O
Quais são as fronteiras entre a biografia e a história, a ficção literária e a verdade do s fatos? A historiadora Sa bina Lsrca d ecidiu exam inar a obra de pensadores q ue, ao longo do século XIX, buscaram restitui r a dimensã o indivi dual da his tór ia: três historiadores (Thomas Carlyle, Wilhelm von Humboldt, Friedrich Meinecke), um historiador da arte (Jacob Burckhardt), um filósofo (Wil helm Dilt hey) e um rom ancista (Leon Tolst oi) . Ma s que h istóri a é essa de ‘pequ eno x"? A fórmula é do grande hi stori ador alemão Johann Gustav Droys en, que, em 1863, escrev eu que, se chamamos d e A o gé nio individual (aquilo que a lguém é, possui ou fa z), então podemos dizer que A é a soma de que vem dascir cunstânci as a + x, em que a designa o exterioresMuitos(país, etc.)que, e xredesde então, sultaexploraram do talentoesse pessoal, foramépoca, aqueles “pequenoobra x”. da li vre vont ade. Como ele se forma? Ele é inato? Que papel a pessoa singular desempenha na história? C om o se deve apree nde r a rel ação e ntre o indi víduo, s eu gênio e o movimento geral da história? Esta obra de Sabina Lsrca assinala o retorno da biograf ia, abandonada por m uit o temp o, ao cam po das p esquisas hi stór ic as.
P E Q U E N O X :
d a
b i o g a r f ia à h is t ó r ia
S a b m a L o ir g a
autêntica fc«U t»cL« *í>s* cov* a u tê n t ic a
Coleçõo HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA Coordenação Eliana de Freitas Dutra
Sabina Lsrca
O pequeno x Da biografia à história
Tradução
Fernando Scheibe
autêntica
Copyright © Editions du Seuil, 2010. Collection La Librairie du XXIe siècle, sous la direction de Maurice Olender. Copyright © 2011 Autêntica Editora TITULO ORIGINAL Le pe tit x - D e la biograph ie à 1'hi stoire COORDENADO RA DA C OLEÇAO HISTORIA E HIST ORIOGRAFIA
Eliana de Freitas Dutra PROJETO GRÁFICO DE CAPA
Teco de Souza (Sobre imagem A
cor do invi sivel, Wassily Kandinsky)
EDITORAÇÃO ELETRONICA
Conrado Esteves Christiane Morais de Oliveira REVISÃO TÉCNICA Vera Chacham REVISÃO
Vera Lúcia D e Simoni Castro Lira Córdova EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias
Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico. Todos os direi tos reservad os pela Autêntica Editora Nenh uma parte desta publicaçã o poderá ser reproduzida, seja por meio s mecânicos, eletrômcos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora
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lsrca. Sabina 0 pequeno x :- da biografia à histór ia / Sabina Lsrca; Fernando Scheibe. Belo Horizonte Autêntica Editora, 2011 tradução - (Coleçào História e Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 6) Titulo srcinal: Le petit x de la biographie à 1'histoire. ISBN 978-85-7526-565-9 1 Biografia (Género literário) 2 História - Filosofia 3. Historiografia - História -Século 19 I. Dutra, Eliana de Freitas.I ITitulo III Série. 11-085 84
CDD-907 2 índices para catálogo sistemático: 1 Biografia e história 907.2
AGR AD ECI MEN TO S
Jacq ues Re ve lPude discutiu com igo disso, o c onjcom unt oasdeste liv ro e me as seus mínimos detalhes. contar, além observações críticas de Giovanni Levi, Jean-Frédéric Schaub, François Hartog e Fernando Devoto. Dominique Berbigier me ajudou, com grande paciência, a preparar a versão francesa do livro. Esta viagem pelo passado historiográfico foi também a ocasião de intensas trocas de pontos de vista com Olivier Abel, Michèle Leclerc-Olive, Isabelle Ullem-Weité, David Schreiber, Françoise Davoíne, Maurizio Gnbauldi e Stefano Bary. Partilhei com Andrea Jacchia as interrogações, as paixões e as hesitações que, dia após dia, acompanharam a redação deste livro. Enfim, desejo agradecer a todos aqueles que participaram de meu seminário “Histoire et biographie" na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris.
SUMÁRIO
Pre fác io.......................................................................................... Capítul o I - O limiar biográfico
11
................................................
17
Cap ítulo II - A vertigem da histó ria........ ..................................
49
Cap ítulo III - O dram a da libe rda de ........................................
81
Cap ítulo IV - A plur alid ade do pass ado........ .........................
121
Cap ítulo V - O homem pa toló gic o..........................................
157
Cap ítulo VI - A história infin ita......... ........................................ Cap ítulo VII - Sobr e os ombros dos giga ntes ........................
181 21 1
Prefácio
Entretanto acontece com isso o mesmo que com a caça às borboletas; o pobre animal treme na rede, perde suas mais belas cores; e quando se o apanha de supetão, está finalmente duro e sem vida; o cadáver não fa z todo o anima l, há alguma coisa a mais, uma parte essencial e nesse caso, como em todo outro, uma parte essencialmente essencial: a vida.
Johann Wolfgang Goeth e1 I Desde o fim do século XVIII, os historiadores se desviaram das ações e dos sofrimentos dos indivíduos para se dedicarem a descobrir o processo invisível da história universal. Múltiplas razões os conduziram a abandonar os seres humanos para passar de uma (die Geschicten ) a uma história única (die Geschichte).2 história plural
1 Carta de Goeth e a Hetzler de 14 de julho de 1770, in Goethes Briefe und Br iefe an Goelhe. Kom mentare unil Register, Ed. por Ka rl Robert M andelkow, Mu nich, C.H. B eck, 1976 cit ado por Jean Lacoste, Goelhc. Saetue et phil osophie, Paris , PU F, 1997, p. 90. 1 Em seu texto sobre o conceito de história, Reinhart Koselleck coloca em evidência que o termo Geschichte nasce após dois acontecimentos convergentes', por um lado. a constituição de um coletivo singular que religa o conjunto das histórias especiais ( Einzelgeschichten ); por outro, uma contaminação mútua do conceito de Geschichte enquanto comp lexo de eventos e aquele de Historie enquanto conhecimento, relato e ciência histórica. Reinhart Koselleck. “Le concept d'histoire”, in VExpérience de 1'histoire (1975) , traduzi do do alemão por Alexandre Escudier, Pans. Editions de 1’EHE SS, 1997, p. 1519. Cf. também Reinhart Koselleck, Lcfiitur passé. Contrihulion d la sémantique des temps historiques (1979 ), traduzido do ale mão por Joch en Hoo ck, Paris, C.all imardEdicions du Seuil, 199 0, capítulo IV. |Tradução brasilei ra de Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. O futur o pa ssa do: contr ibuir ão tí semilntica dos tempos históricos. Rio de janeiro: Contraponto/PU C, 1996.]
11
O PEQU ENO X - D
a
BIOGRAFIA
à
P reíácio
HISTÓRIA
É provável que duas revelações dolorosas da modernidade tenham contribuído para isso: por um lado, a descoberta de que mesmo a natureza é mortal e, por outro, a perda progressiva de confiança na capacidade de nossos sentidos de apreender a verdade (desde a época de Copémico, a ciência, no fundo, não para de nos revelar os limites da observação direta).’ Mas, para além dessas profundas transformações, que ultrapassam nossos comportamentos conscientes e, sob certos aspectos, nos escapam, diversas vicissitudes intelectuais menos trágicas, e mesmo mais banais, tiveram, sem dúvida, um papel nada negligenciável. Em primeiro lugar, a vontade de trazer às ciências humanas bases científicas estáveis e objetivas. Tratou-se de um imenso esforço de conhecimento que conduziu as discipli
de povos, de alianças, de grupos de interesses, mas bem raramente de seres humanos.5 Co mo pressent iu um escritor particularmente atento ao passado, Hans Magnus Enzensberger, a língua da históna começou, então, a ocultar os indivíduos atrás de categonas impes soais: “A história é exibida sem sujeito, as pessoas de que ela é a história aparecem somente como tela de fundo, enquanto figuras acessórias, massa obscura relegada ao segundo plano do quadro: ‘os desemprega dos’, ‘os empresários’ , diz-se Mesm o os pretensos ittakers o f history parecem desprovidos de vida: “A sorte dos outros - aqueles cujo destino é calado - se vinga sobre a d eles: ficam c on gelados como manequins e se parecem com as figuras de madeira que substituem os homens nos quadros de De Chirico”.6
nas mais heterogéneas - da demografia à psi cologia, passando pela história e pe la sociologia - a uniformizar os fenómen os, elimina ndo muitas vezes as diferenças, os desvios, as idiossincrasias.
e políticoem dessa passado é muito alto. OA preço partirético do momento quedesertificação deixamos de do lado as motivações pessoais, “podemos admirar ou temer, abençoar ou maldizer Ale xandre, César, Átila, Maomé, Cromwell, Hitler, como admiramos, tememos, abençoamos ou maldizemos as inundações, os tremores de terra, os pores do sol, os oceanos e as montanhas. Mas denunciar seus atos ou exaltá-los é tão despropositado quanto fazer sermões a uma árvore” .7 Essas palavras de Isaiah Berlin, escritas em 1 953 , permanecem atuais. Ao longo dos últimos anos, reprovou-se muitas vezes à historiografia dita pós-modema, de inspiração nietzschiana, ter minado a ideia de verdade histórica e afastado, assim, toda pos sibilidade de avaliar o passado.8 Par ece -m e impor tante sublinhar o quanto o perigo do relativismo, que corrói o princípio de respon sabilidade individual, é igualmente inerente a uma leitura impessoal da históna que pretende descrever a realidade pelo viés de anónimas relações de poder. Isaiah Berlin nos lembra que a esperança efazer d fala r as próprias coisas nos leva a produzir uma imagem abusivamente
O vício de encarar tudo sob o signo da similaridade e da equi valência teve graves repercussões. Hannah Arendt as evoca numa carta a Karljasper s de 4 de março de 195 1. Voltando , uma vez ain da, às tragédias políticas e sociais que afligiram o século X X , observ a-se que o pensamento moderno perdeu o gosto pela diversidade: ‘‘Não sei o que é o mal absoluto, mas parece-me que tem a ver com o seguinte fen ómeno: declarar os sere s humano s supérfluos enquanto seres humanos”. E, mais adiante, acrescenta: “Suspeito que a filosofia não seja tão inocente quanto ao que nos é dado aí. Naturalmente, não no sentido de que Hitler podena ser aproximado de Platão. [...] Mas, sem dúvida, no sentido de que essa filosofia ocidental jamais teve uma concepção do político e não podia ter porque [...] tratava acessoriamente a pluralidade efetiva”.4 Além da essa perda pluralidade a história. Osfilosofia, dois últimos séculosdaviram nossosafetou livros igualmente de história abundar em relatos sem sujeito: eles tratam de potências, de nações,
necessária dessa realidade. Por vezes, mesmo a celebrar um pouco 5 Cf. Philip Poniper, "Histonans a 4 Hans Magnus Enzensberger,
Sobre a tomada de consciência da vulnerabilidade da natureza, cf. Hannah Arendt. Lt Concept d histoire (195b) ín U cnse de k aillun, Paris, Gallimard, 1972. Cf. igualmente Hansjonas, Philosophieal Essays From Atu mu C reed lo Technologic al Man , Chicago, The Umveraty Chicago Press, 1974. '
Hannah Arendt. Correspondance, 19261969 Messmer, Paris, Payot, 1996, p. 243244.
(1985), traduzido do alemão por Eliane Kaufhol
12
Isaiah Berlin. "De
nd Ind ividual Agency",
History iind Tlieory, 1996. 35,3, p. 281308.
“Letterat ura com e stonograha",
la nécesité histonque" (1953), in
II Menabò,
1966, IX. p. 8.
Éoge de la liberte, Pans, CalmannLévy, 1988, p. 118.
" Cf. Cario Ginzburg, “Just one Witness”, ín Sa ul Fnedlander (di r.), Probi ng lhe Umits o f Represe nta lion. Nazism and lhe "Final Solution". Cambndge (MASS.), Harvard Umvenity Press, 1992, p. 8296; R ichardJ. Eva ns, In De/rtue o f Histo ry, Londres, Granta Books, 1997, cap. VIII.
O
PEQUENO
x - Da
biografia
à história
Pr efá c io
demais os feitos realizados: “Tudo o que se encontra no campo da razão vitoriosa é justo e sábio; por outro lado, tudo o que está do lado do mundo fadado à destruição pelo trabalho das forças da razão é efetivamente estúpido, ignorante, subjetivo, arbitrário, cego”.9 II Por essa razão, penso que é essencial voltar àqueles autores que, atr avés do sécul o X IX , se esforç aram por salvaguardar a d ime nsã o individual da história. Foi uma época que deu lugar a uma reflexão extremamente interessante e complexa sobre o “pequeno x”. Do que se trata? A expressão é de Johann Gustav Droysen, que, em 1863, escreve que, se chamamos A o gênio individual, a saber, tudo o que um homem é, possui e faz, então esteA é formado por a + x, em que a contém tudo o que lhe vem das circunstâncias externas, de seu país, de seu povo, de sua época, etc., e em que x representa sua contrib uição pessoal , a obra de sua livre vo nta de .1" Antes de Droysen e depois dele, outros pensadores exploraram o “pequeno x . Com o se f orma? E inato? Tod os os se res humanos o têm? Deve ser integrado à história? Neste caso, como apreender a relação entre o caso individual singular e o movimento geral da história? Inicial mente, a abordagem está estreitamente ligada a uma reflexão sobre a nação: como veremos, a propósito de Johann Gottfried Herder, as particularidades dos povos envolvem as características pessoais. Depois ela se anima, na segunda metade do sé culo X IX , no curso de uma discussão complexa sobre o estatuto epistemológico das ciências humanas. Não se trata de um debate estruturado, bem definido, com uma data inicial e uma final, mas antes de um diá logo difícil, indireto, incessantemente interrompido, que atravessa as e que no esquecimento. Emfronteiras parte por nacionais ser pontuado porinjustamente certos termoscaiu obsoletos e perigosos Isaiah Berlin . De la necessite histonque", op. rir., p.l 16. Cf. igualmente Hugh History and Imagmation' , in History and Ima^inal ion. Essays in Honour of H R Londres. Gerald Duck worth, 1981, p. 3563 69.
Trev or-Roper.
Trevor Rop rr,
jo ha nn Gus tav Dr oy sen , Di e Er he bu ng de r G es ch ich te zun i Ra ng ein er W iss en sch aft ”, Historisehe Zntschrifi. Ed. Von Sybel, Mumch , Literanschartist iche Anstalt , 1863, vol. IX , p. 1314. Droysen se apoia num exemplo do filósofo Rud olf Hennann Lotze.
14
como “herói” ou “grande homem”. Em parte porque, entre os historiadores, reina ainda a estranha e arrogante convicção de que o presente historiográfico é preferível e superior —em suma, mais científico - ao passado. Sob vários aspectos, este livro se propõe a fazer uma incursão pela tradição. Aí está uma expressão que merece alguns esclareci mentos. Em pnmeiro lugar, não se trata de uma chamada à ordem." Não atribuo a nossos predecessores uma autoridade indiscutível e não pretendo negligenciar a importância das inovações ou das expe riência s histonográficas reali zadas nos últimos decénios. P arece -me , entretanto, que uma relação mais profunda com a tradição só pode ennquecer nossas possibilidades de experimentar. Com demasiada frequência, sobretudo no debate em torno ao pós-moderno, o passado historiográfico é descrito como uma experiência mono lítica, imbuída de certezas sobre a verdade e a objetividade. Meu desígnio aqui é colocar em evidência pensamentos que desmentem essa imagem tão convencional da tradição. Além do mais, o salto na tradição não concerne à biografia enquanto tal: nem seu método, nem sua evolução narrativa. E nada tem de filológico: não proponho uma leitu ra exaustiva de c ada autor e, muitas vezes, limite i-me a evocar as motivaçõe s políticas e so ciais de suas reflexões —como o impacto do bonapartismo ou a afirma ção política das massas. E uma verdadeira lacuna que será, espero, preenchida em breve por outras pesquisas. Mas, aqui, debruço-me principalmente sobre a história biográfica: se tivesse que resumir em algumas palavras o que fiz nesses últimos anos, talvez dissesse que recolhi pensamentos para povoar o passado. Com essa finali dade, privilegiei uma perspectiva ampla, indo alem das fronteiras geográficas, linguísticas e de género. Os autores que frequentei longamente são historiadores (fora Thomas Carlyle, principalmente autores alemães, de Wilhelm Von " No curso dos últimos anos, especialmente nos meios anglosaxôes, numerosos historiadores propuseram uma oposição discutível entre a antiga e a nova história: cf. Theodore S. Hamerow, Reflections on History and Htstorians, Madison, Um vemty o f Wiscosin Press. 1987, c ap V; Eliza beth FoxGenovese, Elisabeth LaschQuinn (dir.), Reconstmcting History: TTic Emergente o/a New Historieal Sonely, New YorkLondres. Routledge, 1999, p. XI1IXXII.
O
PEQUENO
x - Da
biografia
à histôhia
Humboldt a Fnedrich Meinecke), um historiador da arte (Jacob Burckhardt), um filósofo (Wilhelm Dilthey) e um escritor (Leon Tolstoi). De fato, a definição disciplinar se mostra bem pobre, pois se trata na maioria dos casos peças de únicas que não provêm nem de uma esco la nem de uma cor rente. Não há entre eles con tinuidade ou coerência, mas partilham ao menos duas convicções. Creem, antes de tudo, que o mundo histórico é criativo, produtivo, e que essa qualidade não repousa sobre um princípio absoluto, mas procede da ação recíproca dos indivíduos. Por conseguinte, não apresentam a sociedade como uma totalidade social independente (um “siste ma ou uma “estrutura” impessoal superior aos indivíduo s e que os domina), mas como uma obra comum. Têm, além disso, um sentid o agudo do que poderíamos cham ar “ a vitalidad e periférica d a históna : visam antes a desvelar a natur eza mu ltif orm e do passado do que a unificar os fenómenos. E claro, não são os únicos a abraçar tal abordagem. A diversidade da experiência histórica foi defendida nesses mesmos decénios por William James e Max Weber e, mais tarde, por Walter Benjamin, Siegfried Kracauer e outros autores que cruzaremos nos meandros das páginas deste livro. Mas antes de seguir essas grandes figuras no fio de seus pen samentos, é importante explorar a fronteira, fluida e instável, que separa a biografia da literatura e da história.
CAPÍTULO I
O limiar biográfico
I Tácito, Suetônio e Plutarco. Antes deles, Critias, Isócrates, Xenofonte, Teofrasto, Aristóxenes, Varrão, Cornélio Nepos. Mais tarde, Eginhard, o abade Suger, Jean de Joinville, Philippe de Commynes, Femán Pérez de Guzmán, Filippo Villani, Giorgio Vasan, Thomas More. A Antiguidade grega e romana contou com importantes biógrafos, assim como a Idade Média e a Renascença. Mas ainda não se chama vam assim. O term o “biografia só aparece ao longo do século XVII, para designar uma obra verídica, fundada numa descrição realista, por oposição a outras formas antigas de escntura de si que idealizavam o personagem e as circunstancias de sua vida (tais como o panegírico, o elogio, a oração fúnebre e a hagiog rafia ).1 Os primeiros verdadeiros biógrafos foram ingleses. Izaak Walton, autor de uma vida do poeta John Donne em 1640, e o eclético John Aubrey, que, entre 1670 e 1690, escreveu uma séne de notícias biográficas sobre diversas personalidades de Oxford (o tex to só seri a publicad o no século X IX ), seguidos por Samu el ' Sobre a evolução d a biogr afia, c f. Wilbur L. Cross, An Ou llin e o f Bi og np hy fio m Piut airlt lo Slra che y, New Y ork, H. H olt & Co., 1924; Harold Nicol son, The Devclopment ofEnglish Biography. New York, Harcourt, Brace, 1928; Edmond Gosse, “Biogmphy” in Encyclopedia Brilannka, 11* ed.; Donald A. Stauffer, Etiçlish Bioçrnphy hefore 1700, Oxford , Oxford Un.versity Press . 1930; John A. Garraty, The Nalnre of Biography. Oxford, Knopf, 1957; Daniel Madelénat, La Biographie. Pans, PUF, 1984; Scott Casper. Constructing American Lives: Biography and Cullure in NineleenthCenlury Am eric a, Chapei H.ll, Um vemty o f North Carolina Pre ss, 1999; Margarettajolly (d.r.) Life IVriting. A uU iog ra ph iea l an d Bio gra phic al For ms, LondresChicago, Fitzroy Dearbom Publishers, 2001.
16
O
PEQUE NO * -
Da
biografia
A histôma
O UMIAD BIOGRÁFICO
John son com suasLives o f the Poet s (1 779 -17 81) e porjames Bo swell, autor de uma Life of Samuel Johnson (1791). Atestada desde a Antiguidade, a biografia é, desde a srcem, um género híbr ido e compó sito.2 Equilibrando-se sempr e en tre verdade histórica e verdade literária, sofreu profundas transformações ao longo do tem po - quanto à escolha e à elabor ação dos fa tos e do estilo narrativo. E portanto difícil estabelecer regras gerais.1Sem dúvida, numerosos biógrafos privilegiaram lima narração cronoló gica seguindo as escansões biológicas da existência: o nascimento, a formação, a carreira, a maturidade, o declínio e a morte. Mas isso não implica que a biografia deva necessariamente repousar sobre uma trama cronológica. Basta pensar em Plutarco, que coloca toda ênfase no caráter e nas qualidades morais do personagem, e não em sua vida. Ou em Lytton Strachey, que prefere uma narração sintomática, apoiando-se essencialmente nos momentos-chave (as conversões, os traumatismos, as crises económicas, as separações afetivas). Não existe nenhuma regra formal nesse domínio, nem mesmo a respeito das características individuais. John Aubrey e Mareei Schwob cultivam-nas e mesmo as exaltam em revide ao geral e ao impessoal: A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre o s indivíduos. Ela só nos revela os pontos por onde eles foram atrelados as açoes gerais. [...] A arte é o contrário das ideias gerais, só descreve o individua l, só desej a o único. Não classifica; desclassifica”.4 Mas outros biógrafos minoram esses traços individuais em proveito das semelhanças, na esperança de representar um tipo médio, ordinário (no domínio da biografia literária, tal é o caso de Giuseppe Pontiggia, que corrige as individualidades e as coloca mesmo em séries5). Sob certos aspectos, essa oposição está igualmente presente na biografia
Cl, Daniel Aaron (dir.), Studi,< m Biography. Cambndge (Mass.). Harvard University Press, 1978; a o e Luciano Nicastri (dir), Biografia e autobiografia degli antichi e dei modemi. Nápoles, Z10m ^c'enat,c*le Itali ane, 1995 ; Lucia Bold nni, Biog rafiefittizi e e personaggi si orici. {Autobiogra fia, soggettimta, leoria nel romanzo inglese contemporâneo. Pisa, ETS, 1998. Cf. AUa n Nevins, How Shall One W de julho de 1951, p. 20. Mareei Schwob, Machado
nte of a Man s Life”,
The New York Times Book Review,
1/ies im agma.res (1896), Pans, Flammanon. 2004, p. 53. [Tradução brasileira de Vidas imaginárias. R io de j aneiro, Editor a 34, 1997 ]
r.iusepjx Pomiggia, Vie des hommes non illustres chard, Pans, Albin Michel, 1995.
(1993). traduzido do italiano por François Bou
15
intelectual. Sainte-Beuve, Hippolyte Taine e Otto Weininger visam a instaurar uma biografia abstrata, suscetível de transformar o individual em tip o,6 enquanto o utros, mais sen síveis à dimensão ética da existência, sublinham seu caráter singular: como escreve Giovanni Amendola, “a biogr afia, que não pode se engir em ciência filosófica, [...] pode nos fomecer um conhec imento mais rico e mais preciso da vida moral do que a própna Etica”.7 Por isso, em vez de formular regras gerais sobre um género de escritura particularmente volúvel, parece-me mais fecundo meditar sobre essa fronteira fluida que separa a biografia da história e da literatura, e analisar as proibições, os abalos, as incursões recíprocas que a transpõem... II Ao longo do século XVIII, a reflexão biográfica se desenvol veu sobre dois eixos essenciais: além da vida dos santos e dos reis, interessou-se cada vez mais pela de poetas, soldados ou criminosos, e adota um tom mais in timista. Em 175 0, Johnson invoca abertamente o valor da existência qualquer: “Disse-me muitas vezes que não havia vida que, fielmente relatada, não oferecesse uma narrativa útil”. Após ter refutado a asserção segundo a qual a vida de um pesquisador, de um negociante ou de um padre dedicando-se a seus ofícios seria desprovida de interesse, parte para a guerra contra a noção de gran deza: “Aos olhos da razão, o que é mais difundido tem mais valor”. Preocupado com o homem ordinário, Johnson ataca a prerrogativa que é muitas vezes atribuída às questões públicas, sustentando que um bom biógrafo deve guiar o leitor na intimidade doméstica para mostrar os pequenos d etalhes da vida cot idiana. A conce pção do
‘ Otto Weinmger. et caracttre (1903), traduzido do alemão por Daniel Renaud, Lausanne, L’Age d’homm e, 1989, 2a parte, cap. 5. 7 Giovan ni Amendol a, Etica e biografia (1915), M ilanNaples. Ricc.ardi, 195 3, p. 17. Sobre a dimensã o ética da bi ografia, cf. Robe rt Partin. “Biography as ar . Instrument of Moral Instniction . Am enc an Quarterly, 195 6, 8. 4, p. 3033 15; Frédéric Regard, "Léth.qu e du biographique. Reflet tom sur une tradition bntannique”, Uttèrature, 2002, 128, p. 8092. * Samuel Johnso n, ■‘Biograph y", Rambler. 13 de outubro de 1750, n. 60, p. 357. Cf. igualmente Samuel Johnson, "Biography how Best Performed", Idler. n° 84. 24 de novembro de 1759, m
The Idler and the Adventurer.
Ed. Por W
. J. Bate, New Haven, The Yale Ed
19 18
it. on, 1958.
O
PEQUENO
x - Da
biografia
à HISTÔS1A O UMIAfi BIOGRÁ FICO
biógrafo preocupado em mergulhar na intimidade doméstica a fim de captar o indivíduo privado de sua máscara social é partilh ada por Jame s Bo swell, que, em 25 de f eve reir o de 17 88 , escre ve a William Temple: “Estou absolutamente certo de que o método biográfico como o entendo - dar n ão apen as umahistória da trajetóna visível de Johnson no mundo, mas umavista de seu espírito em suas cartas e conversações —é o mais perfeito que se possa conceber, e será mais uma Vida que qualquer obra já publicada”.^ E durante o s éculo X IX que a bio grafia se impõe co mo oficio de pleno di reito - graça s a Joh n Forster, John Morle y, James Parton, Charles-Augustin Sainte-Beuve. Em 1862, este último, em geral bastante reticente no que tange às afirmações teóricas, decide explicar de uma vez por todas os princípios metodológicos de sua crítica literária: “Aqueles que me tratam da maneira mais benévola admitiram que eu era um juiz bastante bom, mas que não tinha Código. Tenho um método no entanto, [...] ele se formou em num pela própria prática”.10A premissa é muito simples: “A literatura [...] nao e para mim distinta ou sequer separável do resto do homem e da organização; posso saborear uma obra, mas é-me difícil julgá-la independentemente do conhecimento do próprio homem; diria mes mo de bom grado: tal árvore, tal fru to. O estudo literário me conduz naturalm ente ao estudo moral” .11 O result ado tamb ém é simp les: Para julgar o autor de um livro e o próprio livro, se esse livro não é um tratado de geometria pura”, é preciso colocar-se certas questões sobre a personalidade do artista: qual é sua posição religiosa? Sua percepção da natureza? Quais suas relações com as mulheres? Com o dinheiro:' E com a comida? Mas também: quais seus vícios? Quem são seus amigos? E seus inimigos? O conjunto dessas questões deve ser levantado a cada etapa de toda vida: no nascimento, quando da formação e da deformação. A abordagem só pode ser cronológica: d h ° ^ ame^^ ac^c^ nat. 14 Biographie, op. cit., p. 56. Sobre o processo de democratização A J T ^ C^ Can Starob1nsk i,Jf<ín/íir
Nouveaux lundis,
Pans, Calm annL évy, 1 891, t. III, p.
13, 21 e
“É muito útil, em primeiro lugar, começar pelo começo e, quando se dispõe dos meios, tomar o escritor superior ou distinguido em seu país natal, em sua raça” .12 O artista deve ser buscado no seio de seu ambiente familiar: com seus pais, com sua mãe sobretudo, com suas irmãs (é o caso de Chateaubriand, Lamartine, Balzac, Beaumarchais), com seus irmãos (como Boileau-Despréaux) e com seus filhos (como Madame Sévigné). “Encontram-se aí lineamentos essenciais que são muitas vezes mascarados por estarem demasiado condensados ou unidos no grande indivíduo; o fundo se encontra, nos outros de seu sangue, mais despido e em estado simples . Apos o nascime nto, vem o tempo da formação: a época dos estudos, dajuventude, do primeiro círculo artístico (aMuse française, o Globe, ou o Cénacle). “Nenhum dos talentos, então jovens, viveram um destes grupos, fez impunemente”:13sob certos que aspectos, é a em verdadeira data srcinalo do artista. No termo da formação, aborda-se o triste tempo da defor mação: “É o momento em que [o artista] se estraga, se corrompe, decai, desvia. Escolham as palavras menos chocantes, as mais doces que vocês quiserem, a coisa acon tece co m quase todos . Essa perspectiva analítica, que visa buscar a o homem na obra, funda-se na esperança de que o caso singular possa assumir um valor tipológico. Assim, o retrato de Guy Patin, célebre médico do século XVII, deveria restituir o quadro de uma burguesia incoerente e de uma época indolente: “Embora pareça um grande srcinal, [Patin] não é o único de sua espécie; não é mais do que um exemplo mais saliente e mais em relevo de uma inconsequência burguesa e de classe média, que é curioso est udar nele”.1 5 Co mo escreve Sainte-Beuve em 1865, com certa dose de autoiroma:"Tipo é uma palavra bem vil, bem seca e bem dura, mas é uma bela coisa [...]. Tipo, em nossa mitologia abstrata, em nosso novo panteão estético, é como quem dissesse outrora semideus,Divus. Tendes altares .' Se essademarche tipológica der resultado, a crítica liter ária poderá deixar o anedótico 12 Ibid., p. 18. 13 Ibid., p. 2223. H Ibid., p. 26. 15 SainteBeuve. 16 SainteBeuve,
20
Caustries du hmdi.
Pans. Gamier, s.d., t. VIII. 25 de abnl e 2 de maio de 1853, p. 88133.
Nouivaux lundis, op. dl., t.
IX , p. 246, 2 de janeiro de 1865.
21
O PEQ UEN O X - D
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BIOGRAFIA À HISTÔdIA
para estabelecer uma base científica, digna das ciências naturais: “Entrevejo ligações, relações, e um espírito mais estendido, mais luminoso, capaz de permanecer fino nos detalhes, poderá descobrir um dia as grandes divisões naturais que respondem às famílias de ' »» .17 espíritos
As obras de espínto não têm apenas o espírito por pai. O homem inteiro contribui para produzi-las; seu caráter, sua educação e sua vida, seu passado e seu presente, suas paixões e suas faculdades, suas virtudes e seus vícios, todas as partes de sua alma e de sua ação deixam seu traço n o que ele pensa e no que escre ve.18
American Biograp hy e a Allgemeine Deutsche Biographie. Mas a reali
Donde o valor conceituai dos “pequenos fatos, anedotas, citações, exemplos expressivos e significativos, [...] fragmentos autênticos e vivos, intactos, colhidos na realidade concreta”.19Em certo sentido, o processo de compreensão biográfica se aparenta à dissecção dos corpos. Assim, ao eu sublime e infinito, evocado pelos românticos, Taine opõe uma partícula, um produto, uma extremidade, uma emergência do Paleoceno: Acabo de reler Hugo, Vigny, Lamartine, Musset, Gautier, Sainte-Beuve, como tipos da plêiade poética de 1830. Como todos esses senhores se enganaram! Que ideia falsa têm do ho mem e da vida! [...] Quanto a educação científica e histórica muda o ponto de vista! Materialmente e moralmente sou um atomo num infinito de extensão e de tempo, um botão num baobá, uma pontinha florida num polipeiro prodigioso que ocupa o oceano inteiro e, de geração em geração, emerge, deixando seus inumeráveis suportes e ramificações sob a água; o que sou chegou e chega a mim pelo tronco, pelo galho grosso, o ramo, o talo de que sou a extremidade; sou por um momento a culminação, o afloramento de um mundo t. III, p. 17.
Hippolyte Taine,
paleontológico desaparecido, da humanidade inferior fóssil, de todas as sociedades superpostas que serviram de suporte à sociedade moderna, da França de todos os séculos, do século X IX , de meu grupo, de minha famíli a.20
E é nessa ótica que uma definição científica da biografia é relançada: “Teremos ultrapassado, daqui a meio século, o período descritivo [...] para entrar em breve no período das classificações naturais e definitivas”.21 Ao longo da se gunda metade do século XI X , multiplicam-se os dicionários biográficos, tais como aBiographie universelle ancienne et moderne, a Nouvelle Biographie générale depuis les temps plus anctens jusqu’à nos jours, o Dictionary of National Biography, o Dictionary of
O mesmo se aplica a Hippolyte Taine, para quem a crítica literária deve ser biográfica: como afirma no início de sua célebre obra sobre Balzac,
17 IbiJ;
O LIMIAR BI OGRÁFICO
Nouveaux essais de critique et d'histoire.
Pans, Hachette, 1866, p. 67.
H Tame: sa me et sa c onespondan ce, Pans, Hachette, 19021907, t. IV. carta de 13 de março de 1891 a Franz Brcntano.
dade biográfica permanece geralmente bem longe das expectativas científicas de Taine. Uma vez tornados biógrafos profissionais, muitos se põem a escrever vidas oficiais, obsequiosas e moralizantes. O resultado é dos mais decepcionantes. Enojado pela carolice deferente que impregna muitas biografias, preocupadas em não macular a imagem de respeitabilidade social de seus mandantes, Thomas Carlyle declara: “Como é delicada e respeitável a biografia inglesa! Agradeçamos à sua hipocrisia"; depois decide confiar toda documentação concernindo a sua vida ajames Anthony Froude, em troca da promessa de dizer toda a verdade.” A despeito dessas desa provações, a comem oração reca tada predomi na. C om o est igma tiza o dou tor H avelock Ellis, numa carta abert a de tom bastante picante, os biógrafos continuam a apresentar uma silhueta elegante, digna, convencional, bem penteada e sobretudo “estritamente depurada de tudo o que está abaixo da cintura, uma figura tal qual aquela que
■' Hippolyte Tain e, Panes choisies,
com uma introdução, notícias e notas de Victor Giraud, I ans,
Hachette, 1909, p. 3436. 21 Citado por W olf Lapeni es. Sdiriff Biwc.
Au scu il de la mo dem itè (1997),
defendem
o direito de dizer a verdade.
23 22
tradu zido do alemão por
Bemard Lortholary, Paris, Gallimard, 2002, p. 216. 22 O Carlyle, que conta, sem medir suas palavras, o egoísmo conjugal do esentor. suscita uma importante discussão sobre a ética biográfica, no curso da qual George Tyrrel, um jesuíta irlandês (excomungado pouco tempo depois por modernismo), condena a excessiva cunsosidade dos biógrafos e sustenta o dever d e calar certos fatos , enquanto Edmund S Purcell e Paul Leicester Ford
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BIOGRAFIA À HISTÚRIA
O LIMIAR BIOGRÁF ICO
podemos observar sem corar na vitrine dos cabelere iros” .23 Mas é ao grande biógrafo iconoclasta Lytton Strachey que se devem as críticas mais virulentas: Esses dois grossos volumes, com os quais temos o costume de honrar os mortos, quem não os viu com sua massa de do cumentos mal digeridos, seu estilo descomposto, seu tom de panegírico entediante, sua lamentável falta de seletividade, de distanciamento, de orientação? São-nos tão familiares quanto o cortejo das pompas tunebres e têm o mesmo ar de lenta e lúgubre barbárie.24
Bem entendido, Strachey não ataca a biografia enquanto tal. Bem pelo contrário: convencido de que “os seres humanos são im portantes demais para serem encarados como sintomas do passado”, quer utilizá-la como uma ferramenta para desmascarar a história.25 O que trata de fazer na coletâneaVitorianos eminentes, em que es colhe quatro pessoas passavelmente antipáticas (o cardeal Manning, Florence Nightingale, o doutor Amold e o general Gordon) para fustigar as principais instituições vitorianas: o evangelismo, o humanitarismo, o sistema educacional e a política colonial britânica. Com esse desígnio, abala duas regras usuais da tradição biográfica. Em primeiro lugar, a ideia de uma homenagem necessária: em suas poucas obras (só escreveu quatro), nenhuma alusão à virtude, à grandeza, à virilidade. Em segundo, a primazia do público: Strachey atribui mais importância à personalidade do que às ações e às obras (em seu texto, Vitória é mais mulher do que rainha). Esta é uma ruptura notável que concerne igualmente ao domínio psicológico: o Havelock EUh, "An Open Letter to Biographcrs" (1896). in Via» and Reviews. A Selection of I ncoikcte d Arttcl es, 18 841 932 . Londres, Desmond Harmsworth. 1932, p. 98. Lytton Str.ichc\, Vuíoricns eminents (1918), traduzido do inglês porjacques Dombasle, Pans, Gal knurd. 1933 . p. 181 i Edmund Gosse for mula a s mesmas crí ticas em "T he C ustom ofB iography Ang lo Sax on Re vie w, 1901.
,
L»tton Strachey, i h j , p 18. Essa ideia de jog ar a biografia con tra a história fora já for mulada por Frudiwh Nietzsche. Em Consideratwns inacluelles (18731876), traduzido do alemão por PierTe ust+i m Ofíwrcs philosopltiques completes. Pans. Gallimard, 1990, p. 135, escreve: “E se vocês P «n i!c bi ografi as, que não se jam aquela s que têm por r efrão: ‘Senhor fulano e seu tempo , ; “ I ^ UC deve nam te r por ti tul o: Um lut ador cont ra seu tempo’." [ Traduç ão br asileira u. cns ..oóngru es Torres Considerações extemporâneas". In: Obras incompletas. Seleção de textos Gera rd Lebrun. São Paulo: Abnl, 1 983. (C oleção O s Pensadores))
24
que importa verdadeiramente não é mais o momento da ação, mas aquele que o precede. Como precisa Lewis Mumford, a biografia se povoa assim de personagens menos sagazes e menos densos, talvez mesmo menos fiéis a um único objetivo existencial: “O indivíduo tal como se o concebia outrora, ser razoável, rigoroso e refletido, era como o universo newtoniano, mas é difícil conceber e explicar o novo indivíduo sob a ótica da física moderna. Por comodidade, o biógrafo tende incessantemente a limitar sua investigação ao movimento euclidiano newtoniano; mas, para tanto, é obrigado a ignorar que o sujeito se comporta, em certas relações, como um corpú sculo em mo vim ento e, em outras, com o uma onda .2ft Essas convicções, que traçam a via para anew biography e para adebunking life, são partilhadas pelos maiores biógrafos da primeira metade do século X X : Harold Nicolson, Philp Gued alla, Gam aliel Br adford, Giovanni Papini, Emil Ludwig, André Maurois, Friedrich Gundolf, Stefan Zweig. Como este último precisa, a biografia se reveste de acentos anti-heroicos: “Não tomo nunca o partido dos pretensos ‘heróis’, mas vejo sempre o trágico no vencido. Em minhas novelas, é sempre aquele que sucumbe ao destino que me atrai, em minhas biografias, o personage m que sobressai não no espaço real do sucesso, mas unicamente no sentido moral. Erasmo e não Lutero, Maria Stuart e não Elizabete, Castelion e não Calvino. É assim que não tomei por figura heróica central Aquiles, mas o mais obscuro de seus adversários, Tersita: o homem que sofre ao invés daquele que, por sua força e a segurança com que persegue seus fins, faz os outros sofrerem . É precisamente nesse período que certos biógrafos renunciam ao imperativo da verdade fatual, tão caro a Samuel Johnson, e reivindicam o direito, e até a obrigação, de imaginar o passado: “A ignorância - lê-se no prefácio d Eminent e Victorians - é a primeira necessidade do historiador, ela simplifica e clarifica, EnglishJournal
“ Lewis Mumford, “The Task of Modem Biography",
, 1934, XX
III, p. 45.
17 Stefan Zweig, Le M on de d'h ier. Souv enir s à'u n Eur opé rn (1944), traduzido do alemão por Serge Niêmetz, Paris , Belfond, 1993, p. 2132 14. O termo new biography procede de um artigo de Virgínia Wo olf sobre Some People (1927) d’Harold Nicolson, enquanto o termo debunker foi forçado por William E. W oodwa rd, na novela Bu nlr (1923 ), em que um dos pers onagens, Michel Web b. estud a uma famíli a de magnatas do au tomóvel desembaraçandose da imagem oficial (lo take the bunk out ofthat family by showing ir up on its true relations). Sobre a nova biografia, cf. Lionel M. Gelber, “History and the New Biography", Queen's Quarterly. 1930, XXXVII. p. 127144.
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O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTORIA
O UMIAII BIOGRÁF ICO
escolhe e om ite ".2MA biografia rom anc ead a não afasta apenas os historiadores,Mmas também os romancistas: paradoxalmente, quanto mais a biografia busca uma legitimidade literária, mais a literatura parece recusar-lhe tal legitimidade. É inegável que, apesar da fluidez de seu estatuto e de sua am bivalência em relação a outros géneros de escrita (ou talvez mesmo por causa disso), a biografia suscitou múltiplas hostilidades nos meios literários. Charles Dickens protestava já que as biografias pareciam todas escritas "por alguém que conviveu com as pessoas como vi zinho e não em seu foro interior". Mesma reprovação da parte de alt Whitman: "Detestei a maioria das biografias literárias, pois são tão men tirosas ,3' Mas, no início do século X X , as reações se fazem cada vez mais severas. Assim, Paul Valéry se queixa do tratamento anedótico reservado aos artistas: Espreita-os o biógrafo, que se consagra a tirar a grandeza, que os assinalou a seu olhar, dessa quantidade de pequenezas co muns e de misérias inevitáveis e universais. Ele conta as meias, as amantes, as tolices de seu sujeito.31 Faz, em suma, precisa mente o inverso do que quis fazer toda a vitalidade deste, que se gastou contra aquilo que a vida impõe de vis ou monótonas semelhanças a todos os organismos, e de diversões ou acidentes improdutivos a todos os espíritos. Sua ilusão consiste em crer que o que busca pode engendrar ou pode explicar o que o outro encontrou ou produziu.32
As acusações são esmagadoras e recorrentes: superficialidade, excesso de coerência, aborrecimento, falsidade, voyeurismo, (como Lytton Strachey,
Viaorims éminenis, op
rir. , p. 17 A opção l.ter ána é parti lhada por André
Mau-
* la h’W*pf"’ , Pans, A u sens parei], 1930. e será confirmada por Leon Edel. Biography, Londres, HartDavis. 1957. Ela será enricada por Paul Murray Kendall, U e An of Biography, New York, Norton, 1965.
C f Godtrcy Davies , u
D nC' nceton. Pmceion ^ m ,hre C «clnchie u„d
Biography
and History",
M od em Lan gu ag e Qu art erl y, 1940, I, p. 7994;
and History , mjosep h R Strayer (dir ), lh e Interp retat ion of History , Umversi ty Pr ess. 1943, p. 121 148; jean Ro mein, Die Biographie. Emfi.hnmg ihre Problema,i k. Berna, A. Francke. 1948. p. 8793. '
Jo hn A Ga rra ty, The Nalure of Biography, op. dl.,
p. 91 e 94.
' In ,ralKCS' Pock slBn‘f‘ca r. além de sujeito, tema, assunto, objeto ( subject), ou, ainda, súdito (N.T.).
coin o o inglês
Uterary
lembra, muitos anos mais tarde, o crítico inglês Terry Eagleton, as biografias excitam em seus leitores o desejo de espiar os hábitos sexuais do artista33). Uma perplexidade semelhante é expressa pela psicanálise. Mesmo Sigmund Freud, que funda, no entanto, o essen cial de sua reflexão sobre o estudo de casos individuais (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dostoievski, Thomas Woodrow Wilson, o presidente Schreber e sobretudo o pequeno Hans, O Homem dos ratos, Anna O., Dora, o Homem dos lobos...), proíbe Arnold Zweig de escrever um livro sobre sua vida, alegando que “[...] aquele que se torna biógrafo se obriga à mentira, aos segredos, à hipocrisia, mesmo à dissimulação de sua incompre ensão, poisàéidealização impossível eobter a verdade biográfica e, mesmo se a tivéssemos, ela não seria utilizável. A verdade não e praticavel, os homens não a merecem”.34 Desse coro compósito de vozes agastadas, duas questões se elevam. Concernem, por um lado, à ligação entre a biografia e a obra artística e, por outro, à capacidade da biografia de dar conta das relações humanas próprias à modernidade. Em 1908, Mareei Proust se exprime sobre o primeiro ponto quando reprova a Sainte-Beuve não ter compreendido a grandeza artística de Balzac, de Stendhal e de Baudelaire. Sob certos aspectos, nada há aí de muito novo: é por essa mesma razão que os irmãos Goncourt, Zola, Nietzsche e (sic). Henry James acusavam a crítica de ter uma alma “feminina” Entretanto, desta vez, não é apenas a sensibilidade de Sainte Beuve que é posta em questão. O que está no banco dos réus é seu método, que faz do autor (digamos antes: daquilo que se sabe de sua vida) um princípio de inteligibilidade da obra: É absurdo julga r o poeta pelo homem ou pelo que dizem seus amigos. Quanto ao próprio homem, não é mais do que um homem e pode perfeitamente ignorar o que que r o poeta que vive nele . Proust recusa a ideia de “pedir à biografia do homem, à história de sua família, a todas 15 Terry Eagle ton, "The Tale o
f a Tub Thum
per",
1’aul Valéry. Ma uv aue s p em ées et autre s. m Oeuvres, Pans, Gall.mard. 1942. p. 9394.
26
The Guardian IVeekly,
13 de setembro de 1998.
“ Sigmund Freud e Arnold Zwe.g. Corre sponda* '. 19 27 W 9 (1968), traduzido do alemão por Luc W eibel, Pans, Gallimard, 197 3, p. 16 7. Sobre a atit ude de Freud em relaçao a biogr afia, cf. Mano Lavagetto, Freud, la letteralura e altro, Turin, Einaudi, 1985, p. 272275; e a introdução de Use Barande à Revue F,an(aise de Psychanalys e. 1988, 1. número especial "Des biographies".
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BIOGRAFIA A HISTÓRIA
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suas particularidades, o entendimento de suas obras e a natureza de seu gênio ”.35 Não basta catalogar os hábitos e as frequ entaçõ es de um artista para captar o sentido de sua obra, pois “nossa pessoa moral se compõe de várias pessoas superpostas. Isso é talvez mais sensível ainda no caso dos poetas que têm um céu a mais, um céu intermediário entre o céu de seu gênio e aquele de sua inteligência, de sua bondade, de sua fin ess e diárias: sua prosa”.36 Isso significa que o eu íntimo do artista escapa aoeu cotidiano: “Só se o encontra fazendo abstração dos outros e do eu que conhece os outros, o eu que esperou enquanto se estava com os outros, que a gente sente bem ser o único real, e para o qual apenas os artistas acabam viven do, como um deus que eles deixam cada vez menos”.3^Destacada da personalidade do autor, a obra artística exige ser avaliada em si mesma, par a além de toda referência biográfica imediata: “U m livro e o produto de um outro eu que não aquele que manifestamos em nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios”.38 Infelizme nte, ao longo do século XX , o eu mais profu ndo de que fala Proust toma-se frequentemente um eu impessoal, abstrato, incorporai - com o se uma obra de arte pudess e nasce r espontaneamente do nada. A sedução da impessoalidade convence uma parte da crítica literária a banir toda leitura biográfica: para o assim chamadoNew Criticism, a personalidade e as emoções do artista contam tanto quanto a cor de seus cabelos; o que importa é a obra. William K. Wimsat e Mo nroe C . Beardsley afirmam-no sem desvios em 1946: as questões concernentes ao desígnio do autor são falaciosas. Donde a acusação de intentionalfallacy: “Avaliar um poema é a mesma coisa que julgar um pudim ou um aparelho”. A obra de arte só funciona e só é compreensível quando despojada de todo traço de subjetividade —do autor e do crítico. Como se faz com os grumos de um pudim: “O poema não pertence nem Mareei Proust. Contre SamteBeuve Ibid., p. 168169.
(190H), pam . Gallmiard, 1954
p 122
Ibid., p. 131 Ihd., p. 127. C“ re '0ma ° tÍ ,U) 0 d e “m llvr ° * John Ran som, 7 7., New Cnticism (1939). M 11 °nn) > ree nw oo d Press, 19 79 . Cf Ja cq ue s Ba rz un . "B io gr ap hy and C nt ic ism a Misalli ance Disputed". C n nccl Inqu.ry. 1975. 1. 3. p. 479496.
28
ao crítico nem ao autor (destacou-se do autor ao ser escrito e vai pelo mundo independentemente de sua faculdade de decidir sobre ele ou controlá-lo). O poema pertence ao público. Manifesta-se na linguagem [e] é um objeto de conhecimento público”.40 Nos anos 1960, é a vez de Roland Barthes que, em diversas ocasiões, declara que a história literária deve renunciar à noção de indivíduo. Em seu ensaio sobre a morte do autor, enuncia que não existe nenhuma matriz de sentido: a escritura é uma atividad e contra teleológica que dissolve toda identidade, inclusive aquela do corpo que escreve. A figura do autor é abolida; em seu lugar, há o escritor que nasce no livro. Quanto ao leitor, ele também é concebido como instância impessoal, “um homem sem história, sem biografia, sem psico logia” (e, por essa razão, livre para gerir à vontade os sentidos do text o).41 Emb ora exaltando nos anos su bseque ntes as caracterí sticas individuais (os célebres biografemas), Barthes não cessa de reiterar suas convicções antibiográficas até em sua autobiografia: a infância não é contável, e o “tempo do relato (da imagética) acaba com a juventude do sujeito: só há biografia da vida improdutiva. A partir do momento em que produzo, em que escrevo, é o próprio texto que me despossui (felizmente) de minha duração narrativa . O segundo ponto, concernente à capacidade da biografia de restituir as relações humanas próprias à modernidade, é formulado em termos particularmente claros por Virginia Woolf. Filha de Leslie Stephen, o editor doDictionary o f National Biography, amiga de Strachey e de Harold Nicolson, ela sublinha, em diversas ocasiões, que a psicologia humana mudou: Não quero dizer aqui que saímos uni belo dia, como se sai num jardim para ver que uma rosa floriu ou que uma galinha pôs
" Mon roe C . Beardsley, “The Intentional Fallacy”, in William Kurt z Winisat a nd M.C. Beardsley, Th e Verbal leon. Studies in lhe Meaning ofPoetry (1946). Lexington. Um veroty of Kentucky Press , 1954, p. 45. 41 Roland Barthes, “La mort de l' auteur" (1 968), in Le Bruissement de la langue, Pans, Édmons du Seuil, 1984 A idei a de amputar a li teratura do indiví duo é igualmente elaborada por Roland Barthes in "Histoire ou littérature?". Swr Racine. Paris. Éditions Du Seuil, 1965. Cf. na mesma ordem de ideias , Paul de Man, “Autobiography as Dcfa ccm ent (197 9), The Rheíoric of Ri mantiasm, N ew Y ork, Colum bia Um vemty Pres s. 1984, que define a escri tura bi ográfi ca como uma operarão dc travestismo. Roland Barthes par Roland B,mhes, Pans, Édmons du Seuil, 1975, p. 6. Cf. Françoise Gaillard, “Roland Barthes: le biographique sans la biographie” , Revue des scienc es humaines, 1991, 224, p . 85103.
o o
O
PEQUENO
x - Da
O LIMIAR BIOGRÁ FICO
biografia a história
um ovo. Não, a mudança não foi tão súbita, tão nítida. Não obstante, houve uma mudança e, já que não podemos precisar melhor, datemo-la do ano de 1910. [...] Todas as relações hu manas se alteraram: entre mestres e servidores, entre marido e mulher, entre pais e filhos. E quando as relações humanas mudam, há ao mesmo tempo uma mudança na religião, na conduta, na política e na literatura.43
Ora, a biografia está em condições de encarar tal mudança? Pode dar lugar a uma nova forma de narração capaz de exprimir as con tradições da vida? A questão está longe de ser simples e é abordada inicialmente em termos literários. Flush escora o projeto irreverente danew biography: o herói não é nem um homem célebre nem um homem qualquer, mas um Cocker ruivo, o cão da “mais célebre poetisa da Inglaterra, Elizabeth Barret, a adorada em pessoa”; e suas peregrinações são um pretexto para denunciar o profundo fosso (higiénico, arquitetural, económico e cultural) que separa o mundo respeitável de Wimpole Street do bairro miserável de Whitechapel, formado “de espécies de estrebarias em ruína onde rebanhos de seres humanos viviam sobre rebanhos de vacas à razão de dois metros quadrados para cada duas pessoas”.44Orlando, escrito dois anos antes, é um livro bem mais ambicioso. Ele toma a figura do biógrafo, dedicado a reconstruir a vida de um indivíduo de seu nascimento até a morte. Como se faz para contar a vida de uma pessoa que muda de sexo e de condição social, que um dia traja um costume cor de tabaco, à maneira dos juizes, e no dia seguinte umpeignoir chinês equívoco ou ainda um vestido florido de seda? E que vive, como se nada de especial houvesse nisso, durante quatro bons séculos, da época elisabetana a 11 de outubro de 1928, passando pela Restauração r pelo úmido século XIX? O que quer que diga o Diciotiary of " Virgi ni.i Woo ll. Mr Br ,m el and M n Brou m (1924), in Rose C elli. Pans, Editi ons du Seuil. 1991, p. 4445.
National Biography, a duração da vida humana não é talvez tão evidente quanto parece e nem sempre coincide com a escansão nascimento e morte biológica... Sem dúvida, as possibilidades mentais (inclusive aquelas que concernem ao tempo e ao espaço) são bem mais vastas e profundas do que os fatos venerados pelos biógrafos: “Uma biografia é vista como completa quando dá conta simplesmente de cinco ou seis eus, quando um ser humano pode ter milha res deles”... 45 Co m mais forte razão, quando a pess oa em questão passa seu tempo a pensar em lugar de agir. Mas que pode fazer o biógrafo quando seu herói o colocou na situação em que nos coloca agora Orlando? A vida —todos aqueles cuja opinião tem algum peso estão de acordo quanto a isto - a vida é o único tem a que convém ao romancista ou ao biógrafo; viver, decidiram as mesmas autoridades, não tem nada em comum com se sentar numa poltrona e pensar. [...] Se portanto o herói de uma biografia não consente nem em amar nem em matar, e se obstina em querer apenas pensar e imaginar, devemos concluir que ele, ou antes que ela não vale mais do que um cadáver, e abandoná-la.46
As considerações sobre os limites da verdade biográfica são ainda o objeto de vários ensaios: The Lives of the Obscure , The Neu> Biography, The Art o f Biography. Este último coloca a questão em termos precisos: a biografia é uma arte? Por que produziu tão poucas obras primas imperecíveis? Como pode ser que mesmo o doutor John son de Bos wel tenha uma duraç ão de vida me nor que a do Falstaff de William Shakespeare? Por certo, a biografia é uma arte ainda jovem: “O eu que escreve um livro de prosa se manifestou numerosos séculos após o eu que escreve um poema”. Mas não se trata unicamente de inexperiência. De fato, “a arte da biografia é a mais restrita de todas as artes”. Os livros de Strachey são prova disso. Enquanto sua obra sobre a rainha Vitória é particularmente
VA rl du ro man, traduzido do inglês por
“ Virginia Woolf. Flush, bugraphie (1930), traduzido do mglês por Charles Mauron, Cíermame Mamam e C olette Mane Huet in L ’Oeuvre romanesque , Paris, Stock, 1979, p. 2962. Dez anos Atpo.s, Rob en Musil consi dera a possibi lidade de escrever a b.ograf ia de u m co rvo: cf. TaVebuchrr, Ap ho nsm tn, Ess ays und Re de », editado por Adolf Fnsé, Hamburgo, R ow ohlt Verlag, 19 55. Heft 35, p. 5235 41. 6
*■ Virgí nia Woolf,
Orlando (192 8), traduzido do inglê s por Charles Mauron. Pans. Stock. 1
' H»d., p. 263. Cf. Flonane Reviron, Yictorians?, in Frédérie Regard (dir.), tions, rcconfiqurations du soi artistique, 1999, p. 117140.
992. p. 284.
"Orlando" de Virgini a W oolf (19 28): une ríponse i Eminenl lui Biogrtiph ie littè raire cn Art glet crrr (XV ITX X). Configura SaintE ticiine, Publicattons de ! univcrsité de Saint Etienne,
O PEQ UEN O x -
Da
biograf
O LIMIAR BIOGRÁFICO
ia à história
brilhante, aquela que consagra a rainha Elizabete é um verdadeiro fracasso, mas “parece que o fiasco é imputável não a Lytton Strachey, mas à arte da biografia. EmVictoria ele tratara a biografia como uma técnica: submetera-se a seus limites. Em Elizabeth, tratou a biografia com o uma arte: desdenhou seu s limites”. Virginia W oo lf atrai assim a atenção para um ponto extremamente delicado: a impossibilidade estética de conciliar os fatos e a ficção. A biografia impõe certas condições, e estas implicam que ela deve se fundar nos fatos. E, por fatos, entendemos fatos que podem ser controlados por outras pessoas além do artista. Se o biógrafo inventa fatos como os inventa um artista —fatos que nenhuma outra pessoa pode controlar —e tenta combiná-los com fatos de outro tipo, eles se destroem reciprocamente.
inelutável: “É uma sujeição falaciosa a que nos dobramos”. Enfim, ela reduz a vida a uma séne de ações: Outro lugar comum absurdo quer que o indivíduo seja aquilo que fàz. Tudo aquilo de que temos medo, todos nossos desejos mais loucos, todas nossas angústias: é esse conjunto de coisas, que nossa biografia não reflete, que faz a pessoa. Provavelmente um indivíduo jamais fez isto ou aquilo porjamais ter ousado se amscar. Mas mesmo se jamais teve a coragem, o que não fez é talvez tão importante quanto aquilo que fez. Quero dizer que a diferença entre as coisas feitas e as coisas não feitas não significa que aquelas são verdadeiras e estas não. [...] Um sonha em ser Nero e reduzir a cinzas toda a cidade de Zurique, o outro quena apenas ser campeão de boxe e isso também faz part e dele, mas nem um é N ero pondo fogo em Zurique nem o outro jamais ganh ará uma luta d e box e.4*
Existe um limite necessário que deve ser respeitado: Uma vez que o personagem inventado vive num mundo livre onde os fatos são controlados por uma única pessoa —o próprio artist a —, sua autenticidade reside na v erdade de sua visão. O mundo criado por essa visão é mais raro, mais intenso, inteinço em relação ao mundo que é em grande parte feito de informações autênticas fornecidas por outros. Por causa dessa diferença, os dois tipos de fatos não se misturam; se eles se tocam, se destroem. Ninguém, parece ser a conclusão, pode obter o melhor dos dois mundos.
III
Ao longo do século X X , essas reflexões vão angariar o sufrág io
A fronteira que separa a história da biografia também se mos trou incerta e conflituosa. As razões são diferentes daquelas alegadas pelos romancistas. Concernem essencialmente à qualidade científica da verdade. Tucídides manifestava um desprezo absoluto pela bio grafia: em seu programa de uma historiografia exata, impessoal e universal, deixava bem pouco lugar para um género narrativo que buscava agradar um público popular. Dois séculos mais tarde, Políbio escreve que a história biográfica, fundada sobre os meios do teatro trágico, confunde poesia e história. Suas considerações provem de uma discussão mais ampla, aberta no seio da historiografia grega, que via o ideal doverdadeiro como oposto àquele do verossímil procurado pelo sofista Gorgias: à diferença do que haviam sustentado certos
de numerosos romancistas. Max Frisch recordou estrutural do género biográfico. Fiel aos fatos, aa inevitável biografia pobreza achata a vida. compreendemos bem melhor um indivíduo “contando enor midades de toda espécie . Em segundo lugar, ela dá uma imagem demasiado necessária da realidade, como se o fato ocomdo fosse
historiadores dos séculos IV e III a.C (tais como Filarco ou Duris de Samos), preocupados em dramatizar o relato, Políbio pretende estabelec er e transmitir uma verdade objetiva.4 9 A distinção entre a história e a biografia é por vezes também reivindicada pelos pró prios biógrafos. Na época imperial, Plutarco demonstra bem pou co
A vida da biografia é, por conseguinte, diferente da vida da poesia e do romanc e, é uma vida vivida num grau de tensão inferior” .47
Virgíni a Woolf, The Art of Biography". At lan tic Mo nth ly, 1939. CL XIII, p 506 510. Cf. igualme nte Vir gínia Woo lf, “The L.ves of the Obscure”. m . Dial, 1925. LXXV1II. p. 381390; rgm.a Woolf, The New B.ography", Nrw HerM Tri b„ne. 30 de outubro de 1927, retomado p. 149155. em C ran.tr and Rainbow, Londres. Hogarth Press, 1958.
Max Fnxch, "L’io nfiutato", Unea d'ombra"t 1996, 119, p. 2029. Arnaldo Monugluno, La N aissance de la biographie en Grèce ancienn t’ (1971), traduzido do inglês por Este lle Oudot, Strasbourg, Circé, 1
991.
O PEQ UEN O x -
Da
biografia
à história
interesse pelos fatores estruturais e reivindica o primado dos signos da alma sobre a etiologia política: Não escrevemos Histórias, mas Vidas, e não é sempre pelas ações mais ilustres que se pode trazer à luz uma virtude ou um vício; muitas vezes, um pequeno fato, uma palavra, uma bagatela, revelam melhor um caráter do que os combates mortíferos, os confrontos mais importantes e os cerco s das cidades. Os pintore s, para captar as semelhanças, fundam-se no rosto e nos traços da fisionomia e quase não se preocupam com as outras partes do corpo; que nos permitam também, da mesma maneira, agarrarmo-nos sobretudo aos signos que provêm da alma e nos apoiarmos neles para retraçar a vida de cada um destes homens, abandonando a outros os acontecimentos grandiosos e os combates.50
As proposições dos pensadores da Antiguidade conheceram fortu nas diversas junto aos historiadores modernos. A desconfiança em rela ção à biografia é assim reiterada em 159 9 p or John Hayward, apelidado Life and Reigne o/King Hetirie III, de o "táci to inglês”, que, em seu livro exorta a não confundir “o governo das grandes nações” com “a vida e os feitos de homens célebres”.31 Um século mais tarde, Thoma s Burnet, capelão de Guilherme III, atribui um lugar importante à história, mas reconhece apenas um valor secundário, ornamental, à biografia: As vidas dos filósofos, os nascimentos, as mortes, os elogios, as viagens, as ações boas ou más e outras coisas do mesmo género completam e embelezam a matéria, mas são de pouco peso, pois trata-se aqui de buscar os germes e os progressos do conhecimen to humano e o governo da Providên cia.5 2
No entanto, a separação proclamada por Políbio entre biografia e história nem sempre é aceita. No século VIII, Beda, o Venerável, escreve que a biografia nada mais é do que a história observada de mais perto; e na época moderna, os principais trabalhos de paleo grafia, de diplomática e de historiagrafia (de Jean Bodin a Agostino Mascardi e a Mably) tomam a biografia por uma forma perfeitamente
O LIMIAR BIOGRÁ FICO
legítima de escritura histórica. No século XVII, Thomas Stanley, filólogo inglês conhecido por sua edição crítica das tragédias de Esquilo, chega ao ponto de definir a biografia dos legisladores, dos condottieri e dos eruditos como a forma mais elevada de história.53 Que o destino individual dos homens ilustres permite compreender as escolhas de uma nação é um ponto de vista a que adere também a maior parte dos pensadores do século seguinte. David Hume sustenta, assim, que a espiritualidade pessoal de Carlos I arruinou a causa absolutista na Inglaterra. Alguns decénios mais tarde, é a vez de Voltaire. Ainda que não celebre nenhum culto dos heróis, estima, todavia, que as grandes almas permitem reconhecer as surpresas da história, esses acontecimentos imprevisíveis, tão determinantes num domínio em que o que é verossímil nem sempre advém.54 Assim, durante séculos, sucedem-se os mesmos conflitos de confins. Depois, quando o pensamento histórico atinge seu apogeu, a fronteira entre biografia e história se incendeia sob o impulso de três forças dessemelhantes que fazem da totalidade a categoria ex plicativa do devir histórico.55 A primeira dessas forças é de caráter político. Após a afirmação do pov o como sujeito social, a história biográfica se reveste de uma tonalidade elitista que se choca contra o desejo de fraternidade e igualdade. Na “Introduction La à Philosophie de Vhistoire de Vhumanit è de Herder”, Edgar Quinet o exprime claramente: “O despotismo reduzira a história a uma forma degradada de biografia ”. 56 Con tra a versão monárquica da história, Jules Michelet prega o heroísmo coletivo: as massas são o verdadeiro sujeito da históna, enquanto “que os grandes nomes fazem poucas coisas, que os pretensos deu ses, os gigantes, os titãs (quase sempre anões) só enganam quanto a u Sobre a hist oriografia da Idade Média e da Rena scença , cf. Donal R. Kelley, Foundati ons ofMode m Historica l Scholarship. Latiguage, Ltiw and History in the Frettíh Renaissattce, New Y orkLondre s, Co lumbi a Universit y Press , 1970 , X1 L37 0; Dems Hay, Ann alis ts a nd Hist orian s. West ern Hist orio grap hy Jro m the Eig ht to the Eig hte ent h Cen tur ies, Londre s, Methuen & Co., 1977. * Sobre a historiografia das Luzes, cf. Fnednch Meinecke,
Vies parallèles, Pans, GaLlimard, 2001, p. 1227. Cf. John Garraty , The Nalure of Biography, op. rir, p. 70. Plutarque,
.
Cf. Mano Longo, Hisloria philosophiae philosophira: t Sellecenlo, Milan, IPL, 19H6, p. 39.
teorie e melodi delia sloria delia filosofia Ira Seiceiito
Munique, R . Oldenbourg, 1
965, cap. II, IV e
Die Entstehung des Histonsmus
(1936),
V.
Pans, Vrin, 1971. Les Métaphores de forganisme, Edgar Quinet, “Introduction à La Philosophie de rhistoin de rhtímanitê complètes. Paris, Pagnerr e Éditeur, 1 857, p. 348.
‘5 Cf. J udith Schlanger,
de Herder". in
Oeuvrrs
O
PEQUENO
x - Da
bografia
O UMJAR BIOGRÁF ICO
à história
seu tamanho içando-se por fraude sobre os ombros dóceis do bom gigant e, o Pov o” .57 Ainda que em seu Diário se mostre bem mais nuançado, a ponto de escrever, em 30 de março de 1842: “Errei ao ligar demais este princípio (a humanidade é sua própria obra) ao aniquilamento das grandes individualidades históri cas ” ,5Mele persiste, nas suas obras históricas maiores, reivindicando a natureza coletiva, frequentemente impessoal, do povo: Está aí a primeira missão da história: encontrar, através de pesquisas conscienciosas, os grandes fatos da tradição nacional. Esta, nos fa tos dominantes, é mui to grave, mui to segura, de uma autoridade superior a todas as outras. [...] Quem poderia dar o mesmo peso a essas vozes individuais, parciais, interessadas, que à voz da França? [...] Sem negar a influência possante do gênio individual, não há dúvida de que, na ação destes homens, a parte pnncipal se deve entretanto à ação geral do povo, do tempo, do país. [...] Todo estudo individual é acessório e secundário diante desse profundo olhar da França sobre a França, dessa consciência interior que ela tem do que fez.59
Michelet não está isolado. Durante a Restauração, a intimação de Anacharsis Cloots, “França, tu serás feliz quando estiveres curada dos indivíduos”, colocada em epígrafe ao Tyran, é retomada por outros historiadores como Auguste Mignet ou Augustin Thierry.*'" A segunda força procede da filosofia. Em seu curto ensaio sobre a finalidade da história, escrito em 1784, Kant descreve o homem como um meio pelo qual a natureza realiza seus fins, e afirma que a história deve se elevar acima do indivíduo e pensar em grandes proporções, pois o que se revela confuso e irregular Ju les Mi ch ele t. Histoire romaine (1833). in Oeiwres Complètes, Robert Casanova, Pa ris, Flammanon, 1972. t. II, p. 335 .
sob a direção de Paul Viallaneix e
Ju les Mi ch ele t, Jou rna l, sob a dire ção de Paul Viall aneix e Claude D igeon, Paris , Gallimard, 1959, p >411 No prefácio a s ua tradução da s obras escolhidas de Vico , Mic helet escrev ia: "A palavra da Sae"'a m40v‘>c; * humanidad e é sua própna obra ... A ciência social data do dia e m q ue essa grande deia foi expressa pela primeira vez. Até então a humanidade acreditava dever seus progressos aos ca os do génio individual . Cf. Giambattista Vic o, Príncipes de la philosophie de 1’histoire, Paris, J Renouard, 1827. Jul es Mi ch ele t, H,stoire de la Rholution Fran(aise
(1847), Pans. Gallimard, 1952, p. 286288.
U Jy ra" P«face de 1869, ,n Histoire de la Rèvolution Française, op. ce («er ard, Le gra nd homme et la conception de 1'hi stoir e au X IX ' siècle”, evue du dix.neuviime siicle, numéro special "Le grand homme”, 1998, n. 100, p. 3148.
rir., p 1<><>4. Romantisme.
entre os indivíduos constitui uma sequência unitária e homogénea de acontecimentos na totalidade da espécie: “Os homens, tomados individualmente, e mesmo povos inteiros, nem imaginam que per seguindo seus fins particulares em conformidade com seus desejos pessoais, e muitas vezes em prejuízo de outrem, conspiram, à sua revelia, com o desígnio da natureza”.61 A preponderância de uma visão teleológica da história con tribui ainda mais para reduzir o alcance do aspecto biográfico. Após ter confirmado a unidade a priori da história, Fichte nega o valor autónomo do singular em face do universal: somente o progresso da espécie conta, não a vida dos indivíduos. Acontece o mesmo com Hegel para quem a materialidade da existência deve ser sacrificada em beneficio doWeltplan : os indivíduos for mam uma massa supérflua e não devem eclipsar os objetos dignos de história. Quando os acontecimentos do mundo, até os mais distantes ou aberrantes, são dialeticamente integrados numa pers pectiva teleológica (o desenvolvimento infinito e necessário do género humano), os indivíduos (mesmo os grandes personagens históricos, que coincidem com o universal superior, como Cesar ou Napoleão imortalizado no campo de batalha de Iena) podem ser compreendidos como instrumentos da razão que cumprem seus desígnios mesmo sem compreendê-los: Aquilo a que os indivíduos que marcam a história tendem inconscientemente não é o que querem conscientemente, mas alguma coisa que é-lhes necessário querer sob o efeito de uma pressão que parece ser cega e que, no entanto, vê mais longe que os interesses pessoais conscientes. E a razão pela qual tais homens realizam aquilo que é almejado através deles, dando provas de uma compreensão instintiva. Agem de maneira histórica, empurrados pela potência e pela “astúcia da razão" (List der Vemun/t), que é o conceito racional da providência.'’2
Immanue) Kant, Idée d ’une histoire universelle au poittt de vue cosmopolitique (1784), in La Philosophie de I histoire, traduzido do alemão por Stephan Piobetta, Paris, DenoélGonthier, 1947, p. 2627. Sobre a particularidade do tinalismo kantiano, ct. Ludwig Landgrebe, Plianomenologie und Geschichte, Giiter sloh, Giitersloher Verlags haus Gerd M ohn, 1968, cap. III. Karl Lòwith, Histoire et salut. Les présupposés théologiques de la philosop hie de 1'histo irv (1949 ), traduzido do ale mão por Man eCh nstine C halliolGiUet. Sylvie Horct el e JeanFranç ois Kervégan, Pans, Gallimard, 2002, p. 8384.
O
PEQUENO x
- Da
biografia à história
O UM1AR BIOGRÁFICO
Nessa concepção teleológica do devir como trabalho gradual através do qual a humanidade realiza seus fins superiores, o indivíduo é inteiramente submetido à lei. Uma lei dramática e implacável, pois que isenta de elementos acidentais. A omissão da pessoa coincide quase sempre com a negação do acaso ou, pelo menos, com sua marginalização tendencial: o resultado da batalha de Waterloo foi certamente
A última força é aquela da ciência. Como pressente Johann Gustav Droysen, “nossa disciplina mal se liberou do enlace filosófico-teológico e eis que as ciências da natureza já querem se apropriar dela ” .65 Na realidade, mais do que da ciência, o perigo provém, sobretudo, de certas disciplinas sociais nascentes, como a demografia ou a sociologia, desejosas de adquirir um estatuto científico incontestável. Nos anos 1830, Adolphe Quételet foija a noção de homem médio, na esperança de elaborar umamecânica social que estivesse em condições de definir as leis que regem a física, intelectual e moral: “O
condicionado pelas chuvas torrenciais que caíram na noite de 17 para 18 dejunho de 1815, mas essas gotas de água foram enviadas pelo deus da História... Victor Hugo exprimiu de maneira poética esse tipo de expectativa fundada no papel da Providência. Após ter contado que Oliver Cromwell queria ter partido para a Jamaica, e Mirabeau, para a Holanda, mas que um veto régio os obrigara a renunciar, comenta:
homem que considero aqui é, na sociedade, o análogo do centro de gravidade no corpo; é a média ao redor da qual oscilam os elemen tos sociais: será, se assim quiserem, um ser fictício para quem todas as coisas se passarão em conformidade com os resultados médios obtidos pela sociedade .66 Essa noção de homem médio acarreta o sacrifício oficial de tudo o que é demasiado particular ou anómalo:
Como observou Karl Lõwith, o marxismo não constitui uma ruptura em relação à filosofia clássica alemã quanto a esse ponto: “O princípio mais geral de Marx é o mesmo de Hegel: a unidade da ra zão e da realidade, da essência universal e da existência particular”.63
Ora, drai Cromwell da revolução da Inglaterra, tirai Mirabeau da revolução da França, tirais talvez, das duas revoluções, dois cadafalsos. Quem sabe se a Jamaica não tena salvo Charles I, e a Batávia L uís XVI? Mas não, é o rei da Inglaterra que quer guarda r Cromwell; é o rei da França q ue quer guardar Mirabeau. Quando um rei está condenado à morte, a providência venda seus olhos.
Em suma, por trás do acaso, há sempre a mão de Deus: E! Quem não sente que nesse tumulto e nessa tempestade, no meio desse combate de todos os sistemas e de todas as ambições que faz tanta fumaça e tanta poeira, sob esse véu que esconde ainda dos olhos a estátua social e providencial apenas esboçada, atrás dessa nuvem de teorias, de paixões, de quimeras que se cruzam, se chocam e se entredevoram na espécie de luz brumosa que rasgam com seus clarões, através desse barulho da palavra humana que fala ao mesmo tempo todas as línguas por todas as bocas, sob esse violento turbilhão de coisas, de homens e de ideias que chamamos o século dezenove, alguma coisa de grande se cumpre! Deus permanece calmo e executa sua obra.M
Devemos, antes de tudo, perder de vista o homem tomado isoladamente, e considerá-lo unicamente como uma fração da espécie. Despojando-o de sua individualidade, eliminaremos tudo o que é apenas acidental; e as particularidades individuais que têm po uca ou nenhuma ação sobre a m ass a se ap agarão por si mesmas e permitirão apreender os resultados gerais.57
Ao longo dos decénios seguintes, a ideia de hom em médio angana numerosos sufrágios. Convencidos de que os seres humanos não se esquivam à lei universal de causalidade, Henry Thomas Buckle, Grant Allen, Paul Mougeolle, Louis Bourdeau, Paul Lacombe se debruçam sobre a força das pressões exteriores, especialmente de ordem geográfica, e apresentam os seres humanos como formigas que tecem anonima mente a trama da vida social (a exemplo das células que reconstituem
Joh ann Gu stav Dr oy sen , Histohk. Die Vorlesungcn von 185 7, cd. Por P. Leyh, StuttgartBad Constatt, 1977; Texte sur Ceschichtstheorie. Mit untfedmcktcn Xíalenalen zur "Hisíonk , cd. Por G . Uirtsch e J. Riisen, Gõttingen, 1972, p. 16. Adolphe Quételet, Sur
Ibid., p. 77. eu bh e par'AnÍón^R
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j" ^ '7°' ^ ‘,é, a,u,e e l phi^op hie mflées, James, t. II, 1ans, Klincksieck, 1976, p. 285 , 331.
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1‘homme et le dtveloppement de ses facultés ou Essai de physique soaate,
Pans,
Bachelier. 1835, p. 21. Ibid., p 4. Sobre a noçào de homem méd io, cf. Maurice Halbwachs, La Théorie de I homme moyen. Essai sur Quételet et la statistique morale. Paris, F. Alcan, 1913; Guillaume Le Blanc, L Esprit des Sciences humaines, Pans, Vrin, 2005, p. 164174.
O LIMIAR BI OGRÁFICO
O PEQUBMO X - D a BIOGRAFIA à HISTÓRIA
os tecidos orgânicos).68 Segundo Herbe rt Spencer , o mes mo se dá em relação aos grandes homens: “No mesmo grau que toda a geração de que forma uma pequena parte —no mesmo grau que as instituições, a língua, a ciência e os costumes - no m esm o grau que a multidão das artes e que suas aplicações, [o gênio] não é mais do que uma resultante de um enorm e agregado de forças que já agiram juntas durante séculos”.69 Em tal perspectiva, a ciência deve explicar o homem médio de cada raça, renunciando às variações morfológicas e às diferenças individuais: por mais importante que seja uma pessoa, seus pensamentos e suas ações não apresentam nenhum interesse histórico. Por um deslizamento lin guístico significativo, os “signos que provêm da alma” de Plutarco, já rebaixados à categona de anedotas por H egel, tom am -se idiossincrasias pessoais a nivelar, e mesmo a eliminar. C om o escreve John Fiske, autor de numerosos livros de história dos Estados Unidos, será possível assim realizar uma grande revolução histonográfica: A partir da metade do século X IX , a revolu ção desencadeada no estudo do passado foi tão grande e tão total que se assemelha à revolução realizada na biologia, sob o comando do Sr. Darwin. O intervalo no conhecimento que separa o trabalho de Edward Freeman [o historiador dos Normandos] em 1880 daquele de Thomas Babington Macaulay em 1850 é tão profundo quanto o intervalo que separa John Dalton e Humphry Davy dos ini ciadores do flogístico. Nos trabalhos mais importantes oriundos dessa imensa mudança —como aqueles de Sir Henry Maine e de William Stubbs, de Fustel de Coula nges e de M aure r —a biografia ocupa um lugar subordinado ou não desempenha papel algum."
No seio desse debate, dois elementos merecem ser evocados. Em primeiro lugar, o peso da reflexão sobre a raça. O caso maisa interes sante l sem dúvida alguma aquele de Spencer que, durante guerra anglo-boer, acusa o governo inglês de rebarbarization. No segundo
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uUC klC H'S'0ry °f Nanon Maklng
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Bxglond. Londres, John W. P arker & Son. 1858, Popular Science j Ma ga zin e, 1878 (retomado em
■ P1 2 ,'1 26);G ra m A1,en'“ T h e G e n «l s°f G e n iu s". Lo. m rw ,4c P .'■'. L'* 1 Pa ul MoUgeolk Us ‘^ lèm es de rhis loi re, Pans, C. Rcinwald, 1886; Paru F AL- " i uut> "tf" Essai critique sur 1'hisioire considérée comm f science positivt* „ . JU‘ Ljcomb e' Df 1’hisloin considérée comme Science, Pans, Hachette, 1894.
^ *,lslonens
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" Sp”“ " ^«roduction d la science soaale « ■ e, ‘Sociology and Herowo rship",
(1853). Pans. bailliere, 1877, p. 36. Atl ant ic Mo nth ly, janeiro 1881, p. 81.
capítulo deThe Study o f Sociology, Spencer constata que Newton não podena ter nascido numa família de Hotentotes, Milton entre os in sulares de Andaman, um Howard ou um Clarclcson nas ilhas Fiji. Até aí, o raciocínio nada tem de surpreendente: como acabo de assinalar, as considerações relativas ao m eio estão longe de ser novas. Mas, algumas linhas adiante, o meio se reveste das marcas da raça física: “E impossível que um Anstóteles provenha de um pai e de uma mãe cujo ângulo facial meça cinquenta graus, e não há a menor chance de ver surgir um Beethoven numa tnbo de canibais cujos coros, em fàce de um festim de carne humana, se assemelham a um grunhido rítm ico” .71 E não é tudo. cunosidade é descrita como um típico Adas pnmeiras biográfica raças históricas: os afrescos dosfenómeno egípcios, tribal, a pintura mural dos assírios ou a epopeia grega nos ensinam “incidentalmente que havia cidades, barcos de guerra, carruagens de guerra, marinheiros, soldados a comandar e a massacrar; entretanto, a finalidade direta é pôr em evidência os triunfos de Aquiles, as proezas de Ajax, a sabedoria de Ulisses e outras coisas análogas”.72 Pou co a pouco , a ideia de que o pensamento abstrato, impessoal seria um dos caracteres salientes das civilizações supenores, toma-se uma convicção coletiva.7' O segundo elemento digno de interesse remete à dupla leitura de Darwin. Fiske a mobiliza com fins antibiográficos: tudo o que é individual se reveste, para ele, de um aspecto superficial e apres sado. Outros autores, entretanto, remetem-se à teoria da evolução para reduzir o alcance do determinismo geográfico. E o caso de William J ame s em dois breves ensaios escritos nos anos 18 80 em que sublinha que, a exemplo justamente da variação espontânea, o gênio é a única e verdadeira causa da mudança social. Sustenta, por outro lado, que, longe de desempenhar papel determinante na produção das qualidades humanas, as condições ambientes têm apenas uma função de seleção: “Afirmo que, de maneira geral, o meio ambiente é exatamente, em relação ao homem de gênio, o que ele é em relação às ‘variações’ da filosofia darwinista. O meio
Herbert Spencer, A.l ant tc Mo n.h ly, 12 Ibid ., p. 32.
íntroduction íJ la science soaale, op.
rif., p. 36.
Encontramos esta ideia igualmente em Edward H. Carr in Qu'estce que Chisioire? Cotifhertces pwnoncés á IVniversitê de Cambridge (1961) traduzido do inglês por Maud Sissung, Paris, La Découverte, 1988. Sobre a pretensa superioridade do pensamento abstrato, cf. George L. Mosse, Touwd the Final Solution. A History oj European Rticism, Londres, Dent, 1978.
O LIMIAR BIOGRÁF ICO
tem por principal resultado o de adotar ou rejeitar, de preservar ou destruir, em uma palavra, deescolher o grande homem”.74 Embora não apreciando muito o determinismo extremo de Buclde, de Spencer ou de Bourdeau, certos sociólogos se alinham com a ideia de afirmar, de uma vez por todas, a impessoalidade como cntério fundam ental de cientifi cidade. Na França, Émile Durkheim reconhece aos grandes homens uma função política importante: "Uma sociedade em que o gêmo fosse sacrificado à massa e a não sei que amor cego por uma igualdade estéril, condenaria a si mes ma a uma imobilidade que não difere muito da m or te” .73 Mas os considera como elementos perturbadores para as ciências sociais, que devem estudar as maneiras de pensar, de sentir e de agir inde pendentemente dos indivíduos. Dessa convicção procede a famosa confrontação entre fato social e estatístico: “Como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares indistintamente, as circunstâncias individuais que podem ter alguma parte na produção do fenómeno se neutralizam mutuamente e, por conseguinte, não contribuem a determiná-lo". ' Esse ponto de vista é retomado, al guns anos mais tarde, por François Simiand, portador de um projeto de unificação das ciências sociais. Embora reconheça a componente interpretativa da história, Simiand sustenta que o historiador deve estudar o que é objetivo, destacado da espontaneidade individual: Uma regra de direito, um dogma religioso, uma superstição, um costume, a fornia da propriedade, a organização social, certa visao do trabalho, certo procedimento de troca, certa maneira de morar ou d e se vestir, um p receito m oral, et c. tudo isso me é ■lado, me é fornecido inteiramente con stituído , t udo isso ex iste na minha v ida independentemente de minhas espontaneidades próprias e algumas vezes a despeito delas.77 w'n'Im"íam" ’ ■■ri,"' Me" Jnd their Envl ronment " Ai lan tic Mo nl hly . 1880, p. 295. Cf. também ud. in Z "*!’ J ' /ln,portance individuais", Opfn Court, 189(1. Os dois textos foram reedi
T w trands honm ies"'/^
(,897)* tradu " do do « * • por Lo ys Moul in, Pan s, FUmmanon. 1918. , 11/ 0 / . P°r He nn U crr. "La mé thode staos tique et la que st io n des
Émilr rtvrVh^n 1 Z J ’ Í ’ P’5^ 5 2 7 ' ’5 soeiale Pam ÉHin a ()mn,rí 5 I histoire (1883), in soaau, Ham, Edidons de Minuit, 1975, p. 4(19417. p Us k‘ *>n ir U rrançou Simuiwl **M#rh.w 4, k. . «t.KO frtr.nu*t. A^
soemif iqut
^ P^ Texíes 1. Élements d*une théorie
(1895), 1’ans, 1>UF, 1963, p. 10. F '
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O político, o individual e o cronológico (denunciados como os três “ídolos da tnbo dos historiadores”) devem ser substituídos pelos fatos de repetição, as regulandades, os fatos típicos: “A regra é aqui, como nas outras ciências positivas, seguirabstrações as feli zes , isto é, aquelas que levam a estabelecer, aquelas que servem para colocar em evidência, regularidades”.™Para ele tam bém, a causalidade histórica nã o pro vém mais da motivação, e sim da lei: “O estabelecimento de uma ligação causal se faz não entre um agente e um ato, não entre um poder e um resultado, mas entre dois fenómenos exatamente de mesma ordem; ele implica uma relação estável, uma regularidade, uma lei”.7'1Só existe então relação causal se há regularidade de ligação: “O caso úniconão tem causa, não é cien tificame nte explic ável” .81’ A ideia de edificar uma história impessoal seduz igualmente certos historiadores alemães. Em 1896, Karl Lamprecht, fundador do Instituí fur die Kulturund Univcrsalgcschichtc da Universidade de Leipzig, abstrai das ciências naturais um conceito normativo e absoluto de ciência e o estende a todas as disciplinas sociais. A fim de assegurar à história um estatuto científico irrefutável, almeja introduzir nela de maneira sistemática o princípio de causalidade. Uma vez que a ciência tem por tarefa conhecer o encadeamento necessário das causas e dos efeitos, presente uniformemente em todos os processos particulares, a história também deve se debruçar principalmente sobre aquilo que é comparável e típico. Essa é uma perspectiva que implica, para Lamprecht também, o sacrifício das diferenças: podemos, ou antes devemos, renunciar a apreender no seio das coisas o que as separa, para identificar o que as une. Por conseguinte, os indivíduos não de vem ser considerados como seres particulares, dotados de um caráter preciso, único, insubstituível, e menos ainda como seres capazes de agir sobre o curso da história, mas antes como amostras genéricas equivalentes entre si, exclusivamente dominadas pelas ideias, pelos impulsos, pelos sentimentos comuns ao grupo de pertencimento. A diferença dos historiadores marxistas que privilegiam a noçã o de t lasse, a unidade social determinante, capaz de explicar todo o resto, e Para Lamprecht a nação, não em seu sentido jurídico e estatal, mas 11 ftid., p. 9]
' M •P 95. “ lbià; p. 105.
O PEQ UEN O x -
Da
biografia
O LIMIAR BIOGRÁFI CO
a história
na acepção romântica de organismo que evolui de acordo com as próprias leis. Trata-se de um ponto de divergência interessante: o conceito de nação não constitui mais uma individualidade, como para muitos historiadores dos primeiros decénios do século XIX; ele representa aqui uma dimensão regular da vida histórica.81 Por certo, ao longo desse período, tampouco faltam diferendos e alguns sentem repugnância em sacrificar o caráter concreto da exis tência em nome da ciência. Mas muitos daqueles que defendem a natureza singular da história continuam a cultivar a retórica da grandeza pessoal. Definitivamente, às forças sociaisanónimas, tão exaltadas - em sentidos diferentes —por Simiand e por Lamprecht, revida-se com os grandes homens políticos capazes de modelar os acontecimentos. Mesmo aqueles que não cedem à ideologia heróica sonham com in divíduos improváveis, plenamente intencionais e livres. O primado do grande homem é tanto mais alarmante na medida em que vai de par com a predominância do político: só o Estado e, portanto, um pouco de história da civilização parecem dignos de consideração histórica.82 Como escreve ironicamente o historiador alemão Eberhard Gothein, o leitmotw dominante incita a reservar aos historiadores políticos as ações de envergadura, os feitos do Estado, e aos historiadores da cul tura a lixeira e o descarte das( Kchrichtfass tttid die Rumpelkammer ).83 Numa época marcada por forte crescimento do poder do Estado e pela ascensão das massas à condição de sujeito político, os artigos do Historische Zeitschrijt ignoram os problemas sociais (nenhuma alusão à ralé, às fábricas, às famílias, aos subúrbios...) e rebaixam o político, identificando-o à ideologia manifesta e formal das instituições do Estado. Os perigos inerentes a uma definição tão idealizada etão Karl Lamprecht. Was ist Kulturgeschichte? beitrag zu einer hisionsch en Em pink ”, in Deutsche Ze,tschn f, } ur Geschuht suHsser mhaft. 18961897, I, p. 751 50. Sobre a relação entre a his tóna soci al e o nacionalismo étnico ao longo dos decénios seguintes, cf. Jiirgen Kocka, “Ideological Repres uon and MethodologicaJ Innovation: Histonography and the Social Sciences in the 1930s and 194Us , History and Memory, 1990, 2, p. 130138. uem, c i l.iro. al guma s exceçòes import antes que es capam a es sa concepção bem polida d a biografi a políti ca, bast a mencionar, ao longo dos decénios seguintes, o li vro de Ems t H Kantorow icz, l Empcreur Frédfnc II (1927), Pans, Gallimard. 1987. ^ Eberhard Gothein,
Die Aufgaben der Kuhurgesrhichle,
ntramos esta mesma orientação em P
1 QQ^° ^ ^
Leipzi g, Dunker & Hum
History and Biography.
blot, 1889.
Essays in Hon our o f Derek beales,
C W B lanning e Oavid Canadine, Cam bndge. Cam bndge Universit y
neutralizada da política se manifestam no curso dos anos seguintes, durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando numerosos histonadores da política se mostrarão incapazes de interpretar as graves tensões sociais que abalam a Alemanha e, mais geralmente, a Europa. É disso que se apercebe Eduard Spranger, um dos inspiradores da morfologia histórica: após o fracasso da conspiração contra Hitler de 20 de julho de 1944, ele confia a Meinecke que “as ideias de Goethe não bastam para compreender o infemo que é o nosso hoje em dia”.85 Ao longo do século X X , o antagonismo, todavia na da eviden te, entre a históna social e a história política se endurece e se banaliza: a pnmeira continua a cultivar sua vocação impessoal, a segunda a propor personagens convencionais e monolíticos.86 E provavelmente na França que a biografia foi mais vitupe historicizante, travada nas páginas rada.87 A batalha contra história a da Reuue de synthèse historique, foi vencida pelos historiadores dos Atmales, que se dedicam a apreender, para além dos acontecimentos particulares, o substrato profundo da história: as estruturas sociais, as representações mentais, os fenómenos de longa duração. Assim, em pouco tempo a biografia se torna um dos símbolos da história tradicional, da crónica de acontecimentos, mais preocupada com a cronologia do que com as estruturas, com os grandes homens do que com as massas. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, o objeto da história é o homem, ou antes, “digamos melhor: os homens. Mais do que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência do diverso”.88 Mas os historiadores da segunda e da terceira geração Amt dos ales absorvem as tensões individuais no seio das estruturas coletivas de Klaus Epstein, "Fried nch M eineck e, Ausgewàhlter briefwec p. 85.
hsel”,
History and Theory,
1965,
Esquecendo a advertência de bismarck de 16 de abnl de 1869 ao Reichstag da Alemanha do Norte: Em geral, exageram muito nunha influência [...], mas, apesar de tudo, ninguém tem na cabeça exigir que eu faça a históna . Essa declaração é relatada por Gheorgh i V. P lekhanov, Lf de / individu
ãtu ^
traduzido do russo por Lucia e Jean C athala, Pans, Nouvea
* Josef Konvitz , “Biography: The K™™, 1976. 6, p. 920.
Missing Fomi in French Histoncal Studies
u bureau d édidon, 1 976. ,
European Studies
^ rC^ och' Apologie pour Thist oire o u métier d'histonen (1949 ), Pans, Annand Colin, 1974, p. Fíh.re, especialmente, foi sempre muito sensível à dimensão individual , com o testemunham biografias consagradas a Martinho Lutero e a Rabelais.
O PEQ UEN O X - D
a
O LIMIAR BIOGRÁ FICO
BIOGRAFIA À HISTÓRIA
longa duração. Femand Braudel toma os acontecimentos por uma simples “poeira, uma agitação de superfície”, e trata os indivíduos à maneira de um verniz, bnlhante, por certo, mas superficial, da realidade: fora algumas exceções (o papa Pio V ou Don João da Austna), os seres humanos parecem totalmente impotentes (Carlos V se estabelece como resultado da vontade “nacional”). Donde o acento posto sobre o que separa a históna biográfica daquela das estruturas e da história dos espaços, fundadas ambas sobre aquilo anonimamente humano.99 que há de mais A desconfiança diante da dimensão individual não fica aliás con finada unicamente à históna social. Ao longo dos anos 1960 e 1970, idade de ouro das grandes investigaçõeshistóna da serial, historiado res empreendem medir, com a ajuda de indicadores quantitativos, os terceiro fenómenos culturais (o que Pierre Chaunu qualifica de nível). Emmanuel Le Roy Ladurie aspira a escrever uma “história sem os homens , e Jaques le Goff (autor, na sequência, de duas importantes biografias históricas) pode afirmar que a história das mentalidades es tuda aquilo queescapa aossujeitos individuaisda história por revelar o conteúdo impessoal de seu pensamento, aquilo que Cesar e o últi mo soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristovão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum". "' Por vários decénios, o gosto pelo singular só consegue sobre viver em alguns recônditos da historiografia. Em primeiro lugar, graças ao sucesso da prosopografia —por vezes designada igualmente com a expressão de biografia coletiva” . Cé tic o quanto à filosofia da história, assim como quanto àhistória das ideias, LewisNamier estima que os fatos sociais só podem ser explicados explorando-se cientificamente as raízes do comportamento individual. Os nobres e os mercadores, os advogados e os funcionários, que compõem a t asse dirigente inglesa da época de Jorge III, revivem um a um so sua pluma. Seu mét odomicroscópico almeja a cisão dos fatos M cd u m m tt rt le 'non de m id ilm an ée n a l'é poq ue de Pl uh pp e II(1949), Pans, 7 1 Sn cm r~c vol II n f . £ J. Dli!b2U. c r os comentanos cnticos de lacques Ranciere, ' d“ ««»>. Pans, Édmons du Semi. I992, p. 2627. ' u dt Trmtone de fhuiorien, mmanuel Le Roy Ladune, Lr l>ans, C.allimard, 1973, 4‘ parte; Jacques Le
W**"!h *m u.id Colin, 1990, I ,. . , .. . .
1974 t 111 ™‘ h <Í J l n,acqu" r l
Le Goff e l>1 ,!rrc Nora (dir),
Faire de 1‘hisloire,
Pans, Gallimard,
N*/ a 77 ,f S'n,C IUre ° f Poli,ics « lhe Accession of Ctorgt III. Londres, Macmillan & . o longo dos pnme.ro, decên.os do século X X . outro s importantes histonadorw da. elites
sociais numa miríade de existências particulares que possam ser em seguida combinadas no seio de conjuntos mais vastos: o objetivo “é conhecer bem a vida de milhares de indivíduos, um formigueiro em sua totalidade, ver as colunas de formigas se estirarem em diferentes direções, compree nder suas articulações e suas correlações, observar cada formiga e, entretanto, jamais esquecer o for migueiro ”.92 Poré m, essa concepção pontilhista - retoma da principalme nte pelos historiadores da Antiguidade romana93 e pelos especialistas na aristocracia inglesa94 - se reveste muitas vezes de um caráter antibiográfico, na medida em que a variedade do passado é sacrificada em nome das regularidades e em que os indivíduos parecem completamente submetidos às pressões sociais. Em seu ensaio sobre a revolução americana, Namier declara abruptamente: “Quaisquer teorias que possam elaborar os teólogos e os filósofos concernindo ao indivíduo, não há nenhum livre arbítrio no pensamento e nas ações das massas, assim como não há na trans lação dos planetas, nas migrações de pássaros e na queda no mar de colónias de lemingues”.95 Vários anos mais tarde, Louis B erger on e Guy Chaussinand-Nogaret constatam que o objetivo da prosopogra fia consiste em uniformizar as singularidades: trata-se de “encontrar os homens e, através deles, preparar a definição dos tipos. Para além da máscara erudita, encontrar o rosto cotidiano e as singularidades regionais, e das fisionomias múltiplas fazer brotar os traço s com uns . * der políticas endossam o projeto prosopográfico. Cf., em particular, Matthias Gelzer, Die romischen Rqjuhlik und die Nobilitat der Kaiserzeit, BerlinLeipzig, B.G. Teubner, 1912; Charles Beard, An Etono mic Intrr prcia tion o f th e Con stit utio n o f th e Un ited Stat es(1913), New York, Macmillan, 1944, Fnednch Miinzer, Romische Adchparteieti und Adebfamilieti (1920), Stuttgart, B. G. Teubner, 1983; Konald Syme, Lti Réivlution romainv (1939), traduzido do inglês por Roger Stuveras, Pans, Galhiuard, 1967. Sobre as transforma ções do projeto prosopográ fico, cf. John Broo ke, "N amie r and Namiensm , History and Diiedalus, 1971, 10(1, p. 4671. T7iei>ry, 19631964, 3, p. 331347; Lawrence Stonc, “Prosopography’’, Lewis B Nam ier, "Th e B iograph y o f Ordinary Mc n ", in Lewis B. (1931), New York, Macmillan, 1968, p. 4647. Cf. Isaiah Berlin, Londres, The Hogarth Press, 1980, cap. 3.
Nam ier, S/e yííT
Cf. C.laude Nicole t, "Prosop ograp hie et histoire sociale: Kom e et 1’Italie à 1ép oque répu blicai nc*• Ann ates E S C , 1970, 25, p. 12091228; André Chastagnol, "La prosopographie, méthode de An na les E S C , 1970, 25, p. 12291235. rechcrche sur 1’histoire du BosEmpire”,
L ’État mode nte et les elites. Apports et limites de la CfjeanPhihppe Genet e Giinther Lottes (dir.), tnéihode prosopographiqut\ Actes du colloque intemational CN RS Paris 1, 1619 de outubro de 1^91, Pans, Publications de la Sorbonne, 1996. Lewis U. Namier, England in the Age o
f American R evolution,
Londres, Macmillan, 1963, p. 41.
Grands notables du premier Empire, Louis Bergeron e Guy ChaussinandNogaret (dir.), Paris, Édi h0ns CN RS , 1978, p. VI. A diferença entre a biografia e a prosopografia é sublinhada por Kath anne S. B. KeatsRoh an, "Biograp hy and Prosopography. Telhng the Difference , dura nte
O PEQU ENO x - D a
biografia
à história
CAPÍTUL
Do lado da sociologia, destaca-se outra experiência interessan te. No fim dos anos 1910, Wilham Thomas e Florian Znaniecki escrevem uma obra monumental,Le Paysan polonais em Europe et ett Amér ique, realizada com base em testemunhos pessoais de imi grantes poloneses nos Estados Unidos (a correspondência privada e também o relato autobiográfico de um certo Wladek, consi derado como um representante típico “da massa culturalmente passiva”).'1 Num prefacio metodológico , os autores explicam a importância de levar em conta a atividade psíquica do indivíduo,
O II
A vertigem da história
sua atitude pessoal, no sentido psicossocial, sua maneira de “definir a situação” e de alterá-la pelo próprio comportamento. O livro, que visa a conciliar a pesquisa de regulandades ou de leis de tipo causal com a pesquisa das significações psíquicas atribuídas pelos atores sociais aos acontecimentos, não tem destino fácil. Em parte por conta de vicissitudes políticas: militante pacifista, Thomas é condenado por adultério em 1918 e só é reabilitado dez anos mais tarde (a propósito do peso dos fatos biográficos...). Em parte por razões científicas, pois, logo em seguida, a sociologia americana decreta que os testemunhos pessoais não são fiáveis. O golpe de misericórdia é dado em 1939, quando Herbert Blumer declara que o material biográfico, fundado em procedimentos irremedia velmente subjetivos, não permite chegar a generalizações válidas e dignas de crédito.98
Simbad, o marujo, ou não sei que outro personagem das Mil e uma noites, encontrou um dia, à margem de uma cascata, um velhinho extenuado que não conseguia passar. Sitnbad emprestoulhe o socorro de seus ombros, e o homenzinho, açarrandose neles com um vigor diabolico, tomouse de repente o mais imperioso dos mestres e o mais opinioso dos cavaleiros. Eis aí, cm minha opinião, o caso de todo homem aventuroso que resol ve tomar o tempo passado sobre suas costas para faz ê lo atravessar o Letes. Isto é, escreve r a histór ia. O impertinente velhinho traçalhe, com uma caprichosa minúcia, uma rota tortuosa e difícil; se o escravo obedece a todos os seus desvios e não tem a força de se abrir um caminho mais reto e mais curto, afogase maliciosamente no rio. Victo r H ugo1”
. loquio Explori ng New Methods for Prosopogra Sciences Uppsala Unive nity, 912 de maio de 200 7 p I. Th cin i c Hom n Znaniecki,
phy in the H umanities and the Soci
Le Paysan polonais eti Europe et en Atnerique.
al
Recit de vit
un migrant (191 S jo in , traduzid o do uir !^ por Yves Caud illat. Pans, Nathan, 19 98. Alguns anos 'í™ WU r',' au so*5r e 3 “ Crnsio do movimento nazis ta IMi; Hitler Carne inlo Pouir ,an^ ndgC ÍM“ s )' Harva rd Umvenity Pre ss, 1986 o sociologo Theod ore Abel f orça rmo e íocram, „ „fcc j n U I n autobiogr áfica concisa, de forma estandar diza da, ese nta a pedi do dr poqu A ,0 l„,n , | ln)|ldjl) c * d„ vfUl J> (jrfc ,cmlK .. as tendé nci as. as atitu es f t n omiiui.to d* uni gru po C t TVn dore AM Ihr Naiv irr and Use ol . slmencii tt Journal of Soriolo gy. 1947, L11I. p 111 18 j,
and Znaniecki's "The Polish Peasanl in Europe and
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pessoal na
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I Após vinte e três anos de guerra contra a França revolucionária, unia longa onda de radicalismo popular se espalha pela Inglaterra. Por toda parte, o antigo princípio de deferência parece vergar: “Sc um Aristocrata cruza um Tecelão na rua e este resolve não tirar o
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í. RMirt || #Vl| . ( hiu ^ o. !<«>/. , rrrd iUt ki nu "Fr eud Ps vchoaní T r * l W * K,‘ |N J Tra nsa cti on Books, 1970; Robert Gol din g. Individual" British f”' ” 1 ( S” nl< Observacions on the Sociolo gical Analysis of the individual , Bntish Journal o f Soàology, 1982. 4, p. 54S.562
Victor
Hugo, Linérature et philosophie mflíes, edi^áo tritua estabelecida por Anthony K W 1976, t. I, Jo ur na l des id ées , des op im on s et des lectu res d'u n iru nt j ac ob it e
Ja m es , Pans, Klincksieck,
dt 1819, p. 95.
O PEQ UENO x - D a
A VERTIGEM DA HISTÓ RIA biografia
à história
chapéu, o homem de importância nada pode lhe fazer”.10" O jaco binismo da gentinha de Londres não é novo, mas, no pós-guerra, a agitação contamina também as províncias: de Carlisle a Colchester, de Newcastle a Bristol, omob se toma uma realidade tangível e pressionadora. Suas reivindicações são essencialmente políticas: o sufrágio universal, o direito de associação e de organização política, a liberdade de imprensa. Aqui e ali, o tom se faz ameaçador. Se as tentativas de levante são ainda raras, o slogan cartista “pacificamente se possível, pela força se necessário” exprime bem, entretanto, o estado de espírito reinante. Em 2 de dezembro de 1816, após uma manifestação pacífica a favor da reforma parlamentar em Spa Fields, alguns marinheiros tentam, sem sucesso, tomar de assalto a Torre de Londres. Seis meses mais tarde, os tecelões, os talhadores de pedra, os metalúrgicos e os trabalhadores agrícolas das cidadezinhas dos arredores de Pentridge, no Derbyshire, propõem-se a invadir Londres e a derrubar o go verno. Em agosto de 1819, em Saint Peter’s Field, Manchester, um grande ajuntamento em favor da reforma parlamentar é brutalmente reprimido pelaManchester Yeomanry, um corpo de cavalaria formado principalmente por filhos de industriais, comerciantes e negociantes, deixando onze mortos e cerca de sessenta feridos. Longe de conter o movimento, o massacre de Peterloo (assim nomeado fazendo eco à ba talha de Waterloo) levanta a indignação do país. Alertados, os espiões o governo escrevem ao rrúnistro do Interior, Lorde Sidmouth, que os trabalhadores começaram a se armar de lanças e porretes, enquanto, o fun o das tavernas, os artesãos projetam levantes armados. Mesmo rt ur Thistlewood, um dos cérebros da conspiração de Ca to Street, qut everia ter provocado a morte de diversos memb ros do governo, esta convencido de que Londres está prestes a agir. H r1
^ a'1° S de co rr em ap ar en te men te em to da tr anquili. ecenio seguinte, que vê os whigs voltarem ao poder (em seguimento a recusa de Wellington de estender o direito de voto), e, ao contrario, um dos períodos mais difíceis do século X I X inglês, ao os tra alhadores agrícolas dos conda dos de Kent,Norfolk de e
de Somerset que iniciam as hostilidades, protestando, em nome do capitão Swing, contra o emprego de mão de obra irlandesa barata e contra a introdução de novas máquinas. Cerca de dois nul ínsurgentes são levados a julgamento: nove deles serão condenados a morte por enforcamento, seiscentos e quarenta à prisão e quatrocentos ao desterro nas colónias australianas. Foi a deportação mais importante jamais decretada pela Inglater ra.101 Em 18 35 , é a vez dos fiandeiros de Glasgow que, não satisfeitos com incendiar a manufatura de Ja knobsticks (fura-greves mes e Francis Wood, surram uma dezena de contratados pelos patrões). Durante o outono do ano seguinte, os trabalhadores se espremem nas assembleias notumas que se fazem à luz de tochas, organizadas pelos cartistas: “Ao longo de toda a fileira brilhava uma torrente de luz que iluminava a abóbada do céu, como o reflexo de uma grande cidade numa conflagr ação geral . Tre s anos mais tarde, são ainda os cartistas que convocam uma conven ção nacional das classes trabalhadoras de que participam centenas de milhares de pessoas, até que seja proclamada, quando do ajun tamento de Birmingham, em 6 de agosto de 1838, a adoção oficial pelos trabalhadores da carta do povo. A petição, assinada por mais de um milhão e duzentas mil pessoas, é deixada diante do domicílio londrino do deputado John Fielden. Entrementes, a convenção se interroga sobre as medidas a adotar em caso de fracasso no Parla mento e organiza uma séne de ajuntamentos simultâneos através de todo o país, de maneira a desorientar a polícia. Em julho de 1839, quando a Câmara dos Comuns rejeita a petição por esmagadora maioria, violentos embates opõem os trabalhadores e a polícia em Birminghan(Buli Ring Riots). Quatro meses mais tarde, são os mi neiros de Newport que protestam: o saldo se eleva a catorze mortos, cinquenta feridos e mais de cento e vinte e cinco detenções. Mas, uma vez ainda, a repressão não consegue represar o movimento, e, ■i partir de 184 2, pertur bações explodem nova men te... Essa mescla de radicalismo político, de luddismo e de cartismo, impregnada de antigos princípios religiosos (postos em evidência Gtorge Rudé,
Citado por Edward P Thn por G tllc Dauve MirTinTr du Seuil, 1988, p 606
i i
F°m ú"on dr la dasse ou,’ r'^ anglai se (196 3). traduzido do ’° aSZew e ^ inc Noelle Thibault, Pans , Gall imardÉditions
La Foi, Ir da m la R M ition
Fran fai se (19 64), traduzido do inglê
s por Albert Jordan,
Pins, Maspero, 1982. Kobcrt G. Gammage, W 6, P 94 95.
Histor y of lhe Chartisl Movement,
1817 1X54
(1894), Londres, Merlm Pre«,
O PEQUENO x - Da
biografia
à história
A
pelos trabalhos de Edward P. Thompson. Enc Hobsbawm e George ude), impoe a atenção dos britânicos da pnmeira metade do século XIX a questão inglesa. Em que condições vivem as classes populares? Qua e seu humor ? Um a nova guerra civil va i explodir? Thomas Carly le também se coloca ess a questão .103 Fica m esmo obcecado por ela. No curso de seus primeiros anos de atividade, enquanto Meister de Goethe (1824), ainda vive na Escócia, traduz Wilhelm o escreve diversas obras literárias e históricas (sobre G oet he, justam en te, mas tambem sobre Schiller, Voltaire, Diderot) e se consagra a artor esartus (1831), uma espécie de biografia filosófico-poética, ^ em ‘maSens de conflagração, de indigestão, de fermenaçao. o entanto, após sua partida para Londres, em 1834 , bem no me,o da epoca mais heroica do radicalismo popular, abandona
a Ação e a Paixão?” 107 Em suma, t odos os seres humanos tê m um a história: “O talento da história nasceu conosco, como nossa principal herança. Num certo sentido, todos os homens são historiadores”.108 Desta fornia, Carlyle jamais teria aceit ado a no çãopovos de sem história. Em toda humanidade, não há uma só tribo tão grosseira que não tenha tentado escrever a história, ainda que várias delas não tenham aritmética para contar até cinco”: “A história foi escrita com quipos, com quadros feitos de plumas, com cintos de con chas; mais frequentemente ainda, com tendas ou monumentais empilhamentos de pedras, pirâmides oucaims ; pois o celta e o copta, o pele-vermelha e o branco, vivem entre duas eternidades e, na luta com o Esquecimento, gostariam de se agarrar, por uma relação clara e consciente, como já se agarram por uma relação inconsciente e obscura, a todo o Futuro e a todo o Passado.,IM
c r'^ j 010 mu'tos de seus contemporâneos, experimenta o entimento de viver num mundo convulsionado, abalado, corrom-
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f T V ° Vdh0 Impén ° r°mano ‘> ando » med ida de uas iniquidades foi ao cúmulo; os abismos, os dilúvios superiores e
d a H rf T '05 T ° Urand° P °r todo s os >«los. e nesse furi oso c aos de enrn \ ^ “ eStrdaS d° céu aPagadas”.'05 E espera n rar uma resposta, e mesmo uma solução, na história. convenriH °
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p.
^
871 14.
Carlyle, and the Victonan
Public Sphere’*,
VERTIGEM DA HISTÓRIA
II Em 1837, quando Vitória acede ao trono da Inglaterra, Carlyle História da Revolução Francesa. A Revolução é aí descrita publica sua como o acontecimento por excelência, uma alquimia selvagem que provocou a exterminação de dois milhões de seres humanos. Mais de vinte anos de convulsões, de precipitações, de atrações e repulsões súbitas, consequências inelutáveis de uma doença de velha data, bem anterior, que fora incubada duran te o re inado de Luís XV e explodira no de Luís XV I e m razão “ de sua ausência de faculdades” : "É uma bancarrota espiritual tolerada por muito tempo encaminhando-se para uma bancarrota económica e tomada intolerável”. No fim, a doença revestiu as formas de um jorro de lava: “Há levantes que vem das tempestades de cima e do sopro dos ventos. Mas há aqueles que vêm de ventos subterrâneos comprimidos, ou mesmo de decomposições interiores, da corrupção que se transforma em
Representa
Tho ■ngles por
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^ '*mm'
(18331834).
prefaciado e traduzido do
P
'aS^ ar^ e> Sur I his toi re", i n Essais choisis de critique et de morale mond Barthélémy, Paris, Société du Merc ure de France, 1907,
Ibid. ftij p iiji p
LondrcsNew York.
John U ne. , l » '"T «? '' ■ 7 t. 1, p 8596, 1021
Wtbh
II, 238.
Ed por Alexander Carl
yle,
^ j.
H
(1830) traduzido do inglês p. 302.
‘ sla c°nce pçào da memó ria se liga a uma longa tradição da Renasc ença: cf. Donald ey. Foundations of Xíodem Historical Scholarship. Lan guage, L aw and History in the Fr ench sancc, New York, Columbia University Press, 1970, p. 12, 215.
A O
PEQUENO x
- Da
combustão: como quando, segundo a geologia netuno-plutônica, o mundo decomposto se prostra em seus detritos, para deles emergir com estrondo e se refazer”.110 Diferentemente de Goethe, um de seus heróis, Carlyle não lamenta a ordem pré-revolucionána, já que estima que a “velha mo rada" devia ser abatida.1'1Em todos os tempos, as insurreições sociais foram detonadas pela incapacidade dos governantes. Assim foi com a reforma protestante e o mesmo se deu com a Revolução Francesa. Quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre? Em primeiro
do homem precipitando-se cegamente para dominar sem freio nem regra; potência selvagem, mas com todos os instrumentos, todas as armas da civilização: espetáculo nov o na hi stóna” .114 Em face da monarquia, da Igreja, da nobreza e da filosofia, havia o direito das massas. Um direito em toda sua diversidade individual: São vinte a vinte e cinco milhões que agrupamos junto numa espécie de unidade compacta, monstruosa, mas obscura, longín qua, que chamamos acanalha ou mais humanamente asmassas. Massas em verdade; e, no entanto, coisa singular a dizer, se por um esforço de imaginação tu os segues, através da vasta França,
lugar, a monarquia. Luís XV se comportou como um fantoche ou um marinheiro à deriva, totalmente impotente em controlar as correntes: O homem assim alimentado e decorado, e nomeado na sequencia régio, é em realidad e apena s um ser govern ado. Por exem plo, se dizemos, ou mesmo pensamos que ele foi empreender con quistas em Flandres, na verdade ele só foi transportado para lá como uma bagagem; bagagem nem um pouco leve, que cobre léguas inteiras.112
A igreja é o segundo culpado: negligenciando seus projetos passados e suas velhas animosidades, ela praticamente não se opôs à política rtal. Quanto aos nobres, contentaram-se com um papel ornamental. Enfim, os filósofos, um bando de perigosos charlatães, verdadeiros trituradores de lógica (logickchopers), que contaminaram toda a so ciedade com seu hedonismo: “Eis aí um povo sem crenças que vive dc suposições, de hipóteses, de sistemas frívolos sobre a triunfante análise e como única crença isto: o prazer deve apraze r”. 113 Voltaire, o patnarca, observava o mundo circundante com um olho anticatólico, reduzia a história a um miserável nó de controvérsias entre a Enciclopédia e a Sorbonne e exortava seus contemporâneos a um pífio hedonismo: Os cinco sentidos insaciáveis e um sext o sentido igualmente insaciável: a vaidade; e sobrará toda a natureza demoníaca ThoiftfeCulyi t. it U Kmviu,,., Fraiifaise (1837 ' induzido r IMyi lUnw Cinv v*rm ct lt«l rc, 18661867 , p. 105
do inglês por Elia
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Sofafr «wuifc dc<«*the 1 .L , KrvoluV Jo h .n if -, cf Giul ian o Baiom, í-vi l* Classi yjnu, .« ■ » .. (!■#//, Tom iu. fci ujudi . ivih "J Thom as Carlyle, loiá.. t. I, p 47.
VERTIGEM DA HISTÓRIA
biografia à mistôkia
Histoire de la Révolurion Franfaise, op. cit.,
t. 1. p. 7.
nas suas cabanas de argila, em seus celeiros, em suas choupanas, essas massas se compõem todas de unidades, e cada uma dessas unidades tem seu coração e suas dores, se mantém coberta com sua própria pele, e se a feres, ela sangra."5
Ao livro sobre a Revolução Francesa seguem diversos ensaios sobre a questão inglesa, considerada o alfa e o ômega da coisa toda. "A condição do grande corpo do povo num país representa a condição do p rópri o país” .11 Chartism, 6 publicado em 1839, coloca em alerta: 1789 não foi uma turbulência ocasional, um lance de loucura. E a derrota da França revolucionária não conduziu auto maticamente a sua cura: Um meio-século se passou desde então; e uma coisa como a Revolu ção Francesa não est á ainda te rminada! Quem quer que obser ve ess e enorme fenómeno pode nele encontrar numeros as significações, mas na base de tudo encontrará, em particular, que se tratou de uma revolta das classes trabalhadoras oprimidas contra as classes dominantes tirânicas ou negligentes, não foi apenas uma revolta francesa; não, foi uma revolta europeia, prenhe de severas advertências para todo s os país es da Europa.
■t I. p. 19 Sob re a f igura de Voltaire, cf . igualmente “V oltaire” (1829), in Nouveaux Essais dt critique et de moralc, traduzido do inglês por Edinond Barthélémy, Pans, Mercure de l* fl A ceguei ra ou a miopia d as Luzes f ora já muitas vezes denunci ada por Johan n G ot tfntd Hcrder, Une autre philosophie de l'ltisloire, in Histoirt’ et ciilturrs, traduzido do alemão por Max K«uc» ie, 1’ans, Flammanon, 20 00. Esse tema ser á em seguida retomado por Fn ednc h N ietzsche,
C"nsidêrations inactuelles, op. cit 11* 1 »
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in. ,0ma s ^ ar|y' e' liu/oirr de la Révoltiti on F ranfaise, op. cit, t. I. p. 4344. Thunias ( jrlyle, Chartism (1840), B oston, Ch arles C. Little & James Urow n, 184 0. p. 5. ” p. 42.
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PEQUENO X -
Da
A
biografia a história
Como se deve reagir? O que é possível fazer para represar o radicalismo popular? Carlyle descarta as duas proposições políticas dominantes. Acusa olaisserfaire económ ico de não ofer ecer ao s po bres mais que a liberdade de morrer de fome e rejeita o sufrágio uni versal reivindicado pelos cartistas, pois considera a democracia um tema de discussão académica, desprovido de porvir (“um fenómeno que se autodestrói”). Não tem mais confiança na coerção (“por si só, não resolverá grande coisa”118), mas guarda alguma esperança na instrução universal e na emigração. É sobretudo o problema da confiança social que ele coloca no coração do debate. O trabalha dor não está fundamentalmente apegado aos bens materiais: “É pela justiça que luta; por um ‘salário equ itativ o’, e não apenas em dinheiro! .,1‘' O “descontentamento am argo, lo uco de raiva” tem sua fonte na degeneração das classes dominantes. A situação exige uma verdadeira aristocracia, fundada no mérito: “Uma corporação dos melhores, dos mais corajosos”, como aquela que existia antes da instauração docashnexus.'2" Pois, exanunando-se bem, os protestos exprimem sobretudo a necessidade de um guia benévolo e sábio: O que são todos os levantes populares e os mugidos mais loucos, de Peterloo à própriaplace cie Gr ève ? Mugidos, gritos inarticulados como aqueles de uma criatura muda, abalada pela exasperação e pela dor; para o ouvido de um sábio são preces inart icula das: G uie-m e, govem e-m e! Estou exasperada e mi serável, e não sei me guiar sozinha.’ É certo que entre todos os direitos do homem ’ esse direito do ignorante de ser gu iado pelo mais sábio, de ser conduzido, com delicadeza ou a força, pelo caminho certo, é o mais indiscutível.121
Nessa convicção inspiram-se as célebres conferências sobre o culto dos heróis, feitas entre 5 e 22 de maio de 1840, diante de um auditono de duzentas a trezentas pessoas, “aristocrático de classe e
VERTIGEM DA HISTÓRIA
de espírito”. 122 Carlyle aí fala da grandeza, de suas diferentes man i festações e da maneira como é acolhida nesse mundo. Explica que a ordem social repousa sobre a identificação dos heróis e que o desígnio de cada época consiste em enco ntrar o verdadeiro Kònnitig ou cannig, o homem capaz, que pode e sabe, e em investi-lo dos símbolos do poder, elevá-lo à dignidade real, de modo que esteja realmente em condições de governar. No final das contas, a história universal se resume à biografia dos grandes homens: Em minha opinião, a História universal, a História do que o homem realizhomens ou nestaque Terra, no fundo é mais que aeles Hi stória dos grandes obraram aqui não embaixo. Foram os condutores dos homens, seus modelos, suas referências e, numa acepção ampla do termo, os iniciadores de tudo o que a grande massa dos humanos se esforçou para realizar ou atingir. Todas as realiz ações gl oriosa s que podem os contem plar no mundo são, na verdade, os resultados materiais e exteriores, a realização prática e a concretização do pensamento e da intelecção geradas no espí rito e no co ração dos grandes homens enviados a es te mu ndo .1"'1
Eis por que o culto dos heróis é uma [...] pedra fundamental eterna a partir da qual poder-se-á come çar a reconstruir tudo. O fato de que o homem, de uma maneira ou de outra, venere os heróis; de que todos nós reverenciemos e estejamos destinados a sempre reverenciar os grandes homens, eis o que é para mini o fundamento vivo que resistirá a todas as destruições, o que nenhuma revolução na história pode atacar, por mais catastrófica e devastadora que possa ter sido sob todos os outros aspectos.124
O traço mais característico na história de uma época é formado justamente pela maneira como honra o herói. A desolação que im pregna todo o século XVIII remete ao ceticismo que o caracterizou: E nessa única palavra estão contidos tantos infortúnios quanto na caixa de Pandora. Ceticismo não significa apenas dúvida
Ibid., p. 5. " Ibid.. p. 22. retomada em oT omc ^ o ^ ° dlnhclro na basc das relaçõe s soci ais. Scr a Enidish CrowH ií J * d' nex us Por Edward I >. Thompson. " Th e M oral Econom y of th e ui Enghsh Crowd ,n the XVI.lth Century", Pas l m J ^ „ 1(, ly7 ], 5( ). p 76. ]36 Thomas Carlyle, Chamsm, op. cit., p. 52
Anthony Froude, Life of Carlyle 1 d‘reíâ° de John C.lubbe, p. 389
(1884), Columbus, Ohio State Umversity Press, 1978, sob
THmas Carlyle, Les Héros (1H41), traduzido do inglês por François Rosso, Pans, Maisonneuve , fc larose. Éditions des Deux Mondes, 1998. p. 23. * 'W ., p .
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PEQUENO
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biografia
A
a história
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não há mais propriamente nem verdadeiro nem falso. Sao os intelectual, mas também dúvida moral; e da dúvida moral pro dias de glória da Impostura, do Falso-semblante tomando-se cedem todas as formas de infidelidade e de insinceridade, em por si mesmo e chegando a se fazer tomar pela Substância. suma [...] uma paralisia espiritual. [...] não houve época que fosse menos do que o século XVIII uma época de fè, uma época de Carlyle, no entanto, não se limita a celebrar a grandeza e o heróis! A própria possibilidade do heroísmo fora formalmente negada em todos os espíritos. O heroísmo, ao que parece, heroísm o, mas precisa também seus traços sali entes. Co nven cido de pertencia definitivamente ao passado; o reinado das fórmulas que o mundo pulula de charlatães e de impostores, busca distinguir feitas, da futilidade e da trivialidade o substituíra finalmente.125 o “falso grande ” do “verd adeiro : Toda estrutura social é uma representação, não insuportavel mente inexata, de uma veneração hierarquizada dos heróis. [...] Não insuportavelmente inexata, eu disse. Pois todas essas estruturas sociais fundadas na classe são como cheques: todos, a principio, representam ouro, mas alguns, ai de nós!, são obra
A parar de então, a veneração pela grandeza se fez “claudicante, ce gada, paralisada : numa necessidade de tud o ape quenar , os partidários de Jer erm Bent ham trataram dos ideais e das ideias co mo de simples jogos de interesses. Em vez de saudar e admirar o herói, tentaram tomar suas medidas até reduzi-lo a uma espécie de homem medíocre. Luter o, dizem eles, foi um pro du to de sua ép oc a’; foi sua época que o chamou, suscitou, foi sua época que, em suma, tudo fez. Ele, nada... além do que eu, o cnticozinho, tena podido fàzer também! Acho tal julgamento bem entr istecedor e bem pessimista. Sua época o chamou? Ai de nós! Sabemos bem demais que todas as épocas chamam seus grandes homens, mas que muitas vezes não os encontram”.126Toda a Europa parece, aos olhos de Carlyle, presa da maldição do ceticismo Como sublinhará ainda num ensaio de 1850; Num tempo assim, isso se toma a crença universal, a única cieni-i.i -icre ditada - enquanto o co ntrá rio é visto co mo um pueril entusiasmo, - essa triste crença de que estritamente falando não há nenhuma verdade neste mundo, de que o mundo não foi, n.io é e jamais poderá ser conduzido senão pela simulação, a dissimularão e a prática suficientemente hábil dos falsos-semblant es. [...] o
sentido do verd adeiro e do falso es tá perdido,
, p 226 .
decénios nu. ** do ceticismo "É f '° que se acha confr beleza é inm rir i
W'a P° lrm nj sobre o utili tarismo, cf. também
reb^ r r r ' : eT ^ n í ° simplesmente conh^H é bem mais em n "
Chartism, op. ai
Alguns
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de falsários.128
Para definir as qualidades e os diferentes graus de grandeza, re têm Odin, Maomé, Dante, William Shakespeare, Martinho Lutero, John K nox, Samu eljo hnso n, Jean-J acque s Ro usseau, Ro be rt Burns, Oliver Cromwell e Napoleão Bonaparte. Através da reconstrução biográfica dessas onze individualidades, identifica seis categorias fundamentais da evolução histórica; o herói como divindade, pro feta, poeta, predicador, escritor e soberano. A escolha de figuras tão profundamente diferentes umas das outras não é em nada fortuita. Procedendo assim, Carlyle estabelece de partida que o heroísmo pode revestir numerosas formas em funç ão das circunst âncias ( he rói, profeta, poeta... São muitos nomes distintos que em tempos e lugares diferentes damos aos grandes homen s ), mas que o caráter heroico permanece uno e indivisível e persiste sempre tal como é, que os diferentes tipos de herói são todos, intrinsecamente, de uma mesma substância: “No fundo, o grande homem, tal como modelado pela mão da Natureza, é sempre substancialmente o mesmo. Odin, Lutero, Johnson, Burns... Espero conseguir demonstrar que todos são srcinalmente do mesmo estofo e que apenas a acolhida que
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A UnU ,pcnas Pene Ku'da, mas perseguidora, não pode mais ser C° m *
lhado e m«m o í il l0 ? '" '0 ''m 'rK<’ ^ rnaS(Kiulsm°. a inexprimível alegr ia de ver o bem h umi (1930 ) tra duz ido d I ° 0" ’ ^ mar avl lho sa ^ilidade" C f Rob en Musi ), UHom me san s ^ UZ'd° d° ^ P°r PhUi ppe Ja cco tt et , P an s. Édmon s du Seu * 1982. p. 36^367.
Thomas Carlyle. ‘ Thomas Carlyle, m /M.,p. 11 5.
Ide,m iê de la force el du droil Les Héros, op.
rii., p. 36.
(1850), in
Nouveaux Essms. op. dl..
p. 322323.
O PEQ UEN O X - D
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BIOGRAFIA À HISTÓRIA
VERTIGEM DA HISTÓRIA
encontram no mundo e que determina a expressão de sua grandeza soberano capaz de defender os fra cos .133 Nã o c rei o, por ém , que tais ideias possam esclarecer toda a reflexão de Carlyle. Parece-me os toma tão radicalmente diferentes em aparência”.130 Com as conferências sobre o heroísmo, o “sábio de Chelsea" antes que esse género de leitura corre o risco do anacronismo. “O ou o “adivinho puritano”, como é chamado então, está no apogeu que Carlyle entendia por ‘heroísmo’ ou ‘virtude dos chefes’ nada tema ver com o que propõem nossas teorias modernas”, escrevia, de seu sucesso. E admirado, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, por sua integndade. Seu estilo, nutrido de citações bíblicas,pouco antes de sua morte, Emst Cassirer, que sugeria, infelizmente de neologismos e hipérboles expressionistas, apaixona Matthew Ar demasiado brevemente, que Carlyle chegou ao culto dos heróis em razão, entre outras, de seu percurso de historiador: “O que Carlyle nold, John Ruskin, Ralph Waldo Emerson e mesmo Henry David Thoreau. Com os anos, a casa de C hey ne R ow , em Chelsea, onde entendeu sob os termos de ‘heroísmo’ e de dirigismo nada tem a Carlyle vive com sua mulher, Jane, toma-se um lugar de peregrina ver com o que encontramos nas teorias modernas do fascismo ção. Entretanto, com a velhice, a auréola de sabedona com que fora Para um verdadeiro historiador, a história não era, como diz Goethe no Fausto,“eitte Kehrichtfass und eitte Rumpelkammer". ornado começa a murchar. Alguns de seus amigos o evitam em razão Ele não tinha simplesmente o dom de relatar o passado, mas de de suas afirmações, cada vez mais insustentáveis, sobre os negros, os reavivá-lo e tomá-lo presente. O historiador autêntico falava judeus, a missão do Império britânico, a guerra franco-prussiana. e agia como o conjurador de Gulliver. Relatava ‘o passado violentamente por Esse é o caso de John Stuart Mill, c om quem briga glorioso a fim de que o olhar pudesse penetrá-lo e de que se Aboliçãoa duas vezes ao menos: quando de suas declarações contra o pudesse escrutar à vontade’. Manifestamente, Carlyle não encontrou nenhum suporte para suas próprias ideias em toda a e quando toma a defesa do governador Edwardjohn da Escravatura obra de Goethe. Como historiador, foi-lhe preciso dotar-se de Eyre que ordena em 1865 a execução de quatrocentos e cinquenta um pont o de parti da inteiramente n ovo; foi-lhe preciso abrir e rebeldes negros jamaicanos. Pouco a pouco, toda sua obra reveste construir sua própria via —e nesta perspectiva, se não virar de um valor profético sinistro. Até se tomar, ao longo dos anos 1920 e cabeça para baixo, ao m enos m odifica r sua “Filosof ia da vida” . 1930, uma referência para a ideologia fascista e nazista.13' Foi tal modificação que o conduziu à teona do culto do herói e do heroísmo na história.134 O culto dos heróis antecipa, sem dúvida alguma, certas ideias a exaltação das massas (incapazes dc fascistas: o temor da desordem, A' está uma sugestão sobre a qual convém refletir: talvez, para além a aversão pelademocracu pensar, mas dotadas de instintos sãos...), Um Prec°ce delíno carismático, o culto dos heróis provenha, a confusão entre o direito e a força, a necessidade de um verdadei justamente, do conhecimento histórico? Para melhor testar essa ese’ e *mportante voltar às primeiras inquietações historiograficas de Carlyle. Ihtd. p 72. Victor Hugo insi
^ ^A( iguali tária ). Áti la, o bárbaro e Cesar estio em pé de igualdade, assim com o o tun Ju p ' o arauto impenal da Igreja cnstá, e assim por diante. Cf . Fran ck Laurent, “ta i “ , hommc dan s loeuvre de Victor Hug o", Romantisme. R evue du dixneumème sièik. ' • stirá também
no fato de que,
independentemente
poli nca e mo ral que se lhe pode dar, a grandeza é sempre de natureza uni
tána (P °^ ^ ^
spécial “Le gr and homm e", 199 8, p. 638 9.
184(1,
' Cf., especia lmente, Thomas Carlyle, Past and Present (1843), New York, Ceorge P“ Thomas Carlyle, Pamphlets du demierjour, traduzido do inglês e prefaciado por Edw Pans, Mercurc de France. 1906. ■SegundoJ. Sal wyn Schapiro, “Thomas 1945. 17. ? P <17 _____ .
Carlyle. Pro
^
' è|éinv.
phet o f fas cism”, Vie J o u r n a l j t nnvadas com o
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■ntelectual Z"*'0 1*5 comideram o Htro h ,lac lona''socla',snl° Coi tun Idea^l " ''
pensamento de Ca rlyle co m o parte integrante da genealogia C f. especialmente, Benjan un H. Lehm an, Carlyle‘s Theory of Húí o ry, and Infl uence on Carlyle's W
ork. A Study of a Nineteenth
Cimbn dKr c )Urham’ DUke Unive r5it> ’ Press' ,92 8; Herbert F .C. G nerson , Carlyle and Hitler, Ivtuahté de ( UnlV mity *>ress’ '93 3; Emes t Seillière, Un précuneur du nationalsocialisme: ThomasCari ^ ltlons da la Nouvelle Revue critique, 1935; Hugh TrevorRoper, Ern
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O
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biografia
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história
III
On History, escrita em Entre as obras menores de Carlyle, há u ma, 1830, pouco antes de ele se tomar um autor célebre e o queridinho da boa sociedade londrina, que tem todos os traços de um verdadeiro manifesto pela história biográfica: “ A vida social —lê-se nela - é o agregado de todas as Vidas individuais que constituem a sociedade”.115 Nenhumgeração grande após homem, mas uma história quebiografias. é o fruto da estrati ficação, geração, de inumeráveis Carlyle se interroga sobre os verdadeiros protagonistas da história: “Quem foi o maior inovador, quem foi o mais importante personagem da história do homem, aquele que pela primeira vez fez exércitos atravessarem os Alpes e obteve as vitórias de Cannes e do Trasimeno; ou o rústico anónimo que primeiro forjou para si uma enxada de ferro?”.136Mais de cem anos antes de Bertolt Brecht, ele avança que apenas uma ínfima parte da história é escrita por seus presumidos autores, sua essência sendo o fruto de um número incalculável de vontades individuais, do trabalho infinito de homens sem nome: Quando o carvalho é abatido, a floresta inteira retumba; mas uma quantidade de glandes é semeada silenciosamente por um vento qualquer de passagem a que ninguém prestou atenção. [...] tod o o m obiliário essencial, as invenções e as tradições, e o s hábito s coudianos que regulam e sustentam nossa existência, são a obra, não dos Dracons e dos Hampdens, mas de marinheiros fenícios, de pedreiros italianos e de metalúrgicos saxões, de filósofos, de alquimistas, de profetas, e de toda a sequência há muito tempo esquecida de artistas e artesãos.137
O texto é acompanhado igualmente de um voto: não está longe o tempo em que o historiador que persistir em querer compreender o passado estudando a corte ou os campos de batalha “passará por um gazeteiro mais ou menos instrutivo”, mas não será mais consi derado um historiador.138
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VERTIGEM DA HISTÓRIA
Como numerosos místicos, Carlyle detecta em cada coisa dupla significação, propondo uma dicotomia absoluta entre a aparência exterior e a profundidade intema. Existe uma compreensão banal, que raciocina por fórmulas e receitas, e uma compreensão subli me, dirá alguns anos mais tardeSartor em Resartus: “Aos olhos da lógica, o que é um homem? Um bípede onívoro que traja calções. Aos olhos da razão pura, o que ele é? Uma alma, um espírito, uma aparição divina”.139 Co m o em todo s os do mí nio s, a esfera da his tória também conta em seu seio com artistas e artesãos, “videntes”, capazes de perceber o mistério do passado, e “simples basbaques”, especuladores da causa e do efeito, que leem “o livro inescrutável da natureza como se fosse um grande li vro de co nta s” : “H om en s que trabalham maquinalmente num setor, sem olhos para o con junto, não sentindo que há um conjunto; e homens que iluminam e enobrecem o mais humilde domínio com uma ideia de conjunto, e costumam saber que é apenas no co nju nto que a par te po de ser verdadeiramente dis cer nid a” .140 Adivisão do trabalho e a especialização trazem o risco de au mentar as fileiras dos artesãos em detrimento daquelas dos artistas. Basta pensar nos historiadores da Igreja: [Suas] inve stigaç ões versam antes sobre o mecani smo exterio r, os simples envelopes e acidentes superficiais do objeto, do que sobre o próprio objeto: como se a Igreja estivesse nas salas dos capítulos episcopais [...], e não no coração dos homens crentes [■■■]• A história da Igreja é a hist ória da Igreja invis ível ta nto quanto da Ig reja visível, a qual, separada da primeira , n ão é m ais do que um edifício vazio, dourado, talvez, e todo recoberto de velhos ex-votos, mas inútil, e mesmo de uma imundície pestilencial; e de que é menos importante escrever a história do que precipitar a queda.141
Resam,s, op Ol Thomas Carlyle, “Sur 1’histoire", '* Ibid. Ibid., p. 305. ,x Ibi d . p. 309310.
op. rii p
304
'
, p 7576, 83, 259.
Sdidlcr em SUJ ^ lst01re ' °P nl . P 30 9. Carlyle retoma a disti ^ niaio dr I 7 f(9 » mau^ura * s°bre a história universal proferida n Jnii».. . ‘PT^Ikton histoi re univers elle et pourquoi 1,1Tk__ ' ' n^M1 tradim H n Hr* — c ««<
nção proposta por Friednch na Universid ade de Iena em l’étudieton?” , in Mé lan ves n— ««..i. .. ..... .
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O PEQUENO x - D a biografia
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A história
Ao longo dos anos 1830, é justamente pela biografia que Carlyle espera descobrir uma nova abordagem da história, mais artistica e menos artesanal, e que dana conta do sentido profundo do passado: “Essa Inglaterra do ano 1200 não era um vazio quimérico, uma terra de sonhos, povoada por simples fantasmas vaporosos, pelos Foedera de Rymer, por doutnnas sobre a constituição, mas uma sólida terra verde onde cresciam o trig o e diversas outras co isas” .142 Os homens que ali viviam “tinham uma alma”: “Não por ouvir dizer apenas, e por figura de estilo - mas com o uma v erdade que sabiam e de acordo com a qual agiam”.14’ A biografia pode contnbuir para fazer emergir essas emoções secretas. Hippolyte Taine escreverá sobre Carlyle: Está aí seu traço próprio, o traço próprio de todo historiador que tem o sentimento do real, o de compreender que os per gaminhos, as muralhas, as vestes, os próprios corpos não são mais do que envelopes e documentos; que o fato verdadeiro é o sentimento interior dos homens que viveram, que o único tato importante é o estado e a estrutura de suas almas [...]. É preciso se dizer e se repetir essa palavra: a história é só a histó ria de coração; temos que buscar os sentimentos das gerações passadas, e não devemos buscar nenhuma outra coisa. Eis o que percebe Carlyle; o homem está diante dele, ressuscitado, e ele penetra até seu interior, o vê sentir, sofrer e querer, da maneira particular e pessoal, absolutamente perdida e extinta, como sentiu, sofreu e quis.144
Seu modelo é o centauro Quiron que, longe de julgar o passa do, desliza em seus personagens para chorar, nr, amar, desprezar com ele s, porque um coraçã o amoroso é o co m eç o de todo Conhecimento”.145
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postula que, se uma sociedade é o fruto de todas as vidas individuais, então o processo histórico é umcontinuum infinito de pensamentos, de emoções e de ações mais ou menos significativas, um feixe de milhares de energias vitais em estado de movimento perpétuo: Não , nada está morto no univers o; o que chamamos morto est á apenas mudado, são forças que trabalham em sentido inverso! A folha que apodrece nos ventos úrrudos, disse alguém, possui ainda força; sem isso como poderiaapodrecer ? Nosso universo inteiro é apenas uma junção de forças; de mil forças diversas; da gravitação ao pensamento e à vontade; a liberdade do ho mem rodeada pelas necessidades da natureza: de tudo isso nada adormece jamais, tudo está sempre desperto e ativo.146
O que significa que não é possível designar nem um prota gonista primordial nem um acontecimento-chave. De fato, não existem elementos distintos: A coisa que jaz isolada e inativa, jamais a descobrirás; procura por toda parte, da montanha de granito, que desde a criação se reduz lentamente a pó, até a nuvem de vapor fugitiva, ate o homem que vive; até a ação do homem, até a fala que pro nuncia. [...] O que é então essa infinidade de coisas que cha mamos universo, senão uma ação, uma soma total de ações e atividades. [...] a coisa que consideras é uma ação, o produto e a expressão de uma ação exercida. [...] as coisas humanas estão continuamente em movimento; são uma série de ações e de reações, um trabalho progressivo.141
Como Carlyle já indicara em seu ensaio sobre Voltaire, a história não vive de causas simples: Tampouco deve acontecer que essa sequência, de que gosta mos de falar como de uma “cadeia de causas , seja figurada propriamente como uma “cadeia” ou uma linha; devemos representá-la antes como um tecido, ou uma superfície de inumeráveis linhas, que se estiram em largura e cumprimento, e numa complexidade que frustrará e extraviará completamente
Graças a sua intuição um pouco obsessiva pela essência biogra íca da história, Carlyle se estima capaz de tomar a exata medida a idade periférica do passado. História Na da Revolução Francesa
os cálculos mais assíduos.14* Thomas Carlyle, p. '"Ibid. 47 THo^
Pasi and Presenl, op. at " P
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op ril., p.
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l ) (iv> \ , *'•
K,n ' G emier Bailhcre, 1864,
p. 4849.
, At morai k, c Nouvraux Essais chouis de cntique et de morai,
Thoinas Carlyle,
Hisloire de la Révolulion Francaise, op. dl.,
’ lb,d •i II. p. 1321 33. Thomas Carlyle, "Voltaire",
op. dl.,
p. 24.
t. II, p. 138.
A
Esse sentido agudo da vitalidade histórica desemboca numa crítica cerrada da história factual, geralmente demasiado preocupada com a ordem cronológica: Nosso pêndulo soa quando uma hora sucede a uma hora; mas nenhum batente no Relógio do Tempo ressoa através do universo quando uma Era sucede a uma Era. Os homens não sabem o que têm entre suas mãos: assim como a calma é a característica da força, as causas que têm mais peso podem ser as mais silenciosas.149
Agastado pelo barulho de superfície da cronologia, Carlyle confes sa diversas vezes sua desconfiança diante daqueles que pretendem compreender o passado enfileirando os fatos como as pérolas de um colar. Os acontecimentos representam apenas a camada exterior da realidade: nos campos de batalha, no Parlamento ou nas Antecâmaras reais, acontecem somente incidentes superficiais; mesmo as leis não chegam a exprimir a vida, "mas apenas a casa onde se escoa nossa vida, elas não são mais do que as parede s nuas da casa”. 150 Assim, o elemento-chave da época moderna não foi nem a dieta de Worms, nem a batalha de Austerlitz ou de Wagran, nem qualquer outra data particular, foi antes [...] a ide ia que veio a George Fox de se fazer um hábito todo de couro. Esse homem, o primeiro dos Quakers e sapateiro de pro fissão, era uma daqueles a quem, sob uma forma mais ou menos pura, a divina ideia do universo digna se manifestar, brilhando em suas almas, através de todos os envoltórios da ignorância e da degradação terrestre, numa inexprimível majestade.151
O que quer que seja, o acontecimento —político, legislativo ou nu itar l sempre incerto e artificial demais. “Batalhas e tumultos de guerra, que no momento ensurdecem todas as orelhas e embriagam cada coração de alegna ou de terror, passam como bngas de bar”.152 ertos episódios adquirem uma aura sagrada, são apresentados como Thonias Carlyle, "S Ibid., p. 305. Thomas Carlyle.
ur 1'histoire".
op. ai.,
Sartor Resartus, op. eit.,
Thomas Carlyle, "Sur 1'histoire",
p 306
fatos históricos, de maneira fortuita, independentemente de seu peso: “Em primeiro lugar, entre as diversas testemunhas, que são também partes interessadas, não há mais que uma vaga estupefação, misturada com temor ou esperança, e o barulho de mil línguas do boato; até que, após certo tempo, o conflito dos testemunhos se tenha apaziguado e fundido em algum resultado geral: e sobre isso é decidido, pela maioria das vozes, que tal “Passagem do Rubicão”, tal “Acusação de Strafford”, tal “Convocação dos Notáveis” são épocas da história do mundo, os pontos cardeais entre os quais rolam as revoluções do mundo”.153 Em suma, a história não é uma sequência coerente e contínua de acontecimentos conectados entre si. “O homem mais dotado não pode observar, com mais forte razão não pode relatar mais do que asérie das própnas impressões: sua observação, por conseguinte, deve ser sucessiva, enquanto as coisas feitas foram frequentemente simultâneas',as coisas feitas foram não uma série, mas um grupo. Não acontece na história em ação o que acontece na história escrita: os acontecimentos efetivos não estão entre si numa relação tão simples como a de pai e filhos; cada acontecimento particular é o produto, não de um único acontecimento, mas de todos os outros aconteci mentos anteriores ou contemporâneos, e se combinará por sua vez com todos os outros, para dar nascimento a novos acontecimentos, é um Caos do ser, sempre vivo, sempre em trabalho, em que as formas, umas após as outras, destacam-se, feitas de inumeráveis elemen tos”. 154 É daí que toma m forma certas considerações inte ressantes sobre o relato histórico. Para Carlyle, o historiador está condenado a se mover no seio de uma geometria plana, que não faz justiça aovolume do passado: “Da mesma forma, todo relato é, por sua natureza, apenas de uma única dimensão; adianta-se apenas em direção a um ponto único, ou em direção a pontos sucessivos. ° relato é uma linha, a ação é um cubo. Ai de nós! Nossas cadeias, nossas pequenas cadeias de “causas e efeitos”, que estendemos tão assiduamente através de alguns anos ou de alguns quilómetros
p. 333
op. rit., p. 30 5 .
VERTIGEM DA HISTÓRIA
p. 306. '** lh“l . p. 307.
O PEQUENO * - D a biografia
A
à história
quadrados, enquanto o Todo é uma vasta, profunda imensidão, e cada átomo está encadeado e ligado com todos”.155 Mas, dando a palavra à vitalidade periférica da história, Carlyle exprime, por esse mesmo gesto, um luto. Recorda que pedaços inteiros do passado estão perdidos para sempre: Podemos dizer ajusto titulo que, de nossa História, a parte mais importante está perdida sem volta; [...] e aferrar respeitosamente nossos olhares a esses locais sombrios e perdidos do passado onde, num oblívio, informe, nossos principais benfeitores, com seus esforços diligentes, mas não co m os frutos destes esforços, jazem sepultados.1 56
Os documentos que acompanham nossas incursões ao coração dos séculos passados “ não são mais que luzeiros duvidosos, esparsos num campo imenso que deixam entrever sem o iluminar”.157De tempos em tempos, acontece-lhe reconsiderar um episódio e descobrir assim que, após a batalha de Worcester, em 1651, Carlos II encontrou refugio junto a um pobre camponês católico. Mas logo a sombra toma-se novamente espessa: Como pode que apenas ele, de todos os rústicos da Inglaterra que trabalhavam e viviam ao mesmo tempo que ele, sobre os quais o sol abençoado brilhava nesse mesmo “quinto dia de setembro , tenha chegado até nós; que esse pobre par de sap atos pregados, entre todos os milhões de peles que foram curtidas, cortadas e gastas, subsista e permaneça, imobilizado, completo, a nossa vistar Vemos o homem mesmo que por um instante; num instante, o véu da Noite se abre, permitindo-nos constatar e ver, e logo se refecha sobre ele —para sempre.158
paradeCarlyle, o ser mais humano é antes tudo racional um animal memo rial, Se, capaz se lembrar, do que um de animal e politico,
P ^ 7 Algu n' decénios mais tarde,
o historiador alemão Ed
uard M eyer partilhará es ta
" 30 °k* crvar < 1uc« embora o passado seja sempre feito de curvas, compostas linhas: Eduard P*
""d Ceschichte des Al,er,ums. Halle. Verlag Max Niemeyer, 1910. p. 167. Thomas Carlyle, "Sur rhistoire", op. ãt., p. 305. Hippolyte Taine,
L ’ldéalisme anglais,
op. ri/., p. 8384.
'“ Thomas Carlyle , "Du genre bi ographique",
op. àl„
p. 13.
VERTIGEM DA HISTÓRIA
ele percebe, no entanto, a fragilidade da natureza humana, inclinada ao esquecimento. Sabe bem que, além das amnésias, a memória é infiel, que ela modifica incessantemente a hierarquia dos fatos: pode mesmo amanhã descobrir o alcance daquilo que é hoje escrito em minúsculas e apagar o que está escrito em caixa alta. Sabe igualmente que o trabalho de manipulação não concerne unicamente à memória, mas provém também de nossa maneira de olhar: a percepção que cada um de nós tem dos acontecimentos não é em nada comparável à dos outros. E se a história fosse impossível, ou mesmo inexistente? Se só existisse umahistóriapara ? Encontramo-nos em pleno Rashomon. A ideia procede de uma velha anedota, já contada por Goethe em 1806: pouco tempo após ter caído em desgraça, durante a detenção que devia preceder sua decapitação, Sir Walter Raleigh observa da janela de sua cela uma escaramuça; quando escuta as três outras testemunhas contarem os fatos, cada uma de maneira diferente, o antigo favorito da rainha Elizabete percebe que nenhum dos testemunhos oculares corresponde ao que ele viu. O acontecimento se desintegrou ime diatamente numa multidão de imagens. No final das contas, o que se passa não contém nenhuma verdade em si e só tem sentido quando pensado e contado. O mesmo se passa com os acontecimentos his tóricos (como a travessia do Rubicão ouimpeachment o de Strafford) que são portanto insignificantes, inexistentes enquanto história. O que resta é a epopeia tal como foi sonhada, imaginada e elaborada por impressões pessoais...
IV On History coloca em cena um dilema. Para Carlyle, somente uma reflexão biográfica permite apreender a vida íntima, secreta, do passado. Ele sabe, no entanto, que se trata de uma tarefa ines gotável: como se pode almejar abarcar todas as existências humanas que alimentaram os processos históricos? Mas se uma só biografia, mesmo nossa própria biografia, mesmo que a estudemos e recapitulemos como quisermos, permanece-nos em tantos pontos ininteligível, quanto mais o permanecerão estas milhões de biografias, de que os próprios
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biografia
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fatos, sem falar de seu sentido, nos são desconhecidos e não nos podem ser conhecidos!159
As impulsões centrífugas da vida social parecem-lhe incoeren tes, frágeis e fragmentadas, suscitando nele o sentimento crescente da natureza infinita da história. É justamente porque essa é a soma da ação humana, e portanto todo um universo, que seus limites se esquivam. O caos do passado, “sempre vivo, sempre em trabalho, em que as formas, umas após as outras, se destacam, feitas de inumeráveis elemento s , é “sem limite, com o a morada e a duração do homem, insondável como a alma e o destino do homem”. Prisioneiro desse dilema, acaba por complexo encarar amanuscrito, história como obscura algaraviaCarlyle profética: “Desse todo uma coberto de informes caracteres desconhecidos e inextricavelmente encavalados, algumas letras, algumas palavras podem ser decifradas”.160 Trata-se de uma conclusão um bocado incómoda para um ini migo implacável do ceticismo. Pouco a pouco, graças ao exemplo de Wilhelm Meister, Carlyle percebe que nenhuma reflexão poderá distanciar a negação e o desespero: “Não se pode pôr fim à dúvida, de qualquer natureza queseja, senão pela aç ão ” .161 E que agir significa, para o historiador, conter as forças do caos. Em 1833, entrevê todavia uma saída.On history agam recorda por certo, uma vez ainda, todo o desespero que o caráter miserável e defeituoso da história engendra:
princípio dualista que escande toda nossa vida e, com uma espécie de talento inconsciente, ora rememora, ora esquece. Uma vez que a terra não pode guardar a lembrança de tudo o que foi feito, em certo ponto sobrevêm o esquecimento, isto é, “a página escura sobre a qual a memóna escreve e toma legíveis seus caracteres de luz; se tudo fosse luminoso, nada se poderia ler, não mais do que se tudo fosse trevas”. Por mais retumbantes, os acontecimentos vão e vêm, balançam e caem um após o outro, “pois tudo que emergiu deve um dia soçobrar: o que não pode ser guardado no espírito quer pre cisamente sa ir do espírito” .163 Por vezes acontece mesmo a Carlyle pensar que a sociedade moderna sofre de um exasperante excesso de memóna, “pois, a bem da verdade, considerando a atividade da Pluma e da Imprensa históricas durante este último meio século, e a quantidade de história que ela produziu neste único período, e como é provável que ela cresça doravante em proporção geométrica decimal ou vigesimal —poderíamos sentir que o dia não está longe em que, apercebendo-se de que a Terra inteira não conteria mais estas relações do que foi feito sobre a Terra, a memória humana deveria se abater confu ndida, e cessar de se lembrar . Ele não tem nenhuma intenção de acabar num mundo sobrecarregado de lembranças, incapaz de pensar: Se não houvesse nenhuma abreviação da história, não poderíamos nos lembrar além de uma semana. Bem mais, abordemo-la sem essa precaução, excluamos absolutamente as abreviações, não poderíamos nos lembrar de uma hora, ou de absolut amente nad a. poi s o tempo, como o espaço, infinitamente é divisível; e uma hora, com seus acontecimentos, com suas sensações e suas emoções, poderia se estender de tal maneira que cobriria o campo inteiro
A história é a Carta de Instruções que as velhas gerações escre vem c de que fazem o legado póstumo às novas gerações. [...] Da coisa agora sile nciosa que se nomeia passado, que foi outrora o presente, com bastante barulho, que sabemos? Nossas Cartas dc Instruções nos chegam no mais triste estado: falsificadas, apagadas, rasgadas, perdidas, restando apenas um fragmento; e mesmo este tão difícil de ler ou de soletrar.162
ctanto, o valor do esquecimento se afirma pouco a pouco: a * ona, sej a ela individual, autobiográfica ou coletiva, segue o n*oiu.. < ulyl r. "W
fl»-' .P .Vr7
I
da memória, e lançaria todo o resto para além de seus limites.
Mas não podemos nos remeter apenas ao esquecimento. É preciso fazer mais: desembaraçar-se das escórias, concentrar o espaço e o tempo numa dimensão exemplar, postular, sem incerteza, um ponto
ni . P 3o«
Pasl and Presen,, op . cit„ p. 19 9 . *’ Thomas Carlyle "Sur ritul o “On Histo ry agam" em 183 .7 P 317
“'ftiJ , 322 p .
Thomas C«lyle,
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VERTIGEM DA HISTÓRIA
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luminoso. “A história, pois, antes de poder tomar-se história uni versal, precisa acima de tudo ser con den sad a” .166 E po uco importa se a condensação não é justa, se celebra Cleópatra e Calígula em detrimento “dos nobres homens que agem , ousam e aguentam”.167 Progressivamente, Carlyle se convence de que a compreensão histórica permanece essencialmente metafórica e de que é preciso abandonar a linguagem realista pela expressão figurada: “Toda lin guagem, à exceção daquela que concerne aos objetos sensíveis, é ou foi uma linguagem figurada. Prodigiosa influência da metáfora! Jamais o percebera até rec ent em ent e. U m a obra verdadeiramente
nos lançam em direções contrárias. Carlyle parece novamente presa da ilusão de poder apreender a realidade histórica em sua íntegra. Depois se recupera, graças a uma estratégia narrativa fundada na metonímia. E eis que desfilam o patnarca Voltaire, o dragão Drouet, a bela princesa de Lamballe, o simpático e discreto Bamave, o es verdeado Robespierre, o rígido Roland de La Platrière, o gigante solitário Mirabeau, esse indolente Luís, esse bravo Bouillé. E assim por diante. Tantos nomes, sempre precedidos de um artigo defini do ou de um pronome demonstrativo: eles não falam, não se apresen tam, nada dizem sobre si mesmos. Mais do que seres humanos em
útil e tilosófica seria um bom Ensaio sobre as metáforas. creverei um”.168
carne e osso, são personagens ou caracteres morais, constantemente absorvidos pela ação. Sua existência nada tem de pessoal, é uma expressão da história universal. O mesmo acontece com os lugares. O quarto de Luís XV, o “rei indolente”, toma-se o ponto cardeal que resume cada história da França pré-revolucionária. O historiador entra nessa peça, vê Luís doente, aterrorizado pela morte, rodeado pelos quinhentos mil fantasmas vergonhosamente massacrados em Rossbach e no Quebec, “para que tua prostituta fosse vingada de um epigrama” .171 Fazendo seu o olhar de Luís, toma-se o olho da históna”: “Há aqui outra coisa doente além do pobre Luís, não somente o rei da França, mas a realeza da França: eis o que, após uma longa luta de puxões e rasgões, se parte em frangalhos .
Um dia es
A História da Revolução Francesa é o fruto de um profundo conflito intenor: entre o desejo inicial de dar a palavra a todos os protagonistas da história e aquele de condensar a essência do fenómeno revolucionário. Carlyle se interroga: onde está a Revolução? No palácio real, nos costumes do rei e da rainha, em seus excessos, em suas cabalas, em sua imbecilidade? Não: “Ela está neste ho mem aqui, ela está naquele homem lá, como uma raiva ou como um terror, está em todos os homens. Invisível, impalpável; e no entanto nenhum negro Azrael, com as asas abertas sobre a metade do continente, varrendo tudo com sua espada de um mar a outro, podena ser uma realidade mais verdadeira ” .169 Mas, se é assim, como podemos captar todas as forças em jogo —ainda mais que elas são in\ÍM\eis. Para resolver esse problem a é preci so que a me lhor pe^ctração busque a luz em toda fonte possível, dirija o olhar a todo - gir onde seja possível a visão ou uma lu minos idade de visão, e na! ela pouerá estimar satisfeita se resol ve o problem a, ainda que aproximativamente*’ r Em toda fonte possível, em todo lugar P ssive ... cis aí, ainda uma vez, as forç as cen tríf ugas da história que
V As obras de Carlyle sobre a história lançam uma nova luz so bre seu itinerário. Inspiradas por inquietações de ordem política, as conferências sobre a grandeza procedem sem dúvida também da fragmentação do con he cim en to. 171 O heró i faz contrapeso às forças centrífugas da história, às imagens de indigestão, de fermentação, de obstrução, de conflagração. Sob certos aspectos, mesmo as conferên cias de 1840 confirmam que o herói está impregnado de inquietações
* ■> P 321. p 323. 1.1 Ibid, t. ], p. 26. p o r Chl^Hwt ’ Thomas CarM . u
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ra, ¥f' fr° m 23 Í ^ 1 8 2 2 ’6 * ^ Grolie r Club, 1898, p. 141142.
*"*• * « ■. m. P> 25
m 2’
^
1.1 Ibid., t. I, p. 9 "C f. Ann R.gncy , "Th e Unten anted Places of t he Past : Thomas Carlyle toncal Ignorance”,
History and Throry,
1996, 35, p. 351.
and t he Vanet.es of H.s
O PEQUE NO X - D
a
BtOGftAFIA À HISTÓRIA
epistemologicas. De que estofo os heróis são feitos? Carlyle jamais fomece uma definição exaustiva, menos ainda coerente. Ao contrá rio, continua a deslizar de uma imagem para outra, num crescendo visionário, tal um predicador puritano presa do medo e da venera ção. No entanto, se nos atemos aos exemplos concretos e deixamos de lado o excesso de ênfase estilística, a força carismática do herói mostra-se drasticamente diminuída. Entre os grandes homens retidos por Carlyle, alguns estão certamente em condições de deslanchar a energia coletiva, mas é difícil imaginar Dante Alighien ou William a espeare com os traços de chefes capaze s de inflamar as massas
A
A sincendade, para Carlyle, não é uma maneira de se conduzir e não implica apenas não dizer mentiras. Designa antes a clarividên cia, aquela que possui Dante que sabe capturar “a melodia que jaz escondida [no mais secreto do coração das coisas], a harmonia e a coerên cia interiores” . O olhar que dardeja como o raio no fundo do coração das coisas e vê o que é sua verdade, eis o que, para mim, dá ao livro [o Corão] todo seu valor e atesta que é um dom da própria Natureza: um dom que ela outorga a todos os homens, mas que apenas um em um milhão, talvez, é capaz de não ignorar. E o que chamo
como lenha seca. Samuel Johnson, Jean-J acques Rousseau ou Robert Podenam mesmo passar por perdedores: Nenhum dos três obteve vitórias comparáveis [àquelasde Goethe]: combateram com coragem, mas caíram no campo de honra do espírito. Não foram como ele heroicos portadores de luz, mas eroicos buscadores de luz. É que suas vidas se desenrolaram em mbientes cheios de obstáculo s e foram com o uma luta di ante uma montanha de obstáculos: de maneira que suas almas não puderam verdadeiramente se abrir na luz. 174
a sinceridade da visão, que só se enraíza num coração sincero.nh
Que a sinceridade da visão seja o traço saliente do heroísmo fica ainda mais evidente se consideramos seu texto sobre Goethe. Neste, sublinha duas qualidades acima de tudo. O intelecto emblemático, a saber, a capacidade de dar forma aos sentimentos: “Tudo tem forma, tudo tem existência visual; a imaginação do poetadá corpo às coisas invisíveis, sua pluma as converte em forma” .1 E a universalidade: Em Goethe descobrimos o exemplo de longe o mais impres sionante, em nosso tempo, de um escritor que é, estritamente falando, o que a Filosofia pode chamar um homem. Ele não é nobre nem plebeu, nem liberal nem subordinado, nem infiel nem devoto; mas é o que há de mais excelente em todos esses, fundidos numa pura mistura; “um Ho mem claro e uni versa l .
. . ^e' tex to dessas seis conf erên cias se destac a um único sui mm l nCer°. onze heróis se distinguem, com efeito, por ^ .SO lU ta SIncendade- Tra ta-s e de uma qual idade “suDen supenor a graça : ai]"
' ^0r^e m caPaz de realizar o que quer que s eja de grande en a a^so^ucamen te fé naquilo que faz ou proclam a, e é
ver C am° Uni ^omem sincero. Essa qualidade não tem nada a P<>uca lnceridade que se ex põe deli bera dam ente : esta é bem vezr* ui-. ° Ca Cva‘^osa justi ficaç ão calcul ada, e o mais das do wind ?í 1 nian^estaÇà o de am or p róprio. Já a sincer idad e f-*Urc de omem ®um fato de sua natureza de que não pode vanidom C^uer ®co r>sc ient e. f...] O grande hom em não se y. 0 • ., SCr Slnc er°. longe disso , e talvez nem se pergu nte qui sua sinceridade, de fato, não dep ende de le.l7< ’ Thomas Carlyle, Les Héros, op p 212 quc ° stlno dos verdadr.ro. 175 OU., p. 74.75. Brand"
P 'CUtcxto sobre Voltaire, Carlyle afirmara mesmo ens e o de „ào serem «conh ecido..
VERTIGEM OA HISTÓRIA
A poesia de Goethe não é uma faculdade separada, uma mecânica mental; mas é a voz de toda a harmoniosa virilidade: bem mais, é a própria harmonia, a harmonia viva e vivificante dessa rica virilidade que forma su a poesia” .178 Um a har monia que não é sinónimo de paz, mas de ausência de maneirismo. Goethe é descrito sobretudo como um lutador. Numa época minada pela incredulidade e pela vaidade, incessantemente atormentada pela dúvida, sua vida, en quanto escritor, pensador e homem, foi marcada pela luta contra
'"'Mp. 121, 101. Thomas Carlyle. p. 1%.
Goethe (1832), in
Nouveaux
Essai s, op. ri»., p. 236.
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A VERTIGEM DA HISTÓRI A
BOGRA HA À HISTÓRIA
o ceticismo. Werther interpreta por certo o desespero de todos aqueles que não renunciaram a pensar: Todo o mundo o sentia [o desespero], só ele soube lhe dar voz. E aí jaz o segredo de sua popularidade; e m seu coraçã o profu ndo, e impressionável, sentia mil vezes mais vivamente que cada um sentia, graças ao dom criador que lhe pertencia como poeta, deu a isso uma forma visivel, uma localização própria e um nome; tez-se assi m o porta -voz de sua g eraç ão.17'1Mas Wilhelm Meister, expressã o de uma extraordinária firmeza intelectual, testemunha a liberação da dúvida: “Goethe nessa questão foi mais completo que qualquer outro homem de seu tempo”.180
E nessa perspectiva que a históna é descrita como um conjunto múltiplo e estratificado: [Cada livro] é o pensamento do homem, e concentra virtudes quase taumatúrgicas uma vez que pode incitar o homem a to das as mais belas ações. É ao mesmo tempo a materialização e o vetor do pensamento. A cidade de Londres, com todas suas casas, seus palácios, suas máquinas a vapor, suas catedrais, com 'eu tumulto e sua animação desmedidos, é outra coisa que o pensamento, que milhões de pensamentos reunidos num todo, que um imenso condensado de pensamento materializado no tijolo, no terro, na fumaça, na poeira, nos palácios, nos ministé rios e no Parlamento, nos fiacres para Hackney e para as docas de Santa Catanna e todo o re sto? .181
E o herói c aquele que, por sua sinceridade, sabe captar a realidade m toda sua verdade e profundeza. Ele pode combater, governar, evcrc\er, pregar, mas o que faz a sua grandeza e a alimenta consis^ ua capacidade de penetrar, para além da aparência exterior, ncia das coisas.“Semelhante O pensamento penetrante faz do herói csp.nto fecundador: a um raio enviado pelo Céu,ume -omens o esperam, como lenha seca, para poderem por mar se fogo , embora só, está ligado aos outr os homens por uma relaçào divina: verdadeira fonte de luz, é “um ser dotado
onginalmente e de maneira inata de uma capacidade flamejante de intçlc cção [...] que envolve na sua írradiaçao todas as almas . E apenas nas situações mais felizes que a capacidade de fecundar se traduz imediatam ente em intencionalidade cansmática. O que diz, todos os outros homens estavam quase prontos a dizê-lo, aspiravam a poder dizê-lo. Os pensamentos de todos, então, se erguem como se despertassem de um longo e penoso sono causado por algum sor tilégio, e se reúnem em tomo do pensamento do grande visionáno, mesmo lhe respon dem” .183 Po r suas runas e suas nmas, Odin exalta nos outros a faculdade de pensar: “Daquilo de que tivera a visão e que ensinou por meio de suas runas e de seus versos, todos os povos do Norte se impregnaram e o transmitiram de geração em geração. i 1 >J 184 Seu modo de pensamento se tomo u o mo do de pensamento deles . Maomé brota como uma fagulha “no meio de mortas extensões de areia cinza” e dissemina uma areia que es revela pólvor a que logo explodiu em cham as subindo até os Céus, de Deli a Granada . Quanto a Lutero, ele sabe discernir as necessidades da coletividade, moldá-las para conduzi-las à realização: em 17 de abril de 1521, seu discurso na dieta de Wor ms exp nm e as súplicas e as adjurações de todos nós, aquelas do mundo inteiro, quando a alma jaz aprisionada numa golilha de obscuridade, paralisada num negro pesadelo espectral dominado por uma terrificante Quimera de tiara que se chamava a si mesma pai da Cristandade, luga r-tenen te de Deus e que sei eu. . Sob certos aspectos, o herói evoca o historiador artista. Graças a um imenso esforço visionário (uma espécie de redução ótica), um e outro não se limitam a representar o mundo, a reproduzir o que é visível. Revelam-no: encarnam um ponto de unidade secreto, o pnncípio orga nizad or que dá uma forma essencial ao caos da vi a toma a u - "eingestaltes Leben ”, co mo dissera Goethe. O herói só tempo solidárias e complementares as forças vitais peri enc que, anterionnente, puxavam em todos os sentidos, enquanto o
Ibid., p 24, 36. Iw Ibid., p. 46. ”
. p. 206.
* Ibid., p. 54.
p. 235. Thomas C.arlyl c, Us Héros, op. a,.,
Ibid., p 1 82. p. 22().
Cf. Jean Lacoste,
Goethe. Scietite et philosophie, op. cit.,
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A
historiador assinala o ponto cardeal, o ponto que reflete o universo inteiro. Fascinado pelas ilusões de ótica (em 1852 escreverá um tra tado intituladoSpiritual Optics), Carlyle cede aos fáceis artifícios do espelh o.1(1 Assim, sem se dar conta, trai prof unda men te seu grande profeta. E verdade que, também para Goethe, a realidade não pode ser conhecida diretamente, e que o conhecimento é sempre uma mediação: o verdadeiro, só o vemos em reflexo, em exemplo, em símbolo. Mas isso não significa que se possa encontrar um ponto de refração capaz de revelar o todo: “Nenhuma época oferece um belvedere de onde se possa abarcar co m o o lhar toda essa época”.188 Ao contrário, a própria ideiacoisa lhe parece desviante e superficial: “É difícil reproduzir qualquer de maneira realmente imparcial. Poder-se-ia alegar que o espelho é uma exceção. Mas nele tampouco vemos jamais nossa imagem realmente exata. Mesmo o espelho inverte a imagem e faz de nossa mão esquerda nossa mão direita. Que esteja ai o emblema de todas nossas reflexões sobre nós mesmos”.189
VI
As argumentações heróicas parecem, à primeira vista, bastiões em defesa da biografia. Na verdade, são bastante ambíguas. Os poucos personagens do passado que gozam de uma dignidade pessoal têm bem pouco de hum ano: mais que homens , são almas, verdadeiras aparições divinas. Mesmo se a vida humana lhe parece uma mistura do divino e do bestialbeastgodhood ( ), Carlyle se convence sempre mais de que os aspectos corporais podem, ou melhor, devem, ser afastados para exaltar o núcleo arquetípico do herói (Napoleão em Santa Helena é representado como um Prometeu acorrentado). Através dessa cui dadosa operação de limpeza, de eliminação de todo traço corporal, ele espera penetrar nessa “região fundamental do espírito em que os pensamentos e os sentimentos não podem ser confinados na muralha da personalidade”. Visa a ultrapassar a lei da individualidad e, a fazer da biografia “um a solução para purificar os olhos de todo egotismo . Estamos bem longe das celebrações da singularidade. O culto dos heróis está fundado na renúncia ao eu, no esquecimento da pessoa, para tender ao universal, ao ponto do espelho que reflete o infinito. O paradoxo, apenas aparente, é lucidamente expresso por Emerson quando confessa admirar sobretudo o herói capaz de se anular.
O fluxo caótico e imprevisível da vida, desvelado pelas pri meiras reflexões historiográficas, leva Carlyle a limitar o princípio de necessidade. Está aí provavelmente o que mais afasta seu herói do homem providencial dos filósofos. Enquanto o grande homem tónco de Hegel realiza sem o saber um objetivo geral, os heróis e Carlyle se distinguem por uma intensa faculdade de discernimen to. não são os mensageiros ignorantes de uma ideia universal, mas p ctas da realidade, homens conscientes das relaç ões de força e de u pas (como na tragédia de Esquilo). “Que compensação para
Impessoal e incorporai assim, o herói não é um verdadeiro antagonista do Espírito da filosofia clássica alemã. É antes uma nova versão. Co mo recordará Ta ine, Carlyle recolhe no heroísmo o s frag mentos esparsos que Hege l submetera à lei: Lá onde Hegel colocava uma ideia, Carlyle coloca um sentimento heroico. [...] esse ser, tal como ele o concebe, é um resumo do resto. Pois, segundo ele, o herói contém e representa a civilização em que está compreendido, o herói descobri u, proclam ou ou praticou uma conce pção srcin , e seu século o seguiu. O conhecimento de um sentimento heroico
uma1857, populaçao comentará Waldo Emerson em quandodedepigmeus!” sua segunda viagem Ralph à Inglaterra.190
dá assim o conhecimento de uma época inteira. Por essa via, Car y e saiu das biografias. Encontrou as grandes vistas de seus mestres. Sennu como eles que uma civilização, por mais vasta e dispersa que se j ^ esteja através do tem po e do espaço, forma um todo indivisíve .
àKOIUdo CIAcihoCt li í'arl
L* I
sur la génese de foeuvre de /79Ç á i* i j» “jo han n W olf ^KG o J w J ^ ^ Pari s, Gallinurd. 1943 n Id ^ l' " Ibid., n. 795, p. 34. - •P-* 1
_
Thomas Carlyle ou le Promithie enchaini. Essai Cab au PU F’ ,967' P «106. 14 2 14 3. 159 . trac *UZIC*° d° aleniào por C.eneviève Bianqui s.
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VERTIGEM DA HISTÓRIA
M. Dcnt, 1908,
. Và
p k,
in Representative Men and Other Essays,
Lo ndrc*. J -
1,1 Ibid., p. 15 ■"Cf. Hippolyte Ta.ne, Uldèalisme andais, op. «... p. 93-110 . 146-47. Sobre su*. Upç õe. com a filosofia alemã, cf. HU1 Shine. "Carlyle and the German Ph.losophy Problem dunng the Year 1826-1827",
PMLA,
1935, 50, p. 807-827.
O
PEQUENO
* - Da
biografia
à história
Aí esta, talvez, um destino que se repete na históna. A bio grafia hero ,ca aspira à totalidade: m esm o q uando não está fundada no pnncipio de necessidade e reconhece o fluxo caótico, inceno, da vida ela nao pode evitar encarar a civUizaçào co m o u m todo indivisível'
CAPÍTULO
O drama da liber dade
sere sTH ’ " T " ' * ^ P18meUS: “S em cleS' se m to d“ «*« res de destino desconhecido, os heróis permanecem prisioneiros de uma improvável e insuportável unidade de sentido”.193
Tud o o qu e é fragm entá rio restringe minhas ideias, eis porque não sou matemático e sim historiador. A partir do elemento residual posso form ar um quadro comple to, sei onde fal tam gr up os e com o inco rpo rál os. Ima gin o qu e o mes mo se dá contigo e desejaria que, consagrando como eu tua reflexão à história, soldasses a figura sobre a tela e que, utilizando a imaginação, trabalhasses com as cores da história.
BartholdG . Niebuhrw
I O episódio é célebre: em 2 de outubro de 1808, quando se encontrava em Erfiirt, em companhia do marechal Louis Alexandre Berthier, do general Jean-Marie Savary e do príncipe de Talleyrand, diante de Goethe, o imperador deixara escapar um lacónico “Eis
f orno escreve, alguns cS hík" :U
Peir e' °h er o ,er ua Z n “ rvd,n,!nt Ul ^ °
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um Pur° «ngu e inglês até Wilhelm D,l,hey und d " rw CoPula lacerando ° pnncípio 1923 n g4 Gr
Nega Ioda’
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uni homem”. O que quisera dizer? Tencionava exprimir assim sua admiração pela extraordinária capacidade de controlar a vida, própna ao grande homem mais venerado de todos os tempos? E o que pensava Thomas Carlyle. Mais tarde, Wilhelm Dilthey abunda no mesmo sentido: para ele, a vida de Goethe é "um crescimento que obedece a uma lei interior, e como essa lei é simples, como sua açào è
C° m°
m O,e Br ief e Barth old Geoy e N iehuhn, P 31 7318 (carta de
Ed. D ietnch Gerhard e Will
21 de novembro de 1804).
iani Norvin. Ue rt.m IV2ô. I I.
O
PEQUENO
* - Da
biografia
O drama
à história
regular e constante!”.19’ Ou seria preciso ver aí, como sugeriu Friedrich Nietzsche, a expressão do estupor de Napoleão diante da forma alemã do ceti cismo ?1'* O en igma está sem dúvida destinado a permanecer sem solução. Mas, seguramente, o episódio ilustra de maneira admirá vel o con junto das questões que apaixonaram a historiografia alemã ao longo de todo o século XIX. O que é um indivíduo? Como alguém se toma umr Qual é sua relação com o mundo histórico? Essas interrogações não conc ernem mais, dorava nte, ao heroís mo, nem mesmo à exaltação do eu que, nos decénios precedentes, inspirara o movimento Stumi und Drang. Doravante, é o próprio processo de individuação que está em jogo. Embora com moda lidades diferentes e a despeito de alguns retrocessos esporádicos (sobretudo a respeito dos homens de Estado), os historiadores alemães da época vão além dosMe nsch en die Ge sch ich te machen, dos homens que fazem a história. Como escreve Leopold Von Ran ke, toda vid a lev a em si seu idea l: o impu lso mais ínt imo da vida espiritual é um movimento em direção à ideia, em di reção a uma mais alta perfeição. Desde a srcem, esse impulso é iner ente à vida ,19 No fim do século, assumindo, co mo era de seu costume, mais de cem anos de reflexão historiográfica, Fnednch Meinecke sublinha que em todo homem liberdade e necessidade se entrelaçam uma à outra, e que mesmo o membro mais insignificante de um grupo social leva em si um brilho, por mais ínfimo que seja, dox da liberdade: “Ainda que cada aporte eja minúsculo e inacessível para o pesquisador, sua soma não é por isso negligenciável, e uma escala de membros intermediários nhnitamente numerosos se ergue do último dos homens da horda Jti. n crói cxtr aord iná no” .,9K Na sequên cia, vol ta a este mote: G á"l, J l 1
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Par is, Gill imard , 1990
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, ° a‘e ma ° P°r," n Ch us ev ,lle Gr as se t, 19 32 . 0 S ,
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traduzido do alemão
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d a uberdade
“Toda vida humana, mesmo a mais modesta, possui seu próprio valor autónomo não apenas diante de Deus, mas também diante da históna: ainda que não seja mais do que uma onda, ou mesmo uma gotícula, no fluxo do tempo”.199Estamos longe do Kõtming ou cannig, o homem extraordinariamente capaz de controlar o devir caótico e imprevisível, que obsedava Carlyle. De agora em diante, a vida histórica não é mais encarada como uma massa informe, mas como um fluxo perpétuo de formas e de figuras firmes e defmíveis, resultante de personalidades múltiplas e mesmo infinitas. Con vencid os de que a históna é o produto de individualidades únicas e irredutíveis, cada uma gozando da própria estrutura e da própria onginalidade muitos historiadores alemães estimam que o mundo históricoimediata, não é governado por um destino inelutável que exclui toda latitude de pensamento e de ação, “mas uma tarefa para a realização da qual somo s chamado s a colabo rar . Po r cert o, o ser humano está impregnado de história: nasce no seio de uma família, de um po vo , de uma linguagem, de um Estado , e uma religião, e assim por diante. Comorecorda Joh ann Gustav Dro ysen, “sem se aperceber, ele se apropria e interioriza o que encontrou l-.-J, funde-o a tal ponto com seu próprio ser que o utiliza de maneira imediata do mesmo m odo co mo dispõe dos órgãos e niem ros e seu corpo” .202 Mas con hece a liberda de. Está em condi çoes de s e colocar questões, de pensar, de tomar decisões, de agir, de insistir. Cessa de ser um objeto passivo e se toma sujeito do mundo. [...1 por pequena e embrionária que seja de início, a torça do espa nto se af irma n os homen s e, com ela , uma progr essã ofic ada do poder e do qu erer, da liberdade e da respons abilida de. [ - ] O indivíduo [...] não está sempre ligado própna à cspjecíe mas é livre; não é simplesmente determinado e modelado de um
" Fnednch Meinecke,
Erlebles, 18621901.
in Au tob iog rap his che Sch rifte n. Ed. por Eber hard Kess
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u n d gfs chi cht lich en
We lt (1918), m
. Zur Throne un
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0pr i' p 3 7 , Ed po r p. L e y h, S tu ttg artBa d Joh an n Gu sta v Dr oy se n, Hislorik. D ie Vorlts ungen vo n , P Cinstart, 1977; T el Ceschi chts. heori e, Mil ungednuk ,en Malenal en zur H .tonk . Ed. por Birt sch ej. R iisen, Gòttinge
n, 197 2, p. 14 .
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O DRAMA DA UBER DADE
O PEQU ENO X -
D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA
vez por todas, mas determina ele próprio e continua a formar; retroage, pela força de sua livre personalidade, sobre a univer salidade, tendo sobre esta um poder que pode se elevar a ponto de a controlar e transformar plenamente.203
No plano político, essa sensibilidade à riqueza das srcinalidades individuais não é neutra. De início, foi associada ao impulso nacional: as particularidades dos povos permitem descobrir as características pessoais. Wilhelm Von Hu mbol dt recor dav a assim que a nação é também um indivíduo, e o indivíduo singular um indivíduo do indivíduo”.'1”4Ch egava ao pon to de falar de biografia da nação, en quanto Ranke exaltava ação enérgica de certos estavam povos e engajados Estados. Num momento em que anumerosos historiadores na construção da nação alemã, a defesa das individualidades reveste um valor essencial.Meinecke relata que, após 1806, ano da derrota de Iena, o destino da nação parecia estreitamente ligado ao desenvol vimento da personalidade: “Não é que se imaginasse poder criar uma personalidade pelo viés do Estado. Desejava-se apenas criar a possi bilidade para cada um de se tomar uma personalidade, liberando-o dos entraves de um mundohistórico antiquado, oferecendolhe novas tormas de ação e remetendo-se quanto ao resto ao impulso do espínto ’.^<,7 Em seguida, com o tem po, o atra tivoindividualidade da sc alimentou sobretudo da nostalgia por esses primeiros decénios tao tumultuosos. Após a guerra com a França e o advento do Reich, em 1871, as relações entre a história e a política se tomam mais complicadas. As dúvidas se multiplicam. Na esteira de Nietzsche, Max Weber se pergunta em 1919: ainda é possível fazer de sua vida uma obra de arte?208 Em outros termos, Go ethe ainda poderia se tom ar Goethe? “ ífcid. . p. 18. “ Wilhel m Von Humboldt . ConsiJcratíons sur l'histoire mondiale (1814), in traduzido do alemão por Annete Disselkainp e André Laks, Lille, Presses 1985, p. 53.
La íâche dc I Instorien. de LiUe,
Um venitaircs
An “Fk um homem” de Erfurt, um século antes. i Estamos bem .long e meno r mais esténl, talvez não -Uvez a modern idade tome o que é certo reste aos contemp orâneos senao v / mais difícil.209 De é que o process o de indivi uaçao P“ Guerra Mundial, mais fp 0T d e PX
, inex orav etae nte de sd mí do pe la lôPca ut U.t ansta:
O empreende*,,^moderno, o
hoje incomparavelm
ente mais nco
de Goethe. Mas, ao mesmo tempo, esse tipo su
II A b a t a lh a t r a v a d a p e lo s hi s t ona£ * ■ ^ visava a amalgamar uma plur1 a , Longa e penosa: o passado tem algo de uma com da oe ora se enganam terreno está abandonado, ora os corre o r ^ confundem com um de caminh o, ora perd em * chega a transpor a linha de pedaço de pau qualq uer... Ne n g s a esses obstáculos, chegada. Mas pou co importa, ej u . tempos em essas largadas queimadas, esses e d u tj tempos nos encontra mos diante Herder filósofo O p n m e i r o a se la n ç a r f o i J o h a n n ^ « ^ o n a d o r . da linguagem, poeta e pastor luteran° ’ feita em 1769, de Riga No curso de uma começa longa viagem ° diferenças naciona is,'" a Nantes, Herder a refletirPesobre as diferenç
So br e o pnndpi o * . ilor es interiores (integridade,
" * Sobre a ligação entre reflexão sobre a nação e Le mal démocratique”, Esprit. 1993. 195,
on Dahrendorf, Sonffy and Democracy in Germ™V ' Fnednch Meinecke, Pe rsonUcHk et,unig cs ch M i^ ^,_o p.
*" Fnednch Meinecke.
sobre a individualidade,
cf. Mareei
Gauchet,
Persònlichkeit iind gescl uclutic hen Welt, op. cit.. p. 45.
nqic>nednch Nletzschc' Com ‘i^ alions i ntut uell es, op. àt.: Max Weber, Le Savant et k (1 19), tra duzido do al emão por Cathenne Coll.otTh élène, Pans. La Découv erte. 20 "*
^Wilhelm Meister facllmente
o singulare o individual puro.
“ Leop old Vo n Ranke, Vorlesungseinleitungen. in A m We rk i m i Nachlas s, Ed. por Volker tH >“« v,o:h e Walther Pet er Fuc hs. Mum queViena, Oldenbou rg Verlag, 1975, p. 28029 4. C í ^Barthold Niebuhr, Ròmische Geschichte, Berlim, G. Reimer, 1833, p. 68. reflexão p. 6789.
socieda de nobi lián a
de personal idades, em comparaçao co das classes supeno res tal com o esta ap
1,1Cf Maunce Olender,
no autoco nhecim en o,
Lei Langues iu pnraiis. Lettres. 201
Dekens, Herier. Pans, Les Belles
Pans. .
P "1 ™ ” 1' Wein feld & Nicolson, 196 . p 49. ^
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O PEG UBMO X - D
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O DRAMA DA UBER DADE
BIOGRAFIA À HISTÓdlA
E é sem medir suas palavras que exprime, quatro anos mais tarde, sua contrariedade para com todo excesso de síntese: Ninguém no mundo sente mais do que eu a fraqueza das ca racterísticas gerais. Pinta-se um povo inteiro, um período, toda uma região - quem foi pintado? Ag rupa m-se pov os e períodos que s e sucedem opond o-os sem fim com o as on das do m ar -o que foi pintado? A quem se aplica a pintura das palavras? No fim das contas, apenas se os agrupa num termo genérico que não significa nada e sob o qual cada um pensa e sente o que quer —meio imperfeito de descrição!212
Vinte anos mais tarde, insistirá nisso de novo: “O temor me toma quando escuto alguém caracterizar em algumas palavras uma nação inteira ou todo um período; que enorme soma de diversidades guardam, com efeito, palavras tais como ‘nação’ ou os ‘séculos da Idade Média , ou ainda a época antiga ou mo der na” .213 Apóst olo da diversidade, Herder acusa o século XVIII, tão esclarecido, de ter atribuído um valor absoluto ao gosto de seu tempo e de tê-lo imposto rudem ente às épocas pre ced ent es.214 Vo ltai re e os filósofos de oficio mediram o despotismo ou o sentimento religioso que rei navam no oriente com a régua dos conceitos do mundo europeu: Admitamos que os mensageiros de Deus, se aparecessem agora, seriam impostores e patifes: não vês que era totalmente diferente o espirito daquele tempo, desse estágio da humanidade?”. Até mesmo Johann Joa chim Win ckel mann , o grande int érpr ete da ar te antiga, a andona-se a uma visão anti-hi stór ica, ao avaliar as obras egípcias segundo ns cânones da arte grega e, “por conseguinte, descreve-as negativamente muito bem, mas tão pouco de acordo com sua na tureza e a maneira de ser que lhes é própna”.215
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■Cf . rI“ Sh w° r There s More to Thintm Vine (dir .) fultu rr IX, n* Press, 1984 p27 65 ^
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Meinecke.
Die Emtehung
O desenvolvimento, o crescimentoFortgang) ( de que fàla Herder, nada tem a ver com o conceito de progresso Fortschritt ( ) , no sentido de um processo único, universal, que tendena para a luz, que seria feito de momentos mais antigos, mais selvagens, e de mom entos mais recentes, mais civis. Trata-se, ao contrário, de um processo mútuo, fundado em múltiplas fontes de energia, já que o bem está disseminado pelo mundo e jamais se fixou numa única forma de humanidade, num só país: Aqui também, a boa mãe tudo proveu. Colocou nos corações disposições à diversidade, mas tomou cada uma destas tão pouco premente por si só que, desde que apenas algumas sejam satisfeitas, a alma se cria logo um concerto com a ajuda destes sons que fo ram assim despertados e não sente aqueles que não o foram a não ser na medida em que, mudos e obscuros, apoiam o canto que raciocina. Pôs-nos disposições à diversidade no coração, e uma parte dessa diversidade à mão ao nosso redor.
Assim como Justus Mõser, autor dasPatriotische Phantasien, Herder estima que os homens partilham muitos pensamentos e gestos, mas o que importa verdadeiramente, o que os toma humanos, é justamente o quenão têm em comum com todos os outros, o que os individualiza: Todo o caminho que percorre a civilização e a cultura sobre nossa terra, c om seus zigue-zagues, seus ocos irregulares, jamais evoca uma corrente tranquila, mas antes uma cascata de mon tanha e é a isso que conduzem as paixões dos homens [...] as gerações se renovam e, no entanto, a despeito de todos os P11^ cípios lineares da tradição, cada cnança escreve a seu modo.
Entretanto, aqui Herder se interessa mais pela individualidade das grandes forçaspersonalidades coletivas (o gênio do povo ou o espírito do que pelas individuais.2IKNo coraçãodadacivilização narração, sempre infinitamente animada em seus menores detalhes, Umade oirtr filosofia da história, destaca-se a diversidade dos estilos nacionais.
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Joh an n G ot tfn ed He rd er, Une autre philosophie de I histoire, op. rit., ' Johann Gottfried Herder,
Whitton. '‘hlcrderCriT Rationalism",
History
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ldíes pour la philosophie de 1'hisioire de 1’humamié
alemão por Edgar Quinet, Pans, F. G. Levrault, 18271H28, t. U, p 2 Fnednch Meinecke,
Die Entstehunq des Hbtorismus, op. cit.,
p 401 402
(1787 , tra uzi
O DRAMA DA UBER DADE
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÔftlA
caminhos percomdos pelos povos, depositários de diversas ideias de humanidade, quando muito escandidas uma após a outra: primeiro os onentais, os egípcios, os gregos, os romanos... A seguir, quando o sul não foi mais do que um despojo esgotado que jazia em seu sangue, veio o homem do Norte... E assim por diante: a unidade individual das Volk\ ela exprime distintiva não é em Herder a pessoa, mas o povo, um pertencimento fundado no solo e na língua.21,1Sabe-se: a atenção a tudo o que é srcinário e autóctone alimenta também nele uma mixofobia- exacerbada. Sempre exalta ndo as culturas individuais (in diana, chinesa, escandinava, judaica), Herder brada contra os grandes niveladores - Cesar, Carlos Magno, os cruzados, os construto res do Império britânico, os missionários destruidores das culturas srcinais. O espectro da contaminação está bem presente: “Orientais, gregos, romanos existiram apenas uma vez, e deviam tocar a corrente eletnca estendida pelo destino somente num ponto, num só lugar! E nos, por conseguinte, se queremos ser ao mesmo tempo orientais, gregos, romanos, estamos certos de não sermos nada”.221
Vários a n o s d e po is, e m do is e ns a ios i n“ ba d° \C° ; y ^ ^ St“ as universal Humboldt repro cha a Fich te, a Schelling, g , também á Kant. prop otem uma imagem abstrata do homem e terem mortificado a história, ou, no mímmo, o sentido histonco. E por essa razão que op õe à filosofia da históna , que tende a reconduzir . um únlco p0 nto de vista os acontecimen tos parti culares da hist ona mundial que se apresentam de maneira fragmentada e aparentemente necessidade” 224 uma física da históna, pre ocupada co m os homen tr « a o ^ 0 » P o— a comparação entre o devir histórico e o, fluxos da natureza. Os destinos da espécie
humana seguem em frente comoas
faz
opnmidos, an iqui lam e sã o extermin ada■* * * considerada do ponto de visu do tempo que e^quele e^
SSSSgS
somos tomados, é um arrastao ,r resi s™ ? _ s ã o i nt e nç õe s r u m i n a d a s po r a g u n s p ^
A riqueza do indivíduo entra verdadeiramente em cena com outro historiador particularmente atento à língua: Wilhelm Von Humboldt. Desde 1791, ele nota que, no mund o do saber, só o conhecimento do indivíduo aproxima da verdade. Para apreender a verdade do passado, é preciso portanto “identificar-se, por assim di2er, com a natureza de todo ser vivo, representando-o não apenas em sua aparência, mas na maneira como ele se sente em si mesmo ■ U Bois lor du de l'humam té Romúttlisme, nalwna lisme, totahtarisme (1 990) , craduz ido luuh llcrliti do mel es pi rM afct! Thym Wo . I^m . Albm Mi,hei, 1V>2 Vi
Inif cviil ujlnm H ciJr rs T htory oí Identity, 1996.22 p 245 25V
Historf
Culture and Commuraty’'.
Medo de se misturar”. (N.T ) 31 Johann Gottfhed Herder, “
Une autre ph,losoph,c de 1’histoire, op. al„
p. 133134.
Para unu irmo Aiçin ao prtiuiiKnm d < Humboldt. cf . Robert Leroux, Guillaume de fo rm al ,o„ de sa p en séc ^ y , n |'V f |. anS i lo BcUe s Let tre s 1932; Ro bert Leroux,
Humboldt . í» U Philos ophie
dc H J. ÍJ ,, Pans . Mel anges Henn Licht enberger . 1934 ; Jurg en ra ant, Humboldt (1990). tradurKfto tio ilrmão por Mananne Rocher-Jacquin. Pans, Édinons de la Maison des Sciences de rHo nim e. 199 9
de fhistoire
e empre stada s a um s' r es,r “ ^ 'j ° ve reconhece r na his tón a na tu re za e da hu ma ni da de 9U , re co nh ec id o a t ra mundia l. Entretanto, co mo o todo so pod«_«r reco vés do particular, d evemos estudar a s naçoes e os m l,
Por cer to, Humbo ldt reconh“ ' “ a comuns, evocados ___ porWmr Kant em em sua sua obra o sodic his tóna.22" O ser humano, consider ado sobrem como massa, atém -se a cert a uni fomn a . natureza abarca igualmente o caráter mora namos em série acon tecim entos aparentemen
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Jú G es eu e der der m em ,h l,c he n Kr .ift e(1791). in W.lhcln. Vo.i Hunitviliit. ( ív. m eie Schriften . rd por Albert Leuzwann et ai, Berlim. B. Behr, 1904, t. I, p 8991.
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PEQUENO x
- Da
biografia A história
O DRAMA DA UBERD ADE
com leis uniformes: “A espécie humana é uma planta natural, como a especie dos leões e dos elefantes; suas diferentes etnias e nações são produtos naturais, como as raças de cavalos árabes e islandeses”.227O mesmo acontece com certos aspectos importantes da vida histórica: Na maior parte dos povos, o crescimento e a ruína deixam perceber um movimento praticamente uniforme; quando se considera o estado do mundo imediatamente após o fim da segunda guerra púnica e o caráter dos romanos, a dominação mundial de Roma se deixa deduzir passo a passo com uma necessidade quase perfeita.228
Mas a históna não é apenas um produto da natureza. É igualmente dominada pela potência criadora do caráter humano: o indivíduo, insondável e autónomo, está na ongem de sua atividade e [...] não é explicável por nenhuma das influências que sofre (pois, antes, determina-as todas por sua reação). Mesmo se a matéria da ação é idêntica, a forma individual a toma diferente, de acordo com a facilidade ou o esforço, se a força é apenas suficiente ou desbordante, e todas as pequenas determinações, impossíveis de nomear, que constituem o selo da individua lidade, e que percebemos a cada instante da vida cotidiana.21’
outra forma, a natureza é incessantemente modificada, por de h mesm°íi^e maneira imprevisível e des con hec ida, pela atividainHiv'rl 3na/ _x’ste um mo me nto de pro cri açã o moral , em que o Dor çrr ° na^a° ° u Pessoa singular) se torna o que deve ser, não em S i S T Subltame nte e só la nce ”, es cr ev eHumboldt em 181 4. 3 E quatro anos mais tarde: Q [a conex ão] toca no domín io da liberdade, todo cálculo rrompe, a novidade e o inaudito p odem surgir sub itamente ^ um gran de es pír ito ou de uma vontade potente, que só po dem J ga os num quadro ext rem am ent e a mpl o e de aco rdo com
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lárhr dr I lustanen op cii p 60 m lbip.64. d. . ’ 230 Ibid., p 49
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um cntério totalmente diferente. É esta a parte da históna mundial que pode mos pro priamente chamar bela e e ntusias mante, porque é domin ada pela força criadora do caráter humano .231
Basta que um espírito forte, dominado, mais ou menos consciente mente, por uma grande ideia, medite sobre um material suscetível de tomar forma, para que o resultado seja aparentado à ideia e seja por conseguinte estranho ao curso habitual das coisas. E, quando fala da atividade humana, Humboldt não pensa apenas nas ações realizadas por grandes homens: “E inegável que a atividade do gê nio e da paixão profunda pertence a uma ordem de coisas diferente daquela do curso mecânico da natureza; mas, a rigor, este é o caso de toda emanação da individualidade humana”.232 Em face da violência da história filosófica, sempre pronta a nos recordar o caráter global e necessário do processo histórico, Humboldt introduz dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a dimensão ética da história. Ela nada tem de moral: não deve ofe recer exemplos a seguir ou recusar, não servindo esses para nada ou podendo mesmo ter um efeito enganador. Mas é ética, uma vez que desvela o drama da liberdade: “O elemento em que se move a história é o sentido da realidade (das Sitmfur Wirkhchkeit), que inclui o sentimento da fugacidade da existência no tempo, aquele de uma dependência das causas antecedentes e concomitantes, mas também, ao contrário, a consciência da liberdade espiritual interior e o co nhecimento racional de que a realidade, a despeito de sua aparente contingência, está bem ligada por uma necessidade interior Ao mesmo tempo, Humboldt nos recorda que o todo do historiador não corresponde ao conceito de uma totalidade ideal, não é único nem reconciliado, mas antes múltiplo, cheio de vida, conflituoso, feito de diferenças e de contrastes. Como escrevera em ^792, a modernidade faz explodir em mil fragmentos a integridade inicial: a perfeição ingénua, instintiva e irrefletida da Antiguidade de sapareceu. Mas tal decomposição não é necessariamente uma perda.
(1H18), in L*3 p. 63. Uí !t"d., p. 64 . Wilhclm Von Humboldt,
La tâche de 1’hislorien, op. til.,
p. 71.
O
x - Da
PEQUENO
biografia
O DRAMA DA UBER DADE
à história
Ao contrário, diferentemente de muitos de seus contemporâneos, abalados pelos acontecimentos sociais e políticos que assinalam a pas sagem do século XVI II ao X IX , Hum boldt está convencid o de que a principal aposta da modernidade reside justamente na possibilidade de passar de uma unidade srcinária a um a m ultiplici dade.234 Onze anos mais tarde, numa carta ao diplomata sueco Karl Gustav von Bnnckmann, formula essa intuição numa expressão deslumbrante, quando diz se sentir “arrastado não para o U m , que seria o todo, um novo conceito erróneo, mas para uma unidade no seio da qual se misturam todas as concepções do homem, todas as oposições
Eis porque nada é tão raro quanto uma narração efetivamente ver dadeira: “Ainda que a verdade do que se produziu pareça uma coisa simples, não se po deria pensar nada de mais alto” .239 Do passado, jamais percebem os mais do que alguns fragmentos, destacados, isola dos: “O que se produziu só é visível em parte no mundo sensível, o resto deve ser sentido, c onc luíd o, e me smo adivinhado .24° Por trás da ossatura do acontecimento, por trás do laço exterior e aparente que amarra cada um dos elementos, existe um resto e é esse resto que é verdadeiramente essencial, incontomável, já que é ele que liga todos os fragmentos e dá uma forma ao todo.
entre a unidade e a pluralidade”.235 Ra nk e r eto ma o tema por sua vez: para ele, a história se opõe ao conceito, para o qual a variabi lidade é dispersiva, enquanto ela se esforça por fazer justiça até às oposiçõ es. Ao que Droysen acrescenta que, no mundo his tórico, o que move não são as analogias, mas as anomalias.237
Quando nos encontramos no coração desse labirinto que é o passado, é preciso tentar dar forma aos acontecimentos e religá-los entre si: “A verdade de todo acontecimento se funda na integração produzida pela parte invisível de cada fato . Desse ponto de vista, além de sua capacidade rece ptiva, o historiador possui uma ativida de autónoma, e mesmo criadora, não que produza o que não existe, mas [...] dá forma, com suas próprias forças, àquilo que não podena perceb er tal co m o rea lmen te é pela simples receptividade . Alguns anos mais tarde, Droysen se expressará, também ele, neste sentido: “Trata-se de reconhecer, nesses elementos subsistentes, as totalidades espirituais de que eram a expressão, de projetá-los, como se se tratasse de curvas, de fragmentos de círculo, sobre seu centro e vê-los em seu conjunto a partir desse centro que lhes é próprio”. 242 Está aí um gesto difícil e arriscado, mas inevitável: se o fazemos, corremos o risco de nos enganar, mas, não o fazendo, estamos certos de nos enganar. Para além da metáfora, a história é uma atividade morfológica, fundada num duplo movimento, reconstituir de maneira imparcial e crítica dado elemento singular e, ao mesmo tem po, captar seu encadeamento profundo. Humboldt compreende, depois de Schleiermacher e antes de Dilthey, a relação circular que existe entr e as partes e o todo: A inteligência integra do particular supõe sempre o conhecimento do geral sob o qua
a é Mas como dar conta de toda a pluralidade do passado? Tal questão mais radical que propõe no célebre discurso sobre a tarefa do historiadorpronunciada em 12 de abril de 1821, na Academia de Berlim. A exemplo de Carlyle, Humboldt está dividido entre a admiração e o temor diante do caráter inesgotável da história:
Infinito é o formigamento prodigioso do que advém no mundo e nele se comprime, em parte provocado pela constituição dos solos, a natureza da humanidade, o caráter das nações e dos indivíduos, e em parte surgido como do nada, miraculosamente semeado, dependendo das forças de que não temos mais do que uma intuição obscura, e submetido à dominação de Ideias eter nas e profundamente enraizadas no peito do homem: infinito que o espírito não pode jamais reconduzir a uma forma única." Gesammelte und è.. U5Wilhl \; li
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“ W .p. 69.
^Ikid.. p.67. Ibid., p. 68 . Joh ann Gu stav Dr oy se n, Hííforife, op. cit., p. 27.
O
PEQUENO
x - Da
O DRAMA DA UBERD ADE
a história
biografia
está compreendido”.243 Se nos limitamos à análise de cada parte, produzimos imagens deformadas, verdadeiras em aparência, mas destituídas de seu sopro vital: “Um historiador digno desse nome deve expor cada acontecimento como parte de um todo, ou, o que dá no mesmo, expor através de cada um a forma da história em geral z*4 Sob esse aspecto, o hist oria dor está na mesma posição que o pintor. Com uma desvantagem, entretanto, como recordará Droysen: enquanto o pintor tem sob os olhos o protótipo, o histo riador se assemelha a um artista que deve pintar um retrato ou uma paisagem de memória. Com base nos relatos dos outros.245
sua human idade.248 C o m o o artista, realiza uma obra de imitaç ão e busca, ele também, a verdade profunda, obscurecida pela realidade fenomenal. Mas seu desígnio é totalmente diferente. Em vez de se elevar acima da realidade, mergulha nela: assim subordinada, a Phantasie “não age como imaginação pura, e se nomeia portanto .249 mais justamente intu ição e talento de coordenação No curso desse mergulho no passado, o historiador visa à ideia. Por trás dos fatores estruturais (seja de ordem mecânica, seja de ordem biológica), que dessecam a vida histórica, e por trás das paixões humanas, que reduzem a tragédia da história a um drama
Para transformar os fragmentos esparsos numa totalidade, para encontrar a verdade da forma, a observação imediata não basta. É preciso, para Humboldt, imaginação:
da vida cotidiana, há prodígio sempre (“une a força da ideia. Esta se exterioriza como um aí pro ein imprevisível Wunder ).2i" Estão posições muito complexas que, ao longo dos decénios seguintes, favoreceram uma leitura idealista do célebre discurso de 1821. o próprio Wilhelm Dilthey falará de visão antiquada, ainda ligada a uma abordagem metafísica. Esse julgamento me parece excessiva mente severo. Não há dúvida de que, para Humboldt, a ideia é a parte mais viva e mais durável da realidade, aquela que se situa fora do círculo do finito. Como escreve desde 1814:
Os acontecimentos da história, ainda mais do que os fenó menos do mundo sensível, estão longe de se prestarem a uma leitura direta; sua compreensão é o produto de uma unificação entre seu modo de ser e o sentido que o observador traz de acréscimo, e, como em arte, nem tudo neles se deixa deduzir logicamente por uma simples operação do entendimento, ou é justo, se analisar em conceitos. Não se compreende o que sutil ou dissimilado a não ser que o espírito se encontre numa justa disposição para o compreender.24'’
O que nào significa, de modo algum, que possamos ou devamos inventar o qu e teve lugar. Isso soment e q uer dizer - mas é um somente que está longe de ser simples” - que a compreensão passado requer essa imagi nação para a verd ade do real” , d '1 ^ a^lreit ^cs Rea len, de que falará Goethe quatro anos ^fiTT^_e rí C j 0 historiador pliar o máxi modas: possível u eu, sc weix ar p enetrar deve pelasam realidades passa ele sese desin- tanto mais perfeitamente de sua tarefa quant o mais deixa agir
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mard, 1988 d 157 m A a P 13/ de dezem bfo d< IK2S)
Sua concepção da ideia é, no entanto, bem menos idealista do que parece à primeira vista. Ele mesmo o diz, incidentalmente, quando declara que a ideia não provém do exterior, não precede a vi a, mas que se trata de uma força profundamente enraizada no seio do homem, que se revela no coração dos acontecimentos. E p isso que o momento inicial, no curso do qual se manifesta o novo,
» Wilhelm von Humboldt,
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A humanidade só pode viver e agir no seio de uma natureza inteiramente corporal em sua manifestação, e leva em si mesma uma parte dessa natureza. O espírito, que a domina, sobrevive ao indivíduo singular, e o mais importante na históna mundial é portanto a observação desse espínto que perdura, toma tormas diversas, e muitas vezes desaparece novamente.
La lâche de 1'historicn, op. cit.,
p. 70
‘"Ibid., p. 6869 .
**•>Jr tn io por Jean Chuzev ille, Pans, Gall i
lh'd., p. 82. Wilhelm von Humboldt,
Coiisidhations
sur l'hi stoir e mondiale. op.
nt.. p. 51.
O
PEQUE NO x -
Da
biografia A história
O DRAMA DA LIBER DADE
reveste uma importância crucial. Porque estima que os grandes acontecimentos não aparecem gradualmente, e sim sob a forma de súbitos impulsos criativos, Humboldt visa sobretudo à ideia em estado nascente, sua primeira fagulha: “O oficio do historiador con siste, em sua determinação última, que é também a mais simples, em expor como uma Ideia tende a ganhar existência na realidade”.252
O elemento em que evolui a história é o sentido da realida de, diz Humboldt. Johann Gustav Droysen, autor daHistória de
Diferentemente da planta e do animal, o ser humano não é simples mente um exemplar de sua espécie, porque está escrita em sua essência a capacidade de começar e de desviar: “Ele não tem apenas uma vida marginal na natureza, mas é, por assim dizer, um novo início”.255 Trata-se de uma singularidade, de um “impulso infinito para ser eu”, capaz de cultivar sua diversidade: “Ele constrói seu corpo físico segundo as leis da natureza, [...] mas a parte mais tênue, seu corpo morfológico, ético, ele o constrói a partir da essência que está nele, ou melhor, que não está, mas que devém e quer incessantemente devir”.256 Por um tr abalho sustentado e progressivo, ele encontra a
Ale xand re, o Grande (1833) e da História do helenismo
força, sem dor,impulso de escolher: “Todoé seu ser evolui noconcerne quadro das relaçõesnão éticas ”. Esse do querer comum a todos,
IV
(1836-1843), retoma a fórmula colocando-a no plural: a história deve reavivar e alimentar o sentido das realidades. Por ocasião Historik, do curso sobre o método histórico que ficou célebre, proferido dezoito vezes entre 1857 e 1882, diante de seus estudantes de Iena e de Berlim, Droysen sublinha reiteradas vezes o caráter antropomórfico de sua reflexão . ^ Para ele, a hi stóna só existe em presença do ser humano , que chega, através de seus tormentos, a escolhas: Pode-se dizer que cada grão de trigo é [histórico], uma vez que contém idealmente toda a vida da planta; o mesmo se dá para cada pedra, uma vez que resulta de uma multiplicidade de momentos físicos, químicos, telúricos, que nela se perfizeram. Não existe ente que não tenha seu devir, sua história. É, consequentemente, totalmente normal que se fale de história natural, de história evolutiva do animal, da planta, da doença, etc. Mas uma sensação imediata nos diz que não é a história no sentido em que a enten demos, que a pedra e o grão de trigo têm é claro uma história, mas sem memória nem esperança, sem consc iência; uma hist ória que só podemos chamar história metaforicamente, pois se trata de um processo essencialmente marginal, uma simples sucessão de mutações exteriores, desprovidas de um eu.254
Wilhelm von Humboldt. Para uma apresentação n sn
,
*
U tâche de 1’historien, op. cil.. da teoria da históna de
Droysen,
T *1COry ol Hlstory ln Histoncal 7° ’ •'U,ír' a"d Theory • 19**4. 23, 3,p.
p.
O que interessa Droysen é justamente esse tipo de forma (.Fonngebung) individual: As cores, o pincel, a tela de que se servia Rafael, eram feitos de matérias que ele próprio não havia criado: aprendera com tal ou tal pintor, desenhando e pintando, a utilizar esse material; a representação da Virgem, dos santos, dos anjos, encontrava-a na tradição da Igreja; tal monastério encomendava-lhe uma imagem em troca de uma justa retribuição; mas, segundo a fórmula A = a + x, o mérito de que nessa ocasião, a partir destas condições materiais e técnicas, sobre a base de tais tradições e de tais ideias, tenha vindo à luz a [Madona] Sistina recai sobre o infinitamente pequeno x. E é sempre assim.
Embora infinitamente pequeno, ox é fundamental, já que é ele rçue dá à história seu movimento: Mesmo se as estatísticas indicam que num país dado nascem A a + x o a com numerosos filhos ilegítimos, se na fórmula preende todos os momentos que explicam como, entre mil moças, vinte, trinta ou mais procriam fora do casamento [...], entre estas vinte, trinta culpadas, será difícil que uma só se console com
p. 87. cf. Horst Walter
Blanke. Dirk Fleischer
Lectures:The Gemian Tradition of Historik. 331356; Alexandre Escudier. “Refonder lo
DrnvV n!r nSjU^i L °dysse e du monde éthique chez Droysen Droysen, de lhéorie de ^du ( ^ Joh an n Gus tav Dr oy sen , Historik, op. al„
ao eu de um pensador ou de um artista tanto quanto àquele “de um negro inculto ou de um indolente copta (kopthen )”.257
1213.
", introduction à J
Johann Gust av
p. 23. 31 fà d. , p 27
ri"J P 365.
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PEQUENO
x - Da
biografia
O DRA MA
à história
a ideia de que a lei estatística “explica” seu caso; nos remorsos das noites passadas a chorar, algumas delas convirão em seu mais íntimo que na fórmulaA = a + x, o infinitamente pequeno x tem um peso desmesurado, que abarca todo o valor moral da pessoa humana, isto é, seu único valor.258
Atento ao caráter voluntário da vida humana, Droysen recusa toda conotação objetiva do povo e, especialmente, aquela que se refere à raça: a transferência de critérios exteriores à etnografia e à história foi para ele uma das piores aplicações do método das ciências da natureza, e foi particularmente noc iva e m seus efeitos .259 Droysen
d a uberdade
mesmos para um novo impulso vital; se não fosse assim, esgotariam suas últimas forças na batalha contr a o n ov o” .261 Ademais, o próprio conceito de srcem lhe parece suspeito, especialmente quando se crê encontrar na srcem a essência da coisa, o núcleo vital decisivo de um povo ou de uma religião. Mas o que é o último e o mais intemo? De fato, o começo não é mais que uma abstração: “Não é apenas um começo, mas ao mesmo tempo o fim e a conclusão de uma série de mediações”. Na história, assim como na biografia, nada jamais começa de nada, cada novo nascimento amalgama resíduos e fragmentos precedentes: “Se quiséssemos observar a vida de um
não podia imaginar o que adviria, em nome do índice cefálico, alguns decénios mais tarde. Mas observa que repertonar três, cinco, sete raças diferentes, repartindo-as segundo a forma da cabeça (dolicocéfala, braquicéfala, etc.), não faz sentido algum, já que existem mil variantes e formas intermediárias. Sem contar, recorda ainda, que cada povo se transforma no tempo: sua essência não é um fato natural, srcinário, mas o produto de mediações sociais e políticas. E por isso que “o que veio a ser [e foi produzido] historicamente se toma uma natureza inata dos homens”. Assim, os judeus “não são, mas apenas se tomam algo de naturalmente unitário”: “O desejo da unidade é um resultado histórico e, uma vez presente enquanto resultado histórico, compreende e abarca todos aqueles que dele fazem parte com toda a força da determinação natural”.26" Também nesse caso, a identidade do povo consiste na consciência, no desejo de unidade, seja lá de que natureza for. É evidente aos olhos de todos que um povo tem bem pouco de srcinário e nada de intan gível, e que se trata de uma estratificação histórica: “O que poderia convencer os Magiares da Hungria e os habitantes da Venécia a se
homem, de nascimento Napoleão, de Goethe, sua primeira obra, sua mesmo seu seria um início muito relativo; elejuventude, vive já no ventre matemo sua história embrionária, a saber, uma quantidade de influxos que são, é claro, inconscientes”.262 Desejoso ele também, como Humboldt, de defender o direito de cada um criar, a Droysen superpõe os conceitos de ético e de histórico:
desfazerem de austríaco? seu caráter Eles popular ajudar a construir novo povo imperial têm para em seu caráter popular um certo te souro, mesmo se a perspectiva neoaustríaca está à espreita, ansiosa para se desdobrar como sempre está o novo. Tanto melhor para eles se o perigo que os ameaça assim tem a força de arrastá-los em si
vistaseu diferentes: prático, etc. A história o apreende ern devir, emtécnico, seu impulso, emmoral, seu movimento: "Ela concebe os fenómenos do mundo ético seguindo seu ter-se-tomado; propõe-lhes, amda que presenteshic et nunc, o olhar retrospectivo graças ao qual eles aprendem a con he ce r a si me smo s” .21,4Nessa perspectiva, a ideia
J nn Gust av Dr oys en, p 1314.
Di e Er heb un g d er G esc hi ch te zum R an g ein er Wi sstf nsc haf t’'. op. cit..
Joh an n Gus tav Dr oys en, Hisiorik, op. dl., ““ Ibid., p. 3(15.
p. 31 1 .
A geologia ensina como, por imensas convulsões, tudo agiu na direção de uma individualização da massa planetária inerte do corpo terrestre a partir do movimento sideral [...] A história é, por assim dizer, a continuação amplificada desse processo, não é mais do que uma nova, uma mais intensa oxidação, de certa torma a ferrugem nobre (aerugo nobilis ) da superfície terrestre; recobre essa superfície com um estrato espiritual e ético, grava nela a marca do ser humano consciente.263
Mas superposição não significa coincidência. Sendo um prodigioso encavalamento de casos, de situações, de interesses, de conflitos, 0 mundo ético pode ser considerado a partir de vários pontos de
' ,b,d; p. 306307 ^ P 161. Ibid., p. 15
“•M - p- m .
O PEQUENO
X
- D a BOGUAFIA
O DRAMA DA UBER DADE
À HISTÓRIA
de inevitabilidade histórica não tem sentido algum. Se a história quisesse verdadeiramente fazer valer que é preciso explicar o que é a partir do que foi, excluiria então a livre ação ética. Eis porque o (erklàrerí) o passado: historiador deve renunciar a explicar Não explicamos. A interpretação não é a explicação do que é subsequente a partir do que é antecedente, do que veio a ser como resultadonecessário das condições históricas, mas a interpretação do que está presente, desatando e decompondo de certa forma esse material opaco em toda a riqueza de seus momentos, dos inumeráveis fios que se ligaram num nó que, por assim dizer, se reaviva e chega à palavra através da arte da interpretação.265
Podemos compreender porque em nós, os sucessores, encontram-se as mesmas categorias éticas e intelectuais que inspiraram as condutas humanas no passado.2'’<' Mas não pode mo s ne m explicar nem mesmo atingir os fàtos puros: “O fato que denominamos bata lha, congresso ou concílio, grande tratado de paz, não é de maneira alguma um fato, mas antes uma abstração pela qual a consideração humana resume uma quantidade de fatos”.267 Persuadidos de que a srcinalidade e a srcinariedade coincidem , Nieb uhr e R anke haviam atribuido ao histonador a tarefa de encontrar a experiência primeira —a objetividade do fato -, dissolvendo os estratos sucessivos acumuladosno curso do tempo. Trata-se para Droysen de uma concepção ingénua e acanhada do fato histórico: “Infatigável na ‘crítica das fontes’, [a escola cntica] acreditava poder chegar até os fatos puros”.26* Ele afasta a ideia de pesquisa objetiva em que vê apenas uma banalidade extraviadora: So o que é destituído de pensamento é efetivamente objetivo. A partir do momento em que o pensamento toca e abarca as coisas, estas cessam de ser objetivas. [...] Aqueles que veem - omo tarefa suprema do historiador o fato de nada acrescentar de pessoal, mas de dar simplesmente a palavra aos fatos, não se
dão conta de que os fatos não falam a não ser pela voz daqueles que os conceberam e compreenderam.2'’''
Observa igualmente que o caráter srcinal da fonte não é forço samente uma garantia de verdade, a tal ponto que as falsificações históricas podem se tomar testemunhos extremamente preciosos: “A crítica [...] toma em certo sentido novamente autêntico o que foi reconhecido como inautêntico, o que quer dizer que ela lhe atnbui seu lugar, as relações que lhe cabem e no seio das quais ele assume toda sua significação”.270 Apesar de sua importância, a crítica das fontes não constitui, por tanto, a essência da pesquisa histórica: “É lá que me afasto cientemente do método hoje em voga entre meus confiades: eles o qualificam de mé todo crítico, enquanto eu coloc o em primeiro plano a interpretação .* Com efeito, o material histórico é sempre, ao mesmo tempo, rico e memórias lacunar demais: “Se colocássemos junto todas as que é possível encontrar, todos os tratados e as correspondências da época napoleonica, não obteríamos nem mesmo uma imagem fotograficamente correta da época; o que encontramos nos arquivos não é a história, mas sao os negócios do Estado e da administração em sua desoladora extensão, que estão tão longe de ser história quanto algumas manchas de cores numa paleta estão de form ar um quadro” .- " Com mais forte razao, a ideia de que os fragmentos do passado sobreviveram em virtude de seu valor e de sua significação é uma ilusão, uma vez que os próprios processos de conservação são extremamente aleatórios. Desta forma, a documentação, e-nos não podemos nos contentar em compreender preciso pensar a partir da documentação."'1 M Ibid ., p. 218. tbi.
p. 127.
^id., p. 1 1 ,s Ibid.,p 163.
BehaJLal ^ X IV ^ ' ° r°y Sen and the Id ea of Verstehen", Journal oj History of the I*eve loDmem nfH ’ ,, ' ’ p 19; Michael MacLean , "Johann Gust av Droysen and the ’ loh nn r n ^ ^ o r y . 21. outubro de 1982. p. 347365. Joh an n Gus tav Dr oys en, Historik, op cit p ,, 4 * Ibid. , p. 11
. p 2 1. De fato, em Vorwort, i n Weltgeschichte, Leipzig. 1888, t. IX. parte II, p \ H °PÒe o elemento singular às abstrações da hlosofu da históna. Mas contesta os
IX.
conside ram a históna co mo “ unia enorm e barafunda de f atos e subli nha que o hisioni v'° 'lenie nto singular para chegar a uma “v isão geral dos acontecim entos, ao con ec
i
c°nexào que existe objecivaniente nestes”. Hippolyte Taine, Histoire de la littérature anflaise, Pans, Hache tte . 1885, expnm e« o» «<™‘” similares qua ndo compara o docum ento histórico a uma conch a fóss il, s impie s me,o p » remon 3 unia totalidade viva.
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PEQUENO
x - Da
bogbafia
A esse respeito, Droysen afirma que o elemento singular só pode ser apreendido no momento em que é ultrapassado: “Nossa compreensão se endereça inicialmente ao elemento singular. Mas este é a expressão de uma totalidade que se nos torna compreensível justamente gra ças a ele, enquanto exem plo; e nós a compreendemos na medida em que conseguimos atingir, a partir destas totalidades marginais, o centro determinante da totalidade” .274 A exemplo de um profeta voltado para o passado (como o via Schelling), o historiador usa o fragmento para deixar filtrar um presságio do tod o.27í> E por essa razão que deve ren unc iar aos diferentes eus reais, imediatos, que povoaram o passado. Droysen imagina um ateliê onde gravadores, cinzeladores, soldadores trabalhariam em concerto na criação de uma escultura metálica e comenta que, querendo descrever o que cada um faz exatamente, não se obtém nenhum conhecimento efetivo da estátua que todos contribuem, no entanto, a construir. Isso equivale a postular que o eu empírico deve ser tratado como forma fenomenal do eu universal: se existe uma história “podendo legitimamente ser definida como história, [...] só pode ser aquela em que o eu universal se manifesta em seu devir”.276 Com o escreve abruptamente emGrundriss der Historik, a história se situa acima das histórias: “Tal casamento, tal obra de arte, tal Estado particular, são —respectivamente —para a ideia da família, do Belo e da potência o que o eu empírico efémero é para o eu em cujo elemento o filósofo pensa, o artista cria, o juiz julga, e o historiador conduz suas pesquisas. É este eu geral, o eu da hu manidade, que é o sujeito da históna”.277 Resolvido a defender ahistória contra as histórias, Droysen renega, nas últimas páginas Historik, do todas suas reflexões sobre a natureza multiforme do passado. O Homem universal se sobrepõe aos seres humanos, e a história é recentrada, uma vez ainda, sobre a ideia de progresso: "O que importa, é a corr ent e das águas, a direção Joh an n Gu stav Dr oy sen . Historik. op. dt., p.m38. Ibid., ’
O DRAMA DA UBER DADE
à história
da corrente, e não as massas deslocadas em tal ou tal momento, nem niesmo os bancos de areia. Não é portanto tal povo, tal país que conta [...], mas apenas aqueles que estão inseridos no movimento da história”.278 Tr ata -se aí de um a virada maior que lhe permite, ent re outras coisas, manter a ilusão da preeminência histórica do mundo ocidental: “No plano etnográfico, é importante conhecer todos os povos e suas condições e, se o género humano fosse semelhante a qualquer outra espécie de criaturas, isso poderia bastar. Mas o gé nero humano tem sua essência no progresso, na história. A história é o conceito genérico da humanidade. E o movimento ascendente contínuo, osummwn que guia o processo, é inerente a esse conceito. Eis porque - se essa tautologia não nos repugna - reivindi camos a históna da civilização unicamente para os povos civis”.279
V Na virada do século X X , em pleno debate sobre o método histónco, oMet hode nstreit, os pensamentos de Humboldt, de Ranke e de Droysen reencontram sua importância. Filósofos, sociólogos, economistas, historiadores se interrogam sobre o estatuto de suas disciplinas. Existe um só tipo de conhecimento? As ciências humanas devem se conformar ao modelo das ciências da natureza? Devem privilegiar o princípio de causalidade? E se as generalizações não fossem mais do que lugares-comuns? A polémica explode entre os historiadores em 1896, quando Karl Lamprecht, que acaba de terminar uma monumentalDeutsche Geschichte, publica um artigo complexo em que assimila a história à psicologia aplicada, que estaria assim em condições de estabe lecer as leis gerais do devir.280 A intervenção mais notável, por sua riqueza, mas também por sua inoportunidade, é sem dúvida aquela de Eduard Meyer. Esse historiador é célebre sobretudo fora de sua disciplina por ter assinado, assim como o filólogo
p 2 8.
essa optica. Droysen emprega o term o de microhistória e a define como "a nucrologu C' m P 'tlueno ** grandes coisas e em grande a s pequenas; é o ripo de conside ração própna c ura , que ace ita apr eender o que a concerne sem conexão com o que é eleva do c ^su prem o, e telo como importante pe lo simp les f ato de a concernir”. P
^
Joh an n Gust av Dr oy sen , Préds de Théorie de VHistoire, op. dl.,
102
p. 86.
Joha nn Gus tav Dr oy se n, Historik, op. dt., m lbi d„ p. 380381.
p. 372.
C'f- Was i st Kultu rgesch ichte?” op. , dt. Qua nto à ref lexão de Lamprecht, cf o capítulo biográfico".
103
O limiar
O
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- Da
biografia
O DRAMA DA UBERDA DE
à HISTORIA
Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, o físico Max Planck e o filósofo Wilhelm Windeband, o Ma nife sto dos 93 que, em 4 de outubro de 1914, defendia a invasão alemã da Bélgica. Ele foi um dos mais ferventes e irredutíveis adoradores do Estado que a Alemanha produziu antes da grande catástrofe. Por estimar que o homem singular, postulado pela doutrina do direito natural e pelas doutrinas contratuais, é uma construção abstrata, afirma que a humanidade se constituiu em formas associativas desde a ongem. Em outros termos, na querela, política por definição, sobre a ongem do Estado, sustenta que esse não é uma construção histórica, mas prolonga uma forma srcinána e eterna da coletividade humana.2 81 A Primeira G uerra Mundial teria tido as sim o grande ménto de manifestar a centralidade absoluta do Estado
Para Meyer, a livre vontade {freie Wille ) e o acaso ZUfall) ( assumem importância crucial.28’ Apesar do peso das circunstâncias extenores, os indivíduos estão livres para efetuar escolhas voluntá rias: “Na vida real imputamos a causa de nossas ações e daquelas de outrem a uma vontade que é, por certo, influenciada por reflexões, por disposições psíquicas, pela pressão dos outros, mas que não é menos livre em sua decis ão” .286 A conquista da Ásia repousa sobre uma decisão de Alexandre que Felipe ou Parmênio não teriam to mado, assim como a guerra dos Sete Anos e a de 1866 são o fruto da personalidade de Frederico II e de Bismarck: outras personalidades teriam procedido diversamente, e o curso da história teria tomado uma direção totalmente diferente. Ademais, existem milhares de
e de obngar os seres humanos a finalmente sentirem na pele sua insignificância enquanto indivíduos...282 Mas Meyer é igualmente um grande antiquizante, um profundo admirador de Tucídides e o autor de uma obra notável,História da Antiguidade, 283 que, du rante os decénios precedentes, defendeu vigorosamente o valor da autonomia pessoal. Convidado à Universidade de Halle, em 14 de junho de 1902, pronuncia uma conferência em que critica Lamprecht por ultrajar a riqueza infinita da história: “As figuras vivas são suplantadas por pálidos fantasmas e vagas generalidades. Ainda que as novas fórmulas fossem escolhidas com primor e conseguissem evocar imagens mais precisas, ganharíamos bem pouco com isso, justamente porque elas devem deter-se naquilo que é mais geral, jamais podendo assim fazer justiça à infinita multiplicidade da vida”.284
exemplos concretos de incidentes fortuitos que marcaram o curso da históna e cujos efeitos ainda são constatados séculos mais tarde. O acaso quis que os atentados contra Guilherme I e Bismarck fa lhassem e que aqueles contra Alexandre, Cesar ou Alexandre II da Rússia dessem certo; o mesmo sucede com Gustave Adolphe, morto no campo de batalha de Lútzen, enquanto outros valentes coman dantes escapavam; ou com Rafael e Schiller, mortos tão jovens, ao contráno de Michelangelo ou de Goethe. Em suma,
Luigi Capogrossi Bolognesi, Eduard Mey er e le teorie suH’srcine dello Sta Fiorenttni per la storia del pensiero giuridico, 1984, XIII. p. 451469.
to",
Quademi
iihi"* |3 ^°SI^*° P °*'Qca de Meyer, cf. Luc iano C anfora, Ideologie del classicismo, Tunn, Einaudi, uciano Canfora, Innlettual i in Cerm ania ira reazione e rivoluzione, Ban, De Donato, 1979. A p p suo os constantes amálgamas entre histó na e política, Francesco Bertolin i (“Eduard Meyer, uno stonco universale", Qnadcmi di stori a, 1991, X VII, 34, p. 165 182) sublinha que em 1914 Meyer p ra a nmeira juerra Mundial à guerra ambaliana. sustentando que a Alemanha tem o mesmo pe q ol™ ^sua derrota signif icaria o advento d a supre macia Continental da Rússia), enquanto rirfpnc
A “ ! .l0 nl j10' de scre ve a Alemanh a como Cartago e Paul von Hindenburg como or o p ura ,smo de Estado em face do poder mundial, encarnado p elos Estados Unidos.
E Geuthlerer Í9íI,2,0, rf ^ ** Eduard Meyer, Zu,
o
t1884 ' 1902) "aduzid o do alemão por Maxim e Dav.d, Pans ,
Theone und Methodik der
C eschichte, op. at,
p. 12.
[...] quem quer expulsar o acaso e o querer da história, ou rebai xá-los à categoria de elementos contingentes, não somente anula toda sua vitalidade florescente, [...] mas destrói completamente sua essência para substituí-la por fórmulas (como individualismo, ou economia natural e monetária, ou luta pela existência, ou luta de classes), às quais falta um conteúdo concreto.
Quando fala de acaso ou de liberdade, Meyer não pensa nem numa força metafísica nem numa substância mítica. Sua óptica e puramente lógica. A oposição entre liberdade e condicionamento causal não está enraizada nas coisas, mas depende dos pontos de vista. Assim como Goeth e, ele crê firmem ente que "nada acontece de imciona l que a raza o ou o acaso não possam reconduzir à regra. Nada acontece de racional que a razão ou o acaso não possam fazer desv iar”. Cf. Johann Wo lgang G oethe, Ma xim en imd Reflexionen, op. cit., n. 70. p. 31 Eduard Meyer. Zur Th eone und M ethodik der Geschicht e, op. cit, Meye r, The development of individuali ty in Ancient History Eduard M eyer, Zur T heone utid Methodik
p. 2021. Cf. igualmente, Eduard (1904), in Kleine Schriflen, op. a
der Geschic hte, op. cit. , p. 28.
105
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BIOGRAFIA
A HISTÓRIA
se consideramos o passado como alguma coisa que aconteceu, que se estabilizou, se realizou [das Cewordene], ou, ao contrário, como um process o movente e em constante devir [werdetid], O historiador deve escolher a segunda opção, já que, no mundo do espínto, os processos causais nada têm de mecânico, não são o efeito de leis naturais agindo cegamente, mas forniam um entrelaçamento de representações e de motivos que provocam e determinam a decisão humana. Assim, o resultado jamais é necessário enquanto não tiver ocorrido, ele não é mais do que uma das infinitas possibilidades que existem: “Para que se torne realidade, depende da livre vontade que avalia as razões, estabelece objetivos e age em vista desses objetivos. [...] Em toda ação humana, jamais vamos além doeu quero como causa imediata; assim, quando tentamos compreender um ato voluntário que teve lugar como se estivesse em devir, jamais podemos afirmar que a decisão não poderia ter sido tomada em sentido inverso”. ^ Pela mesma razão, o acaso e a necessidade não são propriedades inerentes às coisas, mas categorias lógicas relativas. Se todo acontecimento é a um só tempo causa e efeito, de acordo com o ponto de vista de que se o observa, do mesmo modo ele é tão necessário quanto acidental: “Ele nos parece necessário se o consideramos no encadeamento de sua própria série causal, enquanto fim último desta; ele nos parece acidental se o vemos do ponto de vista de uma série causal exterior, com a qual interfere no tempo e no espaço e sobre a qual exerce um efeito”.289 Sublinhando a importância da livre vontade e do acaso, Meyer corrobora o destino singular da história: “Diferentemente das ciências naturais, a história jamais lida apenas com a água, com o ar e com as leis que os regem, mas se refere a este copo d água bem real e ‘singular’ ou a esta chama Embor a fundamentais, as cond içõe s gerais nunca são, em si mesmas, fàtores históricos. Quando muito, constituem uma base que age em negativo e traça os limites no seio dos quais permanecem as possibilidades infinitas do curso da históna: “A mutação de uma dessas possibilidades em realidade, ou em fato histórico, procede dos fatores “ iw.p i9-au •' . p, ^
O DRAMA DA UBER DADE
individuais últimos ” .291 Nesta perspectiva, a noçã o de lei histórica fica destituída de sentido. Se a livre vontade e o acaso desempenham papel fundamental na vida humana, religar os fatores individuais às leis gerais não pode então bastar (como o próprio Meyer pensava poder fazer durante certo tempo). Tratar-se-ia de um compromisso hipócrita. É preciso reconhecer que não existem leis históricas, que o conceito de lei histórica é antinômico: “Em verdade, no curso de longos anos de pesquisa histórica jamais descobri uma lei histórica ou tive conheci mento de uma lei histórica encontrada por quem quer que seja”.292 Mesmo no domínio da economia, só existem regras deduzidas por comparação e por analogias. Como o princípio segundo o qual certas formações políticas estão ligadas a certas fases do desenvolvimento económico; ou a ideia de acordo com a qual um povo incapaz de assegurar suas necessidades alimentares deveria se consumir em lutas intestinas e necessariamente tentar provê-los alhures, através de razias ou do desenvolvimento do com érc io e da indústna; ou ainda o postu lado de que o aumento do bem-estar acarretaria uma degenerescência da força física da população. O conhecimento histórico não confirma nenhum desses princípios: Considerados em si mesmos, sob o aspecto histórico, não são mais do que conceitos vazios: ainda recebem seu conteúdo graças à infinita riqueza da multiplicidade, que está contida nos processos históricos particulares. [...] A necessidade que constitui a essência de uma lei natural (segundo a qual quando A se produziu, B deve forçosamente ter lugar) está inteiramente ausente em todas essas regras; elas assinalam apenas a possibili dade —e frequentemente várias possibilidades lado a lado —do curso hi stóri co po r vir.29'1
Se nenhuma lei do social é identificável, a culpa não é da in suficiência intelectual dos historiadores, nem das deficiências da do cumentação. A ausên cia de leis é a própr ia essência da história: Em todo momento concorre uma massa de fatores, e cada um é por sua 81'W . p.55. 1,2I bid., p. 32.
" lhli •P- 33.
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boghafia
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O
drama
d a uberdade
história
vez o efeito de um grande número de outros fatores; as séries causais se ramificam a contrapelo em cada um deles até o infinito, à imagem da árvore genealógica de cada hom em ” .294 Dito de ou tro mo do, no mundo histórico a causa não é um fator, mas um processo no qual se entrecruzam incessantemente uma multidão de elementos. Como já escrevera Wilhelm von Humboldt em 1791, cada ação humana é o produto de inumeráveis forças agentes e o mesmo se dá, mas de ma neira exponencial, co m os acontec imen tos col etivo s.295 Sem dúvida, seria possível estabelecer certas regularidades no caso de um homem que vivesse isolado num meio constante, ou de gerações sucessivas sem contato com o exterior. Mas esses casos não existem: na realidade histórica, não são mais do que abstrações, construções ideais inadequa das à compreensão do passado. E por isso que o historiador procede de maneira retrospectiva, ascendente: ele só pode indicar a posteriori as razões do que adveio e nunca estará em condições de predizer os acontecimentos por vir, nem mesmo aqueles do dia seguinte.296 O acento posto sobre o querer permite a Meyer escapar, por um tnz, a uma concepção naturalista, objetiva, da nação. Durante os anos difíceis que seguiram a guerra tranco-prussiana de 1870, nume rosos historiadores alemães (a começar pelo Prémio Nobel Theodor Mommsen) recusam o princípio de autodeterminação dos povos, sustentando a teoria da nacionalidade inconsciente, segundo a qual o pertencimento nacional tem valor superior e antecedente a toda vontade singular e coletiva."' O que significa dizer cruamen te que a Alsácia e a Lorena devem fazer parte do novo Reich, pois são alemãs no plano linguístico, cultural, religioso e racial. Ora, a despeito de sua adoração pela Prússia, Meyer não partilha essa ideia. Seguro do fato de que os valores são tais graças à livre vontade do homem, afirma que as nações nada têm de dado, de necessário ou de srcinário. São, ao contrário, produções históricas extremamente complexas e estratificadas: ^ * ^ el"nc*1 ^-lc^ertt Dir Grenxen der natunnssenschaftlichen Begriffsbildung. Tiibingen, i* c B ' l1*** P 2512 57; Georg Simmcl, Les Problèmes de la philosophie de 1'histoire. Une nu Jr d tputimoloyc (1 K‘J2), traduzi do do alemão por Raymon d B oudon , PU F, 1984, cap. 2.
VV*lhelm von Hum boldt, Uber di e Ge seu e der Entwicklung der menschli
Todas as nações presentes na Europa são produtos históricos tardios, constituídos sob a influência dos aconteci mentos mais disparatados”. Com palavras muito próximas daquelas que usam à mesma época os inimigos Emest Renan e Fustel de Coulanges, Meyer acrescenta que a extremamente
[...] nacionalidade não repousa necessariamente sobre a unida de do grupo étnico, sobre os laços de parentesco estreitos de um ou de vários grupos humanos, ou sobre a homogeneidade da língua, dos costumes, da religião, etc.; ela não é de modo algum [...] a expressão destas manifestações, em que a unidade srcinariamente inconsciente se teria tomado consciente com a evolução histórica; ao contrário, a maior parte das nações comp reend e g rupos étnicos muito diferentes.2 98
Certamente não é a etnia que faz a nação: existem no Reino Unido ao menos seis diferentes grupos étnicos (ingleses, escoceses, galeses, celtas, judeus, irlandeses de língua inglesa e de língua celta). Não é tampouco a língua: os suíços e os alemães pertencem ao mesmo grupo étnico, falam a mesma língua, mas não querem ser confundi dos. E também não é o Estado: os italianos e os alemães perceberam seu pertencimento nacional comum, mesmo provindo de vários Estados diferentes. Em suma, A nacionalidade repousa sobre o querer, a saber, uma ideia. Uma nacionalidade é ahrmada por esses grupos humanos que, sobre a base de uma tendência qualquer, querem formar uma unidade e querem se engajar ativamente nesse sentido: a atividade faz parte disso; graças a ela distingue-se a nacionalidade do grupo étnico. A unidade política e a independência constituem a atividade suprema e geralmente o objetivo a que tende hoje a nacionalidade, mas não estão necessariamente incluídas em seu conceito.-”
Essa defesa vibrante do querer individual suscita duas questões bastante delicadas. A primeira conceme à fronteira social e o individual, e a segunda, à seleção do passado. Assimentre comoo Droysen,
chen Kràf te , op. cit.
K u « deu .irtilhad a por Wilhelm Dilthey, é criticada por Max W eber que insiste n a prev isibilida de | Htamenio humano. Ètudes critiques pour servir à la logique des seierues de la culture (1906), in ^ fc.i i. sur la ihíorie de la science, traduzido do alemão por Julien F reund, Pans, P lon, 19 65, p. 2153 24. (£ Theodor Mommsen, “Lettere ag b italiani (1870)" . Quadenu d, s tona, 1876, II. n. 4, p. 197247. A ideia orulidade inconsciente sera retomada a seguir na Itália pelo pnmeiroministro Francesco Cnspi.
Eduard M eyer, Zur T heone und M “
ethodik der Geschichte
p. 40. Cf. Emest Renan, Qu 'estce qu'une nation? pans, CalmannLévy, 1947; Numa Fustel de Coulanges,
Repouse à Monsieur Mommsen
(1870), in François Hartog.
* Coulanges, Pans, Édmons du Seuil, 1988, p. 398404.
109
, op. cit,
p. 38.
(1882), in Oeuvres complttes d'Emest Renan. L'Alsace estelle allemande ou fianfaise?
Le X IX siMe et 1'hi stoire. Le cas de Fustel
O
PEQUENO
x — Da
biografia
Meyer pensa que o ser humano é formado de duas partes diferentes contíguas mas distintas: Aos fatores que influem sobre o querer do indivíduo, sejam eles processos naturais ou as ideias de outrem, é preciso acrescentar como fator decisivo o caráter espiritual deste indivíduo; sobre esse caráter repousa com efeito a essência da decisão, tanto o sentido que toma quanto a energia com que é tomada, firme mente mantid a, executada - ou tam bém, ao contrário, a f alta de uma decisão firme, donde para aquele que é posto em causa o abandono sem vontade aos acontecimentos.300
Em outros termos, existe uma substâ ncia extern a, que tem os traços da uniformidade e que representa a necessidade: aí está tudo o que Napoleão Bismarck tinham comum associai, com os outros homens. ao E há umaousubstância interna,em fechada, impermeável mundo, que se desenvolve em plena e absoluta autonomia: ela varia de uma pessoa a outra, é única e representa a liberdade. A atividade ética é o produto desse fechamento e está, por conseguinte, ligada à natureza transcendente, não empírica, do indivíduo: Infinitas impressões e ideias chegam incessantemente a cada um, pelos sentidos, pela educação, através da relação com os outros, o divertimento e a instrução, a leitura: mas em todas as epocas culturais, das mais primitivas às mais evoluídas, cada homem se distingue dos outros pela maneira como as absorve e ainda mais pelo que aí põe de si mesmo. Que ele traga novas ideias criativas, no domínio da arte, do valor ou do pensamento reflexivo e científico, depende exclusivamente de sua individua lidade. essas novas ideias se manifestam espontaneamente nele.'"1
, ç ^ soc,al e o individual são apresentados como duas substâncias erentes, que podem se influenciar reciproca mente , mas que permaecem sempre, o que quer que aconteça, separadas e profundamente tran as uma à outra, cada uma por sua conta , e m esmo uma contra essa Idt ia
^
par tilhada por William S Pi , mian Tradition O f * E t V '
Me 'hod lk àer Ges chi cht e, op. cit. , p. 1718. Nesses mesmos anos, °rf T " 1d““ C On* iínciasuma '"divi dual e a outr a col enva , é ,,, „* " ran^ols_Andr é Isambert, "Du rkheim et 1’indivi dualité”, u "i” ^ Mlllcr ‘',lf hdividualism and Human Rights tn the Dur khei ' Sh Ccntrc D kheim .an Stud. es, 1993, p. 531. ' p ,M
110
O DRAMA DA UBER DADE
à história
outra numa relação de tensão. Assim, um limiar íntimo e fugidio reveste os traços de uma fronteira física clara e definitiva. Essa con cepção dicot ômic a se abre s obre um abismo.302 Insiste na necessidade de estudar o el eme nto singular, úni co capaz de expressar a tonalidade dramática da história, ao mesmo tempo, porém, em que decreta a impossibilidade de compreendê-lo historicamente: fechado, autó nomo, inacessível, mostra-se estranho ao tempo. Enquanto animal sociável, o ser humano está pnvado de sua capacidade de agir, e como individualidade, o está de sua historicidade. No entanto, em 1877, Rankejá alertara contra tal oposição, pois o conflito se encontra não fora do homem, mas em seu seio: “Mesmo na história, liberdade e necessidade lutam e se condicionam reciprocamente. A liberdade aparece mais na personalidade e a necessidade sobretudo na vida da comunidade. Mas a primeira é, portanto, um inteiro definido e a segunda um absoluto incondi cio nad o? .303 O abismo revela toda sua profundidade na segunda parte dessa mesma conferência de Halle, quando Meyer volta à questão, susci tada em 1894 pelo filósofo neokantiano Wilhelm Windelband, dos criténos que convém adotar na seleção do passado.3 O primeiro é bastante simples: circunscrever a história apenas e essencialmente àquela do home m. O s egundo não depende de nós, mas da even tualidade de que alguma coisa tenha sido conservada . E depois? Mesmo que uma parte da documentação tenha sido destruída, o número de testemunhos que subsistem estará sempre acima de nossas possibilidades. Como fazer a triagem? O que se deve excluir e o que salvaguardar? Em acordo com Friedrich Schiller, Meyer propõe, como terceiro critério, a eficácia histórica dos fenómenos (,historiche Wirksamkeit) : o que foi não interessa porque foi mas porque continua a agir.305 Em term os mais simples, trata-se de reter apenas
a
Sobr e o pensament o dico tômico , cf. N otbert Elias,
La Société des mdividus
(1987). traduzido do
alcm âo por Jeanne É toré, Paris, Fayard, 1991. Leopold von Ranke, prefácio a HistorischBiografische Studien, in Sámmr/if/ieWerke, p . 41. P VVl, citado por Fulvio Tessi.ore, Teoria del Ventehen e tdea delia Wel,geschichte ,n Ranke. introdução a Leopold von Ranke, (Jber die Epochen der neuemi Geschichte, Munique iena, Oldenboug Verlag, trad. It.,
Le epoche delta storia moderna,
Nápo les, Bibl ipol is, 1
Wilhelm Windelband, "Histoire et Sciences de la nature. Discours prononcé au r^c boug (1894). traduzido do alemão por Si lvia Mancim, Lts études philosophiques. 2 Fnednch Schill er, “Q u'ap pelleton
histoire univers
111
elle?'’, op. cit.
iP , p.
■
O
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x - Da
O DRAMA DA UBER DADE
biografia A HISTÓRIA
o que engendrou efeitos marcantes. A seleção não visa à qualidade dos objetos, mas sua potência causal: o historiador não estuda Platão ou a Capela Sistina em sua totalidade, mas se concentra apenas nos aspectos que lhe parecem historicamente eficazes. Está aí a razão da preeminência dos povos civis: eles foram e são os mais operantes... Alguns anos mais tarde, o historiador romeno Alexandru Xenopol, leitor atento da conferência de Halle, proporá algumas ilustrações surpreendentes desta regra histonográfica: por exemplo, a migração dos fenícios para a estreita língua de terra encostada nas montanhas do Líbano representa certamente um fato histórico importante em razão das consequências intelectuais de que foi portadora, mas não se pode dizer o mesmo das migrações dos árabes da península arábica e daquelas dos beduínos do Saara. Mesmo raciocínio quanto à peste: a peste negra que devastou a Inglaterra, no meio do século XIV, teve repercussões sociais e políticas consideráveis, enquanto as epidemias que afligiram o Onente desde tempos imemoriais produziram apenas inumeráveis mortos, e são, portanto, histor icam ente negligenciáveis.30,1 Como quer que seja, não basta limitar o terreno ao que foi historicamente eficaz. É preciso em seguida introduzir um último pnncípio de seleção, em nome da atualidade: “A escolha repousa sobre o interesse histórico que todo efeito reveste para o presen te . Para Meyer , assim com o para Droyse n, o passado não é um património perdido que deve ser recuperado, mas uma herança viva, uma força, uma energia geradora de sentido. Cada fenómeno pode ser digno da história, tudo depende de sua vitalidade e de sua repercussão. O objeto [de interesse históri co] pod e tanto ser um homem particular quanto uma totalidade, um povo, um Estado, uma cultura, mas nenhum objeto interessa por si mesmo, pois de agora em diante ele é ou foi no mundo, mas importa unicamente em razão do efeito que produziu e produz ainda” .307 Isso significa que a históna não é um saber independente das paixões do mo mento, como pensava Ranke,3"" mas uma forma de pensamento erto, que modifica incessantemente a hierarquia dos fenómenos: xandr n D. X enopol. ^
La Theone de VHistoire,
Pans, Emst Leroux, 1908
uard Meyer. Zur Theone und Methodik der Gesc Leop old v on Ranke. "Objekt.
hichte , op. o t. ,p
ve Cesch ich^chrnbu
ng" (,8 45). ,n
Os mesmos critérios de seleção se aplicam à biografia. Meyer se interessa apenas pelas personalid ades h istorica mente determinantes, aquelas de que se pode dizer que, se houvesse outra pessoa em seu lugar, o acontecimento teria tomado outra forma. Todas as outras determinante e indiferente nada lhe são indiferentes. A distinção entre tem a ver com a grandeza ou o valor espiritual da pessoa. Alguns grandes homens - é este, segundo ele, o caso de Cesar - não deixaram sua marca, à diferença de espíritos inferiores, por vezes mesmo desprezíveis, co m o Luís X V ou Carlos II da Inglaterra, que influenciaram profundamente o porvir de uma nação: Como se pode constatar, não se trata da significação ou do valor da personalidade em si, mas do fato de que tal ou tal perso nalidade —em razão de sua personalidade, ou pelo fato de seu nascimento, ou ainda em virtude do voto e assim por diante —se encontrou em face dos acontecimentos numa posição que a viu se tornar um fator determinante do processo históric o.
Sobre a seleção do passado não pesa mais o princípio de grandeza, mas aquele de operatividade ou de eficácia. Alguns anos antes, o tilósofo Heinnch Rickert escrevera que o fato de Frederico Guilhenne IV ter renunciado à coroa imperial era um acontecimento histórico, mas que era perfeitamente indiferente saber que alfaiate confeccionara seu unif orm e.311 Em bor a partilhando a distinção en a pnori tre homens determinantes e indiferentes, Meyer não exclui a possibilidade de que u m alfaiate pert ença à primeira categor ia, considera óbvio que sua presença é absolutamente insignificante no plano político, mas concebe que ele possa influir na história da moda ou da indústria da costura ou naquela dos preços. Essa perspectiva Eduard Meyer, Zur Theon e und M ethodik der Geschichte, o
110111
Vorles unXsein,eitungtn,
"A obra histórica mais significativa do passado [...] jamais pode o presente: todo presente coloca problemas diferentes daqueles das gerações precedentes, pois considera outros fatores como determinantes”.309
satisfazer inteiramente
Droysen, Historik, op. cit.,
op. ri,..
Heinnch Rickert,
112
p. cit., p. 48. C f. tambem Johann Gustav
p. 10 sq.
Eduard Meyer. Zur Th eone und M ethodik der Geschichte
, op. cit., p. 62. Die G ren zm der naturuissenschaftlichen Begrif fsbildimg, o p. at., p 325.
1 13
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PEQUENO X
- Da
O DRAMA DA UBER DADE
biografia à HISTORIA
supõe ao mesmo tempo um trabalho interminável de demarcação entre o geral e o singular: o historiador deve inicialmente selecionar a realidade, distinguir o indivíduo determinante daquele que é indiferente, para depreender em seguida das profundidades do indivíduo o elemento particular, único, de sua personalidade. Como escrevera o ministro da Guerra Albrecht Roon, em 27 de julho de 186 4, pouc o antes da assinatura do tratad o de paz en tre a Prússia e a Dinamarca, o gênio histórico é aquele que sabe “traçar exatamente o paralelogramo das forças, e deduzir da diagonal, isto é, do que teve lugar - que é a única coi sa que se conhec e verdadeiramente - a natureza e a classe das pessoas que agiram”.312 Será mesmo essa a tarefa do historiador? Como escreve Max We ber em seu denso tex to consag rado jus tam ent e às r eflexões de Meyer, o projeto que consistia em distinguir o eficaz do insignifi cante, o determinante do indiferente, e o individual do social, estava destinado a permanecer inacabado: Percebe-se [...] que seria impossível levar a termo, mesmo no futuro longínquo, esse exercício de subtração, e que após ter feito abstração de toda uma infinidade de “caracteres comuns” [Gemeinsamkeiten], subsistiria sempre uma infinidade de elemen tos, de maneira que, mesmo que perseguíssemos com zelo durante toda uma eternidade esse esforço de abstração, não teríamos nos aproximado sequer um passo da questão: o que no fundo e essencial para a históna nessa massa de particularida des.313
Mas consideremos por um instante que o impossível seja possível: queremos verdadeiramente nos desfazer de tudo o que não teve nós ? E se isso pudesse consequências práticas particulares sobre nos ajudar a melhor captar a diversidade do passado? E se isso nos permitisse lançar luz sobre pensamentos, imagens e ações férteis
críticos para com esse “fanático, destruidor e devastador de tudo o que é a verdadeira história” que era a seus olhos Karl Lamprecht :314 Ott o Hintze, que subtraiu a história constitucional do domínio estritamente jurídico para lhe dar sua dimensão humana, e Friedrich Meinecke, autor de um ensaio fundamental sobre as srcens do historicismo.
VI Hintze intervém noMethode nstreit em 1 897 com dois textos con Historische Zeitschrifi e no SchmollersJahrbuch. Neles, cisos publicados na reconhece a pnmazia da componente psicológica na vida histórica: “A abordagem psicossociológica é talvez a aquisição mais importante desde o fim do século precedente no domínio das ciências humanas. Suas raízes se encontram já em nossa época idealista: quando Hegel falava do espírito objetivo e Jacob Grimm da alma do Volkseelé), povo ( ambos evocavam forças mentais coletivas que são o produto de um processo rela ciona do à psicolog ia das massas”.315 E por essa razão que o historiador deve estudar, além dos aspectos mais visíveis da política (“as cadeias e os cumes”), o nível sociopsíquico de uma época ( a base das mont anhas , a massa continenta l em seu conjunt o”) .31h Sua definição da psicologia difere, entretanto, da de Lamprecht. Para ele também, a génese dos fenómenos históricos reside nos atos psíquicos coletivos: “Não há outras forças motrizes na históna além daquelas de que o homem é o vetor, não só o homem, claro está, em sua existência individual, mas sobretudo em seus laços so ciais, no seio dos quais são engendradas essas forças mentais coletivas que são o núcle o vivo de todas as instituições . No entan to, co m meias palavras, Hintze estende a iniciativa pessoal a toda vida social. O momento individual intervém também no acontecimento coletivo, desempenhando, na transformação da língua e da
em termos de significação humana? E se isso, justamente graças ao recuo, abrisse o caminho de uma crítica do presente? Sem dúvida, Meyer poderia ter tomado outra via. É o que fizeram, em seu lugar, dois outros grandes historiadores, eles também muito
eine cke , Die deutsche Geschichtsuissetischaft und die modemen Bedurfmsse Thcoric „„d Philosophie der Geschichte , op. C it.. p. 173 174. D e sua parte , Max Weber
"* A definição é de Friedrich M "'»16). in Zur
chegou mesmo a qualificálo de “charlatão desonesto da pior espécie ^ tto Hintze , Conceptioti indivtdualiste et coticcplton colletiviste de l Histoire túiisme et État modenie, traduzido do alemão por Françoise Laroche,
Eduard Mevcr. Zur Theone Ul,d Methodik de, Geschichte, op. cit.. MíX Weter'
É‘udeS
P°ur ím"> ‘
p. 64.
Iw qu e des saences de la cultur e, op. at .. p. 241.
1 14
des Science s de rHo mm e, 1991, p. 28. 116Ifcirf.. p. 32 .
115
(1897), in Feodalitt, capi Pans, Éditions de l a Maison
O
PEQUENO x
- Da
bi ogr afia
à história O DRAMA DA UBERD ADE
ética, da economia e do direito, um papel comparável àquele
aparecem aí mais com o grandes individualidades coletivas do
que desempenha na fundação dos Estados e nas lutas de poder no seio dos povos, de maneira sem d úvida mais discreta, menos visível, mas não menos significativa.Sl'
T od o fato co leti vo, até o mais instituc ional, emana, porta nto dos impulsos individuais. As personalidades singulares não se exprimem somente por ações políticas extraordi nárias; em geral, manifestam-se, ao contrário, por pequenos gestos ordinános, em aparência insignificantes (considerados individualmente, significam bem pouco, mas reunidos, podem ter consequências históricas decisivas). Por outro lado, sempre prestando grande atenção às sugestões das outras ciências sociais (diferentemente de Meyer, ele não encara o i eralismo modern o e a sociologia co mo os inimigos a abater), Hintze tambem se ergue contra toda forma de naturalização da história:
que co m o representantes idên ticos de uma me sma espécie.3’9
Por certo, pod ese falar em determinados cas os de desenvolvimento paralelo (por exemplo, no seio da família dos povos romano germânicos); entretanto, c om o já compreendera bem Ran ke, não se trata de uma bagagem natural, mas de uma conquista da história. Tod avia, e aí está o p on to essencial, a fronteira entre o individual e o social é traçada em termos profundamente diferentes daqueles propostos por Meyer. Sob certos aspectos, Hintze reencontra a via esboçada por Wil he lm von Hu mb oldt que, set enta e cinco an os antes, escrevera que o indivíduo é um Eu que fala a um Tu. Aspira a um Tu quando age, quando fala e mesmo quando pensa: Co m o o ho mem é um animal sociável é esse seu caráter distintivo porqu e tem necessidade de um outro, não para a procriação,
Parece que as formas sociais de existência são condicionadas
ou uma vida que repouse sobre o hábito (como certas espécies
e modificadas pela vida histórica de maneira realmente dife-
animais), mas porque se eleva até a consciência do Eu, e o Eu sem
rente daquela como as formas biológicas o sào pela influência
o Tu nào é para seu entendimento e sua sensibilidade mais do que
da consciência. Nào é apenas a vida orgânica da sociedade
um absurdo, em sua individualidade (em seu Eu) arrancase ao
que condiciona a vida consciente do Estado, mas também o inverso, de maneira que muitas vezes essa tendência natural de desenv olvime nto sofre desvios.3 1"
íção objetiva da nação proposta por Lamprecht não tem, portanto, lugar aí: ações concernidas pela história não são de mo do algum ^
çoes purament e naturais, são o produto de dad os da his niversai, isso se aplica particularmente às nações inglesa, esa eamericana. N a história, nação e Estado não p odem ser gui os um do outro |...J: a nação co nsti tui o Esta do, mas o também constitui a nação e influencia sua civilização eira ” lais Pr° funda. Vejam se os resultados econó mico s
ercann ismo. E nas oposições e nas interdependências das Ç e os Estados que progride a históna unive rsal; e estes
317 Ibi d., p. 30.
Venuahung und Volhuirtsúaft, C.uida, 1971 p 87
mesm o tem po aq uela de sua sociedade (de seu Tu ).,2n
Não contente em buscar o reconhecimento do outro, espera também se reconhece r no outro: “ Me sm o quando tem o espírito alhures, fala unicamente ao ou tro ou a si mesm o c om o se falasse a outrem, e traça assim os círculos de sua afinidade espiritual, distinguindo aqueles que falam co m o e le daqueles que falam dife rente ment e” .321 Assim, a consciência de si, a possibilidade de tomarse sujeito, de usar da própria vontade, não se forma apesar da experiência social, como pensa Mey er , mas graças a ela: “ C om o a força pura precisa de um objeto sobre o qual possa se exercer, e a forma simples, o pensamento puro, precisa de uma matéria em que possa durar marcandoa com sua impressão, da mesma forma o homem precisa de um mun do f ora d e si me sm o” .322 Definitiv ament e, as relações
°" o Hintz e, 1 897 En^ 1C*clungstheHn<; • ln '‘ ■Amoítrn J th ú u tk fiir Ge seU geb ung ,
‘
•citado por Pierangelo Schicra,
Olio Hintze,
Nápoles,
Concep tion individua liste et conception collecti ve de l’histo ire, op. cil.,
Wilhel m von H umboldt, 1 Wilhelm von Humboldt.
Wilhel m von H umboldt,
Considérations sur l'histoire mondiale, op. dt.,
Uber den Dualis
Tlieorie der Bildunii des Mensdien
' 1. p. 283.
117
p. 33.
p. 53.
(1827), in Gtsammelte Scliriften, op. al„
t. VI, p. 25.
(1793), in Gesúmmeltc Schriften, op. dt..
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PEQUENO X -
Da BIOGRAFIA
O DRAMA DA UBERD ADE
 HISTÓRIA
entre eu e eu quase não diferem em qualidade daquelas que existem entre eu e tu.323 Infeliz mente , essas reflex ões essenciais guardam alguma coisa de vago e mesmo de inacabado. Talvez Hintze desejasse voltar a elas
identificação do essencial co m o efic az.327 Segu ndo ele, o essencial além de tudo o que foi e permanece ainda eficaz, os
compreende,
pensamentos e as ações que enriquecem nossa vida: Suponh amos qu e se descubra a obra de um autor desconhecido do passado que se revela de uma força espiritual e de uma profundidade elevadas, embora tendo permanecido desconhecida de seus contemporâneos e, por conseguinte, completamente ineficaz de um ponto de vista causa l, deveríamos por isso considerála hist oric am enteinessencial e ineficaz?’2"
ulteriormente ou mesmo voltou no curso dos anos que seguiram. Jamais o sab eremos. Em 1933, após a re cusa da H ist or isc he Zeit sch rift de publicar um artigo de sua mulher, a ji id is ch er M is ch li ng 32*Hedwig Guggenheimer, demitese da Academia das Ciências e decide não publicar mais nada. Sete anos mais tarde, em conformidade com suas dispo sições testamentárias, tod os seus papéi s serão d estruíd os.325
pelo seu grau de eficácia, já que são sempre dignos de interesse: sua significação não reside no que decorre deles, mas na própria
VII Já Fne dn ch M ei ne ck e c ont inu ará a e sc rev er a té sua mor te, em 1954, quando seu so nho de conciliar a herança de Go eth e e aque la de Bismarck s e terá esvan ecido.'2 6Suas interv ençõ es no M eth od en streit se estendem por mais de cinquenta anos: de 1887, ano em que começa a trabalhar nos Arquivos secretos do Estado de Berlim ao lado de Heinrich von
Sybel, a 1939 , quand o publica uma coletâne a
de textos sobre o sentido histórico e a significação da história. Ao longo de todos esses anos, não cessou de se interrogar sobre a capacidade do historicismo de se curar de seu ceticismo: terá a força de remediar as fendas que ele mes mo se infl igiu ? E é justamente nessa perspectiva que, em 1928, na Hi sto ris ch e Ze it sc hr if t, volta por sua vez à questão da seleção do passado. A seus olhos está fora de dúvida que o historiador deve esco
sava Meyer. A exemplo de Max We ber, M eine cke cont esta a
’ i tstar T r r estar f J'BUn! an<" t3rdC Paul Val ér^ só, e consoo, e sempre ser Do is" .
Calhnwd,
existência. N ão deixa m d e ev oca r “ o que o poeta diz des sa antiga lâmpada dorava nte in útil e qu e no e ntanto o exalta: mas o que é ,
»
i
r
■
•
belo aparece feliz em si me sm o
329
.
A históna é a ssim considerada com o con hecim ento semântico, pesquisa de valores vitais produ zidos pelo passado.3 Naturalmente, quando Meine cke fala de valores, referese, com o todos os pensadores de sua época, sobretudo às grandes obras culturais e espirituais, mas é preciso não exagerar essa preferência: ‘ Essas produções e esses valores culturais são extremamente numerosos no seio da história, já que tod o esp ín to hu ma no é c apaz de pr od uz ir val ores culturais . Além do mais, co m o esc larece algumas páginas adiante , não se deve entender por espírito “ simplesm ente o psíquico, mas antes, numa acepção antiga, a vida psíquica superiormente desenvolvida, ou, dito de outra fonna, aquela que ‘distingue, escolhe e avalia , e da qual
er o essencia l na massa ilimitada do passado. Mas no que consiste o essencial. Simplesmente naquilo que ainda é eficaz, naquilo que preparou nossa vida presente e continua a alimentála, como p
Os fenómenos cultur ais, esp ecialmente, jamais d evem ser avaliados
1974. «. II. p. 240:
' “M estiça judia" . (N.T.).
emana a cultura. A cultura é port anto a manifestação, a irrupção de um elemento espiritual no seio da conexão causal universal Se não nos contentamos com a grandeza e com a eficácia, a questão da seleção do passado se apresenta em toda sua intensidade
( I Max Web er, Études critiques pour servir
á la logique des sciences de la culture, op. ci
Fnednch Meinecke, Kausalitàlen und Wene
(19251928). i n Z»r Theorie und
°P- cit-, trad. it.,
,p
Philosoph ie der Geschichte.
p. 67.
“ Ibid.. p. 77.
His tor y o f Ideas, 1956. 17, 4 .' p. 5 1 í_52 ?
»' •P-
Cf. também Emst Cassirer,
3IM,.. p» .»
* Mc,necke <1862
1954)“/*nw
/ of
Essai sur I Iwnwie
Editions de Minuit, 1991, cap.
(1944), traduzido do inglês por Norbert
10 .
Fnednch Meinecke , Kausalitáten und Wene, op. ot.,
119
p. 75.
,
O PEQUENO X- D a BIOGRAFIA A HISTÔSIA
CAPÍTULO IV
dramática. É preciso talvez que nos resolvamos a aceitar o fato de que há no estudo do passado um momento arbitrário inicial, ligado à sensibilida de pess oal do historiador.
É o que pensa Mei nec ke quan-
do evoca o caráter móvel das fronteiras que separam o importante
A pluralidade do passado
daquilo que não o é. Mas essa tomada de consciência não abala sua confia nça no con hecim ento histórico. A questão é ape nas um preâmbulo; em seguida, vem a escavação. E é justamente quando se encontra numa posição incóm
oda, sob a superfície,
que o hist o-
riador tem a possibilidade de verificar a pertinência da questão que colocou , de com gila e por que não? de enco ntrar outr a coisa, que não esperava. Nesse ponto, Meinecke reencontra Droysen: Tính am os isto e aqu ilo; hoj e, é co m o se não possuíssemos mais nada, é preciso recomeça r do zero, é preciso retomar tudo desde o inicio. Procurando materia l, verifica ndo o, interpreta ndoo, reelaborase o pensamento e, à medida que este se desenvolve afinandose cada vez mais, precisase em toda a sua riqueza e se transforma; correse mesmo o risco de o perder [...]. Muitos se esgotam com a tarefa, perdemse em vias transversais,
A di ze r a verdade, toda coisa mo vente leva em si a medida de seu tempo; e este permaneceria mesmo se não houvesse nada de outro; não há duas coisas no mundo que tenham a mesma medida de tempo [...]. Existe portanto (pode-se afirtná-lo ousadamente) no universo, num só tempo, uma multidão de tempos. Johann Gottfr ied Herd er133
lançamse a novos possíveis, pro spectam em extensão mais q ue em profundidade.
Sob essa luz, é o trabalho que o historiador efetua sobre si mesmo que verdadeiramente importa.
I
Lon ge de apagar su a subjeti vidade,
com o queria Ranke, ele deve aprender a reconh ecêla e a fazer dela uma fonte de conhecimento;
Desde Anstóteles, encon
tramse de maneir a recorrente filóso fos
para recordar com tom grave o caráter singular do conhecimento
O co nteúdo de nosso eu é algo de rec ebido (Empfangenes), que
histórico. “ A história nos diz o qu e é uma coisa, a ciência e a fi -
chegou a nós, que é nosso e não o é. Assim, não estamos ainda
losofia porque é assim; aquela considera o que é singular, estas o
livres em relação a nosso saber; ele nos possui mais do que o pos-
universal; a primeira se funda sobre o sentido, as duas outras sobre
suímos. Só tomando consciência de que somos de certa forma
a razão; uma pre ced e, as outras s egu em ” , escrevia Johannes Jonsius
mediatizados ( vennitteltes), é que o separamos de nós mesmos.
na metade do sécu lo X V II . Essa disjunção simples, não obstant e
A partir de então, começamos a ser livres em nós mesmos e a
discutível, entre a históna c om o c onh ecim ento do singu lar, do quod e a ciência (ou a filosofia ) c om o c onh ecim ento do geral , do ti
dispor do que era imediatamente nosso conteúdo. Está aí um grande resultado de nos so dese nvo lvim ento inter ior.332
■SIÍ’ nào tem apenas v al or d es cr iti vo . El a dá a ent end er que a históna é impotente para produzir enunciados de ordem geral. Essa suspeita
J° m G rf U«I Dh °y“ n' H 'S‘0n k’ °P ' P ,06 ' 107 S°bre a hlstóna como forma dc autoconhe « * * 0 . cf. cambem as cons.deraçôcs de Emst Cau.rer, Essa, sur rhomme, op. cap. 10.
12 0
Johann Gottf ned He rde r, Verstand und Erfahnmg. partc' 17 g9|, in Sámtliche Werke.
Eine Melak rink zur Kn
1881, t. X X I. p. 59.
121
lik der remen
1
11
O
PEQUENO x -
Da
A
biografia à história
cheia de malignidade desponta claramente sob as proposições de AndréFrançois BoureauDeslandes, discípulo de Malebranche, qualificado por Voltaire, que não gostava nem um pouco dele, de “ velh o ginasiano prec ioso ” : os historiadores, lê se em seu tratado de historiografia, relataram os pensamentos dos outros e não se preocuparam em pensar por si mesm os.334 Essa imp utaç ão de preguiça conceituai, que não se dá ao trabalho de tomar qualquer precaução, é retomada a o longo de todo
o século X IX , no momen to mes-
mo em que o pensamento histórico é valorizado em todas as suas expressões (a históna, a filosofia da históna, o romance histórico) como jamais o fora. É talvez por essa razão, aliás, que o tom se faz
historiadores defendem
PLURALIDADE DO PASSADO
o valor do fato ou do fenómeno singular.
Sem dúvida, não se trata de um tema novo. Ao longo do século XIX no entanto, as declarações antifilosóf icas se radicalizam. Ranke mais uma ve z acusa a filos ofia da história de querer subordinar a históna da mesma mane ira q ue o tentara antes a teologia, e vanglonase de estar do lado do particular histórico contra o
geral filosófico: “ O
ponto de vista históneo contém um princípio ativo que se opõe sem trégua ao ponto de vista filosó fico [...] Enquanto o filó sofo [...] busca o infinito un icamen te n o progresso, n o desen volvimento, na totalidade, a históna reconhece em toda existência alguma coisa de infinito; em toda circunstância, em todo ser, um
quid eterno que
mais zombeteiro. Hegel, de sua parte, declara que os historiadores
emana de Deus ; e aí está seu pn nc íp io v ita l” .337
puros (como os nomeia com desdém, especialmente Leopold von Rank e) contam o s acontecimentos “ de maneira conting ente, ex a
Mas, felizmente, nesse intenso turbilhão de ideias que agita o século, algumas vozes discordantes se fazem ouvir. Em pnmeiro lugar,
tamente como se apresentam a eles, em sua particulandade, sem
aquela de W ilh elm Dil the y, que se dedica a dar u ma envergadur a
relação e sem pensame nto” , e que semelha nte histó ria “ não seria
filosófica à reflexã o da histon ografia alemã do século X IX .31" Em sua
mais que a representação de um fraco de espírito, nem mesmo um
longa existência, situada sob o signo de uma incansável vocação, e por
conto de fadas para crianças” .335 Algu ns dec éni os mais tarde, Bene
isso não isenta de algumas retrataçõe s do lorosas, ele jamais se afastou
detto Croce fala abertamente de uma historiografia sem problema
de um ponto firme: o mundo históneo é produtivo, e essa qualidade
histórico: após ter deixa do escapar, en passant,
não é fruto de um princípio absoluto, transcendente ou imanente à
que Ranke tem “um de que a figura
atividade humana, mas da ação recíproca dos indivíduos. Em 1883,
do “ histonado r desprovido de filo sofia cede o passo à quela, bem
escreve que “ essa total idad e maravil hosa men te entrelaçada que é a
diferente, do filó sof o” .336
históna é constituída pelos indivíduos, unidades psicofísicas, cada um
ntmo p ouco rápido de vida interior”
, regozijase
Co m o é muitas vezes o caso, a antipatia en tre os dois campos é recíproca. Desconfiados das generalizações abstratas, numerosos
diferente de todos outros e capaz de formar um mundo.
A queda
d água se compõe de partículas homogéneas que se entrechocam, mas uma simples frase, que, no entanto, não é mais que um sopro saído de nossa boca, abala, graças ao jo g o dos mo tiv os q ue suscita em uni
Os textos de J onsius e de Deslandes são citados por M ano Lon go, in Hi sto ria e ph ilo sop hia e phil osophica , op cii , p 7594 A propósito da polémica sobre a históna no fim do séc ulo XV II, cf. Paul Hazard, La crise de la c ons amc c euro péen ne, 16801715 (1935), Paris, Fayard, 1961, cap. II. Georg Wilhelm Fnednch Hegel,
Encyclopó die des scienc es philosophique
s en abrêgí (!830 ), traduzido
dades profundamente individuais, toda a alma de uma sociedade em qualquer parte do m un do ” .339 Vi nt e e sete anos mais tarde, durante uma sessão plenána da Academia das Ciências de Berlim, volta, uma
54 9 , p. 467. do alemao por Maunce de Gondillac, Pans, Gallimard, 1970, § L ’Hist oire com mt pens êe et com me actio n (193 8), t raduzid o do italiano por Ju les Benedetto Croce,
< híix Ruy, Genebra. Droz , 1968, p 102. A preguiça conceitu ai da história foi por muito tempo '!r
.u
pi. *, disciplinas sociais mais jovens. Me smo admirando a obra de Fustel de Coulanges,
AlírtJ R RadcliffeBrown
(Stmcture et fonction d am la soci ète primitive,
traduzido do inglês por
Françoise e Louis Mann. Pans. Édinons de Minuit, 1968) afirma o primado da sociologia, que «na ■*p^ Jc enunciar proposições gerais, sobre a históri
a e a etnografia, as quais só pod enam formular
aíinnaçoes par ticulares ou fatua is. Alguns anos mais urde , Cla ude LéviStrauss , li o n , 1 uiigiru tdjik
(La Pensée sauvage,
p 34 2 ) estima que o código da históna consiste numa cronologia: ‘ Toda sua c sua especificidade estão n a apreensão da relação do antes e do
depo is” .
Leopold von Ranke, “ Manu scnt des années 1830” publica do por Eberhard Kessel Zeilschrift, 1954, 178, p. 2922 93. Cf. Gius eppe Cacciatore, ‘Dilthey e
. la stonograf.a tede sca delTOttoc ento’ . Stud, stona. 1
p. 5589. Wilhelm Dilthey,
. . .
Intr odu cti on au x scienc es de 1'esp rit (1883), dans Critique^ de /a m s
introduction aux sàences de 1’ esprit et autres Edicions du Ceri, 1992, p. 186 e 195.
textes , traduzido do
alemao por Sy vi
^ ^
.
O
PEQUENO X -
Da
biografia
A HISTORIA
A
vez ainda, à significação e à tarefa das ciências históricas. Especifica, assim, que a demarcação entre as ciências do espírito (Geistesunssenschaften) e as ciências da natureza Na ( tur uH ss en sch aft en) não é de ordem ontológica, mas sim transcendental: tratase de uma distinção que não concerne aos objetos, mas à experiência, que deriva de um fato de
PLURALIDADE do p ass ado
tempo após seu casamento co m Kãte Piittmann, a consciência não é a única realidade, pois no mais profundo dos homens existe intensa riqueza subterrânea: “ Disce rnimo s em nós mesmos um a vivacidade
consciência, desse sentimento ínt imo pelo qual nos sentimos diferentes
psíquica ext rem ame nte variada [...] , à imag em das plantas, cujas raízes se estendem em p rofu ndid ade no solo, enquan to apenas algumas folhas despontam” .344 Alg uns an os mais tarde, desenv olve seu pensamento
da natureza.340 Em ap oio d e suas co nvi cçõ es, afirma:
evocando a irracionalidade do caráter humano, manifesta em todo
A vida histórica é criadora. Age constantemente produzindo bens e valores, e todos os conceitos desses bens e desses valores
herói, em toda verdadeira tragédia, em numerosos criminosos, mas também presente na vida de todos os dias:
não são mais do que reflexos de sua atividade. Os suportes dessa
Nã o há nada a fazer, não somos um aparelho que b usca produzir
criação constante de valores e de bens no mundo espiritual são
prazer regularmente e impedir o desprazer, avaliando valores
indivíduos, comunidades, sistemas culturais em que os parti-
de prazeres uns em relação aos outros, e conduzindo assim as
culares co labo ram .341
volições para a soma acessível do prazer. Para um aparelho deste tipo, a vida seria evidentemente racional, mesmo um exercício
Para exprimir a relação vital que liga os seres humanos entre si e os leva a deixar sua marca no mundo, Dilthey elabora o conceito de
de cálcul o. M as não é assim. [...] não buscamos evitar o desprazer, mas o exploramos até o fundo, meditamolo sombriamente, com
Wirkungszusammenhatig, termo complexo em alemão e dificilmente traduzível em outra língua (dynamic unity, ensemble interactif, connessione ditiamica ).34_ Diferente mente da conex ão causal, qu e reg e o mundo da natureza, a conexão dinâmica está ligada à vida psíquica e procura significações, produz valores , enfim , realiza objetivo s: “ A célula pn mitiva do mundo histórico é a experiência vivida ( Erlebttis ), na qual o sujeito tem por meio o conjunto interativo da vida. Esse meio age sobre o sujeito que, por sua vez, age sob re el e” .343
misantropia; arrastad os por obscuras pulsòes, colocamos em jog o nossa felicidade, nossa saúde e nossa vida para satisfazer nossas antipatias, sem levar em conta o ganh o de prazer.145
Essa convicção absoluta deslanchará a controvérs ia com os filósofos que intelectualizam os fatos de sen timento e de desejo: “ Nas veias do sujeito cognoscente tal co m o Lock e, Hum e e Kant o construíram, não é sangue de verdade que corre, mas uma seiva diluída de razão, concebida com o ún ica ativid ade do p ensamen to” .34,1 A expressão
II
“ciências do espír ito” , que escand e alguns dos textos mais célebres de
Quando Ddthey fala do indivíduo, não se trata de uma entidade espiritual nem de um ser racional. C o m o escreve nos anos 1870, pouco
incorporais e cerebrais da existência. Mas certamente não era essa
Dilthey, pode evoca r, so bretudo no leito r de hoje em dia, imagen s sua intenção. Di lth ey em preg a o term o “ espírito” (Geist) para exaltar 3 capacidade cr iadora do ser humano. C om o recorda nu ma nota
i ma introdução geral
à filosofia de Dilthey, cf. especialm
ente Bem ard Gro ethuyse n, “ Dilthey
bastante tardia, tratase de uma noção imperfeita, já que os fatos da
et son ecole", in 1912, p. 123; Herbert A. La Phi loso phie alle man de au X IX e siècle, Pans, Alcan, odgei, Hi, 1’hilosophy of Dilthey, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1952; Pietro Rossi , Lo *> ii*nlemporanio , Tunn , Eina udi, 195 7; Raymo nd Aro n, La Ph ilo sop hie crit ique de 1’hisloirr. •SOI sur une lheone allemande de 1'histoire Pans. PU F, 1990 dfs saettta hisionques,
Wilhelm Dilthey, L
. Pans, Vnn,
1964; Sylvie Mesure,
Unidade dmimica. conjunto Ibid .. p. 113.
“ Wil hel m Dilt hey, Erkenntnistheor
, Édmon . du Cerf.
1988 , t. III, p. 106.
interati vo, conexão dinâmica
(N T )
(1910), traduzido do
Wilhel m Dilthey,
P '24. Em
precht, vol. XV
Gesammelte Sclmfien.
amè le C ohn e Ev elyne
1769 . Johann Gottín
Lafon, Pans, Édit
Écnts d esthétique,
ions du Cerf, 1995, t
ed H erder escrevera a Moses Mendelssohn que er
supor a existência de uma alma incorporai, de uma natureza humana não sensual.
124
Stuttgart/
III , p. 189.
L' Im ag in at io n du po it e. Él ém en ts d ’une po íti qu e (1887), in
traduzido do alemão por D
Wilhelm Dilthey,
Vi'
etische Fragmente (187479), in
Gõt ting en, Teubn er/Van denb oeck & Rum
édifuation du monde Instorique dans les sciences de 1'esprit
^ alemão por Sylv.e Mesure. Pans
Di lth ey et la fond atw n
Int rod uct ion au x scien ces de Ves prit , op. cit., p. 148149.
. VII,
a quimenco
O
PEQUENO
x - Da
A
biografia A história
Leb ense inh eit )
vida espiritual não estão destacados da unidade viva ( psicofisica da natureza humana,
PLURALIDADE do pass ado
como uma condiç ão áspera e inelutável da experiência human
a: “ A
resistência tomase pressão, a realidade parece nos cercar por todos
[...] mas qualquer outra designação aplicada a este grupo de ciências suscita reticências consideráveis. Assim acon tece igualmente com a designação das “ ciências da cultura” [...]. Exprim ese aí uma concepção demasiado bene volen te e otimista da realidade humana, na qual os obscuros instintos qu e lev am a opnn urse e destruirse reciprocam ente desempenh am um papel m uito impor tante.547
Ele que, na qualidade de historiador e psicólogo, teve que levar em conta o homem em sua íntegra (mit ciem ganzen Menscheri), considera esse ser co m o uma to talid ade p sicofisica, feita de representação ( Vorstellen ), de sentimento ( Gefiihl ), de vontade ( Wil-
le), as três formas essenciais do viver ( Le be n ), intimamente ligadas entre si.,4KAssim, a consciê ncia da dist inção entre o eu e o mundo exterior não procede somente de um ato do pensamento, mas da própria vida: a realidade permanece sempre um fenómeno para a simples representação, ma s aparece com o um dad o estabelecido e inco ntom ável n o tod o de nosso ser que quer, sente e representa.349 Dito de outro modo, o eu só percebe a presença de uma realidade bem distinta, autónoma, quando se depara com algo que resiste a ele. Por vontade ’ não entend o o ato de querer enquanto s ituação de consciência, mas antes a atividade de que posso ter consciência e, precisamente, em suas diferentes posições em relação àquilo de que ela se distingue. Sintome ora condicionado, ora tomado de assalto, ora sujeito a, ora numa atitude de aspiração e de co nt rol e” , como escreve num ensaio so bre a psic olog ia de scritiva em 1880.35(1 Nos anos seguintes, Dilthey não parou de apresentar o exterior, o fora,
os lados com muros que não podemos transpor. E que muros ela não opõe d ireta me nte a nossos desejos! C om o pesam sobre nós! Vejase Schiller quando
aluno da Ac adem ia militar” .351 E, quando reprova a Heim Helmholtz e Eduard Zeller o fato de definirem a realidade como uma simples projeção do pensamento, observa que o primeiro germe da distinção entre o eu e o mundo se inscreve na experiência da pulsão e da resistência: A realida de ( R ca lit àt )d o m undo exter ior não é tirad a dos dados da consciência, ou seja, deduzida por operações puramente intelectuais. Penso antes que os processos conscient es anteriormente indicados tran sm item -no s uma experiê ncia da von tade - a /re ag em da inte nção -que está implicada na consciência de uma resistência e que, só ela, nos revela a realidade robusta e viva do q ue não depen de de n ós.352
O indivíduo, esse ser sensível, é também fundamentalmente social e sociável: não é a existênc ia singular e isolad a que é co m preendida no c onc eito de e go, não é uma subs tância impermeável, mas tratase de “ um con ju nto que encerra em si, a cada vez, os sentimentos vitais dos outros indivíduos, da sociedade e, mesmo, da natureza” .353 A exem plo de W ilhe lm von Humboldt e de Otto Hintze, Dilthey sublinha a dependência essencial do ser humano que não está jamais e m c on diç ões d e ser autossuficiente.
E um
ponto quase místic o” . Mergu lha do desde sempre num universo de relações, ligado à mãe b em antes do nasc imento, v ive na necessidade incessante do o utro : “ [El e] se man tém numa contínua relação de
^ usà, :c "rMm Au jb au der gesch icht lich en W eh , in Gesammelte Schrif ten, op. cit., vol. Lo storic ismo con temp orân eo, op cit. .p. 6366, observa que, para Dilthey,
VII '
r hc tro Rossi, I
ncimento do homem ao *
mundo histórico
social não
exclui a rel ação com o mundo
da
|uc %u.i rtius:i de aplicar os critér ios das ciênc ias naturais às ciên cias do espírito não
^implica necessariamente uma espintualização da humanidade. Wilhelm Dilihcy, m,
Ini md uc twn au x science s de l'e spri t, op. rir, p. 9 10 ,
3m Jam" rAr e we auto mata ?”, .
trocas espirituais e assim completa sua vida própria graças à vida de outrem” .’34 Sua existên cia só se realiza na coexistência - nas relações
P
d.i ipcnaj no nível cog
M ind , 1879, p
nitivo, pois com
Wilhelm Dilthey,
Cf. certas
122). para quem
proposições
análogas
a energia da psique
porta fatores incomen
não
suráveis , tais com o as
vo l,ç o« . as emoçõe s corpora.s e as percepçõe s subliminares. iBrelm Dilthey, Croyance à la vérité du monde extérieur (1890), in do alemao por M. Ré m y, Pans, Aubier. 1947. p. 101102. xvi n*p")"r*
dn d<’SÍ" 'P" W"
Bci tràg e zu r Lo sun g der Frage rom Ursp run g unserc s Gla ube ns un d der Re ah tat der
Ai use nuv ti un d s eiti eti Rc ch l, op. cif., p. 110. p. 109110. Hm
Intr od uct ion au x scienc es de Vesp rit, op. cit., Dilthey faz uma distinção
realidade que nos é inac essível {WMichkeit)
e a realidade que possuímos
{Reahtat).
Wilhel m Dilthey, Au sa rb eit un g der des kri pti ven Psy chol ogie , op. cit., p. 177.
Le M on de de fe sp nt , traduzido
(por volta de 1880), in
' Wilhelm Dilthey,
VÉ dification
du monde historiqu
exte nor no cimo da vida embnonán
Gesamme lte Schriften.
e. op. cit. , p. 107. Sobre a percepç ão do mund o
a, cf. Wilhelm
Dilthey.
Croyance d la rénté du monde ex
°P- ní, p. 236237. Esse ponto será igualmente retomado por Norbert Elias, °p • dl., que sustenta não existir um ponto zero da vida social.
127
>h 'e'1'’
La So ai té des t n m us,
O
PEQUENO x
- Da
biografia
à história
A
PLURALIDADE do pass ado
entre pais e filhos, homens e mulheres, soberano e súditos. Mas
está incluído de forma alguma que, em todas as modificações,
essa coexistência, ou essa comunidade ( Geselschaft ), não é formada
perdure algo de semelhante a si mesmo.
apenas por esses mortais d e carn e e osso parente s, vizinhos, colegas de trabalho que o jargão s oc ioló gic o d enominará 05 outros situacionais e que povoam hoje tantos comentários sobre o
network.
Ela se alimenta igualmente de figuras ideais, ou mesmo imaginárias, como o são Prometeu, Anrígona, Hamlet, Fausto e Sancho Pança,
O eu não permanece rigorosamente idêntico a si mesmo, não cessa de mudar, e, no entanto, sentese sempre ele mesmo e se reconhece
em seu passado: “ Aq uele que neste mom ento porta um julgamen to sobre si mesmo é totalmente diferente daquele que agia e, no entanto, sabese com o send o o m esm o” .358 N el e os processos psíquicos
Tart ufo ou Mr . Pic kw ick . D e figur as histó ricas tamb ém:
se seguem, “ mas não c om o uma fila de carros em qu e cada um está
A realidade de Lutero, de Frederico, o Grande ou de Goethe
separado do pr ece den te, n em c om o as fileiras espaçadas de um regi-
recebe uma intensidade e um vigor maiores pelo fato de que
mento de soldad os” . Se fosse assim, a cons ciênci a seria intermitente :
eles agem constantemente sobre nosso próprio eu, isto é, pelo fato de que esse eu é determinado pela vontade desses poderosos
Bem p elo contrário, encontro uma continu idade em minh a vida
personagens cuja influência persiste e aumenta. Eles são para nós realidades porque sua poderosa personalidade age energi-
desperta. O s processos estão imbricados de tal forma que há sempre algo de presente à minha consciência. Assim, um viajante que avança a bom passo vê desaparecer a trás dele objetos que, pou co
came nte so bre n ós.355
antes, estavam diante dele, ao lado dele; outros surgem a seus olho s, mas a con tin uid ade da paisagem não deixa de subsistir.359
Nessa perspectiva, o indivíduo é principalmente considerado como uma relação do eu com a históna: “ Assim co m o sou natureza, sou também história e é nesse sentido radical que é preciso compreender a expressão de Goethe quando dizia ter vivido ao menos três mil anos” , como escreve a Dilthey
Uma totalidade aberta, sociável, que não está isolada e se alimenta de relações. Entretanto, o indivíduo é também um mundo em si, único, singular, inteiramente diferente de todos os outros:
seu grande a mig o Paul Yorck v on A unifo rmida de da natureza humana se manifesta no fàto de que se
Wart enbou rg em 4 de jan eiro de 1888.356
encontram as mesmas determinações qualitativas e as mesmas formas
E justamente por estar tão intim am ente impr egna do de relações
de ligações e m t odos os homen s [...]. Mas as condições quantitativas
que o eu não é uma entidade, uma essência, um dado srcinário,
nas quais elas se apresentam são muito diferentes umas das outras:
mas antes vida, energia, m ov im en to —T ol st oi diria uma substância
essas diferenças fo rma m incessantemente novas combinações sobre
fluida, sempre em m ovim ent o.35 Do nd e a distin ção que Dilthey
as quais repousa [...] a diversidade das individualidades.
opera entre a noção de identidade ( Id en ti tà t), que evoca uma estabilidade de conteúdos, e aquela de “m esmid ade” ( Selbigkeit ):
Embora estando profundamente, intimamente, impregnado pelos outros e pelo mundo natural que o cerca, o ser humano não vive
A mesmidade é a experiência mais íntima que o homem pode fazer de si mesmo. Dessa mesmidade decorre o fato de que nos sentimos pessoas, de que podemos ter um caráter, de que pensamos e agimo s com coer ênc ia. E m co mpensação, nel a nao
Wilhelm Dilthey,
Lebe it un d E rke nn en . E in En tuw rfzu rer ke nn tni sth eo rie tis ch en Log ik un d Ka tegori enleh re
(189 219 93 aproximad Wilhelm Dilthey,
amente),
in Gesammelte
Schrif ten, op. cit., vol. XIX
Psychologie descriptive et analytique
, p. 363 .
Le Mo nd e de 1’esprit. op. cit.. p. 206.
(1894), in
A esse respeit o. Paul Ric oe ur, Le So i-m ém e com me un aut re. Paris, Éditions du Seuil, 1990, p. 13, distingue o Si enquanto Wilhelm D
ilthey, Croyance à la vírité du monde extérieur, op. til., p. 119.
^
^ Briefw eiltse l z wisc hen Wi lhe lm Di lt he y un d dem Gr afe n Pa ul Yor ck vo n Wa rte nb ou g, op cit-, P Nikolaievit ch Tolstoi, Jo um au x et ca me ts , traduzido do russo por Gustave illinurd, 1980, t. 2 (18901904), 19 de fevereiro de 1898, p. 644.
Aucouturier,
ipse, Selbst, seif,
mada por Françoi se Dastur, “ '
do Si como
L’ipséité: son ím
humaines et neurosciences, 2005, 12, p. 8895: “ sujeito implica a passagem da noção Wilhelm Dilthey,
idem, same, gleich.
portance em
de eu àque la, reflexiva, d
Psychologie descriptive et analytique, op. cit.,
129
Essa percpecriva foi reto-
psychopathologie
Defin ir o homem c
, Psychiatrie, sciences
omo ípseidade e
e si . p. 234.
não mai s como
O
PEQUENO x -
Da
biografia à
histôo ia
A
em virtude das estimulações exterio res. A o cont rário , é “uma inteligência que pressen te e qu e pesq uisa” . Ele faz de si mesmo seu centro, e além diss o se interro ga, pensa e esc olhe. A medida que sua vida psíquica se intensifica, v êse capaz de con tro lar as energias, de canalizálas, a partir de seus próprios valores e dos ideais pessoais: Pouco a pouco [a unidade viva] não está mais entregue ao jo g o das ex citaç ões. Ela freia e co nt rol a as reações, escolhe, quando pode adaptar a realidade a suas necessidades; e, o mais importan te de to dos os fatos, q uan do n ão p ode determinar essa
PLURALIDADE DO PASSADO
a verdade, o mais im portan te, desta realização. Um a alma assim form ada aparece c om o o q ue há de maior entre a s realidades terrestres, e e nesse espirito que Goethe designou a personalidade com o o b em supremo dos homens.3 63
Definitivamente, embora múltiplo, o indivíduo não forma um agregado fortuito. A ge com o um t odo, é uma unidade viva, que tem uma significação: Os momentos da vida dos indivíduos, tais como são reunidos
realidade, adapta a ela seus próprios processos vitais e controla
em tom o de uma atividade que os constitui num conjunto , não
pela atividade intenor da vontade as paixões desencadeadas e o jog o das representações. E isso a vid a.361
proce dem exclusivamente deste mesmo conjunto, m
as é o ho-
mem inteiro que está em obra em cada uma de suas atividades, e é assim que ele lhes comun ica também sua ma rca própna.3 64
O télos da personalidade é a condição essencial para que se tenha o sentim ento da pr ópria histór ia.362 D e natureza subjetiva e imanente, uma vez que não repousa sobre nenhuma finalidade exteno r, ele se manifesta sob dua s formas. Em prim eiro lugar, enquanto capacidade de viv er plena men te as diferen tes idades da vida:
Está aí, sem dúvid a, a fon te ma ior d e dissensão entre as concepções de Dilthey e aquelas da psicologia contemporânea (em particular o associacionismo e o paralelismo psicofisico), habituada a raciocinar em termos de estímulos, de reações, de fatores fisiológicos. Ide ia s con cern ente s a um a psi colo gia
O desenvolvim ento [da vida humana] se com põe exc lusiva-
Como escreve em 1894, em suas
mente de estados cujo valo r vita l part icular cada um se e sforça por adq uinr e con servar. Mise ráve l é a infância que é sac rificada
descritiva e analítica, à força de decompor os fenómenos psíquicos,
aos anos de maturidade. Insensata é essa maneira de calculara vida que empurra incessantemente o homem adiante e faz do que precede o meio daquilo que o segue.
de reconduzilos a unidades atómicas, regidas por leis mecânicas, ‘essa doutrina da alma sem alma” suscitou uma imagem excessivamente desagre gada do com porta men to humano: “ É impossí vel compor a vida mental com elementos dados, impossível construíla
Em seguida, enquan to for ça um fica nte : “ [Esses estados] estão unidos uns aos outros por uma ligação tele oló gica tal que o curso do tempo permite um desabrochar mais amplo e mais nco dos valores vitais . Cada idade da vida tem seu valor, mas, c om o temp o, a forma interna da vida se faz mais densa e mais sólida. Rousseau, Herder e Schleiermacher elaboraram teoricamente esse duplo movimento, Goethe o experienciou. O encanto de sua vida deriva ju st am en te dessa excepcional unidade interior:
por uma espécie de assemblage, e as zombarias de Fausto a propó sito do homonculus fabricado quimicamente por Wagner visam também toda tentativa deste gén er o” .365 A respeito de psicólogos associ a cionistas, tais co m o Johann Fried rich H erbart, Herb ert Spencer ou Hippolyte Taine, e mesmo de encontro a eles, Dilthey faz valer o caráter holístico da psique. Coloca o acento não mais sobre estados psicofisicos particulares, mas sobre a personalidade individual em sua íntegra e pr op õe, assim com o W illiam Jame s, que não se leve
Tal era o sentido da palavra de Na po leã o a propó sito de Goethe. "Eis um h om em ” . O caráter é apenas um aspecto, mas , a dizer
Wilhelm Dilthey,
Psychologie descriptive et analytique, op. cit.,
p. 224225. Sem dúvida. Dilthey se
refere .íqui à distinção entre talento e caráter estabelecida por Goethe em uma de suas célebres maxim as.
W°lfgang Goethe,
Ib id -.p 217. "C f. Jac ques Komberg, “Wilhelm
Um talento se form a na calma e no silêncio, um car
Dilthey on the Self and Histor
Getstesgeschichle", Central European History.
5. 1972, p. 295-317.
130
y: Some
Theoret ical R °°B *
^ Wilhelm Dilthey, Wilhelm Dilthey,
áter no rio do mund o
M ax im es et p ens ée s. Paris, Éditions André Silvaine, 1961, p. 40). L' É di fic at wn du mo nd e his tor iqu e, op. cit .yp. 12 2 . Psychologie descriptive et analytique, op. cit.,
131
p. 181.
(Johann
O
PEQUENO X -
A
D* BIOGRAFIA À HISTÓRIA
PlURAUDADE DO PASSADO
em conta uma se nsação, mas um eu q ue sen te: “ A vida psíquica é
o temor de que os fatos possam irse daqui e de lá, cada um de seu
srcinalm ente e em toda parte, de suas forma s mais elementare s às mais elevadas, uma unidade. N ã o é feita de partes; não se compõe
lado, sem direção precisa. O mu nd o está sob pressão há tempo demais:
de elementos; não é um composto, não é um resultado da colabo-
as massas atulham cada vez mais o mundo sem por isso tomaremse
ração de átomos sensíveis ou afetivos: é uma unidade primitiva e fundame ntal” .366 Em 1910, ainda, precisa:
mais decifráveis, a história vai sempre mais rápido... Nos anos 1890,
após a Revo luç ão , o capitalismo d emonstrou sua potência ili mitada,
escreve com acentos p rofét icos que “ a decadência dos g randes povos
N o curso da vida, cada expe riênc ia v ivid a particular é re metida a uma totalidade. Esse conjunto vital não é uma soma ou uma adição de momentos sucessivos, mas é uma unidade constituída por relações que religam todos os elementos. A partir
civilizados da Eu rop a” co me ço u. 369T re ze anos mais tarde, a flutuação cultura] faz eco à incerteza social: a metafísica não é mais possível, a filosofia é incapaz de propor qualquer afirmação, a estética vive em plena anarquia, a arte figurativa não conhece mais o código da
do presente, percorremos de maneira regressiva uma série de
beleza ideal, a poesia perdeu sua aura. Resta a consciência histórica,
lembranças até o ponto em que nosso pequeno eu ainda não
sem dúvida alguma o resultado essencial das transformações dos dois
fixado e formado se perde nos limbos, e a partir desse presente
séculos precedentes, que cond uzira m à beira do abismo do relativismo:
lançamonos em dir eção a possíveis inscritos nele e que to mam dimensões vaga s e long ínqu as.’ 67
Uma contradição aparentemente insolúvel surge quando o sentimento da história é levado a suas últimas consequências. A finitude de todo fenómeno histórico, seja uma religião, um
III
ideal ou um sistema filosófic o, e, po r conseguinte, a relatividade de toda interpretação humana da relação das coisas é a última palavra da concepção histórica deste mundo, onde tudo flui,
A faculdade teleológica não é nem um pouco excepcional, ela denva da experiência comum . M as, d e ac ord o c om Dilthey, só se
onde nada é estável. Em face disso erguemse a necessidade que
revela plenamente no grande homem. Podese mesmo dizer, sob
o pensamento tem de um conhecimento universalmente válido
certos aspectos, que está aí o se gre do da gran deza: “ Cada vida, por
e os esforços que a filosofia faz para chegar a ele. A concepção
sua estrutura intema, é form ada, já sobre o plan o f ísico, de contrastes. E cada vida é um processo de recomposição. Os contrastes históricos [...] requerem uma força sintética, dina mesmo sobrenatural, que só os heróis poss uem". 36" Con ve nc id o de que o ser huma no é espontaneamente inclinado a dar uma significação, um valor à vida, Dilthey é otimista: não receia soçobrar incessantemente na confusão e na
do mundo ( Weltanschauung ) histórica libera o espírito humano da última cadeia que as ciências da natureza e a filosofia não quebraram, mas onde encontrar os meios para superar a anarquia das con vic çõ es q ue ame aça se difundir?37"
Nos momentos de desencorajamento, quando a sensação de desfiamento o toma, Dilthey busca, ele também, o antídoto no
dispersão. Acontecelhe, porém, por vezes anotar com tonalidades
grande homem, aquele que está disposto a partilhar seu eu com
mais dramáticas as discordâncias da história. Assombrao a dúvida e
seus contemporâneos. Resolvido a defender a todo custo a pos-
Ibid.,
sibilidade de dar uma forma ordenada à vida histórica, admira os estoicos, Santo Agostinho, Petrarca, Lutero ou Goethe, figuras de
p. 216
Wilhelm Dilthey, UÉdificatwn du monde historique, op. dt„
p. 9495. Algumas considerações dc
Dilthey sobre o caráter holís tico da psiqu e serão partilhadas pel a psicanális e freudiana, mas também
seres íntegros, plenamente mestres de sua existência. Mas é atraído sobretudo por sua força sintética, sua aptidão a prestar atenção nos
pela psicologia ana lícica de Cari Gus tavjung e pela psicop atologia fenom enoló gica de Karl Jaspe*1 cf. Picter Comelius Kuiper, “Diltheys Psyc
’
holog ie und íhre Bezi ehun g zur Psychoanalyse' ,
1965. 1i, 5. Sobre es se ponto, ver igualmen te Jiirgen H abennas,
Connaissance et intèfêt
(1
^ traduzido do alemão por Gérard Clémen çon, Pans, Gallimar d, 1976. Bnefw echse l zw iscb en Wi lhe lm Di lth ey un d dem Gr afe n Pa ul Yor ck vo n Wa rte nbo uig , op. dl-P , 61
Wilhelm Dilthey, Leben und Erkennen, op. dt.,
p. 379.
^ ilhelm Dilthey, Disco urs du soi xa nte -di xiè me ann ive nair e(1903), in Lr Mo nde de l esprit, op. cit., p 15.
133
O
PEQUENO
x- Da
biografia
A
A històba
PlURAUDADE DO PASSADO
entre si, impregnam o in div ídu o de ideias, de emoções, de imagens
diferentes pensamentos vitais, sua capacidade de recompôlos e aliálos num conjunto harmonioso:
heterogéneas. N o fund o, n ão há contradição entr e dependência e autonomia. A o contrá rio, poderíam os d izer, sob certos a spectos,
O gênio pró prio ao soberano ou
ao h ome m de Estado faz
mesmo os fatos refratários entrarem numa unidade teleológica permi tida por sua coo rde na ção . [ ...] A ssim, é necessária a ação
que a autonomia está fundada na dependência. C
om o escreve num
ensaio de 1890, experimentamos, a cada momento de nossa vida,
do gê nio para construi r, a partir do q ue é srcina lmente divereo,
"que o ‘eu quer ente ’ se revela au tónom o sem deixar de es tar entra-
ou seja, a partir de elementos e de suas relações particulares, a
vado em suas voliçõ es, o que lhe con fere um caráter condicional e
unidade que chamamos o espírito de
dependen te” .374O ind ivíd uo é tanto mais ca paz de s e afirmar como
uma épo ca.’ 71
Infelizmente, o d esejo de salva guardar o sentido unitário do mundo engendra imagens um pouco afetadas demais. Especialmente em seus ensaios históricos, reina co m o q ue algum a coisa de irreal. Ele peca talvez por excesso de sagacidade, de vontade, de saúde psíquica, sobretudo para um filósofo capaz de apreender, desde os anos 1870, as sombrias turbulências do inconsciente. Podese certamente reprovarlhe alguns passos estilísticos em falso e uma profusão de adjetivos: “ Um coração intrép ido” , “ imb uíd o do sentimento de sua própria força” , “ nascido pa ra agir e dom inar” e assim por diante.1'2
sujeito e de sentir, por conseguinte, prazeres e dores, quanto mais é alimentado pelo mundo: tomase um sujeito psíquico ativo, independente, capaz de elaborar as solicitações da realidade exterior, graças à sua relação c om os outro s. Nessa persp ectiva , a social ização não tem apenas esse efeito de homologação e de homogeneização, tantas vezes dramatizado no século X X (de Ervin g Goffinan a Michel Foucault), mas é em primeiro lugar um processo de diferenciação: os indivíduos se distinguem uns dos outros justamente ao interiorizarem as normas socia is e as regras institu cionai s.375 A esse respeito, tod a a reflexão de D ilthey sublinha o quanto o
IV
mundo históri co não é com preen sível em termos de pertencimento,
Mas de onde procede a autonomia individual? Se o pequeno x não é uma parte impermeá vel ao exte rior, co m o o pensa m Johannes Gu stav D roy sen e Ed uard M ey er , se m es m o a vi da íntima não é livre, mas penetrada pela presença d o o utr o, a que se deve a diferença humana, o fato de que os homens diferem uns dos outros? Para retomar as palavras de Johann G ott frie d H erd er, po r que “ não há na natureza duas folhas de árvo re p erfei tam ente semelhantes uma à outra, e menos ainda duas figuras de ho me ns ?” .373 ^ Para Dilthey, a possibili dade de “ perma necer para si mesm o" não é inata. Ela é fruto da coexistência, no espaço e no tempo, e diferentes conjuntos interativos: os grupos, as comunidades, as instituições, frequentemente em competição ou em conflito
e ainda menos em termos de propriedade ou de assimilação. Um indivíduo não pode
instituição não permitem
rhnloJlr* jC èmrT ~
1940 Vn" p 430*443
cnações da vida coletiva são atormentadas, vividas e realizadas por cada indivíduo, mas escapam a seu controle, abarcando um espaço humano mais amplo que o simples espaço biográfico. Elas existiam antes de nós e continuarão após nós: [Elas] ag em c om o costu mes, condutas, e, através de sua apli cação ao indivíduo, enquanto opinião pública, em virtude da
of Wl lhe lm Ull they ".
Croyance à la vírilé du monde exténeur, op. cit.,
sy
Studies in Phiiosophy and Social Science.
tensifica o laço social: cf. "L ’indiv idualis me et les intellectuels" (1898), dans
Id íts po ur la ph ilo sop hie de 1'his toire de 1'h um ani té, op. cit .,t. II. p. 1
134
La
ent e soaa e e
l aciion, Pans, PUF . 1987, p. 2 74. O laço entre individu alização e socializaçao sera em segui retomado por Norbert Elias, La
|o±unn C .xt frv j Herder,
p. 141.
Nos mesmos anos, Emile Durkheim sublinha que o individualismo, longe de o de agr ga ,
ll,nsl dcrjÇ Ões cndc as nesse senti do em "Th e Relation between P ^^
explicar um indivíduo. Entre esses dois
poios, existe sempre um resíduo, e esse resíduo é inesgotável. As
"‘ Wilhel m Dilthey,
371 W 'lheln’ Dil,hc>. L lma gin alw n du po iu , op. cit ,. p. 163.
explicar um grupo, uma comunidade ou uma
instituição, e, inversamente, um grupo, uma comunidade ou uma
Soaété des individus, op. àt.,
p. 3756. para quem a soue
tem somente a função de igualar e normalizar, mas também de individualizar.
135
e nao
O PEQUENO X- D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA
A PlURAUDADE DO PASSADO
superioridade do número e pelo fato de que a comunidade
imedia tament e ou realizar no seio de
dura mais tempo do que a vida individual, exercem um poder sobre o ind ivídu o, sob re sua exp eri ên cia e sua potênc ia vitais376
nosso eu” . O que equivale a
dizer que o presente nunca é apenas presente, um estado temporal fechado em si mesmo, mas que ele é de uma natureza mais flexível “ O presente não é
Basta pensar na Igreja católica: quantas gerações de homens ela
e não cessa de so licita r o passado e o porvir:
viu nasce r e desaparecer “ desde os tem pos em que escravos se
jamais; o que vi ve m os no im ed ia to co m o presen te ence rra s empre
esgueiravam a o lad o d e seus senhores ru mo às tumbas subterrâneas
em si a lembrança d o que era justamente presente” .379 A exem plo
dos mártires [...] até hoje, quando essa hierarquia complexa desapa-
de Friedrich Nietzsche, Dilthey pensa que o homem é uma cria-
receu quase totalmente n o Estado m od er n o!” .377 Po r outro lado, o
tura do tempo, inelutavelmente ligada à cadeia do passado e que é
Kreuzungspurtkt ) de diferentes grupos históricos. Embora seja modelado, até a moela, por suas experiências sociais, jamais é redutível a uma só dessas:
precisamente essa que faz nascer nele a necessidade de se exprimir sabe do nascimento e da morte. Assim, sofre bem menos do que
jamais se dá c om ple tam en te, ne m m es m o à sua fam ília , a matriz de
o homem. Embora se observe por toda parte, no reino animal,
todas as outras formas de vid a social. T om em os o caso de um juiz. Ele pode pertencer ao mesmo tempo a uma família, a um partido
crueldades, mutilações ferozes, a luta pela vida e pela morte, a vida do homem está exposta a uma dor bem maior e mais perma-
indivíduo é sempre um ser bastardo, no cruzamento (
político, a uma Igreja, etc.: além do fato de que satisfaz
de maneira durável: “ O animal vive
tudo no prese nte. [...] Nada
nente”. Nossa v ida se estende atrás de nós, rum o ao passado, pelo
[...] a função que ocupa no espaço jurídico, ele é fruto de diversos outros conjuntos interativos; age no interesse de sua família, deve cumpnr uma atividade ec on óm ica, exe rce suas funções políticas, e
viés da lembrança, e adiante, numa expectativa, cheia de temor ou esperança, voltad a para o por vir: “ Do s dois lados ela se perde na obscuridade” .380 Con trariam ente ao que dirão, no s decénios
talvez, de quebra, com pon ha versos. Assim, os indivíduos não estão
seguintes, numerosos soc iólog os (especialmente
inteiramente ligados a tal conj unt o i nter ativo , mas, na diversidade
do inter acionismo s im ból ico381), o eu não é um produ to hicet nunc,
alguns defens ores
das relações de causa e efeito, só são postos em relação uns com
determinado por uma situação contingente. Suas ações são fundadas
outros os processos que derivam de um sistema determinado, e o
na duração e se alimentam de imagens do passado e de antecipações
indivíduo está imbricado em conjuntos interativos diferentes.™
do porvir: “ Dif eren ça e ntre a alma e a s menores pa rtes do cor po” ,
Por sorte, mes mo qu and o não é po ssíve l, c om o nas situações
escreve Dilth ey n o fim dos anos 1870,
extremas, habitar simultanea mente dive rsos espaços, restanos ainda
[...] estas tendem, na flutuação de condições que aparecem
a possibilidade de haurir recursos atrás de nós e à nossa frente, em
e desaparecem, a voltar a seu estado primeiro. A alma, ao
outros tempos: "Numerosas são em nós as possibilidades da vida
contr ário, guarda nela as consequências dos influxos receb idos,
em relação à memóna e ao querer projetado para o porvir, [...]
àe
mesmo após a chegada de influxos de sentido oposto: segundo
tal forma que nossa imaginação vai além do que podemos viver Wilhelm Dilthey,
Plan der Fortsetzu
ng zu ni Au jbau der geschich tliclien Welt in den Geist
(19071910), in Gesammelte Schnften, op. cit., Wilhelm Dilthey, L Éd ifu ati on du mo nde hist oriq ue, op. cit ., p. 8 8 . ^ Wilhelm Dilthey, dhelm Dilthey,
mente Wilhelm Dilthey,
L Édi fica tion du mo nd e h isto riqu e, op. cit .,p.
118.
O
grup o a que Dilthey atrib ui a
nw. ^ n e capacidade de unificar a exper iência é, se m dúvid a alguma , a geração, entendida c omo inl 1,05 niesmos acontecimentos. ,
Ela
expnme
contemporaneidade
VHistoire: des anmt-demièns clioírs
, Paris, Stock, 2006,
136
ação , foram confrontados a c
uma relaç ão de
UOS Essc Pont o se rí r eto mado po r Sig fri ed Krac aue r, * ra^,IZ1^0 do inglê s por Claude Orsom
cf. igual-
(19051910). in Gesammelte
Schnften, op. cit, vol. VII, p. 7075.
Intr oduc tion au x science s d e l ’esprit , op. cit ., p. 22 4.
restnto de indivíduos que, no curso de seus anos de form
wissenschaften
t. VII, p. 194, 259. Sobre o tempo real,
Studien zur Grundlegung der Geistwissenschaften
cap. 1.
do»
Wilhelm Dilthey,
Le ben un d Er ke nn en , op. cit ., p. 357.
Segundo Herbe rt Blurner, " A ação espec ífica tem lugar no seio de uma si tuação e se refere a csta l ]: qualquer que seja a unidade —um indivíduo, unia família, uma escola, uma igreja* uma empresa, um sindicato, etc.
cada ação espe cífica se forma co m base na situação no seio d a qual
* desenr ola": Herbert Blumer, Soc
iety as Symbolic Interacton, in
Am old M. Rose (dir.),
Beliavio r an d so cial Proce sses: A n Inte rac tion App roa ch,Boston, Houghton Mifflin, 196, p. 187
Hu ma n
O
PCQUENO X -
Da
BIOGRAFIA
k
HISTÓRIA
A
PLURAUDADE DO PASSADO
a bela frase de Schleiermacher que diz que nela nada perece. É
E como a organização política contém em si uma diversidade
por esta razão que ela po de se desdobr ar.'82
de comunidades que descem até a família, a vasta esfera da vida
Enquanto isso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade
nacional compreende, ademais, comunidades, conjuntos mais restritos que têm em si seu movimento próprio. [...] Cada um
ou uma instituição e uma época ou uma civ ilizaç ão não é definível em
desses conjuntos interativos está centrado sobre si mesmo de
termos de pertencimento. Sem dúvida, toda ép oca e xprim e uma figura
uma maneira particular e é aí que se encontra fundada a regra interna de sua evolução.,86
dominante. É unilateral e, em certos momentos, a consonância entre os diferentes domínios da vida é particularmente forte: por exemplo, o espírito racional e mecanicista do século X V II influen ciou a poesia, a ação política e a estratégia de guerra. Mas tratase de exceções, já que os diferentes campos gozam de certa auto nomi a: “ Cada conjunto particular contido [no mundo histórico] possui, através da posição de valores e da realização de fins, seu próp rio cen tro” .383 Co m o Wilhelm von Humb oldt escrevia já e m 1791, há sempre fragmentos de história que resistem ou recusam con form ars e ao m ov im en to ge ral.384 Disso
Profundamente insensível à magia da cronologia, Dilthey não deixa de conceitu alizar a pluralidade fundamental do mundo históneo em sua dim ensã o temp oral. N a esteira de Herd er, que afirmava que todo fenómeno é o próprio relógio, escreve, em 1910, que o tempo histórico não é nem um movimento retilíneo nem um fluxo homogéneo.3 87Assim, o século X V III é habita do, ao mesmo tempo, pelas Luzes, por Bach e pelo pietismo: Esse conjunto hom ogén eo, em que se e xpnme, em difere ntes domínios da vida, a orientação dominante das Luzes alemãs,
resultam irregularidades, diferenças, discordâncias: Esse conteú do [ histór ico] se apresenta com o uma unidade.
não determina por isso todos os homens que pertencem a
E o que pôde fazer nascer a ideia de que era possível expor
esse século, e, mesmo lá onde sua influência se exerce, outras
o conjunto da história sob a forma de relações lógicas entre
forças agem muitas vezes a seu lado. As resistências do século
pontos de vista homogéneos. Assim, os hegelianos estragaram
precedente se fazem sentir. As forças ligadas às situações e às
a inteligência da filosofia moderna pela ficção segundo a qual
ideias anteriores são particularmente ativas, mesmo se buscam
os pontos de vista decorreriam logicamente uns dos outros.
darlhes uma form a n ova. 388
Em realidad e, uma situação histórica co nté m inicialmente uma
ou uma mistura instável de aspirações d iferen tes e d e atividades que
De certa maneira, Dilthey desenha o todo histórico como um conjunto maleável, conflituoso, no seio do qual coexistem forças discordantes que se rebelam contra a unidade forçada do Zei tge ist : Não se trata de uma unidade que seria exprimível por uma ideia fundamental, mas antes de um conjunto que se edifica entre as tendências da próp ria vid a” .389 De fini tiva me nte , as considerações de Dilthey sobre a natureza heterogénea e descontínua do tempo
se contradizem. Acolhe diversos conjuntos interativos em perpétuo
Histórico propõem uma imagem musical da relação entre as partes
diversidade de fatos particulares. Refratános, estes são simples mentejustapostos e não se deixam
reco ndu zir uns aos o utros.
385
Uma civilização não constitui, portanto, uma entidade compacta e não é feita de uma única substância, redutível a um princípio primordial. D eve ante s ser compreend ida com o um entrelaçamento
movimento (a economia, a religião, o direito, a educação, a política, o sindicato, a família, etc.): Wilhelm Dilthey, L ’Édi fic ati on du mo nd e his tori que , op. at ., p. 122124. 1‘rovav elmen te, com o o dirá Siegfned
Kracauer (
L' Hi sto ire , op . d t., p. 216), seria melhor substituir
Jexpressão a marcha do te m po ” po r “ a marc ha dos t em pos ". Cf. igualm ente Wa lter Benjan iin, ' W IiTl"
^
Er kennUns,heonsc hf Fn gmen le, op . c it., p. 63.
Cy L EJ 'tUal,0n du mon Je hist oriq ue, op. cif., p. 92. Wilhc Wn\on Hnm ivjj. . Sdiriftm op C11 ^'r (^ese,ze drr Entwicklung der menschlic
OnjJÍHfd u drame barroque aiiemand
hen K r afie, in Cesttmmtllt
^ mt wn d u p 0>,r op . „ ,
p
alemao por Sibyle Muller, Paris
, Flamma
Wilhelm Dilthey, L ’Édi fic ati on du mo nd e hist oriq ue, op. cit. , p. 132.
fà d „ p. ]3 3 jjni ano majs Wilhelm Dilthey, V
(1925 ), traduzido do
t non 1985, p. 3839.
4 W áhV U
e]e voltará a esse ponto , in
irt A^sbildung in deu metaphysiehen Systemen,
Di e Ty pe n der tVe ltan scha uun g un d
in Oesammelte Schriften,
139
vol VIII, p. 8990.
O
PEQUENO x
- Da
biogkafia
A história
A
PLURALIDADE DO PASSADO
e o todo, num jo go infin ito de h armon ias e de dissonâncias não
compreender um edifício observando cada um dos tijolos que o
previsíveis: não existe um núcleo único, que seria ao mesmo tem-
compõem, examinando o cimento e identificando a mão de obra que o construiu, pois o que importa verdadeiramente é a ordenação arquitetural. O mes mo se dá com a vida. Não podem os decompôla em mil pedaços, precisamos apreender sua conexão psíquica dom inan te: “ To da vida tem seu sentido próprio: ele reside na conexão significativa no seio da qual cada momento evocado possui seu próprio valor e tem também [...] uma relação com o
po a melodia e o a com pan ha men to (o sécu lo das Luzes), mas uma alternância de temas que se enca deia m e se ent recru zam. 390
V Desejoso sobretu do de desco brir as diferentes maneiras como a humanidade realiza sua liberda de in ter ior , D ilt he y v olta muitas vezes à biografia, a forma de historiografia mais filosófica segundo ele: É a vontade de um homem, em seu desdobramento e em seu destino, que é aqui apreend ida e m sua dignida de como fim em si, e o biógrafo deve perceber o homem
sub speà e aetemi,tal
como ele mesmo se sente nos momentos em que, entre ele ea divindade, tudo é tão somente transparência quase não velada, signos e intermediários,
e em que se sente tão próximo do c éu
estrelado quan to de qua lqu er parte da terra.391
Desse ponto de vista, a biogra fia pri vile gia o grande homem na medida em que esse é capaz de amalgamar experiências duráveis. Mas tal propensão não é nem um pouco exclusiva. E possível contar qualquer vida, da mais insignificante à mais notável, da cotidianidade aos mais altos feitos: “ A fam ília gua rda suas lembranças, a justiça criminal e suas teorias nos fazem conhecer a vida de um malfeitor, a patologia psíquica a de um anormal. Cada elemento humano se toma para nós um documento que nos apresenta algumas das possibilidades infinitas de nossa exis tên cia ” .392 A dizer a verdade, no que concerne à biografia, Dilthey coloca uma única condição: considerar o ser humano em sua íntegra. Se o eu é holístico, a biografia também deve sêlo. Não
chegamos a
sentido da totalida de” .393 Infe lizme nte , n ão se trata mais aí de um edifício, e a tarefa é bem mais árdua. A conex ão psíquica dominante se exprime plena men te na duração, já que é uma “ forma gravada que se desenvolve v ive nd o” ; por consegui nte, não podemos com preender plenamente o indivíduo, por mais próximo que esteja, senão observando co m o ele se torn ou o que é. É por es sa razão que Dilthey se pergunta, repetidamente, se a biografia não assume todo seu sentido somente na idade adulta, quando o processo de individuação é completado. Considera mesmo a necessidade de esperar o fim do curso da vida: talvez somente na hora da morte podese contemplar a totalidade de uma vida. Em todo caso, cada elemento particular da existência adquire uma significação essencialmente por sua con exã o c om a totalidade. Nessa perspectiva, que se rá mais tarde retomada por Hannah Arendt, a verdade e a significação (.Bed eutu ng) não coincidem: a primeira descreve um pensamento, uma sensação ou uma ação, enquanto a segunda indica a relação desse pensamento, dessa sensação ou dessa ação com uma vida em seu conjunto (pessoal ou histórica). E, na biografia, assim como na história, é a significação que deve predominar, uma vez que uma miríade de fatos verdadeiros não basta para nos revelar uma vida: como escrevera, uma ve z ainda, G oet he, “ um fato de nossa vida não vale por ser ver da de iro , mas por que s ignificava alguma coisa’ .394 Dilthey não se contenta em defender a natureza holística da biografia; ele sublinha igualmente o laço vital profundo que existe entre a obra de arte, a biografia e a história. Em suas obras de
Jorge Luís Borges perguntará: c om o se po de imag inar que Cer vant es era contemporân eo In M em or y o f B orge s, compreendendo textos de Borges, G
quisiçàor O . Jorge Luis Borges,
Green. Varg as Llosa, 1988. Cf. igualmente os protestos de A
lber to Savm io, Fine dei tnodelli (1 1
in Opere, p. 479, contra a indiferença de Cronos que lançou G que lhe é estranho. Sobre o valor
ioacc hmo Rossini n um
do an acronismo, cf. igu almente Hans Magnus Enz ensbH^
^ Ibid., p. 199
Feuilletagt Essais (1997), traduzido do alemão por Bemard Lortholary, Paris, Gallimard, I Coiwcrsatiom de Goethe avec Ecltermann, op. cit.,
^ Wilh elm Dilth ey, Intr oduc tion au x scienc es de 1’esprit , op. cit .. p. 191. Wilhelm Dilthey, Phn der For tsetzung zum in Gesammelte Schnften, op. cit.,
Aufba u dergeschichtli
p. 247.
140
chen W elt in den Geistws
stns
30 março de 1831, p. 413. Sobre a distinção entre
'erdade e significação, ver igualmente Hannah Arendt, '"glêspor Lucienne Lotnnger, Paris, PUF, 1981, p. 30.
La l'i e de 1’esprit (1978), traduzido do
O
PEQUENO X -
Da BIOGRAflA À HISTÓRIA
A
PLURALIDADE DO PASSADO
estética, toma p or al vo d e suas críticas “ todas as finezas artificiosas
que invoca não é mais Go eth e ( Tu do se liga a isto: para fazer alguma
que gostariam de separar o bel o da exp eriê nci a da v ida ” . Para ele, o
coisa, é preciso ser alguma coisa” ), mas Shakespeare, que, pela v oz
poeta é uma alma impregnad a de vida: “ E p recis o procurar antes de
de Hamlet, recorda que
mais nada o funda mento dos efeitos espe cífico s d o p oeta no ambiente,
quanto agora apresentar d e certa forma o esp elho à natureza; mostrar
na riqueza e na energia de suas exp eri ên cia s” .3yi Essas estão inten-
à virtude seus próprios traços, à vergonha sua própria imagem, ao século e ao co rpo do tem po a impressão de s ua forma ” .4u0
samente vivas tanto na matéria quanto no estilo, já que existe uma relação estreita entre o estado psíquico que engendra a obra poética
o fi m do drama sempr e foi “ tanto na ongem
A relação entre a obra de arte, a biografia e a história, porém,
e a forma qu e lhe é p rópn a: “ As i mag ens e suas relaçõe s ultrapassam,
está longe de ser simples: cada uma das linhas das A fi ni da de s elet iva s
por essa razão, a experiência vivida ordinária; mas o que nasce dessa
foi vivida, mas nenh um a delas é tal co m o foi vi vid a.401 Nesse senti-
forma representa, entre tanto , essas ex per iên cia s, ensina a captar suas
do, toda catalogação b iográfi ca é inadequ ada. N ão basta repertor iar
significações e a apro ximá las d e no sso c or aç ão ” .391’ Contrariamente
os hábitos do poeta, reconstruir suas frequentações ou escutar as
ao que afirma Mareei Proust, exatamente na mesma época, a obra
declarações de seus amigos, com o pensav a SainteBeuve. É mesmo
de arte não é para Dilthey o fruto de outro
eu , mais profundo, que
escaparia, e m esmo se recusaria à exp eriê nci a de vida.39 Para ele, Hòlderlin, Empédocles
inútil interrogálo sobre o que pensa de tal ou tal coisa, porque a inteligência artística é inconsciente, muitas vezes incapaz mesmo
é
de se expli car: “ O trabalho criado r do p oeta repo usa em toda pa rte
é H õlde rlin: mes mo distanc iamento d a agi-
sobre a energ ia c om que vi ve as coisas. Em sua organização , que
nenhum abismo separa o poeta do homem. Mais ainda, Hyperion
tação do mun do, mesm o pes o d o passado... “ Se essa fórmula é um
oferece poderosa ressonância aos sons da vida, a noticiazinha sem
pouco estreita, temos mes mo assim o di reit o d e diz er: é somente na
alma de um jorna l, na rubrica “ O mun do do crime” , o seco relato
medida em que um elem ent o ps íquic o, o u um a combin ação de tais
de um cronista ou a lenda grotesca se transformam em experiência
elementos, está em relação com um acontecimento vivido, e com
vivida” .402M oz art aband onav ase às impressões su scitadas pela vida,
a representação deste, que ele pode ser elemento constitutivo da
como um pereg rino em terra estrangeira, com um prazer profundo
poesia” .3'1" Mas há mais. P or qu e o po eta não vi ve nas nuvens, sua
e em toda liberdade. O mes mo poderia ser dito de Les sing, de Goeth e,
obra tem igualmente sua historicidade e, em certos casos, exprime
de Novalis e de Hõlderlin, os elos do movimento espiritual alemão.
as inquietudes de t oda uma geração : “ A arte pinta o céu e o infemo,
Eilos, indefectivelmente impregnados das vivências mais dispa-
os deuses e os fantasmas co m core s empre stada s à realidade. Ela se
ratadas, “p ois a vid a de um h om em está tão entrelaçada com os
contenta em inten sificar os elem en tos d esta” .399 Dessa vez a referência
destinos de muitos outros que um dia ele os vê subitamente com uma força visionária em face de le para, em geral, voltar a perdêlos
Wilhelm Dilthey,
no tumulto do mundo, ou senão é tocado de maneira mais eféme-
L'I ma git iat ion du po èt e, op. cit ., p. 115.
Ibid ., p. 94 e 164. A esse propósito , C f tam bém Hans G eorg Gadamer, grandes lignes d une herméneunque philosophique
Vèritè et méthode.
Lb
ra, talvez somente pela expressão de um indiferente ou a notícia
(1960), traduzido do alemão por Pierre Fruchon,
Jean Gre ndin e G ilbe rt Me rKo , Pans. Éd mon s du Seu il, 1996, p. 325 329 . Mareei Proust, Contre Sainte-Beuve, op. at., Wilhelm Dilthey, L
filosofia co nsiderada como uma essência viva filósoto ": W ilhelm Dilthey,
, “ um or ganis mo a limenta do pelo sang ue de um
Das ges chi cht licl ie Be wu sst sei n un d die Wc lta nsc lia uun gen in . Cesamm*
Schrifien, op. cit . vol. VIII, p. 30 sq. Sobre a ligação entre e Wilhelm Dilthey,
xperiência
vivida e visão fil osohu,
L His toire de la je un es se de He gel in Le ib ni z et He ge l. traduzido do alemao p» Contributions à 1’étude de findividualité
tendo o vício de
Broch, Elias Canetti definiu
meter o nariz nos recônditos de sua épo
Recentemente, Am
o escritor como um
Ha ml et , ato
fino cão de caça,
ca.
os O z dec larou: "Q ual é a part e da autobi ografia e da i nvenção em minha s
histórias? Tudo é autobiografia: se um dia escrevesse uma história de amor entre Madre Teresa c
(18951896), in
Lc mon de de 1'tspM. °P
que escrevi sà o autobiografias. Nenh Wilhelm Dilthey,
142
p. 163. Cf. William Shakespeare,
Hl, cena II, linhas 1923. N o curs o do discurso profe ndo em Vien a, em 1936, por ocasião dos cinquenta anos de Hermann
Abba Eban, sena certament e uma histón a biográfic a em bora nào confes sada. Todas as histónas
^JeanCnstophe Merle. t. V, Pans. Édmons du Cerf, 2002. ” * Wilhelm Dilthey, àt. p. 278.
Ulmagination du poete, op. nt.,
Wilhelm Dilthey,
p. 121147.
Ima gma tio n du poè te, op. cit ., p. 104. Cf . i gualm ente as proposiçõe s sobre i
uma é uma confissão".
L' hn ag in at io n du po ete , op. dt , p. 60.
O
PEQUENO X
- Da
biografia A história
A PLURALIDADE DO PASSADO
de um jor na l em pa ntu rrad o de fa tos ” .4" ’ Es tra nh o à mentalidade aritmética do dois e dois são quatro, Dilthey sabe muito bem que a obra de arte não é uma representação direta e fiel da experiência vivida, nem mesmo a imitação de uma realidade efetiva, dotada de
maiores preocupaç ões, fragmentos de imagens incoerentes, o poeta negligencia intenci onalm ente os traços contradit órios. Em seguida, a intensificação de cada ele me nto, a exemp lo do que acontece num
uma existência inde pend ente, mas antes um m om en to de criação de
palco de teat ro qua ndo um personagem particular é iluminado por um refletor (em Shakes peare e Dic ken s, há “uma espécie de luz a r-
que surge algo de imprevisível, que permanecera até então latente.
tificial: as imagens são co locad as sob a iluminação elétrica e crescem
Embora penetrada de vida, a poesia transcende a realidade e se
sob a lupa” ). 4U6 En fim , a integr ação: “ Um a imaginação qu e apenas
serve da experiência pa ra ennqu ecê la c om nov os temas: “As im a-
eliminasse, reforçasse ou diminuísse, aumentasse ou reduzisse, seria
para além das fronteir as do re
fraca e não produziria mais do que uma idealidade sem relevo ou uma caricatura da realidade. Por toda parte onde se constitui uma
gens e suas combinações se desdobram
livre m ent e [no poeta]
obra de arte verdadeira, produzse um desdobramento substancial das imagens que rec ebe m um c omp lem ento positi vo” .407
loucura é evidente em Rousseau e em Byron, os mais eminentes
VI
poetas subjetivos dos dois úl timo s séculos: “ Se lem os a história de Rousseau a partir desse 9 de abril de 1756, data de sua instalação no eremitério do parque
de La Chevrette,
em que ele ‘co meç ou a viver’,
Por muito tempo, Dilthey acariciou a esperança de apreender a significação ou as signifi caçõ es da vida graças à psicologia : é
até sua mo rte, que só ela pô s fi m a seus son hos , a suas decepções , e
nessa ciência fundamental, entendida como conhecimento da ex-
mesmo à sua mama de perseguição, é impossível separar seus fan-
periência vivida ( Erlebnis*™ ) e não como ciência experimental, que devem se fundar a biografia e a história, como afirma seu ensaio
tasmas de seu desti no” . By ron t am bém “ am pl ific ou fantasticamente cepcionais: todas a s produ ções poétic as, me sm o as mais sãs, revelam
Uber vergl eich ende Psychologie. Beitràge zu m Stud ium der Individualitàt, escrito entre 1895 e 18 96 em resposta às críticas de Wi lh elm W in
afinidade com os “ estados psíqui cos q ue se afastam da norma da vida
delband e de H ein nc h Ebbinghau s.409Nesse texto, com o em outros
desperta" .4"’ C om uma diferença, entretan to. Enqua nto no son ho,
que datam dos anos 1890, a compreensão (
todos os acontecime ntos d e sua vida ” . Mas esses não são casos ex-
na loucura ou no estado de hipnose, a coerência da vida psíquica é
Verstehen) é encarada como um processo de reconstrução psicológica graças ao qual o
transcende a realidade para percebêla de maneira mais potente e
intérprete é transposto ao horizonte de outro. E somente por esse movimento im agin ativo —ultrapa ssando os limites da Erlebnis indi-
profunda. Para Dilthey, a transformação poética da realidade se
vidual e reencontran do o pró prio eu no tu que é pos sível reviver
diminuída, ela se encontra, ao contrário, aguçada na arte: o poeta
funda sobre três operaç ões estéticas (q ue po de m nos parecer, hoje
(nacherleben ) e reproduzir analogicamente o ato criador de outro
em dia, ligadas demais ao cânone do classicismo). Em primeiro
ser humano (quer se trate do autor de um texto ou do protagonista
lugar, a omissão: diferentemente do delirante, que mistura, sem
de um fato): “ Ap ree nd em os a vida inter ior [de outras pessoas]. Isso
Wilhelm Dilthcv, Goethe e t rimagina tion poétique, op. cit O limiar biográfico”. Wilhelm Dilthey,
, p. 286. Sobre SainteBeuve, cf. o capitulo
Ibid ., p 9S A analogia entre a criação artística e o sonho é prop
osta igualm ente por Nor beit
Elias, M oza rt Soa olog ie d un gén ie. traduz ido do alem ão por Jeanne Ét oré e Bema rd Lortholarv. I‘ins. Édmons du Seuil, 1991; e por André Green.
à trann l.i littérature: Proust, Shakespeare, Conrad, Borves... Denoel, 2004, p. 142 sq.
144
Towards a Phenomenologic al
Theory of Ut eratu re. A Study of W ilhelm Dillhe y’s Poeti k, La Haye, Mouton. 1963.
p. 67.
Ulmagma tion du poèle, op. cit.,
Wilhelm Dilthey, L ’Ima gin ati on du poè te, op. cit, p. 102.
‘"I M ; p. 103. Sobre a poética de Dilthey, cf. Kurt Miiller Vollmer,
La let tre et la mo rt. Pro men ade d ’un psy chúnahílt entretiens avec Dominique Eddé, Pam'
•"Sobre a noção de
Erlebnis na reflexão de Dilthey, ver especialmente Otto Fnednch Bollnow,
Dilth ey. Ein e Ei nf uh nw g m sei ne Ph ilo sop hie (1936), Schaffhausen, Novalis Verlag, 1980, p. H4 " Wilhel m Windelband.
“ Histoire et sciences de la nature".
sq.
op. cit.; Heinrich Ebbing haus. “Úbe r
erklarende und beschreibende Ps ycholo Rie” , Zei tsc hrif t fitr Psych ologie un d P hysio logie der Sm neso rgan e. >8 %, IX, p. 161205.
145
O PEQUENO X - D
a
A
BIOGRAFIA À HISTÓRIA
ocorre por uma operação espintual que equivale a um raciocínio analógico. O s defeitos dess a operaçã o vê m do fato de que só a realizamos transportando nos sa próp ria vida psíquica a ou trem ” .410 Eisnos aqui bem longe do preceito distante prescrito (mas talvez bem pouco posto em prática) por Ranke, que recomendava ao histonador apagar o própno eu, de maneira a deixar falar apenas as coisas. Dilthey não o estima possível, nem desejável. Pensa, ao contrário, que só a extensão do eu toma possível a compreensão do mundo históneo: o ato de reproduzir e de reviver, essa passagem do eu ao tu, é para ele com o o solo alimentador, “on de mesmo as operações mais abstratas das ciências morais devem haunr sua força. A compreensão não pode jamais ter aqui um caráter puramente racional. E vão querer fazer compreender o herói ou o gênio acumuland o as circunstâncias de todas as espécies. A via d e acesso que melho r lhe con vém é a mais subjetiva” .411 Entretanto, sua confiança na psicologia não foi inabalável. Desde 1894, escreve que não são as experiências psicológicas, mas a história que permite ao ind ivídu o ap reend er o qu e ele é.412Tre ze anos mais tarde, alerta contra a ideia de reviver diretamente um estado psíquico: Se quiséssemos [...] viver agora imedia tamen te, aplicandonos a isso de qualquer maneira que seja, o fluxo da própria vida, (...) recairíamos sob a lei da vida, segund o a qual todo mom ento observado, ainda que reforcemos em nós a consciência desse fluxo, é o mo mento que se tomou lembrança, mas não o fluxo; pois e stá hxado pela atenção que petrifica então o que em si é corrente. Não podemos, por conseguinte, penetrar a essênci a desta vida: o que o jov em de Sais desvenda é uma fo rma e não a vida.413
Wilhelm Dilthey
Psydiologic descriptive et analytique, op. cit.,
p. 203204. A id eia da dilatação do eu.
^ *ii num movimento condnuo entre est raneidade e reconstruçã o, procede de Goethe, que, ma is
PLURALIDADE DO PASSADO
Em 1910, um ano antes de sua morte, termina por abandonar definitivamente toda forma de intuição psicológica. Reitera, uma vez ainda, que o co nh eci m en to é uma expressã o vital: “ Nã o é uma áémarche conceituai que constitui o fundamento das ciências do es pínto, mas a apreensão de um estado psíquico em sua totalidade e a capacidade de reencontrálo revivendoo. E a vida que apreende aqui a vida ” .414 Mas rev ela se cada ve z mais pessimista quanto à possibilidade de participar de maneira imediata da experiência de outrem pela simpatia (Nachfuhlung). Ele que, em seus escritos de juventude, se de fin ia co m o a um só te mp o histori ador e psic ólo go, descobre partilhar dora vante a desconfiança de Go ethe em relação à introspecção: o homem só se conhece na medida em que conhece o mundo, só conhece o mundo em si e só se conhece no mundo. Mas, então, co m o nos é possível compreender o outro? Co mo podemos nos reco nh ece r n ele, sentir seus estados de alma? E como podemos nos fundar no ato de compreensão, ainda mais quando essa sobrevêm a posteriori ? “ Em face da intrusão constan te do arbitrário romântico e da subjetividade cética no dom ínio da história” , Dilthey enfrenta essas questões, durante os dez últimos anos de sua vida, na esperança de “ fundar teor icam ente o v alor universa l da interpretação, sobre o qual repo usa tod a certeza histórica” .4’3R eatand o com a tradição he rme nêu tica que abordara nos an os 1860 com uma grande biografia de Friedrich Schleiermacher, escreve que a obra de arte é compreensível graças à afinidade que existe entre aquele que exprime e aquele que escuta.416A individualidade d o intérprete e a de seu autor não são estranhas ou incomparáveis entre si: bem pelo contráno, “ são constituídas tan to uma co mo a outra sobre os elementos fundamentais da natureza humana em geral, o que toma possível a comunidade entre os homens no discurso e na compreensão”. Os seres humanos dife rem uns dos outros, e a compreensão mútua élhes uma tarefa árdua. Tudo bem considerado, não se trata, no entanto, de diversidades qualitativas entre as pessoas, mas
^H * ninguém, parece p ossuir uma faculdade quase feminina de simpatia com a exist ência suas tormas, uma imaginação que a aumenta reco nstr uind oa” (Goethe et 1’imaginalion p. 259). analytique, op. cit., Wilhelm Dilthey,
Contribui,on à 1’élude de findividualité, op. cit.,
p. 282. A crítica de Dilthey a
41 k' tol ",‘“i Iarde ret °mada por Georg Simmel: cf. Pietro Rossi, op- at., p. 235.
Lo slori cism o conte mporâ neo,
^ Wilhelm Dilthe y, Psycholog ie descriptiv e et analytiq ue, op. cit., p. 389. i» m ™•P
^ a" <*lT ^onset* un8 zum A ufbau dergeschichtlichen W ell in deu Geistesunsse nschafien, ratase de um dí stico d e F nedn ch Nov alis: “ Alg uém o cons eguiu que retirou
146
o véu da deusa, em Sais Mas o que viu? Viu maravilha da s maravilhas a si mesmo’ , sobre o qual Dilthey reflete em Goethe et l’im
p. 307. Roma. Bulzom,
1^74, cap. 3; Georges Gusdorf, Le s src ine s de 1’herm in eu tiq ue , Paris, Payot, 1988, cap. 4
147
O
PEQUENO
x - Da
A
biografia a história
“ das diferenças de in tensidade em seus processos p síqu icos” .417Essa leitura otimista vale igualmente para o passado, um mundo que lhe é familiar, no qual evolui com desenvoltura: Da distribuição das árvores num parque, da ordenação das casas numa rua, da ferramenta bem adaptada do trabalhador até o julgamento pronunciado no tribunal, há incessantemente à nossa volta pro dutos da históna. [...] Já que o te mp o avança, estamos cercados por ruínas romanas, catedrais, pelos castelos da monarquia. A história não é algo que esteja separado da vida, nada que esteja cortado d o presente po r seu distanciam ento n o tempo. 418
PLURAUDADE DO PASSADO
em um a ún ica d e suas expressões.422 Felizmente , o ser humano tem c onsta nte nece ssida de de expressar seus estados de alma. do animal, n ão se limita a manifestaçõe s corporais. E diferentemente
a totalidade
Graças à linguagem, pode escapar à solidão de sua vida interior para contarse, cantar, pin tar, dança r, e tc. 423 E são essas realizaç ões extenores que tom am possível a compreensão: “ Esta compreensão vai da apreensão do balbucio da criança até a de Hamlet ou da
Crítica da razão pura. O mes mo espírito humano nos f ala na pedra, no mármore, nos sons musicais, nos gestos, nas falas e nos escritos, nas ações, na ord em ec on óm ica e nas constituições, e requer uma interpretação” .424 En qua nto o p rocesso cria tivo vai da experiên cia
Que o material seja inevitavelmente lacunar e obscuro, de certa forma uma não evidência, não constitui um obstáculo insuperável.
vivida (Erleben) à expressão ( A u sd ru ck ), o processo da compreensão segue o caminho inverso: só penetramos a interioridade do outro
Por certo, o historiador é condicionado por sua época, mas, como qualquer outro intérprete, pode dilatar sua experiência e se abrir a outra vida: Po r cima de todas a s barreiras de sua própr ia época,
por seus efeitos, por causa das manifestações pelas quais, como diria
ele olha para fora em direção às civilizações do passado; ímpregna
to numerosos: a linguagem, o mito, a arte, a religião, o direito, a organização política (poderíamos mesmo acrescentar o sonho, a
se de sua força e reexpenmenta sua magia: e tira daí um grande aumento de felicid ade” .419
Hegel, a cons ciênc ia hu mana se obje tiva .425 Estes “ produtos objetais ” , com o os chama Dilthey, são mui-
cozinha, a moda, o sintoma, etc.). Alguns entre eles apresentam a
Em relação a seus escritos precedentes, é sobretudo a imedia tez que é abandonada: a com preen são se tom a um ato refl etid o.420 Dilthey estima que, ainda que não tenhamos acesso direto à signi-
vantagem de produzir figuras firmes e estáveis, enquanto tudo o que se passa em nós, nossa interi orid ade , é dramaticamente p recário
ficação profunda de uma existência, podemos ao menos apreender
ergue firme, visível, durável, tomando possível uma compreensão
alguns fragmentos s eus mediante sua s manifestaç ões exteri ores: “ A
segura e regular. Assim, nos confins do saber e do fazer se desenha um círculo em que a vida se abre a uma profundidade que não é acessível nem à obs erva ção ne m à refle xão nem à teoria . A seus
existência de outrem só nos é inicialmente acessível do exterior através dos dados sensíveis, gestos, sons e ações” .421 C om o Droysen dissera e repetira durante os decénios anteriores, só compreendemos
e fugidio, até para nós mesm os: “ Ve ríd ica em si, [a obra de arte] se
olhos, não resta dúvida de que a literatura constitui o produto mais eminente, aquele que, mais do que qualquer outro, permite que nos
W,lhelm Dilthey,
Nais sanc e d e Vh erm fne uli qu e, op. cit ., p. 305.
^ W ilhelm Dilth ey, L Éd ifi aii wn du mo nde hist oriq ue, op. cit ., p. 101.
Johann Gustav Dro yse n, Hi sto rik , op. aí., p. 112.
Na iss an u de Vh en nén eun que . op. cit. , p. 291.
41 Wilhelm Dilthey,
Alguns decénios niais tarde. Alfred Schvitz sublinhará a capacidade humana de se manifes
tions du C rf íw n t Saenas ia n'l,ure 11942], traduzido d o alemã o por Jean Carro, Pans, Edi 0 .. ’ . 2 unia ^Ktinção entre o ato da criação e aquele da compreensão, sublinhando
atividadesacessíveis, tanto aos cnadores quant o aos destmatános, como elementos de um mun
H i tariral l i
Sobre a relação entre a concepção hegeliana do espírito objetivo e a objetivação d
Edwin M II
â
°
r I)d"
^ erTos cnt,COs falaram de virada herme nêutica: cf. The odo re Plantinga,
°f Wilhelm
Dilthey,
LewinstonQueenstonLampetter, The
I His tor . C T r i” *’ i 92; , ,Se N : Bulh ° t' Wilhelm D ilthey A Hermeneinical Approach to lhe St udy formularta n ' * *"*aVe' Nijho ff, 1980. Algumas consid erações críticas a esse respeito foram ‘* Makkred' '
D ," h r r
Wilhelm Dilthey, N a,is an ct de Vh erm éne uúq ue, op.
Pnnceton,
p. 292.
Pnnceton
>hey, cf. Karl Lów ith , Di lth ey s un d Hei deg gers Ste llu ng zu r M eta ph yst k (1966), in
Stutt gart, Me tzler, 1981198 8, vol «pressão (Ausdmck)
e compreensão
"nd Philos ophie der Geschich
(Verstehen),
cf. H. Diwald,
te, Cròttingen, 1963, p. 153
Wilhelm Dilthey, Plan der Fortsetzung zu
amt ic e
.
caráter mediado da relaçao entre vi
VIII. Sobre o
Wilhelm Dilthey.
149
’
r cnn
<
s
m A ujba u dergeschich tlichen Well w den Geistesuiss
°P nt„ p. 207.
148
'
Wilhelm Dilthey, Na iss an ce de Vh crm én eu tiq ue , op. cif., p. 293.
ensci .
,
A HUtAlDADf DO PAS SADO
O
PtQUENO
x-
Da
biografia
à histú
«ia
enraizamento
insiramos no outro histórico. Di lthe y a define, aliás , co mo um verdadeiro monumento históneo: a importância capital da literatura para nossa compreensã o do passado “ se deve a que so men te na língua a intenoridade do homem chega a uma expressão completa, exaustiva e objetivamente compreens ível. E p or isso que a art e de compreender tem seu centro na interpretação dos traços de existência humana contidos no esento” Tratandose de um produto completo, ele é também necessanamente verdadeiro e, por conseguinte, provido de objetividade. Podemos nos enganar sobre as razões dessa ou daquela ação, pois muitas vezes os homens se dedicam a apresentar sua conduta sob uma falsa luz.
do saber na vida
(o
“é
a
vida que apreende aqui a
vida”) que representa o limiar ínstransponível: a possibilidade de
dilataro própno eu, de acolher outras expenências de vida, não é infinita. Mas essa constatação não implica necessariamente que seja renunciar: por mais cruel que seja, esse limiar comporta pr ec is o
também algo de positivo. O ponto mais doloroso concerne indubitavelmente à relação entre as partes e o todo. Dilthey não atnbui ao dilema biográfico 0 caráter quantitativo que sublinhamos em Carlyle. Não aspira a conhecer todos os elementos que alimentaram a evolução histónea. Coloca o problema num plano mais qualitativo. Afirma que nào podemos apreender diretamente a totalidade histónea, uma vez
Mas a obra de um grande poeta, de um grande inventor, de um fundador de religião ou de
um autê ntico filó sof o jamais será
outra coisa senão a expressão verdadeira de sua vida psíquica; nesta sociedade humana, cheia de mentiras, uma obra deste género é sempre verdadeira e, diferentemente de qualquer outra expressão fixada, é suscetível em si de uma interpretação completa e obje tiva.427
que cada parte é um conjunto interativo que tem seu centro em si mesmo e em si mesm o enco ntra sua significação. Mas dizn os também que a decomposição da totalidade não tem sentido algum. As partes não po de m ser com pree ndid as singularmente, ja que nao estão fechadas em si mesmas; ao contráno, cada uma delas esta ligada às outras numa unidade que não é uma
simples
justaposiçao.
A análise deve. se quer comp reende r o particular, se esforçar por apreender su as relações co m o geral. Q uero descrever osk w u ? -
VII
listasde D iire r sou então obr igado a me servir dos conceitos gerais
Sem dúvi da, a fé no conhec imen to tem limites. O
desejo d e
apreender de uma vez por todas a significação dos acontecimen-
que oferece a teona da arte pictónca; devo falar, além Asso, ios temperamentos e da maneira com o eram concebidos na epocu de
tos históricos parece a Dil the y “ ao menos tão aventurosa quanto
Diirer . Se qu ero analisar essa obrapnma , dev o me lem rar «.os recursos de que a pintura dispõe para representar grani is tigura
o sonho do filósofo da natureza que pensava, graças à alquimia,
da históna universal co mo São João ou São Pedro |...|. ie vo
arrancar à natureza sua última palavra. Assi m c om o a natureza, a
tegrar em seguida em todas essas relações gerais de tatos a
históna não pode entregar sua última palavra, uma palavra simples
pertencentes à teona da pintura a particulandade concreta que
em que se enun ciaria seu sentido verda deiro” .428 O mesmo ocorre
reside na maneira co m o a Renasc ença trata tais temas, .
com os acontecimentos biográficos, pois toda com nece sempre relativa. “Individuum
preensão perma-
est inef fabil e", repete várias vezes.
Co mo muitos de seus contemporâneos, D ilthe y viu, ele também, a natureza trágica do con hecim ento. Sob certos aspectos, é justamente
Wilhelm Dilthey,
Nai ssan ce de 1’hermé neu tiqu e, op. ril ., p 294. A dep endên cia da histó na para
Intro ducti on au x sciences de 1'espr il, op. cit, p. 250.
•
deve ser situada, no fim das contas, a onginalidade da obrapnma de Diirer. São, portanto, em toda a parte, relações entre tatos gerais e o individual q ue permite m uma análise deste úl
Donde algumas dúvidas imtantes sobre o valor cientíhci grafia: se cada ind iví du o é o pon to de enc ontro de ditere
njM
juntos interativos, co m o po de m os pro ce de r a partir dele, aj
*
com a literatura será igualmente sublinhada por Hans Magnus Enzensberger. "Letteratura come stonografia", op dl. Wilhelm Dilthey,
111
" '‘ Íhelm Dilthey. Psychologie descnplivt el analytique, op. cit..
151
p 2332.14
O PEQUENO X - D a BOGRAflA A HISTÓRIA
A PLURALID ADE DO PASSADO
o conteúdo da natureza humana através dele? Donde também uma
inacabada da história, e parar de tentar concluir o que é inesgotá-
necessidade infinita de históna: “
vel, está longe de ser uma
O des env olvim ent o da essência
démarche fácil. Isso significa reconhecer
humana se encontra na históna, é aí que se pode ler em letras
que toda interpretação implica uma arte hermenêutica e,
maiúsculas os impulsos, os destinos íntimos, as relações vitais da
aceitar a importância da imaginaç
natureza humana”.430D on de , en fim , a con vic çã o de qu e na históna
homem que não tenha nenhuma lembrança de seu passado, mas que
não reina nem o indiv idua l nem o geral, mas “ a combina ção do geral e do i ndiv idua l” .431 Profundamente sensível à vitalidade periférica da históna, Dilth ey enfrenta a sensação de ve rtig em que atravessa tod o projeto
portanto,
ão histórica: “ Conside remos um
pense e aja somente em função do que esse passado provocou nele sem ser consciente de nenhuma de suas partes: tal seria também a situação das nações, das comunidades, da própria humanidade, se esta não conseguisse c om ple tar os ves tígio s” .434
de história biográ fica. Mas, fiel ao ex em plo do jui z que, de quebra,
VIII
compõe versos, não se deixa abusar pela ilusão de poder descobnr um ponto miraculoso em que se refletiria a totalidad e histórica. Com
Contranamente ao que afirmam os historiadores que pretenHumboldt, sugere outra via: aceitar o caráter circular do conhecimento. Para apreender o todo, devemos compreender suas partes,
dem encontrar os fatos pu ro s, para Dilthey, a vida exige ser guiada
mas, para apreender as partes, énos preciso compreender o todo.
pelo pensamento: “ Nossa faculdade limitada de reprodução teri
Existe entre as duas operações uma dependência recíproca, uma se
muita dificuldade de se encontrar através das complicações e dos
a
alimentando da out ra: se “a visão his tóric oun ivers al da totalidade
enigmas do particular se as linhas do conjunto vivo não fossem
pressupõe a compree nsão das partes que estão reunidas nela” , inver-
deduzidas” .43' É p or isso qu e lhe parece necessário reagrupar a s
samente, a com pree nsão de um a parte do cur so da históna só atinge
expenênci as históneas em
sua perfeição graças à relação da parte c om o t od o” .432Ass im como
pensar naquele de M ax W eb er que, quase ao mesmo tempo, funda a
tom o de tipos.4 36 Esse projeto faz log o
a significação de uma frase não reside nas palavras que a compõem,
conceitualização da realidade no tipo ideal.4 3 Para We be r, o tipo não
mas na ligação que as une, um fato singular só tem significação em
é definido nem por caracteres comuns a todos os indivíduos, nem
relação com a vida em seu conju nto : “ A cada instante de n ossa
por caracteres médios; ele deriva de uma construção formalizada,
vida, no pensamento mais tolo ou na rotina mais insignificante, há
uma utopia que, em sua pureza, jamais encontra correspondente
uma conexão com aquilo que, enquan to sign ificação da vida, religa todos seus momento s num t od o” .433
dade ou de uma categoria no seio de uma classificação, tratase de
Em vez de buscar vencer a sensação de vertigem, Dilthey
na realidade empírica. Mais do que de uma reprodução da realiuma tentativa de colocar ordem, pela distinção e pela acentuação
aceitaa e se dedica a tirar pr ov eit o dela. Q ue m sabe? O fato de que cada espaço, cada tempo, remete a outro espaço e a outro tempo (fazendo assim da contextualização uma empresa interminável) não é talvez um entrave, e menos ainda um a mald ição. Ta lve z se trate ao contráno de uma sorte e de um recurso. Rest a q ue aceitar a natureza
Wilhelm Dilthey.
Pia ,i der Fortsetzung zu
m A ujbau dergeschichtlichen Welt in
den Geisteswissenschaft
*' Wilhelm Dilthey, Contributions á l’étude de 1’individualité, op. cit., p. 284. Sobre as diferentes fases de elaboração do con ceito de tipo em Dilthey. cf. Lu Wilhelm Dilthey Th
dwig Landgreb
Ed. por Edmund Husserl, 19_8, 9, p. 237 366.
identif icação entre "tipo " e "expressão” , proposta por Langrebe, é rejeitada por Antonio
ik'!™ *
Aus ar hei tun g de, des kri ptw en Psy cho logi e. op. cit ., p. 183. Conlnk" "°™ à 1'él ude de findiuidualité. op. cit.,
Dllthey' L ÉdiJvat,on du monde histonque, op. cit., Wilhelm Dilthey. Leb en un d Er ke nn en, op. cit ., p. 382.
152
p. 263. p. 105.
Saggi sullo storicismo tedesco. det mando umano,
,
eon e der Gei steswis sensch aften. Analse ihre r Gran db eg nffe ' Jah rbu ch fur
Philosophie und phãnomenologische Forschung, Wilhebn Dilthey.
en,
op- cit.. p. 279.
M ilão, 1959, assim como por Giuliano Marini.
gn,
D ilt he y e la com prm sio ne
Milão, Giuffré, 1965.
" < I A mold Uergstr aesser, "Wilhelm
Dilthey an d Max Webe r: An Empincal Appro ach to His toncal
Synthesis", Ethics. 1947, 57, p. 92110.
O
PfQUENO
x - Da
biografia
à história
A
plural idade do
passado
unilateral de certas característ icas típicas .43" O mes mo ocorre com
certos personagens; no Sonho de uma noite de verão,
Dilthey que considera
extravios do amor são concentrados em algumas relações típicas,
o tip o c om o fa tor de in teligibilidade s em
relação com a ideia de representatividade:
as ilusões e os
“ A conceitualização n ão [...] com o uma brincadeira co m que a cons ciênci a sobe rana
é, portanto, aqui uma simples generalização que extrai o elemento
se deleita precisamente porque ela toca na grave questão da
comum vale ndose da série dos casos particulares. O conceit o ex-
conservação da vida [...]. E é na maneira como um artista cria
prime um tipo. Proced e do m étod o c om par ativ o” .43'' Assim como
uma atmosfera, um mun do, na maneira como seus personagens
desconfia, ele também, de toda solução naturalista:
se mov em e são ligados en tre si, que toda s ua mentalidade [encon tra sua] ex pressão mais pr ofunda .443
O srcinal era um indivíduo; todo retrato autêntico é um tipo, com mais forte razão, tod o per sonag em de um quadro. A poesia tampouco pode copiar pura e simplesmente as coisas. Se um dramaturgo resolvesse transcrever u m d iálo go real, com tudo o que este pode ter de acidental, d e ín corr eto, de tolo, de difuso,
Fortalecido pela convicção de que a arte representa um modelo apropriado para a história, Dilthey imagina em certos momentos o ben efici o heurístico que uma verdadeira roteir ização do passado pro porc iona ria: “ Qu an do revi vem os um passado graças
acabaria por entediar o leitor. [...] Mas tal tentativa de copiar fielmente o objeto estará sempre condicionada, ela também, pela subjet ividade daq uele qu e escuta, lembr a, reproduz.44'1
Entretant o, à diferenç a talvez de W eb er , quando Dilt hey considera o trabalho de condensação, é sobretudo na arte, tida por fundamen to de todo con hecim ento, que e le se inspira. “ Não possuiríamos mais do que uma medíocre parte de nossa inteligência atual da condição humana se não estivéssemos habituados a olhar pelos olhos do poeta e a ver nos homens que nos cercam Hamlets
àarte com que o historiador nolo toma presente, extraímos um ensinamento, com o a con tec e co m a própria vida; sentimos que nosso ser se dilata e que forças psíquicas mais poderosas do que as nossas inten sifica m nossa exi stê nc ia” .444A car icia a esperança de que o trabalho de condensação permita revivificar o passado, dar uma segunda vida a suas sombras exangues, e exprimir sua diversidade: o tipo contém “ um au men to da exp eriência vivida, não no sentido de uma idealidade vazia, mas, ao contrário, no de uma representação da diversidade sob uma form a imag ética, cuja estrutura forte e clara
e Margaridas, Ricardos e Cordélias, marqueses Posa e Felipes Para extrair o esse ncial de u ma re alidad e, frequ en tem ent e bastante confusa, o poeta condensa as experiências. Insere inicialmente um
toma compre ensív el a significação de experiências vividas de menor interesse, ainda não distintas” .445
grupo humano num tipo; estiliza a seguir as relações entre as personagens: a vida “jog a os hom ens tod os misturado s; mas, por mais realista que sejau m artista, sua grandeza imp lica necessariamente
que
coloqu e em relevo se us traços essenciais” .442 Ra fae l e Shakespeare não se limitam a imitar a vida, dão ao geral uma forma
singular. A
escola de Atenas e A di sp ut a representam culturas inteiras através de ^
’ P 284285. Essa
partilha da vitalidade e
•°s, que se alimenta inev
Ainda que trazendo frutos bem
Max W ebcr, L*Obj ectii ftté de la co nnai ssanc e d ans les s de tu es et la p oli tiq ue sod ales(1904), in Essau
la thíorie de la snence, op. dt.,
p.
11 sq
Ajfted Schi itz ("O n M ultiple R
e os diicrwn jco
ntcc mic n
uma caracter ística da a rte.
men os n otáveis, ela escarule nossa viiii de todos os dias. Segundo ealines ” , in Colected Paper s. U e Pn+lem
{Soaal Reality.
La Haye,
artinus Nyh off, 1962), o eu perc ebe se mpre o outr o através ite uma «n c de estandartizaçò es,
Wilhelm Dilthey , L'É diJi cati on du mo nd e hist oriq ue, op. d l. , p. 136. Wilhelm Dilthey,
ntre as diferentes figuras
itave lme nte da subjetivida de d o autor, não é
Contri bution à 1 ‘itude de rindw
idualtté,
Ibid ., p. 278.
op. dt ., p. 286.
mas caas se niultiplit jm * se com am cada v ez mais in ónm u* i m cdid i qwc no* if astamos do car a CJra c que cresce a distância (um
am igo se toma
um inglês
r *«in« po»
ilhelm D ilthey, Intr odu cti on au x sáe iice s de 1'esp rit, op. d t. , p. 251
441l b,d., p. 284.
helm Dilthey,
154
L'I tn ag in ati on du poè te, op. at ., p. 116
155
CAPÍTULO V
O homem patológico
Co mo uma apaixon
ada, que, à beira
do mar, ol ha, co m
os olh os chei os de lágr ima s, o ser am ad o qu e se afa sta, sem esperança de jama
is revê-lo,
crê perceber ainda sua imagem
na vel a qu e desa par ece, não tem os ma is, como ela, do que a so mb ra de nos sos des ejos ; ma s ela des per ta um a nos talg ia ta nt o ma is fo rt e pe lo qu e p erd em os , e con tem pla mo s as cóp ias da s fo rm as ori gin ais com um a aten ção bem ma ior do que teríamos feito se delas tivéss emos a posse plena.
Johann Joachim Win ckelman n446
I O tempo, lêse em
L e Sp lee n de Paris , "retomou sua brutal
ditadur a” .447 Charles B audelaire certamente
não é o ún ico a pen-
sar nesses termos, no coração de um século que deve encarar um novo tipo de
tempo.
O antigo tempo local , lento e var iega do,
que reconhecia a cada cidade sua hora, é, com efeito, progressivamente afastado, por exigência das companhias ferroviárias que não conseguem gerir as dezenas de horários particulares em vigor no continente europeu.4 48 N o início, ele pôde coexisti
Johann Joachim Wm cke lma n, Geschichte der Kunst desAltertums Charles Baudelaire.
r com o tempo
(1764), Parmstadc, 1982, p 393394.
Lc Sp lee n de Pari s, pet its poè me s em prvs e, Ed. estabelecnU por R.oNm Kopjv
Paris, Gallimard, 2006, “ La chambre doub le” , p. 112. '"C f. D avid S. Landes. L ’Eu rop e te rh m an m r ocaden tale d e 1 75 0à nos jours
Ré vo lut wn teclm ique et litw ov?
m Jm tttrl r m F.uropt
(1969), traduzido do inglês por Louis Evranl, lfârw. (ralliiruni.
157
1975.
O
PEQUENO
x - Da
biografia
A história O HOM EMPATOtÒGICO
ferrov iário, depois é rele gad o aos celeiro s da história pa ra ser enfim
II
suplantado pelo tempo mundial. E o que ocorreu em 1884, quando os representantes de vinte e cinco países, reunidos em Washington para a Conferência Internacional do Meridiano
, estabelecem o compri
mento padrão do dia e dividem o globo em vinte e quatro fusos horários, 15° de lon gitu de distantes entre si, a partir do obse rvatório de Greenwich. Esse novo tempo público, desejado pelas estradas de ferro, não é apen as mais ho m og én eo que o antigo. É tam bém mais rápido e invasor: segue o ritmo do telégrafo, que anula todo intervalo de tempo entre dois lugares bastante distantes e escande a vida de milhões de pessoas graças à extraordinária difusão do reló gio de bols o.449 A decisão de impor um tempo público neutro e uniforme não é uma questão de som enos importâ ncia. E tampo uco foi fr uto de um em preend imento pacífico . D ez anos apó s a conferência de Washington, um certo Martial Bourdin, sem dúvida um agente provocador infiltrado num grupo anarquista, decide colocar uma bomb a no observ atório d e Gr een wic h. O atentado fra cassa: Bourdin é morto pelo próprio engenho e passará a história como o protagonista do Greeminch Bomb Outrage,
que inspira ajoseph Conraduma
reflexã o acerba sobre a filos ofia do terr oris mo .450 Além do mais,
Burckhardt começou muito cedo a se sentir em profundo desacordo com seu tempo. Desde 1846, aos vinte e oito anos de idade, revelava ao médico Hermann Schauenburg sua vontade de cortar as pontes com sua época: “ E por iss o que me fundo na amenidade do Sul [...], mas que deverá, admirável e silencioso monumento fúnebre, me resserenar, com seu frémito de antiguidade, tão cansado que estou da modern idade” . Deseja liberarse de todo s (“ radicais, comunistas, industri ais, sábios, ambiciosos, meditativos, abstratos, absolutos, filósofos, sofistas, fanáticos pelo Estado, idealistas, istas e icos de to da esp écie!” 452), pret ende afastarse dos combates do presente. Na esteira de Goethe, de Chateaubriand, de Madame de Staél e de Stendhal, o historiador suíço atravessa os Alpes. Sabe que sua decisão deve suscitar a reprovação de numerosos amigos que escolheram o engajamento político: “ Cr eio ler no olhar de vocês todos uma reprovação m uda ven do m e ceder com tanta levi andade aos pr azeres do Sul , à arte e à antiguidad e, enqua nto no mun do reina o sofrimen to” . Mas, antes que a barbárie geral se deflagre (é esse seu diagnóstico), deseja fazer “ um bo m e nobre empanturramento de cultu ra .45' Tr ês anos mais tard e, con fir ma ter a impressão de se enco ntra r
a hostilidade em relaçã o ao te m po mun dial persiste muito tempo
“ pessoalmente num estado d e motu s cotit rarius em relação à march a
ainda, mesmo naqueles que nenhuma aspiração revolucionária
do tem po” .454 Rep eteo em 185 5:
anima. Na virada do s éculo X X , a literatura acu sa o nov o tempo,
Que sensação desagradável de constrangimento experimentamos
aquele do quadrante (time on the clock ), de ser superficial, arbitráno e
quando nos encontramos presos nas grandes engrenagens do
terrificante, e reivindica a realidade irredutível do tempo subjetivo
mundo atual [...]. Outros séculos aparentamse a nos, tempes-
(time in the mind).45'
Mas, bem antes de Mareei Proust, Franz Kafka
e James Joyce, um historiador toma a palavra: Jakob Burckhardt.
tades, chamas; mas, quando se fala do século em curso, o X IX , são sempre estas malditas máquinas que me vêm ao espírito.
Em momentos bastante raros, espera poder se reconciliar com seu Georg Simmel,
D ic Gr of rlà dl c un d das Ge isl esl eb en (1903), in Michael Landman e Margarete
tempo, mas, o mais das vezes, prefere manterse afastado desse
Susman (dir.), Brii cke un d Tu r, Stuttgart. K F K oeh ler. 1957, p . 227242. C f. Joseph Conrad, L Ag en t se mi (1907), tradu zido do inglês por Syl vèn e M ono d, Pans, Gallimard, 1995. E Virgínia Wo oli que introduz a oposição entre àt., p. 103.
lime in lhe clock
e lime in lhe mind
em Orlando, op
Uma hora no o co d e nossos loucos cére bros, p ode se estender cinq uenta ou cem
vezes mais do que sua duração de relógio; inversamente, por vezes não é mais do que um segun*k\ exacamente, no quadrante de nosso espirito”
. Sobre os desvios temporais, cf. Paul Ricoeur,
« rérit. Pans, Édmons du Seuil, 1984, t . II. cap. IV; S tephen K em , 1880 1918.
temp
The Cultu rt of Time and S pan.
Cambndge (Mass.), Harvard Umversity Press, 1983, cap. I e V.
159 158
° HOmem ^ tológico ru ri OGRAFIA À HISTÓRIA O PEQUENO X - DA B K***
ba«alb» ‘'on,r‘ •' •'••'•■anedade ( salvaguartl.i, ........ f()r ) Quero Ccontribuir r3 a s 5 ’ ' p « ) s s í vc l fc* 0 I «r i bu i desta posição. |.. .| Q uero a<> mn,o s escolh(,r , d"n«ll«m o nela cultura da velha Europa (die Bildum A , quc morrer e é com paixã o dian te de seus estudantes da Uni Repete-o “A história do m un do antigo, a o menos a dos ^ ^ ^ ^as^eia: prolo nga na nossa , é co m o um acorde fundamental0* ^ X incessantemente ressoar ainda através da ma«a A , escutam hum ano s” .-1'" No ssa dívid a para com o passado °° ecimentos quc esta mo s liga dos aos egípcios, aos babilónicos já aos gregos po r u ma conti nuid ade íntima e profunda^Tud1'010* * que pode serv ir, m es m o de long e, para aumentar nossos conhecime deve ser reunido, custe o esforço e o sacrificio que custar até aue cheguemos a reconstruir inteiramente os horizontes espirituais‘dl ou tro ra” . Po r essa razão , podemos, ou melhor, devemos procurar pro teg er o continuum espintual da civilização: “Mas, se na infelici dade deve haver ainda uma felicidade, ela só pode ser de natureza espiritual, voltada para trás, para a salvaguarda da cultura do passado, virada para fren te, para um a defesa serena e incansável do espírito”.463 Assim co m o Nietzs che , e antes de Nietzsche, Burckhardt está firmemente convencido de que, para sermos independentes, é-nos preciso ig ua lm en te ser inatuais: somente nos abstendo de nossa época pod emo s “ gu ard ar —com o um nã opolites (Nicth-Polites)mantendo-se à parte —o s en tid o his tór ico de nosso próprio tempo, contra este . Mas, co nt ra ria m en te a Nie tzsch e, sua inatualidade não lança nenhum descrédito sobre a consciência histórica. Sem dúvida, ele conhece também a importância do esquecimento. Sabe muito bem que existe ...
M
• século em loucura, que vive que dilapidaantecipadament
p
n dia, que aboliu a Stimmuno, e j ^ ô m o das gerações futuras...456
~ia*~, s a Itália, aue inspiram O Gcero,,e (um extraor viagens ..a IQi . , An tigu idade greg a a Claude dinário euia da arte da Peninsuia, ua & Cenuss) infimto: Eu podena gu Lorrain457) suscitam nele um gozo (oer* ' ^ Lorrdin ) olhos finalmente se abn indicar no Vaticano, o ponto em que ..ív i» ’ r n m p r e i a compreender alguma coisa da Antiguidade, ram em que comecei a o , . estatuaAr,dorlpdeus ns Nilo deitado. A Italia „me forne ceu Foi diante da inuo
u
.
uma nova escala de valores para uma rrnnade de coisas . Mas também um grande sofrimento pelas perdas imensas do passado: onde foram pois, parar os materiais do Circus Maximu s de R om ar E o que foi feito dos revestimentos de mármore da vila de Adnano em Tívoli ? Poderemos algum dia nos representar exatam ente o c éleb re grupo das Nióbides? Além da devastação causada pela natureza (é o caso das fachadas pintadas das igrejas de Verona), há os abusos da história: os mármores da Antiguidade, reutilizados pelos primeiros cristãos para construir suas basílicas, alimentaram os fom os de cal da Idade Média, foram recobertos de decorações em estuque para satisfazer as exigências da arquitetura barroca, sofreram numerosas restaurações anacrónicas... A força destruidora do ser humano é tal que a Rom a modema “ é tanto menos capaz de dar uma ide ia [do que foi] por obstinarse em acusar os ‘bárbaros do N o rt e ’ de todas estas horríveis devastações459 ”
A partir de então, o “saltimbanco” , com o gos tava de assinar por vezes, que, aos doze anos, tivera uma intuição clara e indelével da ‘ caducidade fferal das roisíK tprrpçfrfK” nrpfpnrlp travar um a
« ----41 t
" 'íl í Al)
v
^
.
ntos
*
9
Na esteira de Emil Diirt, Lionel Gossman (Base! in the Age ojBurckhardt, A Study in Unseasonablc
Ideas, ChicagoLondres, The University of Chicago Press, 2000) aprofu nda a ligação existe nce entre a inatuahda de de Burckhardt e asua cidade natal. 457
Jacob Burckhardt, Le Cicerone, guide de Va n an tique et de Yart modem e en Italie (1855). traduzido do aiemao por August Gérard, Pans, FirminDidot, 18921894. Sobre as viagens de B urckha rdt, cf. Lionel Gossman,Basel in the Age of Burckhardt, op. cit.
“ J « 0b Burckhardt.Bnef,.
J acob Burckhardt,Co nsidém tiom sur 1’ hist oire du monde
jacob Burckhardt, Briefe, op. cit., t. IH, p. 63, carta a Eduard Schauenburg, 25 de março de 1847.
^
Conservadâ no muse“ de Ch.aramonti no Vaticano, cf. Jacob Bur T ' al' ’ l' *’ P ' 461' Nessa °*3rana página 269, ele esclarece que o v erd ade iro ” ° Cm COmemPlar f0rmaS Perfeitas
459
Ibid., 1.1, p. 20.
sobre tudo em v.ver em meio à
p. 210 . « t t . Hermann
ch T *t! G«.
ordem cronológica por Emil Durr em 1929.
w
-♦SB
rkhl^Hr T T
e. U.
J acob Burckhardt, Fragments histor iques (18 57) , traduzido do flebra, Droz, 1965, p. 2. Esses fragm entos foram escritos entre
e foramclassificad os akm5o por Sven StelUng-
,traduzi o
• Michaud, Paris, Alcan, 1938, p. 39. O texto foipublicado em
f
exccutor único do legado deBurckhardt, sob o título lVd«*
f
« « « ttm a, vo m Jl de Bur ck ha rd , el e
direçâodeJ acob Oeri, •
^hwngen:
de acordo
MarcSieber, “Le opere
1997.1 . p. *M *
j
C°^ ®Urckhardt: la stori a si ngolare delia loro edizi°n
^
b burckhardt, F ra çm cn ts h is to ri qu es , op -
P* ^
160 1Ó1
»
/iq^ Stuttgart» Metder> 1984, p-*1
O
PEQUENO X -
Da
BIOGRAFIA
k
HISTÓRIA
O HOMEM PATOL ÓGICO
uma justa medida do passado: que nos é precis o bastante Antiguidade, para estimular, mas não demais, para não o pr im ir. 465 Ad mi te que,
modéstia um tanto agressiv as: "M inh a pobre cabeça jamais esteve
por vezes, a desaparição de obras sublimes pôde dar à arte um novo impulso criativo: o extraordinário florescimento da poesia alemã do século XV III teria sido possível se as obra s líricas gregas tives sem sido conservadas? Mas a própria ideia de que o sentido do passado
últimas, sobre os fins derradeiros, e sobre o que é desejável para
minimamente à altura de bem refletir como você sobre as razões a ciência históne a” , escrev elhe em 1874. Cin co anos mais tarde, esclarece, na mesma óptica:
“ C om o todos sabem , jamais penetrei
no templo do verdadeiro pensamento, mas passei toda minha vida
possa ser noc ivo (no plan o pessoal assim com o n o plan o coletivo)
a divertirme no corredor e nas salas do
élhe totalmente estranha: para ele, a civilização só aparece quando
rado no sent ido mais amplo do
cessa o simples presente sem história.466 Para doxal men te, a consci-
distância abruptamente. Após terse comparado a um velho cocheiro
per ibol os, onde reina o figuterm o” . No entant o, em 1882, toma
ência histónea é a única dimensão da modernidade que ele defende
que persiste em freque ntar sempre os mesmos caminhos, levanta duas
contra tudo e contra todos: um privilégio a que só renunciam os bárbaros que vivem na inconsciência, e os americanos a quem o
questões cruciais: a definição da grandeza (dada por Nietzsche no
passado do Velho Mu ndo “ atulha, me smo que não queiram, co mo
§ 325 da Gaia Ciência : “ Qu em poderá ja mais ating ir a grandeza s e não sentir em si mes mo a força e a vont ade de causar grandes dores?” )
um bncabraque inútil” .467 É justam ente po rqu e desfaz a tradição e impede por isso mesmo de ter uma percepção imediata do passado,
cena se Nietzsc he ensinasse a história? A o lon go dos anos seguintes,
não contena uma pen gosa propen são à tirania?469 E o qu e acont e
que a modernidade atribui a esse um valor cognitivo fundamental:
ele defenderá ainda algumas vezes a perspectiva
por enquanto, a cultura europeia ainda não se acostumou à ideia de deixar o passado entregue a si mesmo, escreve em 1885, mas haure
que aborda co m o dirá Sie gfrie d Krac auer as coisas penúltimas, as
na contemplação do tempo a maior parte de seu conhecimento. O
decide, enfim, se abster de qualquer comentário:
sentido histó rico da modernidade é favor ecid o p or uma série de con dições: hoje em dia, é mais facil viajar, as fontes estão mais acessíveis, os governos quase não testemunham mais interesse pela pesquisa (e está aí uma vantagem!), as religiões se tomaram impotentes... Mas são sobretudo as convulsões políticas, iniciadas pela R ev ol uç ão Francesa que alimentaram nossa necessidade de c om pre en de r o passado: Se não queremos perder o ente nd ime nto ” , o contrape so da históna e primordial. Foram eles que pr ovoc aram uma rev isão geral do passado inteiro numa perspectiva histor icista. “ Sabem os nos posicionar em pontos de vista variados para julgar todas as coisas e procuramos ser equânimes para com os fen óm eno s mais estranhos e mais terríveis . A virtude da consciência histórica é ainda recordada em certas
terrestre da história,
últimas coisas antes das definitivas, the last things before the last,
até que
Para mim é um goz o muito particular escreve em resposta ao recebimento de As sim fala va Zaratust ra - escutar alguém proclamar em alta voz, do alto de um observatório que me domina, os horizontes e as profundezas que percebe. Doume conta assim do quanto vivi superficialmente até agora e de que, por conta de minha natureza pouco diligente, permanecerei certamente como sou: pois na minha idade não se muda, a gente se toma no máximo velho e mais fraco.470
Cf. Fnednch Nietzsche,
Le C ai Sa vo ir (18811882 ). traduzido do alemão por Pierre Klossowski,
1ins. Gallimard, 1982, p. 217. B urckha rdt exprim e mais amplamente seu pont o de vista numa
cartas bastante lacónicas endereçadas a Nietzsche. Quando muito,
célebre carta a Ludwig Pastor: “Jamais túi um adorador do homem sem escrúpulo e dos oul-laws da história e sempre os considerei antes com o flag ella De i [...]. Segui e principalmen te procurei o que
Burckhar dt tent a esconde r sua perp lexid ade co m profissões de
dá felicidade e cria, o que vivifica, e acredito ter reconhecido tudo isso em coisas bem diferentes C 1 Jac°b Burckhardt,
Bri efe , op. cit ., t. X, p. 263, carta a Ludwi g Pastor, 13 de janeir o de 1896.
w . carta a Fnednch Nietzsc he, 10 de setem bro de 1883. Sobre a relação complexa entre Burckhardt Jacob Burckhardt , Considéraíions sur 1’histoire du monde, op. cit., Jacob Burckhardt, Fragments histonques, op. cit.,
Jacob Burckhardt , Considéraíions sur Vhistoire du monde, op. cit.,
**Ibid.,
p. 95.
p. 35,
p. 238
p. 39.
e Nietzsche, ambos “ sismógrafos m uito sensíveis cujas b ases tremem q uando rece bem e transmitem ondas , cf, al ém do livro de Lõw
ith, o pequ eno texto de Aby Warburg,
“ minaire Jacob Burckhardt" (1927
), traduzido do alemão por Diane Meur,
imionald'art modeme,
1999, 68 , p. 2125. Cf. Georges DidiHuberman,
*** *i temps fantómes selon
162
'Te xte de clòture d u
Les Cah iers
L'i ma ge sur viv ant e. His toi red e
A by IVuriturç, Paris, Éditions de Minuit, 2001, p. 117141. Em
163
L Hist oire ,
O
PfOUENO X
- D*
BIOGRAFIA
À HICTÔHIA
O HOMEM PAIOÍÔGI CO
gosto de fazêlo; meu desejo era que essas pessoas aprendessem
De fato, Burckhardt não pensa que a história tenha um valor
a colher os frutos graças a suas próprias forças. [...] Quis apenas
exempla r a fortiori numa época em que o valor paradigmático da tradição é comple tame nte n egl ige nc iad o. N ão aspira a que ela
que cada ouvinte foijasse em si mesmo a convicção e o desejo de que cada um tem a possibilidade e o direito de apreender
possa servir de instrumento para o conhecimento do porvir, pois
de maneira independente o passado que é particularmente de
esse só toma forma quando tem lugar (aliás, é bem pouco desejável
seu gost o, e que aí esteja a font e de uma certa felicidade .474
conhecer o porvir, visto que a vontade só pode se desenvolver quando vive e age espontaneam ente). N o fiando, n em sequer é certo
III
que o estudo do passado contribua para compreender o presente O sentime nto de inatualidade de
em tod o caso, ele recusa redu zir a re flex ão histórica a essa única
Burckhar dt se alimenta de
tarefa. Mas considera que a contemplação histórica constitui uma
uma análise política extrem ame nte precisa .475A inda muito jovem ,
forma de con hec ime nto pessoal que ajud a a viv er: “ Ela representa
tinha partilhado a convicção de Leopold von Ranke de que a paz
nossa liberdade de espírito em m eio à imensa obr igaç ão das coisas
de 1815 devia garantir um equilíbrio internacional duradouro: A
e ao imenso impé rio das necessidades” .411 Ain da que não penetre a essência das coisas, ela pe rm ite qu e no s to m em os mais sábios
revolução fora declarada terminada, e a monarquia constitucional parecialhe uma b oa m edia ção entre o antigo e o porvir. 476Mas, após
(donde a evocação do R ei Lear: “ Só a maturidade
a guerra do Sonderburd,
que maneira? Transformando
conta” .472 De
a mem ória em saber: “ Nosso espínto
deve incorporar as lembranças que deixa em nós sua experiência do passado. O que foi outrora alegria o u d or d ev e se transformar em conhecimento,
com o na vida d e cada um de nós” .43E por e ssa
razão, com o escreve justamente a Nietz sch e, que a história é
que pôs a Suíça a fogo e sangue em 1845,
e após os tumultos que abalaram tantas capitais europeias três anos mais tarde, essa certez a c om eç ou a claudicar: os pequeno s Estados “não são os únicos a se sentirem menos seguros do que nunca; ao longo de quarenta e quatro anos de paz, mesmo os grandes jamais depuseram as armas e devoraram antecipadamente o dinheiro das
[...] uma maténa propedêutica: eu devia fornecer às pessoas a
gerações futuras, co m o ú nico fim de se impedirem reciprocamente
ossatura particular de que não podemos prescindir se queremos
de crescer".4
Segu ndo toda probabilidade, os
três decénios, em
que as coisas fiquem de pé. Fiz tudo o que estava em meu poder para tormálas de algum modo num aprendizado do passado de qualquer natureza que seja ou pelo menos para
despertar
nelas o
"Jacob
Burckh ardt, Bn efe , op. a t t. V, p. 223, carta a Fnednch Nietzsche, 25 de fevereiro de
1874. Considerações análogas sào propostas por Ralph Waldo Emerson,
Hist oire (1841), in Essais
choisis, traduzido do inglês por Hen net te Mirab andT horens , Pans, F. Alcan, 1912, p. 126: Qual e a razão do interesse que experimentamos estudando a históna grega, suas letras, suas artes, sua
op àt., Kracauer levanu rrês caracteres do universo históneo. Em primeiro lugar, ele é formado por fatos intrinsecamente contingentes, o que impede toda previsão; está, portanto, excluída a possibilidade de associálo ao princípio determinista. Em segundo lugar, ele é potencialmente
poesia, e isso em todas as épocas, d esde a idade heróica de as cidades de Atenas e de Esparta, quatro ou somos gregos. Ser grego
Hom ero até a época que viu florescer
cinc o séculos mais tar de? A razão é que nós mesmos
é um estado pe lo qual todo hom em passa num momento dado
.
ínhnito esteve em gestação numa obscuridade long ínqua e dá para um po rvir ilimitado. E nfim,
Cf. Jòm Riisen, "Jac ob Burck hardt: P ohtical Standpoint and Historical Insigh t on the Border
cie não contém mentido determinado. Suas características se assemelham à natureza dos matenai
of PostModer nism",
Hi sto ry an d Th eo ry, 1985, 24, p. 235246; Richard F. Sigurdson, "Jacob er” , The Revieu*of Polit ics, 1990, 52, 3, p. a Theorist of Modemity: R eading The Civiliza-
que o tecem. Em outros termos, o conteúdo do mundo históneo remete à vida em sua plemnidf,
Burckhardt; Th e Cultural
como a vivemos com umente, dia após dia. Para afirm ar seus direit os, a história deve aceitar estar
417440; Roberta Gam
suspendida a uma altura muito menor que aquela das ciências da natureza, da filosofia da histona
íwn of the Renaissance in Ital
ou da arte. Ela ocupa um lugar médio, híbndo, que toca a vida cotidiana, marcado pelo
Development ofjacob Burckhardt’s Early Polirical Thought"
precário, indeterminado e cambiante.
3P 425436; Lionel Gossman, “Jacob Burckha
Jacob Burckhar dt, Considéraíions sur 1'histoire du monde, op. cit., ' Ibid . p. 296.
Ibid .. p 4(1. Sobre o trabalho da Memória, cf. Edinons du Seuil. 2000.
Paul Ric oeu r,
p. 4041.
y”, Sociological Theory
, 1990, VIII, 1, p. 48 57; John R. Hinde, " Th e
Jo ur na l o f Hist ory ofl de as, 1992, 53,
rdt: Cold W ar Liber al?”.
The Journal of Modem
Histo ry, 2002, 74, 3 , p. 538572. Cf. Leopol d von R anke,
La Mé mo ire , l'hi stoi re, 1'oubh. P»ns.
Histonan as Political Think
er, "Jacob Burckhardt as
Uber dte Restauration in Frankreich,
50, Leipzig, 1887, p. 9 . Jacob Burckhardt,
Fragments hisioriques
, p. 59.
in Sammtlic he W erke , op. cit., vol. 49-
O
PEQUENO X -
D* HOGUAflA A HISTÓRIA
O HOMEM PATCXÒGtCO
Co m o tud o isso terminará? O q ue será, no porvir, do progresso
aparência pacíficos, que vão de 1815a 1848, não foram mais que um “interm édio no grande drama” : “S abemos que é uma úni ca e
de 1830? Que arte e que literatura poderão resistir numa época tão
mesma tempestade que tomou a humanidade a partir de 1789 e que
agitada e precária? “ A decisão final só p ode surgir das profundezas da
continua a nos arrebatar” .478 A inq uie tud e cre sce nos anos 186 0.
alma humana. Quanto tempo o otimismo, marcado hoje pelo sentido
Em razão, primeiramente, do conflito austroprussiano:
do ganho e do poder, conseguirá se manter ainda? Ou, como poderia
N o céu da metade da Europa jun tam se som brias nuvens, presságios das violências por vir. O filisteu se sente isolado e está apavorado quando não pertence a um Estado de certa envergadura que possa lhe prometer, além da segurança, um serviço notumo de trens e todo o conforto imaginável. Seus fi lhos, provavelmen te, podem mesmo m orrer n um lazareto militar, se m que ele se indigne.479
fazêlo crer a filosofia otimista atual, produzirseá uma mudança geral de nossa maneira de pensar, semelhante àquela que se realizou nos séculos III e I V de nossa era?”41*2 C om o te mpo , um pessimismo lúcido toma co nta dele: “ E possível que advenham tempos d
e
terror e de profu nda miséria” 4"’ U m pessimis mo que permite a Burckhardt ele que nega co m todas suas forças que o historiador esteja em co ndi ções de pressentir o por vir formular certas profecias
Depois vem a guerra francoprussiana e a fundação do Reich ale-
estupeficantes. Com pr ee nd e qu e a expansão colonial provocará uma mão. N o fim de 1870, escreve:
guerra das raças: “ Qu an to m ais rapid amen te a terra for ocupad a pela
Repensar ei durante toda min ha vid a nesse fim d e ano! E minhas vicissitudes pessoais não terão aí mais que um papel menor. Os dois grandes povos, emblemas da civilização atual da Europa continental , estão col ocand o sistematicamente em pedaços toda sua cultura, e o que suscitava no indivíduo prazer e interesse, antes de julho de 1870, não surtirá, na maior parte dos casos, nenhum efeito sobre ele em 1871 mas será um for mi dáv el espetáculo se em seguida, entre tantas dores, algu ma coisa de no vo vir a luz.4*"
raça branca, mais rápido explodirá em seguida a luta entre os diferentes povos que a co m põ em ” .484P rofundamente hostil ao Groflstaat ou
Mach tstaa t (Goethe e Schiller não teriam sido possíveis na Alemanha de Bismarck), prevê uma violenta onda autoritária: Os povos imaginam que, se toda a potência do Estado estivesse em suas mãos, poderiam empregála em instaurar uma vida nova. Mas, no intervalo, há lugar para uma longa servidão voluntária sob a condução de tal ou tal chefe ou usurpador; não se crê mais nos princípios, mas sim, de tempos em tempos, num salvador.
E a Comuna de Pans que acaba de arrebatar suas ilusões, varrendo todo conceito de autoridade:
Incessantemente apresentamse novas possibilidades de despoSim, o p etróleo nos subterrâneos do Lou vre e as chamas dos outros
tismo que se exer cem muito tempo sobre povos extenuad os.4"5
edifícios incendiados são também a expressão do que o filósofo
Enfim, ele capta a lógica particular do terror moderno que, sob o
[Arthur Schopenhauer] chama o qucrer-viuer,querer assim causar tanta impressão no m undo é a última vo ntade dos demónios loucos
pretexto da ameaça exterior, transforma o adversário em inimigo
funosos; [...] aqueles que encenaram estes acontecimentos sabiam
c visa a seu aniqu ilame nto (“ não dev em sob reviver nem filhos
todos ler e escrever, e mesmo redigir artigos de jornal e outros
nem herdeiros: colla biscia muore II veleno*Sb")
com base em critérios
géneros de escritos. E aqueles que na Alemanha poderiam ter em mente coisas semelhantescertamente não são menos “ instruídos .
19471992, vol.
V II ,
p. 67. Sobre a influência de Schopenhauer,
ve r
a análise (bastante severa) de Hayden
White, Metah istory, BalomoreL ondre s, John Hopkins Urav ersity Press, 1973, parte II, cap. 6 . ' ' Ibid ., p 198. CL Maunzio Ghelardi. "Ja storia, 1997, XX XV III, p. 546.
cob Burckhardt : 'L epoca delia R
^ Jacob Burckhardt. Bnef e, op. u , t. IV, p. 238, carta a Fmdrich Thtodor Visclier, ^
ivolu zione '”, m
Sludi
17 de fevereiro de 1867.
btd., t. V, p 118119, carta a Fnednch von Pr een, 31 de dez em bro de 1870. Ibi d. t V, p. 129130, cana a Fnednch von Preen, 2 de julho de 1871. Sobre a importância do penodo c 1867 e 1872, d. W emer K aegi .Jacob Burckhardt, Eine Biographie.
BasileiaSttutgait, Schwabe.
Jacob Burckhardt,
Considéraíions sur l*histoire du monde, op. cit.,
Jacob Burckhardt,
Fragments historiques, op.
rir., p. 197.
“ * IM -, p. 62. Ele se refere a Eduard von Hartmann.
Philosophie de
alemão por Desiré Nolen, Paris. G. Ballière. 1877.
Jacob Burckhardt,
Fragments historiques, op. cit.,
" Com 3 cob ra, morr e o veneno. (N
.T.).
p. 233234.
p. 194.
l inconscient (1871). traduzido do
O PEQUENO * - D* BIOGRAFIA à HISTORIA
O HOMEM PATOLÓGICO
objetivos : “ Exterm inams e os adversários p or cate gorias escolhidas em virtude de princípios gerais; comparados a essas execuções pe-
exalta as obras de Delia Robia, de Benozzo Gozzoli, Ghirlandaio e
riódicas e que se repetirão indefinidamente, os maiores massacres
pintura da existência, que desvela as expressões etemas
em massa, anónimos e às cegas, têm pouca importância, porque
mais do que as manifestações temporárias (
sào exce pcio nais ” .487
Rubens. É a seus olhos sobretudo a arte de Rafael, qualificada de
(Ewigungen)
Z ei tu ng en ): “ Em suas
Madonas e seus M en in os Jesus, é a mulher e o menino que Rafa-
Essas apreciações políticas implicam todas uma crítica intran-
el revela, pois sabe depreender do acidental o característico e do
sigente do Est ado mod em o: a violên cia “ é sem d úvida sem pre o
efémer o o e tern o” .489 N o plano h istórico, afi rma que a verdade ira
seu princípio inicial. [...] Muitas vezes mesmo, o Estado não foi
atividade não reside nos acontecimentos, mas nas intuições e nos
mais que uma simples sistematização da fo rça ” . Burckhardt rec usa
pensamentos que estão em obra nos acontecimentos. Explicitao
radicalmente a ideia, proposta p or H eg el e esposada p or numerosos
numa longa carta endereçada a Friedrich von Preen no último
historiadores alemães que c on ceb iam o Estado co m o a mais alta
dia de 1870: “ O que sobre viverá d eve ter em si uma boa dose de
expressão ética:
conteúdo válido para todos os tempos. [...] Enquanto professor de
nào pode e não deve ser senão da alçada da sociedade, é uma
históna, deime conta de um fenómeno bastante estranho: a perda súbita de valor de todos os ‘acontecimentos’ puros e simples do
anomalia ou uma presunção filosóficoburocrática [...]. O do-
passado” .490 E o d eclar ará ain da p or ocasi ão de seu curso sobre a
mínio da moral é essencialmente diferente daquele do Estado.
civilização grega: “ O que é desejado e press uposto tem por tanto
[...] O Estado conservará tan to m elh or sua integridade n a me-
tanta importância quanto o que acontece, a maneira de ver, tanta
dida em que per mane cer co nv en cid o d e que, por sua natureza,
importância quanto
O desejo do Estado de realizar ele própno a moralidade, o que
e talvez mesmo em razão de suas srcens essenciais, é antes de tudo uma institu ição nascida so b o im pé no da necessidade.48"
um ato qu alquer” .491 N o lugar de par tir em
busca de milhares de ações, frequentemente incoerentes, o histo nador deve fazer e me rgir os pensamentos que teste munham a continuidade e a persistência do espírito humano. Isso vale tanto mais
IV
a pena visto que o pensam ento encerra bem mais verdade do que
Quase todas as escolhas histo nográ ficas de Burckh ardt pod em ser compreendidas à luz de suas reflexões inatuais. Assim, em primeiro lugar, o privilégio que atnbui à históna cultural. Numa época caracterizada pelo provisório e em que triunfam os aggiomamentos, Burckhardt sublinha mais de uma vez seu fraco interesse p elos acontecimen tos. No plano artístico, cndca os excessos dramáticos de Bemini e de Tintoreto,
a ação: “ A história da civilizaçã o tem o pr im um gr ad um cer titu din is, pois ela vê numa medida bastante ampla aquilo que as fontes e os monumentos nos ensinam de maneira fortuita e desinteressada, senão involuntána, inconsc iente e por vezes m esmo atr avés de ficçõ es .4■ E daí que pr oce de a sensibilidad e particular de Burckhardt ao s mitos que alimentaram o passado: embora desprovidos de realidade, não são menos autênticos e representam extraordinária possibilidade de apreender a vida espiritual do passado.
Jacob Burckhard t, Considéraíions sur 1'histoire du monde, op. nt.,
p. 207.
Ibid.. p. 58, 65. Amaldo M omig liano prop õe interessantes obse rvaçõe s sobre a autude cnQC de Burckhardt para com a tendência despótica e demagógica da modernidade in
dizionano storico. J. Burckhardt e la parola "cesarismo"
(1962), hoje in
Contributia
Sui fondamenti delia stona
Ton no. 1984. p 38939 2; W em er Kae gi, “Jac ob Bur ckh ard t e g li in m dei cesansmo modemo
Ri ns ta storua aaha na, 1964, LX X VI . p 150171. N o que co nce rne ao dissen so de Burckhardi com a historiografia alem ã, cf. Hugh T revo rR ope r, “Jacob Burckhardt”
icademy, 1985. 711,p. 359378 (Master
Mind Lecture, 11 de dez
,
Procetdmp ofthe Bnt*
emb ro de 1984).
““ Karl Lõwith, J afoí) Bu rck har dt, op. d t. , p. 9 9 .
“ Jacob Burckhardt,
Bri efe. op d t . t V p 119120, carta a Friednch von Preen. 31
de dezembro
de 1870.
" Jacob Burckhardt, Mugle r, Vevey, 1,2Ibid.. p. 13.
Hi sto ire de la dv ili sat ion grec que (19291934), Hditions de 1 ’Aire, 2002, vol.
I, p. 13.
169
traduzido
do alemão por
Fredenc
O
PEQUENO X-
D* NOGdAFIA À HISTÓRIA
O HOMEM PATOIÓGICO
Sua polemica contra a noção de progresso, a ilusão dos anos 18301848, é também alimentada por suas reflexões inatuais. Quào
Seja como for, o aperfeiçoamento técnico não tem nada a ver
ridícula e pretensiosa é a teona da perfectibilidade crescente do es
com o progr esso intelectua l: “ Um a v ez que a divisã o do trabalh o traz o nsco de estreitar cada vez mais o campo do conhecimento
pínto, que reputa o presente s up eno r ao passado! Burck hardt ataca, especialmente, a filosofia da históna qu e ele julg a d oen te de egonsmo
individual; [...] bem poderia acontecer que a cultura se estatelasse
(ela considera nossa época c om o a conc lusã o de todo s os tempos) e
um dia por ter da do uma rasteira em si mesma” .497 E bem menos ainda com o progresso moral:
de cinismo (ela ignora o dilaceramento mudo daqueles que foram Pois o espínto não esperou os anos para conhecer a plenitude! Quanto à enquete sobre os moral progresses,deixamola de bom grado a Buckle que se espanta com ingenuidade de não constatá los. uma vez que o progresso moral não poderia se aplicar a um período, mas somente à vida de um indivíduo. Já na Antiguidade, acontecia de um homem sacrificar sua vida por outrem; não consegu imos fazer m elhor do que isso hoje em dia.498
quebrados). E, entre os histonadores, ataca Eme st Ren an , que avalia a Idade Média a partir da humanidade
e do progresso da civilização:
Mas é preciso admitir ao menos que na Idade Média viviase sem guerras nacionais constantes ou constantemente ameaçadoras, sem indústria escravizando as massas e acarretando uma concorrência mortal, sem ódio contra a pobreza de maneira inevitável (se se tivesse explorado então o carvão como se faz agora, o nde estaríamos nós? ).41'3
Sem dúvida, não existiríamos mais. Todas as periodizações fun-
Diferentemente de H eg el, ou contra ele, Burckhardt co nsidera que o êxito históneo não en cerra em si nada de louvável nem de necessário: “ O ho me m mais forte não é necessariamente o mel hor ” .499
dadas em conceitos tais co m o o d e a pe rfeiç oam en to ou de atraso
Por vezes, por razões bem mistenosas, o mal é compensado por
lhe parecem ab surdas: “ Há espí ritos i mp aci en tes para os quais a história não an da suficiente ment e r áp ido ” .494 As lentidões da Ida-
alguma coisa de vital (por exemplo, uma epidemia pode resultar num crescimento da população). Mas não é verdadeiro de modo
de Média não foram, no fim das contas, salutares? A exemplo de
algum que o ato da destruição provoque necessanamente um re-
Ranke, Burckhardt estima que cada época existiu, ao menos no
juve nesc imen to, “ e os gran des destr uidor es da vida perm anec em
início, principalmente para s i mesma, “ mais do que em relação
para nós um en igm a” :500 em face de Áti la, de Gengis Khan ou de
a nós” .41''' Don de a necessidade d e ace itar, c om o recomendava
Tamerlão, fic am os sem palavras. D e qual quer maneira, ainda que o mal fosse compe nsa do p or um bem , a compens ação jamais poderia
Herde r, o car áter relat ivo do julga m ento histórico: Para muitas pessoas, os gregos são bárbaros porque tinham escravos e exterminavam seus adversários políticos. Os romanos têm a mesma reputação, se mais não fosse por causa das vidas humanas que sacrificavam no circo e nos anfiteatros. A Idade Média, por sua vez, é bárbara também, mas por razoes diferentes, que são as perseguições religiosas e os massacres de
ser uma reparação pelos sofrimentos infinitos que foram infligidos: Tod a vid a in di vi du al ve rd ad ei ra destr uída prem atur ame nte é absolutamente insubstituível, mesmo por outra existência igualmente bem suc edid a” .501 Os hircanianos, os arian os, os sogdianos, os gedrosianos e todos os outros povos vencidos por Alexandre, o Grande, em guerras sanguinárias merecem nossa compaixão. Mas
hereges. O e mp reg o dessa palavra é fina lme nte uma questão de sentimento pessoal: considero, de minha parte, barbárie colocar os pássaros em gaiolas.496
Jacob Burckhardt,
Considéraíions sur 1'histoirc du monde, op. dl.,
p. 93.
Fragments historiques, p. 27. op. dt.,
_ p. 293. A críbca da divinização Considéraíions inactue lles, op. a t., p.
*" W -. p. 282283 "®W .p. 28 8. Jacob Burckhardt, Fragments histonques, op. at "“ Ibid., p. 148.
Ibid ., ** Ibid..
p.
p 3031
Jacob Burckhardt, Jacob Burckhardt, u /3? consumado
61
^
p. 4.
Considéraíions sur 1'hisloirr du monde, op. dt., aparece também em
admiração pela
Fnednc h Nietzsche.
‘potê ncia da históna' praticamente
Pura admiração pelo sucesso e conduz à idolatna do real".
170
171
se transfo rma a cada instant e numa
O
PEQUENO
x - Da
O HOMEM PATOIÔGICO biografia
K
história
V
uma compaixão bem distante da idealiz ação : “ Po de ser também que, se tivesse subsistido mais tempo, a parte perdedora não nos parecesse mais merecer simpatia: um povo aniquilado muito cedo [...] produz o mesmo e feito que homen s d e v alor mortos jovens” .502 À históna do espírito, reivindicada pela filosofia da história,
Professor extraordinário por sua paixão e sua generosidade na cátedra que ocupava na Universidade de Basileia, Burckhardt não fornece, entretanto, nenhuma indicação precisa de natureza metodológica.506 A razão é simples: não acredita nisso . N ão acredita
que propõe uma representação geral da evolução do mundo im-
que exista um método histórico universal válido e é com orgulho
pregnada de otimismo, Burckhardt opõe a história do homem,
que assume sua incredulidade. Para ele, a história é, ou deveria ser,
uma históna concreta, enraizada na existência, carregada de con-
uma expenência pessoal:
tradições, de apor ias, de parad oxos: “ Nossa própria vida” . Para
O que é impo rtant e a nossos olhos, somos os únicos a considerálo
ele, assim como para Sõren Kierkegaard, o centro permanente
como tal. Nenhuma obra de referência no mundo, com suas
da história não é o homem providencial da filosofia da história,
citações, pode substituir o laço orgânico que uma afirmação
nem mesmo essa impostura romântica que é o herói, mas antes o homem mortal, que sofre normalmente, o indivíduo “in-
encontrada por nós mesmos estabelece com nossa intuição e nossa atenção, de m aneira qu e se forma uma verdadeira rique za
dependente” , livre ainda que co agi do , q ue sabe e reconhece s ua
para nosso e spír ito .507
dependência para com os acontecimentos gerais do mundo: “O homem com seus sofriment os, suas ambiç ões e suas obras, tal como foi, é e será sempre. Desta forma, nossas considerações terão, até certo ponto, um carát er pat oló gic o” .503 Em març o de 1856, numa carta endereçada ao jo ve m Alb ert Bren ner, evo ca a conotação ética da históna patológica. Após ter qualificado a filosofia hege
filho de seu mestre Franz, a quem dedicou
O cicerone) , escolher um
tema que tenha “ uma relação de afinidade e de familiandade com a parte mais íntima” de si mesmo. Nessa carta de 30 de março de 1870, como em diversas outras, Burckhardt volta com insistência a certas recom end açõe s. A prim eira delas concern e à defini ção da
liana de ponta de estoque, esclarece: “ Se v oc ê q uer perm anecer poeta, deve conse guir amar de ma neir a rea lm en te pessoal: Io os seres humanos, 2o os fenómenos singulares f
A esse título, é importante, como escreve a Bemhard Kluger (o
einzelne Erscheinung]
históna como fornia de contemplação liberada de todo e qualquer desígnio. Hostil à ideia de
um co nh ecim ento ligado a uma vontade
de potência, Burck hardt exalta a gratuidade da histó ria que não deve
da natureza, da vida e da hist ória” .504 D ois meses mais tarde , afi-
ser útil à ação ou, mais exatamente, que, para ser verdadeiramente
nará seu conselho. Para se aproximar do passado, é preciso repetir
útil, não deve colocarse a questão de sua utilidade: somente sob
mentalmente três f rases: ‘“ E eu n o fu nd o não sou mais que uma
essa condição é possível abnr uma brecha no presente. Em outros
simples gota d’água em relação à potên
termos, o histonador não deve perder o contato com a vida e se
cia do mu ndo exterior , e
tudo isso não tem de modo algum o mesmo peso que um grama
encerrar em sua torre de marfim, mas tampouco deve ceder às exi-
de sensibilidade e de contemplação autêntica’, ‘e a
gências do presente e escrever uma
entim é de qualquer forma o
personalidade
que existe de mais a lto’ ” .505
Tendenzgeschichte
:
Divergimos bastante, você e eu, sobre uma coisa: você procura um tema que goze tanto quanto possível do favor da época e Jacob Burckhardt, Considéraíions sur 1'histoire du monde, op. cit., Ibid . p. 35. Burckhardt emprega o termo
p. 292.
pa tho log isc h, distinguindoo daquele de
patheti sth, p
sublinhar a distância que o separa de Hegel.
Jacob Burckhardt,
” Cf. KarlJ. Wemtiaub, Visio ns ofCultu
Bne je, op. a t. . t. III, p. 248, carta a Albert Brenner, 16
Ibid , t III, P 250. carta a Alben Brenner,
24 de maio de
1856.
de março de
l^ 6
Jacob Burckhardt,
n, ChicagoLondres, Chicago Uraveraty Press, 1966, p. 115160.
Hi sto ire de la civ ilis atio n gr ecq ue, op. cit-, p. 2 1 .
O
PEQUENO X -
D*
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
O HOMEM PATOLÓGICO
que ande no mesmo passo que os humores do momento. Em
do que restos informes, e a alegria que causam pura loucura.
sua idade também eu pensava da mesma maneira, depois nào foi mais assim, felizmente para minha salvação. Antes de tudo,
a reconstituir, e não ex igir uma impressão imediata sobre re stos
no caminho de semelhantes temas encontrase sempre uma quantidade de pessoas superficiais e prontas a tudo, que chegam
Deve, à vista de um fragmento, adivinhar o conjunto, aprender cuja beleza só se com pleta pela reflexã o.510
antes de nós, exploram o m om ent o e tiram ao que fazemo s o
A constatação é ainda mais verdadeira quando não buscamos apenas os
ar e a luz; ou então pode acontecer que cheguemos de qual-
fàtos, mas també m os pens amentos do passado. C om o esc reve em 1887,
quer modo tarde demais, quando a aprovação e os humores do mom ento já se voltaram para outra coisa. Pod e acontecer, pe lo
[...] em históna da arte, min ha tarefa pessoal, parece me, consiste
contrário, que recebamos imprevisíveis aplausos por um tema
em dar conta da imaginação de épocas passadas, de dizer que
que ninguém cogitara e que tem a capacidade de transportar o
tipo de visão do mundo tiveram este ou aquele mestre e seus
leitor para uma região diferen te daquela que ele já conhecia.508
alunos. Certos pesquisadores ilustram mais os meios empregados na arte do passado, enquanto eu me inclino mais para as
Da contemplação e pela contemplação nasce a imaginação.
int ençõ es qu e estavam na src em dessa arte.511
Tratase de um po nt o fun dam ent al. Ass im co m o W ilh elm von Em vez de se conten tar em descrever o passado, Burckhardt s e
Humboldt, Burckhardt também sublinha a importância da imagi-
propõe, então , a tom ar vis ível ( anschaulich ) a história em curso de se
nação (Phantasie ) histónea: Durante toda minha vida
escreve já em 1842 jamais pensei
filosoficamente e jamais tive pensamento que não estivesse ligado a alguma coisa de exterior. Quando minha reflexão nào é engatada pela intuição (Anschauung), permaneço improdutivo. Por intuição, entendo igualmente a intuição espiritual, como por exemplo a intuição histórica que deriva da impressão suscitada pelas fontes. O que r econst ruo historicamen te não é o fruto da crítica e da especulação, mas antes da imaginação que aspira a preenc her as lacunas pela in tuiçã o. A históna é para mim ainda, em grande parte, poesia; é para mim uma sequência das
fazer, a colocar em imagens o passado ou, mais exatamente, a vida espiritual do passado , de m od o a estimular a imagina ção do le itor que poderá, em seguida, prosseguir em sua elaboraç ão do passado no presente. Co m o isso? Graças a um labor e mo tivo bastante com plexo, feito de impregnação, de estupefação (a natureza misteriosa da viagem ao passado não cessa de ser recordada) e de afastamento. Esse labor acompan ha o histo nad or ao lon go de tod o seu percurso: da reconstrução (pois as fontes não são um lugar de descoberta de fatos, mas um testemun ho) à narração, passa ndo pela interpretação. D ond e
mais belas composições pictóricas. Nã o posso, por conseguinte, crer num pon to de o bser vaçã o a p rioreste i; pr ocede do espírito do
a metáfora da viagem, por ocasião da qual aprendemos a abarcar a
mundo e não do h om em da história.5 09
instante em que o es pínto h uman o se fez etem o. U m v aivém c ontínuo
paisagem num só olhar e a perceber nas formas em movimento o
O que vale para os monumentos vale igualmente para as fontes
que nos permite sair do presente, bordejar emotivamente o passado,
históricas. Num e noutro caso, temos sempre que lidar com ruínas, com o fragmentário e o relativo, cuja forma srcinária podemos
mas também respeitar sua irredutível estranheza.
apenas imaginar;
VI
O observador deve dese nvo lver e m si mesmo essa faculdade de
A imaginação aproxima o historiador do artista. Numa longa
restauração sem a qual as ruínas antigas não lhe parecem mais
carta a Karl Fresenius (um dos membros do círculo poético dos
Bne fe. op. àt „ t. V, p. 74-75, cart a a Bem ard Kluger. 1, p. 204, carta a Willibald Beyschlag, 14 de j unho de 1842.
Jacob Burckhardt, •
174
30 de março de
1870.
Jacob Burckhardt, Jacob Burckhardt,
Le cicerone, op. cit., Briefe, op. at.,
t. I, p.
13 .
t. VI, p. 165, carta a Robert Griininger, 10 de agosto
175
de 1877.
O
PEQUENO
x - Da biografia
A história
O HOMEM PAT OIÓGICO
Ma ikà ife r), de 19 de jun ho d e 1842, Burc khar dt evo ca a históna como um processo de metamorfose pictórica:
O trabalho intelectual não deve
querer ser um simpl es gozo.
To da trad ição aut êntic a p are ce à prim eira vista abo rrec ida po rque e na medida em que nos é estranha. Filha de certa época,
Considerame c om o um artista que aprende, qu e aspira já
reflete seus pontos de vista e seus i nteresses sem nenhuma consi-
que enquanto isso também eu vivo de imagens e de intuição
deração para conosco, enquanto os falsos produtos modernos são
e pensa na tristeza que po r vezes opr im e durante long os
feitos à nossa medida, vale dizer, embelezados e complacentes
momentos os pintores, apenas porque estes não conseguem dar
co m o as pseu doantig uidad es costuma m ser.513
uma forma à quilo q ue se elev a d e suas almas poderás assim te explic ar por que também eu fic o triste de tem pos em tempos,
VII
a despeito de minha natureza, de resto tão alegre.
Mas a imaginação de que fala Burckhardt não procede em nada da ficção poética:
Convencido de que só a imaginação pode lançar uma ponte entre o presente e o passado, Burckhardt atnbui um papel de primeiro plano à escritura histónea:
A história é e permanece para num poesia no mais alto grau; bem entendido, não a considero de maneira, digamos, româ n
Fiz um voto: escrever durante toda minha vida num estilo legível
ticofantásti ca, o qu e não levaria a nada, mas com o um mara-
e perseguir sobretudo o interessante, mais do que o acabamento
vilhoso processo de metamorfose (
árido dos fatos. [...] Falase sempre de uma arte da hist oriografia e
Vcrpuppungen ) e de inédito,
um desvelamento do espírito eternamente novo. Paro na soleira
alguns creem terem feito o bastante quando substituem a inextri-
do mu ndo e es tendo os braços para a src em de todas as coisas,
cável frase schlosseriana por uma rebarbativajustaposição dosJacta.
e nisso a história é para num poesia pura de que podemos nos
Não, boa gente, tratase de uma seleção dos jac ta, de escolher o
apoderar pela cont emp laçã o.512
que pode interessar o hom em . [...] Eu, com meu trabalho, cai no momento certo; mesmo o público se dirige de novo bem mais
Reconhecer as afinidades que existem entre a história e a
do q ue antes à história e jamais
literatura não significa que seja preciso con fun dir ou assimilar os dois
objetivos , e sob retud o nos maiores deles.5 14
géneros. Longe disso, as trocas entre um e outro só podem ter lugar a partir de uma delimitação b em precisa, pois, co m o é recordado em O cicerone, cada género deve v ive r de acor do c om as próprias necessidades essenciais. Incansável partidário (também no plano estético) da autohmitação voluntária, Burckhardt estabelece duas distinções precisas em relação ao romance. Em primeiro lugar, a história está
teria posto seu olhar fora dela se
nossos historiadores não tivessem perdido a confiança em seus
Eis porque não gosta m uit o do s fil ól og os .515 E aprecia certos historiadores franceses (Augu stin Th ie rry e François G uiz ot, e ntre outros) e admira os historiadores florentinos da Idade Média (especialmente Giovanni Villani), verdadeiros mestres da linguagem falada, direta,
ligada à verdade factual: o historiador lança sobre a realidade um olhar apenas arbitráno, já que efetua uma seleção subjetiva do material e
Jicob Burckhardt, Considéraíions sur 1’hisíoire du monde, op. cit.,
tenta imaginar as razões que inspiram as ações d o ho me m. Al ém disso, ela não busca domestica r o passado (c om o o fàz o r oma nce histórico
^aàter Scott:
1 wpnmc nesse sentido em
na
p. 48. Hippolyte Taine também
L ’histo ire de la liíí éra tur e ang lais e, op. ríf, t. IV, p. 302, a propósito de
Ele para no limiar da alma e n o vestíb ulo da história, só escolhe, na
Renascença
Média, o conv enie nte e o agradável, apaga a linguagem ingénua, a sensualidade de
freada,t ferocidade bestial . N o fim de tudo, seus person agens, qualquer que seja o século a que os
oferecendo uma imagem falsamente familiar e atrativa do passado).
traflsporta, sào seus vizinhos, taíendeiros finórios, cavalheiros enluvados, senhontas casadoiras, todos
Conserva dele, ao contrário, toda alteridade:
** * ou menos burgueses, vale di zer, posicio nados , situados por sua educação e seu caráter a cem léguas ^
loucos voluptuosos da Rena scen ça ou dos brutos heroicos e das bestas ferozes da Idade Média . Burckhardt, Brie fe, op. cit ., t. I, p. 197, carta a Gottfhed Kinkel, 21 de março de 1842.
. t I. p. 208, carta a Karl Fresenius. 19 de ju nh o de 1842.
' KjrlJ°ach im Weintraub. "Jacob Burckhardt: Th ' ,l" primavera de 1988 , p. 273282.
177
e Histonan among the Philologist".
Am eri can
O
D*
PEQUENO X-
desprovida de ênfase, da vida
BIOGRAFIA A HISTÔ81A
O HOMEM PATOL ÓGICO
prática. Suas crónica s são “ esplêndi
imperadores, reis, bispos, dinastias inteiras (os Aragões, os Médi cis, os
das, tão ncas de vida e de re lev o” ; em comp araçã o, “ com o tudo
Viscontis, os Sforzas, os Estes, aí compreendidas suas descendências
que escrevem os humanistas [...] parece afetado e convenciona] ao
ilegítimas, etc.), uma multidão de condottieri (dos Malatestas de Rimini
lado destes belos trabalhos! Que abismo entre Leonardo Aretino e Po ggio e esses ilustres cronistas de Flo ren ça! ” 516
aos Baglionis de Perúgia), comerciantes, humanistas, doges, cardeais, pintores, escultores, arquitetos, artistas e conspiradores. Nenhum deles tem direito a uma biografia desenvolvida, mas todos recebem uma
Sua atenção para com o individual procede igualmente dessas anotações estilísticas. Está aí um ponto extremamente complexo
conotação histónea e humana: de Júlio II, o homem que salvou o
pois, em se tratando de Burckhardt, a distinção entre ética e esté-
papado, ao usurpador Ezzelino da Romano, autor de crimes mais
tica não tem sentido. Basta pensar em seus comentários artísticos
atrozes do que os de César Borgia; de Savonarola, que esteve na ori-
A principal qualidade de R afae l “ não era de natureza estéti ca e sim
gem de uma mudança radical que só pode ser comparada à convulsão
moral: quero dizer o sentimento de honra e a firme vontade de
sobrevinda após ele com Lute ro, ao tiraninho Pandolfo Petrucci,
atingir aquilo que considerava o ideal sup remo da bele za” .517Quanto
cujo passatempo favorito consistia em fazer rolar blocos de pedra do
ao Laocoonte, “ o pon to mais elevad o é a luta contra a dor [...]. A moderação na dor não tem apenas uma base estética, mas uma razão
alto do mon te Ami ata. Um a após outra, essas figuras singulares dão à narração uma extr aod inár ia tensão dramática, que contnb ui para
moral”.518O mesmo acontece co m o h om em patoló gico: para além
expnmir a contradição mais íntima e profunda da experiência vivida
do sentido ét ico, de que já falei, ele
tem um e vide nte valor es tético,
do Renascimento: a descoberta das faculdades individuais, que, por
pois permite oferec er mais vivacid ade e m ov im en to à cena histónea.
certo, deu lugar ao florescimento artístico e literário do Renascimento,
Essas exigências se encontram novamente em
A civiliz ação do
Re nas cim ent o ital ian o, uma das poucas obras de Burckhardt publica em vida. Seu projeto é conhecido e foi muitas vezes debatido, nuto me, por conseguinte, a recordar que, para além do tema (o enascimento), o livro apresenta duas novidades importantes. Em primeiro lugar, a abordagem que propõe: pouco inclinado, desde mpre, a concebe r a história da arte co m o uma análise est ilístico rma . Burckhardt pretende aliar a história da arte ( Kunstgeschichte ) e st°na da cultura (Kulturgeschichté).
A segunda inova ção concerne
a de um estilo narrativo: é difícil encontrar outra obra de a da arte que pulule tanto de figuras individuais. Só na primeira ^
^ Estado considerado co m o criação de arte” , de cerca de
cem paginas), vemos desfilar mais de duzentas personagens: papas,
mas que também en cor ajo u form as desenfreadas de egotism o amoral, engendrando uma cultura decadente e corrompida. Sob certos aspectos, está aí uma escritura própria aos medalhões. Mas medalhões suigeneris, visto que cada um deles tem uma dimensão particular e porque, em vez de procurar o elogio, visam a revelar a variedade e a ambiguidade de uma época. Aliás, Burckhardt diz claramente que o importante reside na proporção das figuras em relação ao conjunto. Longe de querer privilegiar os monumentos individuais, para ele tela de fundo permanece a parte principal da composição. Certas avaliações artísticas, especialmente em O
sem reserva a Ra fae l, justa men te po r sua destreza na arte e in
iv i -
duahzar os temas hist óric os tradicionais. Desc onfia, entretan
,
tQda forma de c ul to da personalid ade. E é daí que Jaco b B urck hard t Lu P '
7■
•
Sch mit t, Paru, G on th jcr íçs r"
cicerone e e
algumas confer ência s, perm item compre ender melhor o sc ^ dessa escolha. C o m o já sublinhei, Burckhardt vota uma adm iraçao
ecorr
reticências (éticas e estéticas) em relação a Michelangc o
• ^ ReW llSSa n“ en li al lt (18 60>* traduz,do
do a ,cm io Por LoU 1S
Jaco b Burc khar dt Lr n °P a t' P Johan W olts ane Cr, P‘ 697 ‘ Con side raçõcs análogas são porpostas por M aX 'm es el W ^ o n s , op. at .. p. 69. lacoh R l i , Jacob Burc khardt, Lr cicerone, op dt .
178
Esse mestre tem um lugar extraordmino nos desnnos da O cart o do, tr* úl timos aqui sob a forma de uma potência
179
O
PEQUENO
* - D*
BIOGRAFIA
A HISTÓRIA
aqui nào de uma potência involuntária e inconsciente, como acontece muitas vezes nos grandes esforços intelectuais do século XVI. mas, ao contráno, de uma enérgica premednaçào. Parece que Michelangelo teve da arte que cna o mundo e o postula uma ideia tão sistemática quanto aquela que certos filósofos tiveram do Eu que, segundo Fichte, cna o universo.519 Por subjetividade, Burckhardt enten
de essencialmente o
CAPÍTULO VI
522 A história infinita
arbitrário
(as figuras simbólicas não são mais do que uni pretexto para os tormentos subje tivos) e a ompo tência (o artista pretende ser o cnador do m undo). A fim de aumentar a m assa e o volu m e espacia l de cada figura, os princípios de proporcionalidade (entre a parte e o todo) do classicismo arquitetural e escultural do Renascimento não são respeitados. E, paradoxalmente,
é o sentido da individualidade que
A dúv ida verdadeira tem certamen te se u lugar num mun do de que ignoramos o ini cio e o fim e cujo meio está em perpétuo movimento. Jacob Burckhardt52’
acaba sendo anulado, pois rema uma contradição espantosa entre o indivíduo, imponente não apenas em termos de tamanho, e sua existê ncia esmagada: “ Aqu ele que o co ntem pla procura em vão a linha simples, natura l, das nature zas gregas, um traço que nenhuma virtuosi dade pode substitui r” .520 U m dos exe mp los mais contun dentes, que ilustra o quanto um excesso de subjetividade pode ser
I
contraproducente, concerne às duas estátuas de escravos, hoje conservadas no Lo uvre, que dev eriam ter feito parte da tumba de Júlio • O tormento apoplético de toda uma sér
ie de homens si mples,
eroicos, musculosos que apenas se contorcem, sem poderem se mexer, que não estão livres para avançar um passo, uma ideia tirâni ca” .52'
é, em todo caso,
O requ isitó rio mais veem ent e contra esses “ animais particulares chamados heróis” , enco ntra mo lo sem dúvida a lguma em Guerra
e pa z : “ Po r mais estranha que pareça tal as serção, a dignid ade humana me diz que cada um de nós, se não é mais, certamente não é menos um home m do que o grande Nap oleã o .
Impregnadas
de uma raiva que parece por vezes não querer se extinguir, nume rosas páginas insistem na imoralidade da figura do grande homem, demasiado frequentemente explorada para excluir a possibilidade da medida do bem e do mal: aos grandes perdoase tudo, mesmo sua tuga, abrigados num a pele, abandonando seus companheiros entre as mãos do inimigo... Mas Tolstoi não se contenta em exprimir seu desgosto moral pela dupla contabilidade humana, tão comum s'” Ibid ., t. II,
p.
45 9
Uma versão reduz.da deste capítulo foi publ.cada sob por M au ™ ctcllrd^/J0'
Rm ai ss ‘“,ee Se lml ,en w de , A ul a des .\f us cu m s (18581859). ciudo
Einaudi. 1991 , p 'p V
^
R'núsdme"t0’
511 Ibid .. p. 180.
"L 'eti d ' Rafaeb" diJac
ob B urc kha rdt .
Tonno.
1histoirc" na revista "'Jacob Burckhardt, Léon Tolstoi,
Tolsto , dam le sceptic.sme de
Considéraíions sur l'histoire du monde, op. cit.,
p. 40.
La Xu en e e, la pa ix . traduz,do do russo por Bons de Schloezer, Pans, Galhmard.
1972, livro III. t. II, p. 224.
18 0
o titulo
Esprit, junho de 2005, p. 625.
181
O
PEQUENO * -
Da BIOGRAFIA
A
A HISTÓOIA
nos livros de história, que distribui os homens em heróis e seres ordinários. Toda sua obra recoloca em questão a adequação de tal critério para a com preen são do passado: “ Os a ntigos nos deixaram modelos de poemas épicos cujos heróis concentram em si todo interesse, e não chegam os ainda a com pre en de r que, para nosso tempo , uma históna desse gén ero é destitu ída de sen tido ” , lêse na segunda parte do te rceiro liv ro. 525 Aos heróis oficiais de 1812 (Barclay de Tolly, Raievsky, Er
HISTÓRIA INFINITA
Quando as tropas napoleônicas entraram em Moscou, poderiam facilmente ter mantido sua brilhante posição e impedir o saque da cidade, de maneira a reunir os víveres e as forças necessárias para enfrentar o inverno. Mas as disposições do imperador nao foram observadas, permaneceram suspensas no vazio: como os ponteiros de um mostrador de reló gio separados do mecanismo, elas giravam arbitrariamente e inutilmente, sem mover outras engrenagens. E os franceses se suicida ram assim, pisoteando , “ co m o um rebanh o sem vigilância” , o alimento que poderia têlos salvado d a morte:
molov, Flatov, Miloradovitch), sempre exaltados em verso e em prosa, opõemse homens como
Dizer que Napoleão perdeu seu exército porque quis ou por-
o pacífico Do ktu rov ou o mode sto
que era muito tolo. seria tão falso quanto dizer que Napoleão
Konovnitsine, que suportam o peso da guerra sem vacilarem. Mas
conduziu suas tropas a Moscou porque quis ou era muito in-
os pivôs invisíveis da guerra são os sargentos: E evidente que só
teligen te e genial. N um caso com o no outr o, sua ação pessoal,
nos será possível apreender as ditas leis passando por esta via e que ainda não realizamos na direção que ela nos indica a milionésima
que não tinha mais importância do que a ação pessoal de cada
parte dos esforços que envidaram os historiadores para descrever
regiam os aconte cimen tos.527
os atos dos reis, chefes de guerra e ministros, e expor as considerações que lhes inspir aram seus atos” .526 Bona parte , sím bolo por excelência da insolente pretensão de fazer história, não é mais que
um de seus soldados, coincidiu simplesmente com as leis que
Fazendo entrar na cena da históna as unidades mínimas, Tolstoi afirma que a ação procede da periferia, e não do centro.
um puro epifenómeno no seio de um processo que teria, de qual-
Enquanto o oceano da históna permanece calmo, compreende
quer jeito, seguido se u curso. C om seu olhar limitad o e feliz com
se que o admimstradorpiloto, que, em seu frágil esquife, apoia
o infortúnio dos outros, ele não é mais a prodigiosa expressão da
seu gancho no enorme barco do Estado e se move com ele, possa crer que o barco avança graças a seus esforços. Mas basta
vontade individual capaz de transformar o mundo, mas antes um
que o vento aumente, que o oceano fique agitado, arrastando
homenzinho, de sobretudo cinza, impotente e caprichoso, cuja
o barco, e já não é possível enganarse: o barco prossegue sua
única grandeza é a de crer que nada é mal para sua pessoa. Quem
com da imponente, independe nte, o gancho nao mais o atinge,
saber A guerra não teria talvez eclodido se ele tivesse aceitado re-
e o piloto passa subitamente da situação de chefe, fonte de toda
tirar suas tropas de trás do Vistula e se não tivesse ordenado a suas
energia, àquela de um pobre homem fraco e inutil.
tropas continuar adiante, mas ela certamente não teria ocorrido se todos os sargentos franceses se tivessem recusado a prolongar seu serviço. Não há nada, mas verdadeiramente nada —nem a vitória de
Longe de governar os aconteci
mentos, Alexandre e Napoleão
são escravos da históna: seus atos, “ dos quais depend ia, aparentemente, que os acontecimentos tivessem lugar ou não, e
Austerlitz, nem o sacrifício de 80.000 homens em Borodino —que seja exclusivamente imputável a Napoleão, tudo é o produto da
pouco livres quanto o ato de qualquer
ati\ idade de centenas de milhares de homens que tomaram parte
guerra desig nado pela sorte ou recrutado .
na ação comum. A derrota final do exército francês é a prova disso. 527 Ibid., livro IV, t. II, p. 479. * * Ibid.,
livro III, t. II,
p. 189.
Ibid.,
livro III, t. II, p. 346.
Ibid.,
livro III, t. II,
p. 271.
Ibid.,
livro III, t. II, p. 9.
183 182
soldado que parti p -
A *”
S29
O PEQUENO X-
Da
biograf
ia à
HISTOdlA
Assim, a guerra, que os dois imperadores creem governar, vai adiante independentemente de seus projetos, de suas ordens, sem jamais c oin cid ir co m o q ue t inham plan ejad o, mo vid a essencialmente pela iniciativa das massas. Donde o paralelo entre a ação militar e o mecanismo do relógio:
A
MISTÔdIA INFINITA
tentavam fazer o mesmo, pressionavamna, por vezes a destruíam, por vezes se uniam a ela” .532 Com a verdadeira história da campanha na Rússia, Tolstoi reverte certos lugares comuns sobre o poder. Não o caracteriza pela força física ou moral e não lhe atnbui qualidades intrínsecas, mas
Como no relógio em que o resultado do movimento das inumeráveis engrenagens nào é mais do que o movimento lento e regular dos ponteiros que indicam a hora, assim, o resultado das centenas de ações complexas desses cento e sessenta mil homens, russos e franceses, das paixões, dos desejos, dos remorsos, das humilhações, dos sofrimentos, dos elàs de orgulho, dos temores, dos entusiasmos de todos esses homens, foi unicamente a batalha de Austerlitz, a batalha dos três imperadores como a chamam, vale dizer, um ligeiro avanço do ponteiro da história universal no quadrante dodestino da humanidade.53 0
descreveo com o uma relação de dependência entre aque les que comandam e aqueles que obedecem. É uma das significações da narrativa do massacre dos quarenta ulanos. Estamos em 1812: N apoleã o acaba de transpor uma da s ponte s do Niem en, “ ensurdecido pelas aclamações incessantes que evidentemente suportava apenas porque era impossível proibir esses homens de exprimirem seu amor” . Che gad o às margens do Vilija, dá a ordem de recon hecêlo. Embora haja um vau à meia légua dali, os ulanos poloneses se lançam imediatamente na água do rio, cuja corrente é profunda e rápida:
que os indivíduos formam simples elementos intercambiáveis, ou
"Mas o frio era grande, a rapidez da corrente apavorante: os homens se agarravam uns aos outros e caiam de suas montarias. Cavalos se afogaram, homens também. Os outros nadavam segurandose seja
que a sociedade procede de um mecanismo impessoal, autománco,
em suas selas, seja na crina de seus cavalos” .533
Propondo a metáfora do relógio, Tolstoi não pretende sugerir
que eh funci ona por si mesma; quer simplesmente dizer que a his-
C om o repartir as responsabilidades desse massacre inútil? Dev es e
tória é uma obra comum, uma trama densa e inextricável de forças
imputálo ao coronel polonês cheio de zelo que, o rosto feliz e os olhos flamejantes, ordenou a seus ulanos que o seguissem? A Napoleão, que continuava a fazer os cem passos em companhia de Berthier,
múltiplas em perpétuo movimen to: “ O mo vim ent o dos povos não resulta nem do poder, nem da atividade intelectual, nem mesmo da conjunção dos dois, co m o pensam os historiadores, mas da atividade de todos os homens que tom am parte no aco nte cim ent o” .531 A vida histórica é uma esfera móvel, sem dimensões, que nasce dos choques inumeráveis entre diferentes vontades: mult idões de seres humanos, unidos e separados por laços vitais e dolorosos, ativamse, suas ações se confundem e acabam por produzir alguma coisa de único, de imprevisível, de irreparável e, muitas vezes, incompreensível. Algo que se assemelha a um ja to d água: “ E t odas essas gota s se moviam, e deslocavam e ora várias se confundiam para formar uma só, ora ma delas se di\ idindo dava nascimento a outras. Cada gota tendia
‘‘ao long o do rio e a lhe dar instruções, lançando de tempos em tempos olhares descontentes aos ulanos que se afogavam, perturbando o curso de seus pensamento s” ? O u ao devot ame nto dos ulanos “orgulhosos de nadar e de se afogar nesse rio sob os olhos do homem sentado num tron co e que sequer o lhava o que eles faziam” ?534 Nesse episódio, Tolstoi não descreve apenas a crueldade distraída de Bonaparte. Diznos igualmente que o poder, tomado em seu sentido verdadeiro, nada mais é que a expressão da pesada dependência em que nos encontramos para com os outros. Sob certos aspectos, aqueles que o detêm podem contar ainda menos com a própria vontade do que aqueles que o aceitam; suas ações
e espalhar, a ocupar o máximo de lugar possível, mas as outras 530 Ibid ., livro I, t. I, p. 344 531 Ibi d., livro IV. t. II,
p. 728.
Ibid.,
livro IV, t. II. p. 558.
Ibid..
livro III, t. II, p. 1314.
S3< Ibid., l,vro 111, t II, p. 131 4.
184
185
O
PEQUENO
x- Da
biografia a história
A HISTÓRIA
parecem intencionais e livres, mas são na verdade involuntárias e
INFINITA
não tem o estofo de Anatole Kuraguine), Tolstoi vai bem além de
determinadas por tod o o curso da história passada : “ Qua nto mais
uma refutação da grandeza individual: ele a separa da vontade de
alto o homem está situado na escala social, mais a rede de suas rela-
potência. Dá a palavra, a vida mesmo, a essa máxima de Goethe segundo a qual “ nada de mais triste do que a aspiração ao absoluto nesse mundo tão essenci almente lim itad o” .538
ções com os outros homens é extensa, mais autorid ade possui sobre os outros e ma is parece qu e cada u m d e seus atos é predeterminado e inevitá vel” .535A orde m, o ato de com anda r, nada mais é que uma simples etiqueta, uma espécie de título atribuído ao acontecimento que tem apenas, como todas as etiquetas, uma relação longínqua com o acontecimento em si mesmo. E, aliás, uma das primeiras coisas que o príncipe André percebe, ele que conjuga no mais alto grau todas as qualidades que se podem expnmir pelo conceito de força de vontade. Em certo sentido, é um segredo de Polichinelo: ninguém quer reconhecêlo, mas todo o mundo sabe que as ordens praticamente não são observadas, e que, muitas vezes, nenhuma ordem vem do alto. O simpático capitão Tu chin e, que só decide onde e como atirar após ter falado com o sargento Zakartchenko, por quem nutre profundo respeito, sabeo bem, assim como o sabe o príncipe Bagration, ele
Na realidade, há um grande homem no campo de batalha: é Kutuzov, velhinho distraído, que despreza o saber e a inteligência, que adormece durante os conselhos de guerra, que detesta mesmo montar a cavalo. Sua indolência é tal que a atividade dos outros lhe parece ser uma censura pessoal. Contrari amente a Napole ão ou, pior ainda, ao comandante austríaco Weirother, chefe de guerra presunçoso e obstinadamente agarrado à ilusão de dirigir e comandar seus soldados, o velh o ge neral russo sabe que durante o comba te com o na vida alguma coisa d e mais forte e de mais importante do que a vontade deve ser considerada, é a incógnita x , o sentimento dos homens, aquilo em que creem: Uma longa experiência militar lhe tinha ensinado, e sua inte-
que, c om grand e tato, se contenta em
secundar os acontecimentos: sua presença é extremamente eficaz, pois ele dá a ilusão de que aquilo que se faz por necessidade, por
ligência de velho lhe fizera compreender, que nào estava no poder de um só dirigir centenas de milhares de homens que
acaso ou por von tade dos com andan tes é ex ecu tado “ se não por suas ordens, ao menos em con form ida de co m suas intenções” .536
das batalhas não são as disposições que toma o general em chefe,
lutavam contra a morte, e sabia que o que decide o resultado não é a posição que as tropas ocupam, o número dos canhões e
Desse ponto de vista, o poder deriva daquilo em que se crê. Co mo escreveu Nico la Ch iarom onte, “ na ação, não t emos outro guia além daquilo em que cremos uns dos outros e do mundo onde vivemos. Nap oleão, Kutuz ov, o último de seus soldados , o homem mais genial assim co m o o mais med íoc re, o mais lú cido e o mais racional, assim com o o mais tolo, nin gué m po de ultrapassar o limite que, em última instância , faz d e to do saber uma simples crença”.5 3 II Quando consegue moderar sua raiva polémica e esquecer suas frágeis convicções igualitárias (o príncipe André certamente
^Ibid
dos mortos, mas essa força mapreensível que chamam o moral do exército; e vigiava essa força e agia sobre ela tanto quanto estava em seu pod er .539
Kutuzov é lento, hostil a toda ação decisiva, indiferente às palavras, que lhe parecem incapazes de exprimir as verdadeiras razões dos homens, intol erante para com as declarações de patrioti smo, que não pode escutar sem fazer care tas. Nã o pretende ser um condutor de homens, sequer vemlhe ao espírito poder dirigir os acontecimentos, não intima ordem alguma e se limita a dizer sim ou não às proposições que lhe são feitas, a constatar os fatos consumados. Pressente, entretanto, a significação do acontecimento (compreende que a batalha de Austerlitz está perdida ante s mesmo que ela comec e, depois
. livro III. t. II. p. 10.
sv Ibid ., livro I, t. I, p. 252. hiaromonte, The Parad ox of History,
Johan W olf ga ng Go eth e, M ax im es et Ré fle xio ns , op. cit. , m. 961, p. 256. Londres, Wcindenfels
& Nicolson, 1970, p 30.
" Léon Tolstoi.
La Gu err e et la Pa ix, op. cit. . livro III. t. II, p. 250.
187
O
pequeno
* -
Da biografia
A história
A
sustenta, contra todos, que Borodino é uma vitória) porque é parte do nós, verdadeiro ser coletivo. A fonte de sua capacidade reside no espínto nacional russo que o amma e sua luta contra Napoleão, o herói modemo europeu, é também, e sobretudo, a luta de um povo que reconhece sua dependência (em relação a Deus) contra um povo demiúrgico, que crê v iver da vida que ele p róprio irradia.540N o fundo, Kutuzov se vê e age como um receptáculo, com
o uma
simples forma.
HISTÓRIA INFINITA
sobre o qual se mantinha, enfiara o outro pé e afundara ainda mais. Com pleta ment e atolad o, avançava agora com a lama até os joe lh os ” .543 Só a prisão o salvar á dessa moral, pod erosa unicam ente em aparência: “ O mun do que desab ara começava a se reedificar nele com uma beleza no va, sob re fundam entos renovad os, inabaláveis” .544E, pouco a pouco, a frouxidão de outrora, que se expnrrua até mesmo no olhar, dá lugar a uma retomada de energia:
Sua força deriv a do fato d e que n ele nada há de pessoal: “ Ele não fará
Procurara toda sua vida em diferentes direções essa paz, esse
nada que venha de sua própria iniciativa. N ão inventará nem empre-
acordo consigo mesmo que tanto o impressi onaram no s solda dos em Borodino. Procuraraos na filantropia, na maçonaria,
enderá nada, dizia a si mesmo o príncipe André, mas escutará tudo, se lembrará de tudo, colocará tudo em seu lugar, deixará que façam
nas distrações da vida mundana, no vinho, no sacrifício, em
o que pode ser útil e impedirá o q ue é no civ o” .541 Po r momentos,
seu amor romântico por Natacha; procuraraos pelas vias do pensamento e todas essas procuras e tentativas o enganaram.
ele lembra um pouco o herói de Carlyle: possui a mesma propensão à renúncia que esse admirava em Goethe.
E eis que, sem pensar, recebia esse apaziguamento e o acordo consigo mesmo, mas somente passando pelo terror da morte,
O mesmo se dá no que con cern e à vida privada. Inicialm ente desprovido de caráter, Pedro Bezukov só chega à
grandeza
compreende e aceita que não lhe é possível prever os acontecimentos, menos ainda modelálos segundo sua vontade ou suas intenções. Enquanto deseja va ardentemente, com toda sua alma, ser Napoleão, tomarse filósofo, vencer Napoleão, enquanto pretendia transformar o gé nero humano fun dando escolas e hospitais e a lforriando seus mu jiqu es de Ki ev , ele perm aneci a o ma rid o ric o de uma mul her infiel, um camareiro aposentado que gostava de beber e comer e, em seus momentos de expansão, não desdenhava falar mal por vezes do governo: o que quer que fizesse, continuava a ser o que seria qualquer um em sua posição. Seu momento de maior impotência coincide, e não por acaso, com sua adesão à maçonaria, expressão máxima da moral demiúrgica segundo a qual
fab er est su ae qu isq ue fo rtu na e:54 2
Quando entrou na francomaçonaria era como um homem que põe com confiança seu pé sobre a superfície unida de um pântano; tendo apoiado o pé, afundara; para se certificar da solidez do solo
' Sobre a atitude demi úrgica. ver Alberto Savinio, “Fine dei m Traguenú e dopoguenú <1943-1952). 141 Leon Tolstoi,
Milão, Bompiam, 1989,
odelli" (1947), in p. 501 sq.
La G ue ne ei h PM X. op cit. . livro III, t. II, p. 178.
Cada um é artíf ice da própr ia sorre. (N .T .).
pelas privaç ões e pelo qu e Karataiev o fizera comp reende r.''4''
quando
Nas mãos dos franceses, Pe dro pod e repensar ou pensar pela pnmeira vez —cert as noções chave da moral demi úrgica. Com preende , então, não pelo raciocínio, mas em todo o seu ser, que existe um limite para a vontade: no fundo, ao esposar a bela Helena, acreditara seguir a própna vontade, quando na verdade só se decidira, num estado de extrema confusão, porque todo mundo esperava isso dele e não tinha a coragem de decepcionar. Compreende, então, que há igualmente um limite para a responsabilidade: para a sua, quando no clube inglês provocou D olo ko v para um du elo, ainda que s e desse conta perfei tamente de que as noções de honra e de ofensa não eram mais do que besteiras, tolas convençõ es; assim com o é limitada a responsabilidade do vel ho c omerciante, injustamente acusado de assassinato, a quem não resta senão amar a vida em seus sofrimentos inocentes. Por outro lado, mesmo a grandeza nada tem de voluntário, de prometeico: quando muito, deve ser compreen dida co mo um signo de dependênc ia. Se Kutuzov consegue escapar, graças à sua ligação com o espírito russo, à sedutora moral demiúrgica que contamina tantos membros do estadomaior , P edro só
O pm . Snill i iItsprrsi 1 Ibi d., livro II, t. 1, p. 556.
’ Ibi d.. livro IV, t. II, p. 442. 'Ibid..
livro IV, t. II, p. 492.
189
A HISTÓaiA
O PEQUENO X Da NOGRAFIA à HISTÓNA
INFINITA
se transforma graças aos outros prisioneiros que apreciam sua força,
flanco para além de Krasnaia Pakra, que conduz os franceses a sua
sua indiferença para com as comodidades da vida, sua simplicidade, em suma, todas as qualidades que haviam sido anteriormente uma
perda, poderia ter sido fatal para o exército russo. Teriam bastado
fonte de embaraço na alta sociedade de São Petersburgo: e Pedro se sentia constrangido pela opinião que faziam dele.
diada? Se Murat não tivesse perdido os russos de vista? Se o ataque
Para Tolstoi, as noções de vontade e de responsabilidade são inadequadas, uma vez que supõem a existência de um sujeito com-
homem das longas abas”? Se os france ses tivessem marchado sobre
pletame nte autónomo (um Eu sem N ós) . Na prisão , embalado pelo
se tivesse verif icad o, “ a marcha de flanco teria se transformado em
ronco regular de Plat ão Karataiev, Ped ro d escobre , en fim, que a vida
desastre” .547 O que é verdad eiro para o ú ltimo e pisódio da ofensiva
do homem só tem sent ido enquanto partícula de um
napoleônica vale para a campanha da Rússia inteira:
todo: reconh e-
algumas coincidências a menos.
Se Mo scou não tiv esse sid o incen -
tivesse sido lançado imediatam ente com o o sugeri a Benningsen, “ o São Petersburgo? É provável que, se apenas uma dessas suposições
cer os limites da vontade e da responsabilidade p ermiti ulhe perceber a ligação, a conexão das coisas, dos homens e das circunstâncias,
Enos incompreensível que milhões de homens, cristãos, tenham podido passar por tais sofrimentos e se matarem uns aos
tomar consc iência da própr ia dep endênc ia. Um a dependência qu e não é submissão, mas predisposição à ação e à resistência: é somente aceitando não ser um demiurgo, um sujeito soberano, que toma consciência de não ser um simples peão nas mãos de um demiurgo.
outros porque Napoleão amava o poder, Alexandre era firme, a Inglater ra intrig uista e o duqu e de O ldenbou rg esta va ofendido. [...] A nós, que não somos historiadores, a quem o próprio processo da pesquisa não obnubila e que, consequentemente,
De maneira mais simples, abandonandose aos sentimentos que
contemplamos o acontecimento mantendo intacto nosso bom
experimenta pe la pnncesa Maria, N ico lau R os to v chega à mesma
senso, fazse manifesto que o número das causas ultrapassa o
conclusão: decidindo submeterse às circunstâncias, não apenas nada
cálculo. À medida que avançamos em sua pesquisa, descobri-
faz de mal, mas, pela primeira vez , realiza “ uma coisa extremame nte
mos sempre novas, e qualquer que seja a causa ou a série de
importante, a m ais importan te qu e jamais fe z” .346
causas visadas, todas parecem igualmente exatas consideradas em si mesmas e igualmente falsas vista sua insignificância em
III
relação à enormidade
do acon tecimento que seriam in capazes
de produzir (fora de sua coincidência com todas as outras).
E é precisamente e sse sentid o agu do da depend ênci a entre os seres humanos e entr e os seres hum ano s e as circunstâncias que conduz Tolstoi a analisar o passado num nível molecular. Integrando as unidades mínimas, vai além da evocação das significações afetivas do drama histórico. É no plano explicativo que quer levar em conta os fatores locais, os fatos minúsculos, infinitesimais. Para
É a lei do ac úmulo de causas, uma lei que lembra muito o
volume
de Carlyle . A história humana não é determinad a pela ação de grandes causas necessárias, exclusivas e previsíveis, nem sequer é dirigida pela Razão, por um desígnio racional, mas é coberta por nul pequenos fardos concomitant es: cada indi vídu o se encontra sempr e no coração
ele, não existe apenas uma multiplicidade de experiências vividas,
de uma série móvel de fatos. Dito de outro modo, Tolstoi descreve a
como nos conta Stendhal na cena famosa da batalha de Waterloo,
natureza temporal da causa: diznos que não se trata de um fator ou de um acontecimento exterior, mas de um conjunto de circunstâncias,
mas uma multiplicidade de causas: não há uma causa, nem mesmo duas ou três causas, mas uma cadeia infinita de causas minúsculas,
expressão da trama de dependências em que se afundam os homens.
das quais nenhuma é em si mesma a verdadeira causa. A marcha de '* Ibid., livro IV , t. II, p. 4 63.
Ibid
, livro IV, t. II,
p. 4 19 .
Ibid., livro III, t. II, p. 8.
190
191
O PEQUENO X- D
a
A HISTÓRIA
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
INFINITA
Ele, que em seu diáno se pergunta “ quand o pois com ece i?” , narra
intenção dos protagonistas, é impossível discernir precisamente o
em Guerra e pa z a absoluta continuidade do movimento: não existe
que se passa. Ass im, o p rínci pe An dré comp reend e, alguns dias antes de sua chegada ao cam po p róx im o de Drissa, que os planos mais meditados não valem nada, que tudo depende da maneira como se
não pode existir condição inicial para um fenómeno, um fato denva sempre de outro, insensivelmente e sem in terrupçõ es.549 Nã o é por acaso que Kutuzov não consegue datar o abandono de Moscou. Por
reage às manobras inesperadas e imprevisíveis do inimigo. E o que
mais que procure, não encontra e não pode encontrar resposta, pois a cadeia das causas e dos efeitos não tem inicio e não pode ter fim:
agita Kutuzov ao longo da noite de 12 de outubro de 1812. Ele
“ Adrrutir unidades separadas umas das outras, que um aco ntecim ento tem um com eço [...] é comp letam ente falso” .550
a São Petersburgo ou se espera em Moscou, depois imagina mil
IV Nã o apenas as motivações que alimentam um ac ontecimen to são numerosas, muito numerosas, em n úme ro i nfin ito, mas são também muito pouco lógicas ou previsíveis. Para Tolstoi, o ser humano não é um animal pensante, mas um animal dramático, que praticamente não reflete sobre o que faz, que age antes de avaliar, de calcular, de saber. Sua capacidade de ação tem algo de involuntário e de irrefletido: Só a atividade inconsciente é fecunda e o homem que desempenha um papel nos acontecimentos históricos jamais c omp reen de sua significação. Se ten ta compre endêl os, é atin gido pela esterilidade” .551 O campo de batalh a é um ex em plo disso: ning uém se desloca aí segundo um plano preestabelecido, mas num estado próximo do delíno da febre ou da embriaguez, sob a inspiração do momento, livremente,
pois o hom em nunca é ma is livre do q ue no
campo de bat alha onde o que está em jog o é a vida e a morte” ." ’ As ordens, raramente ouvidas, são sistematicamente deformadas: O comandante da terceira companhia ao genera l” se toma “a terceira companhia ao coman dante ” e dep ois “ o genera l à terceira companhia
Porque as coisas proc edem independentem ente da
rtas considerações de Tolstoi sobre a natureza ininterrupta do de Bergson sobre o caráter indivisível do tempo. Leon Tolstoi.
La G u m e e, h pa ix _ op n( |1VTOm
t „ p
mov ime nto p recedem aquelas
Ibi d., livro IV, t. II, p. 47 7 .
. ou.
O homem sem qualidade
outras suposições; mas, a despeito de sua experiência, tampouco ele é capaz de consid erar todas as comb inaçõe s possíveis: “ A única que não pôde prever foi precisamente aquela que ocorreu: esses absurdos saltos espasmódicos do exército napoleônico de um lado para o outro ao longo dos onze dias que seguiram sua partida de Moscou e que tomaram possível sua total destruição, com a qual Kutu zov n ão tinha ainda ousado sonhar” .554 O que q uer qu e se diga, a guerra, no curso da qual um batalhão pode derrotar uma divisão ou ser aniquilado por uma companhia, nada tem a ver com o xadrez, jog o fora do tempo, em que o cavalo é sempre mais forte do que o peão e dois peões mais fortes do que um só peão. A imagem do duelo com arma branca, frequentemente empregada co m o m etáfora da guerra (e da vida social) tampouc o convém. A vitón a de B orod ino não permite ao s franceses conquistar a Rússia; ela marca ao contrário o início de sua derrota, já que os russos decidem em certo ponto lançar fora a espada e empunhar o porrete, em outros termos, os camponeses de Karp e de Vias, desprovidos de qualquer sentimento patriótico, param de levar o feno a Moscou e o queimam. O exér cito na poleô nico atinge, ent ão, as condições químicas da dissolução: transformase numa turba de homens transidos
amplificação dos erros na trans missão das ordens à época do serviço militar assim, se a ordem era de início: "O cabo marche ã frente da coluna" , acabase transmitindo atrás. Ao ca o a m ^ façam fila indiana!” ou a lgo de e quivalente para insistir sobre as dificuldades implícitas n a noçao de causalidade hi stórica: “ O caminho da história não é pois o de uma bola de b ar que, tocada, segue de termin ado curso, mas assemelhase ao trajeto da s nuvens, ao caminho de alguem que vagabundeia pelas ruelas, distraindose aqui com out ra sombra, ali com um grup p co nh e™ J iei" OU o contorno diferente de uma fachada, por fim chegando a um ponto que nao Carlos quena atingir". * Ut.l.zome aqu, da tradução brasileira de Lya Luft e Abbenseth (Musil, Rober, O homem sem qualidade s. R.o de jane.ro: N ova Fronteira, 1989 , 259.). Nesta, o capitulo
269
Ibi d., livro IV. t. II, p. 408.
n>id . livro I, t. I, p. 172. No céleb re capítulo 83 de
passa uma noite sem dormir perguntandose se Napoleão se dirige
s. "Sempre a mesma
or que nào se inventa a Históna ?", M usil se serve, também ele , da experi ência da
83 é intitulado "Aco nte ce a mesma coisa, ou: por que nao se inventa a ' Léon Tolstoi,
iston
La Gu err e et h Pú ix, op. eit ., livro IV, t. II, p 508.
193 i
O
PEQUENO * -
D*
A HISTÓRIA
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
INFINITA
de frio e esfomeados, sem calçados, que erram sem meta na neve e
dizer a verdade a seus auditores [...], não teriam acreditado nele,
no frio. Uma tragédia inexorável, bem diferente da retirada compacta e digna da Ma rse lhe sa na Ab er tu ra sol ene “ 1 8 1 2 ” de T cha ikov sky .555
ou, o que é ainda pior, teriam pensado que era unicamente culpa sua se não lhe acontecera o que acontece normalmente às testemunhas de um ataque de cavalaria. Ele não podia
V
contarlhes simplesmente que tinham partido todos a trote
Reconstituir a srcem e a evoluç ão de um acon tecimen to é impossível. Assim, nos relatos que a seguem, seja oficiais, seja privados, sempre impregna dos de bons s entim entos e de grandes palavr as, a
e que ele tinha corrido feito um louco para se refugiar num bosque e escapar aos franceses. E depois, para contar tudo o que se tinha passado e unicamente o que se tinha passado, era precis o fazer um esfor ço sobre si mes mo.557
realidade da guerra é forçosamente deformada até se tomar algo de razoáv el, de consequente, de previs ível. Jerkov, o portaestandarte dos hussardos, que, quando da batalha de Austerlitz, presa de um terror insuperável, foi incapaz de enfrentar o inimigo, sabe algo
To do s me nt em . M es m o os generais con tam a batalha co m o gostariam que ela tivesse sido ou como a ouviram contar por outros narradores, ou ainda enfeitandoa pelo prazer do relato, mas de modo algum co m o ela decorreu. Alguns deles mentem por vai
disso. Uma vez o perigo passado, contará: “ Assisti, vossa alteza, ao ataque do regim ento de Pav logrado”, interveiojerkov lançando a seu redor olhares inquietos. Ele não tinha visto os hussardos o dia inteiro, mas apenas ouvido um oficial de infantaria falar del es. “ Eles devastaram dois quadrados, alteza." Alguns somram quandojerkov se pôs a falar, esperando uma de suas costumeiras piadinhas, mas da ndos e conta de que o que ele dizia glorificava a ação de nossas tropas e o sucesso desse dia, tomaram um ar sério. Muitos, entretanto, sabiam claramente que nã o era mais do q ue u ma m entira infundada.5 5*
mas muito s outros men tem simplesmente porque não pode
dade, m fazer
de outra forma, pois “ contar a verdade é muito difíc il” .” " Existe uma diferença dramática entre realidade e narração histórica (sem mesmo falar de explicação): Dizendo que o ataque fora repelido, [o comandante] pretendia qualificar com um termo militar o que se passara, mas na verdade ignorava o que se passara
110
curso dessa meia hora no
regimento que lhe estava confiado, e não podia dizer de ciência certa se o ataque fora repelido ou se seu regimento fora posto
O cao s desprovido de si talha encont ra uma ordem com o Nicolau R
ostov, que “
po de b a-
em fuga pela cavalaria. Tudo o que sabia é que no inicio da
perfei ta m esm o na boca de u
m jovem
ação balas de canhão e granadas abateramse sobre seus homens
não te ri a m entido consci
ente mente
gnifi cação qu
e reina no cam
dizimando um bom número deles e que em seguida alguém gritara: “ A cavalaria!” O s nossos começara m a atirar. [...] O
por na da n o mun do” :
príncipe Bagration fez um sinal com a cabeça como para dizer Ele tinha a intenção, ao começar seu relato, de dizer as coisas
que tudo se passava exatamente como ele desejava e previra.
tais como se tinham passado, mas involuntariamente, imper ceptivelmente, acabou na mentira. Se tivesse se contentado em
Enfim, é a vez dos historiadores, eles também incapazes de preench er o hiato entre realidade e narração. De qualquer
No que concerne à descrição do campo dc batalh a e, em particular, ao rele vo dado ao imponderável e ao incalculável. Paul Boyer (
Chez Tobtoi. Entretiens à lasnàia Pohana
, Hans, Institut d Études
Slava , 1950) recordou a dívida de Tolstoi para com Stendhal, enqu anto Albe rt Sorel (“Tolstoi histone n” . 1888. in Lec tures histo riqu es, Pans. Plon, 1894) e Adolfo Omodeo conte Joseph de Maistrc , Ban. Laterza, 1939) sublinharam a influência das célebres Petenboun;
de Joseph de Maistre.
dos fatos fundamentais do passado dos povos (0,01% em média,
Soiries de Sainl-
Para uma anális e aprofund ada das raízes intelectuais da vis ão
tolitouiij da históna. cf. Isaiah Berlin, Olivier, Pans, Albin Michel. 1984. Léon Tolstoi,
(Un reazioiurio: il
Les Pcns eur s russ es (1953), traduzido do inglês por Dana
La Cite rre et la Pa ix, op. cit ., livro 1, t. I, p. 272.
es-
cola” que sejam, estão convencidos de possuírem uma ciência, mas não com pre end em na realidade mais q ue uma parte ínfima
J M .b v r o l.1 . I.p
.12 5.
/fcij ll»TOI. I I. p 2S 4
195
O
PEQUENO X -
D*
A
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
HISTÓRIA INFINITA
ironiza To lst oi) .560P or um lado, porqu e se cont entam em estudaras manifestações do poder, negligen ciando os verdadeiros problem as aqueles que concemem à causalidade histórica (qual é a causa dos acontecimentos, qual é a força que move os exércitos, qual é aquela que decide a sorte de uma batalha, etc.?). Por outro, porque acabam sempre por confinar a nqueza da vida social atrás de similitudes vagas e indefinidas. Remetemse a um único ponto de vista, como Berg e sua mulhe r que viv em na vã ilusão de que seu lar é representativo de todos os outros: ele, “julgando todas as mulheres a partir da sua,
“ a vida de alguns personage ns não abarca a vida dos pov os, pois o laço entre esses persona gens e os povos n ão foi enc ont rado ” .562 E contao, ainda uma vez, através da expenência de Pedro Bezukov. Pedro é um espectador excepcional: deseja verdadeiramente com-
estava convencido de que eram todas fracas e tolas. V era, julg an do a partir de seu mando e generalizando sua experiência, considerava que todos os homens acreditavamse os únicos razoáveis quando em
talha. Escala até um lugar alto que deveria lhe garantir uma visão
verdade não com pree ndi am nada e eram egoístas e orgulhoso s” .561
VI Mas os histor iadores não sã o os únicos culp ados. N o relato do campo de batalha, Tolstoi não conta apenas a infidelidade da memória —inevitável, pois o espírito tende a racionalizar e a formalizar as lembranças. Evocando o número infinito de causas que alimentam e regulam a história, ele se choca com os limites do conhecime nto. Partilha, ele também, o dilema biog ráfico que atormentava Carlyle: se a vida social é uma obra comum, o produto de uma multidão de ações humanas, deveríamos, então, para compreendêla em sua íntegra, poder ver, escutar, gravar, memorizar um número inimagináve l de gestos e de pensamentos. O que eq uiva le a diz er que se trata de uma empresa vã: o passado permanec erá sem pre inacessível, ninguém jamais poderá descrever cada um de seus ingredientes em sua essência específica e em todas as suas dimensões. Co m o vim os mais acima, Carly le cons eguia escapar a esse penoso sentimento de impotência graças à figura do herói, considerado como o foco irradiador miraculoso em que se cristaliza toda uma época. Tols toi não parti lha dessa ilusão. N o ep ílogo , escreve que
Tols toi ataca espe cialme nte o posi tivis mo met afisi co d e C om te e d e H en ry Buck le, as concepçõe s materialistas de Nikolai Tchcmychevski e de Dinutn Pisarev, e o positivismo evoiucionista de Herbert Spencer. Léon Tolstoi,
La Gue rre el la Pa ix, op. cit. , livro II, t. I, p. 559.
preender o que se passa e sua alta estatura lhe p ermite perc eber sem esforço, durante a retirada dos franceses, o comboio de mulheres maquiladas, co m v estidos c olori dos , que suscita a curiosidade dos outros prisioneiros. Porém, ao chegar a Borondino, é em vão que busca um lugar de onde pudesse abarcar com o olhar toda a baexcepcional, mas não adianta: Tu do o que Pe dr o via, tanto à dire ita qua nto à es querda, era tão vago que sua imaginação permanecia insatisfeita. Em lugar do campo de batalha que esperava ver, estavam campos, pradarias, tropas, florestas, fumaças de bivaques, aldeias, mamilòes, riachos e, por mais que se aplicasse, não chegava a ver onde se encontrava, nessa paisagem viva, a posição e sequer podia distingu ir nosso exé rcito do d o inim igo. 553
Sob o fogo incessante dos fuzis e dos canhões, jamais se vê mais do que um fragm ento restrito, ora apena s os russos, ora apenas os franceses, ora os soldados da infantaria, ora os da cavalaria que “ surgiam, caíam, atiravam, se empurravam , sem saber ao certo o que deviam fazer, gritavam e refluíam” .564 Pedro c ompreend e que lhe é impossível reunir todos os cacos da realidade e ainda mais acontecimento recompor a significação de cada um deles, porque o deriva dos fatos, dos momentos, de uma infinidade de condições diferentes: “ Ela [a batalha] só apareceu em sua unidade quando, estando terminada, pertenc ia ao passado” .565 O p ríncip e André , que pudera ver o horizonte ilimitado de Austerlitz, chega a mesma conclusão no momento exato de morrer: mesmo no artigo da morte, resta sempre algo de unilateral, de pessoal, de abstrato, uma impotência de perceber a realidade em sua totalidade.
Ibi d., livro IV, t. II, p. 719. 563 Ibid ., livro III, t. II, p. 197. 164 Ibi d., livro III, t. II, p. 243. 565 Ibi d., livro IV, t. II, p. 463.
197
O
PEQUENO X -
D*
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
A
Da mesma forma que nenhum ho
mem é capa z de determinar o
senti mento do pov o ninguém pode interpretar a significação geral de uma epoca. Pela boa razão de que não há signi ficação geral É uma abstraçao „ n|izada e fo, ad a justamente p or aqueles que 3f escravos de seu .nteresse paracular. P or hom ens vis e pouco c o „ S
HISTÓRIA INFINITA
Esse ceticism o se tinge, aqui e ali, de fatalismo : “ Quan to mais nos esforçamos para explicar racionalmente esses fenómenos históricos, mais eles nos aparecem desp rov ido s de sentido e incomp reens íveis” .569 Então, o homem parece subordinado a uma força que o ultrapassa e que ele não poderá jamais co
nhecer nem controlar : a Necessidad e.
ve,s como o conde Rostoptchine. que, após ter ordenado injusta e inutil mente a execução do filho do mercador Veres,cha gu.ne * just ifica aleg and o o m on vo , po uc o ori gi na l, do bem público: ’
os moscovitas part em cada um para seu lado, preocupad os co m seus
Desde que o mundo «este e que os homens se emremaom
para produ zir um únic o e form idáv el resultado: esse “ acont eciment o
Abandonando seus bens para fugir da cidade consumida pelas chamas, interesses pessoais, e no entan to, co m o um único hom em, c oncorr em
jama is algue m com ete u um cn m c contr a seu seme lhante sem recorrer pensame nto tranquihzante { } Q esta tomado pela paixão .gnora sem pre o bem dos outros
mas
o homem que comete um cnme sabe sempre com certeza em que consiste e sse bem. E Ro stop tchin e tam bém o sabia agora.5*
grandioso que permanecerá para sempre a mais alta glória do povo russo ,57t) Po de s e diz er o me sm o da campanha da Rússia inteira. O s homens de 1812, cerca de 800.000 franceses, comandados pelo melhor capitão do m und o, diante de 400.000 russos sem experiência são apresentados com o os instrumentos involuntá rios da História, cumprindo uma tarefa da qual tudo ignoram, mas necessária à realização
a™ ^ 3^ her°Í Ca’ ParCCen5° subsistird o que a via do ceticismo, aquele mesmo que aperta o príncipe Bolkonski durante o conselho de guena de Dnssa, quando se pergunta
de fins históricos da humanidade em geral: Tod as essas causas, mil milhõe s delas, coincid iram para culmina r
Que teona e que ciência pode haver quando se trata de uma nvidade cujas condições e circunstâncias são desconhecidas ao podem ser determinadas de antemão, nào mais do que as
num!
T
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a
eSt5° eng3JadaS? [ ] QUC Clênda P° de haver
numa atividade em que, como em toda atividade de ordem
pratica, nada pode ser definido, pois tudo depende de inúmeras
está ao aJc an ce ^3 ^ aos racionah sr ninesen no '
^
na df de’tudS SUlr ^
m° ment 0 Prec's ame nte. nin
a COrrelaçao das causas dos fenómeno s não hUmana: CO" tr™ t e aos positivistas e pretendem’ com o os gener ais Pfull e Ben ~ “nada’ nad a há de
m com teen ^ ° C° mpreendo e a «« "d ez a de alg uma coisa de inco mpr eensí vel mas essencial!” .568
'“ Ibi d., lavro I II, t. I I, p. 352. *
IM ., livro III, t, II, p 54
“ *
ffo d.,
livro
I. t. 1 , p.
manos e sua razão humana, esses milhões de homens deviam se dirigir de leste a oeste e matar seus semelhantes, exatamente com o, vários séculos ante s, milhões de homens iam de leste a oeste matando seus semelhantes.* 1
condições cuja .mportância e significação serão descobertas gu ém ?a b" ent e’ maS ^
naquilo que se produzi u. Consequentement e, o aconteciment o não se deveu a tal ou tal causa, mas se produziu unicamente porque devia se produzir. Renegando seus sentimentos hu-
d°
Nã o houve plano, nenhum prog rama, s omente “um jog o, dos mais complicados, de intrigas, de projetos, de desejos dos homens engajados na guerra que não desconfiavam do que ia acontecer e de que ela, a guerra, era a única chance de salvação para a Rússia .i72 O fato de o curso dos aconteciment os ser predeterminad o de cima não engendra, entretanto, efeito tranquilizador. Ao contrá no, parece que Tols toi experimenta certo prazer punitivo —p ara consigo mesm o mais do que para com o leitor —
169Ibid ., livro III, t. II.
p. 910.
570 Ibid ., livro III, t. II, p. 282.
38 7
' Ibid ., livro III, t. II, p. 9. 11 Ibid., livro III, t. II, p. 105.
198 199
em rebaix ar a
O
Da BIOGRAFIA
PEQUENO X-
A HISTÓRIA
A HISTÓRIA INFINITA
liberdade da vontade humana, em não ver nela nada além de um
as convicções de St ephe n De dalus retomadas por ta ntos roman-
resíduo de nossa ignorância, ou de uma ilusão, necessária para resistir, para se preserva r dessa “ terr íve l vid a” .573 E é precisame nte esse sentimento raivoso que lhe inspira o famoso paralelo entre o grande homem e a ovelha engordada para o abatedouro:
cistas e poetas de nossa época (de Milan Kundera a Izail Metter, de Bruce Chatw m a Czes law Mi los z) que vê na história um pesadelo a esquecer: para ele, o que se passou nada tem de absurdo, e a odisseia pessoal de seus personagens é inseparável do drama histórico de
Para um rebanho de ovelhas, a ovelha que o pastor encerra
1812. Ele jamais p reten de se livrar do “ catarro do passado”, mas crê,
cada noite num recinto especial ond e ela com e à parte e se
ao contrário, que só a história pode ajudar a compreender por que
toma duas vezes mais gorda que as outras deve parecer um
o que acontec e se passa de certa ma neira e não d e outra: “ Só a soma
gênio. E o fato de que, todas as noites, essa mesma ovelha nào
dos acontecim entos co ncre tos n o tem po e no espaço a total idade
volte ao cercado comum, mas seja alimentada com aveia num recinto especial, e de que essa mesma ovelha, precisamente esta ovelha, cheia de gordura, seja morta para ser comida, esse fato deve aparecer ao rebanho como uma surpreendente conjunção
da experiência real de homens e mulheres reais em suas relações uns com os outros, e com um m eio físico real, tridimensional, conhecid o empiricamen te —apenas isso con teria a verda de .5l A única coisa que
do gênio com toda uma série de acasos extraordinários. Mas
ele receia e que o imta é a generalidade da maior parte das reconsti-
bastaria que as ovelhas cessassem de acreditar que tudo o que
tuições históricas: a história lhe p arece in suficientemente precisa.3
lhes acontece nào tem outra razào além da de lhes fazer atingirem sua meta de ovelhas, [...] e veriam imediatamente que tudo o que acont ece à ovelha engordada é coere nte e ló gico .574
Dois comentários, ambos notáveis, aprofundaram essa dolorosa particularidade de Tolstoi. Para o primeiro, proposto por Isaiah Berlin em 1953, o ce ticismo d e Guerra e Pa z consiste essencialmente numa forma extrema, sem apelo, de determinismo histórico.
VII
A tese principal é a seguinte: existe uma lei natural que deter-
O ceticismo de Tols toi, resultado de sua arte “ de colo car questões
mina a vida dos seres humanos não menos do que aquela da
exageradamente simples, mas fundamentais” ,575 tem uma incidência
natureza; mas os homens, incapazes de enfrentar esse processo
fulgurante. Mas apresent a uma particularidade essen cial: é pro por cional a seu apego à história. Por certo, acontece ao escritor de exprimir
escolhas, e fixar a responsabilidade por aquilo que
um sentimento de distância em relação aos acont ecime ntos históricos,
personagens a quem atribuem virtudes ou vícios heroicos, e a
e pensar que a vida, entretanto, c om suas preoc upaçõ es essenciais ga
à saúde, à doença, ao trabalho, ao repouso, com tu do o que
ela comporta pensamento, ciência, poesia, música, amor, amizade, o o, paixão em suma, a verdadeira vida humana transcorria com o sempre alheia e independentemente das reformas políticas e das rela-
inexorável, procuram representálo como uma sucessão de livres ocorTe sobre
que cham am “ grandes homens .579
O ceticismo ético, que considera que tudo é igual e nega a existência de fatos insignificantes e de fatos importantes, vai de par com a im possibilidade de se contentar com respostas fáceis ou escapatórias, uma impossib ilidade que faz de To lsto i uma espécie de nii ista
ções, mais ou menos amigáveis, co m N ap ole ão B onap arte” .57'’ Mas esse nao é mais do que um pensamento lateral. Tolstoi não partilha Isaiah Berlin, O í Pensadores russos, op. cit.,
p. 64.
" Com mais de um sé culo de distância, Izrail M etter Li Cwhfwirmr 5,3 Ibid ., livro II, t. I.
p. 687.
Isaiah Berlin, Le s Pen seu rs russe s, op cit .,
p. 298.
Líon Tolsto i, La Gu err e et la Pa ix, op. ar., livro II. t. I,
200
Co m ' Rn1' ^
d
do russo por Dems Auch.er , Pans, Liana Lev,. 1*92. P 15 " « « v c » ‘ E« ude' manuais todos os elem entos que c onstituíam minJw vicb. ivl * os histona ores ten fatos da realid ade co m uma r ede de malhas grandes dema.s; |...| toda imnha v«i a passa através,
5 * Ibtd ., livro IV. t. II, p. 641642.
p. 536.
sempre me en contr o em me io à peixarada miúda, sem inter esse para Isaiah Berlin, Les Pen seu rs russ es, op. cit. , p. 77
20 1
s
O
PEQUENO
x - Da
biografia
A história
rabugento: “ O único grup o de que ele p oderia faz er parte seria o grupo subversivo dos questionadores, a quem nenhuma resposta foi dada, pelo menos nenhuma q ue eles mesmos, ou aqueles que os compreendem, poderiam cogitar aceitar” .58" P restando atenção sobretudo a seus acentos impiedosamente destruidores, Berlin vê em Tolstoi “ o mais trágico de todos os grandes aut ores, um vel ho desesperado fora do alcance de todo o socorro humano, errando, cegado por si mesmo, em C olo no ” .581Ree ncontramos a figura de Édip o em Nicola Chiaromonte, o autor do segundo ensaio, servindo para sublinhar a redescoberta, em Tols toi, d o destino e da Nêmesis: “ Qua nto mais
A HISTÓRIA
INFINITA
Mas Tolstoi explica, por outro lado, que não existem circunstâncias materiais capazes de garantir ou impedir a liberdade inata do indivíduo. Para ele, a liberdade não é uma condição, mas uma experiência interior. É o que Pedro compreende ao longo de suas três últimas semanas de prisão, quand o desco bre “ que não há no mundo n ada de apavorante” : Ele aprendera que, assim como não existe no mundo situação em que o hom em seja feliz e inte iramente liv re, tampouco existe situação em que ele seja totalmente infeliz e privado de liberdade. Aprendera que existe um limite para os sofrimentos e um
o homem se engaja no tempo e no turbilhão das ações históricas, mais, do própno fundo de sua liberdade, emerge sua dependência em relação ao acaso e a uma neces sidade i nca lcu láv el” .582
E essa descobert a é tão poderosa que, uma v ez libertado pelo b ando
Tratas e, já o dissemo s, de dois co me ntá rio s fundamentais. Pareceme, no entant o, que o ceticism o de Guetrã e paz deve ser re-
de Denissov, Pedro sente a liberdade exterior como alguma coisa de supérfluo, c om o um lu xo .585
cond uzid o a prop orções mais justas. Em re alidade, T ols toi não nega a liberdade. Ele d iz duas coisas mais simples, e que são parcialmente contraditórias. De um lado, afirma que a liberdade não é um estado absoluto e total, o produto de um indivíduo autónomo e separado
te sobretudo nos momentos do romance em que o autor se exprime diretamente (o segundo epílogo e os capítulos mais teóricos). Mas,
dos outros, mas que se trata de um estado relativo, a expressão da
se o risco de desnaturar o pensamento disseminado que alimenta o
dependência recíproca sobre a qual repousa toda experiência social: Se consideramos o homem fora de suas relações com tudo o que o cerca, então cada um de seus atos nos aparecerá c om o livre. Mas
conjunto do poema tolstoiano. Mesmo estando intimamente ligados
se percebemos uma só que seja de suas relações com aquilo que o circunda, se percebemos o menor de seus laços com o que quer
talvez particularmente verdadeiro pa ra Tolsto i, que
que seja o ho mem que lhe fala, o livr o qu e lê, o trabalho que fa z, mesmo o ar que o en vol ve, mesm o a luz que cai sobre os objetos à sua volta vemos que cada uma dessas circunstâncias tem influência sobre ele e dirige uma parte de sua atividade. E nos damos conta de que, quanto ma ior o n úme ro dessas influências, m en or sua liberdade e mais forte a ação que sobre ele e xer ce a necessidad e.583
j
.
atribuindolhe o valor de uma mensagem final, conclusiva, corre
um ao outro, acontece frequentemente que o homem, o autor e o romancista vivam uma relação conflituosa ou pouco coerente. Isso e certamente tem
pensamentos de que sente med o” .586 Ademais, com o sugeriu Ber lin,
esgotada por ter aleitado seu filho, que rouba comida, ou o home m forma do na discipl ina, que nia cumprindo ordens) nos aparece menos culpado, isto é, menos livre e mais sujeito à necessi Esse elemento de
reflexão será ig ualmente retomado e
aprofun dado por Musil em
O
Ho me n
qualidades atravé s do personagem Moosbrugger. M lb id .t livro IV, t. 11, p. 552. A única circunstancia externa a que Tolstoi atnbui uma importância
em si, que tenha, iire
ga
príncipe Vassilitch, que esc onde “ uma emoçã o que é sempre a mesma , e a con que pronuncia a palavra “am ante” c om o qualquer outra palavr a. Sobre esse dualismo pnmano.
p. 118. N,C0b Ch,ar°mome. Leon Tolstoi,
Seja como for, o ceticismo está bem present e e aparece claramen-
vehnente, uma incidência enquanto tal sobre os seres humanos, é a oposição entre a campo: esse é um dom ínio ond e a substância se sobrepõe, encarnada p ela figura e pro du~ inevitave me enquanto a cidade, cegada pelos "olhos azuis pálidos da vida social
Ibi d . p. 298.
d d
limi te para a liberda de e que esse limite est á muito p róx im o.584
The Paradox of History, op. at..
p. 31.
La Gu err e et la Pa tx. op dt ., livro IV, t. II, p. 736. Nessa perspectiva, Tolstoi Uma VCZ SUas PcrP lex|dades em face da noç ão de c ulpa bilida de e de responsabili uai. quando conhecemos as condições de um delito, o culpado (a mãe esfomeada,
202
representativo da distinção entre bem e mal, cf. George Steiner. in lhe Old Criticism,
Ne w Yor k, Knopf,
por George Steiner,
Tob toy or Dostoevs
1959, cap. 2.
Maxime Gorki, Rfmín tffrr urs ofTotstoY, Chekh
ovand Andreev , Londres, Hogarth I res.,
Tolstoy or Dostoeusky, op. cit.,
203
p. 251.
y
n
y
O
pequeno
x - Da biografia
A HISTÓRIA
A histôsia
ainda que tenha querido a todo preço ser um o uriço, ele não consegu iu se desfazer de seu temperamento de raposa, sempre pronta a capturar “ a essência de uma vasta gama de exp eriênci as e de o bjeto s po r aquilo que eles são em si mesmos, sem buscar, nem conscientemente, nem inconscientemente, insenlos numa visão interior unitária, imutável total, por vezes contraditória e incompleta, por vezes fanática, mas sem tampou co buscar excluí los dela”. F el iz m en te , o romancista se rebela por vezes contra o autor: são então seus personagens que exp rime m essa parte dele mesmo que o escritor não conh ece c omple tament e.588Nà o é por acaso que nenhum deles reflete uma única Weltanschauung, nem mesmo aquela do romancista que, ademais, adrmtirá alguns anos mais tarde: “ Perdi o controle sobre An a Karenina, ela faz o que quer” .589Por isso, permanece indispensável levar em consideração as partes plena e puramente narrativas do texto: ainda que seja quase impossível esgotar a densidade, o entrelaçamento e a complexidade dos estados de alma que nutrem o pensamento de T olsto i, elas permitem perfurar a tela de ceocismo que cerca suas reflexões explícitas sobre a história. Uma vez apaziguados os momentos de cólera, durante os quais prima a lei da fatalidade, abolindo a própria ideia de uma livre atividade humana, Tolstoi renuncia a anular as escolhas, cessa de afirmar que não há nenhuma diferença entre o fútil e o importante, para dar a palavra à necessidade de e scolher, de agir, de in tervir. Seu comportamento lembra aquele do príncipe Bolkonski quando esse busca em vão se convencer de que tudo é inútil e insignificante. Mas seu instinto mantêm um discurso totalmente diverso. Seja em sua juve ntud e, quan do, para salvar a mulh er do m édi co d o 7o regimento de caçadores, aceita cobrirse de “ridículo, o que temia acima de tudo ,5' O u ainda na idade em qu e o entusiasmo juven il parece definitivamente comprometido, quando, após a campanha de Austerlitz e após te r encontrado Lisa já moribund a, d ecide não mais servir o exército e vive r “ só para si” na grande p ropriedade de Bogu tcharo vo, sem empree nder mais nada e apenas “acabar s ua vida
INFINITA
sem fazer o mal, sem se atorm entar e sem nada desejar”.591 Mas não consegue: graças à sua tenacidade prática, no espaço de dois anos, ele distribui um de seus domínios de trezentas almas a camponeses libertos, diminui os encargos e organiza cursos de alfabetização para os filhos dos camponeses e de seus empregados. Sua quietude é inicialmente perturbada por uma longa conversa com Pedro, que marca o início de sua nova existência interior, mesmo se nada exteriormen te d eixa s upôlo .592 Em seguida, é assa ltado por uma necessidade mcontrolável de se exprimir, que se desencadeia após sua primeira visita ao domínio de Rostov, na primavera de 1809. Não, a vida não está terminada aos trinta e um anos, decidiu subitamente o príncipe André, definitivamente , irrevogavelmente. Nã o basta que eu sai ba o que há em mim , é preciso que todo m undo o saiba, tanto Pedro quanto essa mocinha que queria fugir. E preciso que todos me conheçam, que minha existência não transcorra apenas para mim, que eles não vivam fora de minha vida, mas que esta se reflita na deles e que vivamos todos a mesma vida.
A necessida de de agir não é sempre algo que se dá de impro viso, unicamente desencadeada por uma ilusão —essa necessidade do homem de se imaginar, a todo custo, livre e que é sempre frustrada no epílogo. Ela nasce igualmente da possibilidade realista de transformar a própria vida, de reconhecer a existência dos outros em si mesmo e de si mesmo nos outros. Por vezes, mesmo, ela nasce da possibilidade de simplesmente influenciar os acontecimentos. “ E cada um, do ge neral ao soldado, tinha consciência de não ser mais do que um grão de areia insignificante ness e mar humano, mas experimentava ao mesmo tempo uma sensação de potência como parte desse todo for mi dá ve l” .594 Já falamos da lenta e substancial metamorfose interior de Pedro (precisemos apenas que, uma vez terminada a guerra, ele não renuncia a se erguer contra o governo). Nicolau Rostov segue uma via mais simples, talvez mais superficial, mas, sob certos aspectos, tão eficaz quanto a de Pedro. Inicialmente
Isaiah Berlin, Le s Pens eurs russes , op. at ., p. 5 7 . '“ George Stei ner, ToUtoy o, Dostoevsky, op. rít., Claudia Magns. "II mistero delle due scntture",
cap. 3 . II Co me re deli a seta , 2 de abril de 2000. A esse
s” Ibi d., livro II. t. I. p. 539.
respeito, Henry James observou que os pereonagens de Tolstoi estão impregnados de "uma maravilhosa
,u Ibi d., livro II, t. I, p. 502.
massa de v,da . Cf. também Mi lan Kunde ra, Les Tes tam ents trahis, Pans, Galiinurd, 1993. p. 22.
m lb id ., livro II, t. I, p. 543.
Leon Tolstoi,
La Gu err e e t la Pa ix, op. cit. , livro I, t. I, p. 234.
w Ibi d., livro I, t. I, p. 32H
205
O
PEQUENO *
- D*
BIOGRAFIA A HISTÓRIA
A HISTÓRIA INFINITA
aterrorizado pel as possibilidades de escolha que dev e enfrentar, decide se refugiar no seio do quadro estreit o e imutá vel d o Exército'. Lá ao menos, ele espera estar ao abngo das turbulências da vida e se tomar um homem excelente. Esse desígnio, que lhe parecia tão árduo no meio mundano, tomase, no seio do regimento, bastante realizável Essa incoerência da vida livre em que ele nào encontrava seu lugar e se enganava em suas escolhas, não existia mais aqui. Nada mais de Sonia com quem era preciso ou nào era preciso se explicar. Não era mais possível ir ou não ir aqui ou acolá não se dispunha mais destas vinte e quatro horas que se podiam utilizar de tantas maneiras diferentes; nada mais dessa multidão de pessoas entre as quais nenhuma é verdadeiramente próxima nem c omple tamente estranha; nada mais de relações financeiras confusas e embaraçadas com o velho conde; nenhuma chamada à terrível perda no jog o.. . aqui no regim ento , tudo era cl aro e simples. O mun do in teiro se dividia em duas partes distintas: uma. nosso regimento de Pavlogrado, a outra, todo o resto. E esse resto nào nos importa de m od o a lgum .595
E, no entanto, bastará que ele encontre a força de reconhecer seu amor pela pnncesa Maria, para descobrir que ele po de fazer , e será justa men te ele, o te m o Ni ko lu ka , am ed ro nt ad o pela desord em o mundo livre, que tratará o camponês não apenas como um instrum ento, ma s como um fim em si e um j uiz: “ N o domínio mais importante para ele, não estava o azoto e o oxigénio do solo e o ar nem tal arado ape rfeiço ado ou tal adubo especial, ma s [...] o trabalhador, o camponês” .s% VIII To lst oi não apenas com ba te o pr óp ri o cet ici sm o éti co, mas a por to os os meio s viola r a inacessibilid ade d o passado. Seu prezo pe o s historiadore s (co m o T hiers ou , pio r ainda, Henry e, que toma suas categorias científicas por fatos reais) é da ma natureza que aquele que André experimenta pelos milita e arc ay de Tol ly a Pfull e Benning sen). É um senti mento
profundamente impregnado de um desejo de desafio. Ele pede para ser desmentido: por si mesmo. Queremos dizer que nesse desprezo não entrava nem o personagem, nem o romancista: ele conduz o primeiro a abandonar o estadomaior para conduzir pessoalmente um batalhão, e o segundo a propor outra maneira de pensar a históna. C om grande frequência,
Tols toi cessa de agitar o espectro da
não exaustividade da históna. Mais do que se submeter a ela, tenta controlála. A m eia voz , atravé s da simples narração, ele reage ao dilema biográfico, que partilha com Carlyle, de uma maneira que não é nenhum po uco destruidora ou resignada. Com o? Graças a três pnncípios narrativos particularmente persistentes: personalizando a ação, multiplicando os pontos de vista, e dando livre curso ao movimento contínuo dos indivíduos e das situações. To do s os person agen s de Guerra e paz estão profundamente marcados por suas experiências sociais, mas raros são os raciocínios impessoais fundados sobre as massas, as classes, as gerações e assim por diante (com exceção da dualidade cidadecampo) ou os personagens representativos, ordinários, normais. Cada personagem tem um nom e e uma história : m esmo os personagens aparentemente insignific antes (como o cocheiro Efim, o empregado Tikon, a ama Savichna e o palafreneiro Prokofi), mesmo os mais medíocres, como Beg e Vera, sempre em rivalidade com os outros, nunca sã o banais e têm sempre alguma coisa de pessoal. Co m o diz T olst oi, têm uma personalidade legíti ma. Poderíamo s dizer — parafraseando o início de A n a Ka re nina — que cada um dele s é med íocre “ a seu mod o” . Nesse senti do, o determinismo de T olsto i nada tem a ver com o determinismo na turalista, que “ esmaga a vida, substitui a ação humana por meca nismos de sentido ú nic o” .597Sem dúvida, esse esforço de personalização, tão tenaz e intenso, dá a todos os aspectos da narração uma dimensão antropomórfica. Contrariamente a Flaubert, que quer descrever o mundo da natureza e os ob jetos materiais com uma precisão abs oluta, To lst oi utiliza as árvore s, os c orpo s celestes, os gorr os, para descrever as emo ções dos seres humanos. Co m o observo u, justamente, Ge orge Steiner, essa escolha, discutível sob certos aspectos, permitelhe
livro [I, t. I, p. 509. Levine de An a K a m m a ’1 ^ ^
acrimonioso, apodíctico, aparentemente sem apelo, e, no entanto,
^
N‘C° laU“ ralevada adlante Pel°
personagem Conscanti no JeanPau l Sartrc, Qu*esl-ce que
206
la littérature ?, Paris, Galliinard, 1948, p. 163.
207
O
PEQUENO X-
Da
biografia A h istóri a
A
HISTÓRIA INFINITA
omper com a tradição realista um pouco mecânica, que dá ao leitor uma sensação de coaçâo e de inumanidade: o pivô de seus escritos jamais deixa de ser o ser hum ano, co m seus erros e suas dores.59"
de uma noite que vê o jo ve m Niko luch ka Bolkonsk i presa de pesadelos.
Provido de um sobrenome, de um nome e de um pouco de históna, cada personagem pensa, olha e sente as coisas a seu modo
de dar forma à vid a através da lín gua, ainda não se tivesse esgo tado ” .601
Um hom em não tem um determinad o aspecto, é sempre out ra pessoa que nota que ele tem esse aspecto: as mãos de Karenin são grosseiras e
para além de Krasnaia Pakra, aquela que deveria ter sido fatal para o
ossudas quando Ana as olha e são brancas e suaves através do olhar de
perdição. Isso se toma ainda mais evi den te se, por um instante, tentamos
Lidi Ivan ovna.599O mesmo se dá com os acontecimentos históricos. O encontro dos dois imperador es em Tilsitt não tem a mesma significa ção
escutar mentalmente o relato da ruptura entre André e Natacha. Se não tivesse havido em Natacha um não sei quê de excessivo que a tomava
física e moral para aqueles que se encontram no QuartelGeneral e aqueles que estão no Exército: enquanto Bons Drubetskoi não con-
Como tudo isso terminará? Essa solução narrativa não exprime unicamente a pressão da enação, c om o se “ esse êxtase oculto, que nasce do fàto É um ponto a que já f izem os alusão, a propósito da march a de flanco Exército russo e que conduziu, ao contráno, as tropas francesas à sua
infeliz, e se André, uma ve z lo nge dela, não lhe tive sse dado a impres-
sidera mais Napole ão com o um inim igo e sim com o um soberano e
são de viver uma verdadeira vida, de ver novos países e novas pessoas que lhe interessavam... se o príncipe Bolkonski, esse velho srcinalão,
organiza alegres jantares com os ajudantes de ordens franceses, Nicolàu
tivesse aceitad o que seu filho quisesse mudar de vida,
Ros tov expenmenta sempre o me smo sentimento mesclado de ód io, de desprezo e de medo. Longe de se irritar com esse caráter irredutí-
nela algo de n ov o, quan do, para ele, a vida já estava terminada , se a princesa Maria não tivesse sido tão ciumenta, se Dolokov não tivesse
vel, Tolstoi faz dele um ponto de interesse para dar a palavra à imensa diversidade do s espíntos humanos , qu e faz co m que uma verdade não
se divertido manobrando a vontade de Anatole, se a mãe de Natacha não tivesse ficado com o pequeno Pétia nos campos de Otradnoie...
se apresente jamais do m esm o m od o a duas pessoas.600 Ref orça nd o
Mas também se, se, se... talvez, então, Natacha não tivesse permanecido
uma forma literária clássica, aquela das duplas e das triplas intngas, ele cultiva, mais do qualquer outro, a coexistência das imagens diferentes
tanto tem po tomad a dessa tristeza que a fazia pensar que nunca mais acontecena nada, nada, que tud o o que havia de belo já acontecera , e ela teria podido sentir também entre ela e Anatole a força dos obstáculos morais que experime ntava e m relação aos outros homens. A o lo ngo de
o mundo. Sua prosa ignora a unidade, e suas explicações fogem da generalização: a única coisa que une verdadeiramente todos seus personagens e a rebelião do múltiplo contra o uniforme. Enfim, Tols toi nào se contenta em contar os difer entes pontos de vista, ele faz com que se mexam: o múltiplo de Guerra e Paz nunca é movei. Não é, portanto, surpreendente que a trama não tenha nem inicio nem fim b em estabelecido: somos imediatamente projetados, sem pream ulo nem apresentações, no calor de uma conversa ção em casa de
introd uzin do
todas essas passagens, o efe ito de e co sugerindo que cada um deles evoca ainda outros, Tolstoi conta o conjunto de circunstâncias infelizes que deixam Natacha à mercê de Anatole como um movimento absoluto. Somos mergulhados numa melodia que continua a ressoar em nossos ouvidos muito tempo após a execução da peça. T o d o o relato está imp regn ado de uma esperança, e mbor a não
a avlovna, on de a alta socieda de de São Pete rsbu rgo (on ze de seus epresentantes presentes, mais vinte e três citados) comenta a execução
seja pensável reconstituir todos os gestos, as ações, os pensamentos que formaram um acontecimento, talvez seja ao menos possive
o uque de d Engh ien, para sermos em seguida dispensados ao longo
evoc ar as perdas, as discordâncias, as incoerê ncias, as possi 11
George Stein er, Tohtoy or Dostoevsky, op. dt..
não realizadas. Através de todos esses se, Tolstoi conta tam em que não teve seguimento, o que foi e se interr ompeu. Diz no q o acon tecim ento só estabelece sua necessidade após ter se pro u
cap. 2 .
1981 t I p^303 Jo um au .x (1976), traduzido do alemão p “ °Leon Tolstoi , L> Gu err e et la Pm x, op. dt ., livro II, t. I, p
°r Philippe Jacco ttet, Éditionsdu Seuil
,
559.
**" George Steiner,
Tolstoy or Dostoevsky, op. cit.,
p 15.
209
,
O
PEQUENO X-
Da BIOGRAFIA à
HISTÓRIA
CAPÍTULO VII
mas que, 110 momento da realização e do encadeamento das ações, existiam outros possíveis que po deriam se realizar: eles foram apagados, eliminados d o resultado final, mas i sso não sign ifica qu e tenham sido menos re ais. Outro exemplo feliz, des ta vez se desenrola pouco antes da fuga de Moscou, quando um oficial se apresenta a Rostov para lhe ped ir algumas charretes para os feridos. O con de dá inicialmente
Sobre os ombros dos gigantes
seu assentimento, depois, “ com o ele falava sempre quando se tratava de questões de dinhe iro” , fala disso timidamente com a condessa, que imped e seu marido de di ssipar “tudo o que temos, os bens das crianças ” , até que Natacha faça sua aparição. O rosto de com pos to pela cólera, ela acusa sua mãe de ter ordenado uma ignomínia e convence seu pai a ced er as charretes para o transporte dos ferido s. N o espaço de alguns instantes, o que parecia impossível se toma bastante evidente: “ Lon ge de lhes parecer estranho agora, parecialhes, ao contrário, que
i
não se poderia agir de outra forma; do mesm o m od o que, quinze minutos antes, ninguém tinha achado estranho que se abandonassem
Carlyle, os histori adores ale mães Dilthey e Burckard t, Tolsto i.
os feridos para transportar os bens, todos considerando que as coisas
Esse encadeamento de nomes não é apenas cronológico: cada um
não pod ena m se dar de outra forma ” .602
desses autores colaborou para a evolução de minha
N o coração da narração, Tol stoi deixa d e lado seus estados de alma céticos e propõe outra maneira de pensar a históna, 11 a qual os vazios são tão essenciais quanto os cheios. E voc and o os pon tos de divergência e as possibilidades inexprimidas da vida de P edro , de André e de Natacha, e de todas as outras “ quantidad es infin itesi mais” que participaram da campanha da Rússia, ele sugere inverter a perspectiva e ver nos limites da históna, em seu caráter inesgotável, uma de suas qualidades fundamentais. Nessa perspectiva, mais do que reconstituir as mil circunstâncias, pequenas, mais ou menos banais, que foijaram o acontecimento, tomase importante fazer compreender que elas
démarche. Mas,
como costuma acontecer quando se dialoga, não é simples fazer um balanço e discernir o que provém de um ou do outro. Essa dificuldade é ainda mais marcada visto que minha interrogação inicial sobre o valor heurístico da biografia gradualmente se ampliou e se transformou, para se abnr sobre uma série de questões concernen tes às possibil idades e a os limi tes do c onhe cimen to histórico. Com ecei este livro tomando a contrapé a ideia de que a biografia era um novo problema historiográfico. Pouco a pouco, compreendi que não se tratava apenas de reabilitar um debate, de reparar um erro historiográfico, mas que me defrontava com
um conjunto de argu-
mentos suscetíveis de dev olv er à História um po uco de sua qualidade
são mil, pequenas, mais ou menos banais e que bastava faltar uma
épica. Por isso me pareceu importante concluir esse percurso com
para que um fato não se produzisse. Em suma, o que conta, é parar de dissimula r o não finit o para tentar sugerilo.
um vaivém entre o passado e o presente historiográficos. Tratase aí, bem o sei, de um exercício perigoso por causa dos inevitáveis nscos de anacron ismo que o acompanham, mas espero que a r eflexão
Léon Tolstoi,
La Gue rre el l a P aix , op. at .. livro III, t. II. p. 318. Para considerações extremamente
interessantes sobre a lei da retrospecção que nos con
duz a representar o
paração em vista de certo fàto sucedido, verjacques Bouveresse, le hasard, la moyenne el 1'escargot de 1'histoire.
passado como unia pre-
L 'H om m e prob able. Rob ert Mu sil ,
Paris, Édmons de l’Éclat, 1993.
210
sobre o pequeno
x que o século X IX nos propôs po ssa nos ajudar
a dissipar alguns dos equívocos que embaralham a discussão atual sobre a história biográfica.
O
x - Da boguafia
pequeno
A histôsia
S obre
II
o s ombíos
d o s gigantes
grandes modelos de interpretação, marxista e estruturalista entre outros, sugenu a numerosos historiadores interrogaremse sobre a
Durante a segunda metade do século XX
, quan do o projeto
noção de indivíduo: em 1987, Bernard Guenée considera que o
biográfico parecia definitivamente abandonado, ele foi retomado
estudo das estruturas dá espaço demais ao que der iva da necessidade,
por algun s auto res difíce is de class ificar (com o Rich ard Hogga rt,
e, alguns ano s mais tarde, Ja cques Le G o ff escl arece que “ a biografia
Oscar Lewis ou Danilo Montaldi), todos desejosos de dar a palavra
[lhe] parece em parte liberada dos bloqueios onde os falsos pro-
àqueles que a Históna c om H m aiúsculo aban donara.603E é precisa-
blemas a mantinham. Ela pode mesmo se tomar um observatóno
mente nessa óptica, tão distante da abordagem tradicional da história
pnv ilegia do” .606 Dece pcion ado s e insatisfeitos com as categori as
política, que se dissipou pouco a pouco a desconfiança para com a
abrangentes de classe social ou de mentalidade, que reduzem o sen-
dimensão individual. Esteja ela ligada à memória dos marginais, dos
tido das ações humanas ao efeito de forças económicas, sociais ou
vencidos e dos perdedores, ou ainda daqueles que, mais simples-
culturais globais, mesmo os historiadores sociais resolveram, então, refletir sob re as trajetórias pessoais.6 07 Em suma, no de co ne r desses
mente, não contaram (na esteira da históna oral, dos estudos sobre a cultura popular e da história das mulheres 61’4), a reflex ão biográ fica
últimos anos, a dimensão individual se tornou uma questão central,
progressivamente retom
e a biografia, de certa forma, se democratizou: a aposta hoje não é
ou em toda historiogra fia.605 A crise dos
mais o grande homem (noção descartada, e por vezes mesmo tida por pejorativa), mas o homem qualquer. U CuUure áu PmWTe Étude sur le slyle de vie des cla sses populaires en Angleler re MJ C f R,c h‘“rd (1961), traduz ido do inglês por Françoise e JeanClaud e Garcia e jeanC laud e Passeron, Pan s, Editions de Mmuit, 1970; Oscar Lcwis,
Les En fan ls de S an che z. Au io bi ^r ap hi e d'u ne fam ille mex icaw c
(1961). traduzido do in gl « por Céline Zims. Pans, Gallimard, 1978; alia leggera, Tonno, Einauldi. 1961; Danilo Montaldi,
m U an ti pohti ci d, base , Tonno, E.naudi, Conlad.ni del Sud.
1961. Cf. igualmente os trabalhos de Rocco Scotellaro. Cf., entre outros, Raphael Samuel (dir),
Dan.lo Mont aldi, Aut obi ogm fie
Easl End Underuw
Ban. Laterza, 1954.
ld: Chaplers i n lhe U/e o/A nliu t Har d-
•ng , LondresBoston, Routledge & Kegan Paul, 1981; Paul Thompson, Oxf ord New York, Oxfor d Umversity P ress, 1978; She.la Rowbotha m, ea nó/ Ho m en's Oppressi on and the Fighl again st it ,
The Votces of lhe Pasl. Hi dd cn jr om His tor y: 33 0
Londres, Pluto Press, 1973;Jeremy Seabrook,
Work.ngClass Childhood.
Tonno operaia e fascismo: una Londres, Gollancz, 1982; Lu.sa Passenm, slonaorale. Roma, L aterza, 19 84; Julia Swin delk I t a IVr itm g an d H orking Women: V,e Other side o f Silen ce, Cambndge, Polity Press, 1985. C f Michel Manan, “
fhistoire
ari biographique
,
Espni. 1986, 117118,
p. 125131; François
re une vie, Pans, L j D écouve rte, 2(K)5. Numerosas
revistas consagraram
saisie par la biographie",
emente um número monográfico à biogr afia e à autobiografia C f, por ordem cronológica:
Ne w
Sdf "C ° nfr0nt*tl0n and Social Vision ” , 1977, IX. I, No uv ell e Re vu e de ps ychanal ise. ; Caluers inlematioiiaux de sociotogie, "H moires de vie et vie social e”, 198, XLIX , 2; Rev ue
,
v'e • 1983, 191; Sigma, “ Vende re le vite: la biografia letter aria", Sources, “Problème s et méthodes de la , . Le biographique , 1985, 63; biographie . Ac t« du CoUoque, Pans, Sorbonne 1985, 34; Dio gèn c, “ La biographie” , 1987, 139; „ f ' - ''Reflcct,0n' on th< Self\ 1987; Re vu e fr an ça s de psy cha nahs e, “ Des biogr aph.es, l 8 o, il.tnquête, Biographie et cycle de vie” , 1989, 5; Caluers de philosophie, “ Biograph.es. La vi e com me e e se dit... , 1990, 10; Rn/ue des scierues humaines, “Le biogra phique” , 1991, 224; Politix. Pôle Sud. “B.ographie et pol.tique", U biographie. Usagej srientif.ques et soc.aux", 1994, 27; , I «
,
raverse. Zettschr if fur Geschichte. Rev
ue d'histoire
, “ BiographieBio graphienBiogiaphi e
de l iiiiyi u' úii etna ndí'. "Le ^enre buigrjphique dins 1CS ' 2, R n u e d Al lnn ag iw el d es stonographies française et allemande contempora ines” , 2(K)1, 33; Re vu e des sciences hum aine s, lographies , 2001, 263; Li ttír atu re. "Biogr aphiq ues” . 2002, 128. N o que concerne às revistas
j consagradas ao género biográfic o, cf. Bio gra phy . A n Inte rdi scip lina ry Qu arl erl y (desde 1W8). Au to /B ,o gr ap hy Stu d.e s (desde 1985), 77 ,e Jou rn al o f Na rr a,i ve an d U fe H. slo ry (desde 1991). 1 Q7 ÍN
212
As novas experiências historiográficas me parecem ter se caractenzado por duas tendências contraditórias. De um lado, a biografia foi investida de esperanças desmesuradas, que iam muito além de um trabalho de compreensão cie
ntíf ica. O sociólogo
Da-
niel Bertaux contou muito bem como, em 1968, o relato de vida lhe apa recera com o uma ferramenta de conhecim
ento alternativa,
antiautor itária, do passad o, mas também co mo um instrumento de luta para transfonnar a sociedade n
Bemard Guenée,
Entre 1'Église et l'État.
o presente.6 08N o outro extrem o
Quatre vies de prélats fran gis à la Jin du M oyen Age ,
Paris,
Gnllimard , 1987, p. 14; Jacques Le Goff, Saint Louis, Pans, Gallimard, 1996, p. 15 N o que tange à redescober ta da biografia, cf., entre outros, Natalie Z emon Davis, TJie Retum of Xlartin Guerre , Pans, R. Laffont, 1982; J acques Louis Ménétra, Jou rna l de m a we. Ja cque s-Lo uis A létiétra, compagnon vitner au lífsiècle, Ed. por Daniel Roche, Paris, Montalba, 1982; Robert A. Rosenstone, Xfirror in the Sfmne: Ame rica n E ncoun ters uit h Xlc ijiJ afu in, Cambndge (Mass.), Harvard Umversity Press, 1998; Alam Corbin, Le Mo nde retrouv é de Liiu b-Fr ançoi s Pinag ot, sur les traces d ’un iticonnu , 17 98 -18 76 , Paris, Flammanon, 1998; Donna Merwick. De ath of a Nota r: Con que st and Cha nge in Colo nial Ne w Ywfc, Ithaca (N.Y.), Comell Univenity Press, 1999; Phihppe Artières e Dominique Kalifh, Vidal, le tu eur des fbnmes. Lhe biographie soante. Paris, Pemn, 2(M)1; Lucette Valensi, Mardo chée Naggiar , Pans, Stock, 2(K)8. Cf. o editonal “Tentons l'expérience”
, An na les E SC , 1989, 44,6, p. 13171323.
Haniel tíertaux , “ From the LifeHistory
Approach to the Transforma
tion of Sociological Prac
tice”, in Bio gra phy an d Soci ety. Th e U fe Hi sto ry App roa ch in the Soci al Sciences , Berveriy Hills, Sage Publications, 1981. Essa esperança marca igualmente a reflexão do Popular Memory Group da Universidade de Uirmingham (Centre for Contemporary Cultural Studies): cf. Popular Memory' Group, "Popular Mem ory: Theory, Politics, Method” , in Richard Johnson, Gre gor McLe nnan, Bill Schwar 2 e David Sutton (dir.), Xía kit ig His torie s, Londres, Hutchinson, 1982, p. 205252.
213
O
PEQUENO
* - Da
do espectro, predominava, ao con
biogra fia a HISTÔdlA
S obre
tráno, uma visão resign ada, mini-
o s ombros
do s gigantes
ciências sociais por permanecerem prisioneiras de uma ilusão própria
malista, que repousava sobre a estranha convicção de que o estudo de um indiv íduo permanecia, no fundo, uma empres a relativam ente simples.60'' Assim, em 1985, po r ocasião de um coló qu io organi zado na Sorbonne, as razões profundas (mas nem sempre conscientes)
ao senso comum que “ descreve a vida como um caminh
que traziam de novo à cena a consideração de destinos individuais viramse comodamente despachadas pela invocação genérica dos
e de finalidade” .612 Ap ós ter opo sto os conceitos de
registros da emotividade e da vivência. A biografia foi ali apresentada com o um recurso agradável , “ uma modesta ferramenta, que ajud a
como uma criação especiosa, fruto de uma pulsão narcísica. A
e a virtude), su as emboscadas [...], com portan do um com eço (“ um começ o na vida ” ), etap as, e um fim, em dup lo sentido, de termo históna e enquanto
a melhor observar ou ilustrar as tendências longas, as estruturas,
o, uma
rota, uma carreira, co m suas encr uzilhadas (Hércu les entre o ví cio
vida enquanto
habitus ,613 ele denu nciava o relato biográ fico
literatura se via toma da co m o testemunha para sustentar esta tese: “ É lógico pedir assist ência àquel es que tiveram que rom per com
os pesos; em hipótese alguma ela poderia pretender se tomar um fermento in telectual” .610 Con cedi aselh e, assi m, uma função de impulso, de exploração preliminar ou de simples ilustração. Enquanto as hipóteses teóricas requeriam ser estabelecidas por outros procedimentos, a anedota pessoal continuava a cumprir o oficio de suplemento de alma, de ornamento, ou mesmo de simples cereja
[o arbitrário da represen tação tradicion al do discurso romanesco]
.
Segundo Bourdieu, as ciências sociais deviam de agora em diante tomar como exemplo a literatura contemporânea que soubera, desde William Faulkner, libertarse de toda contaminação biográfica. Em realidade, toda a análise de Bourdieu repousava sobre uma nítida, embora implícita, tnpartição hierárquica entre o senso comum, o
em cima do bolo. Não se apelava à experiência biográfica com o desígnio de melhor com preend er o con texto social, m as unicamente com a finalidade de en feitar um d iscurso geral .611 Desse primeiro momento da renovação biográfica, bastante entusiasta, mas também, p or vezes, bem pou co refletido, emergiram entretanto três questões de fundo. A primeira concernia ao relato
discurso romanesco tradicional e a vanguarda moderna. Os dois primeiros estariam ainda subordinados à ilusão biográfica, ao passo que a tercei ra teria defin itivam ente rejeitado as noções de sentido , de suje ito, de consciência : “ É significativo que o abandono d
a
estrutura do roman ce c om o relato linear tenha coincidid o com o questionam ento da vida co m o existência do tada de sentido, no
biográfico; a segunda, à relação existente entre a biografia e a his-
duplo sentid o de significaç ão e de direção .6I4
tória, enquanto a terceira tangia às relações entre história e ficção.
Outras objeções de peso foram mais recentemente levantadas por Galen Strawson.
III
Nu m artigo pub licado em 2004 co ntra a
“ mod a” da narra tividade (aí compreend ida aque la da biografi a), ele A questão do relato biográfico foi posta de maneira radical
recolo ca em questão dois pontos em part icular. De um lado, a tese
por Pierre Bourdieu. Num artigo célebre, de 1986, ele criticava as 1’icrre Bourdieu, “ Ver a es se respeito lacquo
Le Goft (“C omm ent écnre une biographie historiqu
e aujourd’hui?',
Le
L'illusion biographique",
Ac tes de la rech enhe en sciences soo ales . 1 ti*.
62 63, 69.
P
. . .
Déb ar, 198 > 54, p. 4853) que obse rvi: “ O qu e me desola na atual prolifera ção de biografias é que muitas del.is são puros e simples retornos à biografia tradicional superficial, anedótica, rasamente
Donde a célebre metáfora do metrò: "Tentar compreender uma vida como uma sene umca e suficiente em si de acontecim entos sucessivo s, sem outro laço além da associação a um siy
cronológica, daquelas que sacrificam a uma psicologia obsoleta, incapaz de mostrar a significação
cuja constância . sem dúvida, não é mais do que aquela de um nome próprio, e quase ta
histórica geral de uiiu vid.i individual. É o retomo dos emigrados após a Revolução Francesa e o imp éno que não tinham aprendido nad a e nada esq uec ido'".
quanto tentar explica r um trajeto n o met rô sem levar em conta a est rutura da re e, isto e. reduc.on. smo associados a essa das relações objetivas entre as diferentes estações". Os nscos de
Hubert Bonin, La biographie peutellejou er um ròle en h istoire économ ique contemporaine?'' , in Ihob lèm es et mc lhod es de la biogr aphi e, op. cit. p. 173; cf. também Félix Torres, “ I)u champ de s
metáfora foram sublinhados por jeanClau
Annales a la biographie: réflexions sur le retour d'un genre". Cf. Godfrey Davies, "Biography and History",
ibid. p. 141148.
M od em La ngu age Qi ,a ne rl y, 1940, 1, p. 7994.
de Passeron. "B,ogr aph>es. flux. iti neraires trajectoires
Re vu e frai ifai se de socio logie . 1989. 31. p. 322; e Ol.vie r Schwartz, "Le baroque des b.ograph.es . Les Cah ier s de phi los oph ie, 1990, 10, p. 173183. Pierre Bourdieu, "L'illusion biographique ,
op. cit.,
215
p. 69.
.
.
O
PfQUENO
X
- D*
S obre
BIOGRAÍIA A HISTÔSIA
desc ntiva ” , segund o a qual a narração representaria um prin cípio organizador da vida e da ação humana (para responder à questão “ quem sou eu?” é preciso contar a
histór ia de uma vida). D e ou-
tro, a “ tese normativ a” , segundo a qual a narração constituiria uma condição de eticidade (a bu sca do relato biográfi co sendo percebida como essencial à conduta responsável no espaço público). Assim, após ter distinguido o eu episódico do eu diacrônico, ele postula que certas pessoas podem perfeitamente conceberse de um modo não narrativo, e que não há nenhuma necessidade psicológica ou moral de se conform ar a ele. Sem abordar diretamente o
problema
da biografia, Strawson sugere, portanto, que as noções de relato e de personalidade são convencionais, ultrapassadas, e que uma descrição da rea lidade pode perfeitam ente se poupar delas. A narrat ividade vai de par com
crítica da
a crítica da his tória: “ Sou um produto
de meu passado. Mas não segue daí que a compreensão do que sou deva necessariamente rev estir uma form a narrativa ou h istórica” .615 Co m vinte anos de distânci a, as críticas de B ourdieu e de
o s ombros
do s gigantes
Outras formas narrativas são, sem dúvida, evocadas especia lment e a escntura de vanguarda e o géne ro picaresco mas a argum entação visa sobretudo a narração dita tradicional. Bourdieu assimila a históna ( “ falar de histórias de vi da é pressupor ao menos q ue a vida é uma históna” ) à coerên cia (“ a ‘vida ’ constitui um todo, um conjunto coere nte e orie ntad o” ). Strawson, por s ua vez, estima que a narração encerra a existência no seio de uma unidade de sentido. Nos dois casos, a vida é considerada como um material psíquico que a escntura elabora retrosp ectivamen te im pon dolh e uma estru tura arbitrária: toda narração implicaria assim um processo de revisão e de manipulação da existência mais ou menos consciente. Enfim, é uma imagem fragmentada do indivíduo que se depreende desses dois textos. Bourdieu afirma que o único suporte constante da individualidade é o n ome próprio, a fim de negar m ais eficazmente a iniciativa individual, assimilar os comportamentos pessoais e exaltar a s coaçõe s normativas , a força do habitus. Strawson é mais audacioso. N o seu elo gio do ep isódico e da descontinuidade , ele chega a apagar a estratificação temporal da experiência:
Strawson repousam sobre argumentos diferentes e não se dirigem aos mesmos interlocutores: enquanto o primeiro se interessava essencialmente pelo uso que as ciências sociais fazem dos relatos de vida, o segundo intervém no debate filosófico e cognitivista sobre a natureza —real ou fictícia — do si. Seus argumentos con vergem , entretanto, em pelo menos três pontos importantes.
Te nh o clareza de q ue os acon tecim ento s de meu passado mais recuado não se relacionam com igo. [...] Isso não significa que eu não tenha nen huma lembrança auto biográfica de ssas experiên cias. Rec ord oa s [...]. Mas penso es tar no justo e no verdadeiro quando penso que [essas experiências] não m e aconteceram.
to Strawson o sugere quando escreve que os representantes do que
Para além do que os separa, tanto Bourdieu quanto Strawson me parecem prisioneiros de uma dicotomia estrita entre um eu metafísico, con ceb ido com o uma essên cia estável e permanente, e um eu nominal, que seria apenas uma realidade convencional, um
chama de “ maior ia prónarraç ão” (Paul Rico eur, Charl es Taylor,
ajuntamento de peças díspares.
Em primeiro lugar, o ato biográfico é apresentado por ambos com o de naturez a narcísica. Bourdieu o diz explicitamente,
enquan-
Alisdair Macln tyre, O live r Sacks, Jerry Bruner, Dan Den net, Maria
IV
Schechtman ej oh n C amp bell) estão animados por um sentimento agudo de sua importância pessoal. Em segundo, ambos apresentam o relato como uma forma rígida, que imporia inevitavelmente uma coerência fictícia à vida.
Pareceme que a reflexão sobre a narração biográfica desenvolvida pelos pensadores do século X IX nos preserva de uma visão individualista do i nd ivíd uo e, portanto, da biografia. N ão se trata aí de um simples jo go de palavras. A o l ong o do século X X , o contraste entre o
6ISGalen Stanvson,
" Against NarT ativity”
(2004), in GaJen Strawson.
Blackwell Publishi ng, 2005, p . 6386. C f também Galen Strawson, “A Evcry Life is Narrative",
Times Ueterary Supplement,
Vie Selfí.
Malden (Mass.),
Fallac y of our Age. Not
15 de outubro de 2004, p. 1315.
11 Galen Strawso n, “ Against Narrativity”
, op. dt.,
p. 6 8 .
217
O
pequeno
x-
Da biografia
a história
S obre
individual e o social frequentemente se fixou, como que mumificado, em duas não verdades opostas: uma escolha deveria ser feita, seja em favor do indivíduo, seja em favo r do cole tivo .'’17A tal ponto que hoje, por razões que não derivam apenas do debate historiográfico, longe disso, as noções de indivíduo, de pessoa e de sujeito desencadeiam automaticamente dois sinais de alarme: o mais antigo alerta contra a ideia de grandeza e de heroísmo, o mais recente contra o egoísmo e o narcisismo. N o entanto, os defensor es da dimensão individual da história nem sempre se deixaram extraviar pela retórica da grandeza e, sem dúvida, não teriam partilhado a vulgata neohberal sobre os direitos do indivíduo (que culminou, não faz tanto tempo, na famosa patacoada de Margaret Thatcher: “
Nã o c onheç o nenhuma socie dade,
para mim há apenas indivíduos” ). A lém do herói, cruzamos co m figuras complexas, ambivalentes e mai s sensíveis tais com o o “ eu que aspira ao tu” de Humboldt, a pessoa ética de Droysen, o homem patológico de Burckhardt: cada uma a sua maneira nos permite escapar à lógica simplista do ou/ou e nos aproximarmos do e/e. Essas figuras nada têm de autárquico. Burckhardt esclarece
o s ombros
do s gigantes
substâncias separadas: de um lado a dimensão individual, do outro a dimensão social. Outros preferem tramas mais profundas ou imagens mais fluidas. Eles no s fazem com preen der que o eu não é nem uma essência nem um dado invanável, mas uma entidade frágil, que se desenvolve na relação com os outros. É daí que procede a distinção fundamental proposta por Dilthey entre a noção de “ identidade” (Selbigkeit).
( Id en ti tà t ) e aquela de “ mesmid ade”
Contrariamente à identidade (termo proveniente do semper
baixo latim que deveria expnmir o caráter do ser em si, o
idem, e que fez um retorno obsessivo durante esses trinta últimos anos), a mesmidade tem dimensão temporal. Desse ponto de vista, a história não é apenas compreendida como uma disciplina ou uma profissão, mas com o um elem ento primordial da formação (no sentido alemão de Bi ld un g) social e políti ca de cada ind ivíd uo. 618 Ela é a condição sitie qua non
para que alguém se afirme como sujeito. E
nesse sentido que Burckhardt escrevia que a história é um fato pessoal que denva do c onh ecim ento qu e o hom em tem de s i mesmo,619 e que Meinecke lembrava que os autores mais sensíveis aos destinos
que um excesso de subjetividade —ou seja, de arbitrariedade e de
individuais são aqueles que percebem o alcance da história sobre sua
intencionalidade — suprime a s individualidades ( dond e suas per
vida pess oal.620 De acordo com tal concepção, tão pouco heróica e
plexidades diante da arte de Michelangelo) e que o essencial, na escntura histónea, reside na proporção entre as diferentes presenças
tão pouco narcísica, a biografia não é de modo algum uma forma de escri tura egótica. Bem pelo contrário, é a oca sião de apreender
humanas. E Humboldt, Droysen, Hintze reconhecem a dependên-
a densidade social de uma vida.
cia substancial do indivíduo. Uma dependência que não significa
Essa reflexão sobre o indivíduo, fundada sobre a ideia de
pe rt en ci m en to . Ao longo de diversos decénios, assombrados pela
Bt ld un g, dá lugar a uma definição dinâmica e não substancial das
obsessão de catalogar os seres humanos (pela nacionalidade, pela
difere nças. Tratase de
cultura, pela raça —depois pela cor, o ângulo facial, o índice cefáli-
contrasta com uma visão naturalista que repousa sobre os concei-
um p onto particula rmente importante, que
co e outros), esses historiadores não cessaram de dizer e de repetir
tos de srcem, de pertencimento e de identidade (social, nacional,
que cada indivídu o é uma pluralida de, uma estratifi cação temporal,
racial ou sexual). Ela nos convida a considerar a diferença como
comportando inevitavelmente algo de bastardo e que não é suscetível de ser arrumado num só e mesmo compartimento. Naturalmente, a relação indivíduocomunidade é declinada de diversas formas. Alguns autor es consideram o ser humano
com o uma soma de du as
18 Essa perspectiva foi retomada pela psicanálise. Sobre a noçao de consciência e de sujeito na a^or
dagem psicanalítica, cf. Paul Ricoeur,
D e Vin terp réta tion . Ess ai sur Fre ud, Pans, Editions du Seui , Le Su jet . his lan ceg ram ma tic ale se hn
1965, livro III, cap. 2. Cf. também Michèle líompardPorte, Freud , Paris, L’Espnt du Temp s, 2006. ‘Jacob Burckhardt,
Ct. Norbert Elias, Favard, 1991.
Lm
Sonèlè des individus
(1987), traduzido do alemão porjeanne Étoré, Paris,
Le Cic ero ne, op. cit ., p. XIX.
Friedri ch Meineck e, “ Die Bedeutung der geschic
htlich en Welt
xandre Escudier, “ De Chladenius à Droysen. Théorie et allemande (17501860)",
An nú les . 2003, 58, 4, p. 773775.
219
, op. cit. C f a esse respeit
méthodologie de
1histo ire
e
gu
O
píqueno
x-
Da biografia
a história
S obre
uma noção relacional: não é mais questão aqui de substância ou de determinação srcinal, mas somente de experiências. Além disso, os pensadores do século X IX eram menos ingénuos do que por vezes se pensa e muitos deles estavam bastante conscientes do risco a que s e expunham atribuindo à vida uma coerência ou uma coesão forçada Des ejoso de ir além da superfí cie factual do passado os acontecimentos políticos, militares ou de corte , Carlyle compreende bem que a História não é uma sequência coere nte de fàtos, mas que ela é feita de um encavalamento de fios entrelaçados ao longo do tempo.
o s ombros
do s gigantes
o trabalho, a escola, a religião, etc.) e o eu seria assim desprovido de toda espessura temporal. Dilthey evoca esse risco em sua crítica da psicologia de seu tem po.623 Co nve nc ido de que o fato de s er autor, de se contar mesm o que de maneira descontí nua e episódica constitui um a das con diç ões necessárias para vive r, pare celhe decisivo aplicarse em reconstruir o fio dos pensamentos que um indivíduo trança entre uma situação e outra. Somente levando em consideração esses três perigos é que podemos pensar o indivíduo ao mesmo tempo como ser impreg-
Entretanto, ele nos indica, com outros autores, que a ilusão biográfica
nado de história e “ inte ligên cia qu e considera e a nalisa tudo isso”
não é o único obstáculo. Dois outros perigos devem ser evitados.
Willia m James falaria aqui de uma “ inteligência inteligen
O segundo concerne à lógica do p
te” .624
ertencimento (religioso , social,
temporal, etc.), que, de bom grado, inscreve o indivíduo em categorias sociais rígidas, ou que escande sua experiência de acordo com um calendário de acontecimentos históricos estabelecidos
a priori (o
advento da democracia, a ascensão do capitalismo, a independência nacional, etc.).6 21 Sobre esse pon to, a Hi stón a tem mu ito a aprender, pareceme, com a literatura. S ensível aos impulsos incoerentes,
frágeis
e fragmentados da vida social, Tolstoi escreve que os acontecimentos não têm sempre a mesma significação e que os indivíduos vivem a História segundo modalidades muito diferentes e quase incomparáveis. Co m o testemunha m os relatos pungentes do livreiro Mendel de Stefan Zwe ig, ou do antiquáno U tz (uma espécie de descen dente
V Abordemos agora a relação problemática entre a biografia e a História. A vida de um ind ivíd uo p ode esclarecer o passado? Os testemunhos pessoais permitem formular hipóteses de ordem geral? E, além disso, o que é importante na vida de uma pessoa e o que não é? A partir do que apreciála e co m o dar conta dela ? E preciso levar em conta a liberdade, a independência nacional, a democracia, ou o exército, a escola, a família, ou ainda a classe social, o capitalismo, ou talvez mesmo outros ind ícios co m o o barulho, a doença, a poluição?... E com base nessas questões, no coração mesmo dessas interrogações, que se desenvolveu a microhistória. Essa experiência historio
do p nmo Pons de Balza c) de Bruce C hatwin , que vive m as guerras, os golpes de Estado e a s expulsões com o v agos ruíd os de fu ndo, esse
gráfica contribuiu, assim como a história das mulheres e os trabalhos
tema das discordâncias de significação que atravessam a história co
que versam sobre a cultura popular, para restituir aos vencidos da
letiva assomb ra uma boa parte da literatura do s éculo X X .622 O terceiro nsco é aquele de uma visão esfac elada, fragmentada da vida, como uma séne de clichés instantâneos: a experiência individual seria fracionada em compartimentos estanques (a família,
,23 E igualmente o sentimento que se pode depreender do artigo de Strawson e de certas análises do
interacio nismo simbólico, da etnom
etodologia e
da network analysis
, que concebem o eu como
produto hic et nunc determ inado pelo context o relacional contingente, pelo Cf. Sabina Lsrca,
Soldais.
Un lahoratoire interdi sciplirt aire: Van ttée piémontaise au X
um
outro situaci onal . V W siècl e
(1991),
Paris, Les Belles Lettres, 2007, introdução. William James (Th e Principies of Psychol ogy (1890), Cambridge (Mass.), Haivard Umversity Press, Sobre o pertencimento temporal, cf. as observações de Ja d anachromsme et la venté de
1 'historien",
Vinacluel,
cques Rancière,
“ Le concept
1996, 6 , p. 5 3 68 .
Outro bom exemplo é aquele do agente floresta] Engelber (personagem de escntor tcheco JaromirJohn) , evoc ado por Milan Kundera em
1983, cap. 1 ) constata que, contrariamente à limalha de ferro, que, em presença de um obstáculo, nào consegue atingir o imà, R om eu im agina toda sorte de meios p ara encontrar Julieta.
M ons tro à e xplo são, do
Le Ri de au . Es sai en sep t par ties, Pans,
de vista é também o de SiegfVied Kracauer,
Jac que s Off enb ach ou Le Sec rtl du Seco nd Em pi rt (1937),
C.allinurd, 2005. O aconte cimen to pnncipal de sua vida nào é nem o nascimento da República
traduzido do alemão por Lucienne Astruc, Pans. Le Promeneur. 1994: Offenbach é apresentado
independente, nem alguma invenção técnica (o avião, o telefone, o aspirador, o telégrafo), mas simplesmente o barulho.
a um só tem po co mo uma sorte de ferramenta de precisão, reveladora das
220
Eles
não ficariam tolamen te cada um de seu lado, o rosto p ressionado contra a parede . Esse ponto
menores transformações
sociais, e como um protagonista capaz de exercer influência modificadora sobre o regime.
22 1
O
pequeno
x
-
Da bi ografia
A história
S obre
históna uma dignidade pessoal.6 25E m 1976, Car io Ginz bur g se vali, da celebre questão do leitor operáno de B ertolt Brecht (Ou em m m „u Tebas, a cidade das sete portas?) par a dar a palavra á ™ u ano do seculo XV I. Alguns anos m a.s tar de, Giova nn, Levi nà o hesitou em ,r mais adiante: se o mole.ro Menocchio trana ™dã algumas marcas de heroísmo, Giambatrista Chiesa, o cura da aldeia piemontesa de Sa ntena, e verdadeir amen te um h om em q ualqu er626 E dessa aliança entre convicção política e reflexão metodológica que nasceu a ideia de utilizar os materiais biográficos de maneira agressi a a fim de questionar ce rtas homog eneid ades fictícias (tai s como a nstituiçao, a comu nida de ou a classe social) e d e se debruç ar assim sobre as capacidades de inic iativa p essoa, d os a t o r t t S n c o s " a m i ^ T " ate" Bn ,ente os 'dos dos s istemas normativos a microhistona demonstra que■""™ o contexto históneo corresponde em maisa um tecido co njuntiv o atrave ssado de campos elétnc os de intensidade vaná vel do qu e a um co nj unt o co mpac to e « e b a st a rd T t^ d sas “ T ™ H
' qU3lqUer ‘nd'V ÍdU° reprK ent a uma f« “’n " ° cmzam en‘° experi ência s socais diver
Ela é acomn h 7 ™ CrUCÍl1 Para >h.s tóna e para a polis. de v e Z P " 0 entan '° ’ reconhe çamolo, de uma sensação c t r f ' o con text o co mo uma sénede ferínci a ,^ erp0' t0' os (3uals ° ce ntro de um se situaria na circun histónca se rn ° ^ aSSI1'1 d'ant e’ ° trabaJho de co mpreensão a Zoutro o eespaço i lneS80tÍVel' e « d , temp o remetendo a e outro tempo. Cad*
o s omb ros
d o s gigantes
A pnmeira dessas utopias concerne à representatividade biográfica: ela se vanglona de poder descobnr um ponto que concentraria todas as qualidades do c onju nto . O historiad or deveria, então, cindir seu trabalho em dois tempos: determinar inicialmente o indivíduo representativo (o camponês normal, a mulher comum, etc.), depois, por indução, estender suas qualidades a toda uma categoria (o campesinato, o género feminino, e assim por diante). Assim, Mich el V ov elle declar a que Joseph Se c “ testemunha por um grup o” (a bur guesia f rancesa da província no século XV III ), enqu anto Joèl Co rnette procur a em Benoit Lacom be “ não m ais o Único , mas um espelho que refrate tod o um mund o” .629C oloc ando a pesquisa biográfica na perspectiva de uma generalização, tal abordagem desemboca na busca obsessiva de experiências médias : os aspectos mais comuns (ou antes: aqueles que têm a reputação de o serem) são exaltados em detrimento daqueles que seriam mais pessoais e particulares.6 30Q ua lqu er um que se tenha interessado po r fontes biográficas (diários íntimos, correspondências, memórias, etc.) sabe que, se aderimos a essa utopia, tenninamos inevitavelmente por embotar a especificidade dos destinos pessoais e por arruinar a vanedade da experiência passada: de maneira aparentemente inofensiva, negligenciam os e me smo corrigimo s os elementos egot istas da biografia (uma opera ção que não deixa de lembrar os cons elhos dos positivistas sobr e as idiossincrasias indivi dua is).631 O resultado de semelhante trabalho de censura é dos mais melancólicos: o tempo histórico se to ma uma superfície desprovida de impressões digitais. 632
^ena í^ Zer se’ 30 ^on g ° desses últimos anos, soubemos
resistir a
t e n Z Z T r SenS3Ça° e Vemg em PerSuntonie por vezes se não abracand d " tempen! "la ou m™ » negá la. A ponto de remediála abraçand o duas utopi as Pau|R iCOeur diria duas formas de hybm.
' Cf. Michel Vovelle,
L ‘Irrés istibl e As cen sio n d e Josep h Sec, bourgeoi s d ‘Ai x, A ixenProvence,
1975; Joèl Com ette , Um révolution naire ordi naire. Benoit Lacombe, négocia Vallon, 1986. Essa perspectiva da representatividade
nt, 175 9-18 19,
histoire” , in Je ux d ’échelles, op. dt ., p. 78; Alain Boureau, Qtudemi >torid,
p* w
scambio dise guale ",
J '“" m eu ," e' du X V t siè de ( 1976)' traduzid o ain mano n Gio vanm Levi , Le Pou voir au vtllage
Cf. Jacqu es
' 989'
£ " ’■G
a C ^ É ^ m
r 7 \ Z ^ nJe“X d’khe"eS ^ XIUT0-ú"úlySe
Ítalo Calvino e xperim entou isto: “ Hoj e dev o me resguarda r de outro erro ou de outro mau háb ito próprio àqueles que escrevem lembranças autobiográficas: a tendência de apresentar sua própria experiência como a experiência ‘média’ de uma determinada geração e de um determinado meio, fazendo sobressair os aspectos mais comuns e deixando na sombra aqueles que são mais particulares e mais pessoais. Diferentemente do que fiz em outras ocasiões, gostaria agora de acentuar os aspectos que mais se afastam da 'média' italiana, porque estou convencido de que se pode tirar sempre mais verdade do estado de exceção do que da regra". Cf. ítalo Calvino, Ermite à Paris. Pages autobiographú iues (1996), traduzido d o italiano porJeanPaul
a ~ e proposi
toTomulouTox^o '“ oximoro
Quaden u s,ona"* ‘° CM,C" excepcional nomial” .
1977
De I échelle en
His toir es d ’un histo rien. Kan taro unc z, Paris,
Callimard, 1990, p. 7576.
Cario Ginsburge
do italiano por Mo rique (1985 ), tradu zido do ítalian
Le
Mo nd e retro uué de Lou is-F rati çois Piti agot, op. dt. Sobre os risco s implícitos dessa operação de estandar tizaçào, cf . Bemard Lep etit,
Cario Poni "II i 1979 t 40 p 181’ ] 9()n0mC * COmc M ercato stonografico e
Edisud,
Pans, Champ
é partilhada também por AJain Coubin,
35. P 506520. qu e,
2 Cf. Giovanm
Manganaro, Pans, Édidons du Seui l, 2001, p. 41.
Levi, "Le s usages de la bi ographie",
223
An nal es E SC , 1989, 44, 6 , p. 13251336.
O
PEQUENO
x- Da biografia
A história S obre
A segunda utopia é natur alista. To m ad o por esta , o historiador não persegue mais a identificação de um ponto miraculoso que refletiria o conju nto his tóri co em sua íntegr a, mas visa, desta vez “ à históna de ca da um” . A in teligente aposta lan çada por Giova nm Levi de abordar o passado de maneira intensiva (através da reconstrução dos “acontecimentos biográficos de todos os habitantes da aldeia de Santena que deixara m algum rastro docu me nta l” 633 fez nascer muitas vezes, no seio da segunda geração
de m icrohistoriadores, o
o s omb ros
d o s gigantes
a históna, uma discordâ ncia, uma descontin uidad e.636 Impo rta, po r conseguinte, af astar toda lógic a de submis são ou de dom inação (da históna sobre a biografia ou reciprocamente) e conservar a tensão, a ambiguidade, considerar o indivíduo, a um só tempo, como um caso particular e uma tota lidad e.637 Tra ta se de uma emp resa dif íci l. É, aliás, p or isso que co m ec ei essa reflexão com Carly le: co m ele, é com o se estivéssemo s lidando
sonho de fazer concorrê ncia co m o estado civ il (para empregar um a
com um doente ultrassensível que, em certo momento, exausto, se
expressão cara a Balzac). E
engana de medicamento, mas que tem a coragem, antes do gesto
po r que não? de elaborar categ orias
mterpretativas que aderissem plenamente à realidade empírica.
fatal, de se colocar algumas questões fundamentais. Poderíamos
Trat ase de uma co nc ep çã o qu e pr ete nd e faz er do con hec ime nto
dizer que o “ co rp o” de seu texto dá a refletir . O desejo de escrever
uma cópia integral da realidade. Ela lembra os cartógrafos evocados
uma história profunda, preocupada com os limiares do mundo, o
por Jorge Luis Borges qu e, desejando fazer um mapa perfeito do Impé rio, co nstro em um co m as mesmas dime nsões qu e esse.634 O
atrai a um precip ício. Esse abismo está fortemente aparentado com aquilo que Jean Claud e Passeron definiu com o “ a ilusão da pan
empreendimento é, claro está, impraticável. E, mesmo que fosse
pertinência do descrit ível” : “U ma vez que tudo iss o faz parte do
possível, de que serviria? Esse mapa contribuiria verdadeiramente para a restituição da realidade viva de uma época?
real, do direto , do singul ar, [...] tom ase afetivamente difícil deixar
São também essas solicitações utópicas, que vivi pessoalmente por ocasião de uma pesquisa consagrada a um exército do século X V III,
que me suger iram lan çar um olhar par a trás, sobr e a época
que precede o divórcio entre a história social e a história política.
VI
sabor tudo é sentido como metonímico ", 638 N o coração desse abismo, nenhuma desc rição é possível: o caos do passado se reveste de traços cada vez mais angustiados, a ssim com o o pesadelo evocad o por Feman d Léger, que que se perca a menor parcela, já que cada uma participa do total do relato [...]. Tudo parece pertinente porque
imaginou o horro r susci tado pela tentati va de filmar vinte e quatro horas da vida de um homem e de uma mulher, sem omitir nem um gesto n em um a palavra.639 É igu alme nte para escapar aos horrores
O projet o que visa personalizar a história, con
duzid o através
do século XI X , é do mina do p or uma tensão ética, ligada à
herança
kantiana, que tendia a sublinhar a capacidade de autonomia e a respon sabilidade indivi dual. A distinção entre
do abismo que Carlyle se entrega tristemente ao culto dos heróis. Em face da extraordinária vitalidade —e dos impulsos incoerentes, frágeis e fragmentados —do passado, o historiador experimenta
ética e moral decor-
re dela. o trabalho do historiador não é moral, no sentido de que não propõe exemplos a seguir, mas é ético, pois faz aparecerem as questões inseparáveis da escolha, do erro , d o fracasso. Alé m de fazer parte da históna, a biografia oferece também um ponto de vista sobre
A esse propósito, Siegfned Kracauer
(Tlteory of Fihn.
The Redcmption o
f th e Physic al Reahty
, New
York, Oxford University Press, 1960, cap. III) observa que, no cinema, o primeiro plano nào é apenas um elemento da narrativa, mas também uma realidade autónoma que pode contrastar com Intoler ância) o quadro gera] (por exemplo, as màos de Mae Marsh em Jean Clau de Passeron e Jacques Re ve l ( Penserpar cas. Paris, Éditions de 1EHESS,
Figures , 2005)
definem o caso como algo que vai além do exemplo (um obstáculo, um enigma). Giovanm Levi,
Jean Clau de Passeron, "Bio grap hies , f lux, itinéraires, trajectoires*', op. cit. C f. ainda JeanClaud e
Le pou voi r au villa ge, op. rir, p, 1 2 .
Jorge Luis Borges e A do lfo Bioy Casares. Chroniques de Bustos Domecq por FrançoiseMane Rosset. Pans. Denoel, 1970, p 41 -44 Sabina Longa . Soldais, op. at.
224
Passeron ejaeques (1967). traduzido do espanhol
Rev el (dir.) Penser par cas, op. cit.,
apropósito do
positivismo de sempre
que
visa a uma completa inteligibilidade da realidade. Cí.
A prop os du
cinc ttia, in AA . VV., lnteUig ence du anématographe,
Paris, Corrêa, 1946, p. 340, citado por Siegfned Kracauer,
225
sob a direçào de Mareei L Herbier, UHistoire, op. citt
p. H7.
O
PEQUENO x -
Da
biografia A história
S obre
o s ombros
do s gigantes
uma penosa sensação de vertig em . A lguns, co m o C arlyle (ma s também, em outros termos, Herder e Droysen), não a suportam:
de sismógrafo.6 41 Assim c om o Droyse n, ele insis te sobre a diferença
para se subtrair ao sentimento de fragmentação e de desagregação eles sucumbem à mira gem da unidade da história. E mbora isso possa parecer parado xal, desse pon to de vista (e unic amen te desse ponto de
se contentar com a pnm eira sobretudo quan do não escreve uma
vista), a utopia naturalista e a da representatividade são a expressão do mesmo malestar.'’4 0 O histori ador “ naturalista” também esp era
pode evocar um processo de metamorfose pictórica que repousa
poder escapar à vertigem por um golpe de força: descobrindo um ponto mágico a partir do qual seria possível refletir a totalidade ou fazendo do conhecimento um duplo da realidade. Mas outros historiadores —ou
outros pen sadores que se inte-
entre a exatidão e a verdade e estima que o historiador não pode crónica dos acontecim entos , mas deve se aplicar à apreensão dos pensamentos e do imaginário do passado. Nesse plano, a história essencialmente em duas operações: a impregnação (poderíamos dizer que o historiador deve estender seu eu para além de si mesmo) e a conexão (para imaginar e, talvez, preencher as lacunas do passado que nos é dado apreender). A analogia com a arte tem, no entanto, limites bem evidentes.
ressaram pela história —compreenderam que era preferível aceitar a sensação de ve rtigem e tirar partido dela mais do que tentar evacuála.
Mesmo reconhecendo que a verdade histórica não é uma simples
Eles nos ensinam que, ainda que o trabalho de contextualização seja interminável, isso não é uma deficiência a evitar, mas uma possibi-
reprodução da realidade, Burckhardt sublinha a diferença entre imaginação e invenção: o histonador não pode modelar a matéria a seu
lidade positi va de conh ecime nto. Em outros termos, o
que está em
jo g o para o histo riador não reside nem no geral ne m no particular, mas em sua conexão. Co m o escrevem Hu mb old t e Dilthey, a his tóna é um conhecimento hermenêutico fundado sobre a circulação, não forçosamente viciosa, entre as partes e o todo. Bem entendido, não é possível dissertar sobre a vitalidade do passado sem se debruçar sobre sua opacidade. C om o escreve M einecke, o historiador trabalha num campo de ruínas. Refletindo sobre a distância entre o passado e a históna, vários autores entre aqueles que examinamos descobrem que, para além dos fatos, há um resto fundamental que liga entre si os diferentes fragmentos e que dá ao todo uma forma que só pode ser apreendida pela imaginação histórica. O matenal histórico sendo a um só temp o inf inito, lacunar
belprazer, sua imaginação deve pennanecer ancorada na documentação e se submeter à exigência da prova. O mesmo se dá para Me yer que é favorável a uma espécie de autolimitação voluntária: o historiador não tem o direito de enar livremente, como o poeta, porque sua imaginação deve pennanecer ligada aos fatos. Quanto a um segundo ponto, essencial, a história se distingue da literatura: tratase da finalidade do relato. Contr anam ente à literatura (na verdade, Burckhardt, assim com o Ran ke e outros, pensa sobretudo no romance h istórico), a h istória não segue (ou antes, não deveria seguir) uma lógica da sedução, ela não domestica o passad o, não o toma p ropositadamente fa miliar, bem pelo contrário, busca lançar luz sobre sua altendade.64' Sob certos aspectos, estamos em presença de uma espécie de definição
avant la lettre da
históna como processo de estranhamento .643
e aleatóno, Droysen constata que a exatidão do fato é certamente um elemento indispensável, mas não suficiente: todos os cacos de um edifício, colocados uns ao lado dos outros, não podem expressar a realidade viva do próprio edifício. Entre os historiadores, Burckhardt é sem dúvida aquele que sentiu da maneira mais aguda a evidência das perdas do passado : essa percep ção lhe c on fere uma sensibilida de
641Para retoma r a imagem de
Aby Warburg. “ Tex te de clôture du sé minaire sur Jacob Burckhardt , P
Sobre a pesqu isa histórica como criação de
ausentes e, em geral, de altendade, cf M ichel de Ce»
L'É cr itu re âc Vhis toir e. Paris, Gallimard, 1975. M’ A «se respeito , cf. igualmente Siegfned Kracau er, L His toir e, op cit. , cap. VII ^ raca^e vencido de que a história é estória (Sfory), ou seja, um intermediário narrativo. ^ra c .
K
nào tem apenas um valor ornamental (um livro de história bem escrito é mais >. e tem simplesmente um valor de com unicação (um livro de histón a bem esento e num gr ç
ler para os nào especialistas). A aposta é mais importante. O histonad or prtcisa 1‘odenamos dizer que são novas form
as da histó na perteita : c f Georg e H uppert,
f ld é e del his toi re
pa ane (1970). traduzido do inglês por Françoise e Paulette braudel, Pans, Fhmmanon, 1972.
226
restituir a qualida de épica do passado. Mas, ao mes mo temp o, Kracauer suManha a suigetteris , da narraçào histórica, pois ela está ligada à promessa de vive r num mu” * Com o o fotógrafo, o histonador deve também re speitar certas resm^óes, a *?r, e ve
227
P
P
O
PEQUENO
x - Da
biografia a história S obre o s omb ros
VII
do s gigantes
entre o fat o e a ficçã o, entre o conhecimento
Ao long o dos últimos decénios, a confrontação c om a literatura muitas vezes repousou sobre a negação da verdade histórica. A via
e o jo go . Ap ós ter repeti do
que os critérios de verdade e falsidade não podem ser aplicados às representações do passado, Franklin R. Ankersmit afirma que as
foi traçada por Roland Barthes, que, num texto célebre de 1967,
interpret ações históneas s e equivalem:
se perguntava se a narrativa histórica se distinguia verdadeiramente
certezas científicas sobre as quais os modernos sempre construíram
da epopeia, do romance ou do drama. E com base nessa questão que o discurso histórico foi, repetidamente, definido como uma
mentiroso. A saber, o paradoxo do cretense que diz que todos os
elaboração ideológica: ainda que finja ser a cópia fiel do passado,
cretenses men tem ” .647 Um a versão mais desconf iada se apoiou em
ele não se ria mais que “ uma forma particular do imaginário, o produto do qu e se pod eria cham ar a ilusão refe ren cial ” .644 Alguns anos
relação entre saber e pod er para estigmat izar a noção de verdade
mais tarde, Hayden
W hit e vai mais longe
reduz indo a história a
“ Para o pó smo dern o, as
[suas interpretações] não são mais do que vanações do paradoxo do
Mich el Foucault e mais part icularmente em su a reflexão sobre a histórica (prop ond o um d eslizamento progressivo da hist
ória à pro-
um artefato literário, a um registro de escritura que escaparia a toda
paganda: a históna é uma teoria, a teoria é o produto da ideologia
forma de verificação obje tiva.645 Desse p ont o de vista, a hi stóna e a ficção literária derivariam da mesma estrutura cognitiva: com a
dom inan te, a ide olo gia é o fru to de interess es particulares, etc.).6 48 Desde sempre, a noção de verdade histórica é torturada pela
diferença de que o histonador dissimularia o artefato atrás de uma
dúvida. N o entanto, desta vez temse
série de procedimentos retóricos (citações, referências bibliográficas,
que raiva e desespero, a notícia da morte da verdade suscita uma
etc.) que serviriam apenas para pro du zir um efe ito d e real.646 Em
espécie de consolo,
alguns anos, as pro voc açõe s de Barthes e d e W hi te se tornaram um
finalmente fosse possível proclamar: enfim livres! Livres do passado?
leitmotiv
Co m o se o historiador pudess e agora dizer o que bem
obsessivo que, sob diferentes formas, retoma uma nova
a impressão de que, mais do
e mesmo de entusi asmo e euforia. Com o se entender:
vulgata: a verdade histónea é o produto de uma ilusão referencial,
o passado não está em condições, de qualquer maneira, de opor a
não existe realidade histórica, ou, mais precisamente, não existe
men or resistência a se us desejos interpretativos. Face a esse relativis
nenhuma realidade fora da linguagem que dela fala, tudo sendo não
mo narcísico, que não deriva da grande tradição cética (seja aquela
mais do que “ discurso” ou “ tex to” , uma simples combinação
de Pirro e de Sexto Empírico, seja aquela do pirronismo histórico,
de
palavras. A esse respeito, ev oca se tod a uma série de comparações ou de contaminações entre a
narração literária
seja aquela d o elo gio voltai riano da dúvid a649), a tentação de afastar a
e a narração histórica, Frank lin R. Ankersmit, "H
equilíbrio estnto entre o realismo e a criatividade. Cf. que . in Siegfned Kracauer, penseur
Sabina Longa, "L e mira ge de 1'unité histori-
de 1'hisloire , sob a direção de Philippe Despoix e Peter Schòttler,
Pans, Édmons de la Maison des sciences de 1'hommePresses Roland Barthe s. "L e discoun de 1 ’histoire"
(1967), in
du Seu il. 1984. Cf, igualmente, do mesmo autor, “
de 1U niversit e Lavai, 2006, p. 2944 . Le Bm is se m en t de la lang ue, Pans, Editions
L’efFect du reei”
(1968), in
Uttérature et réalitè,
Panj, Editions du Seuil, 1982. ‘ Hjyde n White. "Th e Histoncal Tex t as Literary Artifact” , Clio, 1974, III, 3, p. 278, reeditado em The Writinç i ofHisto ry, Literary Form and Histo rical Vnd erst and Robert A. Canary e Henry Kozicki, mg , Madison, University o
Isso significa que as obras históneas só pod em ser subm eodas a uma análise literána e linguística. O Ha\den White, Me tahi stor y, Balomo reLondres .John H opkins U mver sity Press, 1973; S tephen Bann. The Clothmg of Clio: A St ud y of the Rep res ent ati on of Hi sto ry in Ni ne te en tli -C en tu ry Brit ain and France, s, 1984; Anne Rigne
y, The Rhetorico fHistoricalRepre senta tion:
Three Narram* Hist orie s of the Frenc h Re iv lu tio n, Cam bndge. Camb ndge U mversity Pre ss, 1990.
A Poeti cs o f Pos tm ode nii sm : Hi sto ry , Th eor y,
Ne w Yo rkLond res, R outled ge, 1988: David Harlan , "Intellectual Histor
y and the
Return o f Literatur e”, Am er ica n His tor ica l Re vie w, 1989, 94, p. 581609 ; Patrick Joyce , tory and PostM odernism ” , Past and Present, of Re alityFiction
1992, 131; Nancy F. Partner,
His-
History in an Age
A N ew Ph ilo so phy o f H ist ory ,
s” , in Frank Ankersmit et H ans Kellner (dir.),
Londres, Reaktion Press, 1995, p. 2139. M"C f. Keith Jenki ns, Re th in ki ng Hi sto ry , LondresNew York, Routledge, 1991; Beverly Southgate. Hi sto ry: IVh at an d IV hy ? A nc ien t, M od em , Po stm od em Persp ective s, LondresNew 1996; Ellen Somekawa e Elizabeth A. Smith, “T
f Wisconsin Press , 1978.
Cambndge, Cambndge Umversity Pres
Fiction.
Hi sto ry an d The ory , 1989. 28,
istonograph y and Postmodeniism”,
2, p. 142145. Cf. igualmente Linda Hutcheon,
22, p. 149161; Anil Wordsw
,
Jo ur na l o f Soci al Hi sto ry , 1988,
orth, "D em da and Fouca ult: Writing the Histor
in Derek Atndge, C.eoff Benmngton e
York. Routledge,
heonz ing the Wntin g o f History . or, ‘I can’t thi nk
why it should be so dull, for a great deal of it must be invention’"
y of Histoncity".
Robe rt Youn g (dir.) . Post-Stmcl uralism and the Q
uestio n o f
Hi sto ry, Cambndge, Cambndge Umversity Press, 1987, p. 116. Mg Cf. Sabina Longa, “ Doutes sur le passe ” , in La Féc ondi tê du dou te, Pans, Quintette, no prelo.
229
O
PEQUENO X -
Da
biografia à
S obre
históri a
o s ombros
do s gigantes
literatura, co m o se se tratasse de unia presença con tagio sa, se fez, por
vai de par com a consciência de que a verdade histórica é algo de
um efeito mecânico de retomo, mais insistente. Donde a tendência
menos unívoco e de mais ambíguo do que fazem crer tanto Elton
a colocar impropriamente no mesmo plano as reflexões daqueles
quanto os pósmodernos. Ao histonador cabe estabelecer fatos,
que se debruçaram sobre a dimensão narrativa da história, como
muitas vezes descontínuos e heterogéneos, tornálos inteligíveis,
Paul Ricoeur ou Michel de Certeau, e aquelas de Hayden White,
integrálos numa totalidade significante. Isso implica que a verdade
ou m esmo as versões mais toscas da historiografi a pó sm od em a.650
dos fatos não coincide sempre com sua significação. Ora, como
Assim, em 1990, pouco tempo antes de sua morte, o historiador
escreve Goethe, a história precisa de uma e da outra. E importante,
britânico Geoft rey Elton rogou aos historia dores que “ pusessem fim
por outro lado, re conh ecer que a histór ia, enquanto discurs o sobre
às tagarelices e voltassem a o essencial” : ao essencial, a saber, ad fontes,
a realidade, é igualmente um relato que necessariamente recorre a
às fontes. Após ter acusado as ciências sociais de terem corrompido
alguns dos instrumentos da ficção: ela cria uma continuidade entre
a historiografia, ele sublinhava a natureza objetiva da história, pois
os rastros descontínuos do passado, desenha uma trama, coloca em
“ o m ome nto em que alguma co isa se passou é e permanece ind e-
cena personagens, utilizase da analogia e da metáfora.632
pen den te do o b s e r v a d o r O tom d a inte rve nção de El ton é s em dúvida algu ma demasiado perem ptório. Mas creio que, mesmo que
Mant er juntas essas duas perspectivas requer ao mesmo temp o paciência e prudência. N ão se trata aqui de reco locar a histó ria sob
poucos historiadores se reconheçam nas acusações que ele profere
a alçada da literatura, tanto mais que, com o dizia V irginia W oo lf, as
contra as ciências sociais, suas proposições são a expressão de uma
tentativas de apagar as diferenças que existem entre a narração histórica
posição defensiva que não cessa de se manifestar. Uma atitude que
e a ficção quase sempre deram resultados deploráveis, inclusive no
poderíamos esquematicamente resumir nest es termos: é importante
plano estético. O desíg nio é, mais simplesmente, o de cultivar uma
restabelecer a noção de verdade e a lógica da prova, reafirmar a
política de confrontação com a literatura, a fim de conferir mais pro-
existência de um método históneo, fundado sobre as fontes, capaz de
fundidade e vanedade ao discurso histórico. Nesta óptica, pareceme
atestar a verdade d o passado. E isso custe o qu e custar. M esm o sob o
possível, e talvez mes mo urgente, medita r sobre as estratégias narrativas
risco de negar a natureza ínterpretativa da história e de se contentar
a utilizar para dar relevo às incertezas, às dissonâncias e aos conflitos
com uma imagem ingénua e sem nuances d a objetivid ade histórica.
do passado —em suma, à história tal com o ela acontece. T olsto i pod e assim nos ajudar a evocar o caso pessoal como um meio de romper o excesso de coerência do discurso histórico, para meditar não apenas
VIII
sobre o que foi, sobre o que adveio, mas também sobre as incertezas Aqu i, ainda , as reflexões do séc ulo X IX pod em nos ajudar.
do passado, sobre o que teria podido se produzir e que se perdeu. As
Elas sugerem uma abordagem diferente, que se articula conforme
sugestões que ele oferece sobre as maneiras de multiplicar os pontos
um duplo movimento. É preciso, em primeiro lugar, defender a
de vista a respeito da História também podem ser preciosas para o
ideia de que a história vive sob a férula da verdade: o histonador se
historiador que se compromete a pennanecer num mundo em que
compromete a fornecer informações sobre uma realidade que lhe é exte rior e a submeter sua interpretação a uma verifi cação . Essa defesa
os fatos realmente se produziram.
Ct. Allaji Megill,
Recou ntmg the Pas t: ‘Descnption
’, Explanat ion, an d Narrativc in Hi stonog
raphy", Am eri can His tori cal Re vie u', 1989. 94, p. 627653. Cf. Geoftrey R. Elton,
Re tu m to Es sen tial s. So m e Re flec tio ns on tlic Pre setit St ate o f H isto rica l Stu dy ,
Cambndge, Cambndge University Pre«.
1991. p. 50 e 59.
"Esse ponto de vista foi defendido por Michel de Certeau,
L Ecri ture de I hi stoir e, op. cit. , Paul
Ricoeur,
Tenips et récit, Paris, Editions du Seuil, 1983. Cf. igualmente Roger Chartier,
la falaise.
L'hisioire
entre certit udes ci inquietude,
1'htstoire, Paris, Gallimard, 1999.
A u bord de
Pans, Albin Michel, 1998, Krzysztoí Pomian. .Sur
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