, ao passo que, no esta do de necessidade, a reação defensiva pode endereçar-se tambén contra um inocente. O exemplo da tábua de salvação elucida a hi pótese. Nenhum dos dois náufragos pode invocar contra o outro a legítima defesa, mas qualquer dos dois pode amparar-se no estado de necessidade. Se um deles, na disputa do salva-vidas e para re pelir o ataque não ilícito do outro, ferir ou matar o adversário, não cometerá crime, se o fato era inevitável7. 189. Não se exige que a agressão injusta (ilícita, antijurídica) seja necessariamente um crime. A legítima defesa pode ser exer cida para a proteção da posse (CC, art. 502), mesmo quando a ação agressiva não caracterize o crime de esbulho possessório (CP, art. .161, II). O furto de uso não é considerado crime em nosso direito, mas é seguramente um ilícito civil. Contra essas formas — 7. Assim Gimbemat Ordeig: “. . . frente a la acción de estado de necesidad — por no ser antijurídico — no es posible la legítima defensa, pero si el estado de necesidad — por ello deben ser respectados los limites de la proporcionalidad: “El mal causado no debe ser mayor que el que se trata de evitar — ; ésta es la única solución justa, pues no se aplican dos critérios distintos para el que actúa primero en estado de necesidad y para el que se ve entonces afectado por esa situación” (E studios, cit., p. 122).
195
e outras — de agressão patrimonial pode, portanto, ser exercida a legítima defesa. Daí não se infira, porém, que o titular de qualquer direito ameaçado esteja autorizado a matar ou a ferir o agressor de bens ou interesses insignificantes. Tal absurdo não pode ser admitido pelo direito que não dá abrigo a abusos e excessos. Mais adiante, examinaremos com mais detalhes as limitações ao exercício da le gítima defesa. 190. Agressão de inimputáveis. Se a agressão não precisa ser um crime, bastando a sua ilicitude, conclui-se que também não se exige seja ela culpável, já que, na área penal, o juízo de culpabi lidade pressupõe a tipicidade e a ilicitude. Com isso, forçoso é admitir-se a legítima defesa contra a agressão de inimputáveis: ébrios habituais, doentes mentais, menores e outros inimputáveis, que não cometem crimes mas, sem dúvida, praticam atos ilícitos e até típi cos 8. Certos autores, entretanto, fazem ressalvas no particular. (Assim, Nélson Hungria e, em menor extensão, Magalhães Noro nha.) Preconiza Nélson Hungria o tratamento da defesa contra a agressão de inimputáveis à luz do estado de necessidade, mais be nigno para o agressor, por exigir a fuga do agredido, quando possí vel, o que não ocorre com a legítima defesa9. Eis a lição do penalista pátrio: “ . . . quando a lei deixa de exigir entre os requisitos da legítima defesa a impossibilidade de fuga, tem em consideração, não só que deve ser prestigiado o espírito de luta pelo direito, mas tam bém que é inexigível a vexatória ou infame renúncia à defesa de um direito. Ora, a possível fuga diante da agressão de um inimputável nada tem de deprimente: não é um ato de poltranaria, mas uma conduta sensata e louvável. Assim, no caso de tal agressão, o que se deve reconhecer é o ‘estado de necessidade’, que, diversamente da legítima defesa, fica excluído pela possibilidade de retirada do periclitante” 10. tória.
191. Tal solução — já o dissemos — afigura-se-nos insatisfa É discutível que o estado de necessidade, com exigência de
8. Sobre o tema: Jescheck, Léhrbuch, cit., p. 254; Magalhães Noronha, Direito penal, cit., v. 1, p. 201-2; Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 291. 9. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 291-2. 10. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 292.
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fuga, seja suficiente para solucionar todas as questões resultantes da repulsa à agressão de inimputáveis perigosos (tenha-se em mente o menor delinqüente dos grandes centros urbanos), diante de outra exigência desse instituto: a ponderação dos bens em conflito. Ora, admitindo-se a tese de Nélson Hungria e conjugadas a exigência de fuga e a necessidade de balanceamento dos bens em conflito (requi sitos do estado de necessidade), teríamos que a vítima de furto ou de roubo não pode defender-se com emprego de violência que po nha em risco a vida do agressor inimputável (vida contra patrimô nio), ainda que este seja o único meio disponível, só lhe restando fugir e conformar-se com a espoliação patrimonial, com dano cuja reparação poderá ser impossível. Parece-nos, pois, preferível adotar-se a solução que não exclui da legítima defesa a agressão de inimputáveis, mas introduz no instituto, nessa hipótese, novas exi gências. Segundo lição de Jescheck, diante de crianças, jovens ima turos, doentes mentais, agentes que atuam em estado de erro ou imprudentemente etc., a legítima defesa funda-se exclusivamente na faculdade de autodefesa, pelo que o agredido deverá limitar-se à pro teção dos bens e só poderá causar lesão ao agressor se não puder dele afastar-se sem o abandono do interesse ameaçado u . No mes mo sentido Maurach, para quem as agressões de inimputáveis (inculpáveis) devem ser evitadas, desviadas (ausgewichen) e não repe lidas por meio de uma defesa ofensiva, a não ser que seja esta a única forma de defesa que não implique abandono de interesses reconhe cidos. A íurpis fuga com abandono de interesses legítimos nem mesmo nestas situações poderá ser exigida12. Com tais atenuações, chega-se a um resultado satisfatório para a solução dos problemas apontados, sem a necessidade de forçar-se a transferência para o estado de necessidade de hipóteses de legítima defesa, que no âmbito daquele encontrariam dificuldades bem maiores. 192. Provocação do agente. Não se deve confundir provo cação com agressão. A provocação, segundo a sua intensidade e conforme as circunstâncias, pode ser ou não uma agressão. Se constituir injúria ou insulto de certa gravidade, ou ainda uma agres são física, será com efeito a injusta agressão autorizadora de atos de 11. 12.
Lehrbuch, cit., p. 257. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 316. 197
legítima defesa, desde que esta se desenvolva sem excessos. Se, po rém, a provocação, embora desagradável ou uma brincadeira de mau gosto, não passar de desafio, instigação, pequeno confronto, geral mente freqüentes e tolerados no meio social dos contendores, o certo será não aceitá-la, não lhe dar trelas, visto como o instituto da le gítima defesa não se destina a amparar os que, com os nervos à flor da pele, andam por aí à moda antiga, a procura de duelos, ferindo e matando por me dá cá esta palha. Nesta última hipótese, apesar da provocação, o provocador pode defender-se legitimamente de uma desproporcionada agressão do provocado. Não poderá fazê-lo, contudo, quando a provocação transformar-se em verdadeira agressão13, ou quando for mero “pretexto de legítima defesa” 14. 193. A jurisprudência tem sido rigorosa com o tratamento dado à provocação. Todavia, há julgados que não admitem a rea ção desproporcionada contra a provocação, bem como outros que excluem da legítima defesa o desafio 15, o que confirma o entendi mento aqui defendido. 194. “Aberratio icíus” na reação defensiva. Fato relativa mente comum é a ocorrência de erro na execução nos atos necessá rios de defesa. Tício, para defender-se da agressão de Caio, des fere tiros no agressor mas, por erro, atinge Mévio, terceiro inocente que não participava do conflito. No mesmo exemplo pode ser que atinja o agressor e, por erro, o terceiro inocente. Em tais hipóteses, não se desfigura a causa de justificação em exame, pois, a teor do art. 73, Tício responderá pelo fato como se tivesse atingido o agressor Caio, ou seja, a pessoa que pretendia atingir. Eis o que já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, relator Des. Adriano Marrey: “Se o agente estava procedendo em legítima defesa e houve erro na execução, nem por isso deixa a jus tificativa invocada de ser admissível, se comprovada. Em relação ao terceiro atingido terá havido mero acidente ou erronia no uso
13. 14. 15. 198
Assim, Costa e Silva, Código Penal, cit., v. 1, p. 169. Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 293. Cf. Celso Delmanto, Código Penal, cit., 5. ed., p. 25-6.
dos meios de execução. E quem diz acidentalidade diz causa inde pendente da vontade do agente” (R T , 393:129)16. 195. Nesse caso, porém não se exclui a responsabilidade civil pela reparação do dano causado ao terceiro inocente, conforme já sustentamos17 e como bem demonstram Basileu Garcia e Mendes Pimentel em dois importantes trabalhos doutrinários 18. Não se apli ca, pois, ao terceiro inocente a norma do art. 65 do Código de Pro cesso Penal, já que, quanto a ele, a lesão, apesar da absolvição do agente, não pode ser considerada um lícito civil. Trata-se, portan to, de uma hipótese em que a exclusão da responsabilidade penal não impede a afirmação da responsabilidade civil, restrita — é claro — ao terceiro inocente.
c) O direito defendido: vida, liberdade, patrimônio, honra etc. Bens do Estado e das pessoas jurídicas de direito público 196. Dejesa de direito próprio ou alheio. Afirma Costa e Silva que “todos os direitos (bens ou interesses jurídicos) são susce tíveis de legítima defesa” 10. No mesmo sentido Nélson Hungria 20, Jescheck21, Noronha22 e muitos outros. Assim, são defensáveis, exemplificativamente: a vida, a liberdade, a integridade física, o pa trimônio, a honra, enfim, todo e qualquer direito reconhecido pela ordem jurídica. Não se discute, pois, a possibilidade de legítima, defesa da honra. O que se poderá discutir, nesta área, é a adequa ção do emprego de certos meios violentos e excessivos de repulsa (cf. TJSC, R T , 522:421). Poderá, por exemplo, o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor? Pensamos, com Magalhães No ronha, ser muito difícil demonstrar, nessa hipótese, a moderação e a necessidade do meio empregado. Não obstante, diante de pode 16. V. Paulo José da Costa Júnior, Alberto da Silva Franco e outros, Código Penal e sua interpretação jurisprudência!, v. 1, p. 135. 17. Nosso O erro, cit., p. 60. 18. RT, 191:3, e RF, 31:28. 19. Código Penal, cit., p. 354-5. 20. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 294. 21. Lehrbuch, cit., p. 253. 22. Direito penal, cit., v. 1, p. 203. 199
rosas normas de cultura ainda vigorantes em certas regiões de nosso imenso país, não se deve excluir a possibilidade da ocorrência do erro de proibição (erro sobre os limites da causa de justificação), em determinados casos concretos. O tema, entretanto, continua po lêmico diante da gritante desproporção existente entre a ação e a reação em casos que tais, cujo conhecimento não pode deixar de estar ao alcance de qualquer um através de simples constatação em pírica. 197. Outro problema é a denominada “legítima defesa da hon ra”, em caso de adultério, quando o marido traído mata a esposa infiel ou o amante desta. Há julgados admitindo a excludente, outros tolerando-a com restrições, outros, enfim, negando-a23. Isso, porém, não põe em questão a possibilidade de legítima defesa da honra. O que se contesta — e a nosso ver com justa razão — é que nessa hipótese ocorra uma real legítima defesa da honra ou que se possa considerar inserido no quadro da necessidade e da moderação o ato de quem mata a mulher infiel ou o seu aman te, pelo só fato da infidelidade conjugal. 198. O bem ou o interesse defendido pode ser próprio ou alheio, já que a lei não os distingue no citado art. 25 do Código Penal ( “direito seu ou de outrem”). Impõem-se, entretanto, algu mas limitações à defesa de direito alheio (o denominado “auxílio necessário” da doutrina alemã), resultantes da natureza do direito defendido. Assim, quando se trate de direitos disponíveis e de agen te capaz, a defesa por terceiro não pode fazer-se sem a concordância do titular desses direitos, obviamente. 199. Bens do Estado e das pessoas jurídicas de direito pú blico. A doutrina alemã estende a legítima defesa (auxílio .neces sário) a estes bens, quando se trate em geral de bens materiais. Não a admite, porém, para a proteção de conceitos pouco precisos tais como a “ordem pública” ou o “ordenamento jurídico” 2i. 23. Cf. nosso Ilicitude penal, cit., p. 101-4. 24. Cf. Jescheck, Léhrbuch, cit., p. 253, e Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 309.
200
d)
Necessidade dos meios utilizados. Princípio da proporcionalidade. A moderação
200. Emprego moderado dos meios necessários. Nem todo ato de defesa ou de autodefesa é legítimo, 011 seja, autorizado pela ordem jurídica. O direito impõe restrições mais ou menos precisas para que o indivíduo, por seus próprios meios, possa fazer prevale cer, sem o concurso dos órgãos do Estado, seus interesses ou bens diante do agressor. Assim, mesmo quando presentes os requisitos já examinados (repulsa a injusta agressão, atual ou iminente, a di reito próprio ou alheio), há que se examinar, ainda, se a conduta daquele que defende os bens ou interesses ameaçados desenvolveuse dentro de um quadro de necessidade e com moderação. Por isso a lei fala em usar “moderadamente dos meios necessários”. Sobre a necessidade dos meios empregados, já tivemos ocasião de tecer as considerações que serão expostas a seguir25. 201. Meios necessários de defesa. São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Nem menos, nem mais do que isso. Assim, quando a diferença de porte dos contendores revelar que a força física do agredido era ineficaz para afastar a ameaça de espancamento, o emprego de arma poderá ser um meio necessário, se de outro recurso menos lesivo e também efi caz não dispuser o agredido. Se, entretanto, for possível e suficien te a imobilização de um frágil agressor, por parte de um truculento agredido, sem maiores riscos, o emprego de armas e de instrumentos letais (ou mesmo o espancamento do agressor) será um meio des necessário. Decidiu o Supremo Tribunal Federal que o “modo de repelir a agressão” também pode influir decisivamente na caracteri zação do elemento em exame26. Assim, o emprego de arma de fogo não para matar mas para ferir ou para amedrontar (tiro fora do alvo) pode ser considerado, em certas circunstâncias, o meio dis ponível menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. O emprego de arma não descaracteriza, por si só, o caráter necessário do meio, se a arma não tiver sido utilizada com toda a sua potencialidade. Não se deve, entretanto, confundir “necessidade dos meios empregados” com "necessidade da defesa”. Considere-se o exemplo do paralíti 25. Cf. Ilicitude perud, cit., p. 80 e s. 26. RTJ, 85:475-7.
201
co, preso a uma cadeira de rodas, que, não dispondo de qualquer ou tro recurso para defender-se, fere a tiros quem lhe tenta furtar umas frutas. Pode ter usado dos meios para ele necessários mas não exer ceu uma defesa realmente necessária, diante da enorme despropor ção existente entre a ação agressiva (furto de valor insignificante) e a reação defensiva (lesões corporais ou tentativa de morte). Sur ge, então, a questão da proporcionalidade, na legítima defesa, que, a nosso ver, não tem sido devidamente valorada por certos autores. Manzini afirma, sem rodeios, que: “A importância do direito ex posto a perigo não entra em consideração para conferir ou tolher a faculdade defensiva nem para estabelecer a proporção entre a defesa e a ofensa am eaçada... No que toca aos direitos patrimoniais, sub siste a faculdade de legítima defesa (resguardada sempre a propor ção dos meios defensivos utilizados) seja diante do perigo atual de ser privado de pouca quantidade de fruta, seja no de uma invasão de ladrão no galinheiro, seja no perigo de ver-se saqueada a casa ou quebrado o cofre” 27. Entre nós, Nélson Hungria, embora enten dendo que, no roubo de frutas, se bastar a ameaça de arma, estaria excluída a legitimidade de disparos no ladrão, tem posição idêntica à de Manzini, chegando até a profligar o “sentimentalismo latino”, in verbis: “Por mínimo que seja o mal ameaçado ou por mais mo desto que seja o direito defendido, não há desconhecer a legítima defesa, se a maior gravidade da reação derivou da indisponibilidade de outro meio menos prejudicial, e posto que não tenha havido imoderação no seu emprego. Sustenta a doutrina alemã que qualquer bem jurídico pode ser defendido mesmo com a morte do agressor, se não há outro remédio para salvá-lo. O sentimentalismo latino, porém, acoima de brutal esse ponto de vista, e reclama que a propor cionalidade da defesa deve ser condicionada não apenas à gravidade da agressão, mas também à relevância do bem ou interesse que se defende. Dentro da lógica, entretanto, a primeira solução é que é exata. Ou se reconhece que os bens de pouca relevância não são tuteláveis pela defesa privada, e tollitur quaestio; ou se admite (co mo faz o direito positivo) que todo bem, por íntimo que seja, me rece essa tutela, e a conclusão não pode ser outra senão esta: a le gítima defesa do mais humilde dos bens pode ir usque ad necem, desde que o evento letal tinha de resultar necessariamente do único meio disponível” 28. 27. 28.
202
Trattato, cit., v. 2, p. 355-6. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 298-9.
202. Não adotamos, com a devida vênia, esse entendimento, que nos parece desatualizado. E assim pensamos menos por razões de “sentimentalismo latino” do que por uma visão diferente do sis tema penal. Não há direitos absolutos e o próprio direito penal não deve entrar em rota de colisão com valores éticos fundamentais. Seria enorme incongruência acolherem-se princípios como o da “in significância” e o da “adequação social” para excluir o crime, e, ao mesmo tempo, deixar de acolher princípios análogos, como o da proporcionalidade, para impedir que se matem seres humanos por ninharias, em nome de uma “lógica” que nada tem de “humana” ou sequer de “razoável”. Por outro lado, é certo que a moderna doutrina alemã já não acolhe a legítima defesa com a amplitude a que se refere o penalista pátrio. Os tratados mais modernos cuidam, de um modo geral, das denominadas restrições doutrinárias e jurisprudenciais à legítima de fesa, que não são poucas. Assim,' Welzel que não admite legítima defesa abusiva, “quando a gravidade da lesão não se ponha em re lação com a insignificância criminal da agressão” (furto de cere jas)29. No mesmo sentido Maurach, dando notícia da “moderna jurisprudência” que estende a proibição de abusos aos casos em que ocorra uma “insuportável desproporção entre o bem a proteger e a gravidade da ação defensiva” 30. Mais recentemente Jescheck afir ma, com declarado apoio na doutrina dominante, o seguinte: “ .. . el interés de auíoprotección puede experimentar, al ponerse en relación con la puesta en peligro del agresor, una extrema aminoración, en cuyo caso deberá negarse también el interés en la afirmación del De recho, ya que no puede constituir el sentido del Ordenamiento jurí dico permitir la defensa en favor de bienes de escaso valor o frente a agresiones irrelevantes a costa de importantes lesiones del agres sor. Por lo tanto, la legítima defensa no concurrirá cuando exista una desproporción inadmisible entre el bien jurídico atacado y la lesión y puesta en peligro del agressor” 31. Conclui-se, pois, que, no moderno direito penal, só se admite a defesa de bens insignificantes (note-se que não excluímos a possi bilidade) quando os atos necessários e suficientes para tanto não 29. 30. 31.
Das deutsche Strafrecht, cit., p. 87. Deutsches Strafrecht, cit., p. 317. Tratado de derecho penal, v. 1, p. 472. 20 3
causarem lesão ao agressor de forma expressivamente desproporcio nada ao valor dos bens e interesses ameaçados. É o princípio da proporcionalidade que, a nosso ver,- constitui um princípio de her menêutica, limitador da aplicação da legítima defesa, ou, ainda, um princípio regulador da reação defensiva, para evitar resultados ab surdos, desvaliosos, diante de certas situações. Feitas as ressalvas contra as agressões insignificantes e contra as agressões de inimpu táveis, anteriormente expostas, vale a observação de Eduardo Cor reia: “ . . . se dadas as circunstâncias só um certo meio é suscetível de garantir a defesa, a utilização dele — mesmo quando imponha o sacrifício de um interesse muito mais importante que o defendido — torna-se legítima. Se vários meios, a um tempo, são suscetí veis de sustar a agressão, compreende-se (e é a opinião dominante) que se utilize aquele que causa menor dano ao agressor” 32. 203. Moderação no emprego dos meios. A moderação exi gida na lei (art. 25) diz respeito com a intensidade dada pelo agente no emprego dos meios de defesa. Quaisquer instrumentos ou ar mas — e até mesmo a força muscular — podem ser empregados para ameaçar, ferir ou matar o agressor. Há, pois, uma escala pos sível de intensidade. O requisito da moderação exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer ces sar'a agressão. Se, no primeiro golpe, o agredido prostra o agres sor tornando-o inofensivo, não pode prosseguir na reação até matá-lo. Se o agressor, ao pressentir a reação do agredido, foge, não pode o agredido persegui-lo até a morte. O defendente que não sabe conter-se e cessar sua reação quando da cessação do perigo, comete excesso que, dependendo das circunstâncias, poderá ser do loso, culposo ou escusável. 204. A moderação, entretanto, não é um conceito rígido, sus cetível de mensuração matemática 33. As Ordenações Filipinas exi giam, na legítima defesa, que não se excedesse a “temperança que devera e pudera ter”. Essa temperança “possível” deve ser aferida em concreto, em função da turbulência dos fatos que se precipitam no palco dos acontecimentos. Por isso é que o Min. Francisco
204
32.
Direito criminal, cit., v. 2, p. 45-6.
33.
Cf. Célio de Melo Almada, Legítima defesa, p. 105.
Campos, em conhecida passagem da Exposição de Motivos ao Có digo de 1940, observa: “Uma reação ex improviso não permite uma escrupulosa escolha de meios, nem comporta cálculos dosimétricos: o que se exige é apenas a moderação do revide, o exercício da defe sa no limite razoável da necessidade”. 205. . Note-se que não elide a legítima defesa própria a nãoutilização da possibilidade de fuga pelo agredido, pois “a lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes” 34.
e)
O elemento subjetivo. “Animus defendendi”
206. Assim como no estado de necessidade e nas demais cau sas de justificação, exige-se o eletaento intencional que, na legítima defesa, se traduz no propósito de defender-se. A ação defensiva — já o dissemos — não é um fenômeno cego do mundo físico, mas uma verdadeira ação humana. E como tal só se distingue da ação criminosa pelo significado positivo que lhe atribui a ordem jurídica. Em uma, isto é, na ação criminosa, dá-se o desvalor da ação; em outra, na ação defensiva, reconhece-se a existência de um intenso conteúdo valioso. Em ambas, porém, a orientação de ânimo, a in tencionalidade do agente, é elemento decisivo, pois o fato, que, na sua configuração ou aparência exterior, permanece o mesmo (exem plo: causar a morte de um ser humano), dependendo das circuns tâncias e também dos motivos e da intenção do agente, pode ser: homicídio doloso ou culposo; legítima defesa; excesso doloso, cul poso ou exculpante de legítima defesa; legítima defesa putativa. Como dizer-se, diante dessa variedade de possibilidades, que a legítima defesa é um fenômeno puramente objetivo? O certo, a nosso ver, será reconhecer-se que na legítima defesa concorrem elementos objetivos e subjetivos. Os objetivos já foram examinados anteriormente. Os últimos — os subjetivos — são os motivos e a intenção do agente que se revelam no intuito de defen der-se, no agir “para defender-se”, sem que com isso se exija uma consciência da licitude do fato. 34. Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. % p. 288. sentido, RT, 473:315.
No mesmo
205
Assim, quando falamos em orientação de ânimo daquele que se defende, pensamos em algo que se exterioriza e se revela à luz do dia nas circunstâncias que dão um colorido peculiar aos fatos, como ocorre mutaíis mutahdis com o dolo e com a negligência, cuja pre sença podemos surpreender sem necessidade de mergulharmos — o que seria de resto muito discutível — nas profundezas do psiquismo do agente35.
f)
Ofendículas. Emprego de animais e engenhos mortíferos na defesa da propriedade
207.. Discute-se a respeito da melhor localização das denomi nadas ofendículas. Nélson Hungria e Magalhães Noronha estudamnas no capítulo da legítima defesa. Bettiol e Aníbal Bruno prefe rem situá-las no exercício de um direito. Ficamos com os primei ros. A potencialidade agressiva de certos aparelhos, engenhos, cães ferozes etc. encontram melhor solução dentro das exigências de le gítima defesa, sendo tolerados quando colhem o agressor, sendo cen surados quando acertam inocentes. 208. Segundo Nélson Hungria, as ofendículas são admissíveis mesmo com o risco de que, “ao invés do ladrão, venha a ser vítima da armadilha uma pessoa inocente”, caso em que, a seu ver, confi guraria legítima defesa putativa” 36. Não podemos concordar com esse entendimento. O temor de possível ofensa a bens patrimoniais — ou até a bens mais impor tantes — por mais compreensível, não é nem pode ser erigido em fato gerador do direito de vida ou morte sobre pessoas inocentes. Aliás, em nosso entender, a própria legítima defesa não é um di reito mas uma situação de fato valiosa, reconhecida pelo direito para que não se dê prevalência à agressão ilícita. Sendo assim, não pode extrapolar de seus exatos limites para justificar condutas agres sivas, não defensivas. Desse modo, pensamos com Jescheck que os riscos que as ofen dículas apresentam correm por conta de qúem as utiliza37. Se atin 35. 30. 37. 206
V. nosso Ilicitude penal, cit., p. 86-8. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 290-1. Léhrbuch, cit., p. 255.
gem um ladrão, na ocasião do furto ou do roubo, ocorre em prin cípio legítima defesa; se apanham, contudo, uma criança ou um ino cente, há pelo menos crime culposo.
g)
Legítima defesa putativa e excesso de legítima defesa exculpante. Excesso resultante de caso fortuito
209. A legítima defesa putativa será estudada com as deno minadas “descriminantes putativas”, para onde remetemos o leitor. O excesso exculpante, derivado de perturbação, medo ou susto, se rá estudado entre as causas de exclusão da culpabilidade, para onde também enviamos o leitor. A seguir, empreenderemos o exame do excesso doloso e do culposo.
h)
Excesso de legítima defesa. Excesso doloso e excesso culposo
210. A nova Parte Geral do Código Penal dispõe no parágrafo único do art. 23: “O agente, em qualquer das hipóteses deste ar tigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. Tal preceito significa que, em qualquer das causas de justificação previstas, se o agente exceder os limites da norma permissiva, por dolo ou por cul pa em sentido estrito, deverá responder por crime doloso ou por crime culposo (este obviamente se contemplada em lei a modalidade culposa). O preceito em foco é novidade no Código (a redação anterior cuidava apenas do excesso culposo) mas não o é na doutrina, pois mesmo antes da reforma já se entendia que ássim devesse ser. Nél son Hungria admite expressamente as duas formas de excesso38 e, em voJo proferido no HC 32.762, julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, explicitou o seguinte: " . . . A legítima defesa como descriminante, a autêntica legítima defesa, é essencialmente objetiva. Desde o momento que se nega a sua moderação, que é um dos seus requisitos objetivos, surge o que se chama ‘excesso de 38.
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 300-1. 207
legítima defesa’, e para a apreciação de tal excesso já a lei impõe critério que é, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo. Entende a lei que se o excesso é doloso, o réu responde pelo crime imputado a título de dolo; se é culposo, responde pelo crime a título de culpa; se, porém, decorreu de caso fortuito, ficará isento de culpa e pena, devendo notar-se, de passagem, que a culpa levíssima, ao contrário do que ocorre no direito civil, é equiparada ao fortuito em direito penal. . . ” 39. A jurisprudência mais recente da Suprema Corte confirma esse entendimento ao exigir, no caso de excesso, reconhecido sempre que o júri nega a necessidade dos meios empregados, que se questionem os jurados sobre a natureza do elemento subjetivo caracterizador do excesso (RHC 57.211, RECrim 91.348, HC 53.850 etc.). 211. Excesso doloso. Ocorre excesso quando o agente, ao se defender de uma injusta agressão, emprega meio desproporciona damente desnecessário (exemplo: para defender-se de um tapa, mata a tiros o agressor) ou age com imoderação (exemplo: depois do primeiro tiro que fere e imobiliza o agressor, prossegue na reação até a morte do agressor). Esse excesso, que como se viu pode ser de variada natureza, será doloso quando o agente consciente e deli beradamente vale-se da situação vantajosa de defesa em que se en contra para, desnecessariamente, infligir ao agressor uma lesão mais grave do que a necessária e possível, impelido por motivos alheios à legítima defesa (ódio, vingança, perversidade e assim por diante). Caracterizado o excesso doloso, responde o agente pelo fato como um todo doloso, beneficiando-se apenas com a atenuante do art. 65, III, c, parte final, ou, quando for o caso, com a causa de diminuição do § 1.° do art. 121. 212. Excesso culposo. Culposo é o excesso resultante da imprudente falta de contensão por parte do agente, quando isso era possível nas circunstâncias, para evitar um resultado mais grave do que o necessário à defesa do bem agredido. Decidiu, a respeito, o Tribunal de Justiça de São Paulo: “Se o excesso tiver como antece dente causai um estado emotivo, haverá culpa, e não dolo. Não existirá dolo porque a vontade, coagida pela necessidade de defesa, 39.
208
In nosso Ilicitude penal, cit., p. 91.
não pode ser pressentida na sua exata direção; haverá culpa parque muito embora envolvido por circunstâncias impeditivas de sua ex pansão completa, a vontade ainda tem livre um certo campo de ação, pode ser frenada pela previsão do resultado excessivo da repulsa” (Des. Adriano M arrey)40. Estamos em princípio de acordo com essa conclusão, com a ressalva de que nem todo estado emotivo caracteriza o excesso cul poso. Em certas situações de perturbação mental, medo ou susto, provocadas pelo inopinado da agressão, pode dar-se não o excesso punível mas o excesso exculpante, como veremos ao estudar as cau sas de exclusão da culpabilidade. 213. Note-se, para concluir, que o parágrafo único do art. 23 deve ser interpretado em conjugação com o parágrafo único do art. 17, segundo o qual “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o prati ca dolosamente”. Assim, a punição do excesso culposo somente se admitirá quando o excesso caracterizar crime culposo previsto em lei. No exemplo do homicídio, admite-se a punição do excesso culposo, diante do tipo do § 3.° do art. 121 do Código Penal. Na hipótese, porém, de danos materiais, sem outras implicações, o excesso cul poso é impossível por inexistir previsão legal ou tipificação do cri me de dano culposo, no Código Penal. Seu tratamento transfere-se para o direito civil. 21 4 .
E m conclusão, caracteriza-se o excesso cu lp o so quando:
a) o agente esteja, inicialmente, em uma situação de reconhe cida legítima defesa; b ) dela se desvia, em momento posterior, seja na escolha dos meios de reação, seja no modo imoderado de utilizá-los, por culpa estrito senso; c) o resultado lesivo esteja previsto em lei (tipificado) como crime culposo. Faltando qualquer dos requisitos iniciais da legítima defesa (ne cessidade de repulsa a injusta agressão, atual ou iminente), impos sível sequer cuidar-se do‘excesso culposo porque, nessa hipótese, não 40.
In Costa Júnior, Código Penal, cit., p. 45. 209
atua o agente ao amparo da causa de justificação, no bojo do qual ocorre o excesso em exame. Assim, no sistema do Código de Pro cesso Penal vigente, negada pelo júri a existência da agressão, ou a sua ilicitude, ou a sua atualidade, ou a sua iminência, ou a presença de uma reação defensiva, fica excluída, ab ovo, a legítima defesa e, sem necessidade de nova indagação, a possibilidade do excesso cul poso. Reconhecida, porém, a existência da reação defensiva do im putado contra uma injusta agressão a direito próprio ou alheio, mas negada ou a necessidade dos meios, ou a moderação, há que se pros seguir no exame da causa do excesso de defesa, para saber se, nas circunstâncias, tal excesso deriva de dolo, culpa stricto sensu, do for tuito ou de erro escusável. O excesso de defesa é, pois, o uso desnecessário ou imoderado de um certo meio, causa de resultado mais grave do que razoavel mente suportável nas circunstâncias.
210
§ 15. Outras causas de exclusão da ilicitude. Estrito cum prim ento de dever legal. Exercício regular de direito. Consen tim ento do ofendido a)
Estrito cumprimento de dever legal. Requisitos. Excesso. Abuso de autoridade
715. Quem age em cumprimento de dever imposto por lei, não comete crime, embora esteja causando eventualmente lesão a um bem jurídico tutelado. Ê o que resulta da norma permissiva instituída no art. 23, III, primeira parte, do Código Penal. Assim, atuam licitamente os agentes do Poder Público que realizam prisões, arrombamento, busca e apreensão de pessoas ou coisas, portas a dentro de uma residência (CPP, arts. 6.°, III, e 240, § 1.°), em cumprimento de mandados judiciais. E, no desempenho de missões dessa natureza, se houver resistência, ainda que por parte de ter ceiros, no caso de prisão, podem os executores “usar dos meios ne cessários para defender-se ou para vencer a resistência” (CPP, art. 292). O Código fala, entretanto, em “estrito cumprimento” e em “de ver legal”. Como o intérprete não deve supor, na lei, palavras inú teis, as expressões em causa devem ser entendidas com as restrições que expressam. Só os atos rigorosamente necessários e que, além 211
disso, decorram de uma exigência legal, isto é, de norma legal ex pressa, amparam-se na causa da justificação em exame. Não estão, pois, os agentes do Estado autorizados, sem mais, a ferir ou a matar as pessoas legitimamente perseguidas. Se houver resistência (com emprego de violência ou de ameaças), por parte do agente passivo, cria-se uma situação de legítima defesa que fa culta aos mencionados agentes a possibilidade de reação, com em prego moderado dos meios necessários para impedir ou repelir a agressão. Assim pensam, a nosso ver corretamente, M aurach1 e Magalhães Noronha2. 216. Os excessos poderão constituir crime de abuso de auto ridade (Lei n. 4.898, de 9-12-1965, arts. 3.° e 4..°) ou crimes pre vistos no Código Penal (culposos ou dolosos), ou ambos, conforme as circunstâncias. Embora a norma permissiva em foco tenha, na grande maioria das hipóteses, endereço certo aos agentes do Poder Público (no exer cício de suas funções), aplica-se, igualmente, aos particulajes quan do atuam sob a imposição de um dever legal. No direito de família, por exemplo, têm os cônjuges o dever de guarda e educação dos filhos (CC, art. 131, IV ). E, no cumprimento desse dever, po dem ter a necessidade de praticar alguma sorte de constrangimento que, fora do exercício do pátrio poder, constituiria ato ilícito. Se não cometem excessos, na correção dos filhos, atuam sob o pálio desta causa de justificação3. Havendo excessos, obviamente ‘ não. Aqui também se exige o já mencionado elemento subjetivo, isto é, a orientação de ânimo no sentido de cumprir dever imposto por norma legal. A propósito, salienta Andreucci, em seu trabalho so bre o tema: “A corrente subjetiva expressa melhor a realidade nor mativa . . . ” “A corrente subjetiva melhor é a que serve, porque o momento espiritual vem como garantia da legalidade intrínseca, e
1. Deutsches Strafrecht, cit., p. 353-4. 2. Direito penal, cit., v. 1, p. 211. 3. Há autores que tratam esta hipótese como exercício regular de direito (cf. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 8 ). Preferimos, entretanto, considerar in casu a anterioridade lógica d'o dever de educar sobre os direitos daí decorrentes. Os resultados, contudo, são os mesmos, 212
não meramente extrínseca, barrando a infiltração eventual de atos puramente arbitrários” 4.
b)
Exercício regular de direito
217. Segundo conhecida fórmula de Graf zu Dohna, “uma ação juridicamente permitida não pode ser, ao mesmo tempo, proi bida pelo direito. Ou, em outras palavras, o exercício de um di reito nunca é antijurídico” 6. Aí está o fundamento desta causa excludente de ilicitude. Salve-se, porém, o abuso de direito. Por isso é que a lei pá tria dá ênfase ao exercício “regular” de direito (CP, art. 23, III, in fine, e CC, art. 160, I, in fine). Exercício “regular” é o que se contém nos limites impostos pelo fim econômico ou social do direito em causa, pela boa fé e pelos costumes6. O exercício de um di reito com o intuito de prejudicar caracteriza o seu irregular exercí cio, ou seja, o abuso de direito, se o dano ocorre. Nessa hipótese, bem como naquelas em que o agente excede os limites objetivos de seu próprio direito, fica excluída a causa de justificação. 218. A defesa da posse, pelo desforço imediato, autorizada pelo art. 502 do Código Civil, é um exemplo de exercício regular de direito no caso de esbulho possessório, quando o desforço se realiza após a consumação do esbulho, sem o requisito da atualidade. Na hipótese de turbação, trata-se de legítima defesa da propriedade, que, para os fins penais, nem precisaria vir expressa no Código Civil. No esbulho, contudo, descaracterizada a legítima defesa, por au sência da atualidade, o desforço imediato cai sob o domínio do exer cício de um direito, instituído pelo mencionado art. 502, à luz do qual deve ser examinado. 219. A lei e os costumes toleram que pais e tutores imponham castigos corporais moderados aos menores sob sua guarda. No Brasil, já não se estende essa faculdade aos mestres. A tendên 4. Ricardo Antunes Andreucci, Violência e estrito cumprimento de dever legal, ia. Estudos e pareceres de direito penal, p. 36. 5. La estructura, cit., p. 47. 6. Cf. Projeto de Código Civil, art. 185. 213
cia, aliás, é que o emprego de novos métodos educacionais e peda gógicos tornem obsoletas ou de aplicação excepcional tais práticas. Alguns autores consideram justificados tais castigos, desde que não excessivos nem causadores de lesões, pelo denominado direito correcional. Pensamos que a educação de filhos e pupilos é antes um dever dos pais e dos tutores, pelo que os meios para atingir tal fim situam-se no âmbito do estrito cumprimento do dever legal e de vem ser avaliados com muito rigor para evitarem-se abusos conde náveis, verdadeiras torturas físicas que a truculência dos adultos ainda emprega contra os pequeninos desprotegidos, na maior parte dos casos mais carentes de afeto.
c)
Consentimento do ofendido
220. O Código Penal não inclui entre as excludentes de ilicitu de o consentimento do ofendido. Vimos, entretanto (supra, n. 159), que o consentimento expresso do ofendido pode e deve ser reputado, entre nós, uma causa supralegal de justificação, quando se imponha de fora do tipo para a exclusão da ilicitude (o Einwilligung do direito alemão) de fatos lesivos a bens plenamente disponíveis por parte de seus respectivos titulares. Aníbal Bruno é dessa opinião, admitindo o consentimento como causa de exclusão do ilícito, quando decorra de vontade juridicamente válida do titular de um bem disponível 7. Assim, também, Jescheck, para quem “correto é compreender o consentimento como causa de justificação” 8. É preciso, entretanto, não esquecer. que o consentimento do titular do direito desempenha mais de uma função na área penal. Casos há em que se apresenta como elemento essencial do tipo (rapto consensual, art. 220; sedução, art. 217). Outros há em que sua presença ou ausência é totalmente irrelevante (homicídio, art. 121). Outros há em que anula a própria tipicidade por excluir o dissenso da vítima que constitui elemento essencial do tipo (in trodução de animais em propriedade alheia, art. 164; apropriação indébita, art. 168). Finalmente, outros há em que atua como ver 7. Direito penal, cit., t. 2, p. 19-20. 8. Lehrbuch, cit., p. 278. José Henrique Pierangelli, em excelente mono grafia, salienta que: “ . . . o consentimento do ofendido pode-se constituir em causa de exclusão da antijuridicidade unicamente nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce (‘acordo’ ou ‘consentimento’) e que pode livremente dele dispor” (O consen timento do ofendido na teoria do delito, p. 92). 214
dadeira causa de justificação, como nos èxémplos, já vistos, do crime de dano (art. 163) e de cárcere privado (art. 148), 221. Note-se que não incluímos nesta causa de justificação, de acordo aliás com a doutrina dominante9, as intervenções cirúr gicas, realizadas dentro das normas da arte médica. Nesta hipótese exclui-se não só a ilicitude mas também a tipicidade do fa to 10, realizado não a dano mas em benefício de quem o suporta. 222.
São requisitos do consentimento justificante:
a) que o ofendido tenha manifestado sua aquiescência livre mente, sem coação, fraude ou outro vício de vontade; b ) que o ofendido, no momento da aquiescência, esteja em condições de compreender o significado e as conseqüências de sua decisão, possuindo, pois, capacidade para tanto; c) que o bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão se situe na esfera de disponibilidade do aquiescente; d) finalmente, que o fato típico penal realizado se identifique com o que foi previsto e se constitua em objeto de consentimento pelo ofendido. 223. A doutrina alemã acolhe igualmente o consentimento presumido para solucionar certos problemas na área das interven ções médicas (exemplo: aborto necessário, em casos de emergência, quando a paciente não esteja em condições de manifestar sua von tade) e do direito de correção de crianças, por parte de terceiros (exemplo: travessuras graves praticadas na ausência dos respon sáveis)11. Na primeira hipótese, o direito brasileiro soluciona a questão, por expressa disposição legal, através do instituto do estado de ne cessidade (CP, arts. 128, I, e 146, § 3.°, I),. Na segunda hipótese, o que exceder dos limites do estado de necessidade ou da legítima defesa afigura-se-nos uma indébita intromissão na seara alheia, to talmente injustificada, conforme reconhece Jescheck12. Não vemos, pois, necessidade de sua admissão no direito bra sileiro. 9. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 281-2. 10. Gallas, La teoria del delito, cit., p. 31. 11. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 287. 12. Lehrbuch, cit., p. 288. 215
IV — Culpabilidade
§ 16. Noção e evolução da idéia da culpabi lidade. Culpabilidade por fato doloso 224, _ A palavra “culpa”, em sentido lato, de que deriva “culpa bilidade”, ambas empregadas, por vezes, como sinônimas, para designar um dos elementos estruturais do conceito de crime, é de uso muito corrente. Até mesmo as crianças a empregam, em seu vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma falta, pòr uma travessura. Utilizamo-la a todo instante, na linguagem comum, para imputação a alguém de um fato condenável. Seria incorreto dizer-se, por exemplo: Pedro tem culpa pelo progresso da empresa que dirige; o mesmo não aconteceria, porém, se dissésse mos: Pedro tem culpa pela falência da empresa que dirige. O tèrmo culpa adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atri buição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento. Vere mos que o seu significado jurídico não é muito diferente. Todavia, se olharmos de frente a culpabilidade jurídico-penal, será fácil perce ber que não estamos diante de algo tão simples como parece. Para transformá-la em um tema bastante problemático, basta que formu lemos três ordens de indagação: 1.a ) Que coisa é a culpabilidade? Será um fenômeno psíqui co? Será um juízo que se emite a respeito de algo? Será ambas as coisas? 2.a) Onde está a culpabilidade? Em que lugar poderemos encontrá-la? Estará ela no psiquismo do criminoso, ou estará na 216
cabeça do juiz que julga o criminoso? Estará ela, porventura, nos dois lugares? 3.a) Por fim, qual o objeto do juízo de culpabilidade? Será ele a pessoa do criminoso? Será ele apenas o fato criminoso, isto é, um fato episódico na vida do criminoso? Ou será ele ambas as coisas mencionadas? Vamos tentar responder a essas indagações, passando em revista, de forma muito rápida e sumária, a evolução da idéia de culpabili dade, sem preocupação com detalhes irrelevantes para o fim a que nos propomos.
a)
“Nullum crimen sine culpa”
225. O direito penal, em sua origem, parece ser de cunho emi nentemente intimidativo. Deve ter surgido, supomos nós, da amarga experiência da dor e do sofrimento humanos. Sabendo-se, por uma imediata e simples constatação empírica, que o homem foge, em geral, quanto pode, da dor e do sofrimento, as comunidades huma nas, desde tempos remotos, procuraram intimidar seus membros para que não realizassem fatos que pusessem em risco a paz e a ordem, mediante a ameaça de inflição de uma dor, ou de um sofrimento, ao eventual agente desses mesmos fatos. No antigo direito germâ nico, o crime ( Verbrechen) era uma forma de “quebrar” (brechen) a p a z . . . “um procurar sofrimento (W ehtun)”. .. 1. A palavra latina poena, de que derivou pena, entre inúmeros sentidos, tinha também o significado de “dor”, “sofrimento” -2. Esse significado continua bem vivo, ainda hoje, entre nós, na linguagem literária e na comum 3. Ao genial Camelutti não passou despercebida a rela ção entre pena e dolore 4, que, em nosso entender, pode ser vista, na origem da pena, mais nitidamente do que a discutível identificação entre pena e vingança privada 5. 1. Karl von Amira, Germanisches Recht, apud Iside Mercuri, Introduzione, in Codice Penale delia Republica Democraiica Tedesca. 2. F. R. dos Santos Saraiva, Novissimo dicionário latino-portuguez. 3. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa. 4. Principi del processo penale, p. 30. 5. Com inteira razão von Liszt: “ . . . l a opinión, muy extendida, que ve la raiz de la pena en el instinto de venganza, manifestándose a través del 217
O conceito de pena, como prevenção geral do crime, embora desenvolvido tecnicamente muito mais tarde, pode, portanto, ser infe rido da idéia de pena existente desde tempos os mais remotos. 226. E, agora, atente-se para o seguinte: a pena criminal assim entendida como instrumento de intimidação, isto é, como medida de prevenção geral, só adquire algum sentido se a correlacionarmos com a noção de evitabilidade do fato praticado. Vale dizer: só se pode intimidar o homem, com algum proveito, com a ameaça de pena, de dor ou de sofrimento, para que deixe de praticar fatos indesejáveis, nocivos ao semelhante, à tribo, à comunidade, à sociedade, quando tais fatos indesejáveis são evitáveis, ou, por outras palavras, quando esteja na esfera do indivíduo membro fazer ou não fazer o que se quer evitar por meio da ameaça referida. Uma pena cominada para um espirro (ato impulsivo automático), para a sede (estímulo orgâ nico incontrolável), para o ódio ou para algum tipo de aversão seria uma total inutilidade, além de absurda. Tal constatação pode parecer óbvia, evidente por si mesma, mas, apesar disso, representou difícil, tardia e importante conquista da humanidade, após longo período histórico no início do qual utilizouse da pena criminal contra seres humanos, animais e até contra obje tos inanimados. A responsabilidade era considerada objetivamente. Só interessava o fato exterior danoso. Desconsiderava-se a existên cia de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente. O direito penal era, então, um puro direi to penal do resultado. A responsabilidade era objetiva. Com o passar do tempo e com o aprimoramento da cultura, começou-se a perceber a grande diferença existente entre o causar inevitavelmente um dano e o causar um dano evitável. Da observaínstinto de conservación de los indivíduos, requiere rectificación. La expulsión de la asociación de la paz, como venganza de sangre, no es reacción del indivíduo, sino reacción de la asociación de tribns (Stammesverband) , como mandataria del orden de la paz y del derecho. Las acciones contra las cuales se dirige la reacción aparecen siempre inmediata o mediatamente, como violación de los intereses comunes de la sociedad familiar, ya sea como perturbación de la paz o Como quebrantamiento del derecho. La pena es, pues, desde su origen, reacción social (conservación) contra las acciones antisociales” (Tratado, cit., t. 1, p. 20). 218
ção talvez dos fenômenos físicos da natureza, percebeu-se que existe algo que distingue, por exemplo, a morte causada por um raio da morte resultante de um assassinato. E percebeu-se mais: percebeuse que esse algo, esse quid que distingue um fato do outro, constitui um importante aspecto só peculiar ao agir humano — a evitabilidade do fato*. Percebeu-se, ainda, que essa evitabilidade do fato residia no interior do ser humano, no seu psiquismo, isto é, na faculdade que tem o homem de prever os acontecimentos, de não querer ou de que rer esses acontecimentos e, portanto, de evitá-los, de provocá-los em certas circunstâncias, de manipulá-los. Com isso, ao lado da evitabilidade descobriu-se igualmente a previsibilidade e a voluntariedade do resultado danoso. Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do direito penal está marcada de retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia de crime, de alguns elementos psíquicos, ou anímicos — a previsibilidade e a voluntariedade — como condição da aplicação da pena criminal — nullum crimen sine culpa. E assim teve início uma nova era, do ponto de vista penalístico.
b)
Concepção psicológica da culpabilidade
227. Sobre esses dois elementos anímicos, um volitivo, outro intelectual (o voluntário e o previsível), construíram-se dois impor tantes conceitos penalísticos — o dolo e a culpa. Dolo, quando há voluntariedade e previsão do fato; culpa, em sentido estrito, quando há a previsibilidade, sem a voluntariedade do resultado dano so. O desenvolvimento dessas idéias, no decorrer dos séculos, desaguou na elaboração de um conceito dogmático puramente psicológico da culpabilidade, que chegou até nossos dias: culpabilidade é uma ligação de natureza anímica, psíquica, entre o agente e o fato crimi noso. Todavia, nesse conceito, que já representa uma enorme conquis ta, só encontramos os mencionados elementos anímicos. A culpabi 6.
Bettiol, D iritto penale, cit., p. 356. 219
lidade esgota-se nestas duas únicas relações que se supunha pudesse existir entre o agente e seu fato: o dolo e a negligência. Dentro de tal construção, o dolo e a culpa em sentido estrito não só eram as duas espécies de culpabilidade como também a totalidade da culpabilidade, pois não se enxergava nesta última outro elemento além dos dois primeiros. Admitia-se, porém, como pressuposto da culpa jurídico-penal a imputabilidade, entendida como capacidade de ser culpável. 228. É preciso cuidado, contudo, para não supor que a teoria psicológica da culpabilidade, em sua fase já elaborada como a apre sentamos, seja histórica e cronologicamente a primeira que se cons truiu a respeito da culpabilidade. A essa conclusão pode-se opor a afirmação de que o conceito de dolo entre os romanos não era pura mente psicológico. Ao contrário, apresentava-se mais complexo e enriquecido. Distinguiam, com efeito, os romanos duas espécies de dolo: o dolus mcãus e o dolus bonus. O dolus bonus era empregadopara designar a astúcia, a sagacidade para enganar. O dolus malus era essa mesma astúcia quando empregada não simplesmente para enganar, mas para a obtenção de um proveito ilícito; era a intenção má, perversa, que dirigia um ato criminoso 7. Percebe-se, com nitidez, que o dolus malus dos romanos constituía-se do elemento anímico-intencional e de um plus: a sua valoração como algo mau, perverso, ilícito. Era, pois, um dolo valora do, normativo, adjetivado de “mau”. Na Idade Média, vamos encontrar esse mesmo dolus malus, conforme ensina Jiménez de Asúa: “No direito romano, no canôni co, no medieval e até em textos do século passado, se adjetivava o dolo de mau em contraposição ao bom, segundo o artifício fosse dirigido a fins bons ou perversos” 8. E tal concepção dominou até há bem pouco, conforme noticia Galdino Siqueira nos seus comentá rios ao Código de 1890: “Conceituando o dolo, o nosso anterior Código de 1830 fazia consisti-lo na ‘má-fé’, isto é, no conhecimento
7. Cario Gioffredi, í príncipi del dirítto penale romano, p. 67-8; Manzini, Trattato,_ v. 1, p. 706, nota 4; Francisco de Assis Toledo, O erro, cit., p. 10-1. 8. Tratado, cit., v. 5, p. 306. 220
do mal e intenção de o praticar (art. 3.°), conceito mantido pelo vigente Código (arts. 24 e 42, § l .° ) ” 9.
Como se vê, um dolo tão carregado de qualificativos dificilmente poderá ser reputado mero dolo psíquico, ou dolo natural. Não obstante, em meados do século passado, o problema da culpabilidade centralizou-se em torno da discussão sobre o livre-arbí trio e o determinismo. Como reação a essa infindável contenda, assistimos ao aparecimento de uma espécie de antipatia a toda forma de pensamento problemático, que possa ter alguma influência teoló gica ou filosófica, tendência essa que conduziu ao positivismo jurídico. Com isso, constrói-se — agora sim — um conceito puramente psicológico de dolo, sob a paternidade da escola técnico-jurídica. Em Manzini vamos encontrar uma concepção de dolo puramente psicológica, in verbis: “O art. 43 declara que o delito é doloso, ou segundo a intenção, quando o evento, danoso ou perigoso, resultado da ação ou omissão da qual a lei faz depender a existência do crime, é pelo agente previsto e querido como conseqüência da própria ação ou om issão.. . ” E mais adiante: “Para a noção de delito doloso se exige que seja voluntário e consciente não só o fato causai mas tam bém o evento, o qual deve por isso ser previsto e querido como efeito de tal ca u sa.. . ” Todavia, “o aceno do art. 43 ao evento ‘de que a lei faz depender a existência do crime’ esclarece qüe se deve con siderar o efeito da ação ou da omissão que constitui requisito da noção do crime, o que não implica deva o agente, ou omitente, saber que seu fato é reprimido pela lei penal. Essa consciência não é necessária para a subsistência do d o lo .. . ” 10. Essa noção psicológica do dolo tem apoio na interpretação de preceitos do Código italiano (o famoso Código Rocco). E tão grande influência exerceu no pensamento jurídico peninsular que, mais recentemente, Antolisei, após conceituar o dolo como repre sentação e vontade (p. 255), afirma: “Portanto, deve considerarse que, em nosso ordenamento penal, a consciência da ilicitude do fato não é necessária para a existência do dolo” u .
9. Direito penal brasileiro, 2. ed., p. 299. 10. Trattato, cit., v. 1, p. 707-9. 11. Manual de derecho penal, p. 262. 221
Ora, ver no dolo simples representação e vontade, para aqueles que entendem a culpabilidade como puro “nexo psíquico”, é o mesmo que afirmar um conceito meramente psicológico da culpabilidade. Para os penalistas que adotam tal entendimento, se indagarmos o que é a culpabilidade e onde está a culpabilidade, a resposta virá logo: 1.°) seu fato;
a culpabilidade é a ligação psicológica entre o agente e
2.°) a culpabilidade, por isso mesmo, só pode estar no psiquismo do agente.
c)
Concepção normativa da culpabilidade
229. Vimos que essa noção psicológica não coincide com a noção romana, canônica ou tradicional, pelo que não pode ser repu tada, cronologicamente, como sendo a primeira formulação do conceito de culpabilidade. O mais correto seria dizer que a noção psicológica, embora apresente certo requinte de tecnicismo jurídico, representou, em verdade, um evidente retrocesso, se comparada com a noção de culpabilidade desenvolvida pela teologia moral dos últimos escolásticos, muito mais rica. Nesta, encontramos alguns conceitos normativos, desenvolvidos a partir da filosofia aristotélica, como o error invincibilis, a ignorantia crassa e ajjectata, que ainda boje po dem ser considerados exemplares, no dizer de Welzel12. Assim, do inevitável confronto entre a teoria psicológica da culpabilidade e um passado grandioso sob o aspecto do desenvolvi mento jurídico e moral, era de se esperar que a primeira se revelasse insatisfatória, tão logo começasse a definhar o tecnicismo jurídico que a patrocinava. Contribuiu decisivamente para isso a retomada do aprofunda mento do exame dos elementos psicológicos já referidos. No início do século, descobriu-se que, na culpa inconsciente, também denomi nada culpa sem previsão, ou culpa derivada de ignorância, não existe qualquer ligação psicológica entre o agente e o seu fato. (Um exemplo atual temo-lo nos acidentes de trânsito. Alguém dirige um 12. 222
Diritto naturale, cit., p. 93-4.
veículo com excesso de velocidade, em uma rua deserta, e de repente colhe um pedestre que surge inesperadamente. Onde o vínculo psi cológico entre o fato e o agente? Nenhum, porque, no exemplo dado, sequer houve previsão do resultado.) Assim, ou se nega a culpabilidade em tais casos, ou se renuncia a um conceito unitário de culpabilidade, ou se introduz na culpabili dade um outro elemento, comum ao dolo e à culpa stricto sensu, capaz de unificar essas duas “espécies” de culpa. Preponderou a última solução, por ser a mais sensata. Foi então que Frank, em sua obra editada em 1907 (Über den Aufbau des Schuldbegriffs), lançou as bases da denominada “teoria normativa da culpabilidade”, introduzindo no conceito de culpa um elemento normativo, um juízo de valor, a reprovabilidade do ato praticado, Para ser culpável não basta que o fato seja doloso, ou culposo, mas é preciso que, além disso, seja censurável ao autor. O dolo é a culpa stricto sensu deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a ser “elementos” dela. A culpabilidade se enriquece, pois, com novos elementos — o juízo de censura que se faz ao autor do fato e, como pressuposto deste, a exigibilidade de conduta conforme à norma. Essa teoria, iniciada por Frank, atingiu em Mezger culminâncias quase insuperáveis, recebendo deste último penalista os seus contor nos definitivos. Podemos sintetizá-la nos seguintes termos: “Dentro desta concepção normativa, a culpabilidade é, pois, essencialmente, um juízo de reprovação ao autor do fato, composto dos seguintes' elementos: imputabilidade; dolo ou culpa stricto sensu (negligência, imprudência, imperícia); exigibilidade, nas circunstâncias, de um comportamento conforme ao direito. Assim, a censura de culpabili dade pode ser feita ao agente de um injusto típico penal se ele, ao praticar a ação punível, não agiu de outro modo, conformando-se às exigências do direito, quando, nas circunstâncias, podia tê-lo feito, isto é: estava dotado de certa dose de autodeterminação e de com preensão (imputabilidade) que o tomava apto a frear, reprimir, ou a desviar sua vontade, ou o impulso que o impelia pàra o fim ilícito (possibilidade de outra conduta) e que, apesar disso, consciente e 223
voluntariamente (dolo), ou com negligência, imprudência ou imperícia (culpa stricto sensu), desencadeou o fato punível” 1S. Se indagarmos aós seguidores desta corrente “o que é a culpa bilidade” e “onde ela se encontra”, receberemos a seguinte resposta surpreendente: a) culpabilidade é um juízo de valor sobre uma situação fática. de ordinário psicológica; b) os seus elementos psicológicos (dolo ou culpa) estão no agente do crime, mas o seu elemento normativo está no juiz, não no criminoso. Rosenfeld e também Antolisei criticaram esta construção afir mando que com ela retirou-se a culpabilidade do psiquismo do réu para colocá-la na cabeça de quem julga, de quem emite o denomi nado juízo de censura. Tal crítica foi refutada por Mezger ao afirmar que realmente assim é, pois, “só mediante um juízo valorativo de quem julga, a realidade de fato psicológica se eleva ao conceito de culpabilidade” 14.
d)
Concepção da culpabilidade na doutrina finalista
230. A concepção normativa da culpabilidade, se, de um lado, representou grande avanço dogmático, de outro, significou um retor no: a retomada do curso evolutivo do direito penal séccionado pela concepção psicológica. Essa retomada está precisamente no conceito de dolo que volta a ser o dolus nrnlus de que já falamos. Com efeito, para a culpabilidade normativa o dolo é também normativo, isto é, voluntariedade, previsão e mais a consciência atual da ilicitude. O elemento normativo do dolo é a consciência da ilicitude que, estando presente, possibilita o juízo de censura de culpabilidade. Ora, o dolo mails consciência da ilicitude é precisa mente o dolo mau, isto é, o agente age voluntariamente, com previ são do resultado e, além disso, persegue um fim que sabe ilícito15. 13. Nosso O erro, cit., p. 8. 14. Tratado, v. 2, p. 45. 15. Nesse sentido Figueiredo Dias: “A consideração do dolo como ele mento da culpa jurídieo-penal logo conduz, para muitos, à conclusão de que 224
Façamos aqui uma pausa © perguntemos: que dizer dessa con cepção normativa da culpabilidade e desse dolo normativo? Mezger percebeu a insuficiência de ambos, tão logo procurou transplantar para o âmbito do direito penal o resultado de certas investigações criminológicas. Consideremos dois tipos criminolôgicos bem conhecidos — o do criminoso habitual e o do criminoso por tendência. Tentemos aplicar-lhes o dolo normativo. £ discutível que isso seja possível. Raciocinemos com um exemplo bem brasi leiro: um delinqüente profissional do sertão, ou um delinqüente ha bitual das favelas do Rio, ou de São Paulo. Esse tipo criminológico, em geral menor desamparado, ou nascido de família desajustada, é criado e educado, desde a mais tenra infância, em um ambiente social agressivo, onde a criminalidade é a tônica. Para ele o furto, o roubo, os crimes contra a pessoa, é o normal, é o certo. Não chegou a formar em seu espírito uma consciência ética, nem teve oportunidade para isso. Os seus padrões de conduta são modelados segundo as regras do crime. Não sabe distinguir o certo do errado, o reto do torto, o lícito do ilícito. Como exigir-se de um desses seres humanos às avessas que tenha a exata “consciência atual da ilicitude”, quando jamais soube o que é ilícito? Mas, se a consciência atual da ilicitude é elemento constitutivo do dolo, a conclusão é a de que um tal tipo criminológico, quando comete crime, age sem dolo. Inexistindo dolo, não há culpabilidade e, sem esta, não há possibilidade de se aplicár a pena criminal. Partindo desse raciocínio, Mezger descobriu uma falha na teoria normativa da culpabilidade e na teoria do dolo, pois ninguém nega que o criminoso habitual, ou por tendência, constitui precisamente um perigoso delinqüente e, portanto, o mais necessitado da pena criminal, ao menos como prevenção especial. aquele se não esgota no ‘conhecimento e vontade de realização de um fato típico’ (não é portanto mero ‘dolo natural', ‘dolo do fato’ ou ‘dolo do tipo’). A este há de acrescer um elemento furídico-normativo específico que seja expressão da valoração em que o dolo se integra e o tome um autêntico ‘dolo jurídico’, ‘dolo normativo’ ou dolus malus, só ele capaz de fundamentar a aplicação ao agente da moldura penal mais grave prevista para o fato. Ora, o único elemento que responde total e justamente a estes requisitos ó a consciência atual da ilicitude__ ” (O problema, cit., p. 146). Igualmente Soler, Derecho penal argentino, v. 2, p. 87.
225
Como resolver o impasse? O próprio Mezger elaborou o que supôs ser a solução, cons truindo um adendo à culpabilidade normativa, por ele denominado “culpabilidade pela condução de vida” (Lebensführungsschuld) . Dedicaremos ao tema um título especial, devido à importância que vai adquirindo ultimamente. O que importa por ora dizer é que, se a teoria psicológica da culpabilidade não satisfez às exigências do direito penal, o mesmo ocorreu com a teoria normativa, em certa fase de sua evolução, que logo se revelou insuficiente para abarcar e justificar a condenação de perigosos delinqüentes em um mundo de criminalidade ascendente. 231. A partir dessa constatação, o primeiro esforço sério e, sem dúvida, o mais importante para um rompimento com a tradição, com todo um passado penalístico respeitável, foi empreendido por Hans Welzel, jusfilósofo e professor na Universidade de Gõttingen, mais tarde na Universidade de Bomi. Não poderíamos explanar aqui toda a extensa revolução operada por Welzel e por seus segui dores no sistema do direito penal. Veremos, pois, apenas o que interessa para a culpabilidade e, mesmo assim, de forma bastante sumária. Relembremos que, para a teoria normativa, a culpabilidade pressupõe a imputabilidade e se compõe de: — dolo e culpa stricto sensu', — possibilidade e exigibilidade de outra conduta; — um juízo de censura ao autor por não ter exercido, nas circunstâncias, essa possibilidade. Dentro dessa mesma teoria, o dolo, que faz parte da culpabi lidade, compõe-se de: — um elemento intencional, volitivo, isto é, a voluntariedade; — um elemento intelectual, a previsão do fato; — um elemento normativo, a consciência atual da ilicitude. Welzel está, em princípio, de acordo com todos esses elementos, mas os considera muito mal distribuídos na estrutura do crime. Não compreende o ilustre penalista como se pôde situar o dolo dentro do juízo de culpabilidade e, com isso, deixar a ação humana sem 226
o seu elemento característico, fundamental, a intencionalidade, isto é, o seu finalismo. Isso vai contra a estrutura ontológica da ação, pois esta, como se sabe, não pode ser desligada de seu finalismo direcional, sob pena de se fraturar a realidade. Toda ação humana é essencialmente finalista, é dirigida 1a um fim. Esse finalismo, o elemento intencional, inseparável da ação, é o seu elemento dire cional, é, em resumo, o dolo. Tomemos, por exemplo, uma tentativa de homicídio, com feri mentos no corpo da vítima. Exteriormente, nada, absolutamente nada, distingue esta tentativa de homicídio de um crime de lesões corporais. O que faz este ferimento deixar de ser uma simples lesão para transformar-se em um fato muito mais grave (a tentativa de homicídio) é tão-somente a intenção de matar que dirigiu a ação cri minosa do agente. Se retirarmos da ação essa intencionalidade, o objetivo de matar, cairemos em um beco sem saída, pois não restará mais qualquer distinção possível entre a lesão corporal e a tentativa de homicídio. O mesmo raciocínio vale para todos os delitos dolosos: veja-se o caso do cirurgião que abre com o bisturi o ventre do paciente e o do homicida que faz o mesmo com a faca; o que distingue essas duas ações, exteriormente iguais, senão a intenção de curar por parte do médico e a intenção de matar por parte do homicida? Na apro priação indébita: o que a distingue de um simples gesto de prolon gamento da posse da coisa, senão a intenção de inverter o título dessa mesma posse? E assim por diante16. 16. Nem é necessário ser jurista para perceber a verdade incontestável dessas conclusões. Eis o que nos diz o sociólogo Pitirim A. Sorokin, em sua obra magistral, Las filosofias sociales de nuestra época de crísis: “Sin el componente intencional, no hay ninguna diferencia entre rapto, adultério, ma trimônio o convivência matrimonial legal, porque los actos físicos pueden ser idéntioos en todas estas acciones que varían tan profundamente en su intencionalidad y en su significadón cultural. Un billete de mil dólares fi sicamente idêntico, entregado por A a B con idêntico movimiento de la mano, puede socioculturalmente significar ya ‘el pago de una deuda’, ya ‘una ayuda caritativa’, un ‘sobomo’, o una ‘inversión’, o la ‘inducción a un asesinato’, etc. Y, al contrario, los mísmos fenômenos llenos de intencionalidad cultural pueden ser objetivados o exteriorizados a través de diferentes vehíeulos materiales’ o agentes humanos vivientes: el odio de A a B, puede expresarse en miles de fenômenos materiales y orgânicos, tales como injurias, apalea227
Por meio desse raciocínio Welzel percebeu um fato incontestável: o elemento intencional, portanto o dolo, faz parte da ação humana e não do juízo de culpabilidade. Com isso, extraiu Welzel o dolo e a culpa stricto sensu da culpabilidade e incluiu-os no conceito de ação. A conseqüência lógica, inarredável, foi igualmente a locali zação do dolo e da culpa stricto sensu no tipo legal de crime, pois, se este é a descrição da ação proibida, e se o dolo e a culpa per tencem à ação, não se pode deixar de situar no tipo todos os ele mentos estruturais da ação. Assim, com Welzel, os tipos passam a ser verdadeiros tipos do losos e tipos culposos de crime. Mas não foi só. Ao examinar o dolo, notou Welzel que o im passe a que chegaram Mezger e seus seguidores diante do criminoso habitual ou por tendência, já por nós examinado, consistia em um detalhe: a inclusão no dolo da consciência da ilicitude e a exigência da atualidade desta. Retirada do dolo a consciência da ilicitude, decretar-se-ia, de vez, a morte do antigo dolus malus dos romanos, que já vivera muito e não mais correspondia às necessidades de um direito penal moderno, impregnado de contribuições valiosas da criminologia. De resto, essa nova operação não traria qualquer pre juízo para a culpabilidade normativa, visto como a consciência da ilicitude poderia ser melhor situada no interior da própria culpabi lidade. Além disso, poder-se-ia reelaborar aquele conceito norma tivo para transformá-lo na “consciência potencial da ilicitudé>\ Realizado esse verdadeiro intercâmbio entre os elementos esfiriturais do crime, como ficam o dolo e a culpabilidade? miento, envenenamiento, disparos, asfixia, aterrorizar, destruir las propiedades de B, danar sus personas queridas, etc.” (p. 234-5). “ ...C om o se ha dicho antes, toda intencionalidad que se superpone al fenômeno físico o biológico cambia radicalmente su naturaleza sòciocultural. Un valor religioso superpuesto a un pequeno trozo de madera ( churinga) lo transforma en un totem sagrado. Cuando un trozo de pano puesto al extremo de un paio largo se convierte en ‘una bandera nacional', se convierte en un objeto por el cual se sacrifica hasta la vida. Cuando un débil organismo es declarado rey o ‘buda’ se transforma en una majestad’ poderosa, soberana, sacrosanta, o en ‘santidad’. Cuando estos mismos monarcas, aunque sus organismos permanezcan inalte rados, son despojados de su valor intencional sociocultural, como al ser ‘desposeídos’ o ‘derribados’, su poder, prestigio, sus funciones, su posición social y personalidad cambian fundamentalmente; (Je majestades’ y santidades’ se transforman en ‘exilados’ despreciados y odiados” (p. 236). 228
Façamos um quadro esquemático de ambos; dolo do tipo — inteneionalidade = finalidade da ação (elemento volitivo); — previsão do resultado (elemento intelectual). culpabilidade — imputabilidade; — consciência potencial da ilicitude; — possibilidade e exigibilidade, nas circunstâncias, de um agirde-outro-modo; — juízo de censura ao autor por não ter exercido, quando podia, esse poder-agir-de-outro-modo. Vê-se, pelo exposto, que a missão de Welzel limitou-se a apa nhar os resultados da teoria psicológica e da teorià normativa e, a partir da arrumação de um novo quadro (neues Bild) do sistema do direito penal, dar uma nova redistribuição sistemática aos elementos estruturais do crime. E, com isso, possibilitou-se uma superação de impasses a que haviam chegado penalistas anteriores, em alguns as pectos importantes. Voltemos ao exemplo do criminoso profissional do sertão, ou do criminoso habitual das favelas. Quando mata ou furta, age do losamente, porque tem a intenção de praticar o fato e sabe que o pratica. Dele não se exige um dolo mau, adjetivado, nem mesmo a consciência ética de estar praticando um pecado. Basta a inténciònalidade e a previsão do fato criminoso. *Age também culpavelmente porque: sabe, ou pode saber, num juízo leigo, profano, que faz algo proibido (consciência potencial da ilicitude); se é imputável, tem a possibilidade de evitar, ou de inibir, o ato lesivo, o injusto típico; sua conduta é censurável, portanto, por não ter exer cido, nas circunstâncias, essa possibilidade. Atua, pois, dolosa e culpavelmente. Resumindo, se indagarmos aos inúmeros seguidores da corrente finalista o que é a culpabilidade e onde pode ela ser encontrada, re ceberemos esta resposta: 229
1.a) culpabilidade ê, sem dúvida, um juízo vaíorativo, um juízo de censura que se faz ao autor de um fato criminoso; 2.a) esse juízo só pode estar na cabeça de quem julga, mas tem por objeto o agente do crime e sua ação criminosa. Para compreender-se esta importante construção, basta meditar sobre a famosa distinção estabelecida por Graf zu Dohna entre valoração do objeto e objeto da valoração. A culpabilidade é uma valoração; não pode estar, portanto, misturada com o objeto da mes ma valoração que lhe é exterior. Assim, culpabilidade é apenas a censurabilidade, isto é, a valoração; o dolo situa-se no objeto da valoração. 232. Essa última corrente, incluída entre as chamadas “teorias da culpabilidade”, ganhou força na Alemanha com aceitação de alguns de seus postulados pela reforma penal dos últimos anos. É o que registra o Strafgesetzbuch Kommentar, de Schõnke e Schrõder, nos comentários ao § 17 do StGB, in verbis: “Através do preceito esclareceu-se que a falta de consciência da antijuridicidade ( Widerrechtlichkeit) não atinge o dolo como componente do injusto (v. § 15, nota 100); com isso ganhou força legislativa a denominada teoria da culpabilidade (Schuldíheorie) pela qual certamente fica em aberto como há de ser juridicamente valorado o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação” (p. 249). Vê-se perfeitamente, no trecho citado, que a falta de consciên cia da ilicitude, no atual Código alemão, não atinge o dolo. E não o atinge precisamente porque este — o dolo — está no tipo, ao passo que a consciência da ilicitude está na culpabilidade. Idêntico raciocínio aplica-se à atual redação dos arts. 20 e 21 do nosso Códi go Penal, pelos quais se adotou a “teoria limitada da culpabilidade” (v., infra, o erro na reforma penal). Aliás tal conclusão já estaria autorizada pelo parágrafo único do art. 15 do Código de 1940 (atual parágrafo único do art. 18), diante da exigência de prescrição expres sa para o crime culposo. Que quer isso dizer? Quer dizer que os tipos de crime exis tentes, isto é, previstos em lei, são em regra dolosos. Para que alguém possa ser punido a outro título, ou seja, por crime culposo, deve haver outra tipificação expressa também em lei (“salvo os casos expressos em lei. . . ” ). 230
Há, pois, em nossa legislação duas espéçies de tipos penais: o tipo doloso e o tipo culposo. Tomemos o tipo do auto-aborto do art. 124 do Código Penal: “provocar aborto em si m e s m a ...” 17. Não está prevista para esse crime a forma culposa. Portanto, só pode praticá-lo a mulher grávida que agir dolosamente. Suponha mos que alguma gestante, agindo sem dolo, provoque em si mesma, pela ação imprudente de praticar algum esporte (andar a cavalo), a expulsão do feto. Terá cometido algum crime? Qualquer jurista ou juiz, por mais aferrado que seja às doutrinas tradicionais, res ponderá que não, porque não está tipificada no Código a modalidade do delito de auto-aborto culposo. Sem saber, esse jurista, ou esse juiz tradicionalista, está afir mando, com isso, a existência do dolo no tipo, porque, para ele, como para nós, o que torna atípico o auto-aborto culposo é a falta de dolo na ação praticada. Como o tipo legal é doloso, isto é, contém o dolo, a ação praticada culposamente não se subsunie, não confere com a do tipo legal de crime. Ora, se o dolo do delito em exame não estivesse no tipo, teríamos que concluir que, para o tipo de delito de auto-aborto, é indiferente que a mulher grávida pratique o fato dolosa ou culposamente. Com isso estaríamos criando um delito culposo de auto-aborto, sem previsão legal. O absurdo desse raciocínio revela que, quer queiram ou não certos juristas, o dolo está no tipo, visto como, nos tipos dolosos, quando a ação não for dolosa, o que se exclui é a própria existência do fato típico e não apenas a culpabilidade. O dolo decide, pois, sobre a existência ou não de um tipo do loso de delito. E assim é porque é ele um elemento necessário do tipo doloso de crime. E não se diga que, para afirmar o que até aqui temos afirmado, é preciso aderir ao novo sistema de Welzel, de olhos vendados, fa zendo profissão de fé “finalista”. Se não se pode aceitar tudo quanto Welzel disse (ele próprio parece não desejar isso, quando afirma que a única coisa perfeita produzida pela cabeça de alguém foi Palas Atenéia ao saltar da cabeça de Zeus) 18, o temor de reco 17. Exemplo adaptado e tomado de empréstimo a Gimbemat Ordeig, Estúdios, cit., p. 95. 18. Das neue Bild, cit., Vorwott zur 4. Auflage, p. XI. 231
nhecer o que há de bom e de verdadeiro na doutrina do grande penalista alemão não é um equívoco menos grave. E se há um ponto, entre outros, em que a doutrina finalista se nos apresenta inatacável, este é, sem dúvida, o princípio de que o dolo é um ele mento do tipo 19. 233. Nesta altura, acreditamos que se poderá indagar o se guinte: por que tanto esforço para transferir elementos da culpabi lidade para o tipo, do dolo para a culpabilidade etc.? Se tudo per tence ao crime, esta simples mudança de localização não será apenas uma complicação inútil? A resposta é decisivamente negativa. A nova construção, que teve início com Welzel, é deveras im portante para a realização do ideal de justiça, no campo do direito penal. Ao transferirmos o dolo e a culpa stricto sensu para o tipo, aliviamos a culpabilidade de alguns corpos estranhos, sem todavia perdê-los, visto que são apenas transferidos de localização. Com isso, permitimos que o juízo de culpabilidade possa, retomando a suas autênticas origens, ocupar-se verdadeiramente com a evitabilidade ou a inevitabilidade do fato praticado. Vimos, no início, que a culpabilidade está indissoluvelmente ligada à evitabilidade do fato e que esta é um aspecto “só peculiar ao agir humano”. Todavia, a evitabilidade do fato, após dar nascimento ao juízo de culpabilidade, passou a ser imperdoavelmente esquecida. A experiência do direito penal, por vezes dramática, tem reve lado que juizes e tribunais, na grande maioria dos casos, dentro de uma concepção tradicional, esquecem-se da própria culpabilidade, o mais importante elemento do crime, ao confundi-la com o dolo e a culpa. Verificando que o agente atuou com aolo, encerram o jul gamento e aplicam a pena criminal. Não pesquisam a evitabilidade do fato e, pois, a sua censurabilidade. Com a nova construção, verse-ão os julgadores, necessariamente e sempre, diante do problema da culpabilidade. De uma culpabilidade concreta do aqui e agora. De uma culpabilidade deste homem nesta situação, não do homo medius, abstrato, inexistente, de triste memória.
19.
232
No mesmo sentido, Gimbemat Ordeig, Estúdios, cit., p. 96.
Ao decidir, num instante derradeiro, pela aplicação da pena cri minal, antes de proferir seu julgamento final, haverá o juiz que defrontar-se com esta advertência de Welzel: “A censura de culpabi lidade pressupõe tenha podido o autor formar sua resolução de ação antijurídica mais corretamente, ou seja, de acordo com a norma. E isto não em um sentido abstrato de algum homem no lugar do autor, mas no mais concreto sentido de que este homem, nesta situação, tenha podido formar sua resolução de vontade de acordo com a norma” 2°. Como se vê, retornando às origens, a culpabilidade cresce e des ponta como um momento crucial na aplicação da pena. Para con cluir esta explanação, desejamos salientar ainda que, a nosso ver, o tema do “erro de proibição” no direito penal só pôde, na Alemanha, atingir seu desenvolvimento mais adequado, seja na jurisprudência, seja na legislação, dentro da teoria da culpabilidade, como ve remos. É que a teoria do “erro”, enquanto esteve confinada no quadro do dolo normativo, não conseguiu encontrar solução para uma série enorme de problemas suscitados em tomo dos limites da escusabilidade do então denominado erro de direito. Com a nova construção toma-se possível distinguir um erro excludente do dolo do tipo de outro excludente da censurabilidade, isto é, da culpabilidade (erro de tipo e erro de proibição). Enrique ce-se, assim, a dogmática penal com novo e precioso instrumental de concreção jurídica. Estudamos, neste título, a culpabilidade por fato doloso. De dicaremos, mais adiante, um título especial à culpabilidade por fato culposo.
e)
Culpabilidade de autor. Culpabilidade do caráter. Culpabilidade pela conduta de vida. Culpabilidade pela decisão de vida. Culpabilidade da personalidade ou da pessoa21
234. Das três ordens de indagação formuladas inicialmente respondemos, até aqui, às duas primeiras: “Que coisa é a culpabi 20. 21. trabalhos de autor,
Das neue Bild, cit., p. 45. A matéria desenvolvida neste título constitui objeto de dois outros nossos: Culpa da personalidade, RJTJSP, 47:39 e s.; Culpabilidade in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 22. 23'3
lidade?” e “Onde está a culpabilidade?”. Resta, pois, a terceira — a que interroga sobre o objeto do juízo de culpabilidade — hoje tão problemática, oij mais, quanto as anteriores. Equacionemos, primeiramente, essa última questão e, depois, passemos ao exame das soluções que se oferecem e das que se podem aceitar. Não será difícil, para qualquer penalista, subscrever esta afirma ção de Bockelmann: “Pena pressupõe culpabilidade, nulla poena sine culpa. Culpabilidade... é, pois, a mais nítida característica do conceito de crime” 22. Sobre isso parece haver harmonia entre a grande maioria dos autores 23. De outra parte, com a predominância das concepções normativas da culpabilidade, dentre as quais se inclui a própria doutrina finalista, generaliza-se, na maioria dos países de 22. Strafrecht, cit., p. 3123. Uma afirmação dessa natureza pode ser reputada válida igualmente na área do direito penal soviético, embora neste a noção de culpabilidade esteja carregada de conteúdo político-social, in verbis: “Les Fondements de la législation pénale de 1’URSS et des Républiques fédérées de 1958, se faisant l’écho du développement antérieur de la législation pénale concemant la question de la faute, à 1’article 3 disposent que: ‘N’est responsable pénalement et punissable quune personne coupable d’une infraction, c’est-à-dire qui a commis intentionnellement ou par imprudence un acte socialement dangereux prévu par la loi pénale’. Cette position se retrouve dans les Codes Pénaux de toutes les Répu bliques fédérées (par exemple art. 3 C. pén. RSFSR). Dans les Fondements sont défínies 1’infraction intentionnelle (art. 8) et 1’infraction par imprudence (art. 9 ). La loi socialiste fait très clairement une distinction rígoureuse formelle de la faute: intention ou imprudence lors de la commission de rinfraction. Dans le droit pénal soviétique il s’agit toujours d’intention ou d’imprudence dans des actes qui portent atteinte à la société soviétique ou au régime social et politique, au système de réconomie socialiste, à la propriété socia liste, à la personne, aux droits politiques des citoyens et aux autres droits, ou bien qui portent atteinte à 1’ordre légal socialiste. Le contenu politicosocial de la notion de faute intentionnelle et d’infraction commise par impradence dans le droit pénal soviétique se traduit dans la notion dmfraction comme acte socialement dangereux ou abstention dirigée contre les fonde ments du régime soviétique et pourtant atteinte à 1’ordre légal socialiste. Une infraction intentionnelle ou une infraction par imprudence ne présentant pas un dangèr pour les fondements du régime soviétique ou 1’ordre légal socia liste ne portent pas en elles la notion de faute. La faute n’est pas une notion uniquement psychologique, mais une notion politico-sociale” (L e système pénal soviétique, Marc Ancel. A. A. Piontkovsky e V. M. Tchkhikvadze, p. 36). 234
cultura ocidental, a idéia de culpabilidade como um juízo de censura que se faz ao agente pelo seu fato típico e ilícito. Quando, porém, se procura saber em que consiste esse juízo de censura e qual o seu objeto imediato, adentra-se em uma região onde as idéias não mais se apresentam de todo coincidentes. Uma corrente de penalistas — a dominante, segundo supomos — opta pela culpabilidade do fato. Segundo esta corrente a censu ra de culpabilidade recai sobre o fato do agente, isto é, sobre o com portamento humano (ação ou omissão) que realiza um fato-crime. Coloca-se a tônica no fato do agente, não no agente do fato. Apóiase esta concepção da culpabilidade na constatação empírica, prag mática, de que o agente, sendo dotado de certa capacidade de com preensão e de escolha, é culpável por um fato ilícito, na medida em que concretiza o injusto, podendo, nas circunstâncias, ter agido de outro modo. Com isso, o poder-agir-de-outro-modo coloca-se como pressuposto ou como fundamento do juízo de censura de culpabilidade. Existe, entretanto, outra corrente de penalistas, mais reduzida mas não sem importância pela grande projeção e influência de seus seguidores, que não pensa exatamente assim. Partindo da premissa de que em certos casos a faculdade de compreensão do injusto — portanto a possibilidade de escolha — está comprometida pela con duta da vida do agente, e, ainda, partindo da suposição de que não há meios de se verificar no agente concreto o aludido poder-agirde-outro-modo, concluem estes penalistas que a única solução; para se salvar o juízo de culpabilidade, seria desfocá-lo do “fato” para a “pessoa agente”. Censurável não seria já o agente pelo seu com portamento, pelo injusto típico, mas sim pela sua conduta de vida, pelo seu caráter, pela sua personalidade; numa palavra: pelo seu modo de ser e de viver. Vejamos o que se pode dizer a respeito dessas duas colocações sobre as quais tanto se tem escrito e discutido. 235. Direito penal de autor e culpabilidade de autor. O di reito penal moderno é, basicamente, um direito penal do fato. Está construído sobre o fato-do-agente e não sobre o agente-do-fato. Demonstra a veracidade dessa afirmação a estrutura da grande maio ria dos tipos penais que, segundo as exigências do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, descrevem um modelo de conduta proi 235
bida e não um tipo criminológico de autor. As exceções são raras (rufianismo, vadiagem etc.) e, pois, não infirmam a regra. Nem sempre, porém, foi assim. Pode-se mesmo afirmar ter sido essa uma penosa conquista da humanidade, sobrevinda com a “secularização” do direito penal ou com a sua desvinculação de propósitos políticos imediatistas. Fácil será, portanto, apontar, na história, períodos em que se pretendeu, por motivos religiosos ou por razões de Estado, fundar a pena cri minal não naquilo que o “agente faz”, mas no que “ele é”. “Du rante larguíssimo período” — afirma Soler — “las penas más crueles han sido fundadas en Ia afirmación de que un sujeto era brujo o hereje. En nuestros propios tiempos hemos visto fundar las más extremas medidas sobre la base de la condición óntica de judio o de negro” 24. Seria, entretanto, errôneo pretender generalizar e atribuir colo rido político, ou totalitário, a todas as correntes penalísticas que apresentem como característica um especial realce dado ao agentedo-fato. Note-se que a escola positiva, desde Lombroso, não faz outra coisa senão chamar a atençãõ para a pessoa do delinqüente. Franz von Liszt, apontado como o iniciador da teoria do direito penal de autor (Tater strafrecht) s5, proclamava que “se deve cas tigar não o ato mas o autor”. E, a partir de então, não cessou a disputa entre os que procuram acentuar a pessoa do autor e os que preferem colocar a tônica sobre o fato praticado. Maurach, após salientar a manipulação política do “tipo normativo de autor”, elaborado com invocação a ensinamentos de von Liszt, afirma que essa mesma teoria, em fase mais avançada de certo momento his tórico desastroso, prestou-se, igualmente, para, em sentido diame tralmente oposto, limitar “ciertos tipos desmesurados del legislador nacional-socialista, por la introducción del elemento restrictivo del tipo, de la conducta ‘atípica’ ” 26. Do que foi exposto, conclui-se ser possível, sem conotação ideo lógica, rotularem-se de “direito penal de autor” várias correntes, de origem e propósitos diversos, que, todavia, têm de comum a colo cação do agente, com o seu caráter, com a sua personalidade, no 24. 25. 26. 236
Derecho penal, cit., v. 2, p. 8. Apud Baumann, Grundbegriffe, cit., p. 18. Derecho penal, trad. esp. da 2. ed. al., v. 1, p. 293.
centro do problema penal, com inteira precedência lógica sobre o fato, considerado este último mero fenômeno sintomático, ou meio ponto de partida para a aplicação da pena criminal. Direito penal de autor, nesse sentido amplo, opõe-se a direito penal do fato27. Filiada historicamente a uma concepção do direito penal de au tor está, sem dúvida, a denominada “culpabilidade de autor” ( T a íerschuld), como também a teoria do “tipo de autor” (Dahm, Mezger etc.). Desde que se entendeu que o direito penal devia colocar o foco sobre a pessoa do autor, com absolüta primazia, e não sobre o fato isolado, sobre o injusto típico, seria inevitável procurar-se um novo fundamento para a culpabilidade, pois também esta deixaria de ser culpabilidade do fato isolado para erigir-se em culpabilidade de autor. Dentro desta concepção, culpável não mais será o fato do agente, mas o próprio agente pelo seu “modo de ser”, pelo seu caráter etc. Note-se que, se, de um lado, o tipo normativo de autor não prosperou28, de outro, a culpabilidade de autor chegou até nossos 27. A distinção tem valor didático, além de doutrinário. Todavia, na prática, não se apresenta com tal nitidez. Baumann ( Grundbegriffe, cit., p. 18) acentua que, embora o direito vigente seja essencialmente um direito penal do fato ( Tatstrafrecht), há várias disposições legisladas que se ajus tam a uma concepção ligada ao direito penal de autor (exemplo: a reinci dência, a figura do delinqüente profissional ou habitual etc.). Note-se que não identificamos o “direito penal de autor” com a doutrina do “tipo norma tivo de autor” que esteve em moda durante o regime nazista, apesar de con siderarmos esta última uma espécie extremada da primeira. A nosso ver, partindo de von Liszt, passando por Dàhm, Mezger etc., e chegândo até os nossos dias, com os que defendem uma culpabilidade do agente pelo seu modo de ser, é possível tomar-se a expressão “direito penal de autor” num sentido amplo, em oposição a “direito penal do fato”. Com isso, viabiliza-se uma visão histórica, de conjunto, de todas aquelas correntes que, embora com fundamentos e objetivos diversos, partem da hecessidade de se mudar “3a noción del Derecho Penal al situar la persona del autor al lado o por encima del hecho-delito’’ (Juan del Rosai, La personalidad del delincuente en la técnica penal, p. 29). Disso resulta, igualmente, a necessidade de se estabelecer a distinção entre “tipo normativo de autor” e “tipo criminológico de autor”, ressaltada, entre outros, por Welzel ( Das deutsche Strafrecht, cit., p. 127), Gemelli (La personalità del delinqüente nei suoi fondamenti biologici e psicologici, p. 17 e s.) e Juan del Rosai (La personalidad, cit., p. 48 e s.). 28. Consulte-se a respeito Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 126-7. Bettiol encontra muitos pontos de contato entre a teoria do tipo nor mativo de autor e a teoria da adequação social de Welzel (Diritto penale, cit., p. 652). 237
dias e, em certas áreas, ganhou redobrado viço, com roupagens no vas e vistosas, embora fragmentada em várias teorias com denomi nações diferentes, sem possibilidade de harmonizarem-se entre si. As principais, a seguir examinadas, são: culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida, culpabilidade pela decisão de vida, culpabilidade da personalidade. 236. Culpabilidade do caráter. No campo filosófico, Aristó teles tem sido apontado como precursor da culpabilidade do caráter. Diz o filósofo, em sua Êtica a Nicômaco, que o homem se toma aquilo que é por um comportamento voluntário na sua origem. A seu ver, é pela prática de certas ações que se acaba por adquirir um caráter do mesmo gênero dessas ações. Quem pratica a indolência é responsável por vir a ser um indolente. Da mesma forma quem pratica a deslealdade, ou se entrega ao hábito da bebida, é respon sável por vir a ser um injusto ou um intemperante. Percebe-se isso observando os que se esforçam para uma competição ou para uma atividade qualquer: gastam o seu tempo em exercícios. Assim, as nossas disposições de caráter são também resultantes da prática de certas ações. Depois, não haverá possibilidade de recuo. É como o doente que já não pode recobrar a saúde. Deve reputar-se, con tudo, voluntariamente doente aquele que levou uma vida intempe rante e desobedeceu às prescrições médicas. A princípio ser-lhe-ia possível não se tomar um doente, depois já não poderá evitar os males de que foi acometido, como ocorre com quem arremessa uma pedra e não é capaz de recuperá-la. Tudo isso se passa com o homem injusto ou com o intemperante: a princípio lhes era possível não se tomarem homens de uma tal espécie. Isso faz com que o sejam voluntariamente. Mas, uma vez que chegaram a esse ponto, já não lhes é dado deixar de ser o que são (Livro III, 1114 a). Para Aristóteles, tanto o vício como a virtude são voluntários, pois, se é evidente que o homem é o autor de seus próprios atos e se não podemos reconduzir tais atos a outros princípios senão àque les que estão em nós, a conclusão é a de que as ações, cujos prin cípios estão em nós, dependem de nós e, portanto, são voluntá rias (1113 b) 29. 29. 238
Êthique à Nicomaque, cit., p. 139-44.
Aí temos, em suas linhas básicas, toda uma caracterologia fundamentadora da responsabilidade pelo que se é, ou pelo modo de ser que se construiu. Embora fale Aristóteles, em outra passagem próxima, na puni ção dos ébrios pela sua ignorância, quando responsáveis por ela, o certo é que o filósofo, no tópico acima resumido, cuida de distinguir o “voluntário” do “involuntário”, ao estudar a natureza das virtudes. Situa-se, pois, no terreno da Êtica, donde nem tudo pode ser trans plantado para o direito penal. Voltaremos ao assunto, nas obser vações críticas finais. 237. Culpabilidade pela conduta de vida. Na área penal, a primeira e importante elaboração de uma culpabilidade do caráter deve-se a Mezger, que a denominou “culpabilidade pela condução de vida” (Lebensführungsschuld). Segundo Mezger, o agente forma, em certas circunstâncias, o caráter de modo a alcançar uma posição censurável de “inimizade ao direito”. Os maus hábitos e as falsas noções adquiridas conduzem à “cegueira jurídica” : já não permitem ao agente distinguir o lícito do ilícito. Isso mais se agrava quando se sabe que o agir humano se baseia freqüentemente em impulsos automáticos, inconscientes. Assim, o direito penal, sob pena de ficar inteiramente desarmado diante de perigosos delinqüentes, deve ad mitir, em certos casos, um agjr doloso e culpável sem a consciência atual do injusto, quando essa falta de consciência puder ser atribuída ao agente, pela sua culpa na formação do caráter, na condução da vida. Welzel critica tal doutrina, salientando que Mezger, com a cons trução da culpabilidade pela condução de vida, procurou sanar as evidentes lacunas da “teoria do dolo” de que é seguidor (o dolus malus30 exige, para sua configuração, a consciência atual da ilici tude). Mas, procurando superar o problema do que supôs ser uma ausência injustificada de dolo, não logrou evitar a elaboração de uma pura “ficção de dolo” 31. Na mesma linha Maurach, para quem a “cegueira jurídica”, mais tarde “inimizade ao direito”, não passa de um “como se”, em relação ao dolo32. 30. 31. 32.
Supra, n. 209. V. ainda nosso O erro, cit., p. 10 e s. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 160. Deutsches Strafrecht, cit., p. 462. 239
Por último, fácil é de ver que a culpabilidade pela condução de vida não explica a culpa jurídico-penal, mas apenas se amolda a certos tipos criminológicos de autor, além de procurar justificar a condenação de determinados agentes sem a exigência da consciência atual da ilicitude. 238. Culpabilidade pela decisão de vida. Bockelmann deu novo tratamento ao mesmo tema, criando a “culpabilidade pela de cisão de vida” (Lebensentscheidungsschuld). A seu ver, a culpabi lidade não está na condução da vida, mas antes em uma decisão vital: o agente, podendo “ser outro”, isto é, podendo ser reto e bom, decide-se pelo seu “eu” mau; resolve seguir o seu daimon negro 33. Pode-se objetar que tal concepção implica uma ficção de li berdade (o poder-ser-outro), além dè procurar fundamentar a culpabilidade numa decisão vital anterior, o que, em última análise, significa adicionar-se à culpabilidade pelo fato uma espécie de actio ■ libera in causa excessivamente distante e indemonstrável. 239. Outras correntes. Culpabilidade na formação da perso nalidade e culpabilidade da pessoa. Lange distingue a culpabilidade fundada em uma orientação de vida da culpabilidade por uma espé cie de “omissão” vital, isto é, por não ter o agente desenvolvido todas as suas potencialidades, como lhe era exigível. Welzel, embora partidário da culpabilidade do fato, admite uma culpabilidade do caráter, ou da personalidade, no caso do delinqüen te por tendência, do delinqüente passional, ou do negligente e do leviano, na culpa inconsciente. Considera esse último penalista que a culpabilidade pode ser uma única falha do “centro do eu respon sável” da pessoa, mas pode também estar fundada “em uma camada permanente da personalidade” (in einer bleibenden Persõnlichkeitsschicht). Nesta última hipótese, a culpabilidade do ato isolado enraíza-se em um momento permanente, ou seja, na estrutura defei tuosa dessa camada da personalidade, ou ainda em uma censurável falha do caráter34. Welzel, neste tópico, aceitando a estratificação do “eu” de certas teorias psicológicas, ou psicanalíticas, não se dis tancia muito de Mezger, como é fácil de ver. 33. 34.
240
Apud Figueiredo Dias, Liberdade — Culpa — Direito penal, p, 118. Das deutsche Strafrecht, cit-, p. 149-50.
Entre os autores de língua portuguesa, vamos encontrar nos proíessores de Coimbra, Eduardo Correia e Figueiredo Dias, impor tantes defensores de uma culpabilidade da personalidade, ou da pessoa. O último, desenvolvendo as idéias do primeiro (“culpa na for mação ou preparação da personalidade” ), dá a sua própria e pre ciosa contribuição, em recente obra, definindo a “culpa da pessoa”, in verbis: “Culpa jurídica (jurídico-penal) é, assim, a violação pelo homem do dever de conformar o seu existir por forma a que, na sua actuação na vida, não viole ou ponha em perigo bens juridica mente (jurídico-penalmente) protegidos” 35. Após salientar que esse é ainda um “esclarecimento fundamental do sentido último de toda a culpa jurídica”, e depois de ter afas tado, ou pretendido afastar, o poder-agir-de-outro-modo, como fun damento do juízo de censurabilidade (culpa é censurabilidade), por ser uma tal liberdade “absolutamente indemonstrável e inapreensível” 36, afirma que, por meio da liberdade, a pessoa e seu fato se identificam, são uma e a mesma coisa. “Por isso — prossegue o mesmo autor — a liberdade realizada no facto é, afinal, idêntica à liberdade da pessoa: ela é o seu modo de ser. Mas, por isso tam bém, a culpa jurídico-penal, conquanto formalmente referida ao facto, deve materialmente dirigir-se à personalidade que o fundamen ta. Se o conceito jurídico-penal de culpa tem de ser, como todos concordam, pessoal, a culpa só pode ser dada, materialmente, como culpa da pessoa. E se, por um lado, o sentido último da culpa jurídico-penal, como partícipe da culpa ética, reside na violação pelo homem do dever de conformar o seu existir (de afirmar a sua essência), por forma a que, na sua actuação socialmente relevante, respeite os bens jurídico-penalmente protegidos; e se, por outro lado, esta culpa há de actualizar-se ou realizar-se >no facto praticado — temos então que a culpa jurídico-penal realizada é afinal, material mente, o ter que responder pela personalidade que fundamenta um facto ilicito-úpicd''' 37. Completam as idéias do penalista em foco, desenvolvidas ao longo de toda uma obra rica em pesquisas, impossível de ser resu 35. 36. .37.
Figueiredo Dias, Liberdade, cit-, p. 188. Liberdade, cit., p. 97. Liberdade, cit., p. 193. 241
mida, estas considerações a respeito da censura de culpabilidade: “O ser-livre não existe sozinho ou independentemente dos seus conteú dos, antes se realiza nestes, e, portanto, em um mundo onde a pró pria vida reage sobre ele. Deste modo, a subsistência do ser-livre recebe-a ele não apenas do existente, mas também das normas de valor que possibilitam a sua máxima realização. Por isso mesmo é que o direito fica legitimado a fazer exigências (participantes do dever-ser ético-existencial) à personalidade do homem; tais exigên cias, que este ‘tem que’ cumprir e por isso se lhe apresentam como tarefa, integram o ‘valor da personalidade’ que caracteriza o homem suposto pela ordem jurídico-penal. Quando, pois, o autor de um ilícito-típico não responde a tais exigências, ele actualiza no facto uma personalidade jurídico-penalmente desvaliosa, e, neste sentido, uma personalidade censurável. É esta personalidade censurável, actualizada no facto praticado, que fundamenta o juízo de culpa; e é a medida da desconformação entre o (des)valor da personalidade do agente e o valor da personalidade jurídico-penalmente conformada que constitui a medida da censura pessoal que lhe deve ser feita” 38. Não obstante o ardor e o engenho com que tais idéias são ex postas e defendidas, o certo é que não podem elas, a nosso ver, ser adotadas, porque pressupõem a existência de um Estado ideal, utópi co, “a-histórico”, conforme veremos a seguir.
f)
Culpabilidade e liberdade. O poder-de-outro-modo
240. As correntes mais importantes, sobretudo as mais recen tes, que se situam na linha de uma culpabilidade de autor, no sentido amplo em que empregamos esta expressão, não afirmam, em síntese, a total inutilidade do fato-do-agente, pela dificuldade intransponível, no estágio atual do direito, de se tipificar como crime esta monstruosidade: personalidade X , pena Y. Admitem, contudo, o “fato” como necessário somente para fixação do mo mento da exteriorização do caráter ou da personalidade censuráveis, ou ainda como pressuposto para aplicação da pena criminal. Não nos parece, entretanto, que essa modesta concessão ao fato seja suficiente para aplacar alguns temores bastante fundados 38. 242
Figueiredo Dias, L ib e r d a d e , cit., p. 206-7,
quanto aos rumos e às conseqüências de um direito penal que se apóie em tal concepção. Pode-se, com efeito, atacar não só o ponto de partida como os propósitos utópicos destas teorias, consideradas as várias correntes apenas em seus traços fundamentais. Vejamos. É inegável que a má-formação do caráter e da personalidade pode conduzir à criminalidade crônica com ou pelo embotamento da consciência ética. Mas também é inegável que nenhum delin qüente consegue atingir, na sociedade moderna, um certo grau rele vante de “cronicidade” sem cumprir as necessárias etapas de um aprendizado empírico, durante o qual os envolvimentos com a polí cia, juizado de menores e justiça criminal tomam-se muito freqüen tes. Com isso, apesar da astenia moral, excetuados os dementes e débeis mentais, sabem ou acabam sabendo, perfeitamente, que seus atos criminosos encontram séria repulsa no mundo onde vivem. Tanto isso é verdade que precisamente este tipo criminológico é constituído de indivíduos extremamente maliciosos: agem tanto 'quanto possível na clandestinidade; escolhem a hora, o local e a vítima, na programação de uma “fuga” com alguma probabilidade de êxito. Esse é, sem dúvida, um nítido sintoma de que sabem que fazem algo ético-socialmente reprovável. Podem, portanto, ser “inimigos” da ordem jurídica, mas não “cegos”, como supunha Mezger, fato este percebido por Santo Agos tinho ao indagar: “que ladrão suporta que s& lhe roube?” (“quis enim fur áequo animo furem patitur?” ) 39. Não há, pois, a mínima necessidade de se Construir uma ficção de dolo para a condenação do delinqüente habitual ou por tendência, desde que se abandone de vez o dolus medusa que se aferram os seguidores da “teoria do dolo”. Note-se que,para as denominadas “teorias da culpabilidade” o problema não oferece os mesmos tro peços, conforme acentuamos linhas atrás. Outro ponto de partida dos seguidores de uma culpabilidade de autor é a afirmação de que o poder-agjr-de-outro-modo pressupõe uma espécie de livre-arbítrio que não pode ser verificado no agente 39- Les confessions, Liv. II, Cap. IV, 243
concreto. Daí a necessidade de se construir a culpabilidade pela formação do caráter, da personalidade. Ora, como é fácil de ver, essa afirmação também não resolve o problema, mas, ao contrário, agrava-o, pois, a não ser dentro de um positivismo superado, não se nega que: pena pressupõe culpa e esta, alguma liberdade para agir. Assim, se for exato, como querem os seguidores dessas cor rentes, que a falha da teoria da “culpabilidade do ato” reside na impossibilidade de se demonstrar, no agente concreto, o poderagir-de-outro-modo, por ser isso “absolutamente indemonstrável e inapreensível" (Figueiredo Dias), poder-se-á indagar, usando o mes mo raciocínio, se será mais fácil demonstrar e apreender algo bem mais complexo: a liberdade do indivíduo de conduzir a própria vida, de construir a própria personalidade. . . É óbvio que, se para o menos — um simples ato — não ti vermos resposta, não haveremos de tê-la, igualmente, para o mais — a multidão de atos e de opções que recheiam o existir humano. É um esforço inútil, a nosso ver, pretender provar ou demons trar que um ato é livre, ou que o homem é livre. Cair-se-á fatal mente na velha aporia: determinismo ou livre-arbítrio. A liberdade de que temos consciência, por meio de uma apreensão imediata, empírica, é a do aqui-e-agora, isto é, a de poder decidir algo, a de poder tomar alguma resolução, dentro de certos limites. E não há dúvida de que “sólo en medio de nuestra vida volitiva misma compreendemos qué es la libertad — nunca mediante análisís teóricos” 40. “Responsabilidade e liberdade — afirma Johannes Gríindel — são dois conceitos que se iluminam mutuamente, que não precisam simplesmente ser demonstrados, mas que se baseiam afinal na experiência do homem” 41. Ora, o que a experiência de nossa vida volitiva, com seus su cessos e insucessos, nos oferece à compreensão é seguramente a “confiança” que temos em um concreto e pragmaticamente utilizável poder-de-outro-modo, que nos permite “con-viver” e “dirigir” a causalidade. 40. 41. 244
Max Scheler, Metafísica de la libertad, p. 8. Temas, cit., p. 224.
Assim, ainda quando nos não seja possível eVitar íenômenos
biológicos e/ou anímicos fundamentais (fome, sede, amor, ódio etc.), sabemos (porque assim tem sido) que nos será sempre possível pelo menos isto: adquirir alimentos com o esforço de algum trabalho e não só pela rapina; inibir, conter, sublimar ou desviar a nossa ira e não só permitir que ela desabe sobre o semelhante. Do mundo da cultura vivida extraímos facilmente esse poderagir-de-outro-modo, que nos enseja, por meio de uma espécie de linha curva, evitar os atalhos ético-socialmente reprováveis. É um limitado poder-de-outro-modo que não nega o processo causai. Se, de um lado, a liberdade metafísica é problemática, de outro, este limitado poder-de-outro-modo, que “manipula” a causalidade, é algo vivenciado e apreensível. Por isso é que se diz, numa visão antropológica, que, entre todos os seres vivos, o homem — e só ele — realiza o seu destino (Schiller), por ser “livre dentro de uma fatalidade dada” (Ortega y Gasset). Para o direito penal, que quer ser (e é) uma “ciência” hu mana, ir além dessa modesta experiência da liberdade poderá ser um verdadeiro delírio. E não se diga que tal redução do tema da liberdade não resolve a questão inicial da indemonstrabilidade e da inapreensibilidade, em um indivíduo concreto, da faculdade de agir de outro modo ou, o que seria mais grave, poderia conduzir à total imprevisibilidade do comportamento humano. Também aqui a ex periência nos fornece dados concretos e importantes sobre os quais se constroem com segurança não só o direito mas a própria convi vência social, considerada esta da forma mais ampla possível. É o que se pode extrair da seguinte constatação de Max Scheler: “Lo que nos hace ‘tener fe’ en la intención de los hombres, por ejemplo, en que una mujer ausente permanezCa fiel a su esposo, que no se deje influir por tentaciones cualesquiera que puedan cambiar su sentimiento y sus acciones, lo que nos hace creer en promesas, y no nos deja suponer que en el ínterin el efecto de aquel acto de la promesa sea anulado por situaciones cualesquiera y de las apetencias por éstas determinadas, esto es precisamente la creencia en la libertad del hombre en questión; la creencia en su capacidad de poder oponer algo a los estímulos e impulsos instintivos que lo acechan, algo que anule los efectos de otro modo determinantes para sus acciones. En ese sentido, un hombre es tanto más predictible cuanto más libre 245
sea. En cambio, el ‘caprichoso’ por ejemplo, el hombre ‘impredictible’ — como lo formula expresamente el lenguaje común — es él relativamente falto de libertad, al igual que el hombre para el cual aquellas situaciones, y los impulsos instintivos provocados por éstas, tienen consecuencias decisivas y unívocamente determinantes para sus acciones (en el demente = totalmente ‘impredictible’, la liber tad se halla precisamente eliminada del modo más absoluto; justa mente su comportamiento y su vivenciar se aproxima en mayor grado a la determinación de la ley natural)” 42. Como se vê, toda e qualquer forma de convivência humana estaria seriamente comprometida sem esta “crença” de que ao ho mem se pode atribuir algum poder-de-outro-modo. E esta crença deixa de ser mera “crença”, para o direito e para a sociologia, na medida em que passa a fundamentar a própria convivência humana. Por outro lado, a liberdade, em sentido mais amplo (a de se poder decidir sobre a própria existência, ou a de se poder orientar a formação do caráter e da personalidade), esta sim é que resta ainda por ser demonstrada. E se forem corretas as pesquisas criminológicas empreendidas com o máximo rigor científico por Sheldon e Eleanor Glueck, é muito problemático que possa sê-lo. O desen volvimento anormal do caráter e da personalidade de um grande número de delinqüentes pesquisados remonta à mais tenra infância e se explica por meio de fatores que de nenhum modo podem ser atri buídos a seus portadores. Neste terreno, corre-se o risco de aca bar-se com o conceito de culpabilidade penal e de transformar-se o direito penal em uma espécie de terapêutica psicológica, ou psi quiátrica. A toga seria substituída pelo avental branco. Pode-se, pois, afirmar que a “salvação” do juízo de culpa bilidade está precisamente na “culpabilidade do fato” e não na Lebensführungsschuld (culpa pela condução de vida), em qualquer das suas modalidades, ou variações: “culpa do agente”, “do caráter”, ou “da personalidade” {Tãter-,Charakter-,Persõnlichkeitsschuld). Seria, todavia, um erro oposto supor que a “culpabilidade do fato” (Einzeltatsschuld) deva desconsiderar ou colocar totalmente entre parêntesis a pessoa agente. “O conceito de culpa — segundo feliz expressão de Johannes Gründel — é tridimensional: A culpa é ao mesmo tempo culpa da ação, culpa do autor e culpa do todo. A 42.
246
Metafísica, cit., p. 11.
primeira é incondicional, a segunda é condicionada e a terceira é difícil de julgar (H. Dombois)” 43. Com razão, pois, está Jescheck quando ressalta a necessidade de se procurar compatibilizar ambas as concepções em luta, dando-se, não obstante, a prevalência para a culpabilidade do fato, a saber: “O núcleo do conceito de culpa só pode ser a culpabilidade pelo fato isolado. Todavia, o direito penal precisa freqüentemente ter em conta a culpabilidade do agente. Por isso é que o nosso direito (re fere-se o autor à reforma penal alemã) prescreveu, especialmente em três importantes dispositivos, se tome em consideração a ‘perso nalidade total’ (Gesamtpersõnlichkeit) : uma vez, na dosimetria da pena. . .; outra, no regulamento da reincidência. . .; finalmente, ao punir o erro de proibição culposo (evitável) com a atenuação da pena do dolo” 44. Nota-se, pelo texto retrotranscrito, que a “personalidade total” é tomada em consideração no momento da medição da pena. Solução análoga é adotada pelo nosso direito positivo. Com isso, o direito penal finca os pés no solo e o fàz bem. Ora, embora o direito penal esteja chamado a fortalecer a or dem moral, sob pena de incorrer em erro oposto (mas não menos grave) do da corrente que pretendeu reduzi-lo às ciências auxiliares, não pode ter pretensões de transformar-se em uma espécie de “teo logia moral”. Se o fizer, não alcançará a grandiosidade de uma autêntica teologia moral e perderá o seu limitado sentido pragmá tico de proteção da vida comunitária do homem na sociedade, me diante a tutela de determinados bens jurídicos. E assim é porque o ordenamento jurídico-penal trabalha sobre fenômenos histórico-culturais. Além disso, tem caráter fragmentário (Binding, H. Mayer, Welzel) e não deve exceder-se na utilização de seu severo instrumental. Um direito penal que pretenda modelar o homem correrá o risco de cair na indigência, com todo o seu excesso de penas, para usar uma imagem de Welzel. Não pode, pois, ter pretensões de modelar, sob cominação de pena, o “ser existencial” do homem. Essa missão não lhe compete. Corretíssimos os autores do Projeto Alternativo da Alemanha Federal, quando fizeram inserir em sua motivação esta expressão 43. 44.
Temas, cit., p. 234. Lehrbuch, cit., p. 317. 247
lapidar: “Pena â ser aplicada não constitui um fenômeno metafísico” (“Strafe zu verhángen ist kein metaphysischer V organg.. . ” ) 45. Atente-se, ainda, para o fato incontestável de que o ordena mento jurídico-penal, como realidade histórico-cultural, reflete as vir tudes da sociedade que o elabora, mas de mistura — e sempre — também reflete os desacertos dessa mesma sociedade. (Pense-se nos crimes de heresia, blasfêmia e outros, de triste memória, e, mais re centemente, na manipulação penalística do Volksempfindem,, pelo regime nacional-socialista.) Neste terreno, a verdade dramática é que não se pode negar o seguinte: d) um rio, uma cordilheira (e até o relógio, acrescentamos) podem ser decisivos sobre o que é lícito ou não, conforme aguda observação de Pascal; b) a simples edição de uma lei nova põe por terra bibliotecas inteiras (Kirchmann). Como então pensar-se em impor a todos e a cada um esta im possibilidade total: modelar a existência ou a personalidade de acor do com um “tipo” suposto por uma ordem jurídica que hoje é, mas amanhã poderá não ser; que aqui e, logo adiante já não el Pretender-se-á que cada um disponha de uma coleção de “personali dades”, para uso segundo as exigências ocasionais de um ordena mento jurídico extremamente sujeito a mutações? Por tudo isso, essa concepção da culpabilidade não pode, a nosso ver, ser dissociada de uma indébita interferência do direito penal em uma área que é de lhe ser vedada, ainda que os autores que a pregam se esforcem, com inegável brilho, por demonstrar o contrário. Não negamos que um dia, talvez, tenhamos todos (não só os criminosos) “que responder pela personalidade total”. Mas hão será, com toda certeza, perante um severo e falível juiz de carne e osso, nem segundo critérios exclusivamente jurídicos. Quando isso ocorrer estaremos provavelmente frente a um Deus-de-amor. Retomando a Aristóteles, podemos, pois, dizer que seus con ceitos éticos não podem transplantar-se para o direito penal, “a não ser que se queira transformar o Estado em guardião e vingador da virtude” 48 ou . . . a não ser que os juizes terrenos sejam substi tuídos pelos deuses do Olimpo. . . 45. 46. 243
In Baumann, Grundbegriffe, cit-, p. 11. Antolisei, Manual, cit., p. 246.
241. Poder-se-ia, contudo, ainda, num último esforço, argu mentar em prol da “culpà da personalidade”, em um plano bem mais pragmático: recorrer-se-ia a exames criminológicos para, com auxílio da psicologia e das ciências afins, chegar-se ao juízo de cen sura sobre a formação do caráter ou da personalidade do agente de um crime. Ainda assim, parece-nos que os escolhos não seriam menores. Com efeito, um juízo de culpabilidade dessa natureza depen derá, logo de início, de se poder transferir para o direito penal certos conceitos de “normalidade” e de “anormalidade” construídos estatisticamente pelas ciências em causa. Com isso, um juízo de realidade (o ser) fatalmente tenderia a transformar-se em juízo de valor (o dever-ser). O direito tomaria, por exemplo, da psicologia o que ela constata estatisticamente como sendo “normal” e transformaria este “tipo de normalidade” como algo imponível a todos e a cada um. Quem não conformasse sua personalidade, seu caráter, com os padrões de normalidade elabo rados “cientificamente” incorreria no juízo de censura da culpa bilidade. O próprio enunciado da tese revela o seu absurdo. Aos que exibem desenvolvimento mental retardado e aos doen tes mentais não se pode “impor” coisa alguma. E, para os que não exibem tais anomalias extremas, qual o padrão imponível? A psicologia, embora possa oferecer importantes subsídios neste terreno, não dá resposta definitiva a tal indagação. Ao contrário, revela, com lealdade, a enorme limitação de seus próprios critérios, in verbis: “Quais são os critérios que se utilizam para avaliar a per sonalidade anormal? Num sentido estatístico, é normal a pessoa média. O indivíduo anormal é aquele que, se desvia, a partir de certo ponto, da média do grupo. Quando se considera, todavia, a tremenda série de sistemas sociais que existem no mundo e a grande variedade de modelos de comportamentos de que se faz mister para viver nesses sistemas, é concebível que alguns sejam mais ‘normais’, num sentido ideal, do que outros. Dessa maneira, numa perspectiva ampla, a conformidade com os padrões de certas culturas poderia ser compreensivelmente considerada ‘anormal’ ” 4T. 47.
Charles W. Telford e James M. Sawrey, Psicologia, p. 466. 249
Por outro lado, na área psicológica, buscar-se-ia em vão alguma base para fundamentação do juízo jurídico de culpabilidade, pois, na ciência psicológica, indissoluvelmente vinculada ao mencionado crité rio estatístico-cultural de normalidade, iríamos encontrar esta expli cação causai do caráter e da personalidade: “A configuração única de traços, que constitui o caráter e a personalidade de uma pessoa, desenvolve-se como o resultado de fatores tanto genéticos quanto ambientais. As determinantes genéticas manifestam-se através da estrutura orgânica e constitucional do indivíduo. Os fatores ambien tais incluem as circunstâncias pré-natais, as experiências infantis, as constelações familiais e as relações entre pais e filhos. Incluem também as influências culturais e subculturais institucionalizadas mais amplas, transmitidas pela escola e pela Igreja, bem como as in fluências que resultam da participação em grupos étnicos, religiosos e sociais. Praticamente, toda a herança genética do indivíduo, assim como a sua história experiencial total, influi na personalidade” 48. Seria, pois, uma pura perda de tempo (mais que isso, arbitrário) tentar apontar, na “história experiencial total” do indivíduo, que se entende vergado por toda uma série de fatores genéticos e ambien tais, algo que se lhe pudesse censurar a título de culpa. Com isso, retornamos ao conceito de culpabilidade do fato, esta sim, a nosso ver, a única capaz de fundamentar, no atual estágio de nossa cultura, um direito penal da culpa.
g)
Culpabilidade pelo fato. Direito penal do fato
242. De tudo que foi dito no título anterior podemos extrair as seguintes conclusões: l .a) O crime surge aos nossos olhos como um fato causado por um ser humano. Nele podemos, pois, identificar facilmente dois fatores bastante nítidos: o fato e o seu autor, ou a ação humana e o agente. Diante de tal constatação, é possível, para a construção de um sistema punitivo, tomar-se por base um desses dois fatores (o fato ou 48.
250
Telford e Sawrey, Psicologia, cit., p. 456-7.
o autor)49, ou ambos ao mesmo tempo. Um sistema que consi derasse exclusivamente o fato, destacado do agente, seria um puro “direito penal do fato” ( Tatstrafrecht). Outro que, ao contrário, considerasse exclusivamente o autor, destacado do fato, seria um puro “direito penal de autor” ( Tãterstrafrecht). Na verdade, porém, nenhum sistema se apresenta com essa pu reza. O que há são sistemas que mais se aproximam ora de um, ora de outro desses dois extremos. Exemplo de um direito penal do fato algo extremado pode ser encontrado na escola clássica, que, por meio da noção abstrata da ação humana, via no crime um ente ju rídico e disso extraía as necessárias conseqüências. Exemplo de um extremado direito penal de autor encontramo-lo nas idéias e soluções propostas por certos positivistas que, supondo possível identificarem-se no homem as causas mecânicas do crime, catalogaram alguns tipos de delinqüentes e, com abstração do fato, pretenderam subs tituir a imputabilidade pela noção de periculosidade, a pena retributiva pela medida de segurança, ou pela terapêutica do criminoso. Entre essas duas posições opostas, situam-se as correntes mo deradas em prol de um direito penal do fato que considere também o autor. Esta é a posição do moderno direito penal, predominante mente um moderado direito penal do fato. Assim é na Alemanha 50, na Itália51, no Brasil e em outros países civilizados. 2.a) A comprovação dessa afirmação pode ser feita mediante um simples exame dos códigos e das leis penais em vigor, os quais, de um modo geral, tipificam fatos (modelos de condutas humanas) e não perfis psicológicos de autores. Não obstante, será fácil tam bém de ver que essa mesma legislação não despreza totalmente o autor, pois sua personalidade e antecedentes (a habitualidade e a tendência para o crime, a primariedade ou a reincidência etc.) são considerados, dentro do quadro da punibilidade do fato, no mo mento da quantificação da pena. Toma-se, portanto, como ponto de partida, o /aío-do-agente, mas não se coloca totalmente entre parêntesis o agente-do-fato. O 49. Jescheck ressalta que o crime como “fato cometido” faz: surgir para o legislador a dupla possibilidade de fixar os pressupostos da punibilidade a partir das características do fato, ou a partir da descrição de formas de vida criminal (tipo de autor) ( Léhrbuch} cit., p. 36). 50. Jescheck, Léhrbuch, cit., p. 36; Baumann, Grundbegriffe, cit., p. 22. 51. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 366; Petrocelli, La colpevolezza, p. 174. 251
agente, porém, vem considerado em um mômento posterior, dando-se inteira precedência ao fato. 3.a) O direito penal moderno é, além disso, a um só tempo, um direito penal da culpa: nulla poena sine culpa. Quando, entre tanto, se procura verificar, na doutrina, qual o objeto imediato do juízo de culpabilidade, percebe-se que, nesta área, as idéias não se harmonizam perfeitamente. E aqui ressurgem, com redobrado vigor, disputando a predo minância, os dois fatores do crime, inicialmente referidos: o fato e o autor. Uma corrente de penalistas, dando realce ao fato-do-agente, opta pela culpabilidade do fato isolado, ou singular (Einzeltatschuld, na Alemanha; colpevolezza per il fatto singolo, na Itália). Outra corrente, pondo em destaque o agente-do-fato, procura desenvolver a doutrina da culpabilidade do autor (Tãterschidd), erigindo em objeto do juízo de culpabilidade o modo de ser do agente, sua con duta de vida, a sua personalidade. Ambas essas correntes foram estudadas, confrontadas e subme tidas a juízo crítico. Cabe, entretanto, aqui, o registro de uma con sideração final, que reputamos importante. Os defensores da culpabilidade pela condução de vida, do ca ráter ou da personalidade, para afastar algumas sérias críticas, admi tem também o fato como ponto de partida, ou como pressuposto, para a aplicação da pena criminal. O certo, porém, é que dele se desprendem em momento posterior, a partir do qual as indagações sobre a personalidade do agente etc. é que irão determinar o rumo incerto dos acontecimentos. Na culpabilidade pelo fato, que também não desconsidera o agente, conforme foi visto, não é possível esse desligar-se do fato, em momento algum, visto como é o fato que dará os concretos e definitivos limites para a atuação do Estado na esfera penal. Franz von Liszt percebeu bem isso quando afirmava que, em sua opinião, por paradoxal que pudesse parecer, “o Código Penal é a Magna Carta do delinqüente”, protegendo não a coletividade, mas o indi víduo que contra ela se rebela, ao garantir-lhe o direito de ser cas tigado só quando ocorrerem os pressupostos legais e dentro dos limites legais. 252
Ora, esses pressupostos e limites muito pouco valeriam se esti vessem referidos a conceitos variáveis, pouco seguros52, e não a características objetivas que só podem ser oferecidas pelo fato. Daí a já mencionada tipologia de fatos, não de autores. E aqui tocamos, com a lembrança da conhecida passagem de von Liszt, o fundo da questão. O direito penal moderno está mol dado segundo princípios liberais, elaborados, lenta e penosamente, através dos séculos. E, até hoje, não se conseguiu encontrar algo melhor para substituí-los. Tentativas e experiências nesse sentido têm sido desastrosas. Dentro desse quadro, o nullum crimen nulla poena sine lege, o direito penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se imponentemente, numa perfeita seqüência e implicação lógicas, como colunas de sustentação de um sistema indissoluvelmente ligado ao direito penal de índole democrática. Por isso merecem ser preservados. Assim, apesar do crescimento dos índices de criminalidade e — o que é pior — do recrudescimento do crime atroz, violento, ao lado do aparecimento de novas formas delinqüenciais que se valem dos próprios instrumentos da técnica e do progresso, parece-nos que a procura de instrumental mais adequado de combate ao crime deve ser feita, com muito engenho e arte, para não se pôr em risco o que já constitui valiosa conquista da humanidade 53.
52. Não acreditamos que penalistas pretendam construir conceitos dog máticos de caráter, personalidade etc., usurpando o ofício dos psicólogos. E se quiserem recorrer a estes últimos, eis a surpresa que lhes poderá estar reserváda: “Casi todos los conceptos y términos empleados en psicologia son muy discutidos. Se han escrito lihros enteros en tomo a la definición de términos como ‘instinto’, ‘inteligencia’ o ‘emoción’ e incluso en nuestros dias existen diferentes ideas, concepciones y definiciones entre los psicólogos. Pero pocos términos son objeto de definiciones tan diferentes como él de ‘personalidad’. Casi cada uno de los autores que escriben sobre este tema da su propia definición, su propio punto de vista, su método propio y su concepción personal de lo que debería ser el objeto de la investigación sobre la personalidad. Seria insensato pretender dogmatizar en un campo en él que existen tantas discrepancias” ( H. J. Eysenck, Delincuencia y personalidad, p. 21). Note-se que o autor citado é professor de psicologia na Universi dade de Londres, diretor do Laboratório de Psicologia do Instituto de Psi quiatria e psicólogo dos hospitais Bethlen Royal e Maudsley de Londres. 53. V. nosso Culpabilidade pelo fato, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 22. 253
§ 17. Culpabilidade e a problem ática do erro. A consciência da ilicitude. Falta de consciência da ilicitude e ignorân cia da lei. Erro de tipo e erro de proi bição 1 a)
Culpabilidade normativa e erro
243. A evolução do direito penal, através dos tempos, está intimamente ligada, conforme pretendemos ter demonstrado, à evo lução da idéia de culpabilidade. Não é, pois, sem razão a afirma ção de Mezger, com apoio em Hafter, de que “o problema da cul pabilidade é o problema do próprio destino do direito penal” 2. Há, sem dúvida, estreita relação entre a idéia de culpabilidade predominante em determinada época, em determinado lugar, e o di reito penal que aí se vive e se aplica. E quanto mais se aperfeiçoa e se enriquece o conceito de culpabilidade, mais se concentra e se reduz a área de utilização da pena criminal. 1. Reproduzimos aqui, com pequenas adaptações, o trabalho que pu blicamos in RT 517:251, citado na Exposição de Motivos do Ministro da Justiça Abi-Ackel, item 17. 2. Tratado, cit., v. 2, p. 45, 254
Para se ter uma comprovação dessa afirmação, basta considerar que onde não se formara, ainda, a idéia de culpabilidade, ou onde a história retrocedeu para afastá-la, no todo ou em parte, preci samente aí vamos encontrar um cego direito penal do resultado (Erfolgsstrafrecht), no qual o delito é menos a exteriorização de uma vontade humana reprovável do que o dano causado. A atenção da comunidade se concentra sobre a causação do fato e não sobre a culpabilidade do agente3. Em um tal direito penal, a punição de fatos danosos, ou do mero perigo de dano, só encontra limites nos preconceitos tribais, ou na “razão de Estado”. A responsabi lidade penal é objetiva. A gravidade da pena se relaciona direta mente com a extensão objetiva do dano causado4. Onde e quando, porém, se começa a introduzir no conceito de r.rime a idéia de culpabilidade, isto é, a idéia de punição do agente só pelo fato-crime que lhe possa ser imputado e que lhe possa ser censurado, aí vamos encontrar um direito penal mais humanizado que, seja qual for a extensão da tipificação legal, só permite a pu nição do agente se estiver ele dotado da capacidade de entender e de determinar-se e se tiver falhado, de modo censurável, na utili zação dessa capacidade. A aplicação da pena criminal fica restrita a um menor elenco de casos. Em um direito penal da culpabilidade, a pena passa a ser apli cada e medida segundo o grau da culpa do agente. A idéia de dano ou de perigo causados cede lugar para um conceito mais complexo de dano ou de perigo censuravelmente provocados. Pode-se, portanto, afirmar que, historicamente, o mais impor tante instrumento de “descriminalização” indireta, de que se têm va lido os penalistas através dos tempos, é sem dúvida a manipulação 3. Iside Mercuri, Códice Penale, cit., p. XVIII. 4. Iside Mercuri: "Nel diritto germânico (conferma 1’Achter nel suo documentato studío dal titolo La nascita delia pena) ‘il punto di gravitazione riguardava il fatto, cioè infrazione. . . in quanto tale. U diritto penale di conseguenza ‘aderiva’ alfeffetto... Una spiegazione può essere data da un esempio. Un furto campestre non veniva perseguito come awiene oggi. . . a seconda delia voluntà criminale bensi in modo diverso a seconda delia risposta data alia domanda se esso riguardava un campo di rape, di piselli o di lino. Per Teffetto era determinante s e . . . il legno di un bosco era distrutto o portato via,cioè rubato. Per la distruzione esisteva unammenda molto piú elevata che per il furto. Nelfantico diritto germânico era catalogato Teffetto che aveva il singolo fatto’ ” ( Codice Penale, cit., p. XVIII).
255
do conceito de culpabilidade. Quanto mais este se enriquece, com novas exigências, tanto menos se tom a necessária a aplicação da pena criminal. E isso ocorre apesar das cominações legais, pois a aceitação da culpabilidade, cuja presença “independe totalmente da existência de uma lei penal” (Binding, Schuld), introduz drástica e poderosa limitação na concretização dos tipos delitivos. Nessa linha de idéias, um dos acontecimentos históricos mais importantes dos últimos tempos, do ponto de vista penal, foi, indis cutivelmente, a construção da já examinada teoria normativa da culpabilidade, para a qual têm contribuído os mais notáveis penalistas, desde fins do século passado até os nossos dias. A despeito das divergências, inúmeras e inconciliáveis, entre os adeptos da men cionada teoria normativa, em um ponto todos estão de acordo: a exigência do elemento normativo consciência da ilicitude ão jato (para uns, integrante do dolo; para outros, da própria culpabilida de), por parte do agente, para o aperfeiçoamento do juízo de culpa bilidade normativa. Será fácil, aliás, compreender a impostergável exigência desse novo elemento para a complementação do juízo de culpabilidade, se aceitarmos a conclusão evidente por si mesma de que não se pode emitir um juízo de reprovação em relação ao ágente que, ao cometer o fato, não sabia nem tinha a possibilidade de saber o exato signi ficado daquilo que fez. Ora, a mesma razão que leva a considerar-se inculpável a ação cometida por um inimputável (impossibilidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento — art. 26 do CP), deve pesar, também, para impedir seja movida uma “censura” a quem, mesmo sendo normal e imputável, age igualmente sem a possibilidade de “entender o ca ráter criminoso do fato”, isto é, sem a consciência da ilicitude, embora por deficiências momentâneas e circunstanciais, mas inevi táveis. Se o que permite o juízo de censura da culpabilidade é a imputabilidade, isto é, a capacidade de entender e de determinar-se com consciência e vontade, deve ser excluído o mencionado juízo de censura onde a capacidade de compreensão do injusto esteja irremediavelmente ausente, seja de modo permanente, seja de modo episódico. Pretender-se o contrário seria retornar à concepção historica mente superada da responsabilidade objetiva pelo resultado, com o 256
risco de se incorrer neste dramático anátema de Binding: “O erro do legislador pode levar este a admitir uma culpa . . . onde nós não enxergamos nenhuma . . . mas a punição consciente da inocência” representa “um repugnante assassínio judicial e um ato despótico de violência” 5. Dito isso, pode-se afirmar que, neste ponto, começamos a pe netrar na moderna problemática do erro jurídico-penal. Com efeito, os penalistas, por vários séculos, vinham convivendo com a velha solução romana que tomava o fenômeno do erro e o dividia em dois tipos fundamentais — error facti — error iuris — sendo o pri meiro (o erro de fato), em princípio, escusável; o segundo (o erro de direito), em princípio, inescusável (salvo raras exceções). Todavia, com o advento da culpabilidade normativa, exigindo a consciência da ilicitude para o aperfeiçoamento do juízo de cen sura da culpabilidade, tornou-se obviamente insustentável aquela convivência, é que algumas formas do então denominado erro de direito constituíam-se em importantes fatores de anulação ou de exclusão da consciência da ilicitude. Se, com a exclusão desta, não era possível a formação do juízo de censura da culpabilidade, não mais seria igualmente possível, dentro da culpabilidade normativa, admitir-se a inescusabilidade do erro de direito. Assim, ou se aceita a culpabilidade normativa e com ela a escusabilidade de algumas formas do denominado erro de direito, ou se permanece sustentando a inescusabilidade do erro de direito e, com isso, se rejeita uma das maiores conquistas da moderna ciência penal — a culpabilidade normativa. E o mais grave é que não se está diante de uma simples ques tão de opção, como pode parecer, à primeira vista, mas sim diante de um verdadeiro e grave problema, já que â aceitação da escusabi lidade do erro de direito poderia talvez conduzir, como já se pensou e se disse, à insegurança jurídica, à impunidade de perigosos delin qüentes. E para isso a culpabüidade normativa não oferecia, de pronto, solução convincente. Pelo menos não a oferecia em suas formulações iniciais. Como resolver o impasse?
5.
Apud Armin Kaufmann, Teoria, cit., p. 348. 257
A busca de soluções, na qual se empenharam alguns dos maio res juristas do mundo ocidental, caminhou em dois sentidos, a saber: 1.°) de um lado, aprofundaram-se os estudos sobre o novo elemento normativo — a consciência da ilicitude — disso resul tando a sua mais perfeita conceituação, bem como a elaboração de um elenco de critérios limitadores da escusabilidade da falta de consciência da ilicitude; 2.°) de outro lado, reelaborou-se totalmente a teoria do erro jurídico-penal, abandonando-se por inteiro a velha distinção romana entre o erro de fato e o de direito, que já não correspondia às exi gências da moderna concepção da culpabilidade. Vejamos, em rápidas linhas, os resultados a que se chegou, por meio de busca nessa dupla direção.
b)
A consciência da ilicitude (ou da antijuridicidade)
244. Córdoba Roda agrupou em três os critérios elaborados pe los vários penalistas que cuidaram da conceituação da consciência da ilicitude: o primeiro, formal (Binding Beling e von Liszt), exige que o agente saiba, ao cometer o fato, que infringe alguma norma; o segundo (M. E. Mayer e Kaufmann), baseado em uma concepção material do injusto, exige o conhecimento por parte do agente ape nas da anti-socialidade, da imoralidade da conduta ou da lesão de um interesse; o terceiro, solução adotada pelo Supremo Tribunal alemão, em famosa decisão de 18 de março de 1952, considera que, para o conhecimento da antijuridicidade, não se deve exigir o co nhecimento da punibilidade do comportamento, nem o da disposição legal que contém a proibição. .. Basta que o agente, embora não esteja obrigado a realizar uma valoração de ordem técnico-jurídica, possa conhecer, com o esforço devido de sua consciência e com um juízo geral de sua própria esfera de pensamentos, o caráter in justo de seu atuar6. Não será difícil perceber, entretanto, o íntimo parentesco exis tente entre todos esses critérios. O último pressupõe o segundo:
6. 258
El conocimiento, cit., p. 89 e s.
para que se possa, mediante algum esforço da consciência, atingir o caráter injusto de uma ação é necessário que a matéria desse injusto já tenha penetrado anteriormente na consciência, o que só seria possível por meio das normas de cultura, únicas acessíveis ao leigo. O primeiro critério (conhecimento da norm a), que se quer formal, também depende, em certa medida, da validade do segundo. Ê o que se infere facilmente destas passagens de Binding, selecionadas e extraídas de sua obra fundamental (Die Normeri), por Armin Kaufmann: “Na quase-totalidade dos casos a invocação do desco nhecimento da norma não passa duma mentira grosseira e transpa rente”. É que “o egoísmo nos revela quais são os atos que não precisamos tolerar, e via de regra nossa razão conclui acertadamente que tais atos devem estar proibidos quando praticados por outrem face à nossa pessoa, ou por nós face a outrem. Essa suposição da existência duma proibição, que se funda na realidade, basta perfei tamente para produzir um conhecimento suficiente da norma”. O direito, cuja existência não conhecemos espontaneamente, abre mi lhares de canais para chegar a nós: “através de palestras, obras escritas, jornais, proclamações etc.”. “Muitíssimas vezes o juízo alheio nos esclarece a respeito das ações humanas.” “Por outro lado, é bastante freqüente que o dever jurídico chegue a nós através da chamada lei moral”, que basta ao conhecimento da norma, “desde que só se proíba aquilo que realmente é vedado no consenso geral” e “o procedimento contrário à moral seja proibido no terreno jurí dico”. “Dessa forma cada um obterá o conhecimento dos deveres jurídicos mais importantes juntamente cóm o ar que respira.” O desconhecimento da norma, extremamente raro, torna-se mais plau sível “em relação às proibições e determinações policiais, cuja trans gressão nem sequer deveria dar lugar à imposição duma verdadeira pena” 7. Ocorre, como já observara o próprio Binding, no final do trecho acima transcrito, que certas proibições, ou deveres jurídicos, não vêm “com o ar que se respira”, não são dotadas de um conteúdo moral, não correspondem a uma concepção de injusto material. Em relação a essas proibições, os delitos que lhes correspondem são autênticos mala prohibita, e não mala in se, portanto, inacessíveis ao leigo (certos delitos falimentares, delitos de sonegação fiscal etc.). Como exigir-se, nesse caso, por parte do agente, que se supõe não 7.
Teoria, cit., p. 47. 259
ser jurista, motivar-se pelo conhecimento da norma, oü pela antisocialidade, ou pela imoralidade de uma conduta totalmente neutra, ou, ainda, que encontre na sua “consciência” profana, com algum esforço, o que nela nunca esteve e não está? A impossibilidade de resposta a essa ordem de indagações, por qualquer dos três critérios anteriormente referidos, conduziu Welzel a reelaborar o conceito de “consciência da ilicitude”, introduzindo-lhe um novo elemento — o dever de informar-se — para fechar o círculo dogmático, com abrangência da totalidade dos tipos penais. Con sidera este último penalista que a grande maioria dos tipos penais declara ilícita a conduta descrita, porque esta realmente representa uma infração à ordem moral. E, aqui, havendo coincidência entre a infração contra a ordem social e a infração contra a ordem moral, a censurabilidade pela falta c^e consciência da ilicitude repousa, real mente, em uma falta de “esforço da consciência”, pois o conteúdo desta consciência se forma essencialmente com as convicções hauridas da cultura vivida. Basta, pois, para atingir-se a consciência da ilicitude, que cada um reflita sobre os valores ético-sociais funda mentais da vida comunitária de seu próprio meio. Em relação aos tipos penais não coincidentes com a ordem moral, com os costumes, a falta de consciência da ilicitude só pode basear-se em uma ausência de informação, ou em uma informação deficiente, quando as circunstâncias concretas indicarem ao autor um motivo para que se deva inform ar8. Esta última construção abre, sem dúvida, o caminho a se:r per corrido. Não oferece, todavia, ainda, critérios seguros, pragmaticamente manipuláveis, para se decidir a respeito de como e onde (em que “circunstâncias concretas” ) estará o juiz legitimamente au torizado a exigir do agente um especial dever de informar-se. Ora, no direito positivo brasileiro, a introdução de um genérico e circuns tancial “dever de informar-se” poderia encontrar sérios obstáculos perante o princípio constitucional, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5.°, II). Diante disso, a aceitação pura e simples da construção welziana apresentar-se-ia inviável. De resto, a sua genérica imprecisão, com a conjugação “dolo-culpa”, torna-a de di fícil aceitação. Binding opõe sério obstáculo ao que qualifica de 8.
260
Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 171-3.
“criatura monstruosa”, ao afirmar que a simples transgressão de uma proibição desconhecida não se transforma em delito pelo fato de ser culpável o desconhecimento dessa transgressão. “Quem ad mitir o contrário” — afirma textualmente o autor citado — “estará transferindo a culpabilidade de um delito de omissão para um de atividade, a fim de com isso criar um especial crime comissivo, a partir da infração de duas normas, uma preceptiva, outra proibi tiva, a daquela culposa, a desta sem culpa. Uma tal criatura não pode ser senão monstruosa” (Das Geschõpf kann nicht anders ais monstros ausfallenY. Pensamos, porém — e nisto vai uma pequena contribuição ao desenvolvimento, entre nós, de tão momentoso tema — ser possível fazer-se derivar o especial “dever de informar-se”, mais limitada mente, não das “circunstâncias”, mas diretamente das normas que regulam o exercício de “certas atividades notoriamente fiscalizadas e regulamentadas” 10. O tratamento não é idêntico, mas semelhante ao que ocòrre com os crimes dolosos comissivos por omissão, na base dos quais situa-se a violação de um dever jurídico. E tais criaturas não têm sido tachadas de monstruosas, por quantos as viram. Confinado, assim, o “dever de informar-se” no círculo hoje bastante amplo das atividades regulamentadas — profissões liberais, técnicas, comércio habitual etc. — teremos: onde houver um con junto de normas jurídicas (legais, regulamentares, costumeiras ou estatutárias) estabelecendo condições e regras para o exercício de certas atividades que não fazem parte, necessariamente, da vida de todos e de cada um, aí existirá um especial dever jurídico de in formar-se, pois o Estado e a sociedade, omnium consensu, permi tem ao indivíduo o desfrute dos benefícios decorrentes da prática dessas atividades, que fogem ao padrão normal de conduta, mas, ao mesmo tempo, regulamentam a condição do seu exercício11. Fora disso, o dever de informar-se será de exigibilidade realmente muito discutível. Conjugando-se o que foi dito com os princípios da denomina da “teoria limitada da culpabilidade” e com certos ensinamentos 9. 10. 11.
Die Normen, cit., v. 2, t. 1, p. 142-3. (Não há grifos no original.) V. nosso O erro, cit., p. 74, 96, 105, 106 etc. V. nosso O erro, cit., p. 96-7. 261
preciosos e válidos do direito canônico, pode-se traçar o seguinte quadro esquemático: a consciência da ilicitude é uma valoração pa ralela do agente na esfera do profano (Mezger), bastando, para que seja atingida, que cada um reflita sobre os valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu próprio meio (Welzel). Pode ser atual ou potencial. Assim, não aproveita ao agente a falta da consciência da ilicitude quando: a) teria sido fácil para ele, nas circunstâncias, obter essa consciência com algum esforço de inteligência e com os conhecimentos hauridos da vida comuni tária de seu próprio meio; b) propositadamente (ignorantia affectata do direito canônico), recusa-se a instruir-se para não ter que evitar uma possível conduta proibida; c) não procura informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de ati vidades regulamentadas.
c)
Falta de consciência da ilicitude e ignorância da lei
245. Dentre as dificuldades apresentadas para a aceitação plena da escusabilidade da falta da consciência da ilicitude, seja como elemento do dolo (teorias do dolo), seja como elemento da culpabilidade (teorias da culpabilidade), adquire especial importância, no Brasil e nos demais países latinos, a questão de saber se deve existir, ou não, alguma distinção entre falta de consciência da ilici tude e ignorância da lei. O peso de uma grandiosa tradição jurídica latina tem, contraditoriamente, nesta área, dificultado o desenvolvimento, entre nós, da moderna teoria do erro, devido à confusão que se fez entre duas noções bem distintas entre si: a consciência da ilicitude e o co nhecimento presumido da le i12. Parece-nos elementar, contudo, que, sendo a “lei” uma coisa e a “ilicitude” de um fato outra bem diferente, só mesmo por meio de uma imperdoável confusão a respeito do verdadeiro sentido des ses dois conceitos se poderá chegar à falsa conclusão de que igno rância da lei é igual a ignorância da ilicitude de um fato da vida 12. V. nosso O erro, cit., p. 76 e s.; Figueiredo Dias, O problema, cit., p. 50-1; Biaggio Fetrocelli, La colpevolezza, cit., p. 120-1; Córdoba Roda, El conocimiento, cit., p. 17; Eduardo Correia, Direito criminal, cit., p. 419. 262
real. Fixemos isto: lei, em sentido jurídico estrito, é a norma es crita editada pelos órgãos competentes do Estado. Ilicitude de um fato é a correlação de contrariedade que se estabelece entre esse fato e a totalidade do ordenamento jurídico vigente. Se tomarmos, de um lado, a totalidade das leis vigentes e, de outro, um fato da vida real, não será preciso muito esforço para perceber que a eventual ilicitude desse fato não está no fato em si, nem nas leis, mas entre ambos, isto é, na mútua contrariedade que se estabeleceu entre o fato concreto, real, e o ordenamento jurídico no seu todo. Assim, pode-se conhecer perfeitamente a lei e não a ilicitude de um fato, o que bem revela a nítida distinção dos conceitos em exame. Isso explica a atual redação do art. 21 do Código Penal, intro duzida pela reforma penal, admitindo, ao lado do tradicional prin cípio da inescusabilidade da ignorância da lei, a escusabilidade do desconhecimento do injusto13. Assim, “dizer-se que as leis, uma vez editadas e publicadas, adquirem validade formal, ou vigência, independentemente de serem conhecidas em concreto, é uma afir mação correta mas que nada tem a ver com o problema da cons ciência da ilicitude, pois — afirma Eduardo Correia — ‘do que neste se cura não é da ignorância da lei penal, que pela natureza das coisas só em abstrato poderia ser considerada, mas de concreta au sência no agente, e no momento da atuação, da consciência da ili citude de uma certa conduta. Poder-se-á, na verdade, pretender que a ignorância da lei não tenha eficácia excluidora da culpa; mas já assim não será, como vimos, em relação à ignorância da ilicitude do fato’ ” J4. Sem razão, pois, a nosso ver, Nélson Hungria quando afirma: “Certamente, a consciência da injuridicidade, integrante do dolo, de veria ser excluída pelo erro de direito, quanto o é pelo erro de fato; mas o erro de direito deve ser declarado inescusável, pelo menos em países com diversidade de graus de adiantamento cultu ral, por isso que, além de provir da omissão do dever cívico de conhecer as proibições impostas pela necessidade da disciplina so cial, importaria, se considerado relevante, a impunidade de extenso 13. Está assim redigido o preceito mencionado: “Art. 21. O desco nhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevi tável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”. 14. Nosso O erro, cit., p. 80-1. 263
número de delinqüentes, em cuja defesa se invocaria sempre, e com árdua dificuldade de prova em contrário, a ignorância da leV (gri famos)15. Nesse pequeno trecho do ilustre penalista pátrio notam-se, claramente, os pontos frágeis de premissas a nosso ver incorretas, diretamente responsáveis pela conclusão que adota, a saber: 1.°) Toma a “consciência da injuricidade” ( = da ilicitude) como elemento integrante do dolo. é o velho dolus malus romano, incapaz de oferecer soluções adequadas para o erro jurídico-penal, a ponto de os seus seguidores (dentre eles Mezger) terem sido con duzidos à construção de uma culpabilidade de autor, não pelo que o agente faz, mas por aquilo que é, na tentativa de cobrir as fa lhas dessa noção do dolo, supondo em certos tipos criminológicos um dolo ficto, inexistente. Deslocando-se a consciência da ilicitude do dolo para a culpabilidade (teorias da culpabilidade), solução adotada pelos seguidores da doutrina finalista e hoje pelo direito positivo alemão (§§ 16 e 17 do StGB), desaparece por completo o temor de “impunidade de extenso número de delinqüentes5', sem a necessidade de se construir, ao lado de um dolus malus, a grotes ca figura do dolus suppositus. Além disso, afigura-se-nos óbvio que quem comete um fato por erro inevitável não pode ser incluído no rol do “extenso núme ro de delinqüentes”, a não ser que se queira retomar ao arcaico direito penal do resultado (Erfolgsstrafrecht) , no qual só se levava em conta o dano e não a culpabilidade do agente. A questão está evidentemente mal colocada. Não se cura a enfermidade ma tando o doente. Alcides Munhoz Neto, em preciosa monografia, salienta, a propósito, corretissimamente: “Precisamente onde o nú mero dos que desconhecem a lei é maior, é que mais condenável se toma a rigidez do error iuris nocet, sendo absurdo pretender que a lei, elaborada para quem sabe ler e meditar, raciocinar e delibe rar com segurança sobre os problemas da vida, seja indistintamente aplicada a todos os brasileiros, transformando-se em instrumento de iniqüidade contra a parcela valorosa e respeitável de sua popu lação, representada pelos analfabetos e apedeutas, gente rústica e simplória, vivendo nos rincões afastados, nas vilas pacatas, de cos tumes rudimentares e inocentes. Do que se deve cuidar é de esta 15.
264
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 217-8.
belecer um critério, que permita ao juiz, no uso de seus poderes discricionários, examinar a alegação de desconhecimento da anti juridicidade, a fim de, ou isentar o autor de pena, quando a igno rância seja plenamente escusável, ou atenuar a sanção, de acordo com o grau de desculpabilidade, ou, ainda, negar-lhe qualquer re levância quando derivada de culpável desajustamento do autor às exigências da ordem jurídico-penal” 16. 2.°) Identifica a falta de consciência da ilicitude com a igno rância da lei, incorrendo nas críticas já formuladas. 3.°) Aceita a necessidade da consciência da ilicitude como “integrante do dolo”, mas não lhe dá qualquer valor, pois só ad mite sua exclusão pelo erro de fato e não pelo erro de direito ( “ ...d ev eria ser excluída pelo erro de direito, quanto o é pelo erro de fato; m a s . .. ” ). Ora, conforme afirmamos em outro tra balho, para a justificação do denominado erro de fato, a consciên cia da ilicitude não chega a entrar em cena, não faz parte do es petáculo. Basta o elemento intelectual do dolo-do-fato, com abs tração do elemento normativo, e se terá a solução tradicional: quem atira no que supõe ser um animal de caça atrás do arbusto e fere, por erro escusável, um ser humano, não age dolosamente porque faltou a previsão do resultado. Como se vê, o dolo fica excluído em momento anterior ao da verificação do elemento normativo “consciência da ilicitude”. O mesmo não ocorre, entretanto, em relação ao chamado erro de direito, que só pode ser excluído pela ausência do elemento normativo em causa. Mas, precisamente aqui, nega Hungria qualquer influência ao elemento normativo, por con siderações de ordem extrapenais (a diversidade de graus de adian tamento cultural, necessidade de disciplina social etc.). Isso, porém, transforma o elemento normativo “consciência da ilicitude” numa espécie de adorno supérfluo dos elementos estru turais do conceito de crime, que se põe, quando se quer enfeitar a noção do dolo, e se tira, quando tal enfeite se toma incômodo pelos efeitos que possa produzir. é
uma contradição imperdoável, a nosso ver.
Concluindo, falta de consciência da ilicitude e ignorância da lei são noções distintas e não conflitantes. Pode-se, pois, perfei 16.
A ignorância da antijuridicidade em matéria penal, p. 74-5.
265
tamente, aceitar como válido o princípio ignorantia legis neminen excusat. Tal princípio, com efeito, constitui um dogma necessário para a validade do ordenamento jurídico, que deve obrigar a todos, de modo concomitante, não sendo sequer pensável que, dentro do mesmo Estado, as leis possam ser válidas em relação a uns e não em relação aos que eventualmente as ignorem. Mas essa é uma questão de pura obrigatoriedade abstrata da lei que não se extrapola para o problema da culpabilidade do agen te por um fato concreto. Aquela diz com o fundamento de vali dade da lei. Este vai além, envolvendo-se com a própria existência do crime ao qual se devam aplicar as leis que se têm por inapelavelmente vigentes. Em outras palavras: o ignorante das leis não se exime de pena pelo só fato dessa ignorância. Poderá, porém, eximir-se, se não atuou culpavelmente, por falta de consciência da ilicitude, se essa falta for escusável, ou seja, inevitável. Em suma, se não cometeu crime algum. Disso resulta, necessariamente, uma importante distinção en tre o erro de vigência, que realmente constitui uma espécie de ignorantia legis, inescusável, e o erro sobre a ilicitude do fato (erro sobre o estar-proibido ou, abreviadamente, erro de proibição, do alemão Verbotsirrtum), que pode ser escusável, se inevitável. O equívoco da doutrina tradicional foi não perceber que o denominado “erro de direito” englobava várias formas de erro, to talmente diferentes entre si, e que, portanto, não podiam estar con tidas em um único conceito, com idênticos efeitos jurídicos. Estabelecidas, porém, as necessárias distinções, salta aos olhos, de pronto, a insuficiência da velha dicotomia romana, “erro de fato-erro de direito”, para abranger as novas formas de erro, identificadas por meio da análise mais aprofundada do que antes se supunha ser um fenômeno simples e que só tinha por objeto ou o fato ou a lei. Verificando-se que o objeto do erro não é só o fato nem só a lei, mas que pode situar-se também na relação de contrariedade entre o primeiro e a segunda, chega-se, mediante um novo enfoque do fenômeno do erro, à construção de uma nova teoria do erro jurídico-penal — missão empreendida com êxito pela doutrina alemã — a respeito da qual dedicaremos as linhas se guintes. 265
d)
Erro de tipo, erro de proibição
246. O segundo e não menos importante caminho percorrido pela dogmática penal, na busca de solução para a problemática de que estamos tratando, consistiu na mudança do foco de incidência do erro, do fato ou da lei, para os próprios elementos estruturais do conceito de crime. Abandona-se qualquer pretensão de valorar, nesta área, a velha e superada oposição entre o fático e o jurídico. No lugar dessa falsa oposição, coloca-se a distinção, já bem elabo rada doutrinariamente, entre tipo e antijuridicidade (ou ilicitude). Feito isso, percebe-se, sem qualquer dificuldade, que o erro jurídicopenal relevante ora recai sobre (tem por objeto) elementos ou cir cunstâncias integrantes do tipo legal de crime (fáticos ou jurídiconormativos, pouco importa), ora recái sobre a antijuridicidade (ou ilicitude) da ação. Na primeira hipótese tem-se um erro sobre ele mentos ou circunstâncias do tipo ou, abreviadamente, “erro de tipo” ( Tatbestandsirrtum). Na segunda hipótese, tem-se um “erro sobre a ilicitude do fato real” 17 ou, abreviadamente, “erro de proibição” (Verbotsirrtum). Conexiona-se, dessa forma, a distinção entre tipo e ilicitude com a correspondente distinção entre erro de tipo e erro de proibição. Como ambas essas formas de erro são igualmente relevantes para o direito penal, a antiga antinomia que se criara entre elas cede lugar a uma distinção puramente conceituai, da qual não se podem extrair efeitos jurídicos opostos — a escusabilidade de uma e a inescusabilidade de outra. O certo será dizer-se que am bas podem, ou não, ser escusáveis, dentro de certos critérios. Não se trata — frise-se, para evitar equívocos — de uma substituição meramente terminológica, como se o erro de fato pas sasse a denominar-se erro de tipo e o de direito, erro de proibição. É muito mais que isso, pois o erro de tipo abrange situações que, antes, eram classificadas ora como erro de fato, ora como de di reito. O erro de proibição, por sua vez, além de incluir situações novas, abarca uma série de hipóteses antes classificadas como erro de direito. Eis alguns exemplos elucidativos. No delito de corrupção ativa (art. 333), ser o agente passivo “funcionário público” constitui elemento essencial do tipo. O con 17.
Welzel, Das deutsche Strafrecht, dt., p. 167. 267
ceito de funcionário público — que é um conceito jurídico-normativo — consta da própria lei penal (art. 327). Quem oferece propina, para a prática de ato de ofício, a um empregado de enfddade autárquica, ou paraestatal, supondo que essa espécie de em pregado não se reveste da qualidade de funcionário público, incorre em erro de tipo. Errou sobre um elemento integrativo do tipo. Na velha concepção, tratar-se-ia de um evidente erro de direito penal. No crime de bigamia (art. 235), ser o agente ativo “.casado” constitui elemento jurídico-normativo do tipo, definido nas leis civis. Quem, sabendo-se casado mas enganando-se sobre seu verdadeiro estado, por supor inválido o casamento anterior, casa-se civilmente de novo, antes da anulação ou do divórcio, incorre em erro sobre o estar-proibido, ou seja, erro de proibição. Na antiga doutrina, tratar-se-ia de um erro de direito extrapenal, equiparado a erro de fato. No crime de furto (art. 155), dois elementos integrativos do tipo são a “coisa” e a circunstância de ser “alheia”. O primeiro, “ser coisa”, é um elemento fático, descritivo; o segundo, “ser alheia”, por envolver o conceito de propriedade, é um elemento jurídico-nor mativo. Quem se apoderar de um cheque ao portador, seja por supor que não se trata de coisa, seja por supor que lhe pertence, incorre em erro de tipo, tanto em uma como em outra hipótese. Se, entretanto, o agente, apesar de saber que o cheque ao portador é uma coisa móvel, alheia, pertencente a quem lhe deve importân cia idêntica à consignada nesse documento, e, por isso mesmo, dele se apodera, sorrateiramente, supondo estar autorizado a quitar-se, por esse meio, da dívida de que é credor, então o erro só pode estar recaindo sobre a ilicitude do fato, configurando-se uma nítida hipótese de erro de proibição. E assim por diante. Definimos alguns dos exemplos citados como erro de tipo, ou tros como erro de proibição. Abstemo-nos, porém, de atribuir-lhes, em cada caso, a escusabilidade ou a inescusabilidade. É que, por ora, sabemos que essas espécies de erro podem ser escusáveis, ou não, segundo certos critérios ainda não definidos até aqui. Impor ta, pois, agora, enfrentar esse delicado tema.
e)
E rro d e tip o essencial e a cid en ta l
247. Pode-se afirmar, desde logo, que o erro de tipo essen cial é sempre escusável, no crime doloso. Não o é, no crime eul268
poso (culpa stricto sensu), quando previsto em lei. É o que está dito no art. 20 e § 1.° do Código Penal, a nosso ver corretamente, pois a imprudência, a negligência e a imperícia são formas eviden tes de erro evitável (Binding). Dito isso, esclareçamos a afirma ção inicial: o erro de tipo essencial exclui sempre o dolo, independen temente de ser evitável, ou não, vencível ou invencível, pois só se pode pensar em um erro evitável que não se evitou, se ligarmos o fato a uma conduta culposa. Nessa hipótese, de qualquer forma, cai o tipo doloso, exsurgindo a modalidade culposa, se prevista em le i18. É a orientação adotada pela reforma penal (art. 20). Diga-se, ainda, que erro de tipo essencial é só o que recai sobre algum elemento do tipo, sem o qual o crime deixa de existir. No exemplo do furto, quem se apodera de coisa alheia móvel, pensando ser um objeto que lhe pertence, erra sobre elemento do tipo (o cará ter alheio da coisa), sem o qual o crime deixa de existir. Em ou tras palavras, não cometeria subtração alguma, se o objeto realmente lhe pertencesse. O erro, nessa hipótese, é escusável, conforme vimos. Erro acidental, ao contrário, é o que recai sobre circunstâncias acessórias ou estranhas ao tipo, sem as quais o crime não deixa de existir. Exemplo: alguém, supondo matar Tício, mata Caio, por engano. Trata-se de erro acidental, pois para o tipo do homi cídio basta matar um ser humano, sendo irrelevante ser a vítima Caio e não Tício.
f)
Erro de proibição escusável, só quando inevitável
248. Aceita-se, em doutrina, unanimemente, a afirmação de que nem todo erro de proibição seja escusável. Isso é uma conse qüência lógica das considerações feitas a propósito da “consciência da ilicitude” (supra, n. 244 e 245). Com efeito, sendo o erro de proibição o resultado de um atuar sem a consciência da ilicitude, será ele escusável na medida em que essa falta de consciência da ilicitude também o for. Chega-se, pois, ao conceito de inevitabili dade do erro de proibição — ponto nevrálgico da questão sobre o qual ainda se debruçam os pen alistas — por um longo caminho, ou seja, pelo exame da inevitabilidade da falta da consciência da ili18.
Nosso O erro, cit., p. 51.
269
citude. E isso se consegue com uma inversão do raciocínio, a sa ber: conhecidos alguns critérios válidos para a identificação da evitabilidade da consciência da ilicitude e, portanto, do erro, chega-se, por exclusão, à inevitabilidade do erro de proibição, em concreto, a partir do exame das peculiaridades de cada caso ocorrente. Ê o seguinte o quadro que traçamos para a evitabilidade, por tanto para a inescusabilidade, do erro de proibição: “ 1.°) exclui-se o erro de proibição relevante quando o agente atue com uma ‘cons ciência profane? do injusto; 2.°) é ele ainda excluído quando o agente: a) atue sem essa consciência, apesar de lhe ter sido fácil, nas circunstâncias (com o próprio esforço de inteligência e com os conhecimentos hauridos da vida comunitária de seu próprio meio), atingir tal consciência profana; b) atue sem essa consciência (ignorantia affectata do direito canônico) por ter, na dúvida, deixado propositadamente de informar-se para não ter que evitar uma pos sível conduta proibida; c) atue sem essa consciência (ignorantia vincibilis do direito canônico) por não ter procurado informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de ati vidades regulamentadas” 19. Conjugando-se esses critérios para a identificação da evitabili dade do erro com a distinção já estabelecida entre ignorância da lei e falta de consciência da ilicitude, podem-se construir duas classes fundamentais de erro de proibição, sendo a primeira, em princípio, escusável, quando o erro for inevitável, por se tratar de autêntica ignorância da ilicitude do fato; a segunda, inescusável, por se iden tificar com verdadeiras formas de ignorantia legis (salvo cásòs ra ros, especialíssimos). Assim: Erro de proibição escusável a) erro de proibição direto — o agente, por erro inevitável, realiza uma conduta proibida, ou por desconhecer a norma proibi tiva, ou por conhecê-la mal, ou por não compreender o seu ver dadeiro âmbito de incidência (a expressão norma proibitiva não tem, aqui, o sentido de norma legal — v., infra); b) erro de mandamento — o agente, que se encontre na “po sição de garantidor”, diante da situação de perigo de cujas circuns 19. 270
O erro, cit., p. 97.
tâncias fáticas tem perfeito conhecimento, omite a ação que lhe é determinada pela norma preceptiva — dever jurídico de impedir o resultado — supondo, por erro inevitável, não estar obrigado a agir para obstar o resultado; c) erro de proibição indireto — o agente erra sobre a exis tência ou sobre os limites de uma causa de justificação, isto é, sabe que pratica um fato em princípio proibido, mas supõe, por erro ine vitável, que, nas circunstâncias, milita a seu favor uma norma per missiva prevalecente 20. Erro de proibição inescusável As formas mais comuns de ignorantia legis identificam-se com o erro que recai sobre a vigência ou eficácia de uma lei, sobre a punibilidade do fato ou sobre a subsunção deste à hipótese legal, a saber: d) erro de vigência — inescusável — o agente desconhece a existência de um preceito legal — ignorantia legis — ou ainda não pôde conhecer uma lei recentemente editada; b) erro de eficácia — inescusável, salvo hipóteses raras e especialíssimas — o agente não aceita a legitimidade de um preceito legal por supor que ele contraria outro preceito de categoria supe rior, ou norma constitucional; c) erro de punibilidade — inescusável — o agente sabe que faz algo proibido, ou devia e podia sabê-lo, mas supõe inexistir pena criminal para a conduta que realiza, desconhece a punibilidade do fato; d) erro de subsunção — inescusável — o agente conhece a previsão legal, o fato típico, mas, por erro de compreensão, supõe que a conduta que realiza não coincide, não se ajusta ao tipo delitivo, à hipótese legal21.
g)
Descriminantes putativas
249. Estudo mais detalhado e mais amplo mereceriam as de nominadas descriminantes putativas. Na impossibilidade de fazê20. 21.
Nosso O erro, cit., p. 100 e s. Nosso O erro, cit., p. 100 e s. 271
lo, nos lindes deste estudo introdutório, limitar-nos-emos a algumas considerações essenciais para a compreensão do tema. O art. 20, § 1.°, do Código Penal (atual redação) estabelece ser isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas cir cunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tomaria a ação legítima. Na parte final, admite o preceito a punição a título de culpa, se prevista em lei a figura culposa22. Disso resulta que situações reais, configuradoras das causas de justificação do art. 23 do Código (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumpri mento de dever legal e exercício regular de direito), podem, quando irreais, isto é, quando, por erro, existirem apenas na imaginação do agente, transformar-se, dentro de certos limites, em causas de erro escusável, denominando-se, então, descriminantes putativas, isto é, descriminantes imaginárias, irreais. O mais clássico exemplo de uma descriminante putativa encontramo-lo na denominada le gítima defesa putativa. Tício, supondo-se ameaçado de morte pelo desafeto Caio, que faz um gesto de sacar arma, age mais rapi damente e mata o suposto agressor. Depois se verifica que Caio es tava desarmado, tudo não tendo passado de um lamentável equívoco de Tício. Ê claro que não se poderá no caso cogitar de uma ver dadeira legítima defesa, pois a agressão por parte de Caio era ine xistente, ou melhor, só existiu na imaginação de Tício. Não obs tante, dependendo das circunstâncias em que a imagem dessa agres são fantasmagórica veio a alojar-se na mente de Tício, poderá ela configurar um erro escusável, excludente do dolo, ou um erro de rivado de cülpa, caracterizador do crime culposo. Embora a sede das descriminantes putativas seja o § 1.° do art. 20 inicialmente citado ( “ .... quem, por erro plenamente justifi cado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tomaria a ação legítima” ), pensamos que tal preceito não é exaus tivo, não esgota as hipóteses das descriminantes imaginárias. Percebe-se, com efeito, claramente, que esse preceito, completado pela parte final do parágrafo (“não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo” ), aplica-se apenas ao erro de "tipo permissivo” 23 excludente do dolo, não ao 22. manteve, tação do 23. 272
Neste prèceito, a reforma penal, que tanto inovou no tema do erro, por razões que serão explicadas mais adiante, a mesma regulamen Código de 1940. V, nosso O erro, cit-, p. 45 e s.
erro excludente da censura de culpabilidade, tanto que se permite a punição a título de culpa stricto sensu (esta é, aliás, a posição da teoria limitada da culpabilidade, que adotamos)24. E, aqui, retoma o problema da culpabilidade. As descriminan tes putativas ( = erro que recai sobre uma causa de justificação) não se limitam às hipóteses de exclusão do dolo, mas apresentam-se, por vezes, com pretensão à exclusão da censura de culpabilidade. Considere-se que o erro sobre uma causa de justificação pode recair sobre os pressupostos fáticos dessa mesma causa ( “supor situação de fato” ), mas pode também — isto é inegável e aceito em doutrina — recair não sobre tais pressupostos fáticos, mas sobre os limites, ou a própria existência, da causa de justificação (supor estar autoriza do). Isso é possível ocorrer, com nitidez, quando alguém, por exemplo, para defender-se de um tapa no rosto, supõe estar autoriza do a desferir um tiro fatal no* agressor, em legítima defesa, excedendo-se no emprego dos “meios necessários”. Nessa hipótese — e em muitas outras — pode não haver qualquer equívoco do agente sobre a “situação de fato”, incidindo o seu erro somente sobre os limites da causa de justificação “legítima defesa” etc. E não seria razoável confundir-se “supor situação de fato” com “supor estar autorizado” para considerarem-se ambas as hipóteses reguladas por preceitos le gais — art. 20, § 1.° — que só cuidam da primeira, isto é, “supor situação de fato”. Por outro lado, na lacuna da lei, não será igual mente possível, diante do princípio nullum crimen nulla poena sine culpa, concluir-se simplistamente por uma responsabilidade objetiva do agente, sempre e sempre que, no exemplo dado, possa ter incor rido em um erro, na escolha dos “meios necessários” para defenderse, quando se encontrava em uma induvidosa situação de legítima defesa. Não estamos pretendendo, evidentemente, justificar, aqui, indiscriminadamente, a desproporcionada agressão de quem mata para se defender de um simples tapa. Isso seria um equívoco opos to, talvez mais grave. O que estamos afirmando é que, admitindose o fato exemplificado como resultante de um erro, este só pode ser o de proibição, que, na omissão da lei, deve ser analisado dentro do direito penal da culpabilidade, onde encontrará solução adequada, 24. A reforma penal acolheu integralmente essa orientação, como está expresso na Exposição de Motivos do Ministro da Justiça, item 17, e como, aliás, resulta do texto. A respeito dessa teoria, v., infra, létra h. 273
com a punição ou absolvição do agente, segundo a sua culpa e o grau desta. Concluindo, temos para nós que as denominadas descriminantes putativas. encontram melhor tratamento dentro da “teoria limi tada da culpabilidade” (eingeschrãnkte Schuldtheorié) , com resulta dos diferenciados, segundo configurem, em concreto, o erro de tipo ou o erro de proibição, submetendo-se aos requisitos já apresentados para a escusabilidade, ou não, de cada uma dessas formas básicas do erro. Toma posição contrária a essa que sustentamos Alcides Munhoz Neto, para quem, no direito penal brasileiro, o erro nas descriminan tes putativas é sempre erro de proibição, in verbis: “A ausência de dolo por não-representação da tipicidade não pode ser afirmada nos casos de invencível erro sobre circunstâncias de fato, que tornaria a ação legítima, isto é, nas hipóteses das descriminantes putativas fáticas. Quem, v. g., lesa corporalmente outrem, porque se imagina por ele injustamente agredido, tem representação da tipicidade de seu proceder: sabe que está a praticar a ação correspondente à de finição típica de lesão corporal, ou seja, que ofende a integridade corporal ou a saúde de outrem; supõe, porém, que sua conduta é lí cita, porque a tem como amparada por uma causa legal de exclusão da antijuridicidade (legítima defesa). Desta forma, a eficácia do erro de fato nas descriminantes putativas só pode ser atribuída à ig norância da antijuridicidade” 25. E mais adiante conclui: “Em con clusão, no direito penal brasileiro cabe afirmar que o erro nas des criminantes putativas é erro de proibição. Como o conhecimento da antijuridicidade não integra o dolo, mas pertence à culpabilidade (,supra, n. 34), segue-se que quem age na errônea crença de ser le gítimo o seu comportamento procede dolosamente. Porém, sendo o erro de fato e invencível, não é culpado por ausência de censura pessoal e terá a isenção de pena, legalmente estabelecida. A circuns tância de ser o erro vencível punido como crime culposo não colide com a afirmação acima. Esta forma de punição não significa, com efeito, que, em tal hipótese, a falta de consciência da antijuridicidade exclua o dolo, deixando, se evitável, subsistente a culpa em sentido estrito. Reflete apenas o critério de tratar um comportamento do
25. 274
A ignorância, cit., p. 112.
loso como se culposo fora, em decorrência da diminuição da cen surabilidade pessoal. . . ” 2e. Permitimo-nos divergir do ilustre professor paranaénse, que, nesse particular, adota a denominada teoria “estrita” da culpabilida de (“sírenge” Schuldtheorié) também seguida por Welzel, Maurach e outros. Nem em nosso sistema, nem em outro qualquer, seria possível a existência deste ente verdadeiramente mitológico, pelo seu hibridismo e poder de mutação: um crime doloso punido como se culposo fora. Se o que distingue o crime culposo do doloso não é a natureza ou a quantidade da pena (caso das contravenções), ne nhuma razão existiria para que o legislador caísse na teratogenia aci ma apontada, se quisesse somente estabelecer uma hipótese de pena menos grave. Assim não fez no homicídio privilegiado (art. 121, § 1.°), assim também não precisaria fazer no capítulo do erro. De resto, não vemos como se possa falar em dolo quando o próprio legislador fala em “crime culposo” e — mais que isso — quando se está, sem sombra de dúvida, diante de uma evidente hi pótese de negligência, ou de imprudência. Não criticamos, porém, o autor citado. O mal está é na própria teoria que adota, a qual foi repelida em sua própria terra de origem — a Alemanha — pela jurisprudência dos tribunais (portanto pela praxis), conforme ates tam M aurach27 e Báumann28, fato que, por si só, revela as dificul dades de sua aplicação. Por último, não vemos como se possa ne gar esta diferença marcante, salientada por Baumann: “Deve-se, con tudo, distinguir o agente que toma erroneamente uma inexistente norma de justificação e o que acredita na intervenção de uma norma de justificação realmente existente. O último é, ‘por si, fiel ao direito’, quer realizar o direito. Seu erro precisaria ser da mes ma categoria do erro sobre circunstância fática, devendo, pois, ser tratado como um erro excludente do dolo. T, que, supondo ser ata cado, mata o suposto agressor, não pode jamais ser punido por ho micídio doloso. Fosse o seu erro culposo, então seria punido, se gundo os §§ 222, 16 (1) 2; se, porém, for inevitável, não será ele de modo algum punido. . . ” 29. 26. A ignorância, cit., p. 116. 27. Deutsches Strafrecht, cit-, p. 463. 28. Grundbegriffe, cit., p. 110. 29. Grundbegriffe, cit., p. 110: “Jedoch sei zu unterscheiden zwischen dem Táter, der irrig eme nichtexistente Rechtfertígungsnorm annimmt, und 275
250. As soluções apresentadas, de modo muito resumido, no correr desta rápida visão de olhos sobis a. intriüCcldâ pTObl6Hlâtic3. do erro jurídico-penal, admitem a distinção entre norma e tipo le gal de crime, no sentido que lhe empresta Binding, sem compromis so, porém, com outras conclusões adotadas pelo grande jurista. A respeito de alguns aspectos importantes da teoria das normas, assim se expressa, em certa passagem, Armin Kaufmann, não sem antes registrar o nome de alguns conhecidos penalistas (Beling, Dohna, Maurach etc.) que se deixaram influenciar pelas teses fun damentais de Binding: “ . .. Helmuth Mayer está com a razão quan do afirma que a ‘teoria da norma de Karl Binding’ é ‘a única teoriado direito daquele tempo que assume uma importância fundamen tal’. A norma, ‘liberada da realidade expressionista conferida pela lei e do peso terreno desta’, representou, na ‘mão de mestre’ de Bin ding, o meio de criar um sistema de direito penal que apresenta uma singular c o e s ã o ...” 30. E mais adiante: “ .. . No entanto, é na fixação da culpa que a norma adquire sua importância decisiva e fundamental. Só através da referência ao dever-fazer, ou seja, através da norma, podem ser fundamentados e esclarecidos os ele mentos da capacidade de cumprir o dever, os pressupostos da impu tabilidade. E só da norma pode ser derivado o juízo de valor sub seqüente, por meio do qual se constitui a ‘valoração negativa da per sonalidade’, isto é, a im putabilidade...” 31. Poucas linhas depois: “ . . . Como teoria da norma, a teoria do direito penal recomenda que não consideremos apenas o lado negativo das relações entre o indivíduo e a ordem jurídica. A Binding devemos o conhecimento e a menção enfática do fato de que a dogmática do direito penal não deve restringir-se ao exame de fatores negativos. Os conceitos fundamentais de nosso direito penal, como o da injuridicidade e o da culpa, baseiam-se em estruturas positivas como a capacidade de agir e a capacidade de cumprir o dever. A devida consideração dem, der an das Eingreifen einer existenten Rechtfertigungsnonn glaubt. Letzterer sei ‘an sich rechtstreu’, wolle das Recht verwirldichen. Sein Irrtum müsse dem Tatumstandsirrtom gleichgestellt werden, also wie ein vorsatzausschlie/Jender Irrtum behandelt werden. T, der sich angegiiffen glaubt und den vermeintlichen Angreifer tõtet, kann also niemals wegen vorsãtzlicher Tõtung bestraft werden. War sein Irrtum fahrlãssig, so wird er nach §§ 222, 16 (1 ) 2, war sein Irrtum unvermeidbar, so wird er überhaupt nicht bestraft”. 30. Teoria, cit., p. 365. 31. Teoria, cit., p. 366-7. 276
do fato de que os dogmas do direito penal hão de representar uma inversão de outros dogmas, visto que o conteúdo deste ramo da ciência jurídica consiste na ausência ou na errada apreciação de outros valores, ainda no futuro poderá revelar-se fe c u n d a ...” 32. Aqui, interrompemos as citações, para concluir. Esperemos e desejemos que o direito penal possa efetivamente ancorar-se sobre o reconhecimento de quão importante é a participação consciente do autor de um crime na negação dos valores (íamos dizendo “nor mas” ) que fundamentam, no terreno conceituai e normativo, as leis penais vigentes!
h)
O erro na reforma penal. Teorias do dolo e teorias da culpabilidade. Teorias extremadas e teorias limi tadas. Opção do legislador brasileiro
251. A lei de reforma da Parte Geral do Código Penal assim dispôs nos arts. 20 e 21, sobre o erro de tipo e o erro de proibição, com a denominação mais explícita de “erro sobre elementos do tipo” e “erro sobre a ilicitude do fato” : “Art. 20. O erro sobre elemen to constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. § 1.° É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo” . . . “Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” Quebra-se, por esse modo, a longa tradição romanística que nos prendia no anel de ferro da velha dicotomia “erro de fato-erro de direito”, responsável por algumas insuperáveis contradições na praxis e na dogmática penal, após o surgimento, no início do século, da denominada concepção normativa da culpabilidade, segundo a 32.
Teoria, c it, p. 367. 277
qual a consciência da ilicitude do fato é elemento indispensável para a caracterização do crime. A lei brasileira não é, contudo, a primeira a romper, nesse aspecto, com um passado milenar. A reforma penal da Alemanha Federal, empreendida em fins da década de 60, começo da de 70, já havia introduzido, pela segunda lei de reforma, nos §§ 16 e 17 do Código Penal alemão, o erro de tipo (Irrtum über Tatumstãndé) e o de proibição (Verbotsirrtum) , com a seguinte redação: “ § 16. Erro sobre circunstâncias do fato. 1) Quem ao realizar o fato des conhece uma circunstância pertencente ao tipo legal, não age dolo samente. A punibilidade pela comissão culposa permanece intacta. 2) Quem ao realizar o fato supõe erroneamente a existência de circunstâncias que teriam concretizado o tipo de uma lei mais benig na, somente pode ser punido por atuação dolosa de acordo com a lei mais benigna”. “ § 17. Erro de proibição. Faltando ao agente, ao realizar o fato, a compreensão de praticar o injusto, age ele sem culpabilidade se não podia evitar o seu erro. Fosse possível ao agente evitar o erro, então a pena pode ser reduzida de acordo com o § 49, n. 1” 33. Também o novo Código Penal português, baseado no projeto de autoria de Eduardo Correia, promulgado em 10 de setembro de 1982, acolheu, nos arts. 16 e 17, com pequena variação de trata mento, o “erro sobre as circunstâncias do facto” e o “erro sobre a ilicitude”. Percebe-se, portanto, que o projeto brasileiro segue, no par ticular, uma tendência já cristalizada na legislação de outros países. Mas, ao fazê-lo, procurou, como se constata pelo simples confronto dos textos, imprimir fisionomia própria na regulamentação do novo instituto, sem abandonar totalmente algumas soluções já consagra das entre nós. 252. Para compreender o verdadeiro alcance da inovação em exame, convém dissipar alguns equívocos não muito raros. O pri meiro é a afirmação, que ainda se lê em algumas obras brasileiras, segundo a qual o erro de tipo corresponderia, mais ou menos, ao antigo erro de fato e o de proibição ao vetusto erro de direito. Não 33. 278
Dreher e Trõndle, Strafgesetzbuch, cit., p. 80-8.
é bem assim. Alguma coincidência entre as formas de erro de umâ e outra classificação não autoriza aquela generalização. O segundo equívoco é a confusão que tem sido feita, por vezes, entre erro de proibição e ignorância da lei, a ponto de certos autores versarem a questão da escusabilidade da ignorância ou da má compreensão da lei como se isso esgotasse a extensa problemática do erro de proi bição. Os que incorrem nessas falhas de conceituação ou não desejam contribuir para o desenvolvimento da moderna teoria do erro, tra tando-a de forma superficial à vol d’oiseau, ou não conseguiram ainda desvincular-se de dogmas e aporias do passado. 253. O que cabe dizer a respeito das novas formas básicas do erro, adotadas pela nova legislação, é que, para sua fácil e exata compreensão, é de todo recomendável o abandono da antiga dis tinção romana entre erro de fato e erro de direito. Em seguida, deve-se procurar entender o erro de tipo e o de proibição dentro da distinção estabelecida pela dogmática penal entre os elementos es truturais do crime — o tipo e a ilicitude (ou antijuridicidade). Erro de tipo será, com efeito, todo erro ou ignorância que recai sobre circunstância que constitua elemento essencial do tipo legal. Pouco importa que essa circunstância sobre que recai o erro seja fático-descritiva ou jurídico-normativa. Em qualquer hipótese, tra tando-se de elemento essencial do tipo, o erro será sempre erro de tipo. Desse modo, o que 0 citado art. 20 classifica, agora, como erro de tipo pode situar-se, na velha doutrina, tanto como erro de fato quanto como erro de direito. Um exemplo disso pode ser en contrado no crime de invasão de domicílio do art. 150 do Código Penal. Quem invadir um escritório de trabalho fora dos casos auto rizados, supondo erroneamente que as dependências do local de atividade profissional não estão abrangidas pela expressão “casa”, se estiver realmente em erro, erra sobre o conceito jurídico-penal de “casa”, ministrado pelo § 4.° do art. 150 do Código Penal. Como, no caso, o objeto do erro é um elemento essencial do tipo do crime em exame, o erro se classifica como erro de tipo. Na doutrina tradicional esse erro seria um exemplo de erro de direito (e de direito penal). No erro de tipo, como se vê, o que menos importa é a localização do objeto do erro no mundo dos fatos ou na esfera dos conceitos ou das normas de direito. Importa — isto sim —- saber se o objeto do erro pertence, ou não, na estrutura 279
do crime, âo tipo objetivo. Em caso afirmativo, tratar-se-á de errô de tipo. Como o dolo do agente deve abranger corretamente os elementos essenciais do tipo objetivo, o erro de tipo impede essa abrangência pelo que será sempre uma causa de exclusão do dolo, mas permitirá a punição por culpa stricto sensu, ensejadora do erro, se a figura culposa estiver prevista em lei. Diferentemente, o erro de proibição (erro sobre a ilicitude do fato) é todo erro que recai sobre o caráter ilícito da conduta rea lizada. Aqui o objeto do erro não está situado entre os elementos do tipo legal, mas na ilicitude, ou seja, na relação de contrarie dade que se estabelece entre uma certa conduta e o ordenamento jurídico. O objeto do erro não é, pois, o fato nem a lei. É a ili citude. O agente supõe permitida uma conduta proibida; lícita, uma conduta ilícita. O seu erro consiste em um juízo equivocado sobre aquilo que lhe é permitido fazer na vida em sociedade. Mas não se trata de um juízo técnico-jurídico, que não se poderia exigir do leigo, e sim de um juízo profanò, um juízo que é emitido de acordo com a opinião comum dominante no meio social e comunitário. Daí a denominação “erro de proibição”, ou “erro sobre o estar proibido”, para designar esta forma muito especial de erro ou de ignorância que se traduz numa espécie de cegueira para com os preceitos fundamentais da convivência social que chegam necessa riamente ao conhecimento de todos e de cada um, na maioria dos casos, através dos usos e costumes, da escola, da religião, da tra dição, da família, da educação etc. Por isso é que o erro de proi bição só é escusável quando inevitável, isto é, quando, apesar de tudo, não tiver sido possível ao agente evitar a falta de compreensão do injusto de seu atuar. Assim, por exemplo, todos recebem, desde muito cedo, a in formação de que é proibido matar um semelhante. Quem, sendo imputável, viola essa proibição sabe ou podia saber que infringe as regras dominantes em seu meio social, ainda que jamais tenha ouvido falar ria existência do Código Penal e especialmente na de seu art. 121. Age, pois, em princípio, com a consciência atual ou poten cial da ilicitude de seu agir, embora possa desconhecer completa mente a lei penal vigente. Diversamente, um advogado pode perfei tamente, em certas circunstâncias, incorrer em erro de proibição escusável, como no exemplo da legítima defesa em que, impelido pelas regras de valentia dominantes em certos meios, excede-se, por 280
erro, e engana-se na compreensão dos exatos limites dessa causa de justificação. 254. O que foi dito explica a razão pela qual a Comissão Revisora, incumbida da redação do texto atual da lei, desacolheu a sugestão de alguns para incluir entre as formas de erro escusável a “ignorância ou a má compreensão da lei”, e desacolheu também a sugestão de outros para extirpar do texto o erro sobre a ilicitude do fato que, ao ver dos últimos, iria acarretar absolvições infun dadas principalmente pelo júri. Aos primeiros — aos que pretendem a escusabilidade da igno rância ou da má compreensão da lei — deve-se dizer que, a ser assim, o melhor será extinguir a Justiça criminal, já que, segundo revela a experiência, nem mesmo os advogados e especialistas estariam a salvo desse erro. Quanto ao leigo, que compõe a grande maioria da população, a ignorância ou a má compreensão da lei será a regra. Assim, como ninguém carrega debaixo do braço um repertório de leis comentadas para consulta prévia no momento da prática de cada ato da vida cotidiana, a defesa baseada na alegação de ignorância ou de má compreensão da lei se transformaria, real mente, no “bill de indenidade contra a justiça penal”, a que se refere Nélson Hungria 34. Aos segundos — aos que pretendem ver no eiro de proibição uma janela aberta para absolvições injustificadas pelo júri — podese retrucar que o júri tem igualmente absolvido alguns réus valendo-se da tese da legítima defesa em casos de aplicação muito dis cutível dessa causa de justificação. Nem por isso surgiu, até agora, alguém empunhando a bandeira da extirpação da legítima defesa de nosso Código. Aliás, a experiência revela que o júri, quando quer absolver, absolve. O acolhimento do erro de proibição pelo legis lador não viria somar maiores dificuldades para o Ministério Público ou para a realização na Justiça criminal, nesse quadro de si mes mo já bastante problemático. Isso nos leva à conclusão de que a solução dos problemas existentes na área dos procedimentos da com petência do júri são problemas de direito processual, não de direito materiaJ, devendo, pois, encontrar solução, não com a deformação
34.
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 220-1. 281
OU a mutilação do direito penal da culpabilidade, mas na área pro cedimental. 255. A respeito do erro sobre causas de justificação — as des criminantes putativas — assim se pronuncia a Exposição de Motivos do Min. Abi-Ackel, no item 19, já referido: “ 19. Repete o Projeto as normas do Código de 1940, pertinentes às denominadas ‘descri minantes putativas’. Ajusta-se, assim, o Projeto à teoria limitada da culpabilidade, que distingue o erro incidente sobre os pressu postos fáticos de uma causa de justificação do que incide sobre a norma permissiva. Tal como no Código vigente, admite-se nesta área a figura culposa (artigo 17, § 1.°)”. Há, como se sabe, quatro teorias que disputam entre si o tra tamento do erro que recai sobre uma causa de justificação (legí tima defesa putativa, por exemplo). São elas: a “teoria extremada ou estrita do dolo”, a “teoria limitada do dolo”, a "teoria extremada ou estrita da culpabilidade” e, por último, a “teoria limitada da culpabilidade”. Essas teorias, de origem alemã, foram por nós estu dadas, com algum detalhe, em trabalho publicado na R T, 56(5:271 e s., dez. 1982, sob o título “Teorias do dolo e teorias da culpa bilidade”. Aqui faremos um breve resumo do que foi dito nesse trabalho, com algumas considerações um pouco mais extensas sobre a teoria limitada da culpabilidade, adotada pelo Código vigente. 256. Teoria extremada do dolo. A teoria extremada do dolo — a mais antiga — situa o dolo na culpabilidade e a consciência da ilicitude no próprio dolo. O dolo é, pois, um dolo normativo, o dolus malus dos romanos, ou seja: vontade, previsão e mais conhe cimento de que se realiza uma conduta proibida (consciência atual da ilicitude). Para os seguidores desta teoria, o erro jurídico-penal, seja de tipo, seja de proibição, tem a virtude de excluir o dolo, permitindo, todavia, a punição por fato culposo. O erro de proi bição equipara-se, pois, quanto aos seus efeitos, ao erro de tipo, o antigo erro de fato, ao de direito. Essa teoria perdeu adeptos devido às críticas que recebeu e às dificuldades de sua aplicação prática, sendo mencionada na maioria dos tratados modernos mais pelo seu valor histórico do que pela adesão dos autores. Note-se que boa parte das críticas endereçadas por bacharéis, promotores e juizes às novas concepções do erro, são críticas que 282
tinham cabimento quando dirigidas a essa teoria do dolo, ensinada durante muitos anos e até há bem pouco tempo em algumas Facul dades de Direito. Não percebem, porém, os atuais e desavisados autores dessas críticas que as modernas teorias da culpabilidade já não apresentam os mesmos problemas da teoria extremada do dolo q[ue aprenderam, talvez, no curso universitário. 257. Teoria limitada do dolo. A teoria limitada do dolo quer ser um aperfeiçoamento da anterior, pois desta não diverge a não ser em alguns pontos: substitui o conhecimento atual da ilicitude pelo conhecimento potencial; além disso exige a consciência da ili citude material, não puramente formal. Mezger, que na sua última fase aderiu a esta corrente, acrescentou à teoria em exame um im portante apêndice, muito discutido até os nossos dias, denominado “'culpabilidade pela condução de vida” (Lebensführungschuld), por nós estudado páginas atrás. Com isso, pretendendo superar as falhas da teoria anterior, criou novos e mais sérios problemas com a in trodução da possibilidade de condenação do agente não por aquilo que ele faz, mas por aquilo que ele é, daí derivando em linha reta um direito penal de autor de conseqüências imprevisíveis, conforme vimos. As teorias do dolo, tanto a última como a primeira, perderam atualidade e seguidores, na Alemanha, com a segunda lei de reforma penal que acolheu, expressamente, nos inicialmente citados §§ 16 e 17, os princípios fundamentais das denominadas teorias da culpa bilidade, a seguir examinadas. 258. Teoria extremada da culpabilidade. A teoria extremada ou estrita da culpabilidade surgiu com a doutrina finalista da ação e foi sempre defendida pelos finalistas mais tradicionais, tais como Welzel, Maurach, Armin Kaufmann e outros. No Brasil, alguns autores seguem essa corrente, sem muito senso crítico, pois não aten tam para o fato de que a teoria extremada em exame, em alguns aspectos, foi rejeitada na própria terra de origem pelos penalistas mais recentes e autorizados e por um expressivo setor da jurispru dência. E com isso ocorre um fenômeno curioso: enquanto alguns penalistas brasileiros pretendem ser mais fiéis ao finalismo de Welzel ido que os próprios penalistas alemães, estes últimos — os penalis tas alemães — em número expressivo, preferem seguir a teoria limitada da culpabilidade que, por incrível que isso possa parecer, 283
ê a que èncontrâ apoio expresso em preceitos de nosso Código Penal de 1940, em boa hòra mantidos integralmente no projeto brasileiro de reforma penal, conforme se verá. A teoria extremada parte da reelaboração dos conceitos de dolo e de culpabilidade, empreendida pela doutrina finalista. Separa do dolo a consciência da ilicitude. O que sobra do primeiro, ou seja, vontade intencionalmente dirigida mais previsão do resultado, isto é, o dolo-do-fato, é transferido da culpabilidade para o injusto, pas sando, pois, conseqüentemente, a fazer parte do tipo legal. A cons ciência da ilicitude, por sua vez, passa a fazer parte da culpabilidade como um pressuposto necessário do juízo de censura. Adota-se, porém, a consciência potencial da ilicitude. Feitos estes transplantes nos elementos estruturais do crime, algumas importantes conseqüências vão ocorrer nos efeitos jurídicos das duas formas de erro já mencionadas. Assim, no erro de tipo, inicialmente examinado, o ‘erro vicia o elemento intelectual do dolo — a previsão — impedindo que o dolo abranja corretamente os elementos essenciais do tipo. Portanto, essa forma de erro exclui sempre o dolo, mas permite a punição por fato culposo, se prevista em lei, já que o erro de tipo (exemplo: alguém mata um ser humano supondo ser um animal de caça) quase sempre deriva de uma falta de cuidado, de uma falta de atenção, por parte do agente. A con denação por crime culposo, se prevista em lei, é possível porque, estando o dolo no tipo, não mais na culpabilidade, a exclusão do dolo deixa intacta a culpabilidade, não afetando, portanto, um pos sível aperfeiçoamento da culpabilidade por crime culposo. Já no erro de proibição não é assim. O erro de proibição anula a cons ciência da ilicitude que, como se viu, está agora situada na culpa bilidade. Por isso é que o erro de proibição exclui, quando inevi tável, a culpabilidade. E, como não há crime sem culpabilidade, esta forma de erro impede a condenação, seja por dolo, seja por culpa. Se o erro for evitável atenua a pena, mas a condenação se impõe. Em resumo: o erro de tipo exclui sempre o dolo, quer seja inevitável ou evitável; se o erro de tipo era evitável, mas não se evitou, há que se investigar a muito provável existência de um crime culposo. O erro de proibição exclui a culpabilidade somente quando inevitável. Mas neste caso a absolvição será sempre certa, 284
visto como não há possibilidade de condenação por dolo ou por culpa, sem o aperfeiçoamento da censura de culpabilidade. Até este ponto, a teoria extremada não apresenta divergência com a teoria limitada da culpabilidade. Ambas situam o dolo no tipo e a consciência da ilicitude na culpabilidade; ambas apresentam o erro de tipo como causa de exclusão do dolo, admitindo, nessa hipótese, o crime culposo; ambas apresentam o erro de proibição inevitável como causa de exclusão da culpabilidade, sem possibili dade de punição, neste caso, por crime culposo. A divergência começa, de modo inconciliável, quando se pretende aplicar essas noções ao erro que recai sobre uma causa de justificação — as denominadas descriminantes putativas. Para a teoria extremada da culpabilidade todo e qualquer erro que recaia sobre uma causa de justificação é erro de proibição, o que torna evidentemente impossível a condenação por fato culposo ou por excesso culposo, já que o erro de proibição, se inevitável, exclui a culpabilidade, tomando inviável qualquer condenação; se evitável, não impede a condenação, por fato doloso, mas inviabi liza a condenação por fato culposo, por não ser pensável um fato doloso, ao mesmo tempo culposo. Como, entretanto, os partidários desta teoria extremada não podem negar a existência de condenações por homicídio culposo, na legítima defesa putativa, por exemplo, entendem eles que, nessa hipótese, opera-se uma condenação por dolo, mas atenuada. Aparentemente, a doutrina apresenta-se lógica, inatacável. Erro de proibição inevitável — conseqüência: absolvição; erro de proi bição evitável, mas que não se evitou — conseqüência: condenação atenuada por dolo. Tudo bem, se não fosse o pequeno detalhe do crime culposo, já referido, e que aí está diante de nossos olhos. Por que o agente, em certas hipóteses de legítima defesa putativa, não evita, como podia e devia, a prática do crime? De duas, uma: a) por negligência, imprudência ou imperícia; e b) por dolo. Na primeira hipótese o crime só pode ser culposo, jamais com dolo atenuado, por não ser pensável um fato único “culposo-doloso”, verdadeiro monstro mitológico. Na segunda hipótese o crime é um todo doloso. Ora, no Brasil — a nosso ver corretamente — o erro que recai sobre uma causa de justificação estava expressamente regulado no 285
antigo art. 17 do Código Penal de 1940, cujo § 1.° optou pela punição do fato culposo, como “crime culposo”, e não pela ate nuação da pena de um dolo inexistente. Assim, não havia como tratar, no Brasil, a legítima defesa putativa culposa, como crime doloso e puni-la como tal, de modo extremamente mais severo, “quando o erro deriva de culpa”. 259. Teoria limitada da culpabilidade. Os fundamentos e as colocações da teoria limitada da culpabilidade coincidem, pois, em boa parte, com os da teoria extremada. A diferença entre ambas as doutrinas está no tratamento do erro sobre causas de justificação. Para a teoria estrita, conforme foi dito, esse erro será sempre erro de proibição, submetendo-se à solução já mencionada. Para a teo ria limitada, há que se distinguir, no particular, duas subespécies de erro: uma, a que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação; outra, a que recai sobre a existência ou os limites da causa de justificação. No primeiro caso (erro sobre os pressu postos fáticos de uma causa de justificação), considera a teoria limi tada que ocorre um erro de tipo permissivo, que tem o mesmo efeito do erro de tipo, ou seja: exclui o dolo, mas permite a punição do fato como crime culposo, se previsto em lei. No segundo caso (erro sobre a existência ou sobre os limites de uma causa de justificação), configura-se o erro de proibição com as conseqüências já examinadas (exclusão da culpabilidade, se inevitável, ou atenuação da pena, se evitável). Em suma, a divergência irremovível entre a teoria estrita e a limitada está no tratamento do erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, para a primeira erro de proibição, para a segunda uma espécie anômala de erro (erro de tipo permissivo), que produz os mesmos efeitos do erro sobre elemento do tipo, ense jando, portanto, o aparecimento da modalidade culposa. Essa orientação, que prevaleceu na reforma penal brasileira, encontra justificativa doutrinária entre os inúmeros seguidores da denominada “teoria dos elementos negativos do tipo”. Mas não só eles. Jescheck, em seu Lehrbuch (1978), traduzido para o espanhol (1981), afirma textualmente, no título “Erro sobre causas de justi ficação” : à) Que a doutrina majoritária e um setor da jurisprudên cia seguem uma via intermediária que conduz a um resultado idên tico ao proposto pela teoria dos elementos negativos do tipo, mas 286
com fundamentação diversa (teoria limitada da culpabilidade). O erro evitável sobre os pressupostos de uma causa de justificação não se considera erro de tipo, mas ao mesmo se aplica o § 16 (o que regula o erro de tipo), por reputar-se decisiva a analogia de estru tura em relação ao próprio erro de tipo. b) Que a teoria correta, a seu ver, é a que, com aceitação crescente, entende que o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação reconhecida uni camente pode subsumir-se no § 16 (erro de tipo) quanto à sua con seqüência jurídica, “de modo que o autor, ainda que tenha realizado um delito doloso, só pode ser condenado por imprudência” 35. A reforma penal brasileira, como se vê, ao manter nesse aspecto regulamentação já existente no direito brasileiro, não se divorcia da boa doutrina, razão pela qual não teria por que mudar de orientação, só por amor à novidade ou por fidelidade ao pensamento deste ou daquele autor.
35.
Tratado, cit., v. 1, p, 635-6. 287
§ 18. A culpa em sentido estrito a)
Culpabilidade por fato culposo. A problemática da culpa em sentido estrito (negligência, imprudência e imperícia)
260. Páginas atrás, vimos que, dentro de uma concepção fina lista, os tipos incriminadores são verdadeiros tipos dolosos e tipos culposos de crime. E, na ocasião, estudamos a culpabilidade por fato doloso. Resta, agora, ver a culpabilidade por fato culposo. Basta um superficial exame do Código Penal para perceber-se que, em nosso sistema, não existe um crimen culpae, mas sim um numerus clausus de crimina culposae. Vale dizer: os crimes culposos são na totalidade apenas aqueles expressamente previstos em iei. Onde não houver inequívoca previsão legal, ter-se-á que concíuir pela inexistência do tipo culposo, em obediência ao que dispõe o art. 18, parágrafo único, do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente” 1.
1. Preceitos semelhantes encontramos na legislação penal alemã e na italiana, a saber: StGB, § 15 — “Strafbar ist nur vorsãtzliches Handeln, wenn nicht das Gesetz fahrlãssiges Handeln ausdrücklich mit Strafe bedroht”; Códice Penale, art. 42, 2 — “Nessuno può essere punito per un fatto preveduto dalla 288
Para a tipificação dos crimes culposos, quando os julga excep cionalmente necessários, utiliza-se o legislador de uma técnica simplificadora. Como as modalidades culposas se revestem de caráter extraordinário, pois a regra é a dolosa, vale-se o legislador penal, salvo raras exceções, dos elementos comuns contidos na descrição dolosa, agregando-lhes, logo em seguida, a expressa previsão da cul pa stricto sensu, com a pena respectiva2. Assim, por exemplo, no homicídio: “Art. 121. M atar alguém: Pena — reclusão, de seis a vinte anos . . . § 3.° Se o homicídio é culposo: Pena — detenção, de um a três anos”. Tal metodologia põe em destaque a mencio nada excepcionalidade do crime culposo e revela que o direito penal positivo está, realmente, construído “a serviço do dolo” 3. Não se deve, entretanto, com isso supor que a figura culposa tenha importância marcadamente secundária, não passando de sim ples caudatária da dolosa que lhe corresponde, como poderia pare cer. Entre uma e outra, há diferenças específicas e não poucos pro blemas dogmáticos importantes. Basta atentar para este detalhe e se terá uma visão expressiva do que acabamos de afirmar: no crime doloso, o resultado ilícito não só é desejado como também previsto e perseguido pelo agente (Mévio, querendo matar um desafeto, des fere-lhe um tiro e de fato o m ata); no culposo, ao contrário, esse resultado, salvo hipóteses raras, acontece por azar, isto é, não está na previsão do agente (culpa inconsciente) ou, estando, não é por ele pretendido (culpa consciente). Exemplos: Tício, ao examinar a arma que lhe é oferecida à venda, supondo-a descarregada, com prime o gatilho e, cõm isso, dispara, estarrecido, o tiro que atinge e mata o vendedor. Caio sabe que, se atirar no alvo, poderá, nas circunstâncias, atingir um trabalhador que lavra a terra em local pró ximo à provável área de impacto. Mesmo assim, confiando na sua pontaria, atira no alvo, mas, por erro, ferç mortalmente o traba lhador. No primeiro exemplo, o do crime doloso, estava Mévio real mente determinado a obter o resultado danoso (morte do desafeto). legge come delitto, se non lTia comesso con dolo, salvi i casi di delitto preterintenzionale o colposo expressamente preveduti dalla legge (27 Cost.)”. 2. Essa técnica é igualmente adotada, entre outros países, na Alemanha (cf. StGB, §§ 15 e 222) e Itália (cf. CP, arts. 42 e 589). 3. A. Quintano Ripollés, Derecho penal de la culpa, p. 10.
289
No segundo, o da culpa inconsciente, nem passou pela cabeça de Tí cio a desgraçada hipótese de matar um ser humano. No terceiro, o da culpa consciente, jamais pretendeu Caio ferir ou matar o in feliz camponês. Nota-se, por outro lado, que, se há algo de co mum entre o segundo e o terceiro exemplo — em ambos o resul tado foi produto de ignorância ou de erro — entre o primeiro exemplo e os dois últimos parece existir um abismo, pois uma coisa 6 causar consciente e propositadamente a morte de um ser humano, outra é causá-la por erro ou por'ignorância. Assim sendo — pergunta-se — dever-se-á concluir pela exis tência de duas espécies de culpabilidade, uma correspondente aos tipos dolosos (culpabilidade dolosa), outra aos tipos culposos (cul pabilidade culposa)? Como e em que medida poder-se-á atribuir, dentro de uma concepção unitária da culpabilidade, a Tício e a Caio, nos dois últimos exemplos, a “consciência da ilicitude”, ele mento que, conforme admitimos, é essencial ao aperfeiçoamento da censura de culpabilidade? Deixemos, por ora, em suspenso essas perguntas, para dedicar mos, antes, um pouco de nossa atenção à denominada culpa stricto sensu, como convém ao estudo introdutório que estamos empreen dendo. A resposta àquelas indagações virá naturalmente no curso da exposição. 261. Culpa em sentido estrito (negligência, imprudência ou imperícia). Os princípios que regem a culpa stricto sensu, isto é, a responsabilidade pòr um fato causado por negligência ou imprudên cia, remontam ao direito romano, mais especificamente à Lex Aquilia*. Não é pacífica, porém, a afirmação de Orfèò Cecchi de que a Lex Aquilia seja a “ata de nascimento do delito culposo”, pois, conforme demonstra A. Quintano Ripollés, em extensa monografia, só muito mais tarde, depois de aperfeiçoada no direito privado, é que a culpa passou para o penal, por intermédio de senatus consultus e rescritos imperiais 5. Fora de dúvida, porém, é que a culpa stricto 4. Giulio Battaglini, Direito penal, cit., v. 1, p. 296. A. Quintano Ripollés, Derecho penal, cit., p. 34 e s. 5. Derecho penal, cit., p. 36: “Posiblemente la clave de las dudas y dificultades que la valoración de la Ley Aquilia provoca, se halle, como ya se dijo, en las desconocidas remotas fuentes que vino a substituir o quizás a derogar. Pero puede hallarse también en una imperfección hija del tiempo, 290
sensu seja uma criação do direito privado, de onde transplantou-se para o penal, de forma lenta mas tão imperiosa e definitiva que, de le, " . . . não há a mais mínima esperança de que possa, em algum momento, de novo desaparecer”, segundo afirmação de Binding6. Ao contrário, a complexidade, a mecanização, a desumanização da vida moderna, provocadas pela crescente utilização da máquina, cada vez mais aumentando a possibilidade de danos previsíveis para bens jurídicos penalmente tutelados, faz supor que esta filha dileta do direito privado venha cada vez mais a ocupar lugar de destaque no âmbito criminal, diante da fácil constatação de insuficiência ou de inocuidade, em grande número de hipóteses, das sanções meramente civilísticas para certos fatos próprios da civilização tecnológica dos tempos atuais. Poderíamos trazer à baila, em prol dessa afirmação, a título de exemplo: os delitos culposos de trânsito, ou de automó vel, cujas cifras criminológicas crescem assustadoramente; os aci dentes provocados por erros de engenharia, causadores de verdadei ras hecatombes em áreas densamente povoadas; os irreparáveis e cada vez mais extensos danos ecológicos, provocados pelo funciona mento de certas indústrias, seguramente mais perigosas e nocivas à vida humana do que muitos dos agentes de crimes dolosos; a série bastante variada de fatos extremamente danosos cometidos, de for ma confortável e “impessoal”, por intermédio de pessoas jurídicas (uma das muitas formas do denominado "white collar crime”), cuja eficiente repressão talvez possa ser encontrada apenas na punição cuando todavia no se había logrado una separación terminante entre Io público y lo privado, con sobradas reminiscencias de un régimen familiar prepotente. En todo caso es mucho después, cuando una vez lograda Ia doctrina de la culpa en el âmbito del derecho privado, pasa al penal, pero con referencia a casos concretos, mediante las fórmulas dé senatus consultos y rescriptos imperiales. Ello acaece, sobre todo, en tiempos de Adriano, que por rescripto, efectivamente, acordó Ia punición del homicídio culposo em vía arbitraria de extraordinaria cognitio, con sanción menor que el doloso. Esto constituía una novedad, por cuanto que en el proceso ordinário de la época clásica y desde luego en él de la Ley Aquilia, Ia diferencia entre el dolo y la culpa, impecable en teoria, carecia de consecuencias en cuanto a la sanción, dado que según la glosa terminante de Paulus: dolus et culpa punitur, non minus ex dolo quam ex culpa, quisque hac lege tenetur. Se compreende, pues, que la discriminación interesase unicamente al derecho civil, máxime que, en la practica, el acto culposo se adscribía unas veces al dolo y otras al caso fortuito, según la conodda fórmula del casus idest negligentia”. 8. Die Normen, cit,, v. 4, p. 311. 291
da omissão de dever de cuidado — o que exigiria a criação de no vas e variegadas figuras culposas. Pense-se em tudo isso e se divi sará o futuro penalístico que ainda poderá estar reservado para o fato culposo7. Mas em que consiste essa culpa stricto sensu, que vem crescen do e se desenvolvendo ao lado do dolo? O Código a define nestes termos: “Art. 18. Diz-se o crime: . . . II — Culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. Como observa Nélson Hungria, com apoio em Vannini, nas três hipóteses, está-se diante de uma “situação culposa substancial mente idêntica, isto é, omissão, insuficiência, inaptidão grosseira no avaliar as conseqüências lesivas do próprio ato” 8. A imprudência, entretanto, exprime um comportamento comissivo, ao passo que a negligência dá idéia de uma conduta omissiva. Na imprudência há culpa in faciendo, na negligência, in non jaciendo, in omittendo. Por outro lado, a imperícia nada mais é do que uma espécie de impru dência, pois, em geral, com essa palavra se exprime a prática de certa atividade técnica ou profissional, sem o preparo necessário ou sem a experiência exigível para a sua eficiente realização. Tomemos, de novo, o exemplo do homicídio culposo (art. 121, § 3.°) e façamos sua conjugação com o preceito do art. 18, II, retrocitado. Disso resultará a seguinte definição do homicídio culpo so: “ .. . matar alguém, dando causa ao resultado ‘morte’, por impru dência, negligência Ou imperícia”. 7. “Baste consignar que, según estadísticas norteamericanas, que se estudiarán con mayor detenimiento en el capítulo dedicado a criminología, el ano 1950 se registraron en dicho país 34.763i homicídios culposos sólo por vehículos de motor, mientras que él de los dolosos objeto de condena, ascendieron unica mente a 7-020. Cifras que justifican sobradamente la conclusión ya predicha hace más de un siglo por el positivista Angiolini, de que la modalidad culposa habría de ser la criminalidad del porvenir, porvenir que es ya presente en muchos lugares y en camino inminente de serio en otrõs. No parece, pues, desplazada o inactual la idea de reclamar una atención especial a la culpa, sin veleidades separatistas, por supuesto, que serían ciertamente absurdas, pero con el confesado propósito de considerar autónomamente sus propios proble mas, sobre todo los genuinamente suyos, tanto en lo jurídico penal como en lo criminológico y en lo político criminal” (A. Quintano Ripollés, Derecho penal, cit., p. 10). 8. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 203. 292
Como o direito não pode ter a pretensão de proibir resultados, sujeitos às leis da causalidade física, toma-se evidente que o tipo incriminador em exame traz ínsita a proibição de um comportamen to imprudente ou negligente que possa ser causa, ainda que cega, da morte de alguém. Assim, embora o resultado morte seja, no caso, elemento do tipo (se fizermos abstração da morte da vítima, desaparece o tipo do homicídio culposo), é igualmente elemento essencial do mesmo tipo o ato imprudente ou negligente, evitável, que o legislador penal quer seja efetivamente evitado. E, como tanto o ato imprudente (a imprudência abrange a imperícia) quanto o ne gligente resultam de uma falta de observância, por parte do agente, do dever de comportar-se com cautela, com cuidado, quando sua ação ou omissão possa dar causa a resultados lesivos a bens jurídi cos penalmente protegidos, temos que, em suma, na base do delito culposo em exame, como de resto em todos os demais, está a viola ção de um dever de cuidado, quando as circunstâncias apontarem ao agente, segundo dados apreensíveis da experiência cotidiana, alguma razão para suspeitar da possibilidade de conseqüências danosas para sua conduta, ou, ao menos, para ter dúvidas a respeito dessas possí veis conseqüências. Note-se que, na dúvida, impõe-se o dever de abstenção da conduta, pois quem, nesta área, se arrisca a se trans formar em causador imputável de danos previsíveis age com impru dência e se toma, por isso mesmo, agente de um crime culposo, caso concretize a realização do tipo. Do que foi exposto, percebe-se que o núcleo do crime culposo, do mesmo modo que o do doloso, é uma ação humana (ação ou omissão). A diferença está na estruturação do tipo: no doloso pu ne-se a ação ou omissão dirigida ao fim ilícito; no culposo, o que se pune é o comportamento mal dirigido para o fim lícito. Ambos os tipos podem, pois, ser considerados dentro de uma ampla visão finalista, na concepção de Welzel9. Nesse mesmo sentido, Armin Kaufmann: “Vemos que as formas possíveis de conduta do indiví duo capaz de agir, que são a ação e a inação finalista, dão margem a um desdobramento não apenas no âmbito do comportamento hu mano em geral, mas também na posição valoradora e normativa da ordem jurídica. Se em determinada hipótese a ação finalista é in desejável e por isso mesmo está sujeita a uma valoração negativa,
9.
Das neue Bild, cit., p. 31. 293
sendo, portanto, proibida, em outra hipótese poderá ser considerada necessária e, portanto, positivamente valorada e determinada através dum comando. A proibição é violada através do exercício da capa cidade de praticar o ato proibido; já o comando deixa de ser cum prido quando o indivíduo capaz de praticar a ação nele estatuída deixa de realizar a mesma. Como pode a conduta imprudente ou negligente ser enquadrada na bipartição? A mesma pode consistir numa abstenção ocorrida por ocasião da prática duma ação, na abs tenção do exercício da cautela com que o agente deveria ter agido. Isso, porém, só se aplica aos indivíduos capazes de exercer cautela; quem não seja capaz de, na configuração do ato, desenvolver a cau tela que lhe foi determinada não se ‘abstém’ da mesma. Por isso o comando de, na prática de determinados atos, exercer certa cautela é completado com uma proibição que veda in totum o ato em ques tão, proibição que é dirigida àqueles que não sejam capazes de exer cer essa cautela in concreto. Vê-se que nos casos em que alguém que seja capaz de exercer cautela age sem a mesma encontramo-nos diante duma abstenção, vale dizer, da violação dum comando; quan do alguém que seja incapaz de exercer cautela realiza a ação que lhe é proibida, essa ação finalista, só por si, assume relevância jurídica, e encontramo-nos diante da violação duma proibição. Conclui-se que a ação imprudente ou negligente pertence, conforme o caso, ao âmbito da ação ou da abstenção reprovada” 10. 262, Dito isso, podemos enfrentar as duas indagações inicial mente formuladas (supra, n.^260, in fine) e dizer com Maurach: o conceito de culpabilidade, em sua totalidade, é essencialmente o mes mo tanto nos delitos dolosos como nos culposos11. Assim sendo, também aqui se exige, para o juízo de censura de culpabilidade, a consciência potencial da ilicitude, isto é, que o agente, no momento da ação ou da omissão culposa, seja imputável e tenha tido ao menos a possibilidade de conhecimento do injusto, visto como tais elementos — a imputabilidade e a possibilidade de conhecimento do injusto (Zurechnungsfãhigkeit und die Mõglichkeit des TJnrechtsbewusstseins) — são dois pressupostos indispensáveis da culpabilidade nos crimes culposos 12. 10. 11. 12. 234
Teoria, cit., p. 258-9. Deutsches Strafrecht, cit., p. 570. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 570.
Observe-se, contudo, que isso não significa sejam o dolo e a culpa stricto sensu totalmente desprovidos de sentido para a nova concepção de culpabilidade. Como anotam Schõnke, Schrõder e Cramer, sendo o dolo parte integrante do tipo de injusto, é ele.pres suposto da culpabilidade dolosa. Além disso, caracteriza juntamente com os restantes elementos da culpabilidade, especialmente a cons ciência do injusto, “o conteúdo da mais grave forma de culpabi lidade” 13. Já a culpabilidade de um agente que age culposamente, por corresponder a um tipo de injusto evidentemente menos grave, é por sua vez de menor gravidade, podendo situar-se em uma escala descendente que vai desde hipóteses mais sérias (culpa consciente) até limites mínimos, extremos, de culpa inconsciente que, em certas circunstâncias, pode configurar a culpa levíssima equiparável, em direito penal, ao fortuito. Daí a distinção que fazemos entre culpabilidade por fato doloso é culpabilidade por fato culposo. 263. Observe-se, ainda, que a colocação da tônica sobre o comportamento humano, situado inegavelmente no centro do tipo — tanto nos crimes dolosos como nos culposos — não significa, a nosso ver, que se deva considerar, nos crimes culposos, apenas o desvalor da ação (Handlungsunwert), sem se levar em conta também o desvalor do resultado li. Mesmo que se queira desviar da defini 13. Strafgesetzbuch Kommentar, cit., p. 190. 14. Welzel considera decisivo, para os crimes culposos, o desvalor da ação, atribuindo ao desvalor do resultado mera função seletiva ou delimitadora das condutas relevantes para o direito penal ( Das peue Büd, cit., p. 31). Heleno Fragoso tem posição idêntica presentemente, in verbis: “A concepção clássica da doutrina do Direito Penal entre nós reduzia o crime culposo a uma forma da culpabilidade, representada pela negligência, imprudência ou impe rícia da causação do resultado, que constituiria, como nos correspondentes crimes dolosos, a conduta típica. O dolo e a culpa stricto sensu são coisas inteiramente diversâs. Dolo é fenômeno psicológico, ao passo que a culpa stricto sensu só tem existência no plano normativo. A tipicidade do crime culposo, no entanto, não poderia estar na causação do resultado, que está fora da ação (cf. n. 123, supra), mas sim num deter minado comportamento proibido pela norma. Como em tais crimes não há vontade dirigida no sentido do resultado antijurídico (embora exista vontade dirigida a outros fins, em geral lícitos), a ação delituosa que a norma proíbe 295
ção legal inicialmente citada (CP, art. 18, II), que expressamente fala em dar causa ao resultado, como fazem alguns penalistas italia nos 15, o certo é que, no rol dos fatos culposos, não será fácil induírem-se exemplos indiscutíveis de crimes de pura atividade, ou de mera conduta, os quais, se admissíveis em tese, constituem, indubita velmente, marcante exceção 16. Não se pode, pois, invertendo o ra ciocínio, argumentar com as raras exceções existentes para generali zar a exclusão do desvalor do resultado, fator predominante na grande maioria dos tipos culposos (homicídio, lesões, incêndio, ex plosão etc.). O mais razoável, a nosso ver, seria admitir-se que, aqui, como nos tipos dolosos, o legislador está liberto tanto para tipi ficar crimes de resultado, como de fato o fez na maior parte dos casos, como para tipificar crimes de simples atividade, quando for isso excepcionalmente possível. Na primeira hipótese, ao desvalor da ação agrega-se o desvalor do resultado, sendo este um inegável elemento essencial do tipo. Na segunda hipótese, quando se prescin de do resultado exterior, então sim será lícito falar-se em um puro desvalor da ação. O que não tem sentido é pretender-se ver, por influência de idéias passadas, na ausência de algum vínculo psicoló gico entre a ação e o resultado, motivo bastante para excluir-se do tipo o que nele se situa de modo tão evidente como a estátua do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro. ó a que se realiza com negligência, imprudência ou imperícia, ou seja, violando um dever objetivo de cuidado, atenção ou diligência,, geralmente imposto na vida de relação, para evitar dano a interesses e bens alheios e que conduz, assim, ao resultado que configura o delito. Com a obra fundamental de Engisch, publicada em 1930, pela primeira vez se fez ver que entre a ação ou omissão provocadora do resultado e a culpabilidade faltava um momento essencial, que era o da omissão de cuidado externo, sem o qual não era possível fundamentar a antijuridicidade do crime culposo. Quando se verificou que a ação, nos crimes culposos, só era antijurídica na medida em que violava o cuidado exigido no âmbito da vida de relação, demonstrou-se que o elemento decisivo da ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação e não do resultado (W elzel). Isso permitiu uma elaboração técnica notável, na estrutura do crime culposo. A estrutura do crime culposo é inteiramente diversa da do crime doloso. O conceito de ação, no entanto, coincide, num e noutro caso. Nos crimes culposos também há ação dirigida finalisticamente a um resultado, que se situa, no entanto, fora do tipo” ( Lições, cit., 3. ed., p. 247-8). 15. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 440. 16. Veja-se a dificuldade de Magalhães Noronha para encontrar algum exemplo de crime culposo de mera conduta, in Do crime culposo, p. 60-1. 296
Nem se diga que isso levaria a uma “vergonhosa responsabili dade pelo resultado” 17. Se nos crimes dolosos o resultado deve ser alcançado pelo dolo, nos culposos deverá sê-lo pela previsibilidade do agente. E a não-punição do fato, na ausência do evento danoso, diz respeito unicamente a um crime que não se aperfeiçoa. Isso não deveria obviamente ser motivo para perplexidade, por ocorrer tam bém em certos crimes dolosos. Dizer-se, por outro lado, que o desvalor do resultado (a lesão ou a periclitação de um bem jurídico) tem, nos crimes culposos, so mente significação restritiva ou delimitadora das condutas relevantes para o direito penal18 é, segundo pensamos, o mesmo que afirmar o desvalor do resultado, por circunlóquio, já que, de algum modo, se atribui ao resultado papel decisivo (o poder delimitador), como de resto ocorre com todo elemento essencial do tipo, sem o qual o crime não se aperfeiçoa. Considere-se o exemplo citado por Enri que Bacigalupo: um motorista realiza imprudentemente arriscada manobra em rua muito movimentada, onde seria facilmente cognoscível a possibilidade de, com esse comportamento, expor a perigo vidas humanas. Todavia, por sorte, não produz o imprudente autor da manobra qualquer lesão ou morte 19. Pergunta-se: apesar da ine gável violação do dever de cuidado e da manifesta possibilidade de conhecimento do injusto, constituirá essa conduta, evidentemente desvaliosa, algum delito culposo? É óbvio que não, porque faltou a ocorrência do resultado (ferimento ou morte), sem o qual não se aperfeiçoa o fato punível culposo do homicídio ou da lesão corporal. Não se pense, como quer o autor citado, que o resultado, nesse caso, atua como condição objetiva de punibilidade, opinião sustentada, en
17. “De dos personas que manipulan con fuego con exactamente la misma falta de cuidado y que eran exactamente igual y capaces de prever el dano con que esto amenazaba, será castigado aquél para quien el ‘capricho’ ha querido que se originase un incêndio, mientras que el otro será perdonado. Sobre la punibilidad decide, por consiguiente, no la eulpabilidad — que en ambos sujetos es la misma —, sino el resultado que, con la misma eulpabilidad, unas veces se produce y otras no, es decir, decide el resultado casual” (Radbruch, apüd Gimbemat Ordeig, Delitos cualificados por el resultado y causalidad, p. 159). 18. Welzél, Das neue Bild, cit., p. 31. 19.
Lineamientos, cit., p. 141. 297
tre nós, por Nélson Hungria20. Somente seria aceitável essa afir mação se o resultado exterior pudesse ser excluído do tipo, nos cri mes culposos que o exigem, sem desfigurar o próprio crime, como ocorre com as genuínas condições objetivas de punibilidade (exem plo: a sentença declaratória da falência, nos crimes falimentares; a entrada no território nacional do agente de crime cometido no es trangeiro etc.) 21. Tal, porém, não ocorre nos crimes culposos de resultado, pois, se deles estirparmos mentalmente o resultado, o que desaparece é o próprio crime e não uma simples condição de sua punibilidade22. Ademais, a opinião ora criticada, além de incor reta, afigura-se-nos totalmente inconveniente, visto como, a menos que se queira entronizar no sistema uma responsabilidade objetiva pela adoção da medieval versari in re illicita, o resultado não só deve estar incluído no tipo 23, como é bom que esteja para que possa e deva ser abrangido também pela culpabilidade do agente (a cons ciência potencial da ilicitude). Fora do tipo isso não seria possível. Um resultado meramente delimitador, seletivo ou condicionador da punibilidade, em nada contribuiria para a formação do juízo de censura da culpabilidade. Se, entretanto, estiver situado no tipo — como nos parece que está — o quadro se modifica. Tanto é assim que, nesta última hipótese, não haverá sequer crime quando se puder excluir a total possibilidade de previsão (a previsibilidade) do resul tado, por parte do agente, ou quando se puder excluir a consciência potencial da ilicitude, fato em boa parte percebido pelos romanos 20. Diz o penalista pátrio, em certo tópioo de seus comentários ao art. 15, atual art. 18: “Não se deve esquecer que, no crime culposo, a impu tação psíquica diz respeito à conduta cáusal, e não ao seu efeito objetivo, que é apenas uma condição de punibilidade”. E acrescenta em a nota de rodapé, n. 161:“Via de regra, a efetiva lesão do interesse oubem jurídico (evento de dano) é condição à punibilidade do crime culposo; mas,excepcionalmente, basta a simples possibilidade de dano (evento de perigo), como, por exemplo, na forma culposa do crime de ‘contágio venéreo’ (art. 130: ‘Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que deve saber que está contaminado’)” ( Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 197). 21. Consulte-se a respeito: Bettiol, Diritto penale, cit., p. 215 e s.; Heleno Fragoso, Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade, in Estu dos de direito e processo penal em homenagem a Nélson Hungria, p. 158 e s. 22. Assim Bettiol, Diritto penale, cit., p. 576. 23. Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 367 e s. 298
:no famoso exemplo, referido por Paulo, do podador de uma árvore, em lugar ermo, sem caminho algum, que, ao deixar cair um galho, mata um inesperado transeunte. Diz Paulo que, nesse exemplo, a responsabilidade do podador dependerá de ter ele visto ou não o transeunte inopinado: na primeira hipótese, haveria dolo; na segunda, estaria ausente a culpabilidade (“cum divinare non potuerit, an per eum locum aliquis transiturus sit” ) 24. Esse exemplo poderia ser completado com o do cirurgião que causa a morte do doente, em unia intervenção cirúrgica sabidamente arriscada mas reconhecida mente necessária, nas circunstâncias. Se o resultado não puder ser atribuído à imperícia, não há culpa e, portanto, crime algum nesse fato, por simples ausência de tipicidade. 264. O conteúdo do injusto no fato culposo é determinado, pois, conjuntamente, pelo desvalor do resultado e pelo desvalor da ação, ou da conduta. Correta, portanto, se nos afigura a afirmação de Wessels de que concorrem, a um só tempo, para a estruturação dos delitos negligentes, ou imprudentes, três elementos que consti
24. Eis o texto integral do Digesto, com a tradução que nos é oferecida por Magalhães Noronha, in Do crime culposo, cit., p. 7: “ ‘Si putator, ex arbore ramum cum dejiceret, vel machinarius hominem praetereuntem occidit:- ita tenetur, si is in publicum decidat, nec ille proclamavit, ut casus ejus evitari possit. Sed Mucius etiam dixit, si in privato idem accidisset, posse de culpa agi: culpam autem esse, quod, cum a diligente provideri poterit, non esset provisum, aut tuum denunciatum esset, cum periculum evitari non possit. Secundum quam rationem non multum refert, per publicum, an per privatum iter fieret: cum plerumque per privata loca volgo iter fiat. Quod si nullum iter erit, dolum dumtaxat praestare debet, ne immittat in eum, quem viderit transeuntem: nam culpa ab eo exigenda non est: cum divinare non potuerit, an per eum locum aliquis transiturus sit’ (31 — Paulo, lib. 10, ad Sabinum, in Dig. liv. IX, tít. II) (Se um podador ou lenhador, derrubando ramo de árvore, ou o edificador, ocasionar morte de transeunte: será responsável se o fez em lugar público, a não ser que tenha dado aviso com tempo de evitar o perigo. Múcio, porém, disse que, se tal cousa suceder em local particular, pode caber a ação em caso de culpa, a qual consite em que, podendo avisar com tempo, não o fez ou avisou quando o perigo já não poderia ser evitado: por tais razões pouca diferença existe no considerar-se o local público e o particular, desde que é comum o trânsito por caminhos privados. Mas, se não existir caminho algum, somente pelo dolo poderá ocorrer responsabilidade, como se atirasse deliberadamente sobre a pessoa que viu passar. Não caberia, todavia, responsabilidade, se não se pudesse prever que alguém por ali iria passar)”.
299
tuem o fundamento do tipo de injusto; “A causação do resultado, a lesão ao dever de cuidado objetivo e a imputação do resultado baseado no erro de conduta, orientada no sentido da finalidade protetiva das normas de cuidado” 25. Assim, ainda segundo o autor citado, para que um fato real seja tipicamente culposo é necessário, primeiramente, que o agente tenha causado o resultado socialmente danoso por meio de uma conduta (ação ou omissão) “dominada ou dominável pela vontade” . Sem isso estaria afastada a evitabilidade do fato, circunstância que, con forme vimos, situa-se no centro do juízo de censura da culpabili dade26. Além disso, é preciso que o resultado concreto seja obje tivamente previsível e que o agente lhe tenha dado causa por não ter empregado o cuidado que lhe era exigível, nas circunstâncias. Ausente essa previsibilidade do resultado, estará também afastada a consciência potencial da ilicitude, sem a qual inexiste culpabilidade jurídico-penal27. Diga-se, por fim, que o dever objetivo de cuidado consiste em preocupar-se o agente com as possíveis conseqüências perigosas de sua conduta (perigo para os bens jurídicos protegidos) — facilmente reveladas pela experiência da vida cotidiana — tê-las sempre pre sentes na consciência, e orientar-se no sentido de evitar tais conse qüências, abstendo-se de realizar o comportamento que possa ser 25. Direito perud, cit., p. 149. 26. A expressão “dominada ou dominável pela vontade” é de Wessels (Direito penal, cit., p. 149). Linhas adiante (p. 153), ressalta o mesmo autor a importância da evitabilidade do fato sob duplo aspecto, in verbis: “Os delitos de negligência pressupõem, segundo sua natureza, a evitabilidade da realização do tipo: o autor negligente será punido porque não evitou o resultado desa provado, embora para isso fosse objetivamente obrigado e subjetivamente capaz. Enquanto, contudo, a inevitabilidade subjetivo-pessoal só faz desaparecer a censura da culpabilidade, a inevitabilidade objetiva exclui já no plano do tipo a imputação do resultado (compare supra § 6 I 1, II 2 ). Pois, s© o resultado socialmente danoso também não fosse evitável no caso de uma conduta juridi camente isenta de defeitos, a ausência do cuidado, existente no caso concreto, seria irrelevante para a sua ocorrência”. 27. Segundo os prestigiosos comentários de Dreher e Trõndle, edição de 1978 (Strafgesetzbueh, cit.), são três os elementos da culpa ( Fahrlassigkeit): contrariedade ao dever, previsibilidade da realização do tipo e cognoscibilidade da antijuridicidade (p. 77). Parece-nos óbvio que o segundo elemento aponta pata o resultado, pois, conforme já salientamos, é a ocorrência deste que concretiza a realização do tipo. 300
causa do efeito lesivo, ou somente realizá-lo sob especiais e suficien tes condições de segurança28. O conceito desse dever objetivo de cuidado pode coincidir com o comando de normas legais ou regulamentares, como ocorre, por exemplo, com o dever de obediência aos regulamentos de trânsito de veículos motorizados ou com o dever de obediência a certas regras técnicas, no desempenho de profissões ou atividades regulamentadas. Nesse caso, a inobservância das nor mas legais e regulamentares, que especificam e impõem determina das regras ao agente, cria em desfavor deste uma presunção de ter agido culpavelmente, incumbindo-lhe o difícil ônus da prova em contrário. Assim, quem desobedece sinal de trânsito e, por isso, provoca acidente com vítimas, age culposamente (imprudência) e tem contra si a presunção de ter atuado culpavelmente (com previ sibilidade do fato, portanto com a consciência potencial da ilicitude, infringindo um dever objetivo de cuidado). Se provar, contudo, que o veículo apresentara repentino defeito no sistema de freios e que isso não lhe poderia ser imputado, a título de negligência, porque acabava de retirar o automóvel de uma oficina idônea, onde fora submetido a revisão global, o fato, embora danoso, não será culpável. Onde não houver normas legais ou regulamentares específicas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico, no dizer de Welzel, ou seja, por meio da comparação do fato concreto com o comporta mento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum inteligente e prudente29. Aqui o artifício apresenta-se inevitável.
b)
Princípio da confiança. Culpa consciente e dolo even tual. Culpa inconsciente, caso fortuito e risco tolerado
265. Princípio da confiança. Se o dever objetivo de cuidado se dirige a todos, é justo que se espere de cada um o comportamen 28. Wessels, Direito penal, cit., p. 153: “O conteúdo do dever de cuidado consiste antes de tudo em reconhecer o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta concreta, e em orientar-se correspondentemente de acordo com isto; em, portanto, se omitir inteiramente da ação perigosa ou efetuá-la somente sob suficientes precauções de segurança (compare BGHSt 5, 2.74)”. 29. Das neue Bild, cit., p. 34. 301
to prudente e inteligente, exigível para uma harmoniosa e pacífica atividade no interior da vida social e comunitária. Seria absurdo que o direito impusesse aos destinatários de suas normas comportarse de modo desconfiado em relação ao semelhante, todos desconfian do de todos. Assim, admite-se que cada um comporte-se como se os demais se conduzissem corretamente. A esse critério regulador da conduta humana se denomina “princípio da confiança” (Verírauensgrundsatz) 30. Para a determinação em concreto da condu ta correta de um, não se pode, portanto, deixar de considerar aquilo que seria lícito, nas circunstâncias, esperar-se de outrem, ou melhor, da própria vítima. 266. Culpa consciente e dolo eventual. Culpa inconsciente, caso fortuito e risco tolerado. Duas são as modalidades da culpa stricto sensu: a culpa consciente e a inconsciente. Na primeira, o agente prevê o resultado típico, tem-no como possível, mas confia em que poderá evitá-lo. Não quer o resultado, mas, por erro ou excesso de confiança (imprudência), por não empregar a diligên cia necessária (negligência) ou por não estar suficientemente pre parado para um empreendimento cheio de riscos (imperícia), fra cassa e vem a ocasioná-lo (v. exemplo na ação atribuída a Caio). Na segunda — a culpa inconsciente — o agente não prevê o resul tado, comporta-se com desatenção, desleixo, descuido (negligência), afoiteza (imprudência), ou arrisca-se a práticas para as quais não está devidamente habilitado ou preparado (imperícia), transforman do-se, assim, em causa cega do evento danoso. Não obstante, uma tal cegueira é culpável, isto é, pode ser-lhe pessoalmente censurada porque o resultado inconscientemente causado era-lhe previsível e só aconteceu diante da violação do dever objetivo de cuidado que as circunstâncias, os costumes, normas regulamentares ou disciplinares lhe impunham (v. exemplo na ação atribuída a Tício). A culpa consciente limita-se com o dolo eventual (CP, art. 18, I, in fine). A diferença é que na culpa consciente o agente não quer o resultado nem assume deliberadamente o .risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. 30. 302
Welzel, Das neue Bild, cit., p. 34.
No dolo eventual, o agente não só prevê o resultado danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis. Ê como se pensasse: vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado. Já a culpa inconscien te situa-se, em extremo oposto, nas vizinhanças do caso fortuito. O que a distingue deste último, totalmente impunível, é precisamente a previsibilidade e a evitabilidade do resultado. Na culpa inconsci ente o ato voluntário provoca um resultado danoso não previsto mas previsível e evitável. No caso fortuito o resultado é imprevisto, im previsível e, por isso, inevitável para o agente. 267. Risco tolerado. Diga-se, para concluir, que, na área dos fatos culposos, aplica-se por inteiro a afirmação de Binding31, feita, aliás, no v. 4 de sua magistral obra, Die Normen, dedicado inteira mente ao estudo da culpa (Fahrlãssigkeit), segundo a qual quanto mais imprescindível seja um tipo de comportamento humano, tanto maior será o risco que, em relação a ele, se deverá correr, sem que disso resulte uma reprovação jurídica. Estabelece-se, com isso, a linha demarcatória entre o fato culposo punível e o fato impunível resultante do risco juridicamente tolerado. O cirurgião que opera um doente, em condições precárias, sabe que poderá causar-lhe a morte. Todavia, nesse caso, mesmo que o resultado fatal sobreve nha, não terá agido com culpa se a intervenção era, nas circunstân cias em que foi realizada, imprescindível como única forma de se tentar a salvação do doente. Por outro lado, o mundo moderno está inçado de atividades que acarretam riscos calculados para bens jurídicos protegidos. A própria vida humana nunca esteve tão ex posta a perigos de agressão e de lesão como nos dias atuais. Pa rece mesmo que conhecida sentença de Schopenhauer (“a vida é um negócio que não cobre os seus gastos” ) vai-se *tomando, cada vez mais, uma dura realidade. Não obstante, esse é um mal que, con forme salientamos em outra passagem, não se coloca inteiramente na linha de combate do direito penal, pois não lhe incumbe, a título de afastar todos os riscos possíveis, obstaculizar ou impedir o desen volvimento da vida modema, tal como o homem, bem ou mal, a concebeu e construiu. 31.
V. citação, nota de rodapé n. 28, § 2.°, p. 17.
c)
Voluntariedade na causa. Co-autoria em crime culposo. A tentativa
268. A conduta humana de que deriva, no fato culposo, o re sultado danoso precisa ser, conforme dissemos, com apoio em Wessels, “dominada ou dominável pela vontade”. Não se deve., to davia, confundir a voluntariedade da ação ou dá omissão com a voluntariedade do resultado danoso32. Esta última existe sempre nos crimes dolosos e muito raramente nos culposos (um exemplo seria a legítima defesa putativa, derivada de culpa — art. 20, § 1.°, do C P). Todavia, a primeira — a voluntariedade da conduta — está presente, em regra, tanto nos crimes dolosos como nos culposos, com a diferença de que, nos dolosos, se orienta no sentido da causação do resultado danoso, nos culposos não. Correta, pois, esta afirmação de Battaglini: “Existe sempre um comportamento-causa desejado, mas a seu respeito basta uma vontade ainda que mínima. De tal comportamento-causa deriva um efeito não desejado. Não se prescinde, contudo, de um nexo de ordem subjetiva entre a conduta-causa e o efeito; e isso porque este nexo, se bem que certa mente estranho à vontade, refere-se todavia à esfera intelectiva. O efeito não pretendido deve ser de qualquer forma previsível, ainda que mediante o emprego de um máximo de diligência33. Posta a questão nesses termos, não há dificuldade para a aceitação da coautoria nos crimes culposos. Ela se dá quando, segundo conhecida fórmula do Código italiano (art. 113, caput), “o °.vento foi ocasiona do pela cooperação de várias pessoas”. Nosso Código não possui dispositivo expresso a respeito. A solução que decorre do sistema, porém, é a mesma, conforme atesta a Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos, in verbis: “Para a teoria monística, finalmente, o crime é sempre único e indivisível, tanto no caso de unidade de au toria, quanto no de co-participação. É o sistema do Código italia no. Os vários atos convergem para uma operação única. Se o cri me é incindível, do ponto de vista material ou técnico, também o é do ponto de vista jurídico. Foi esta a teoria adotada pelo projeto. A preferência por ela já vinha do Projeto Galdino Siqueira. É a teoria qüe fica a meio caminho entre a teoria pluralística e a teoria tradicional. Assim dispõe, peremptoriamente, o art. 25 do proje 32. 33. 304
Cf. Giulio Battaglini, Direito penal, cit., v. 1, p. 296. Direito penal, cit., v. 1, p. 307.
to: ‘Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas pe nas a este cominadas1. Para que se identifique o concurso não é indispensável um ‘prévio acordo’ das vontades: basta que haja em cada um dos concorrentes conhecimento de concorrer à ação de ou trem. Fica, destarte, resolvida a vexata quaestio da chamada auto ria incerta, quando não tenha ocorrido ajuste entre os concorrentes. Igualmente, fica solucionada, no sentido afirmativo, a questão sobre o concurso em crime culposo, pois neste tanto é possível a coopera ção material quanto a cooperação psicológica, isto é, no caso de plu ralidade de agentes, cada um destes, embora não querendo o even to final, tem consciência de cooperar na ação. As diferenças sub jetivas ou objetivas das ações convergentes, na co-delinqüência, po dem ser levadas em conta, não para atribuir a qualquer delas uma diversa importância causai, mas apenas para um diagnóstico de maior ou menor periculosidade (Rocco)”. Nélson Hungria adota essa mesma solução34 e também Magalhães Noronha35. O Supre mo Tribunal Federal já se manifestou, igualmente, em prol da ad missão da co-autoria culposa, embora registrando as divergências existentes a propósito (RTJ, 52:116 e 54:18) ®6. A nosso ver, tais 34. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 413 e s. 35. Do crime cul-poso, cit., p, 105. Merece transcrito este trecho do penalista paulista, pelo expressivo exemplo que contém: “Tais opiniões não triunfaram, pois não só a prática como os princípios mostram ser possível a cooperação no crime culposo. Com efeito, neste a ação causai é voluntária e o evento previsível. Ora, se se admite isso para um agente, por que não se admitir para o outro? Suponha-se o caso de dois pedreiros que, numa construção, tomam uma trave e a atiram à rua, alcançando um transeunte. Não há falar em autor principal e secundário, em realização e instigação, em ação e auxílio etc. Oficiais do mesmo ofício, incumbia-lhes aquela tarefa, só Tealizável pela conjugação das suas forças. Donde a ação única — apanhar e lançar o madeiro — e o resultado — lesões ou morte da vítima — também uno, foram praticados por duas pessoas, que uniram seus esforços e vontades, resultando assim co-autoria. Para ambos houve vontade atuante e ausência de previsão”. 36. Ementa-. “A co-autoria em delito culposo é plenamente admitida pelos arts. 11 e 25 do Código Penal. Recurso extraordinário, pela letra d, não conhecido por inexistência de divergência, exigindo sua verificação o reexame da prova” (RE 65.466-RS, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ, 52:110). Ementa: “Delito culposo. Em face da teoria da equivalência dos antecedentes, adotada pelo Código Penal (art. 11), é de se admitir a co-participação nos crimes culposos. In casu há justa causa para a ação penal. Recurso ordinário improvido” (RHC 47.958-SP, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 54: 18). Note-se que os mencionados arts. 11 e 25 correspondem aos atuais 13 e 29. 305
divergências de há muito deveriam ser reputadas superadas, entre nós, como já o é na Itália, consoante a autorizada afirmação de B ettiol37. Diversa, porém, é a conclusão em relação à tentativa: não vemõs possibilidade de sua configuração nos crimes culposos. Se o que define a tentativa é a intenção dirigida ao fim frustrado, isto é, ao resultado danoso, e se, como vimos, o que falta no crime cul poso é precisamente a voluntariedade do resultado, não há como ad mitir-se a tentativa culposa, verdadeira contraditio in adjecto. Binding, em certas hipóteses de erro culposo, onde existiria in tenção (fahrlãssige Absichtsverbrechen) , admite, em tese, a tenta tiva (legítima defesa putativa, resultante de erro inescusável, por exemplo). O agente, nessa hipótese, parece querer matar ou ferir o suposto agressor. Se não o consegue, por motivos estranhos à sua vontade, terá cometido tentativa de homicídio culposo? Pensamos que não. O erro, no caso, é fator excludente do dolo38. O agente age para defender-se, com o intuito de defenderse, não de matar. Se atua com imprudência, realizando fato cul poso, em decorrência de um erro, não há como fugir-se destas hipó teses que reciprocamente se excluem: ou comete algum delito con sumado (homicídio culposo ou lesões culposas) ou não comete cri me algum. Corretas, pois, se nos afiguram estas considerações a respeito do tema, de A. Quintano Ripollés: “Una consideración apar te merecen las situaciones de error, notablemente las de exceso en causas de justificación, que fueron las determinantes del abandono de la tesis tradicional por parte de la doctrina extranjera. En dog mática espanola ninguna razón hay para ello. Quien creyendo ser agredido injustamente dispara contra el presunto agresor, pueden suceder tres cosas: a) que le mate, en cuyo caso habrá homicidio consumado culposo, por no haberse cerciorado de la certeza del ataque; b) que le hiera, sucediendo exactamente lo mismo, con la variante de ser el delito culposo de lesiones, por ser éste del ‘hecho ejecutado’; o c) que no le mate ni le hiera, en cuyo caso no ha brá delito culposo alguno, por no haberse ‘ejecutado’ nada. Como 37. Textualmente: “Oggi — dopo la regolamentazione giuridica — la partecipazione di piü persone in un delitto colposo è pacificamente ammessa dalla dottrina" ( Diritto penale, cit., p. 575). 38: V. nosso O erro, cit., p. 52 e s,
306
es ésto la que cuenta para Ia imprudência, carecen de transcendencia las ejecuciones parciales o incompletas, tanto de frustración como, a mayor abundamiento, de tentativa” 39.
d)
“Versari in re illicita”. Responsabilidade penal pelo resultado. Crimes qualificados pelo resultado
269. Como forma de transição entre a responsabilidade objeti va e o direito penal da culpabilidade, podemos situar a hoje tão profligada versari in re illicita, cuja criação tem origem no direito ca nônico. Diz o brocardo: Qui in re illicita versatur tenetur etiam pro casu (Quem se envolve com coisa ilícita é responsável também pelo resultado fortuito). Explica Nélson Hungria o sentido histó rico desse enunciado, de forma que merece transcrição literal: “O majus delictum (em contraposição ao antecedente doloso, chamado minus delictum, principale delictum ou primum delictum) era levado à conta do agente a título de dolo, quando o minus delictum ‘tendebat ad illum finem delicti secuti’. Respondia por homicídio dolo so aquele que exercia violência contra alguém, causando-lhe a mor te, desde que o instrumento empregado fosse ad occidendum aptum, ut ensis vel hasta. Se não havia essa relação de afinidade, segundo id quod plerumque accidit, entre o antecedente doloso e o evento ‘morte’, era este imputado a título de culpa. A rigidez de tal critério, porém, veio a ser atenuada, firmando-se o princípio de que a impu tação do evento mais grave estava necessariamente condicionada à probabilidade do seu advento, apreciada segundo a experiência co mum. Doutrinava Santo Tomás de Aquino que o evento mais gra ve non praecogitatus só era imputável no caso em que fosse conse qüência natural e comum do fato doloso anterior: ‘si per se sequitur ex tali actu, et ut in p l u r i b u s e nenhuma responsabilidade devia ser reconhecida pelo evento mais grave se este ocorresse per accidens, et ut in paucioribus, pois, em tal caso, eventus sequens non addit ad bonitatem, vel ad malitiam actus. No mesmo sentido opinavam Covarruvias, Coepola, De Accoltis, Carerio, Rafael de Cuma, Fa rinado e Carpsovio” 40. 39. Derecho penal, cit., p. 201-2. 40. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 122.
Ê evidente a influência dessa concepção medieval sobre algu mas construções jurídicas ainda sobreviventes, tais como os delitos qualificados pelo resultado e a denominada actio libera in causa41. Tanto nos primeiros quanto na segunda a relação causai entre o fa to antecedente e o conseqüente decide, de certo modo, sobre a res ponsabilidade em relação ao conseqüente. E note-se que não são poucas as hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, previstas em nosso estatuto penal42. Predomina, entretanto, hoje em dia., a opinião de que, mesmo nesses crimes, também denominados delitos preterintencionais, ou preterdolosos 43, a responsabilidade pelo resul tado não é objetiva, isto é, independente da culpabilidade do agente, pois a especial agravação da pena pelo fato conseqüente dependerá sempre de poder ser este atribuído à culpa (negligência, imprudên cia ou imperícia) do agente44. Ê assim que se define o crime em exame, do qual constitui exemplo a lesão corporal seguida de mor te (CP, art. 129, § 3.°), como sendo uma figura híbrida de dolo e culpa: dolo no fato antecedente e culpa no conseqüente. O agente quer determinado resultado mas, por culpa, dá causa a outro mais grave45. Qualquer tentativa no sentido de se prescindir da culpa em relação ao fato qualificador deve ser rejeitada, por implicar a admissão de uma responsabilidade sem culpa, o que se chocaria com o princípio básico de todo o sistema — o nullum crimen sine culpa. Aliás, isso hoje seria impossível diante do art. 19 do Código Penal. Diga-se, por último, que a justificação da admissão desses de litos qualificados pelo resultado pode ser encontrada em um dado 41. Nesse sentido, Soler, Derecho penal, cit., v. 2, p. 4-5. 42. Eis a relação exemplificativa que deles nos dá Damásio deJesus, in Direito penal, v. 1, p. 286: “Arts. 127; 129, § 1.°, II; 129, § 2.°, V; 129, § 3.°; 133, §§ 1.° e 2.°; 134, §§ 1.° e 2.°; 135, parágrafo Único; 136, §§ 1.° e 2.°; 137, parágrafo único; 148, § 2.°; 223, parágrafo único; 232 (com vistas ao art. 223); 258, l.a parte; 260, § 1.°; 261, § 1.°; 262, § 1.°; 263; 264, parágrafo único; 267, § 1.°; e 285”. 43. Há quem faça distinção entre eles (cf. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 271, nota 191; James Tubenehlalc, Teoria do crime, cit., p.115 e 154). 44. É a solução adotada pela reforma penal com a redação dada ao atual art. 19 do Código Penal, in verbis: “Art. 19. Pelo resultado- que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. 45. Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 136.
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da experiência, facilmente constatável. Segundo nos revela o id quod plerumque accidit, certos fatos estão tão estreitamente ligados a certas conseqüências que se toma quase impossível pensar os pri meiros separadamente das últimas. Exemplos: incêndio ou explo são com subseqüentes lesões corporais graves ou morte Çarts. 250 e 251 c/c art. 258 do CP); lesão corporal grave com a posterior morte da vítima (CP, art. 129, § 3.°). Assim, quem, apesar desse conhecimento empírico, não se detém no momento da realização de tais fatos, não pode deixar de responder, pelo menos por culpa, em relação ao evepto mais grave, quando este, embora não previsto, apresentava-se como previsível46. Reafirme-se, porém, que, se ficar demonstrado que o evento mais grave era, nas circunstâncias, imprevisível, sendo decorrente de puro azar ou caso fortuito, não estará configurada a figura quali ficada, devendo o agente responder somente pelo minus delictum.
46. Nesse sentido, Eduardo Correia: “Ê o perigo normal, típico, quase se poderia dizer necessário, que, para certos bens jurídicos, está ligado à prática de certos crimes, que constitui a razão de ser do crime preterintencional e a razão de ser do agravamento da pena nele determinado. Quem fere, quem incendeia uma casa, quem pratica actos de pirataria, quem expõe ou abandona uma criança de tema idade etc. deve saber que pratica acções especialmente perigosas e tem pois um particular dever de representar que, de tais condutas, pode resultar um evento mais grave e, nomeadamente, a morte de alguém. Pelo que, se a conseqüência típica vem, efeçtivamente, a produzir-se — bem pode dizer-se \ que o agente actuou em relação a ela ( quando as suas capacidades pessoais lhe permitiam prevê-la) com uma negligência qualificada, uma negligência grosseira, particularmente censurável. No perigo típico que envolve certas actividades para bens jurídicos reside a justificação histórica dos crimes preterintencionais; na negligência grosseira que deriva do desrespeito pelo particular dever de representação, que a prática do crime fundamental doloso envolve, reside a justificação para a pesada agravação da pena neles cominada” ( Direito criminal, cit., v. 1, p. 422-3). 309
§ 19. Causas de exclusão da culpabilidade 270. Conforme deixamos claro, o crime é um injusto culpável. A conduta típica e ilícita só se aperfeiçoa, portanto, como crime, quando se lhe agrega a característica da culpabilidade. É certo, contudo, que a culpabilidade, por ser basicamente um juízo de censura, pressupõe a existência de um ilícito penal, pois não é pensável um juízo de reprovação endereçado ao comportamento lícito, reto. Censura-se tão-só aquilo que se fez em antagonismo com o comando de alguma norma, isto é, a conduta típica e antijurídica. Caracterizado, pois, o injusto penal1, a presença da culpa bilidade — salienta Maurach — fecha, ou seja, remata (abschlisst) a estrutura do crim e2. Sendo assim, adquire especial relevância para a realização da justiça criminal a questão de saber como se deverá proceder para a constatação final da culpabilidade do agente pelo fato ilícito que lhe é imputado. A nosso ver, o meio mais seguro para tanto constituise em um procedimento duplo pelo qual, ao tempo em que se pes quisam os pressupostos e os elementos da culpabilidade, vai-se con ferindo o resultado obtido mediante a verificação da possível ocor rência de alguma das denominadas causas de exclusão da culpabili dade. Se, nessa dupla aferição, a primeira pesquisa dér resultado 1. 2.
310
Sobre o conceito de injusto, v. título próprio. Deutsches Strafrecht, cit., p. 419.
positivo e a segunda negativo, exsurgirá nítida e completa a imagem do crime que poderá acarretar a aplicação da pena criminal. Já estudamos, no momento próprio, os pressupostos e os ele mentos da culpabilidade (supra, n. 224 es . ) . Resta, pois, para con cluir, concentrarmos um pouco de nossa atenção sobre as mencio nadas causas de sua exclusão. 271. Os autores que tratam do tema não têm apresentado um quadro uniforme. Não estão totalmente de acordo a respeito do elenco e até mesmo da designação dessas causas, cada um empre gando a terminologia que julga mais adequada (causas de exclusão da culpabilidade, dirimentes, causas de isenção de pena, ou de ex clusão da-púnibilidade3, causas de inculpabilidade 4 etc.). Isso dei xa o campo aberto para que se empreenda uma tentativa de siste matização que pelo menos procure levar em conta as idéias e os princípios até aqui sustentados, sem perder de vista a legislação bra sileira. É o que faremos, agrupando as causas em foco em duas classes fundamentais: 1.a) causas que afastam a censurabilidade do fato porque ne gam, desde o início, a priori, a existência de um agente culpável; 2.a) causas que afastam a censurabilidade do fato porque anu lam um dos elementos essenciais da própria culpabilidade. Pertencem à primeira classe: a) retardamento e enfermidade mental; 6) embriaguez completa por vício em álcool, substância entorpecente ou que provoque dependência; c) menoridade. Em bora seja inegável que essas causas operem em momento anterior ao do surgimento dos elementos da culpabilidade, razão pela qual denominam-se também causas excludentes da imputabilidade, podem elas, segundo entendemos, ser consideradas espécie do gênero “cau sas de exclusão da culpabilidade”, dentro de uma concepção teleo lógica, pois, em última análise, qualquer obstáculo à afirmação da imputabilidade do agente só tem sentido para o direito penal na medida em que possa excluir, por via de conseqüência, a culpabili dade. Tanto é assim que a inimputabilidade do agente afasta a culpabilidade sem atingir o injusto típico, o ilícito penal, que, em 3. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 286-7. 4. Everardo da Cunha Lima, Estrutura jurídica do crime, p. 118. 311
certas circunstâncias, continua a produzir efeitos jurídico-penais (medidas de segurança, medidas de proteção ou internamento etc.). Por isso tais causas devem ser pesquisadas em primeiro lugar. Pertencem ao segundo grupo todas aquelas situações incompa tíveis com a existência de algum dos elementos essenciais da culpa bilidade, a saber: a) inexigibilidade, nas circunstâncias, de outra conduta; b) estado de necessidade exculpante; c) embriaguez com pleta por caso fortuito ou força maior; d) coação moral irresistí vel; e) obediência hierárquica; /) erro de proibição inevitável; g) descriminantes putativas, quando traduzirem erro de proibição ine vitável; h ) o excesso exculpante de legítima defesa; i) o caso fortuito. A seguir, empreenderemos o estudo das excludentes em foco, começando pelas do primeiro grupo.
a)
Imputabilidade e inimputabilidade
272. Uma vez estabelecido que a culpabilidade é um juízo de censura, ou de reprovação, que se faz ao agente do crime pelo seu comportamento antijurídico quando, nas circunstâncias, deveria e poderia ter agido de conformidade com a norma, torna-se evidente mente inalcançável por esse juízo de reprovação todo fenômeno pu ramente causai, que não possa ser reconduzido ao domínio da von tade do agente. Falta, nesse caso, a possibilidade de um atuar de outro modo, isto é, conforme ao direito. E isso, como ficou escla recido, vale tanto para a conduta dolosa como para a culposa. Em outras palavras, podem-se lamentar mas não se podem censurar me ros casos fortuitos, puros fatos inevitáveis. Surge, então, a ques tão de saber quando e em que medida será admissível, em linhas gerais, atribuir-se a alguém, como algo seu, um fato-crime a qute tenha dado causa. Observa-se, sem muito esforço, que essa ques tão se põe como um antecedente lógico do juízo de culpabilidade, pois, sendo este pessoal, só depois de decidido o problema da im putação é que estará aberto o caminho para a formulação da cen sura contra aquele a quem se atribui o fato. 273. Imputabilidade € sinônimo de atribuibilidade. Imputar é atribuir algo a alguém. Quando se diz que determinado fato é imputável a certa pessoa, está-se atribuindo a essa pessoa ter sido a 312
causa eficiente e voluntária desse mesmo fato. Mais ainda: está-se afirmando ser essa pessoa, no plano jurídico, responsável pelo fato e, conseqüentemente, passível de sofrer os efeitos, decorrentes dessa responsabilidade, previstos pelo ordenamento vigente. O termo im putabilidade contém, assim, uma certa carga valorativa, pois, con forme salienta Petrocelli, “viene dal verbo latino imputare, che sig nifica aítribuire, ascrivere, però nel senso di attribuire in male, addebitare, far carico” 5. Pode, entretanto, a imputabilidade estar referida não ao fato, mas diretamente ao agente. Nesta última hi pótese, significa aptidão para ser culpável. Quando se afirma que certa pessoa é imputável, está-se dizendo ser ela dotada de capaci dade para ser um agente penalmente responsável. Ambos os senti dos em exame são usuais e interessam particularmente ao direito penal. No momento, porém, preocupa-nos mais o segundo, isto é, a imputabilidade referida ao agente do crime. 274. Culpabilidade, responsabilidade e imputabilidade são ex pressões que, freqüentemente, se confundem. O legislador pátrio trata da imputabilidade, nos arts. 26 e seguintes do Código Penal. Parece-nos, entretanto, conveniente distinguir6: imputabilidade é, 5. La colpevolezza, cit., p. 8. 6. Cf. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 326. Jiménez de Asúa: “Imputar un hecho a un individuo es atribuírselo para hacerle sufrir las consecuencias; es decir, para hacerle responsable de él, puesto que de tal hecho es culpable. La eulpabilidad y la responsabilidad son consecuencias tan directas, tan inmediatas de la imputabilidad, que las tres ideas son a menudo consideradas como equivalentes y las tres palabras como sinônimas. Pero estos tres conceptos pueden distinguirse y precisarse. La imputabilidad afirma la existencia de una relación de causalidad psíquica entre el delito y la persona; la responsabilidad resulta de la imputabilidad, puesto que es responsable el que tiene capacidad para sufrir las consecuencias del delito, si bien, en última instancia, es una declaración que resulta del conjunto de todos los caracteres del hecho punible; la eulpabilidad es un elemento carac terístico de la infracción y de carácter normativo, puesto que no se puede hacer sufrir a un individuo las consecuencias del acto que le es imputable más que a condición de deelararle culpable de él” (La ley y el delito, cit., p. 325-6). Em sentido contrário, Nélson Hungria: “Segundo um critério tra dicional, que o Código rejeitou, haveria que distinguir entre responsabilidade e imputabilidade, significando esta a capacidade de direito penal ou abstrata condição psíquica da punibilidade, enquanto aquela designaria a obrigação de responder penalmente in concreto ou de sofrer a pena por um fato determinado, pressuposta a imputabilidade. A distinção é bizantina e inútil. Responsabilidade e imputabilidade representam conceitos que de tal modo se 313
tecnicamente, a capacidade de culpabilidade7; já a responsabilidade constitui um princípio segundo o qual toda pessoa imputável (dota da de capacidade de culpabilidade) deve responder pelos seus atos. Assim, sempre que o agente for imputável, será penalmente res ponsável, em certa medida; e se for responsável, deverá prestar con tas pelo fato-crime a que der causa, sofrendo, na proporção direta de sua culpabilidade, as conseqüências jurídico-penais previstas em lei. Pode-se, pois, em suma, afirmar, com Welzel, que o conceito de culpabilidade apóia-se sobre o princípio da responsabilidade, se gundo o qual as pessoas estão obrigadas a responder pela legitimi dade (Rechtmassigkeit) de suas resoluções fáticas, nos limites da respectiva capacidade de compreensão ético-social8. Mas o princí pio da responsabilidade penal apóia-se, por sua vez, na imputabili dade do agente. Daí entendermos, contrariamente à opinião de al guns autores, que a imputabilidade é pressuposto necessário da cul pabilidade, não simples elemento desta. Quais os elementos da imputabilidade, isto é, da capacidade de culpabilidade? Dos arts. 26 a 28 do Código Penal podem-se inferir, essencialmente, dois, a saber: 1.°) que o agente possua, ao tempo da ação ou da omissão, a higidez biopsíquica necessária para a com preensão do injusto e para orientar-se de acordo com essa compre ensão; 2.°) que o agente tenha completado dezoito anos. Explicando o princípio que presidiu a adoção desses critérios, não alterados pela reforma penal, diz a Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos: “Na fixação do pressuposto da responsabüidade penal (baseada na capacidade de culpa moral), apresentamse três sistemas: o biológico ou etiológico (sistema francês), o psico lógico e o biopsicológico. O sistema biológico condiciona a respon sabilidade à saúde mental, à normalidade da mente. Se o agente é portador de uma enfermidade ou grave deficiência mental, deve ser declarado ■irresponsável sem necessidade de ulterior indagação psi cológica. O método psicológico não indaga se há uma perturbação entrosam, que são equivalentes, podendo, com idêntico sentido, ser conside radas in abstracto ou in concreto, a priori ou a posteriori. Na terminologia jurídica, ambos os vocábulos podem ser indiferentemente empregados, para exprimir tanto a capacidade penal in genere, quanto a obrigação de responder penalmente pelo fato concreto, pois uma e outra são aspectos da mesma noção7' ( Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 314). 7. Welzel, Das deutsche Strafrecht, cit., p. 152. 8. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 162. 314
mental mórbida: declara a irresponsabilidade se, ao tempo do crime, estava abolida no agente, seja qual for a causa, a faculdade de apre ciar a criminalidade do fato (momento intelectual) e de determinarse de acordo com essa apreciação (momento volitivo). Finalmente, o método biopsicológico é a reunião dos dois primeiros: a responsa bilidade só é excluída, se o agente, em razão de enfermidade ou re tardamento mental, era, no momento da ação, incapaz de entendi mento ético-jurídico e autodeterminação.. . ” E mais adiante: “Não cuida o projeto (já agora o Código) dos imaturos (menores de de zoito anos), senão para declará-los inteira e irrestritamente fora do direito penal (art. 23), sujeitos apenas à pedagogia corretiva de le gislação especial” 9. 275. Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Para que o agente de um crime seja, pois, dotado de imputabilidade, além da idade de dezoito anos, deverá, à época do fato, estar no gozo de certas faculdades intelectivas e de determinado grau de saúde mental. A lei penal exprime essas exigências, de modo negativo, ao estabelecer as hipóteses de inimputabilidade ou de redução da responsabilidade (arts. 26 e parágrafo único, 27 e 28, §§ 1.° e 2.°). Com isso, pode-se afirmar, com segurança, ser a regra a imputabilidade do maior de dezoito anos; a exceção, a inim putabilidade. Assim, a inimputabilidade restringe-se aos casos ex pressos em lei e, processualmente, cumpre ser provada. Já a im putabilidade presume-se, nos casos em que a lei não a exclua. As primeiras hipóteses de inimputabilidade estão previstas no art. 26: doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Tendo o legislador usado termos bastante genéricos, como facilmente se percebe, a exata extensão e compreensão das ex pressões “doença mental” e “desenvolvimento mental incompleto ou retardado” fica deferida ao prudente arbítrio do juiz que, em cada caso, se valerá do indispensável auxílio de perícias especializadas. O que importa ter em mente é a parte final do preceito, que traça os limites normativos extremos desse poder discricionário: doença ou qualquer anomalia que torne o agente, à época do fato, incapaz de ter a compreensão do injusto que realiza ou de orientar-se jinalisti-< camente em função dessa compreensão. Correta, pois, a seguinte afirmação de Costa e Silva: “é humanamente impossível, na situação 9.
O citado art. 23 corresponde ao atual de n. 27. 315
atual da ciência psiquiátrica, encontrar-se uma formula que, em re sumo, compreenda todas as manifestações nosológicas, de ordem psí quica, que dão lugar à exclusão ou diminuição da imputabilidade. A de nosso Código — ‘doença mental ou desenvolvimento mental in completo ou retardado’ — pertence ao número das menos imperfei tas. A expressão ‘doença mental’ deve ser tomada em sua maior amplitude. Ela não pode deixar de abranger certos estados de in consciência que não são rigorosamente patológicos (como o sono, natural ou artificial). A natureza da doença — crônica ou tran sitória, constitucional ou adquirida — carece de relevância. A frase — ‘desenvolvimento mental incompleto ou retardado’ — compreende os surdos-mudos e os selvícolas. Por isso o Código com eles não se ocupou especialmente. Compete à psicopatologia forense determi nar, em cada caso concreto, se a doença ou o defeituoso desenvolvi mento mental produz a incapacidade a que a lei alude, incapacidade que importa a exclusão da imputabilidade ou responsabilidade” 10. Nélson Hungria tem opinião idêntica, atribuindo ao conceito de doen ça mental significado amplíssimo, a ponto de nele incluir não só a morbidez orgânica, patológica (demência, arteriosclerose etc.), como a de origem tóxica, provocada por alcoolismo, morfinismo, cocainismo, satumismo etc., concluindo: “A latitude da expressão ‘doença mental’, na interpretação do art. 22 11 do Código, tem por si o apoio da psiquiatria moderna, e é tanto mais aceitável quanto o método biopsicológico é preservativo contra uma exagerada admissão da ir responsabilidade. Assim, não há disparate algum em que sejam co locadas sob tal rubrica as perturbações de atividade mental que se ligam a certos estados somáticos ou fisiológicos mórbidos, de cará ter transitório, como o delírio febril e o sonambulismo. Já escreve mos alhures: ‘. . . é inegável o fundo mórbido de perturbações men tais ligadas a desequilíbrios somáticos ou produzidos fora do psiquismo. Contestá-lo valeria por desmentir a própria unidade biológi ca. O delírio febril (a frenitis de Hipócrates) é uma transitória doença mental. E outra classificação não pode ter o sonambulismo espontâneo delirante, a que só estão sujeitos, segundo a lição cientí fica, os histéricos, os neurastênicos, os nevropatas e os epilépticos. . . ’ À doença mental pode ser dada a mesma extensiva definição propos ta por Beca Soto, na dissertação perante o II Congresso Latino10. 11. 316
Código Penal, cit., v. 1, p. 181-2. Atual art. 26.
Americano de Criminologia, de Santiago do Chile (1941), relativa mente à psicose: ‘alteração patológica, mais ou menos prolongada, das funções psíquicas, a qual impede a adaptação do indivíduo às normas do meio ambiente, com perigo ou prejuízo para si próprio e para a sociedade’ ” 12. 276. Redução da capacidade. As mesmas causas acima exa minadas, tal seja o grau de sua evolução, podem conduzir não à anulação completa, mas a uma redução da capacidade de compreen são ou de autodeterminação do agente. Fala-se, nessa hipótese, em imputabilidade ou em responsabilidade diminuída. Preferimos a úl tima expressão. Leia-se o que dispõe o parágrafo único do art. 26: “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em vir tude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse enten dimento”. A menor capacidade de compreensão do injusto ou a redução do poder de domínio dos próprios impulsos, resultante de causas mórbidas (o Código fala em “perturbação da saúde mental” ) ou de desenvolvimento incompleto ou retardado, acarreta, quando não afasta a imputabilidade do agente, uma atenuação de sua responsabi lidade, no sentido em que empregamos o termo, o que repercute so bre o juízo de censura de culpabilidade, perfeitamente graduável, en sejando a possibilidade de redução da pena. Nélson Hungria aceita a expressão “responsabilidade diminuída” por uma imposição do uso. Ressalva, porém, a opinião de que entre dois termos contra ditórios (responsabilidade e irresponsabilidade) não se admite um terceiro13. Essa afirmação do penalista pátrio sofre evidente in fluência do denominado “princípio do terceiro excluído”, hoje bas tante contestado pelos lógicos 14 e, a nosso ver, inadequado para so lucionar problemas jurídico-existenciais, dentre os quais se situa evi dentemente o da responsabilidade penal. A experiência vital for nece-nos por uma intuição imediata esta realidade incontestável: o 12. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 329-30. 13. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 331-2. 14. “O princípio do T.E. não está escrito nos céus: reflete antes a nossa obstinação de aprovar o mâis simples de todos os modos da divisão e o nosso inter-esse predominante pelos objetos concretos, em oposição aos con ceitos abstratos...” (C. I. Lewis, apud Nicola Abbagnano, Terceiro excluído, Princípio do, in Dicionário de filosofia, cit.).
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maior ou o menor grau da culpabilidade do agente, diante de sua maior ou menor responsabilidade pelo fato. Princípios lógico-matemáticos não conseguem afastar essa realidade. 277. Questão que pode oferecer algum interesse prático é a de saber se no parágrafo único do art. 26 está-se diante de duas hipó teses distintas de redução da responsabilidade penal, ou se ambas se implicam e se resolvem em àpenas uma. Em outras palavras: a redução da capacidade de compreensão do injusto implica a redução da capacidade de autodeterminação e vice-versa, ou cuidou o legisla dor de hipóteses autônomas, distintas? Pensamos que a resposta seja afirmativa, o que significa admi tirmos a existência de duas hipóteses distintas. E isso se percebe, com nitidez, quando se considera que, se de um lado a redução da capacidade de compreensão do injusto acarreta necessariamente a redução da capacidade de autodeterminação, a recíproca não é ver dadeira, visto cOmo esta última pode não estar vinculada à primeira. Ê o que ocorre com alguma freqüência em indivíduos portadores de certas psiconeuroses, os quais agem com plena consciência do que fazem, mas não conseguem ter o domínio de seus atos, isto é, não podem evitá-los. São situações mórbidas, experimentalmente iden tificadas e comprovadas, in verbis: “Reações obsessivo-compulsivas são pensamentos e atos coercivos, irracionais. O indivíduo tem consciência da sua irracionalidade, mas não consegue livrar-se da idéia nem do impulso para agir. Por exemplo, a mãe constante mente preocupada com a idéia de que vai ferir ou matar o filhinho, que ela ama, está experimentando uma obsessão. A cleptomania (furto compulsivo) e a piromania (incendiamento compulsivo) são exemplos de compulsões. As fobias, as obsessões e as compulsões andam freqüentemente juntas. Por exemplo, uma pessoa que sofre de misofobia (medo mórbido da sujeira) vive obcecada pela idéia de que está sendo contaminada por germes perigosos, através de todas as coisas que toca, e tem a compulsão de lavar as mãos. Esses três elementos são coerentes e apóiam-se mutuamente” 15. 15. Charles W. Telford & James M. Sawrey, Psicologia, cit., p. 468-9. Sauer põe em destaque a possibilidade de dissociação entre a inteligência e a vontade, neste tópico: “Es importante que el elemento intelectual y el emo cional estén en conexión; el querer y el obrar tienen que producirse normal mente de modo consciente. Pueden, por consiguiente, la inteligencia y la 318
Por isso, consideramos indispensável, nos exames sobre a insa nidade mental do agente, a formulação de quesitos que indaguem sobre as duas hipóteses em questão, o mesmo se podendo dizer em relação aos julgamentos pelo júri. Neste último caso, é aconselhá vel se formulem quesitos separados, de acordo com o formulário noticiado por Frederico Marques, a saber: “ 1.° Quesito: O júri re conhece que o réu. . . , em virtude de perturbação de saúde mental (ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, se for o caso), não possuía ao tempo do crime a plena capacidade de deter minar-se de acordo com o entendimento do caráter criminoso do fato? 2.° Quesito: O júri reconhece que o réu, em virtude de per turbação de saúde mental (ou por desenvolvimento incompleto ou retardado, se for o caso), não possuía ao tempo do crime a plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato? Observações: A afirmativa de qualquer destes quesitos importa no reconhecimento da existência das circunstâncias da atenuação de responsabilidade, prevista no parágrafo único do art. 22 do Código Penal” 16 (gri famos). O único reparo que se poderá fazer a esse formulário é a reda ção dos quesitos em forma negativa ( “não possuía” ), fato que, na prática, pode deixar sérias dúvidas a respeito da verdadeira decisão dos jurados. Melhor seria, portanto, indagar dos jurados, direta mente, se o réu. .. etc. . .. sofria alguma redução em sua capaci dade. .. 278. Menoridade. Em nosso sistema penal, os menores de dezoito anos são considerados penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial (CP, art. 27 ) 17. voluntad discurrir una junto a la otra independientemente; así la inteligencia puede existir, pero no corresponderia ninguna voluntad, como en los delitos de impulso, sexuales y seniles o la voluntad puede no dejarse determinar por la comprensión existente en ella sino por consideraciones de utilidad. La impu tabilidad puede también darse si el autor po,see el pleno conocimiento del estado de cosas, como de su injusto” (Derecho penal, cit., p. 286). 16. O júri no direito brasileiro, p. 362. O art. 22, citado, corresponde ao atual art. 26. 17. Regulavam a matéria os seguintes diplomas legais: Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927; Decreto-lei n. 6.026, de 24 de novembro de 1943; Lei n. 5.258, de 10 de abril de 1967; Lei n. 5.439, de 22 de maio de 1968.Depois, editou-se o Código de Menores (Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979).; A partir de outubro de 1990, vige o Estatuto da Criança è do Adolescente (Lei n. 8.069/90). 319
Os que estejam na faixa de doze a dezoito anos podem ser subme tidos a processo especial perante o juiz de menores, nos termos daquela legislação; os de idade inferior a doze anos estão excluídos daquele processo, sendo contudo passíveis de medidas protetivas. Como se vê, a responsabilidade penal tem início, entre nós, conforme preceitua o Código, aos dezoito anos. Tal preceito, segundo Nélson Hungria, resulta menos de postulados científicos do que de um cri tério de política criminal18. Com efeito, nada indica que a idade de dezoito anos seja um marco preciso no advento da capacidade de compreensão do injusto e de autodeterminação. É, entretanto, um limite razoável de tolerância (recomendado pelo Seminário Europeu de Assistência Social das Nações Unidas, de 1949, em Paris), tanto que a maioria dos países, com pequenas variações, para mais ou para menos.. ficam em torno dele 19. E isso tem a sua razão de ser. Ninguém, ao nascer, traz inscul pidas no espírito as regras precisas do comportamento lícito. É necessário, pois, aprendê-las. Por isso mesmo, o crime é um fenô meno cultural. Àquilo que seria absolutamente normal em uma ilha deserta, para um indivíduo isolado (apanhar frutas de qualquer ár vore, apossar-se de tudò que lhe aprouvesse, destruir o que se lhe apresentasse como hostil ou desagradável etc.), pode ser um grave crime na vida em sociedade. Ora, a criança é um ser inicialmente ilhado. Precisa ver e aprender para que possa “bem comportar-se” no interior da comunidade que brevemente irá impor-lhe desde a forma correta de mastigar, de vestir-se, até o modo de comportar-se perante as coisas e as pessoas. É, na verdade, um duro aprendiza do esse de ter que conter apetites e impulsos naturais diante de certas regras ou normas de conduta impostas de fora. E não se deve esquecer que até mesmo os santos sucumbiram, por vezes, no curso desse aprendizado, como nos revela Santo Agostinho no relato do furto das peras. Que dizer dos milhares de pequenos seres (a imen sa maioria) não tão bem dotados ou predestinados? Não é nada fácil abandonar o mundo mágico e livre da infância para, passando pela puberdade, transformar-se no “homem razoável” que, por força de hábitos, identifique, como nos diz Saint-Exupéry, um chapéu no desenho da jibóia que engoliu um elefante, e que resista ao chama 18. Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 353. 19. Consulte-se a respeito: Wolf Middendorff, Criminología de la juventud, p. 27-30; López-Rey, Crime, p. 199-200, 320
mento dás florestas virgens e das estrelas, para falar de golfe, de política e de gravatas (O pequeno príncipe). O grande equívoco de Lombroso — e de outros positivistas — foi pensar que a natureza, ou o que quer que seja, produza, de quando em vez, um ser humano anti-social. Na verdade, os seres humanos, sem exceção, socializam-se após o nascimento, cumprindo um processo de aprendizado relativamente longo, se comparado com o tempo de duração da vida. E não é estranhável que, no curso desse processo, cometam, com certa naturalidade, atos anti-soeiais e até mesmo criminosos. O não-infringir o Código Penal, nesse pe ríodo, é, conforme já se disse, uma questão de pura sorte. Sheldon Glueck, em aguda observação, salienta que, contraria mente ao que se tem por vezes sustentado20, as investigações psi quiátricas e criminológicas sobre as primeiras manifestações do com portamento anti-social da infância evidenciam que este não é fruto de aprendizado, mas se verifica naturalmente. O que precisa ser aprendido é o comportamento não-delinqüente 21. Segundo o gran de criminólogo e pesquisador americano, a criança “não-socializada”, “não-domada”, “não-instruída”, recorre à mentira, à fraude, ao sub terfúgio, à cólera, ao ódio, ao furto, à agressão, ao ataque e a outras formas de comportamento, nas suas primeiras tentativas de autoexpressão. Assim, a formação de um caráter amoldado ao respeito à lei é um processo difícil22. Não é outra, aliás, senão essa, a missão reservada à educação da criança, o que exige, como é óbvio, muita paciência e algum tempo. Isso justifica, a nosso ver, os limites de idade inicialmente refe ridos, visto como salta aos olhos que o menof deve realmente ter um tratamento especial, mediante legislação especial. Se essa legislação estiver desatualizada ou apresentar deficiências, a questão é apri morá-la e não, como por vezes se proclama, reduzirem-se os limites para uma simplista extensão do reconhecidamente falho sistema peni tenciário que aí está aos que ainda se encontram na puberdade, a respeito dos quais, por princípio, recusamos admitir um juízo de prognose cético, definitivo. 20. Principalmente Sutherland, Principies of criminólogy. 21. S. Glueck, Teoria e fatti in criminologia, in Nuove frontiere deUa criminologia, p. 322. 22. S. Glueck, Teoria e fatti in criminologia, in Nuove frontiere, cit., p. 323. 321
279. Note-se que não vemos razão para permitir que as con vicções expostas sejam abaladas pelo fenômeno da criminalidade violenta que, em nossos dias, assume proporções inquietantes, com participação cada vez mais crescente do menor delinqüente. Isso confirma, aliás, o que vimos sustentando. Se a sociedade moderna, bastante influenciada por economistas de pouca visão, não é capaz de empenhar-se verdadeiramente no amparo e na educação do menor carente ou abandonado, por não ser esse um “investimento” com retornos e lucros garantidos, não é de espantar que milhares de pe quenos seres, dentre os que perambulam pelos centros urbanos, agre didos pela nossa indiferença e humilhados pelas esmolas insuficientes que lhes damos de má vontade, desenvolvam sua grande potenciali dade mediante um aprendizado negativo, até serem recrutados pelos profissionais do crime. É um fato lamentável, mas que lhes asse gurará, de qualquer modo, uma forma de sobrevivência, como adultos marginalizados, agressivos e inimigos de uma sociedade que sempre lhes foi extremamente hostil, apesar de não terem tido a mínima par cela de participação na circustância de um dia nela terem surgido, pela fatalidade do nascimento. 280. “Actio libera in causa?’. Embriaguez. Estado de in consciência. A teoria das actiones liberae in causa remonta à Anti güidade. Aristóteles já a resume, em essência, nesta passagem, de modo simples e completo: “ . . . punimos alguém por sua própria ig norância, se o consideramos responsável por essa ignorância, como, por exemplo, no caso da embriaguez, em que as penas são dobra das para os delinqüentes, porque o princípio do ato reside no próprio agente que tinha o poder de não se embriagar e que, por isso, tomase responsável pela sua ignorância” 23. Os antigos jurisconsultos italianos desenvolveram os contornos jurídicos dessa teoria para solu cionar precisamente os problemas relacionados com fatos cometidos em estado de inconsciência (a ignorância referida por Aristóteles) provocado pela embriaguez e pelo sono24. Considerava-se que se a embriaguez e o sono, causas do estado de inconsciência, eram imputáveis ao agente, por dolo ou culpa, não se poderia isentar de responsabilidade o mesmo agente por fatos cometidos durante esse 23. Êthique à Nicomaque, cit., 1113 b, p. 141-2. 24. Manzini, embora sem mencionar a origem grega, faz uma breve resenha histórica no direito italiano, com preciosa citação das fontes (Trattcrfo, cit., v. 1, p. 715 e s . ) . 322
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estado de inconsciência. O raciocínio é simples: embora o agente não esteja no pleno gozo de suas faculdades de compreensão e de autodeterminação, no momento do fato, essa situação transitória de inimputabilidade seria resultante de um anterior ato livre de vontade. Daí esta outra expressão latina que resume o princípio que informa a teoria em exame: causa causae est causa cdusati (a causa da causa é também causa do que foi causado). O Código vigente adota esse princípio no art. 28, que reproduz a mesma orientação do art. 24 do texto de 1940, e o faz a nosso ver corretamente, pois a embriaguez, pelo álcool ou por drogas, segundo revela a experiência cotidiana, dota o indivíduo de especial periculosidade, pelo afrouxamento de suas faculdades de inibição ou, em sentido oposto, pela paralisação de funções psíquicas essen ciais ao normal desempenho de certas atividades (exemplo: dirigir veículos, conduzir armas etc.). Assim, sendo isso um fato do co nhecimento geral, experienciado por todos, não se deve realmente valorar em benefício do agente a embriaguez voluntária ou culposa, visto como quem se embriaga propositadamente, ou por imprudên cia, assume riscos calculados e não pode deixar de prever eventuais conseqüências desastrosas daquilo que faz nesse estado. Por outro lado, quem se transforma em instrumento de si mesmo, para a co missão de um crime planejado (embriaguez preordenada), age evidentemente com dolo e culpavelmente, tal como aquele que con trata e induz o cúmplice à prática do crime. Não obstante, parece-nos que, à luz do pensamento penalístico moderno, pode-se ver nos dispositivos do art. 28, incisos e parágra fos, do Código vigente, com boa técnica redigidos, um conteúdo atual, que não conduza a se punir como doloso um resultado só atribuível a título de culpa, ou — o que seria pior — a se punir pelo só resultado quem dele não participa sequer culposamente. E que os preceitos em causa devem ser interpretados, hodiemamente, em conjugação com o princípio fundamental de todo o sistema — o princípio da culpabilidade. Se não existe crime sem culpabilidade (nullum crimen sine culpa) e se o contrário não está dito em ne nhum ponto do mencionado art. 28, respectivos incisos e parágrafos, não vemos o que esteja a impedir o penalista dos dias de hoje de interpretar tais preceitos como hoje devem ser interpretados. Assim, com a reforma penal, necessário seria, talvez, empreender-se uma reforma de mentalidade, para que se pudesse extrair alguma conse qüência prática deste ensinamento de Engisch, de que já nos valemos 323
para o desenvolvim ento do tema do “erro” : “A própria lei e 0 seu conteúdo interno não são uma coisa estática como qualquer fato his tórico passado (‘eternamente quieto permanece o passado’), mas são algo de vivo e de mutável e são, por isso, susceptíveis de adaptação. O sentido da lei logo se modifica pelo fato de ela constituir parte integrante da ordem jurídica global e de, por isso, participar na sua constante transformação, por força da unidade da ordem jurídica. As novas disposições legais refletem sobre as antigas o seu sentido e modificam-nas. Mas não é só uma mudança no todo do direito que arrasta atrás de si, como por simpatia, o direito preexistente: também o fluir da vida o leva atrás de si. Novos fenômenos téc nicos, econômicos, sociais, políticos, culturais e morais têm de ser juridicamente apreciados com base nas normas jurídicas preexisten tes. Ao ser o direito obrigado a assumir posição em face de fenô menos e situações que o legislador histórico de maneira nenhuma poderia ter conhecido ou pensado, ele cresce para além de si mesmo. ‘A lei, logo que surge na existência, insere-se num campo de força social, do qual, de agora em diante. . . ela vai retirar a nova con figuração do seu conteúdo’ (Mezger). Por isso mesmo nos encon tramos nós em situação de ‘compreender melhor’ a lei do que a compreendeu o próprio legislador histórico. Não pode ser nossa, tarefa deixarmos o presente com os seus problemas e retrocedermos anos ou décadas para entrar no espírito de um legislador que pro priamente nos não interessa já” 25. 281, Dentro desse espírito, reexaminemos estas hipóteses e so luções elaboradas por Nélson Hungria: “Várias são as hipóteses formuláveis a respeito do indivíduo que comete crime em estado de embriaguez: a) embriagou-se voluntariamente, com o fim precon cebido de cometer o crime; b) embriagou-se voluntariamente, sem o fim de cometer o crime, mas prevendo que em tal estado podia vir a cometê-lo e assumindo o risco de tal resultado; c) embriagou-se voluntariamente ou imprudentemente, sem prever, mas devendo pre ver, ou prevendo, mas esperando que não ocorresse a eventualidade de vir a cometer o crime; d) embriagou-se por caso fortuito ou força maior (sem intenção de se embriagar e não podendo prever os efeitos da bebida). Nos casos sob a, b e c, é inegável que, maior ou menor, existe um vínculo de causalidade psíquica entre o ato de 25.
324
In nosso O erro, cit., p. 68-9.
embriagar-se e o evento criminoso, entre o intencional, voluntário
ou culposo estado de transitória perturbação fisiopsíquica e o crime. Em todos os três, o agente se colocou, livremente, em estado de delinqüir, sabendo ou devendo saber que a embriaguez facilmente conduz à frouxidão dos freios inibitórios e à conseqüente prática de atos contrários à ordem jurídica. Somente na quarta hipótese deixa de haver uma actio libera in causa” 26. Para nós, somente os casos sob a e b se resolvem pela actio libera in causa. Na hipótese sob c só se poderá cogitar, segundo supomos, de um crime culposo e se houver previsão legal, para o que, aliás, dispensável será recorrer-se a outros princípios que não os da culpa stricto sensu, já estudados, os quais oferecem solução adequada. Considerar-se o crime doloso, nessa hipótese, “segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade” 2T, constitui, a nosso ver, uma conjugação de culpa e dolo, criatura não menos monstruosa do que a já referida na citação de Binding. Corretas, pois, se nos afiguram estas afirmações a res peito do tema, de E. R. Zaffaroni: “Si el dolo es el fin de cometer un delito determinado, o sea el querer la realización de un tipo objetivo, nada tiene que ver esta voluntad con la de incapacitarse, salvo cuando el sujeto se incapacita con el fin de comjeter el delito, en cuyo caso es un instigador de sí mismo (o autor mediato). Êste es el supuesto de la llamada ‘acción libre en su causa’, que consiste en encuadrar tipicamente la totalidad de la conducta y no sólo la mera parte lesiva de la acción. Si en la conducta dolosa el sujeto prevé la causalidad y la programa, por ende, nada se altera en el dolo cuando él mismo como agente físico o como autor inculpable, entra a formar parte de esa programación para la realización del fin típico. En tal supuesto nos hallaremos con una clara conducta típica dolosa, con dolo directo. Igualmente, si previó e incluyó en la finalidad la producción del resultado típico durante la incapacidad provocada, también habrá una conducta típica dolosa con dolo eventual. Si, en lugar, no se incapacito con el fin de realizar un tipo objetivo, sino que lo hizo con cualquier otra finalidad, pero le fue previsible su realización y en las condiciones en que se in capacito su conducta (de incapacitarse) era violatoria de un deber de cuidado, tendremos una típica conducta culposa (siempre que 26. 27.
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 381. Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 379. 325
exista el correspondiente tipo culposo). Cuâlquier desconocimiento a estos princípios implica una intromisión de la responsabilidad ob jetiva. Tal sucede cuando: a) Se considera autor doloso de una conducta que en situación de incapacidad el sujeto no quiso realizar, porque se toma como típico el dolo que el sujeto tuvo durante la incapacidad (lo que es correcto), pero se le reprocha en base a la totalidad de la conducta, es decir, que a los efectos de la tipicidad se toma una conducta y a los de la culpabilidad otra. No puede haber una más clara aplicación del principio ‘quien quiso la causa quiso el efecto’. b) Se considera a un sujeto autor culposo de una conducta que en estado de capacidad no pudo prever. Aqui se va a la responsabilidad objetiva con toda claridad: hay culpa sin previsibilidad ciei resultado, tipicidad culposa sin tipo subjetivo (cono cimiento potencial) culposo. Cualquiera de ambas soluciones es una clara aplicación del versare in re illicita, cuya vigência no se ha per dido en un sector de nuestra jurisprudência, pese al general repudio doctrinario” 28. 282. Note-se, porém, que a ingestão de bebidas, ou drogas, não leva, em todos os casos, a um estado de inconsciência apto a anular a capacidade de compreensão e de autodeterminação. E a simples redução dessa capacidade, de modo transitório, não pode causar em favor do ébrio maior benefício do que o estabelecido em favor do insano mental (art. 26, parágrafo único). Além disso, por uma dessas felizes tramas da natureza, esse estado de inconsciência, quando atingido, coincide quase sempre com o de prostração, que impossibilita ações mais graves totalmente fora do domínio da von tade. Por isso, certamente, é que Battaglini afirma, com alguma razão, que ninguém jamais viu no banco dos réus a figura hipoté tica do ébrio “com inteligência suprimida e vontade inexistente”. Vemo-la, com efeito, freqüente e concretamente, nas sarjetas e nos leitos hospitalares. Daí o tradicional repúdio do direito penal à alegação de estado de embriaguez como causa de absolvição. É que o tema oferece dificuldades enormes no plano processual, proba tório. Na grande maioria dos casos a alegação de inconsciência por embriaguez não passa de manifesta mentira, nos delitos dolosos de ação. Não obstante, nos crimes omissivos deve, a nosso ver, ser levada a sério, visto como, nessa última hipótese, não será difícil 28.
326
Teoria del delito, cit., p. 358-9.
pesquisar-se a existência e os efeitos do estado letárgico que, indu bitavelmente, faz presumir a inimputabilidade transitória.
b) Inexigibilidade de outra conduta 283. Culpabilidade e responsabilidade são conceitos que não se confundem, conforme vimos. Exprimem, contudo, aspectos dis tintos da mesma realidade, já que culpabilidade implica (acarreta) sempre responsabilidade. Quem é culpado é responsável e quem é responsável pode ser chamado a prestar contas pelo fato a que deu caiusa 29. Como, entretanto, em direito penal a responsabilidade é pessoal e intransferível (ninguém pode ser punido por um compor tamento que não seja seu), toma-se indispensável, antes da aplica ção da pena, fixar-se, de uma vez por todas, a quem pertence ver dadeiramente a ação que se quer punir. E isso precisa ser feito não com um significado puramente processual (que também é im portante, na determinação da autoria), mas em sentido penalístico, mais profundo, ou seja: há que se estabelecer se a ação que se quer punir pode ser atribuída à pessoa do acusado, como algo realmente seu, ou seja, derivado diretamente de uma ação (ou omissão) que poderia ter sido por ele de algum modo evitada. Essa possibilidade de; evitar, no momento da ação ou da omissão, a conduta reputada criminosa é decisiva para a fixação da responsabilidade penal, pois, inexistindo tal possibilidade, será forçosa a conclusão de que o agen te não agiu por conta própria, mas teve seus músculos acionados, ou paralisados, por forças não submetidas ao domínio de sua inteligên cia e/ou vontade. Há, pois, que se distinguir a mera causa física do comportamento humano “responsável”. Em outras palavras: o que é impossível de ser evitado só pode ser reconduzido ao mundo físico, puramente causai, não à pessoa humana, entendida esta como sujeito responsável, isto é, dotado, no mundo das relações inter-humanas, dai faculdade de dizer “sim”, ou “não”, dentro de determinadas cir cunstâncias e, é claro, de certos limites. 29. Alf Ross fala de uma relação recíproca entre os conceitos: “II rapporto reciproco che lega questi concetti può esser ora, in linea di massima, esposto cosi. Chi ha commesso un’infrazione, incorre, a certe condizioni, in una colpa. Chi è colpevole delTinfrazione, ne è con ciò anche responsabile. E chi è responsabile delTinfrazione, può o deve essere punito” (Colpa, responsabilità e pena, p. 12). 327
Ora, essa fixação da responsabilidade pessoal pelo fato-crime, que antecede a aplicação da pena criminal e que não se confunde com o anterior — e também necessário — “acertamento” da autoria, é feita no âmbito do juízo de culpabilidade, mediante a constatação de que o agente, no momento da ação ou da omissão, embora dotado de capa cidade, comportou-se como se comportou, realizando um fato típico penal, quando dele seria exigível, nas circunstâncias, conduta diversa. A contrario sensu, chega-se à conclusão de que não age culpavelmente — nem deve ser portanto penalmente responsabilizado pelo fato — aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso. A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pes soal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito. 284. O princípio da não-exigibilidade, em exame, foi introdu zido e desenvolvido na ciência penal, como um corolário da concep ção normativa da culpabilidade, por Frank, J. Goldschmidt, Freudental e Mezger, para citar apenas os principais autores. Pressuposto desse princípio, segundo J. Goldschmidt, é a “motivação normal”. O que se quer dizer com isso é que a culpabilidade, para configurar-se, exige uma certa “normalidade das circunstâncias” que cercaram e poderiam ter influído sobre o desenvolvimento do ato volitivo do agente. Na medida em que essas circunstâncias apresentem-se signi ficativamente anormais deve-se suspeitar da presença de anormalida de, também, no ato volitivo. Segundo ráciocínio de Bettiol, “ . . . quan do se parte do pressuposto de que um comportamento só é culpável na medida em que um sujeito capaz haja previsto e querido o fato lesivo, deve-se necessariamente admitir que tal comportamento já não possa considerar-se culpável todas as vezes em que, por causa de uma circunstância fática, o processo psíquico de representação e de moti vação se tenha formado de modo anormal” 30. Esse mesmo raciocínio pode, evidentemente, mutatis mutandis, ser estendido aos crimes cul posos, já que também no comportamento negligente ou imprudente a anormalidade do processo psíquico, “por causa de circunstâncias fáticas”, deve ser considerada em favor do agente. 30.
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Diritto penale, cit., p. 464.
Muito se tem discutido sobre a extensão da aplicação do princí pio em foco, entendendo alguns autores que sua utilização deva ser restringida às hipóteses previstas pelo legislador para evitar-se mais uma alegação de defesa que poderia conduzir à excessiva impunidade dos crimes. Não vemos razão para esse temor, desde que se consi dere a “não-exigibilidade” em seus devidos termos, isto é, não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade norma tiva, o qual, conforme já salientamos, compete ao juiz do processo e a mais ninguém. É o que nos diz Bettiol, nesta passagem, após refe rir-se ao "individualismo anárquico” que poderia significar a subjetivação do juízo de inexigibilidade: “Cabe ao juiz, que exprime o juízo de reprovação, avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o sujeito age, dentro do espírito do sistema penal, globalmente considerado: sistema que jamais pretende prescindir de um vínculo com a realidade histórica na qual o indivíduo age e de cuja influência sobre a exigibilidade da ação conforme ao direito, o único juiz deve ser o magistrado” 31. 285. O Superior Tribunal de Justiça, por sua 5.a Turma, admi tiu, em tese, a alegação de inexigibilidade, em crime de homicídio, estando o acórdão, de que fomos relator, assim ementado: “Penal e Processual Penal. — Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada. — júri. Homicídio. Defesa alter nativa baseada na alegação de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade, em tese, desde que se apresentem ao Júri quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico. — Quesitos. Como devem ser formulados. Interpretação do art. 484, III, do CPP, à luz da Reforma Penal. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão a proibição de, em novo julgamento, questionar-se o Júri sobre a causa de exclusão da culpabilidade em foco” (REsp. n. 2.492-RS).
c) Estado de necessidade exculpante 286. O estado de necessidade exculpante, para maior facili dade de compreensão, foi por nós estudado em conjunto com o estado de necessidade justificante (v. supra, n. 165 e s.). 31.
Diritto penale, cit., p. 466-7.
329
d) Excesso de legítima defesa exculpante 287. Nosso Código prevê a legítima defesa justificante (art. 25), a putativa exculpante (art. 20, § 1.°) e os excessos puníveis a título de dolo ou culpa stricto sensu (art. 23, parágrafo único). Silencia-se, contudo, o legislador pátrio, diferentemente do alemão, a respeito do excesso exculpante, o que, a nosso ver, não prejudica nem impede a sua admissibilidade e adequado tratamento, por aplicação do já men cionado princípio nullum crimen, nulla poena sine culpa. 288. Diz o Código Penal alemão, no § 33, sob a rubrica “ex cesso de legítima defesa”: “Ultrapassando o agente os limites da legí tima defesa por perturbação (Verwirrung), medo ou susto, não será ele punido”. Cuida-se, nesse dispositivo, do denominado excesso inten sivo 32, ou seja, daquele que decorre de o agente ter imprimido inten sidade superior àquela que seria necessária para o ato de defesa, fazendo-o, porém, em virtude do estado de confusão, susto ou medo, de que estava possuído diante da injusta agressão da vítima. Nessa hipótese, não se pode falar em exclusão da ilicitude, por estar ausente a moderação exigida. Não obstante, não se pode igualmente censurar o agente pelo excesso, por não lhe ser humanamente exigível que, em frações de segundo, domine poderosas reações psíquicas — sabida mente incontornáveis — para, de súbito, agir, diante do perigo, como um ser irreal, sem sangue nas veias e desprovido de emoções. Assim, aceitam a doutrina, a jurisprudência e a legislação alemãs o excesso intensivo de legítima defesa como causa de exclusão da culpabilidade, nas hipóteses mencionadas. Rejeita-se, todavia, a aplicação do citado § 33 ao denominado excesso extensivo (quando falta ao ato de defesa o requisito da "atualidade”) 33, porque, nesta hipótese, como é óbvio, passados os primeiros instantes, com a cessação do perigo, o pretenso ato de defesa transforma-se em autêntica e reprovável agressão vin gativa. 289. Pensamos que o direito legislado brasileiro, não contendo disposições expressas sobre o tema, comporta perfeitamente idêntica orientação. O que o legislador pátrio não quer, com toda razão, ao exigir “moderação” e emprego “dos meios necessários” (art. 25), é que seja abrangida por uma causa de exclusão da antijuridicidade a defesa excessiva, em princípio desnecessária e evitável. O silêncio, porém, desse mesmo legislador permite a retomada do tema, por ocasião da formulação do juízo de culpabilidade, quando então se 32. Dreher e Trõndle, Strafgesetzbuch, cit., p. 160. Schõnke, Schrõder e Lenckner, Strafgesetzbuch Kommentar, cit., p. 446-7. 33. Wessels, Direito penal, cit., p. 95. 330
irá pesquisar o conjunto das circunstâncias fáticas e emocionais que presidiram o espetáculo para saber se o agente agiu, ou não, culpavelmente, isto é, se podia ter evitado o excesso em que incorreu ou se, ao contrário, era-lhe humanamente impossível, no quadro emo cional em que se debateu, medir e pesar, racionalmente, a agressão e a reação para ajustar a última, em peso e tamanho, à primeira. 290. O estado de perturbação mental, de medo ou de susto, pode, pois, em tais circunstâncias, configurar o mencionado excesso intensivo, excludente da culpabilidade do agente. Não se deve, to davia, confundir a “perturbação” em exame com a famosa dirimente da “privação” ou da “perturbação da inteligência e dos sentidos” do Código Penal de 1890. A primeira retira toda sua força excul pante de uma situação fática de defesa, legítima na origem, mas que, pelo excesso de intensidade, veio a desfigurar-se, em momento pos terior, como causa de justificação. A segunda operava solta no es paço, como causa genérica de exclusão da “responsabilidade crimi nal”, conforme afirmava Baptista Pereira. 291. Em data mais ou menos recente deu o Supremo Tribunal Federal importante passo no sentido de tomar possível a exata defi nição da natureza do excesso de legítima defesa, nos julgamentos pelo júri, ao uniformizar sua jurisprudência, até então vacilante34, 34. Eis o quadro significativo dessa vacilação jurisprudencial apresen tado pelo Min. Eloy da Rocha, quando do julgamento do HC 53.850 (RTJ, 85:470-1): “O Sr. Min. Eloy da Rocha (Relator) — Sr. Presidente, propostos que sitos sobre a legítima defesa, e negado o uso dos meios necessários, o juiz declarou prejudicados os subseqüentes, relativos a moderação e a excesso culposo. Para reexame da questão, procedi a levantamento — que não será com pleto — sobre a orientação, nos últimos anos, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não se apresenta uniforme. Podem ser indicados, entre outros, estes julgados: I — Sobre obrigatoriedade, negada a necessidade dos meios, de quesitos reiferentes a moderação e natureza do excesso: — HC 39.930, de 19-6-1963, do Pleno, Relator Min. Cândido Motta Filho (Ementário 545). — HC 43.562, de 28-11-1966, da l . a Turma, Relator Min. Victor Nunes (RTJ, 41:464-6). Vencido Min. Evandro Lins. — HC 44.011, de 16-5-1967, da 2.a Turma, Relator Min. Adalício No gueira (RJT, 42:243-5). Vencido Min. Evandro Lins. 331
mediante decisão plenária, cujo acórdão traz a seguinte ementa: “Habeas corpus — Júri. Quesitos — Legítima defesa — Excesso. Negada pelo Conselho a necessidade dos meios empregados pelo agente, ainda assim devem ser questionados a moderação e o ele mento subjetivo determinador do excesso. Suprimidos estes quesi— RE 69.421, de 3-4-1970, da 2.a Turma, Relator Min. Adalício No gueira (RTJ, 53:447-8). — RE 75.904, de 27-8-1973, da 2.a Turma, Relator Min. Barros Mon teiro (Ementário 923-2). — HC 52.117, de 4-6-1974, da 2.a Turma, Relator Min. Xavier de Albu querque (RTJ, 70:345-51). — RE 79.530, de 7-11-1974, do Pleno, Relator Min. Rodrigues Alckmin (Ementário 1.025). Votos vencedores: Ministros Rodrigues Alckmin, Leitão de Abreu, Cordeiro Guerra, Xavier de Albuquerque, Bilac Pinto e Aliomar Baleeiro. Votos vencidos: Ministros Thompson Flores, Antônio Neder, Djaci Falcão, Oswaldo Trigueiro. A estes julgados, dever-se-á somar o acórdão no RE 73.206, de 24-9-1973, da 2.a Turma, Relator Min. Thompson Flores (RTJ, 73:446-8). II — Sobre obrigatoriedade de quesito concernente a excesso culposo, quando negado, somente, o da moderação: — HC 45.394, de 7-6-1968, da 3.a Turma,- por mim relatado (RTJ, 51:356-60). Segundo fundamento do voto do Relator foi o de que não houve requerimento do quesito, nem reclamação pela omissão. — RE 70.892, de 9-2-1971, da l.a Turma, Relator Min. Amaral Santos (RTJ, 59:223-7). — HC 49.336, de 21-2-1972, da 2.a Turma, Relator Min. Thompson Flores (Ementário 867: jurispenal do STF n. 9/52-56). — HC 49.524, de 11-4-1972, da 1* Turma, Relator Min. Barros Mon teiro (Ementário 876-2; RT, 454:468). — HC 50.560, de 12-12-1972, da l-a Turma, Relator Min. Djaci Falcão (RTJ, 64:347-9). III — Sobre obrigatoriedade desse quesito, negado o da moderação: — HC 45.850, de 1-10-1968, da 2.a Turma, Relator Min. Thejnístocles Cavalcanti (Ementário 747-3). IV — Sobre obrigatoriedade, quando negado quesito único — usou o réu, moderadamente, dos meios necessários para repelir a agressão: — HC 50.998, de 29-5-1973, da 1.® Turma, Relator Min. Luiz Gallotli (RTJ, 66:700-2). — RE 77.704, de 11-12-1973, da 2 a Turma, Relator Min. Bilac Pinto (RTJ, 70:556-8). V — Em sentido contrário à obrigatoriedade, sob o fundamento de que o juiz não propõe, de ofício, quesito sobre excesso culposo: — RE 78.060, de 30-4-1974, da l.a Turma, Relator Min. Oswaldo Tri gueiro (Ementário 948-1). Ainda não se firmou, a respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. 332
tos, anula-se o julgamento. Habeas corpus concedido em parte” S5. Integra esse julgado o seguinte voto (vista) do Min. Moieiia Alves, que julgamos oportuno transcrever, na parte fundamental, não só pela exatidão do raciocínio nele desenvolvido, como pela importante conclusão a que chega: “O Sr. Ministro Moreira Alves — Volta à baila, neste Tribunal, a questão de saber quais são os limites da legítima defesa, como premissa da verificação da ocorrência de seu excesso culposo. Doutrina e jurisprudência — inclusive a nossa — divergem. Para uns, o excesso culposo somente pode existir se o que se defende usou dos meios necessários, mas o fez imoderadamente, o que implica dizer que a legítima defesa se caracteriza, obje tivamente, pela repulsa, com a utilização de meio necessário, a agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, e o seu limite se reduz à moderação do uso do meio necessário à re pulsa. Para outros, o excesso culposo pode ocorrer não só quando há imoderação no uso dos meios necessários à defesa, senão também quando se verifica a utilização de meio desnecessário a ela, tese pela qual o uso de meio desnecessário não descaracteriza, por si só, a legítima defesa, mas diz respeito à questão de seus limites, podendo caracterizar o excesso culposo. A divergência resulta da fórmula utilizada pelo art. 21 do Código Penal, para conceituar a legítima defesa e para estabelecer a responsabilidade no caso de seu excesso culposo. Reza o citado artigo: ‘Art. 21. Entende-se por legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Parágrafo único. O agente que excede culposamente os limites da legítima defesa responde pelo fato, se este é punido como crime culposo’ 56. A Exposição de Motivos do Código Penal explica o mo tivo por que se adotou o conceito de legítima defesa constante do caput desse art. 21. Diz ela: ‘A legítima defesa apresenta-se sem certos requisitos de que se reveste na legislação em vigor. Na de fesa de um direito, seu ou de outrem, injustamente atacado ou ameaçado, omnis civis est miles, ficando autorizado à repulsa ime diata. Também é dispensada a rigorosa propriedade dos meios em35. HC 53.850, Pleno, Relator para o acórdão Min. Cunha Peixoto, RTJ, 85:466. No mesmo sentido: RHC 54.368, Pleno, Relator para o acórdão Min. Moreira Alves, RTJ, 87:21. 36. O citado art. 21 corresponde, hoje, ao art. 25; o parágrafo único, ao atual parágrafo único do art. 23, expresso quanto ao excesso “doloso ou culposo”.
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pregados, ou sua precisa proporcionalidade com a agressão. Uma reação ex improviso não permite uma escrupulosa escolha de meios, nem comporta cálculos dosimétricos: o que se exige é apenas a moderação do revide, o exercício da defesa no limite razoável da necessidade’. Nesta frase final — ‘o que se exige é apenas a moderação do revide, o exercício da defesa no limite razoável da necessidade’ — está, a meu ver, a chave da questão. Por ela se verifica que os dois elementos — o meio e o seu uso — para o exercício da defesa, que é legítima em si mesma, contra agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem nada mais constituem do que o desdobramento lógico de um elemento único: o modo de se exercer essa defesa. Esse modo — que, como acen tuamos, abarca o meio e o seu uso — é que deve ser moderado, contendo-se no limite razoável da necessidade. Daí, a Exposição de Motivos, depois de aludir aos meios e a seu uso com a frase ‘Uma reação ex improviso não permite uma escrupulosa escolha de meios, nem comporta cálculos dosimétricos’, frase em que a ‘escru pulosa escolha de meios’ diz respeito ao que o Código Penal deno mina meio necessário e a expressão ‘cálculos dosimétricos’ se refere ao uso desses meios, reúne esses dois elementos no elemento único em que verdadeiramente eles se englobam, e os explica a ambos como sendo ‘a moderação do revide, o exercício da defesa no limite razoável da necessidade’ Quando ocorre uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, surge, para o agredido, uma situação objetiva de legítima defesa. Para que o revide per sista como legítimo é necessário, porém, que ele se exerça dentro de certos limites. E como é que se exerce a legítima defesa? Atra vés do modo de repelir a agressão a que ela deu causa. Esse modo — que nada mais é do que o exercício do que vários autores carac terizam como direito à legítima defesa — tem de adstringir-se a certos limites que, se objetivamente ultrapassados, dão margem ao excesso de legítima defesa, que só é punido, se culposo ou se doloso, mas não o é se devido ao fortuito ou a erro escusável. Ora, o exercício da legítima defesa — e, portanto, o modo de realizá-la — tem de ser apreciado, para o efeito de apreciação da existência, ou não, de excesso, no seu conjunto (meio de defesa e seu uso), e não em duas etapas — a primeira, a da necessidade do meio; a segunda, a da moderação no seu uso — e etapas essas em que aquela é pre judicial desta. Com efeito, como bem salienta Battaglini (Direito penal, trad. bras., São Paulo, Saraiva, 1973, v. 1, n. 74, III, p. 396), 334
‘o meio escolhido não implica, por si mesmo, desproporção; esta surge da maneira como o meio é usado nas dadas circunstâncias’. Se alguém pode defender-se com um bastão, mas ao invés de lançar mão dele, que está a seu alcance, se vale de um revólver, o meio a ser usado não é o necessário, más só por isso o exercício da repulsa já extravasa os limites da legítima defesa? Parece-me que, apenas por isso, não. É preciso examinar ainda como foi usada aquela aima. Um meio desnecessário pode ser utilizado moderadamente: um tiro na perna é menos prejudicial do que uma valente bastonada na cabeça, embora, em si mesma, a potencialidade ofensiva de um bastão seja mais reduzida do que a de uma arma de fogo. Pode ocorrer, até, que o meio, de início, seja desnecessário, mas, em se guida, se tome necessário: alguém em face de agressão iminente pode defender-se com um bastão, mas ao invés deste se vale de uma arma, para disparar ao ar, a fim de intimidar o agressor, o que lhe será menos prejudicial do que uma bastonada; o agressor, porém, não se intimida, e o agredido, para defender-se, tem de disparar sobre ele. Em tais casos, porque o meio era desnecessário, inexistirá legítima defesa? Haverá mesmo excesso culposo ou doloso? Por tudo isso, e não obstante o conceito — que se não me afigura feliz — do Código Penal, e conceito que, pela sua equivocidade, dá margem à discussão presente, não afasto a existência de legítima de fesa pela só verificação da desnecessidade do meio, nem considero que essa verificação isolada baste para a caracterização do excesso. O direito à legítima defesa surge para alguém com a agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Seus limites dizem respeito ao modo pelo qual ele se exerce, e ao modo examinado em seu conjunto, e, não, no tocante, isoladamente, a cada um dos dois elementos de que ele se compõe (o meio a ser empregado e o uso desse meio). Necessidade e moderação são idéias correlatas, que não se dissociam — como parece dar a entender o Código Penal — para caracterizar diferentemente o meio (meio necessário) e o uso dele (uso moderado), mas que se agregam para qualificar o com plexo desses dois elementos que é o modo de exercer a legítima de fesa, indicando que esse modo deve ser o bastante, o suficiente para repelir a agressão. Além disso, há o excesso, çom relação ao qual deverá, ainda, apurar-se se é isento de culpa, culposo ou dolo so. . . ”37. 37.
RTJ, 85:475-7. 335
292. Note-se a afirmação da parte conclusiva na qual se qua lifica o excesso, dentro de uma moderna concepção de culpabili dade, como “isento de culpa, culposo ou doloso”, tal como vimos sustentando, até aqui. Essa orientação, que evidentemente merece preservada, na pu reza do voto acima transcrito, com todas as conseqüências que dela possam ser extraídas, tem sofrido, infelizmente, aigumas restrições, no seio do próprio Excelso Pretório, como dá notícia julgado pos terior da l . a Turma, no HC 56.331, assim ementado: “Tribunal do Júri. Não constitui nulidade do julgamento a falta de quesito sobre o excesso doloso, uma vez negado o excesso culposo. A hipótese de casualidade é afastada pela resposta afirmativa aos quesitos ante riores ao uso moderado dos meios necessários, cuja resposta negativa autorizou o questionamento sobre o excesso culposo” (RTJ, 89:73)., Nesse processo, nosso parecer foi pela anulação do julgamento que se nos afigurava incompleto, “por ausência de quesito obrigatório que permitisse definir-se a natureza do excesso, pois a negativa de culpa stricto sensu não significa necessariamente a afirmação de dolo e menos ainda de um agir doloso culpável. Nem nos parece possível condenar-se alguém por crime doloso, culpável, por meio de meras deduções, embora lógicas, como no caso38. 293. Em conclusão: como reconhece, expressamente, em dois tópicos, o voto retrotranscrito, em nosso direito, o excesso de legí tima defesa só é punido quando se apresenta doloso ou culposo, “mas não o ê se devido ao fortuito ou a erro escusável”. Como o caso fortuito e o erro de proibição foram por nós arrolados entre as causas excludentes da culpabilidade, deduz-se, sem muito esforço, que o voto em exame, que integra acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, admite, sem reservas, como seria de se esperar da mais alta Corte do País, o excesso exculpante de legítima defesa, o qual, segundo pensamos, tanto aqui como alhures, tem na sua ori gem os estados emocionais sabiamente referidos pela legislação ale mã (perturbação mental, medo ou susto).
38. Depois de ter feito estas afirmações, na l.a edição, descobrimos dois julgados do Supremo Tribunal Federal, adotando tese idêntica à que defendemos, com o voto do Min. Nelson Hungria (HC 32.762-MG e RECrim 21.112-MG).
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e)
A emoção e a paixão
294. São exemplos de emoção: a alegria, a tristeza, o medo, a cólera, o ódio, a aversão, o amor. A paixão é um estado emocional exacerbado, com çerta duração, capaz de interferir no desenvolvi mento do raciocínio lógico, imparcial. Os estados emocionais de um modo geral influem e refletem-se de tal forma no comportamento humano que, freqüentemente, lhe dão uma tonalidade peculiar. Ê assim que, na experiência da vida cotidiana, aprendemos a distinguir, com relativa facilidade, o comportamento colérico do medroso, o gesto apaixonado do que decorre de aversão etc.
Para o direito penal, que trabalha sobre o agir humano, os estados emocionais adquirem especial relevância, por razões óbvias, desde que apresentem grau de intensidade capaz de interferir nos processos de inibição e controle. Não se lhes atribui, entretanto, como regra, papel decisivo na área da exclusão da culpabilidade, a não ser em casos especiais, quando traduzam situações de inexigibi lidade (exemplo: o medo na coação moral irresistível), ou sintomas de estados patológicos. Na primeira hipótese, o legislador reservou para si a regulamentação dos mencionados casos especiais, em que se deva dar relevância aos estados emocionais, considerados, o mais das vezes, componentes ou fatores motivacionais do comportamento, para efeito tão-somente de atenuação da pena ou do grau da culpa. Na última hipótese, a solução se desloca para a área do art. 26 e seu parágrafo do Código Penal. É o que se infere do art. 28, I, do Código Penal, segundo o qual a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal, em conjugação com outros preceitos do Código. Esclarece, a propósito, a Exposição de Motivos, do Min. Francisco Campos, que o legis lador “não deixou de transigir, até certo ponto, cautelosamente, com o passionalismo : não o colocou fora dá psicologia normal, isto é, não lhe atribuiu o efeito de exclusão da responsabilidade, só reconhecível no caso de autêntica alienação ou grave deficiência mental; mas reconheceu-lhe, sob determinadas condições, uma in fluência minorativa da pena. Em consonância com o Projeto Al cântara, não só incluiu entre as circunstâncias atenuantes explícitas a de ‘ter o agente cometido o crime sob a influência da violenta emoção, provocada p o r ato injusto de outrem *, como fez do h o m i cídio passional, dadas certas circunstâncias, uma espécie de delictum exceptum, para o efeito de facultativa redução da pena (art. 121, 337
§ 1.°): ‘Se o agente comete o crime sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima. . . , o juiz pode reduzir a pena, de um sexto a um terço’. E o mesmo critério foi adotado no tocante ao crime de lesões corporais Percebe-se, nesse tópico, a preocupação de não fazer grandes concessões ao homicídio passional que, no direito anterior, encon trava abrigo na famosa fórmula da “privação” ou “perturbação” dos sentidos e da inteligência. Não se pode, entretanto, desconhecer que o homicídio passional não esgota as hipóteses dos estados emo cionais relevantes para o direito penal e que, na coação moral, por exemplo, o medo — uma das emoções fundamentais — é expressa mente aceito como causa de exclusão da culpabilidade (CP, art. 22), diante de coação moral irresistível.
f) Coação irresistível, caso fortuito e força maior 295. “Vis absoluta” e "vis compulsiva”. Costuma-se distinguir a coação física (vis absoluta) da coação moral (vis compulsiva'). Na primeira, aquele que é coagido não realiza uma verdadeira ação ou omissão, apresentando-se como simples objeto ou instrumento de violência, pelo que só se deve considerar autor do crime o agente da coação, não o coagido, paciente dessa mesma coação. A coação física, denominada por Soler "violência físicct’ 39, exclui, se irresis tível, o coagido de qualquer cogitação de autoria ou de co-autoria, visto que non agit sed agitur. A responsabilidade pelo fato é, pois, exclusiva do agente Coator, figura indispensável na definição de qual quer ocorrência reputada coativa. Na segunda — a coação moral — o coagido tem suas possibilidades de opção bastante restringidas pelo temor de sofrer algum mal, não obstante age ou se omite, im pelido pelo medo, valendo-se de suas próprias forças. Se essa última forma de coação — a vis compulsiva — for igualmente irresistível, exclui-se a culpabilidade do coagido, por não lhe ser exigida, nas circunstâncias, conduta diversa da que realizou. Assim, o art. 22 do Código Penal (“se o fato é cometido sob coação irresistível... só é punível o autor da coação. . . ”) regula, induvidosamente, a coa ção moral, isto é, a vis compulsiva, sendo, porém, muito discutível 39. 338
Derecho penal, cit., v. 2, p. 81.
sua extensão, aliás totalmente desnecessária, à coação física. Assim, apesar do precioso testemunho de Nélson Hungria no sentido de que a Comissão Revisora, contra seu voto, decidiu adotar a fórmula do pri mitivo art. 18, “compreensiva da coação física e da coação moral” 40, o absurdo a que isso conduz (discutir-se a inculpabilidade de quem sequer é autor ou co-autor do crime) leva-nos a aceitar a solução apresentada, entre outros, por Everardo da Cunha Luna nestes termos: “Verifica-se, na coação irresistível, que serve, com a obediência hie rárquica, de objeto ao art. 18 do Código Penal, o concurso de dois agentes — um, coativo e culpado, e outro, coato e sem culpa. A coexistência de agente, na coação irresistível, leva-nos a ver, nesta, apenas a coação moral, a vis compulsiva, porque, na coação física, na vis absoluta, em lugar de dois, apenas um agente concorre — aquele que coage e que domina, como simples instrumento, o outro aparentemente agente. Assim, a coação física, que constitui problema atinente à causalidade, disciplina-se pelo art. 11, e a coação moral, que diz respeito à culpabilidade, ocupa a primeira parte do art. 18, do Código de 1940” 41. Essa solução, além de mais lógica, ajusta-se perfeitamente às normas legais em vigor, pouco importando, a nosso ver, qual tenha sido a intenção dos membros da Comissão Revisora, a qual, embora apresente valor histórico, não desempenha papel importante para uma interpretação teleológica dessas mesmas normas. 296. Caso fortuito e força maior. A culpabilidade atinge seu mais elevado grau no fato doloso, principalmente no dolo direto. A partir daí, passando pelo dolo eventual e pela culpa consciente, vai decrescendo até atingir a linha fronteiriça da culpa inconsciente, para além da qual deixa de existir. Ora, o caso fortuito e a força maior constituem fenômenos que, na mencionada escala descendente, se situam precisamente do outro lado da linha fronteiriça, verdadeiros marcos indicativos da região inatingida pelas normas penais, ou me lhor, pelas normas de um direito penal da culpabilidade. Caso fortuito e força maior são, pois, na área penalística, conceitos negativos, delimitadores da responsabilidade. Pressupõem, contudo, um fato, com todas as vestes de fato típico penal, e o seu autor. A punibilidade do fato típico será afastada pela consideração de que: a) na força 40. 41.
Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 253. O art. 18 corresponde ao atual 22. Coação irresistível, in Estrutura jurídica, cit., p. 233. 339
maior» não tem o agente possibilidade de evitar o resultado danoso ainda que previsível; b) no caso fortuito, embora evitável esse re sultado, falta ao agente a previsibilidade, mínimo exigível para a configuração da culpa inconsciente. Esse é o ensinamento desenvolvido pelo direito canônico, com a única diferença de que, nele, não se distinguia o casus da força maior, fazendo-se a absorção da segunda pelo primeiro: “Casus for tuitas qui praevideri vel praeviso ocurrit nequit, a qualibet imputabilitate eximit” (Cân. 2.203). Comentando esse cânon, esclarece P. Pelté que, na primeira hipótese (impossibilidade de previsão), ocorre Ignorância invencível ( defectus cognitionis ); na segunda (previsão, sem o mínimo ensejo de evitabilidade), existe uma impossibilidade física ou moral ( defectus libertatis ) 42< A distinção entre os conceitos em exame — a respeito da qual não há inteira concordância entre os autores — não apresenta maior problema diante da equiparação quanto aos efeitos jurídicos que se atribui ao caso fortuito e à força maior. Pode-se, contudo, para maior facilidade de identificação dos casos o correntes, aceitar a seguinte diferenciação, adotada por Nélson Hungria, que, conforme se observa, parte daquela diversificação básica entre previsibilidade e evitabilidade, apontada pelo direito canônico: “Costuma-se distinguir entre caso fo rtu ito e força maior', no primeiro, o resultado, se fosse previsível, seria evitável; na segunda, ainda que previsível ou pre visto, o resultado é inevitável. Juridicamente (ou para o efeito de isenção de punibilidade), porém, equiparam-se o casus e a vis m ajor: tanto faz não poder prever um evento, quanto prevê-lo ou poder prevê-lo, sem, entretanto, poder evitá-lo” 43. 297. Do que foi dito até aqui, extrai-se, segundo supomos, que a melhor localização sistemática do caso fortuito é realmente entre as causas de exclusão da culpabilidade, tal como sugere o direito legislado brasileiro, nos §§ 1.° e 2.° do art. 28 do Código Penal. 42.
Le droit pénal de VÊglise, p. 16.
43. Comentários, c it,, v. 1, t. 2, p . 138. Jiménez de Asúa: “L a más clásica definición del caso fortuito se funda en la previsibilidad e inevitabilidad. Casus es, portanto, lo que no pudo ser previsto o que habiéndolo sido era imposibile de evitar” (Tratado, cit., v. 6, p. 2 1 6 ).
340
Ê que “o fortuito”, conforme salienta adequadamente Bettiol, “está sempre em relação com uma ação humana” w que, põí a2ar, VGM â produzir efeitos imprevisíveis, mas ligados, obviamente, por meio de um vínculo direto de causalidade, à ação que os produziu. A impunibilidade do fato se explica pela inexigibilidade de conduta di versa do agente, dada a situação de imprevisibilidade do evento, na qual ele se encontrava quando da realização do fato típico.
Não vemos, pois, razão para deslocar-se, como pretendem al guns autores, dentre os quais Santoro 45, o tratamento do tema para o capítulo da “causalidade”, onde o fortuito seria reputado causa interveniente excludente do nexo causai entre a ação e o evento. A causalidade, no caso, existe, o que falta é a possibilidade de atuação do agente sobre ela. A força maior e a coação física irresistível, diferentemente do fortuito, desfiguram de tal forma a ação humana pela qual operam, que esta última se transforma em mero veículo ocasional das pri meiras, pelo que não pode ser definida como um comportamento voluntário relevante para o direito penal. Nas duas hipóteses, o forçado ou coagido é puro instrumento, non agit sed agitur. Inexistindo, pois, em relação ao causador direto do evento, uma ver dadeira conduta, o que constitui pressuposto necessário da tríplice valoração do conceito dogmático de crime, exclui-se, desde logo, a criminalidade do fato — repita-se — em relação ao causador nãointencional (forçado ou coagido) do resultado. Distingue-se, con tudo, a força maior da coação física: na primeira, a causa do re sultado, o agente mediato, a vis impulsiva, é uma força da natureza, ou um acontecimento não provocado pelo agente imediato; na se gunda, o agente mediato, o autor da coação, é um ser humano que responderá criminalmente pelo fato. Pensamos, em suma, se deva dar tratamento diferenciado para, de um lado, a coação moral e o caso fortuito, consideradas ambas causas excludentes da culpabilidade; de outro, a coação física e a força maior, verdadeiras causas excludentes da própria ação hu mana.
44. 45.
Diritto penale, cit., p. 469. Il caso fortuito nel diritto penale, especialmente “sintesi”, p. 291 e s. 341
g)
Erro de proibição. Descriminantes putativas. Obediência hierárquica
298. Erro de proibição e descriminantes putativas. O erro de proibição e as descriminantes putativas (estas como causa de exclusão ora do dolo, ora da culpabilidade) já foram por nós estu dados em título próprio, destacado, para o qual remetemos o leitor {supra, n. 248 e 249). 299. Obediência hierárquica. O Código Penal, no art. 22, prescreve o seguinte: “Se o fato é com etido... em estrita obe diência de ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierár quico, só é punível o a u t or . . . da ordem”. Tratando a obediência à ordem de superior hierárquico com isenção de pena, instituiu o legislador pátrio, segundo a técnica que geralmente adota, uma causa de exclusão da culpabilidade. É preciso contudo distinguir duas hipóteses: primeira, a obe diência à ordem legítima; segunda, a obediência à ordem ilegítima. Na primeira, temos uma causa evidente de exclusão da ilicitude; na segunda, que é a de que trata o preceito em exame, ocorre a exclusão da culpabilidade. Assim não é, contudo, no direito italiano e no alemão onde a “obediência a ordens ilegítimas vinculantes” se reputa uma causa de justificação40. 300. Sobre o tema, afirmamos o seguinte, em nosso último livro: “Essa posição doutrinária cria alguns problemas sérios na praxis, pois, como se sabe, se o agente atua ao abrigo de uma causa de justificação, não se lhe pode opor a legítima defesa. Assim, se ^ o subordinado estiver cumprindo, sem o saber, ordem antijurídica de superior hierárquico, não manifestamente ilegal, a resistência contra ele oposta pela vítima, só poderá encontrar abrigo em uma excludente de culpabilidade ou no estado de necessidade, o que é, a nosso ver, uma quebra dos princípios, resultante do tratamento indevido da obediência hierárquica como causa justificativa. Mau rach percebeu bem essa dificuldade ao afirmar que uma ordem 46. p. 294-5. 342
Bettiol, Diritto penale, cit., p. 316-7; Jescheck, Lehrbuch, cit.,
ilícita não pode produzir o éfeito de justificar o ato de quem aexecuta. O subordinado, nesse caso, atua tão ilicitamente quanto o superior que expediu a ordem. A questão de saber o modo de julgar o subordinado, que cumpre a ordem vinculante, não se apóia em um juízo sobre o fato, mas sim sobre o autor, pelo que sai da esfera da teoria da ilicitude para situar-se na da culpabilidade. Essa última é a orientação do direito legislado brasileiro que, conforme vimos.. . , trata a obediência, no art. 18 do CP de 40 (art. 22 da nova Parte Geral), como causa de exclusão da culpabilidade, em relação ao executor da ordem, possibilitando assim a condenação do superioT, quando se trate de ordem ilegal. Fora de dúvida, pois, que no direito brasileiro, caracterizada a ilicitude da ordem e inexistindo causa de justificação que favoreça o seu executor, permitese contra ela a legítima defesa por parte da vítima” 47. Não vemos razão para alterar esse entendimento. 301. A Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos, no item 17, esclarece: “A ordem de superior hierárquico (isto é, ema nada de autoridade pública, pressupondo uma relação de direito ad.ministrativo) só isenta de pena o executor, se não é manifestamente ilegal. Outorga-se, assim, ao inferior hierárquico, tal como no di reito vigente, uma relativa faculdade de indagação da legalidade da ordem. Conforme observa De Marsico, se o princípio fundamental do Estado moderno é a autoridade, não é menos certo que o Esta do é uma organização jurídica, e não pode autorizar a obediência cega do inferior hierárquico. De um lado, um excesso de poder na indagação da legalidade da ordem quebraria o princípio de auto ridade, mas, de outro, um excesso do dever de obediência quebra ria o princípio do direito”. Desse tópico se extraem os seguintes requisitos da dirimente em exame: ordem não manifestamente ilegal, relação de subordina ção hierárquica entre o mandante e o executor, estrita observância da ordem. Assim, entende, igualmente, a jurisprudência predomi nante 48.
47. 48.
Ilicitude penal, cit., p. 138-9. Costa Júnior, Código Penal, cit., p. 31: 343
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índice alfabético de matérias Os números remetem à numeração dos parágrafos.
Aberratio ictus na legítima defesa, 194 Abolitio criminis, 27, 33 e s. Abuso — de autoridade, 216 — de direito, 217 Ação, 97 Ação humana, 97 e s., 103 e s. — ação, comportamento e condu ta, 97, 103 — ação e omissão, 103 — causalidade, 110 — conceito, 103 — desvalor da ação e desvalor do resultado, 263 — domínio da vontade e finalismo, 107 — finalidade, 110 — finalismo, 231 — impulsos dirigidos, 108 — intencionalidade, 105 — movimentos ou atos automáti cos, 108 — no crime culposo, 261 — teoria causai, 105
— teoria finalista, 106 e s. — teoria jurídico-penal, 110 — teoria social, 109 Actio libera in causa, 269, 280 e s. Adequação social, 130 Agressão — v. Legítima defesa — atual, 186 — de inimputáveis, 190 — e provocação (distinção), 192 — iminente, 197 — injusta, 152, 188 Analogia, 20 e s. — da lei, 20 — do direito, 20 — e interpretação extensiva, 23, 24 — in bonam partem, 21, 22 — in malam partem, 21, 22 — interpretação analógica, 23, 24 — no processo penal, 24 Animus defendendi, 206 Antijuridicidade — v. Ilicitude Antijuridicidade e antinormatividade, 124 Antijuridicidade e ilicitude, 145 353
Armas — emprego, na legítima defesa, 201
Atipicidade, 125 Ato ilícito, 147, 152 Ato lícito, 147 Atuação — como representante do poder estatal, 215 Auto-ajuda (defesa da posse), 218 Autoridade — abuso de, 216 — cumprimento de dever legal, 215 — ordem ilegítima, 299 — ordem legítima, 299 — ordem não manifestamente ile gal, 301 — ordens vinculantes, 299, 300
B Bem jurídico, 9 e s. — caráter limitado da proteção penal, 10 — conceito de bem, 9 e s. — conceito de bem jurídico, 9 e s. — dano e ofensa ao bem jurídi co, 12 — distinção entre bem jurídico e objeto material, 11 — princípio do risco permitido, 10 e 267 Bens — balanceamento, 165 e s., 170, 175 — conflito de, 174 — das pessoas jurídicas de direi to público, 199 — do Estado, 199
c Caso fortuito, 296 — no excesso de legítima defesa, 210
354
Causalidade — teoria da conditio sine qua non, 111 — teoria jurídico-penal, 111 Causas de exclusão da culpabilida de, 270 e s. — caso fortuito e força maior. 296 e 297 — classes de, 271 — coação moral irresistível, 295 — descriminantes putativas, quan do erro de proibição, 249, 255 e s. — doença mental, 275 — embriaguez completa, por caso fortuito ou força maior, 280 e s. — embriaguez completa por vício em álcool ou droga, 280 e s. — emoção e paixão, 294 — erro de proibição inevitável, 248 — estado de necessidade excul pante, 164 e s. — excesso exculpante de legíti ma defesa, 287 e s. — inexigibilidade de outra condu ta, 283 e s. — menoridade, 278 — obediência hierárquica, 299 — relação das, 271 — retardamento mental, 275 — terminologia usual, 271 Causas de exclusão da ilicitude (ou causas de exclusão da antijuridici dade), 155 e s. — elementos objetivos e subjeti vos, 162 — juízo de atipicidade do fato, 157 — legais e supralegais, 159 e 161 — limitações, 157 — na reforma penal brasileira, 157 — relação das, 161 — variações terminológicas, 162 Causas de exclusão de crime, 162 Causas de justificação (ou justifica tivas), 162
Causas pessoais de exclusão de pe na, 144 Coação física, 295 Coação irresistível, 295 Coação moral, 295 Co-autoria em crime culposo, 268 Código Criminal do Império, 66 e s. Código Penal brasileiro (evolução histórica), 63 e s. Código Penal de 1890 (e a Conso lidação das Leis Penais de 1932), 70 e s. Código Penal de 1940, 74 e s. Código Penal vigente (a reforma de 1984), 80 e s. Comportamento — v. Ação humana
Conceito — amplo de ilicitude, 145 — de crime, 94 e s. — de culpabilidade, 100, 224 e s. — de dano, 171 — de direito penal, 1 — de estado de necessidade, 163 — de ilicitude, 99, 145 e s. — de ilicitude formal e material, 147 — de imputabilidade, 273, 274 — de injusto, 123 — de perigo, 171 — de prejuízo, 171 Concepção unitária da ilicitude, 149 Condições de procedibilidade ou de perseguibilidade, 143 Condições objetivas de punibilidade, 143 Conduta — v. Ação humana
Conflito de bens e deveres — v. Estado de necessidade
Consciência da ilicitude (ou da anti juridicidade), 244 e s. — atual, 230, 231, 256 — conceito, 244 — consciência profana do injusto, 248 — dever de informar-se, 244 — falta da consciência da ilicitu de, 245
— ignorância da lei, 245 — potencial, 231, 244, 257 e s. — teorias do dolo e teorias da culpabilidade, 255 e s. Consentimento do ofendido, 159, 220 e s. — dissenso do ofendido, 220 — diversidade de funções na área penal, 220 — intervenções cirúrgicas, 221 — justificante, 222 — presumido, 223 — requisitos, 222 Contrariedade entre a conduta e a norma, 99, 147 Costumes (como fonte do direito penal), 18 Crime — conceito dogmático, 94 e s. — doloso e culposo (distinção), 97 — elementos, 94 e s. — extinção do crime (abolitio criminis), 33 a 35 — lugar do crime (locus delicti commissi), 57 — tempo do crime, 31 Crimes — à distância, 31 — comissivos, 138 — comissivos por omissão, 138 — complexos, 138 — compostos, 138 — comuns, 138 — comuns e de responsabilidade, 138 — continuados, 31 — de ação dolosa e de ação cul posa, 97 — de ação violenta e de ação astuciosa, 138 — de atividade, 138 — de dano, 138 — de intenção, 138 — de mão própria, 138 — de mera conduta, 138 — denominações mais freqüentes (espécies de), 138 — de opinião, 138
355
— de perigo, 138 — de perigo abstrato (ou premi do), 138 — de perigo concreto, 138 — de responsabilidade, 138 — de resultado, 138 — de resultado cortado, 138 — especiais, 138 — formais, 138 — gerais, 138 — instantâneos, 138 — instantâneos de efeitos perma nentes, 138 — materiais, 138 — mutilados de dois atos, 138 — omissivos, 138 — permanentes, 31, 138 — pluriofensivos, 138 — políticos, 138 — preterintencionais ou preterdolosos, 138 — privilegiados, 138 — qualificados, 138 — qualificados pelo resultado, 138 — simples, 138 Culpabilidade, 224 e s.
— v. Causas de exclusão da cul pabilidade — — — — — — — — — — — — — — —
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álcool ou drogas, 280 capacidade de, 273 capacidade reduzida, 276 e 277 conceito, 100, 224 e s. concepção da doutrina finalis ta, 230 concepção normativa, 229, 231, 243 concepção psicológica, 227 da personalidade ou da pessoa, 239 de autor, 235 desenvolvimento mental incom pleto ou retardado, 275 do caráter, 236 doença mental, 275 e a problemática do erro, 243 e s. e liberdade, 240 embriaguez, 280
— e responsabilidade, 283 — estado de necessidade excul pante, 164 e s. — evitabilidade do fato, 226 — excesso exculpante de legítima defesa, 287 e s. — exigibilidade de conduta con forme a norma, 229 — formas de (tipos de culpa), 101, 262 — graduação, 100, in fine — imputabilidade, 272 e s. — inexigibilidade de outra condu ta, 283 e s. — inimputabilidade, 275 — juízo de censura ou de repro vação, 229, 234, 243 — juízo de censura ou de repro vação sobre a formação do ca ráter ou da personalidade, 241 — menoridade, 276 — normativa e erro, 243 — pela conduta de vida, 237 — pela decisão de vida, 238 — pelo fato, 242 — poder-agir-de-outro-modo, 240 — por fato culposo, 101, 260 e s. — por fato doloso, 101, 224 e s. — responsabilidade e imputabili dade, 274 — teoria estrita da culpabilidade, 249, 258 — teoria estrita do dolo, 256 — teoria limitada da culpabilida de, 249, 259 — teoria limitada do dolo, 257 — teorias da culpabilidade, 249, 259 — teorias do dolo, 255 e s. Culpa em sentido estrito, 260 e s. — ação finalista (concepção unitá ria), 107, 262 — caso fortuito, 296, 297 — causação do resultado, 264 — co-autoria, 268 — crimen culpae, crimina culposae, 260 — culpa consciente, 266 — culpa inconsciente, 266
— culpa in jaciendo, 261 — culpa in omitendo, 261 — desvalor da ação e desvalor do resultado, 264 — dever de cuidado, 264 — elementos do crime culposo, 264 — exemplos do cirurgião e do podador, 263 — negligência, imprudência, imperícia, 261 — princípio da confiança, 265 — resultado, 261 — risco tolerado, 267 — tentativa, 268 — voluntariedade na causa, 97, 268 Culpa levíssima, na legítima defesa, 210
Cumprimento de dever legal — v. Estrito cumprimento de de ver legal
D Dano, 171 — exclusão do crime de dano, 181 Defesa — v. Legítima defesa — da posse, 218 — da propriedade, 207, 208 e 218 — de direitos patrimoniais, 201 Delitos — v. Crimes Delitos de fato permanente e delitos de fato transeunte, 138 Delitos de intenção, 138 Descriminantes putativas, 249 e s., 255 e s. — teoria extremada do dolo, 256 — teoria extremada ou estrita da culpabilidade, 258 — teoria limitada da culpabilida de, 259 — teoria limitada do dolo, 257 Desforço imediato (defesa da pos se), 218
Dever — de enfrentar o perigo, 170 — legal, 170 Direito — de correção e de educação, 219 — próprio ou alheio, na legítima defesa, 196 e s. Direito penal — autonomia, 8 — conceito, 1 — de autor, 235 — do fato, 242 — do resultado, 243 — finalidade preventiva, 2, 3 — fundo ético (distinção entre di reito penal e moral), 5, 6 — indígena, 63 e s. — internacional (princípios de), 49 e s. — intertemporal (princípios de), 27 e s. — material, 28, 29 — missão e limites, 4, 7 — proteção de bens jurídicos, 9 Dolo — concepção da doutrina finalis ta, 231 — concepção normativa, 230, 231 — concepção psicológica, 227 — do tipo, 231 — eventual, 266 — localização no tipo (exemplo do auto-aborto), 232 — teorias do, 255 e s. — tipos dolosos e culposos, 97, 98 — tolerado, 6 Dolus bonus, 227 Dolus malus, 227, 230, 237 Domínio da vontade, 97 Domínio do fato, 136 E Embriaguez, 280 e s. Emoção e paixão, 294 Entes coletivos, 136 Erro, 243 e s. 357
— culpabilidade e a problemáti ca do, 243 e s. — de eficácia, 246 — de fato e de direito, 243 — de mandamento, 243 — de proibição direto, 243 — de proibição escusável e inescusável, 243 — de proibição indireto, 243 — de proibição inevitável, 243 — de punibilidade, 243 — de subsunção, 243 — de tipo e de proibição, 246, 251 e s. — de tipo essencial e acidental, 247 — de tipo permissivo, 249, 255 e s. — de vigência, 248 — error facti, error iuris, 243 — exemplos de, 246 — ignorância da lei, 245 — sobre a norma permissiva, 249 — sobre causas de exclusão da ilicitude (v. D escrim in an tes pu tativa s), 249, 255 e s. — sobre pressupostos fáticos de uma causa de justificação, 249 — supor “situação de fato” e su por “estar autorizado”, 249 — T a tbestan dsirrtu m , 246 — V erbotsirrtu m , 246 Escusas absolutórias, 144 Estado de necessidade, 163 e s. — agressivo, 163 — conceito, 163, 170 — conflito de bens, 174 — conflito de deveres, 175 — contra coisas e animais, 178 e s. — dano, 181 — de direito civil, 178 e s. — defensivo, 163 — dever de enfrentar o perigo, 170 — dever legal, 170 — direitos ou bens suscetíveis de serem defendidos ou sacrifica dos, 170 358
— e erro (v. Descriminantes pu tativas), 249 e s. — e legítima defesa, 163, 188 — elemento subjetivo, 176 — excesso, 173, in fine — exclusão da ilicitude e exclu são da culpabilidade, 164 e s. — exculpante, no direito brasilei ro, 166, 167, 168 — inevitabilidade da lesão, 173 — inexigibilidade de outra con duta, 165 e s. — interrupção da gravidez, 165 — jurídico-penal, requisitos, 170 — justificante, 169 e s. — no direito alemão, 165 — obrigação de reparar o dano, 177 — perigo, 171 — perigo atual, 171 — perigo culposamente provoca do, 172 — perigo de lesão, 170 — perigo dolosamente provocado, 172 — perigo iminente, 171 — perigo não provocado, 172 — perigo provocado, 172, 178 — ponderação de bens e deveres, 165 e s., 175 — putativo (v. Descriminantes pu tativas) — reparação do dano, 177 — requisitos, 170 — teoria diferenciadora e teoria unitária, 164 e s. — vida contra patrimônio, 170 — vida contra vida, 165, 169 Estados emocionais, 294 Estrito cumprimento de dever legal, 215 e s. — abuso de autoridade, 216 — autoridades policiais, 215 — destinatários da norma, 216 — dever de educar (dos que têm a guarda de menores), 219 — dever imposto por norma jurí dica ou por ordem legítima, 215 — e legítima defesa, 215
— elemento subjetivo, 216 — em caso de resistência por par te de pessoa perseguida, 215 — necessidade e moderação no emprego dos meios, 215 Excesso — culposo, 158, 210, 212 — doloso, 158, 210, 211 — exculpante, 287 e s. — extensivo, 288 — fortuito, 210 — intensivo, 288 — nas causas de justificação, 210 — resultante de perturbação men tal, medo ou susto, 288 e s. Exercício regular de direito, 217 e s. — abuso de direito, 217 — castigos, 219 — desforço imediato (na defesa da posse), 218 — fundamento, 217 — limites, 217
F Força maior, 296 Função de garantia da lei penal, 14
I Ignorância da lei e ignorância da ili citude do fato (distinção), 245 Ignorantia affectata, 248 Ignorantia legis, 248 Ignorantia vincibilis, 248 Ilícito penal e ilícito civil, 253 Ilicitude — v. Causas de exclusão da ili
citude
— — — — — — —
conceito amplo, 147 conceito de, 99 concepção unitária, 149 e ação humana, 150 e antijuridicidade, 145 e injusto, 153 elemento característico da agressão injusta, na legítima defesa, 152, 156
— elemento do crime, 94 e s. — e lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, 151 — e tipicidade, 155 — exclusão da, 156, 157 — formal e material, 148 — formas de aparecimento, 152 — penal, 153 — penal e extrapenal, 153 — típica e atípica, 151, 152 Imputabilidade, 272 e s. — conceito e elementos, 273, 274 — diminuída, 276, 277 Inexigibilidade de outra conduta — v. C u lpabilidade
Inimputabilidade, 272 e s. — desenvolvimento mental incom pleto ou retardado, 275 — doença mental, 275 — menoridade, 278 — redução da capacidade de au todeterminação, 277 — redução da capacidade de com preensão, 277 Injusto penal, 123 e s. — e ilicitude, 123 — e tipicidade, 124 — graus, 123 Intencionalidade, 105
I Juízo de atipicidade e juízo de licitude, 127 Juízo de censura ou de reprovação (v. Cuipabilidade), 229, 234, 243 Juízo de desvalor ético-social, 128 Juízo de subsunção, 125 Juízo de tipicidade, 125
L Legítima defesa, 182 e s. — aberratio ictus na reação defen siva, 194 — agressão atual, 186
agressão de inimputáveis, 190 agressão iminente, 187 agressão injusta, 152, 188 animais ferozes, 207, 208 animus dejendendi, 206 auxílio necessário, 198 bens do Estado e das pessoas jurídicas de direito público, 199 caso fortuito, 210 conceito, 182 a 184 contra agressões insignifican tes (exemplo do furto de fru tas), 201 e 202 contra estado de necessidade, 188 crimes permanentes, 187 culpa levíssima, 210 defesa da honra e de outros bens, 196 e 197 defesa da posse, 218 defesa da propriedade, com armadilhas, 207, 208 e 218 desforço imediato (na defesa da posse), 218 de terceiros, 198 direito defendido, próprio ou alheio, 196 e s. e erro (v. Descriminantes pu tativas) elemento subjetivo, 206 emprego de armas, 201 erro na execução (v. Aberratio ictus) excesso culposo, 210 e 212 e s. excesso de legítima defesa, es pécies, 210 e s. excesso derivado de erro, 212 excesso devido ao fortuito, 210 excesso doloso, 210, 211 excesso exculpante, 287 excesso extensivo, 288 excesso intensivo, 288 fundamentos, 182 e s. ilicitude da agressão, 188 inexigibilidade de fuga, 190 medo, 288 moderação, 185, 200, 203 e s. necessária, 182, 201
— necessidade dos meios, 201 — ofendículas, 207 e 208 — perturbação da inteligência e dos sentidos, 299 — perturbação mental, 288 — princípio da proporcionalidade, 185, 201 — proteção da posse, 218 — provocação do agente, 192 — putativa (v. Descriminantes pu tativas) — requisitos essenciais, 184 — susto, 288 — turpis fuga, 170, 190, 205 Lei — ab-rogação, 27 — derrogação, 27 — excepcional ou temporária, 48 — retroatividade, 36 — sucessão de leis, 46 — ultra-atividade, 36 Lei e decreto-lei, 15 Lei penal no espaço (vigência), 49 e s. Lei penal no tempo (vigência), 27 e s. Lesão — corporal seguida de morte, 269 — inevitabilidade no estado de necessidade, 173 Lex Aquilia, 261 Lex certa, 14, 26 Lex gravior, 27 Lex mitior, 27, 36 e s. Lex praevia, 14, 15 Lex scripta, 14, 18 Lex stricta, 14, 20 Lex tertia, 38 e s. Locus delicti commissi, 57
M Medidas de segurança (direito inter temporal), 44 e s. Medidas de segurança (no Código de 1940), 90 e s. Medo — v. Excesso de legítima defesa
Meios — moderados de defesa, 190, 193 e s. — necessários de defesa, 201 Menoridade, 278 Moral — e direito (especialmente direi to penal), 5 e s. — lex aeterna, lex naturalis, lex humana, 5 — non omne quod licet honestum est, 5 Motivação normal (princípio da nãoexigibilidade), 284
N Nexo de causalidade entre a ação e o resultado, 111 Norma — de direito penal material, 28, 29 — de direito processual, 41 e s. — de execução penal, 41 — e tipo legal de crime, 250 — normas permissivas, preceptivas e proibitivas, 103 — penal em branco, 47 Nullum crimen, nulla poena sine lege, 13, 14, 67 Nullum crimen sine actione, 103 Nullum crimen sine culpa, 225
O Obediência à ordem de superior hie rárquico, 299 — ordem ilegítima, 299 — ordem legítima, 299 — ordens vinculantes, 299 Ordenações Filipinas (Livro V), 65 e s.
P Paixão, 294
Pena — dor, sofrimento, 225
— reação social, 225 Perigo — conceito, 171 — provocação voluntária e invo luntária. dolosa e culposa, 172 Permittitur quod non prohibetur, 13, 147 Perturbação da inteligência e dos sentidos, 290 Perturbação mental (v. Excesso de legítima defesa), 287 e s. Pessoa jurídica, 136 Prejuízo, 171 Princípio da adequação social, 130 Princípio da confiança, 265 Princípio da defesa, 55 Princípio da equivalência das cau sas, 122 Princípio da inexigibilidade, 283 e 284 Princípio da insignificância, 131 Princípio da legalidade ou da reser va legal, 13 Princípio da personalidade (ou da nacionalidade), 54 Princípio da proporcionalidade, 202 Princípio da responsabilidade, 274, 283 Princípio da territorialidade, 50 e s. Princípio da ubiqüidade, 57 Princípio da universalidade (ou da justiça universal), 56 Princípio-do pavilhão ou da bandei ra, 52 Princípio do risco tolerado, 10 e 267 Princípios de direito penal interna cional, 49 e s. Princípios de direito penal intertem poral, 27 e s. Privação ou perturbação da inteli gência e dos sentidos, 290 Provocação do perigo, no estado de necessidade, 172, 178 Provocação, na legítima defesa, 192 361
R Responsabilidade, 274, 283 Responsabilidade diminuída, 276 Resultado — nos crimes culposos, 263 Risco permitido, 10 e 267
S Susto (v. Excesso de legítima defesa exculpante), 287 e s.
T Tempus regit actum, 27 Tentativa — e ausência de dano, 12 — em crime complexo, 138 — em crime culposo, 268 — impossível, 11 Teoria causai da ação, 105 Teoria da ação (direito penal intertemporal), 31 Teoria extremada ou estrita da cul pabilidade, 258, 259 Teoria extremada ou estrita do do lo, 256 Teoria finalista da ação, 106 Teoria jurídico-penal da ação, 110 Teoria jurídico-penal da causalidade, 111 Teoria limitada da culpabilidade, 249, 259 Teoria limitada do dolo, 257 Teorias da culpabilidade, 257 Teorias do dolo, 257 Teoria social da ação, 109 Território nacional, 51 Tipicidade, 125 — e atipicidade, 125 — e domínio do fato, 136 — formal, 125 Tipo, 98 — aberto, 135 — básico, 137, 138 — concepção material, 129 362
— — — — — — —
congruente, 138 culposo, 97, 232 de delito, 124 de injusto, 123 derivado, 137, 138 doloso, 98, 231, 232 e antijuridicidade (ou ilicitu de), 124 — e causas de justificação, 124 — elementos, 98, 139, 140 — elementos descritivos, 141 — elementos normativos, 141 — elementos objetivos, 141 — elementos subjetivos, 142 — em sentido amplo, 133 — espécies, 138 — estrutura, 136 — fechado, 135 — função, 126, 127 — fundamental, 137. 138 — incriminador, 124 — justifiôador, 124 — legal, 98, 136 — legal de crime, 124, 136 — objetivo, 133 — permissivo, 126 — subjetivo, 98, 133 — Tatbestand, 133 — tipo legal e tipo de injusto, 123 — total de injusto, 134 — variações de conceito, 132 Tipos permissivos ou justificadores, 126 Turpis fuga — v. Legítima defesa
V Vacatio legis, 32 Versari in re illicita, 269 Vigência da lei penal no espaço, 49 e s. Vigência da lei penal no tempo, 27 e s. Vis absoluta e vis compulsiva, 295 Voluntariedade, 97
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