UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Reitor Carlos Antonio Levi da Conceição
Denise Barcellos Pinheiro Machado
Pró-Reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
Carlos Rangel Rodrigues
Rachel Coutinho Marques da Silva
Decana do Centro de Letras e Artes Flora de Paoli Faria
REALIZAÇÃO Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas – LAPA/PROURB Maristela Carneiro – Algo+ Soluções Editoriais Projeto Gráfico: Maristela Ficha Catalográfica: Eneida Eneida Oliveira
Os conceitos emitodos neste livro são de inteira i nteira responsabilidade dos autores
V393 Vazios urbanos: percursos percursos contemporâneos / Organização Organização de Andréa de Lacerda Pessôa Borde. – Rio de Janeiro : Rio Books, 2012. 1 cd. ISBN: 978 – 85 – 61556 – 29 – 7 1. Urbanismo 2. Planejamento urbano 3. Patrimônio Cultural. 4. Renovação Urbana. I. (Borde, Andréa de Lacerda Pessôa). Org. CDD: 307.416 6
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Reitor Carlos Antonio Levi da Conceição
Denise Barcellos Pinheiro Machado
Pró-Reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
Carlos Rangel Rodrigues
Rachel Coutinho Marques da Silva
Decana do Centro de Letras e Artes Flora de Paoli Faria
REALIZAÇÃO Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas – LAPA/PROURB Maristela Carneiro – Algo+ Soluções Editoriais Projeto Gráfico: Maristela Ficha Catalográfica: Eneida Eneida Oliveira
Os conceitos emitodos neste livro são de inteira i nteira responsabilidade dos autores
V393 Vazios urbanos: percursos percursos contemporâneos / Organização Organização de Andréa de Lacerda Pessôa Borde. – Rio de Janeiro : Rio Books, 2012. 1 cd. ISBN: 978 – 85 – 61556 – 29 – 7 1. Urbanismo 2. Planejamento urbano 3. Patrimônio Cultural. 4. Renovação Urbana. I. (Borde, Andréa de Lacerda Pessôa). Org. CDD: 307.416 6
EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DOS VAZIOS URBANOS
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Andréa de Lacerda Pessôa Borde
PROJETOS URBANÍSTICOS E VAZIOS URBANOS: REVISITANDO O TEMA
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Carmen Beatriz Silveira e Lilian Fessler Vaz
REQUALIFICAÇÃO URBANÍSTICA DAS ÁREAS PERICENTRAIS NO RIO DE JANEIRO
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Cristovão Fernandes Duarte
INSTRUMENTOS PARA A REINSERÇÃO IMOBILIÁRIA NAS ÁREAS CENTRAIS E PERIFERIAS IMEDIATAS DAS GRANDES CIDADES 51 Fernanda Furtado
TANTOS TETOS E TANTOS SEM-TETO 1: Relato analítico de uma experiência de readequação de edifícios públicos ocupados. 73 Luciana Andrade
VACÂNCIA E INTERVENÇÕES NO CENTRO ANTIGO DE DE SALVADOR - Tensões entre privatização urbana e direito à cidade 86 Angela Gordilho Souza
A REGENERAÇÃO URBANA CONTEMPORÂNEA. Entre o espetáculo e as necessidades socioantropológicas das cidades 122 Evelyn Furquim Werneck Lima
VAZIOS URBANOS E PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: INDUSTRIAL: Interfaces com o ordenamento urbanístico e o patrimônio cultural. 142 Andréa da Rosa Sampaio
VAZIOS NA PERIFERIA METROPOLITANA: Sobre a singularidade dos espaços-entre 166 José Almir Farias Filho
VAZIOS URBANOS CONTEMPORÂNEOS: Conceitos, permanências e alteridades Andréa de Lacerda Pessôa Borde
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EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DOS VAZIOS URBANOS Andréa de Lacerda Pessôa Borde
Edifício comercial na área central em situação de vazio urbano . Foto: Andréa Borde. 2011.
O livro Vazios Urbanos: Percursos Contemporâneos reúne pesquisadores do Rio de Janeiro, Niterói, Salvador e Fortaleza em torno de uma série de questões que este fenômeno urbano vem despertando nas últimas décadas em que se impôs como um dos elementos estruturadores da cidade contemporânea. Os textos aqui apresentados sublinham a estreita relação entre questões em voga em nossas cidades e os três t rês momentos do processo de formação dos vazios urbanos – o esvaziamento, o vazio e o eventual preenchimento – enriquecendo, assim, os diálogos sobre os vazios urbanos em sua dimensão contemporânea.
Este livro traz reexões sobre a diversidade de situações de vazios urbanos observadas em nossas cidades atualmente. Cada capítulo traduz, nas múltiplas abordagens privilegiadas na análise destas situações, a reconhecida experiência dos autores nas suas áreas de interesse especicas e na análise dos vazios urbanos tal como eles se apresentam na contemporaneidade. Percorrer os caminhos aqui traçados permite vislumbrar as múltiplas dimensões que este fenômeno urbano tem adquirido nas últimas décadas.
E D R O B a é r d n a
As áreas centrais – lugar onde muitos destes vazios esvaziados despontaram- são o recorte espacial privilegiado para análise em alguns capítulos. Nestas áreas, dotadas de infraestrutura urbana, a presença de terrenos e imóveis vazios, desocupados ou subutilizados, pode ser considerada, no mínimo, paradoxal. Sobretudo, considerando-se a concomitância entre o processo de formação de vazios urbanos nestas áreas centrais e o modelo de expansão em direção às áreas periféricas sem infraestrutura de cidade. As áreas pericentrais – na periferia das áreas centrais – e as periferias também são analisadas neste livro sublinhando as diferenças e similaridades entre os vazios centrais e periféricos e apontando para a emergência de novos processos de formação e de possibilidades de transformação dos vazios urbanos. Quanto à transformação das situações de vazios urbanos, são analisadas as possibilidades acenadas pelos instrumentos urbanísticos, pelos projetos de reinserção habitacional e de requalicação urbana em áreas ou edifícios de interesse para o patrimônio cultural. No entanto, como se pode observar na leitura dos capítulos dedicados à relação historicamente existente entre pro jetos urbanos e vazios urbanos, este são tanto formadores como potenciais transformadores de situações de vazios urbanos. Para tanto são analisados os conceitos operatórios, a escala, a gestão e o impacto destes projetos e suas interfaces com os vazios urbanos. A leitura deste livro permite percorrer um caminho temático diversicado no campo do urbanismo – habitação, projetos urbanos, grandes projetos, patrimônio cultural, áreas centrais, instrumentos urbanísticos, readequação de edifícios públicos ocupados, ordenamento urbanístico, reutilização e espaços industriais, urbanização dispersa – no qual a questão dos vazios urbanos é parte integrante dos debates contemporâneos. E é, justamente, com a construção contemporânea do conceito de vazios urbanos que este livro encerra, por ora, os seus percursos contemporâneos. Antes, porém, de nos debruçarmos sobre as ricas análises trazidas pelos autores gostaria de fazer uma breve apresentação por capítulos uma vez que a seqüência dos mesmos não é um percurso aleatório. O livro abre com um convite feito à Carmen Beatriz Silveira e Lilian Fessler
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S O N A B R U S O I Z A V S O D S A E N Â R O P M E T N O C S E Õ S S E R P X E
Vaz, autoras do Áreas centrais, projetos urbanísticos e vazios urbanos (1999), que tem sido referência para os estudos sobre o tema na cidade do Rio de Janeiro, para que dessem sequência ao mesmo: será que no século XXI esta relação entre projetos urbanísticos e vazios urbanos se mantém? É o que elas analisam em “Projetos Urbanísticos e Vazios Urbanos: revisitando o tema ”. No artigo seguinte,“Requalicação Urbanística das Áreas Pericentrais do Rio de Janeiro”, Cristóvão Fernandes Duarte elabora um rico painel do processo de modernização do centro urbano tradicional carioca no século XX, tendo como foco o processo de esvaziamento da função residencial e como perspectiva a requalicação urbanística dos bairros da periferia imediata da área central carioca – as áreas pericentrais – virem a se constituir em uma oportunidade para a construção de uma cidade mais justa e sustentável. A reversão da iniqüidade social e urbana a partir da atuação sobre as situações de vazio urbano é o tema dos dois artigos seguintes. No primeiro deles, “Instrumentos para a reinserção imobiliária nas áreas centrais e periferias imediatas das grandes cidades ”, Fernanda Furtado analisa a possibilidade de reinserção social de terrenos e imóveis ociosos nas áreas centrais e pericentrais das metrópoles brasileiras através da utilização de instrumentos da política urbana, voltados, sobretudo, para a provisão de habitação popular. No segundo artigo, “Tantos tetos e tantos sem-teto: relato analítico de uma experiência de readequação de edifícios públicos ocupados ”, Luciana Andrade traz novos elementos para a discussão sobre os limites e possibilidades de reinserção destes imóveis ociosos a partir de projetos de arquitetura e urbanismo destinados a adequá-los ao uso habitacional. Vacância urbana e questão habitacional estão, historicamente, relacionadas à implantação de grandes projetos no tecido consolidado das nossas cidades. Ângela Gordilho Souza, em “Vacância e intervenções no centro antigo de Salvador: tensões entre privatização urbana e direito à cidade”, opta por uma abordagem que privilegia o estudo da dinâmica emergente de produção e gestão urbana privatista da cidade, direcionando seu foco para a análise dos impactos urbanísticos das intervenções propostas para o Centro Antigo de Salvador, mas, sobretudo, para os novos contornos da vacância urbana e impacto sobre a questão habitacional.
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Mas o que foram a implantação das primeiras fábricas e indústrias nas cidades, em meados do século XIX e início do século XX, senão grandes projetos urbanos? Instalações que com as mudanças operadas na estrutura produtiva, ao longo do século XX, foram perdendo seu
uso e função e, com o tempo, transformando-se em situações de vazios urbanos. Este será o tema dos dois artigos seguintes. No primeiro deles, “ A regeneração urbana contemporânea: entre o espetáculo e as necessidades socioantropológicas”, Evelyn Furquim Werneck Lima avança em conceitos já delineados em “Congurações urbanas cenográcas e o fenômeno da gentricação” (2004) am de analisar propostas nacionais e internacionais de reutilização de espaços industriais em desuso e suas possíveis contribuições para futuros projetos. No segundo, “Vazios Urbanos e Patrimônio Industrial: Interfaces com o Ordenamento Urbanístico e o Patrimônio Cul tural ”, Andréa da Rosa Sampaio investiga as interconexões entre o processo de formação dos vazios urbanos e o patrimônio industrial mediadas pelo ordenamento urbanístico da cidade do Rio de Janeiro.
E D R O B a é r d n a
Os dois últimos artigos podem ser considerados, mais do que duas tentativas de colocar um ponto nal nestes percursos contemporâneos sobre os vazios urbanos, como dois caminhos que apontam dois novos percursos a serem trilhados que se entrelaçam e se complementam. Em “Vazios da periferia metropolitana: sobre a singularidade dos espaços-entre ”, José Almir Farias Filho, analisa as novas tipologias de vazio que emergem do processo contemporâneo de urbanização dispersa, cuja fragmentação produz áreas construídas descontínuas, tendo como foco as periferias metropolitanas de Fortaleza. No último artigo, “Vazios Urbanos contemporâneos: conceitos, permanências e alteridades”, trago uma releitura do primeiro capítulo da minha tese “Vazios Urbanos: Perspectivas Contem porâneas” (2006), dedicado ao segundo momento do processo de formação dos vazios urbanos – o vazio – e à construção do conceito dos vazios urbanos a m de compreender a dimensão con temporânea deste fenômeno. Estes diálogos foram realizados no contexto do Grupo de Pesquisas do Diretório do CNPq Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas, do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro ( LAPA/PROURB/UFRJ) com o apoio da Pró-Reitoria de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças (PR-3). O LAPA compreende patrimônio cultural em seu campo ampliado de acordo com sua dimensão urbana e contemporânea e desenvolve estudos sobre processos de urbanização e produção arquitetônica e urbanística contemporâneos a partir de uma leitura dinâmica de temas como patrimônio cultural, vazios urbanos, forma urbana, imaginário urbano, patrimônio edicado e conservação de bens culturais.
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S O N A B R U S O I Z A V
É na conuência destas instigantes reexões propostas por estes autores de reconhecido mérito em suas áreas de atuação que o LAPA se propõe a construir diálogos que permitam es tabelecer conexões entre as múltiplas dimensões levantadas nas abordagens privilegiadas para análise deste fenômeno intrinsecamente contemporâneo da nossa urbanidade multifacetada. Vamos a elas.
S O D S A E N Â R O P M E T N O C S E Õ S S E R P X E
A L P B
[email protected] Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Arquiteta e Urbanista (FAU/UFRJ), Mestre em Artes Visuais (EBA/UFRJ), Doutora em Urbanismo (PROURB/UFRJ), com Doutorado Sanduíche em Projet Urbain et Architectural (DEA Paris Belleville/Paris VIII). Faz Pós-Doutorado na Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Ur banismo da Universidade Federal da Bahia. É líder do grupo de pesquisa do Diretório do CNPq LAPA (Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas) onde coordena pesquisas relacionadas aos vazios urbanos, à história urbana e ao patrimônio cultural. Publicou capítulos de livros e artigos sobre estes temas. É Membro Titular do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro e do Conselho Consultivo da Frente Mista Parlamentar em Defesa da Cultura na área da Memória e do Patrimônio Cultural. Entre os prêmios recebidos destacam-se a menção honrosa na categoria tese de doutorado no 5o Prêmio Brasileiro Política e Planejamento Urbano e Regional (ANPUR 2007) e o Prêmio Capes de Tese 2007.
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PROJETOS URBANÍSTICOS E VAZIOS URBANOS: REVISITANDO O TEMA Carmen Beatriz Silveira Lilian Fessler Vaz
INTRODUÇÃO As transformações em curso na cidade do Rio de Janeiro evocam reexões e debates sobre os chamados vazios urbanos. Para pensar nas questões da atualidade, referidas a esta temática, propõe-se uma releitura do artigo “ Áreas centrais, projetos urbanísticos e vazios urbanos”, datado de 1999, que apresenta uma abordagem das intervenções urbanísticas em áreas centrais e seus arredores, em particular a carioca, numa perspectiva histórica. O artigo, que sintetizou estudos e preocupações daquele período que consistiram em fonte de questionamentos, fundamentou-se em pesquisa sobre o processo de ocupação e as transformações na conguração urbana da Área Central do Rio de Janeiro decorrentes de diversas intervenções propostas e implementadas, sobretudo ao longo do século XX. Algumas consequências relevantes – as projetadas e as imprevistas – foram reveladas por meio da identicação de diferentes fatores observados na análise histórica. Atualmente, na segunda década do século XXI, observa-se um novo cenário, de grandes intervenções e projetos, bem como de priorização de ações em zonas antigas que incluem os chamados vazios urbanos, o que expõe aspectos da política urbana que incita outros questionamentos. Tendo em vista as diculdades relativas à retomada e ao aprofundamento da pesquisa desenvolvida pelas autoras na década de 1990, nessa releitura, recuperam-se alguns pontos relativos aos conceitos e à história, que procuram fundamentar um ângulo analítico renovado, referente ao cenário acima aludido. Desse modo, este novo trabalho busca enriquecer e atualizar, parcialmente, o estudo anterior, em três itens. Nos dois primeiros manteve-se grande parte do conteúdo do artigo supracitado, com a exposição das características básicas das intervenções urbanas a partir de meados do século XIX em países ocidentais, por meio da aproximação com alguns conceitos relacionados aos vazios urbanos e, nalmente, por uma
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abordagem histórica a respeito da produção e da reprodução dos vazios urbanos na Área Central do Rio de Janeiro. Com o propósito de apresentar algumas contribuições aos debates da atualidade sobre as questões que envolvem essa temática, foram acrescentados, no terceiro i tem, alguns questionamentos e perplexidades diante de projetos e intervenções recentes que propõem a requalica ção de trechos da cidade. A despeito da relevância de ações públicas de reestruturação urbana, assinala-se que em muitos casos, trata-se de ações que desrespeitam aspectos signicativos da história e da morfologia urbanas, assim como da vida de sua população. Para facilitar a expo sição dos argumentos e questionamentos propostos, apresenta-se um quadro que sintetiza as intervenções ocorridas, com indicação dos seus objetivos enunciados e de suas conseqüências no espaço urbano, dentre as quais destaca-se a expulsão da população moradora e, principalmente, a produção e a reprodução de vazios urbanos. Finaliza-se com uma breve reexão sobre os sentidos das intervenções e a forte imbricação entre os processos que geraram estas graves consequências.
NOTAS SOBRE OS MODOS DE INTERVENÇÃO URBANA Dentre as muitas transformações em curso em metrópoles européias e norte-americanas, as vericadas nas centralidades de diferentes tipos – as áreas centrais com seus Central Business Districts, centros históricos e periferias de usos mistos, assim como as ‘novas centralidades’ – têm merecido estudos nas últimas décadas. No âmbito dessas transformações, são signicativos os projetos de intervenções que visam à revitalização ou à requalicação destas diferentes áreas, até recentemente conhecidas como abordagens de capacitação das cidades para aumentar o seu grau de competitividade no ranking mundial.
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No caso europeu, há vários exemplos de projetos para revitalização dos centros existentes assim como de criação de novas centralidades mediante a adoção do conceito de terrains vagues (vazios industriais, portuários e ferroviários). Tanto os ‘vazios urbanos’ quanto os ‘projetos urbanos’ fazem parte da agenda das discussões recentes no campo da forma urbana. Busquets (1996) destaca a importância dos vazios para a análise, os projetos e a gestão urbana contemporânea. O
autor comenta o grande número de projetos em grande escala, de propostas de inll , de reciclagem e reabilitação destes “espaços intersticiais”. Cabe, portanto, uma exploração neste campo da relação entre as centralidades e os vazios, os projetos e as intervenções. Neste artigo propõe-se analisar estas relações na cidade do Rio de Janeiro e tecer algumas comparações com outros casos recentes. Há muitas décadas vêm sendo desenvolvidos diferentes projetos para vazios no interior ou na proximidade da área central da cidade do Rio de Janeiro. Ao examinar-se a história dos planos e projetos urbanísticos para a cidade, percebe-se que, em grande parte, eles são apresentados para certas áreas consideradas deterioradas ou vazias, muitas vezes decorrentes de intervenções urbanísticas anteriores (VAZ e SILVEIRA, 1998). Algumas das áreas permanecem vazias, como intervenções inacabadas, apesar dos vários projetos que preconizavam a sua recuperação, propostos ao longo de várias décadas. Recentemente, a este quadro de vazios antigos vem se somando o esvaziamento de imóveis de diferentes usos, além do esvaziamento demográco de diversas zonas consolidadas. A área central 1 vem passando por diferentes modos de intervenção no seu processo de modernização. Simões Jr. (1994: 13-18) identica um modelo haussmaniano, um modelo modernista e um modelo de revitalização ao longo da história. O primeiro, também designado de “embelezamento urbano”, tem como referencial a remodelação das cidades de Paris e Viena, a partir de meados do século XIX; o segundo – a “renovação urbana”, se apoia nos ideais do modernismo, em particular os expressos na Carta de Atenas de 1933; e o terceiro – a “revitalização urbana” –, desencadeada nas últimas décadas, rejeita os excessos do modernismo, recupera elementos históricos, simbólicos, sociais e ecológicos do local, compatibilizando-os com a modernização. Outros autores identicam como formas históricas de intervenção em áreas centrais a “renovação urbana clássica” (cujo ponto principal consistiu no saneamento e reconstrução de áreas encortiçadas); a renovação dos centros antigos, a preservação do patrimônio urbanístico e a renovação urbana ecológica (AGSEB, 1994:14). Certamente a abordagem conceitual e o referencial empírico alteram a identicação e a denominação destas categorias, que podem vir a se constituir em novos conceitos. Assim, por exemplo, a tensão entre a preservação do patrimônio construído e a sua renovação fez surgir a expressão “renovação preservadora” (MESENTIER, 1992), que pressupõe políticas de preservação do patrimônio histórico edicado com desenvol vimento econômico, mediante uma visão crítica dessas propostas. Possivelmente as descrições
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e reexões das atuais propostas de intervenção sobre os vazios também levarão ao surgimento de novos termos. Apresentam-se, a seguir, algumas abordagens e respectivos referenciais empíricos que tratam de tendências recentes de reestruturação assim como de projetos urbanísticos recentes para as áreas centrais de metrópoles européias. Neste contexto acentua-se a tendência à formação de urbanizações difusas, considerando-se que “a cidade já não é o centro de ‘concentração’, de ‘intercâmbio’, de ‘centralidade’, senão um elemento a mais em um amplo sistema difuso” (BUSQUETS, 1996). Outra tendência que tem sido estudada nesta última década é a da formação de policentralidades. Essa última foi objeto de reexão por autores como Gottdiener (1993), que, estudando cidades norte-americanas já se referia a novos padrões de crescimento polinucleado, e Soja (1994), que analisou essas reestruturações no caso da cidade de Los Angeles. Assim como Soja, Pesch (1997) mostrou que, no contexto europeu das últimas décadas, estas tendências de reestruturação urbana e a emergência de novas centralidades fora da cidade, bem como as grandes implantações nos vazios intersticiais nos obrigam a rever os conceitos de centro e de periferia, e a própria relação centro/periferia 2. Segundo os autores, trata-se de termos que já não correspondem aos fenômenos da cidade de poucas décadas atrás. Pesch e outros autores vem buscando conciliar a abordagem geográca e analítica com o olhar urbanístico e projetual. Nessa direção, Busquets (1996), entre outros autores, arma que no contexto urbano ocidental recente pode-se identicar simultaneamente dois tipos de processos: por um lado, um movimento centrífugo, de forças que pressionam do centro para o exterior da cidade; e por outro, um movimento centrípeto, de forças que pressionam da periferia para o centro da cidade. A reexão de Lefebvre (1990) ressalta, igualmente, a existência de um deslocamento concomitante para as áreas periféricas e um retorno para os centros, no contexto da ‘produção do espaço’, conceito que ele já havia introduzido desde os anos 1960. Essa idéia de um espaço que transforma usos e suas apropriações, resultante de condições sociais e políticas no capitalismo, tem sido investigada por urbanistas que adotam o conceito de vazios urbanos, como é o caso de Busquets.
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Segundo este autor, se no movimento centrífugo as atividades comerciais, de serviços e residenciais encontram terras disponíveis nas periferias, no centrípeto as atividades em busca de localização no núcleo encontram os espaços intersticiais, que permaneceram vazios e/ou ob-
soletos no interior da cidade existente. São os vazios interiores, os terrains vagues. Derivando de forças contraditórias, esses processos às vezes resultam de operações similares que apostam na disponibilidade de solo urbano infraestruturado no exterior da cidade ou na reestruturação de áreas no seu interior. Verica-se então, nas grandes cidades, a ocorrência de uma série de projetos e intervenções em grande escala, supondo atuações de inll ( preenchimento de vazios, recuperação do tecido urbano), de reciclagem, de reabilitação, de transformação de espaços intersticiais que permaneceram certo tempo sem atividade, portanto como terrains vagues. Em diversas cidades vêm se observando essas transformações e a implementação de pro jetos urbanos para grandes vazios, em áreas portuárias, ferroviárias, industriais, militares, entre outras. Talvez o caso da cidade de Berlim seja o exemplo mais insólito da presença de vazios que emergiram após a queda do muro, com a reunicação das duas Alemanhas, e, também, o exem plo mais conhecido de profusão de grandes projetos e de processos de intervenção e de ocupação desses vazios. No entanto, dentre vários exemplos na Europa, na Ásia e nas Américas, a cidade de Barcelona costuma ser tomada como o exemplo precursor e paradigmático (...) de articulação e valorização de algumas dezenas de terrains vagues no interior da cidade. Busquets apresenta três blocos temáticos que exemplicam outras transformações urbanas recentes, esboçando algu mas características dos projetos urbanos em curso: (1) a obsolescência de grandes equipamentos industriais; (2) a transformação dos velhos portos; (3) as estações ferroviárias e seus espaços de serviços. Quanto às áreas portuárias, deve-se ressaltar que a localização dos velhos portos tem, muitas vezes, relação com a fundação da cidade e na sua origem cidade e porto constituíam duas peças da mesma engrenagem. Por estes motivos, Busquets assinala a necessidade de reinterpretar essas partes centrais dos portos como uma peça a mais da cidade futura. O autor exemplica os casos de Manhattan, São Francisco, Boston, Baltimore e Seattle nos EUA, onde há uma forte tendência de utilização intensiva do “velho porto” para mercado, restaurantes, espaços de festivais lúdicos e espetaculares marinas. Na Europa, identica dois tipos distintos: as Docklands em Londres e o Kop van Zuid em Rotterdam. Nestes processos de transformação portuária, destaca, ainda, um terceiro modelo nas conurbações japonesas e em outras cidades asiáticas, que propõe o aproveitamento da obsolescência do velho porto para a recriação de um novo solo e uma nova fachada urbana.
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O esvaziamento da cidade tradicional e consolidada não apresenta apenas uma face, mas várias: o das edicações industriais, das comerciais e das habitacionais, além dos conhecidos vazios das zonas periféricas, daquele das áreas monofuncionais (VAZ, 1998) e atualmente, o das grandes intervenções e/ou implantações. Deve-se considerar, portanto, os novos e os velhos vazios, estes últimos produzidos pela ação pública articulada ao mercado. Leira (1999:28) refere-se à “dinâmica do abandono de áreas, dos edifícios vazios, dos vazios urbanos, dos vazios periféricos”, assinalando ainda que o processo de esvaziamento está presente em várias cidades e é magnicado em São Paulo, em cuja gênese estaria essa dinâmica do abandono. São Paulo “nunca teve tantos imóveis vagos, tantos edifícios para alugar”. Segundo o urbanista, para enfrentar a questão na área central seria necessário não apenas a s ua requalicação, mas também a requalicação dos edifícios, uma exigência lógica contra o fenômeno especulativo da demolição indiscriminada. Com relação aos projetos para os vazios, Pesch (1997), aponta um paradoxo: quanto mais as cidades parecem se dissolver na paisagem e nas redes telemáticas e a urbanidade se perder num ambiente urbano difuso, mais as perdas procuram ser compensadas por grandes projetos. Adrian (1997), observando também o contexto das cidades européias, refere-se ao adensamento interior, isto é, ao processo de renovação de grandes áreas geralmente comandadas pelo capital, e chama a atenção para o perigo de exclusão social que estas implantações trazem em seu bojo. Sendo encaradas como conglomerados de objetos para renda, essas áreas e as atividades que nela se desenvolvem excluem todos os que não tem renda suciente para participar. A esse respeito comentou Baudrillard (1996) que se constroem “cidades inteiras de escritórios ou de apartamentos destinadas a permanecer eternamente vazias diante da crise ou da especulação”. Seriam as “ghost-towns”: cidades que se assemelham a imensas máquinas que se reproduzem “a si mesmas ao innito – fantasmas de um investimento desenfreado e de um desinvestimento ainda mais rápido”. Numa alusão ao contexto da depressão econômica no norte do estado de São Paulo ao nal da segunda década do século XX, Monteiro Lobato já se referia aos “palácios mortos das cidades mortas” (1995:22). A expressão de Lobato está associada a um processo distinto, no entanto, agura-se ilustrativa da compreensão dos espaços como processos socioeconômicos imbricados aos políticos. Na visão crítica e perspicaz de Pesch (1997:16), verica-se que os fracassos de alguns dos grandes projetos zeram com que a preferência das
grandes e pequenas empresas retornasse (no caso inglês e norte-americano) para o desenvolvimento de centros comerciais em zonas tradicionais e de preservação histórica como Covent Garden e Soho, que se tornaram os novíssimos modelos urbanísticos.
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RIO DE JANEIRO: INTERVENÇÕES NA ÁREA CENTRAL E SEU ENTORNO ATÉ O FINAL DO SÉCULO XX Fundada na segunda metade do século XVI sobre um sitio marcado pela forte presença das águas, dos morros, das orestas e dos pântanos, a ocupação urbana da cidade do Rio de Janeiro se desenvolveu por intermédio da criação de solos urbanizáveis, com o arrasamento de morros e aterros de áreas alagadiças. Tal processo se desencadeou no século XVII, quando a cidade começou a expandir-se pela várzea e perdurou por longo período. As condições do ambiente físico disponível exigiram essa ação de produção de espaços adequados à urbanização. A cada novo período de expansão da malha urbana tornava-se necessário um árduo trabalho de aterro em diversos trechos da cidade.
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A partir de meados do século XIX, contudo, concomitantemente ao crescente processo de expansão, o agravamento das condições de vida urbana no antigo núcleo suscitou a realização de grande número de projetos urbanísticos que tinham o propósito de alterar o uso e a ocupação do solo, sobretudo no trecho correspondente a atual área central. A partir da virada do século, encerrou-se então um longo período de permanência e iniciou-se um período de renovação urbana, a partir de diversas intervenções que passaram a transformar a sionomia da cidade-capital do país, mormente na área central e seus arredores. O quadro exposto adiante sintetiza as formas de intervenção na área central da cidade do Rio de Janeiro3 destacando-se algumas das suas conseqüências mais signicativas para a s ua conguração espacial. Pode-se esboçar quatro fases, cada uma delas identicadas com processos de intervenção expressando concepções básicas semelhantes: (1) séculos XVII / XIX – período de ocupação / produção de espaços adequados à urbanização; (2) décadas 1900 / 1970 – período de renovação urbana / destruição de trechos do tecido urbano e sua reconstrução; (3) décadas 1980 / 1990 – período de preservação / revitalização urbanas; décadas de 2000/2010 – período de pre-
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servação / revitalização urbana concomitantes com renovação / destruição de trechos do tecido urbano e sua reconstrução . Centrando a atenção a partir da primeira década do século XX, assinala-se que, além de promover o desaparecimento de marcos e ambientes históricos e da moradia, as intervenções não se completaram em vários trechos, isto é, muitas áreas desapropriadas e demolidas ainda hoje permanecem desocupadas: os vazios intersticiais. Trata-se de vazios originados deste processo histórico, cuja permanência decorre muitas vezes de questões de ordem jurídica, relativas à propriedade4 ou à legislação urbanística, outras vezes em razão da perda da dinâmica urbana pré-existente. A reação a essa ação demolidora se instalou em meados dos anos 1970, quando surgiu um novo pensamento, pautado na preservação e revitalização da cidade. Esta nova concepção de planejamento veio a consolidar-se nos anos 1980, impulsionando a implementação de planos e ações tendo em vista a recuperação urbana. Em resumo, o século XX constituiu-se como um nítido período de intervenções na área central em distintos trechos e em diversos momentos, fundamentados em discursos sobre a cidade e sobre a intervenção na cidade igualmente diversos. É interessante observar que, apesar do longo período de intervenções visando à expansão física do centro, já desde as primeiras décadas iniciava-se o processo de esvaziamento de atividades industriais, e, a partir de 1960, o esvaziamento de atividades políticas e administrativas com a transferência da capital para Brasília, a criação do estado da Guanabara, e a posterior fusão com o estado do Rio de Janeiro. Mesmo assim, a metrópole do Rio de Janeiro manteve a c ondição de núcleo aglutinador de atividades terciárias e pólo irradiador de cultura, de modas – inclusive urbanísticas – e modos de vida. Esse esvaziamento foi se acentuando, atingindo seu ápice nos anos 1980, com a crise econômica, quando se materializaram as evidências da pobreza – degradação do espaço físico de um modo geral, com o crescimento da população de rua, do comércio informal, da violência urbana (VAZ e SILVEIRA, 1998).
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No presente estudo, evidenciam-se as principais transformações urbanas ocorridas na área central que culminaram nos anos 1990, em que se preconizava a reconquista do centro do Rio com a implementação de uma série de signicativos projetos urbanísticos para áreas degradadas e/ou para vazios urbanos. Na fase de implementação do Plano Estratégico, a revalorização da área central visava a sua retomada como centralidade urbana, simultaneamente ao estímulo das novas centralidades, decorrentes da descentralização das atividades antes exclusivas do centro.
No nal da década de 1990, diversos projetos estavam em andamento, mas poucos esta vam nalizados, permanecendo a impressão de degradação do ambiente. Entre as diculdades detectadas, encontrava-se o progressivo deslocamento populacional da área central e dos bairros mais antigos, consolidados, para as áreas de expansão urbana recentes. A tendência de diminuição da população moradora na área central, mais especicamente, deve-se, também, à legislação urbanística que proibiu o uso r esidencial no núcleo central e tornou-o restritivo na sua periferia imediata (Decreto 322/1976, vigente até 1994, quando foi promulgada lei municipal permitindo esse uso em toda a área central). Este fato e a atuação do Estado, mediante projetos / intervenções urbanas que promoveram a expulsão progressiva da população residente na área central, constituíram causas fundamentais da degradação e formação de vazios. A premissa de um centro de atividades exclusivamente vinculadas ao setor terciário, de expansão quase ilimitada, embasou planos, projetos, decretos e ações do poder público durante praticamente um século. A tradicional concepção de centro circundado por áreas degradadas, sobre as quais o CBD deveria crescer, tantas vezes invocada para justicar intervenções, ironicamente, parece agora que se inverteu: a degradação e os vazios é que avançam sobre o núcleo, e não o contrário, enquanto focos de centralidades emergem em pontos distantes.
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Esse processo de modernização, com suas transformações e permanências conduziu à conguração atual da área central da metrópole do Rio de Janeiro e à percepção de algumas de suas consequências que se apresentam como problemas: a presença dos vazios, a ausência da habitação e a degradação dos espaços públicos. Em relação aos vazios, estudo recente sobre a área central do Rio de Janeiro (Neves, 1996) também relaciona a sua gênese às intervenções urbanas ocorridas nesta área. Vale registrar que o autor relaciona a área de vazios com os terrenos ocupados por edifícios residenciais na II Região Administrativa – II RA – ou bairro Centro. Considerando a área correspondente aos edifícios residenciais verica que em apenas 50% dos vazios identicados seria possível assentar uma população correspondente à residente hoje no bairro Centro5. Ainda no tocante às edicações, assinala-se o crescente número de escritórios vazios, por vezes edifícios inteiros. Outro aspecto relevante que pode ser considerado nesta problemática envolvendo os vazios urbanos e os espaços públicos está presente na análise de Castro (1995: 7-9), relacionando o
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poder público e o mercado. Ao mencionar a violência urbana que aumenta a insegurança, realça a valorização dos “investimentos em atividades ‘protegidas’ como shopping centers e condomínios fechados, ensejando o agravamento do apartheid e, obviamente, os lucros especulativos”. O autor assinala, ainda, que “a superconcentração de atividades nos shoppings acarreta uma precoce decadência de áreas comerciais bem servidas de infra-estrutura urbana e, em consequência, precipita novas carências nas áreas ‘beneciadas’ pelos novos empreendimentos”. Ou seja, além da descentralização de atividades antes exclusivas dos centros, os novos objetos urbanos e arquitetônicos produzidos exclusivamente pelo mercado induzem ao esvaziamento das áreas centrais, contribuindo para o surgimento de novos trechos em decadência. Complexicam-se e ampliam-se os problemas relativos à área central, envolvendo não so mente a dimensão urbanística e da política urbana, mas também a econômica, a social e a cultural. Aliados ao quadro acima esboçado, destaca-se o desinteresse do mercado imobiliário que, até recentemente, atuava, preferencialmente, nas periferias e nas novas centralidades, optando pelo retorno nanceiro mais previsível a curto e a médio prazo. Face a esse contexto, predomi nam as incertezas quanto às possibilidades dos atuais investimentos do poder público, em termos de projetos urbanísticos, para reverter tal processo. Reconhecendo a dimensão do problema exposto, com base na compreensão de que “a degradação do centro contribui para a degradação do valor da polis” (Dupas, 1998), e da necessidade de preservar “o núcleo original gerador de simbologia da cidade” (Lima, 1998), considera-se que somente um esforço em escala amplamente signicativa, em termos de política e projetos urbanísticos, poderá exercer um papel relevante para a revitalização da área central da metrópole do Rio de Janeiro.
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Cabe aqui colocar a apreensão quanto a uma nova onda de importação de modelos urbanísticos para a cidade, como ocorrido anteriormente (ver quadro-resumo, adiante), e considerando-se ainda a prática internacional contemporânea de produção de projetos de grandes intervenções nos vazios urbanos. Tendo em vista que no Rio de Janeiro se apresentam os vazios que vem sendo colocados em destaque em todo o mundo, como imensas áreas ferroviárias e outras, abandonadas, adjacentes ao CBD, é de se prever que estas áreas se tornem objetos de novos projetos. Uma enorme zona portuária, da qual grande parte encontrava-se com atividades obsoletas, mas,
igualmente, com trechos ocupados por moradias populares, atualmente, é objeto de intervenção do poder público municipal, abrangendo uma área de cinco milhões de metros quadrados. Quando se recorre a uma perspectiva histórica, percebe-se um agravamento da questão dos vazios urbanos na metrópole do Rio de Janeiro, ao observar-se que, como resultado das ações públicas implementadas desde o início do século XX, vem sendo produzidos vazios justamente através de muitos planos e projetos ambiciosos, visionários e pouco realistas. A seguir apresenta-se, em breves comentários, um panorama da prática urbanística atual na cidade. A atividade em questão vem sendo impulsionada pelo poder público municipal através de diferentes programas e intensa divulgação. Destacam-se os conhecidos programas Rio-Cidade, e Favela-Bairro, que recolocaram a discussão dos espaços urbanos no cotidiano da população devido às dezenas de intervenções pontuais de requalicação de eixos comerciais e de u rbanização de favelas.
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Os projetos urbanísticos da Prefeitura para a área central do Rio de Janeiro, em curso nas duas últimas administrações municipais da década de 1990, visavam intervenções destinadas a contribuir para o desenvolvimento socioespacial dessa área. Por meio de grandes investimentos, de consultorias com técnicos estrangeiros de renome6, de alguns concursos públicos de projetos urbanísticos pontuais, iniciativas das novas sub-prefeituras do centro e da zona portuária, programas de diferentes Secretarias Municipais (Urbanismo, Habitação, Desenvolvimento Social) ou ainda, através de instituições como a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e a CEF (Caixa Econômica Federal), entre outras, além de parcerias com entidades privadas, o poder publico municipal promoveu um conjunto considerável de projetos para a área central. Com o intuito de viabilizar estas atuações, a Prefeitura aprovou a chamada “Lei do Centro”, lei 2236, de 14/10/94 que, entre outros aspectos, propõe: permissão e estímulo ao uso residencial, valorização e conservação das edicações e dos conjuntos arquitetônicos de interesse cultural e paisagístico. Entre as várias intervenções realizadas algumas abrangeram trechos mais amplos da área central e arredores7, além de alguns projetos destinados ao incentivo do uso habitacional, como o projeto de reabilitação de cortiços (Programa Novas Alternativas da SMH), projetos habitacionais localizados8, objetivando o preenchimento de vazios e a recomposição do tecido urbano da periferia do centro.
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Interessa salientar o grande desao que representam essas ações urbanísticas, as quais constituem iniciativas destinadas a reverter o esvaziamento da área central como um todo. Vale evidenciar que se trata de proposta ambiciosa se levar-se em conta a sua pretensão de modicar uma tendência de ocupação e desenvolvimento urbano que vem se estruturando ao longo da história da cidade, sobretudo nos últimos cem anos, período em que as intervenções na área central foram decisivas para a sua transformação socioespacial. Além de acompanhar o processo em curso, propondo-se estudos criteriosos sobre os propósitos e os condicionamentos destas atuações, torna-se necessário observar os seus resultados e suas conseqüências. Entretanto, pode ser feita uma primeira constatação a respeito do quadro esboçado, destacando-se a ausência de projetos mais especícos destinados a enfrentar os desaos maiores, isto é, os grandes vazios ainda existentes. Para nalizar, pode-se dizer que no Rio de Janeiro, atualmente, essa signicativa produção de projetos urbanísticos e de várias propostas e intervenções para a área central (desde os grandes programas, de inúmeras intervenções pontuais, passando pelas propostas e projetos médios e pequenos, atomizando obras por toda a cidade) tem tido boa acolhida, em geral, mas também tem recebido diversas críticas, principalmente no âmbito acadêmico. Estas visam diferentes esferas de atuação do poder público como o não atendimento a demandas sociais e ao privilegiar de ações voltadas para o mercado, o que acompanha uma tendência mais ampla, de âmbito nacional e internacional. No que diz respeito especicamente à área central e arredores, a atuação do poder público vem sendo, por um lado, ambiciosa e intensa e, por outro, cuidadosa, evitando, de uma maneira geral, os enormes projetos das décadas passadas nem sempre bem sucedidos. Mas a resposta do mercado continua também pontual, cuidadosa e reticente. Há que se aguardar os desdobramentos futuros deste quadro, assim como aprofundar as pesquisas para uma melhor compreensão do tema.
Cidade do Rio de Janeiro – Síntese Histórica das Intervenções na Área Central e Entorno PERÍO- INTERVENÇÃO / PROJETO DO
OBJETIVOS ENUNCIADOS
TRANSFORMAÇÕES
Séculos XVII/XIX
Ocupação do território; criação de solo Desmonte de morros; aterros; Alteração do meio ambiente; expansão área ururbanizável; construção de infra-estrutura Aqueduto da Carioca. bana; adensamento populacional. urbana.
Década 1900
Reforma urbana Pereira Passos Início das intervenções de Renovação Urbana: expulSaneamento, embelezamento; moderniabertura de vias; criação do são da habitação, formação de favelas; destruição zação, ordem urbana. Porto. patrimônio; área central como área de lazer e cultura.
Década 1920
Arrasamento do morro do Castelo.
Década 1920/30
Renovação da área da Cinelân- Modernização; área de lazer classes altas; Início da verticalização; área central como área dia; mudança de uso na Lapa. criação de lugares da boemia; sede de jornais. de lazer e cultura de elite.
Década 1940
Estado Novo: abertura da ave- Rodoviarismo, transporte individual; emExpulsão da habitação, formação de vazios, desnida Presidente Vargas; con- belezamento e ordem urbana; ‘limpeza de truição do patrimônio. trole de atividades urbanas. usos sujos’.
Década 1950
Arrasamento do morro de Santo Antônio; degradação da Lapa.
Década 1950/60
Construção do Elevado da Peri- Obra viária. metral.
Década 1960
Renovação Estácio e Catumbi; Obras viárias – acessos ao túnel S. Bárba- Arrasamento dos bairros do Estácio e Catumbi, destruição casario da Lapa. ra. expulsão da habitação.
Década 1970
Construção do metrô; Dec. 322/ Transporte de massa; ordenação do espa- Destruição de tecido urbano histórico, formação 1976, proibição uso residencial na ço urbano. de vazios, expulsão da moradia (Dec. 322/76). ACN; destruição casario da Lapa.
Década 1980
Expansão metrô.
Saneamento, “aeração e higiene”; abertu- Destruição de marcos e do tecido urbano, formara de vias, modernização. ção vazios e de favelas.
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Saneamento, abertura da Av. Norte/Sul Destruição da primeira favela da cidade, forma(não concretizada). ção de vazios.
Transporte de massa.
Rompimento da relação do centro com o mar.
Destruição de tecido urbano histórico, formação de vazios expulsão da moradia (Dec. 322/76).
Projeto Corredor Cultural; re- Preservação da arquitetura e do ambiente Preservação Urbana substitui a Renovação: maforma de equipamentos cultu- cultural; incentivo à atividade comercial / nutenção do patrimônio edicado. Expulsão da rais. cultural. moradia (Dec. 322/76). Década 1990
Projetos: Rio Cidade; de haRequalicação e revitalização; retomada Ocupação de vazios; retomada da bitação e cultura; Quadra da da centralidade; retorno do uso residen- relação do centro com o mar; retomada de ativiCultura da Lapa. Lei de Uso Recial. dades culturais. sidencial/ 1994.
Década 2000
Projetos: Distrito Cultural da Lapa; Revitalização Praça TiRetomada da centralidade revitalização Retomada de atividades culturais; radentes, Área Portuária. Inda Área Central. retorno pontual do uso residencial. tervenções: Rua do Lavradio; Programa Novas Alternativas.
Década 2010
Projetos: Lapa Legal, Porto Maravilha, melhorias na mobilidade urbana, construção de novos eixos de transporte, teleférico no morro da Providência.
Revitalização da Zona Portuária; grandes obras de mobilidade urbana; demolição do Elevado da Perimetral; retomada da relação da cidade com o mar.
Retomada das intervenções de Renovação Urbana; expulsão da habitação; destruição de edicações e de vias; descoberta e restauração de sítio arqueológico.
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INTERVENÇÕES NA ÁREA CENTRAL E SEU ENTORNO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI No esforço de atualização do texto Áreas centrais, projetos urbanísticos e vazios urbanos (1999), verica-se a instauração de um novo momento de inexão das ações do poder público relativas a intervenções/projetos urbanos, principalmente a partir da década de 2010. Ao contrário do que ocorria na Área Central e seu entorno – intervenções principalmente pontuais e cuidadosas –, o que se observa, sobretudo nesta segunda década do século XXI é o seu inverso: trata-se, agora, de intervenções signicativamente ampliadas, em sintonia com o momento atual de megae ventos, megainvestimentos e megaprojetos. Estes últimos anos, que vinham se caracterizando como de euforia, com previsões otimistas para novas atividades econômicas, como aquelas ligali gadas ao petróleo, promoviam, através da construção de edifícios corporativos e institucionais, um desenvolvimento de atividades imobiliárias em zonas de grandes vazios. No entanto, após a conrmação da escolha do Rio de Janeiro para sediar importantes eveneven tos cuja abrangência transcende a escala nacional, como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude, em 2013; a Copa do Mundo de Futebol (com outras cidades), em 2014; e os Jogos Olímpicos, em 2016; as características da conguração espacial da cidade adquiriram novos ângulos. Em seguida às efusivas comemorações e promessas de realização de previsões assombrosas e de implementação de megaestruturas destinadas a adequar grande parte da cidade para a recepção destes megaeventos, ocorreram aumentos progressivos dos preços dos imóveis, mudanças do foco de atuação de grandes empresas de engenharia, que se voltaram para a construção de edifícios corporativos, comerciais e residenciais, assim como a vinda de grandes empresas e investidores estrangeiros à cidade. A Zona Portuária, para a qual há mais de vinte anos são apresentados diferentes projetos de regeneração urbana, transformou-se recentemente num grande canteiro de obras de grandes intervenções previstas no controvertido projeto denominado Porto Maravilha. Com a venda de Certicados de Potencial Adicional Construtivo – CECE PACs, grandes áreas de vazios tiveram t iveram seus gabaritos originalmente previstos aumentados até 50 pavimentos, em particular nas franjas da Área Central Central e da Zona Portuária.
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Neste mapa, de Andrea Borde, estão assinalados os grandes vazios centrais: as grandes esplanadas, o eixo da Av. Presidente Vargas e os portuários (no interior do projeto Porto Maravilha. Fonte: Andréa Borde, 2010.
RIO DE JANEIRO: V AZIOS AZIOS E PROJETOS NA ÁREA URBANA CENTRAL Neste mapa, de Andrea Borde, estão assinalados os grandes vazios centrais: as grandes esplanadas, o eixo da Av. Presidente Vargas e os portuários (no interior do projeto Porto Maravilha). Fonte: Andréa Borde, 2010. Para analisar este novo cenário, torna-se necessário lançar um olhar histórico sobre as in tervenções urbanas. Para sistematizar e objetivar os focos desta sucinta análise, apresenta-se
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o seguinte quadro sinóptico atualizado das intervenções urbanísticas na Área Central do Rio de Janeiro e seu entorno, incluindo a Zona Portuária, Portuária, bem como de suas respectivas transformações espaciais. Numa rápida análise do quadro apresentado, destacam-se, na última coluna, as duas conseqüências/ transformações mais recorrentes das intervenções ao longo do século XX: a expulsão da população moradora das regiões atingidas e a formação de vazios9. Sobre estes últimos cabe assinalar que muitos eram espaços construídos e habitados, que podem ser vistos, portanto, como vazios esvaziados (BORDE 2006). Dois deles, dentre os maiores, e junto à ACN, chamam a atenção e surpreendem os visitantes estrangeiros: as esplanadas do Castelo e de Santo Antonio. Esplanadas são geralmente amplos espaços públicos, grandes praças como, por exemplo, a Esplanada dos Ministérios, em Brasília e a Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, ou alargamentos de vias diante de edifícios marcantes ou apenas espaços de passeio para pedestres, bares e restaurantes. As esplanadas da cidade do Rio de Janeiro, ao contrário, são apenas terrenos aplanados, vazios cujo uso costuma ser o estacionamento de veículos. Há certamente, imbricações de ordem jurídica que explicam estes e outros vazios urbanos cariocas, embora não os justiquem. A existência, e principalmente a permanência destes vazios por décadas, em áreas das mais valorizadas da cidade gera perplexidade e suscita alguns questionamentos. Como compreender o processo de produção destes vazios? O conceito urbanístico de terrains vagues, anteriormente abordado, seria dotado de potencial analítico que proporcionasse uma compreensão desses ‘vazios interiores’ nas cidades? O processo de produção do espaço urbano nas sociedades moldadas pelo capitalismo que gera cidades constituídas por áreas socialmente segregadas e fragmentadas, não gera falsos vazios como espaços disponíveis para a sua realização? r ealização? Os chamados vazios não constituem espaços livres, muitas vezes produzidos para justicar ações de destruição do tecido social, historicamente construído, congurando-se como ações que desrespeitam a mormor fologia urbana e, tantas vezes a população moradora?
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Identica-se nesta breve abordagem, diferentes enfoques sobre estes espaços. Nos am bientes de negócios, principalmente os imobiliários, os vazios são vistos como possibilidades econômicas: economistas, corretores e outros agentes do ramo imobiliário não reconhecem neles nada além do que pode vir a ser neles construído e o seu valor monetário, desconsiderando,
muitas vezes, a existência de antigas edicações. Nesta concepção, os vazios da cidade do Rio de Janeiro permaneceram como potencialidades construtivas embaladas desde as primeiras décadas do século XX pela crença da expansão horizontal da área central, que incluiria a ocupação de bairros como Lapa, Estácio, Es tácio, Cidade Nova e os da Zona Portuária: Saúde, Gamboa, Gamboa, Santo Cristo e (VAZ e SILVEIRA 1994). Esta crença, fundamentada numa concepção positivista, que preconizava um progresso contínuo da sociedade e seus espaços, mostrou-se equivocada nas últimas décadas do século XX, ao mesmo tempo em que outros modos de compreender a cidade e o seu planejamento substitu íam o racionalismo e o funcionalismo modernista. Com o projeto Corredor Cultural na década de 1980, a preservação de conjuntos de prédios e, principalmente, de ambientes históricos e culturais tornou-se possível; com a difusão de autores dos campos da História e da Cultura, estas duas dimensões adquiriram importância e foram incorporadas ao pensamento urbanístico.
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Giulio Carlo Argan (1993: 260) foi além, ao demonstrar que a cidade é, inteira, uma cons trução histórica e que não haveria razão para que alguns trechos da cidade fossem considerados históricos e outros não. Ele criticou o conceito de centro histórico, que teria uma funcionalidade, mas seria um falso conceito, uma formalidade que permitiria a escolha de quais espaços construídos antigos deveriam ser preservados e quais seriam condenados à eliminação e substituídos por novos. Pode-se fazer uma analogia com os vazios urbanos, espaços construídos que foram selecionados com base em planos e projetos por vezes otimistas/exagerados/sonhadores, por vezes vinculados a interesses pragmáticos, para serem destruídos, total ou parcialmente, e ocupados por novas edicações edicações e usos. Entretanto, conforme se vericou, vericou, muitos dos planos não se viabilizaram, deixando aqueles espaços condenados à condição de vazios, no seu sentido estrito. O conceito de terrain vague, mencionado no início deste artigo, foi desenvolvido inicial mente por Ignasi de Sola-Morales, que introduziu uma reexão singular na temática dos vazios urbanos. Os espaços urbanos que teriam atingido um nível de obsolescência, tornando-se “espaços devolutos e residuais”, seriam dotados de um signicado substantivo, esvaziados no seu uso e ocupaocupação, mas plenos de memória. Nessa abordagem, os terrains vagues, que poderiam parecer lugares abandonados e, de certa maneira, esquecidos, desconectados dos ambientes produtivos da cidade, seriam lugares em que a memória prevaleceria sobre o presente (apud BAPTISTA, 2007:10).
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Os vazios, nestas condições de não-existências, apenas potencialidades construtivas, têm toda a subjetividade que os impregna solenemente ignorada ou esquecida, lembrada apenas pelos antigos moradores, que, ao contrário, os vêem como lugares preenchidos de signicados. Cabe aqui lembrar que lugares são espaços vividos aos quais foram atribuídos signicados. Andreas Huyssen (2000) demonstrou, a partir dos imensos vazios que dividiam a cidade de Berlim, que justamente estes espaços eram plenos de história e de memórias. Histórias e memórias de pessoas, que não deveriam ser apagadas ou esquecidas. Um exemplo de intervenção que atentou para o signicado dessa realidade intangível, repleta de implicações políticas, culturais e ideológicas, como se tornou o vazio de Berlim, foram os projetos do arquiteto Álvaro Siza para Kreuzberg, mediante uma recusa ao apagamento da memória. No entanto, a sua sensibilidade em relação ao tema perdeu-se nas políticas urbanas subsequentes (BAPTISTA, 2007:10). Retomando a nossa perspectiva histórica em relação à metrópole do Rio de Janeiro, sintetizada no quadro sinóptico, reitera-se a constatação de que as transformações em conseqüência das intervenções urbanas havidas no Rio de Janeiro resultaram não somente na formação de vazios, mas também na expulsão da população moradora. A nossa abordagem pretendeu revelar duas faces de uma mesma moeda: os vazios não eram apenas terrenos devolutos; eram espaços que foram esvaziados de suas construções e de seus moradores, foram ‘liberados’ para novas ocupações mais adequadas aos interesses hegemônicos. Trata-se do olhar produtivista/economicista que, historicamente, insiste em ignorar a dimensão humana e a subjetividade que permeia os espaços velhos, pobres, decadentes, condenando seus habitantes à expulsão e ao abandono de seus abrigos, condenados à destruição. Cabe, portanto, expor a preocupação com o futuro da população atualmente moradora em áreas a serem revitalizadas, como o expressaram Maria Lais P. Silva, Luciana Andrade e Juliana Canedo (2012). As intervenções recentes propostas para a Área Portuária do Rio de Janeiro estão inseridas em uma lógica onde se enunciam supostos vazios urbanos que justicam ações de grande im pacto no intuito de ‘revitalizar’ áreas da cidade. Este discurso desconsidera a cidade preexistente nestas regiões e tem como objetivo sobrepor uma nova forma de viver e habitar a cidade, às
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custas de seus antigos moradores. Esta nova forma de viver a cidade está mais relacionada com os interesses do turismo e das classes mais altas da sociedade, e permite que milhares de pessoas sejam removidas do local onde moram, para dar lugar a uma outra população. A análise histórica associada a algumas reexões recentes que conectam os muitos vazios urbanos cariocas, os seus signicados, os planos urbanísticos megalomaníacos e as populações removidas, suscita perplexidade na seguinte indagação: como podem os responsáveis pelos pro jetos de intervenção urbana que visam reverter o esvaziamento de certas áreas, insistir e ignorar o processo de urbanização, a história das intervenções e as suas consequências, e propor soluções com a reprodução dos mesmos métodos que geraram os vazios centrais, agora em doses ainda maiores, intensicadas pelo incremento do potencial construtivo adotado?
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NOTAS DE FIM Compreende-se a área central constituída de um núcleo e de um anel periférico, conforme explicitado em texto anterior: “O processo de centralização urbana que deu origem à Área Central resultou numa organização espacial composta basicamente de duas frações imediata), formando uma franja de usos diversicados e separando o CBD dos demais bairros”. VAZ e SILVEIRA (1993), apoiado no conceito de CORRÊA (1989): o centro de gestão de toda a estrutura urbana ou metropolitana, isto é, o núcleo central (core, Central Bussiness District ou CBD, Área Central de Negócios ou ACN); e a zona periférica ao centro (frame, zona de transição, de obsolescência ou deteriorada, periferia 1
Centro é utilizado aqui no sentido de oposição à periferia, como cidade interior, a cidade com seu centro e bairros, sem os subúrbios e periferias. 2
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Convém esclarecer que por área central da cidade do Rio de Janeiro compreende-se o centro comercial, nanceiro, cultural e de informações, e os seus arredores, onde se localizam áreas de pequeno comércio, de indústrias de pequeno porte e residenciais. Nela se encontra, além do núcleo verticalizado, áreas preservadas pelo patrimônio cultural, de uso misto, assim como áreas antigas deterioradas e arrasadas, e ainda grandes vazios, compondo um território singular, após o qual se seguem os bairros das zonas portuária, industriais e residenciais. 3
Como as desapropriações e intervenções foram realizadas por diferentes instâncias do poder público – federal, estadual e municipal, conforme o status da cidade no momento histórico (Distrito Federal, Estado da Guanabara ou capital do Estado e sede do Município do Rio de Janeiro) – os terrenos remanescentes, atuais vazios pertencem também a diferentes órgãos e instâncias do poder. Outros ainda são disputados na justiça. 4
De acordo com essa pesquisa, o poder público é proprietário de cerca de 56% desses vazios. O exame dessas observações re serva, ao poder público, um signicativo papel ainda a ser desempenhado no equacionamento do problema dos vazios. Sendo, simultaneamente “produtor” e detentor de porção signicativa destes espaços na II RA, há que se avaliar as possibilidades de realização de projetos e intervenções com o intuito de reverter o processo de formação de vazios, contribuindo efetivamente para a revitalização da área central. 5
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Como é o caso de Nuno Portas (Porto), Jordi Borja e Oriol Bohigas (Barcelona).
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Como o caso do Projeto Sás e do Teleporto (proximidades do edifício da Prefeitura); do Waterfront , litoral, desde o Aeroporto Santos Dumont até a Igreja da Candelária; do Rio Mar, com a reurbanização da orla marítima centro/sul; da Revitalização da Praça Tiradentes e Arredores; do Rio-Cidade (Avenidas Presidente Vargas e Rio Branco e adjacências) e outras intervenções de recupe ração de pequenas praças e trechos de rua. (Azevedo e G. da Cunha, 1997). 7
Projetos para o Morro da Saúde, a Enseada da Gamboa e o Morro da Conceição.
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Ressalta-se que estes dois fatos geralmente estão associados, porém a relação entre eles ainda necessita ser estudada.
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C B S
[email protected] Pesquisadora bolsista do PDCFMA/FIOCRUZ/RJ, é arquiteta (UFRGS), Mestre em Ciências (IGEO-PPGG/UFRJ) e doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Atuou em consultorias de planejamento urbano e em pesquisas urbanas na UFRJ. Atualmente, coordena projetos em assentamentos urbanos irregulares por meio de abordagens transdisciplinares que envolvem educação popular e promoção da saúde. É autora e co-autora de capítulos de livros e artigos em periódicos relativos à moradia, à história urbana, à memória e ao habitat saudável, em áreas centrais e periféricas da cidade do Rio de Janeiro.
L F V
[email protected] Professora do PROURB/FAU/UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Arquiteta (FAU/UFRJ), Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), Doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), com pós-doutorado em Estudos Culturais (MSH, Paris). Atua em ensino e pesquisa sobre questões urbanas, tendo publicado livros sobre história de bairros e sobre história da habitação carioca. É autora de vários artigos e capítulos de livros e artigos em periódicos sobre habitação popular, áreas centrais, bairros, culturas urbanas e história urbana do Rio de Janeiro.
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REQUALIFICAÇÃO URBANÍSTICA DAS ÁREAS PERICENTRAIS NO RIO DE JANEIRO Cristovão Fernandes Duarte
INTRODUÇÃO O processo de modernização das cidades brasileiras se fez de costas para suas antigas centralidades. Símbolos de um passado colonial que se almejava superar, os centros históricos de nossas cidades foram representados como um entrave ao progresso e ao desenvolvimento urbano, nos marcos do liberalismo econômico implantado no país a partir do século XX. No bojo dos desdobramentos tecnológicos da Revolução Industrial em marcha nos países centrais e alavancado pelo surto desenvolvimentista que se abateu sobre nossas cidades, produziu-se um quadro de “destruição criativa”, destinado a substituir as antigas estruturas que compunham a sintaxe espacial do tecido urbano tradicional. O presente trabalho discute o processo de modernização do centro urbano tradicional da cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XX, enfatizando o esvaziamento da função residencial resultante daquelas transformações. Na sequência, busca-se evidenciar a problemática atual dos bairros pericentrais da cidade, apontando, prospectivamente, sua requalicação urbanística como um campo aberto de possibilidades com vistas a construção de uma cidade mais justa e mais sustentável. Entre os fatores que contribuíram de forma decisiva para o abandono da área central como lugar de moradia da população carioca, destacamos: a expansão urbana vericada a partir da primeira metade do século passado em direção aos bairros da Zona Sul (praias litorâneas) e Norte (subúrbios servidos pelos ramais ferroviários) e, mais recentemente, em direção à zona oeste; a consolidação do processo de especialização funcional da área central como centro nanceiro e empresarial da cidade; a promulgação do Decreto 322, em 1976, que consolidava o zoning fun cional através da regulamentação do uso do solo urbano e proibia a função residencial na área
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central da cidade; o processo de segregação sócio-espacial resultante da supremacia dos interesses da especulação imobiliária nas decisões sobre as transformações urbanas; e, concomitantemente a tudo isso, a opção pelo transporte motorizado (com ênfase no automóvel particular) que permitiu o espraiamento da cidade e a dispersão do tecido urbano em direção à zona oeste e à Baixada Fluminense. Os impactos negativos do processo de perda da população residente estenderam-se para além dos limites ociais do bairro central, atingindo áreas pericentrais que interagiam e depen diam diretamente das dinâmicas socioeconômicas vericadas no interior do centro urbano. Desta forma, os bairros que circundam a área central da cidade do Rio de Janeiro foram sendo pouco a pouco transformados num cinturão de pobreza a volta do núcleo histórico. Imersos, por assim dizer, numa “zona de sombra”, esses bairros vivenciaram um grave processo de estagnação e obsolescência urbana, desprovidos de investimentos públicos e alijados da dinâmica imobiliária da cidade. Este é o caso dos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Cidade Nova, Lapa e São Cristóvão, todos situados no entorno imediato do centro de comércio e negócios da cidade. Não foram incluídos nesta etapa do estudo os bairros de Santa Teresa, Glória, Estácio e Catumbi que, embora possam ser considerados como pericentrais, demandariam um estudo mais especíco, tanto por suas características urbanísticas particulares como por sua relativa autonomia com relação à área central da cidade.
A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAS ÁREAS PERICENTRAIS Durante os três primeiros séculos de existência a cidade manteve seus limites basicamente denidos pelos acidentes geográcos da região. De fato, até o início do século XIX a malha urba na encontrava-se circunscrita pelos morros que a confrontavam a sul, com o alinhamento dos morros do Castelo, Santo Antônio e Senado, e a norte, com o encadeamento dos morros de São Bento, Conceição, Livramento e Providência. A leste os limites correspondiam à orla da Baía de Guanabara e a oeste aos terrenos pantanosos do Mangal de São Diogo que impediam a expansão da malha urbana então existente. Cabe igualmente referir que nas encostas dos morros da face norte da cidade, debruçadas sobre a Baía, surgiram, ainda no correr do século XVII, as primeiras ruas e edicações dos futuros bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo (VAZ, 1987: 19). Nesta
estreita faixa litorânea entre a Baía e os morros da Conceição, Livramento e Providência, isola da geogracamente da área central, se consolidaria a zona portuária da cidade. O isolamento natural logo se tornaria convenientemente funcional para a cidade, ocultando da cena urbana atividades consideradas menos nobres como o trabalho braçal dos estivadores do cais do porto, o embarque e desembarque de mercadorias, o tráco negreiro (ali cavam também localizados o Mercado e o Cemitério de Escravos), além da prostituição, atraída pelos marinheiros das mais diversas procedências sempre presentes nos portos das cidades. Como conseqüência imediata dos condicionantes acima descritos, a zona portuária se consolidou como uma região tradicionalmente destinada à moradia da classe trabalhadora. Por este motivo, os bairros da Saúde, Gam boa e Santo Cristo são identicados pelo presente trabalho como áreas pericentrais e não como integrantes do núcleo urbano propriamente dito.
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A chegada da família real em 1808 marca o início de grandes transformações na cidade. Tornada sede do Império Português, a cidade do Rio de Janeiro experimenta um vertiginoso surto de crescimento. Sua população, que somava cerca de sessenta mil habitantes em 1802, atinge duzentos mil em 1849, ultrapassando ao nal do século XIX a casa dos quinhentos mil habitantes (BERNARDES, 1992, p. 47). A densicação do núcleo urbano tradicional e a crise habitacional obrigariam a procura de novas áreas para expansão da cidade. Entre as primeiras decisões reais destaca-se a Abertura dos Portos às Nações Amigas, em 1808, que produziu um incremento às atividades portuárias e, consequentemente, a ampliação do processo de urbanização e desenvolvimento da Saúde, da Gamboa, do Saco do Alferes (Santo Cristo) e da praia Formosa (atual Av. Francisco Bicalho). A localização do Palácio Real na Quinta da Boa Vista em São Cristóvão impôs a necessidade de melhoramentos no acesso entre a cidade e a residência real, atravessando o Mangal de São Diogo. Para tanto foram feitos sucessivos aterros e benfeitorias na região. De arrabalde distante, situado para além dos limites da cidade, São Cristóvão se transforma, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, em nova fronteira de expansão urbana e de modernização da cidade, recebendo grandes melhoramentos de infraestrutura e transportes (DUARTE, 2012). A meio caminho entre o centro urbano e São Cristóvão, os novos terrenos resultantes dos aterros realizados propiciaram o surgimento das primeiras casas do futuro bairro da Cidade Nova.
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Até nais do século XIX, a Cidade Nova assiste a construção da Fábrica do Gás e a canalização do Mangue, realizadas pelo Barão de Mauá e que impulsionaram a ocupação do novo bairro. Essa região, surgida sobre terrenos alagadiços e pantanosos, onde era possível encontrar condições mais acessíveis de moradia, logo caria caracterizada como mais um bairro proletário, atraindo também imigrantes que chegavam à cidade. Ali, em torno da Praça Onze de Junho (antigo Largo do Rocio Pequeno) surgirá uma comunidade de sambistas e compositores populares responsável pela consagração do samba carioca como expressão maior da cultura da cidade. Não por outra razão, a Cidade Nova é hoje considerada, juntamente com o bairro do Estácio que lhe é contíguo, o “berço do samba”. Caberia ainda fazer referência à Vila Mimosa, famosa zona de prostituição da cidade que permaneceria na Cidade Nova até sua transferência para a Praça da Bandeira, nos anos 90. Em expansão e à procura de novas áreas, a cidade encontraria nas imediações da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro outra região a ser ocupada. A despeito da proximidade com relação ao centro tradicional da cidade, até nais do dezoito a ocupação da Lapa encontrava-se bastante rarefeita. Contribuíram para isso o fato da região apresentar terrenos sujeitos a alagamentos em função da proximidade da Lagoa do Boqueirão (aterrada em 1783 para a construção do Passeio Público) e por se encontrar cercada pelos morros do Desterro (atual bairro de Santa Teresa), Santo Antonio e Senado. No início do século XIX, vencidas as resistências iniciais, começa efetivamente o processo de ocupação da Lapa. A abertura das ruas do Rezende, do Lavradio e dos Inválidos inauguram a ligação da malha urbana existente com esta nova área de expansão da cidade (DUARTE, 2009). Os sobrados e palacetes que ainda hoje compõem a morfologia arquitetônica da Lapa datam da segunda metade do século dezenove, quando, de fato, se consolida o processo de urbanização daquela região. Paradoxalmente, o processo de densicação do conjunto edicado da Lapa coincide, nas ultimas décadas do XIX, com o início do movimento de evasão das elites em direção à zona sul da cidade, margeando a orla da baía de Guanabara. Bairros mais distantes como Catete, Flamengo e Botafogo, ainda com uma ocupação incipiente, passam a representar uma nova opção de moradia, possibilitando a construção de belas casas em amplos terrenos, longe do burburinho do velho e saturado centro.
O século XX encontra a área central da cidade densicada e expandida em direção aos novos bairros que a circundam. Elevada agora à condição de Distrito Federal desde a Proclamação da República (1889), a cidade viverá um tempo de grandes transformações urbanas, em especial no que se refere à remodelação urbanística da área central e a modernização da Zona Portuária da cidade, implementadas durante a administração do Prefeito Pereira Passos (1902-1906). Frente aos objetivos do presente estudo interessa destacar de forma sucinta os impactos daquelas transformações sobre as relações estabelecidas entre o centro histórico e as áreas pericentrais.
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A Zona Portuária foi radicalmente transformada por vultuosos investimentos infraestruturais. Uma grande faixa de aterro preencheu o espaço entre a antiga orla sinuosa e o cais reticado do novo porto da cidade. Sobre a área de aterro foi implantada uma nova malha viária de amplas ruas e avenidas retilíneas, circunscrevendo quadras estreitas e compridas preponderantemente subordinadas ás atividades portuárias e à circulação de veículos de carga. Nessas quadras construíram-se galpões industriais e armazéns destinados ao processamento e estocagem de mercadorias. O gigantismo assumido pelo novo traçado viário mantém-se ainda hoje perfeitamente legível na planta cadastral urbana, contrastando fortemente com o tecido urbano preexistente. Com relação ao centro histórico, a destruição modernizadora de Pereira Passos, batizada pela população da cidade com a expressão “bota-abaixo”, tinha como pressuposto apagar a imagem do passado colonial, rasgando o tecido urbano para criação de novos corredores de circulação como a Avenida Central e remodelando o espaço urbano segundo o ideário estético do Ecletismo. Em paralelo, as intervenções promoveram a expulsão dos pobres ainda presentes no centro histórico da cidade, agravando a crise de moradia já instalada. Numerosos cortiços, que funcionavam como habitações coletivas de aluguel foram demolidos em nome da higiene pública. Expulsos do antigo centro, os pobres se deslocaram primeiramente para a zona portuária e para a Cidade Nova, área já tradicionalmente ocupadas pelas classes trabalhadoras. Ressalte-se ainda, como conseqüência direta deste processo, o incremento do processo de favelização dos morros da Providência, Santo Antônio e São Carlos, nas proximidades do centro histórico (ABREU, 2003). Para que se “fechasse” o arco de pobreza em torno do centro, restava a Lapa com seus ricos sobrados e palacetes, ocupados até então por famílias abastadas. Não tardaria, entretanto, que
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se processasse a substituição dos antigos proprietários. O aumento da oferta de linhas regulares de transportes públicos entre o centro e bairros mais afastados, bem como a abertura da Avenida Beira-Mar em direção às praias do Flamengo e de Botafogo, reforçariam ainda mais a tendência de evasão do núcleo central. Assim, em pouco tempo, as nobres moradias da Lapa se converteram em casas de cômodos para alugar, cujos rendimentos mensais não poderiam ser considerados desprezíveis (BARBOSA, 1992: 322). Ao longo das duas primeiras décadas do século XX a Lapa vai se transformando num bairro de gente pobre, ocupando (e superlotando) casas de gente rica. Para usar uma licença poética, trata-se de um surpreendente caso de “travestimento arquitetônico1”, ou seja, a aparência nobre e elegante das edicações contrastava com as péssimas condições de moradia a que se encontravam submetidos os novos habitantes. Juntamente com a pobreza recaiu sobre a Lapa o estigma da malandragem e da contravenção. De fato, abrigados e protegidos pela segregação sócio-espacial imposta ao bairro, proliferaram por suas ruas prostíbulos, casas de jogo, tabernas, nitgh-clubs com shows de st rip-tease e toda sorte de ofertas possíveis para a vida boêmia e desregrada que atraía os novos e notívagos freqüentadores da Lapa (KUSHNIR, 2001). O período republicano representou ainda a perda de prestígio do bairro imperial de São Cristóvão. Para Freitas (2003), a Reforma Passos marca justamente o momento em que São Cristóvão inicia sua decadência como área residencial, sendo cada vez mais procurado para a instalação de indústrias, principalmente em função da proximidade com o centro da cidade e com o novo Porto da Cidade, inaugurado em 1909. O processo de industrialização do bairro de São Cristóvão se consolidaria mais fortemente a partir da implantação do Estado Novo, em 1937, com a promulgação do Decreto-Lei 6.000/37, que cria a primeira Zona Industrial da cidade (estendendo-se por uma faixa continua que vai do Bairro de São Cristóvão até o bairro da Pavuna, na zona norte carioca). Considere -se ainda que a abertura em 1940 da Avenida Brasil, via expressa de entrada e saída da cidade, signicou também o eixo principal de escoamento da produção do parque industrial recém-instalado no bairro. Desta forma, ao nal da primeira metade do século XX a área central da cidade encontrava-se cercada por um cinturão de pobreza formado pelos bairros da Zona Portuária, a Cidade Nova
e a Lapa. Até mesmo São Cristóvão, que fora um bairro residencial da classe mais abastada, vai perdendo sua antiga condição e se transformando num bairro industrial, atravessado por um pesado uxo de veículos de carga pesada, de passageiros e de passeio. O recorte temporal adotado nesta primeira parte do trabalho chegou até a metade do século XX, quando se verifica um claro ponto de inflexão na dinâmica urbana vivida pela área central. A inauguração da Avenida Presidente Vargas, em 1944, representou um marco decisivo para a afirmação da lógica rodoviarista que se abateria sobre a área central nas décadas subsequente, acelerando de modo inequívoco o processo de especialização monofuncional da área central como centro financeiro e empresarial da cidade e a evasão da população residente.
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Áreas central do Rio de Janeiro, vista a partir do Morro do Pinto. Foto: Cristóvão Duarte, 2011.
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SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: ESTAGNAÇÃO E OBSOLESCÊNCIA DAS ÁREAS PERICENTRAIS Não faz parte do escopo do presente trabalho uma contextualização histórica minuciosa das transformações urbanísticas ocorridas na região no decorrer da segunda metade do século XX. Indicaremos tão somente as ocorrências mais signicativas, enfatizando sempre que possível o processo geral de obsolescência vivenciado pelos bairros pericentrais da cidade. Ressalte-se que boa parte deste período coincide com a vigência do regime autoritário, implantado a partir do Golpe Militar de 64 e que se estenderia até meados da década de 80. Isso signica que as decisões tomadas pelos poderes instituídos prescindiram do debate e da participação da sociedade. Convém lembrar que, todas as vezes que se atenta contra a Democracia se atenta também contra a cidade. Não por acaso, os anos que se seguiram ao Golpe Militar (em particular a década de 70) cariam marcados pelo recrudescimento da especulação imobiliária e pela destruição do patrimônio cultural edicado de nossas cidades. Cabe igualmente mencionar os efeitos produzidos pela mudança da capital federal para Brasília em 1960 e a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro em 1975, acarretando um período de relativa desorganização administrativa, além da perda do capital político e econômico da cidade. Como foi dito anteriormente, a abertura da Avenida Presidente Vargas pode ser conside rada como uma das mais signicativas intervenções sofridas pela área central, cujos impactos se estenderiam ao longo das décadas seguintes. Com cerca de 90 metros de largura e mais de 4 quilômetros de extensão, esta via arterial promoveu a interligação dos corredores da Avenida Brasil e Francisco Bicalho à Avenida Rio Branco (antiga Avenida Central), possibilitando elevados índices de uidez ao tráfego motorizado. De acordo com Claudia Brack Duarte: “A abertura desta via rápida para escoamento do trânsito motorizado pretendeu alterar a ocupação daquela área, de uso misto para zona de serviços. Pretendia-se que a expansão do centro nanceiro se desse ao longo da nova artéria” (2012: 25).
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Sua construção implicou na demolição de mais de 500 edicações, incluindo a Praça Onze, a sede da Prefeitura, seis igrejas, além da supressão 1.700 m2 do Campo de Santana. Ainda segundo a autora acima citada:
“Os lotes densamente ocupados por habitações e pequenos comércios foram substituídos por grandes áreas para uso comercial e de serviços, ainda à espera de ocupação até os dias de hoje” (Ibid.) São bem conhecidos os efeitos devastadores produzidos pela abertura da Avenida Presi dente Vargas sobre o bairro da Cidade Nova. Desde então o bairro permaneceria aguardando por uma intervenção pública ou privada capaz de devolver a antiga vitalidade urbana da área. Contudo, as intervenções que se seguiram contribuíram apenas para o agravamento daquela situação. A abertura do Túnel Santa Bárbara em 1963 e seu prolongamento através do viaduto construído, produziram uma radical alteração na paisagem urbana, além da destruição do tecido urbano na divisa entre os bairros da Cidade Nova e do Centro. No nal dos anos setenta as obras do Metrô aprofundaram signicativamente o grau de destruição do tecido urbano. Em meio aos novos terrenos resultantes das desapropriações do Metrô e da própria municipalidade (muitos ainda desocupados) surgiram, nos anos que se seguiram, torres isoladas como a nova sede dos Correios e Telégrafos (anos 70), o Centro Administrativo da Prefeitura do Rio de Janeiro (1982), o empreendimento do Teleporto (1995), a Universidade Corporativa da Petrobrás (2008), entre outros. A impressão de terra desvastada permaneceu associada à nova imagem do bairro, como se naquele solo revolvido por tantas ondas de “destruição criativa” não fosse mais possível nascer vida urbana, tal como havia um dia ali existido. Outra intervenção, digna de nota, foi a construção do Sambódromo na Rua Marquês de Sapucaí, inaugurado em 1984. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, a estrutura longilínea das arquibancadas foi alinhada paralelamente ao viaduto do túnel Santa Bárbara. O conjunto arquitetônico produz, em razão de sua escala monumental, forte impacto na paisagem urbana sem, contudo, estabelecer um diálogo com o seu entorno. O projeto, por assim dizer, dá as costas para o bairro à sua volta, tendo sido concebido totalmente voltado para o seu interior, onde ocorrem os desles durante o período do Carnaval e, ao longo do ano, atividades de ensino nas escolas projetadas sob as arquibancadas. Na falta de um tratamento de desenho urbano visando à qualicação das áreas limítrofes que promovessem a integração do espaço público com as no vas estruturas projetadas, foram criadas à volta do projeto áreas indenidas e descontínuas, sem legibilidade e, portanto, sem vitalidade.
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Em meio a tantos problemas, deve ser referida a criação, em 1991, da Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) da Cidade Nova, assegurando proteção legal ao conjunto arquitetônico remanescente do nal do século XIX e início do XX. A proteção legal, no entanto, não tem se traduzido em uma política de efetiva preservação da ambiência cultural, uma vez que o acervo edicado encontra-se em precário estado de conservação ou já parcialmente desca racterizado. No caso da Zona Portuária a segunda metade do novecentos é inaugurada com as obras do Elevado da Perimetral, construído em várias etapas entre o final dos anos 50 e ini cio dos 70. Trata-se de uma ligação expressa entre a Avenida Brasil, a Ponte Rio Niterói e o Aeroporto Santos Dumont. Excetuando-se as alças de subida e descida no bairro da Saúde, próximo à Praça Mauá, o elevado não estabelece nenhuma outra ligação com os bairros por tuários da Gamboa e Santo Cristo. Junto ao Largo da Igrejinha de Santo Cristo, deságua também o fluxo motorizado carreado da zona sul da cidade pelo viaduto do túnel Santa Bárbara, já referido anteriormente. A decadência das atividades portuárias e a obsolescência das infraestruturas existentes começam a se fazer notar a partir dos anos 70, sobretudo, em razão dos efeitos produzidos pela “contêinerização” do transporte internacional de mercadorias. Calados mais profundos para receber navios cada vez maiores e mais pesados, bem como a construção de áreas retroportuárias para empilhamento e transporte de contêineres foram exigências que alteraram de forma radical a operação das atividades portuárias, bem como a relação tradicionalmente estabelecida entre porto e cidade (VASCONCELLOS e SILVA, 2009). Acrescente-se ainda a crescente subutilização dos armazéns e galpões existentes na Zona Portuária. Carlos nos fornece uma cronologia comentada bastante completa sobre a história da formação urbana da Zona Portuária. Sobre a fase de estagnação e obsolescência vivida pela região, o autor arma que:
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“A falta de investimentos públicos em infraestrutura urbana, combinada com uma legislação de uso e ocupação do solo urbano permissiva aos usos incompatíveis com o residencial, foram fatores decisivos para a deliberada degradação da qualidade de vida nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo” (CARLOS, 2012).
Ainda segundo Carlos (Ibid.), a criação da Área de Proteção dos bairros da Saúde, Santo Cristo, Gamboa e Centro (criada em 1984 e regulamentada em 1988), representou uma vitória do movimento comunitário liderado pela associação de Moradores da Saúde (AMAS) que conseguiu barrar o projeto de “revitalização” elaborado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro no início dos anos 1980, cuja proposta consistia na completa renovação urbana dos bairros portuários por intermédio da liberação dos gabaritos permitidos para novas edicações.
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Enquanto isso, São Cristóvão, precocemente tornado o primeiro bairro industrial da cidade (e também o mais poluído), inicia seu processo de desindustrialização. Ao longo das décadas de 50 e 60, no entanto, assiste à progressiva transferência das grandes indústrias de São Cristóvão e arredores para a periferia urbana, em função da oferta de terrenos mais baratos para a construção de instalações industriais ao longo do eixo da Avenida Brasil. Como herança do processo de industrialização e em função de sua localização, às margens de um importante entroncamento viário, São Cristóvão se consolidará como um bairro de passagem, especializado no comércio de autopeças, acessórios, motores, serviços automotivos e ocinas mecânicas. Outra marca irremediavelmente ligada à imagem de São Cristovão consiste na presença ostensiva dos viadutos da Linha Vermelha, implantados sobre os eixos da Rua Figueira de Melo e da Rua Bela. Construídos em 1992, como ligação expressa entre a zona sul e o aeroporto do Galeão, os novos viadutos podem ser considerados como um desastre urbanístico e ambiental, tendo comprometido de forma signicativa as condições de vida em suas imediações. Por m, no que concerne ao bairro da Lapa, o que se assistiu ao longo dos anos 60 e 80 foi a progressiva degradação do acervo edicado, piorando ainda mais a já difícil condição de vida de seus habitantes. O período de abandono e o descaso por parte das administrações municipais pode ser descrito como uma espécie de silenciosa hibernação da Lapa. Parece plausível admitir que a materialidade do casco histórico da Lapa, constituída pelos robustos palacetes da virada do século XX, não obstante o precário estado de conservação, tenha representado uma força de resistência aos impulsos “renovadores” do mercado imobiliário e a eventuais planos de intervenção urbanística por parte da municipalidade. Dessa forma, o patrimônio histórico edicado da Lapa pode, não apenas sobreviver, mas abrigar (protegendo) em seu i nterior famílias pobres e de extrato de renda mediano.
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Durante esse período a vida noturna e cultural da Lapa resistiu em meio à decadência do bairro, sobretudo, através dos bares e restaurantes tradicionais como o “Nova Capela”, o “Bar Brasil” e a “Casa Cosmopolita”, dos espaços culturais alternativos como o Circo Voador (instalado no bairro em 1982) e a Fundição Progresso (poupada da demolição em 1987 pelos organizadores do Circo Voador e transformada em centro cultural) e de vários grupos de teatro que se instalam em imóveis vazios cedidos pelo Governo do Estado. A partir dos anos 90 ocorre, como se costuma falar, uma “redescoberta da Lapa” e de seus predicados simbólicos associados à boemia e a cultura popular carioca. A associação mercadológica (bem sucedida do ponto de vista empresarial) entre diversão e cultura, fez surgir novas casas de shows, bares e restaurantes, transformando a sionomia e o cotidiano do bairro (DUARTE, 2009). Ressalte-se, no entanto, que além dos preços praticados pelos novos bares e restaurante serem proibitivos para população local, também a crescente valorização do preço da terra repercute sobre os antigos contratos de locação promovendo uma “expulsão branca” dos moradores tradicionais da Lapa. Os efeitos deste processo sobre o bairro e seus moradores serão retomados mais adiante ao discutirmos alternativas para a requalicação urbanística dos bairros estudados. As transformações urbanísticas acima apresentadas nos dão conta dos processos gradativos de rebaixamento da qualidade de vida e deterioração do patrimônio histórico edicado vivenciados pelas áreas pericentrais no decorrer da segunda metade do século passado. A hipótese de trabalho aqui adotada indica que tais fenômenos estão profundamente relacionados com o “sombreamento” daquelas áreas acarretado pelo duplo processo de esvaziamento da função residencial e especialização monofuncional da área central como centro nanceiro e empresarial da cidade. Os problemas decorrentes deste tipo de segregação espacial dos usos do solo urbano são bem conhecidos. Tornada hegemônica, isto é, assumindo o comando das ações, o conjunto das atividades de comércio, nanças e serviços passa a ditar a forma de gestão do espaço urbano. Prevalecem os interesses econômicos imediatos, em detrimento de outros usos possíveis do espaço. De hegemônica, as atividades do setor terciário se tornam exclusivas, afastando da área o uso residencial.
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No que se refere à legislação urbana da cidade, o Decreto 322/76, promulgado durante o período da Ditadura Militar, não propõe uma reversão dos processos acima descritos. Antes, pelo
contrário, ao pretender regulamentar (legitimando) as tendências do mercado, o Decreto apenas reforça e acentua aqueles processos. Desfaz-se, assim, o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas, responsável pelos índices de vitalidade verificados nos tecidos urbanos tradicionais (JACOBS: 2001). Os horários da atividade comercial condicionam o ritmo dos usos do espaço. O movimento da vida urbana começa quando as lojas abrem ao público e cessa quando elas fecham. Fora do horário comercial, essas áreas totalmente infraestruturadas e equipadas, permanecem desertas ou sub-utilizadas. A sensação de insegurança gerada re-alimenta o processo de esvaziamento a que estão sujeitas essas áreas em tais circunstâncias, repercutindo nas áreas do seu entrono imediato.
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Entre os efeitos percebidos, destaca-se uma acentuada desvalorização do preço da terra das áreas pericentrais que, alijadas da dinâmica imobiliária da cidade, experimentam um período de falta de investimentos e descaso por parte da administração pública. Com o intuito de caracterizar este quadro de obsolescência das estruturas materiais, degradação da qualidade de vida e estagnação econômica, utilizamos a metáfora do “sombreamento”, inspirada na contraposição identicada por Milton Santos entre áreas opacas, representadas pelos espaços da l entidão onde vivem os pobres, em contraposição às áreas luminosas, espaços racionalizados e racionalizadores, espaços da uidez e da competitividade, ajustados aos propósitos mais perversos da globa lização (1999, pp. 245-6). Desde meados do século passado os vetores de expansão da cidade já haviam saltado por sobre a envolvente imediata à área central, seguindo pela orla litorânea em direção à zona sul, no caso das classes mais abastadas, e em direção à zona norte pelos ramais suburbanos da linha férrea. Os bairros pericentrais, relegados à condição de locais de moradia das classes de menor poder aquisitivo, passam a gurar, então, como uma espécie de solução de continuidade do processo de urbanização e desenvolvimento da cidade. O período de obsolescência e estagnação econômica, vericado na segunda metade do século XX, e o consequente rebaixamento do valor da terra nas “zonas de sombra” acentuará o processo de substituição de antigos moradores dos bairros pericentrais por novos moradores de extratos sociais ainda mais desfavorecidos.
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REQUALIFICAÇÃO DAS ÁREAS PERICENTRAIS: AMEAÇA OU CAMPO ABERTO DE POSSIBILIDADES? A primeira década do século XXI encontra a cidade do Rio de Janeiro como a antítese do conceito da “cidade compacta”, tal como o propõe Richard Rogers (2001). A falta de planejamento ou, melhor, a não observância por décadas a o dos planos urbanos elaborados, aliada aos ditames da especulação imobiliária produziram uma expansão extremamente descontínua e dispersa sobre o território, com um tecido urbano fragmentado e socialmente desigual. Desde a década de oitenta os investimentos imobiliários estavam canalizados para a Barra da Tijuca na zona oeste, região que ostentava (e ainda ostenta) a maior taxa de crescimento da cidade. No entanto, o precário sistema de transportes públicos de massa e os engarrafamentos diários e sempre crescentes contribuíram para fazer da Barra da Tijuca um destino longe demais do centro de negócios e serviços. Diante desse quadro, os velhos bairros de São Cristóvão, Lapa, Cidade Nova, Santo Cristo, Gamboa e Saúde começam a despertar o interesse do mercado imobiliário. A proximidade com relação ao centro da cidade vai pouco a pouco perdendo a antiga condição de estigma e passa a ser vista como um campo de oportunidade para negócios lucrativos. Embora as vantagens locacionais das antigas centralidades sejam extremamente valorizadas em várias cidades do mundo, só muito recentemente no Rio de Janeiro a idéia de residir próximo ao centro começa a ser cogitada como uma possibilidade aceitável por parte de alguns setores da classe média. No caso de São Cristóvão assiste-se à elaboração pela Prefeitura do Projeto de Estruturação Urbana – PEU, visando atrair os interesses imobiliários. Aprovada em 2004, a nova legislação previu a liberação do potencial construtivo e dos gabaritos que passam de 2 a 4 pavimentos para 12 pavimentos em áreas consideradas “nobres” do bairro. De fato, essas áreas passaram a constituir o Perímetro de Reabilitação Integrada (PRI), denido pela Administração Municipal, onde se concentraram os incentivos legais para novos empreendimentos (DUARTE, 2012). No bojo do processo de “redescoberta da Lapa”, já referido anteriormente, deve-se destacar o lançamento, em outubro de 2005, do empreendimento imobiliário “Cores da Lapa”. Trata-se de um mega-condomínio vertical com cerca de 700 apartamentos de 1, 2 e 3 quartos, situado no antigo terreno da Cervejaria Antártica entre a rua do Riachuelo e a rua
Mem de Sá. O sucesso de vendas alcançado se explica, possivelmente, pelo fato do empreendimento apresentar características em tudo assemelhadas aos condomínios fechados da Barra da Tijuca. As áreas de uso comum são totalmente voltadas para o miolo da quadra e dotadas de serviços necessários ao conforto e ao atendimento de muitas das necessidades da vida cotidiana dos seus moradores que passam, assim, a se sentir dentro de uma cidadela autônoma com relação à vizinhança imediata (SANTOS, 2011). Ou seja, um gueto de classe média em meio à Lapa dos pobres.
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Fechando o arco sobre as áreas pericentrais da cidade, o Projeto “Porto Maravilha” apresentado pela Prefeitura em 2009 pretendeu indicar diretrizes urbanísticas para a “revitalização” da Zona Portuária do Rio de Janeiro. O projeto abrange os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, estendendo-se até o lado par da Avenida Presidente Vargas, dentro dos limites do bairro da Cidade Nova. As diretrizes encontram-se contidas na Lei Complementar 101/2009 que institui a Operação Urbana Consorciada (OUC) da Região do Porto do Rio e modica o Plano Diretor Decenal da Cidade. A gestão a OUC está a cargo da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), criada especialmente para este m. De acordo com o site da CDURP, trata-se da maior Parceria Público-Privada do País, estando previstos investimentos na ordem de R$ 8 bilhões em obras e serviços pelo período de 15 anos. Para a execução de obras e prestação dos serviços públicos municipais, a prefeitura contratou a Concessionária Porto Novo, formada pelas empreiteiras Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia. Entre as propostas apresentadas, destacam-se: a demolição do Elevado da Perimetral com a remoção da estrutura existente; a transformação da Avenida Rodrigues Alves (localizada sob o elevado) em via expressa com três faixas por sentido que se li gará, a partir do Armazém 5, com um túnel subterrâneo com cerca de 1.500 metros de extensão; a construção de outros três túneis e alargamento de várias ruas da malha urbana existente para absorver parte do volume de tráfego do elevado; a liberação do gabarito e novo zoneamento da área abrangida, permitindo a construção de torres em centro de terreno, com alturas de 30, 40 e 50 andares; a criação virtual de área adicional de construção de 4 milhões de m2, através da emissão e venda de Certicados de Potencial Adicional de Construção – CEPACs; além de obras de infraestrutura urbana na região.
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A simples enunciação de tais propostas permite compreender a lógica empresarial que preside a concepção do Projeto “Porto Maravilha” e que se insinua como um verdadeiro desas tre urbanístico e ambiental, repetindo modelos já testados no passado e cujos resultados não se mostraram acertados ou satisfatórios. Ao pretender suprimir da paisagem urbana a estrutura do Elevado da Perimetral o projeto prevê a sua substituição por um complexo de vias e túneis com 3,5 Km de extensão. Trata-se da reedição de soluções rodoviaristas, sem qualquer alteração signicativa no paradigma da mobilidade urbana atual, que objetiva assegurar a melhor condição possível para a circulação de veículos e não das pessoas. Nessa linha de raciocínio, a implantação de uma via expressa no nível do solo com três faixas por sentido, localizada entre a cidade e o cais do Porto, representará uma barreira de difícil transposição para os pedestres. Deve-se considerar ainda que a nova geometria viária proposta, com o alargamento de vias, produzirá a eliminação parcial do desenho da malha urbana e o desaparecimento de galpões industriais, armazéns portuários e outras edicações que compõem, como registros documentais que são, a memória urbana e a identidade cultural da área. Com relação à hiper-verticalização das novas construções, trata-se de uma reedição melhorada (segundo os interesses do mercado imobiliário) do projeto de “revitalização” apresentado na década de 80 pela Associação Comercial e que, naquela oportunidade, como já referido, foi cabalmente descartado pelos moradores dos bairros portuários. Desta feita, sem qualquer possibilidade de interferência ou participação dos moradores, o projeto vem sendo implantado e já são anunciados na mídia lançamentos imobiliários para a região dentro dos parâmetros urbanísticos aprovados pela nova legislação. Ao que tudo indica as altas torres isoladas em centro de terreno (terrenos esses, sempre cercados e vigiados) constituirão verdadeiros enclaves condominiais (corporativos ou residenciais), armando um modo de vida que privilegia a propriedade privada individual em detrimento da apropriação coletiva dos espaços públicos. Nesse sentido, o Porto Maravilha pode ser considerado como a expressão mais bem acabada de uma “cidade do desencontro”.
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Não capitulemos, entretanto, por antecipação. Por mais ameaçador que seja o quadro apresentado, por mais pessimistas que sejam os indicadores dos “processos de revitalização”
atualmente em curso na cidade, o presente trabalho pretende estender um olhar prospectivo sobre o campo aberto de possibilidades que efetivamente persiste, não apenas sob a aparente degradação das estruturas materiais das áreas pericentrais da cidade, como também para além dos equívocos urbanísticos perpetrados todas as vezes que os interesses do mercado imobiliário prevalecem sobre a mediação dos diversos interesses presentes na cena urbana. O longo período de estagnação e obsolescência dos bairros aqui estudados foi também responsável pela preservação involuntária de trechos signicativos do tecido urbano remanescente do século XIX e início do XX. A escassez de investimentos e o descaso por parte do poder público poupou grande parte dessas áreas dos planos e intervenções modernizadores, na esteira da “destruição criativa” que atingiu com maior ecácia a área central propriamente dita. Não por acaso, em todos os bairros aqui estudados, para além do tombamento histórico e artístico de imóveis isolados, existem Áreas de Proteção da Ambiência Cultural delimitando e prote gendo importantes conjuntos arquitetônicos e urbanísticos. Basta termos em conta o valioso acervo edicado, representado por palacetes e sobrados que ainda compõem o tecido urbano da Lapa. Ou o patrimônio arquitetônico e paisagístico do bairro imperial de São Cristóvão, ou ainda dos antigos bairros da zona portuária. Até mesmo na Cidade Nova, onde as sucessivas intervenções apresentaram um considerável poder de destruição, preservou-se, através do instrumento da APAC, um importante conjunto arquitetônico e urbanístico compreendendo cerca de 400 edicações localizadas em mais de uma dezena de quadras em ambos os lados da Avenida Salvador de Sá. No caso das áreas pericentrais aqui estudados, consideramos que para além do acervo edicado existente, a permanência das malhas do tecido urbano tradicional, incluindo aí o desenho de vias, lotes, quadras, largos e praças devem ser o substrato teórico, modelo de referência e ponto de partida para a elaboração das propostas urbanísticas. Ali, não obstante a semi-ruína ou o péssimo estado de conservação das estruturas materiais existentes, podemos encontrar as lições urbanísticas indispensáveis para a requalicação dos espaços públicos e de convivência com vistas a reabillitação das dinâmicas do tecido social e urbano. Cabendo aqui ressaltar que a reabilitação do tecido urbano vai muito além da simples restauração arquitetônica ou estrutural do patrimônio edicado, devendo ser entendida também como reabilitação do patrimônio social da cidade.
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Estamos falando tanto da cidade do encontro de Henri Lefebvre quanto da cidade compacta de Richard Rogers. Para Lefebvre, a forma do urbano é a forma mental e social da simultaneidade, da centralidade, da reunião, da convergência, dos encontros, da festa (1972, pp. 125-7). Rogers, por sua vez, nos apresenta a cidade compacta ou multifuncional como uma cidade sustentável que utiliza com economia, racionalidade e eciência os recursos humanos, materiais e ambientais disponíveis (2001, PP. 167-8). Nessa cidade redescobrimos as vantagens da proximidade, da co presença e da contigüidade. A cidade do encontro das pessoas é também, a cidade do encontro das mais diversas funções urbanas. A simultaneidade e a convergência que resultam da multifuncionalidade permitem a maior oferta de moradia, de trabalho, cultura e lazer no menor espaço possível, demandando um menor número de viagens no sistema de transportes público, bem como reduzindo o tempo dessas viagens. Essa cidade que aposta num futuro mais responsável tanto do ponto de vista social quanto ambiental, pode ainda ser resgatada e reconstruída a partir da materialidade herdada dos bairros pericentrais em processo de requalicação. Não para repetir o passado, mas para reaprendermos a sonhar com uma cidade mais humana, mais acolhedora e mais bela. Tal é a aposta conante que o pequeno Davi lança na forma de um olhar desaador ao gigante Golias.
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NOTA DE FIM Curiosamente, no decorrer da história do bairro, os travestis, sempre em maior número e sempre menos discretos que as prostitutas da área, tornaram-se parte integrante da paisagem sócio-cultural da Lapa. 1
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C F D
[email protected] Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983), Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997 e) Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi técnico do IPHAN (19862005) e Superintendente Regional do IPHAN para os estados do Pará e Amapá. Foi professor da Universidade da Amazônia (1987-2005). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador do Atelier Integrado 2. Autor do livro Forma e Movimento (Rio de Janeiro: Vianna & Mosley: ed. PROURB, 2006) e co-organizador do livro Favela&Cidade (Napoli: Giannini Editore, 2008).
INSTRUMENTOS PARA A REINSERÇÃO IMOBILIÁRIA NAS ÁREAS CENTRAIS E PERIFERIAS IMEDIATAS DAS GRANDES CIDADES Fernanda Furtado
INTRODUÇÃO Este trabalho trata da reinserção social de terrenos e imóveis ociosos localizados em áreas centrais e periferias imediatas que em geral contam com boas condições de infraestrutura urbana1. O enfoque se dá sobre instrumentos de política urbana que podem ser acionados para encaminhar esse estoque de imóveis ao mercado, visando especialmente à provisão de habitação popular. O trabalho parte do entendimento de que a obtenção de terrenos e imóveis adequados do ponto de vista de sua localização e disponibilidade de infraestrutura e serviços é um ponto nevrálgico para a efetivação dos atuais programas públicos voltados para a provisão de habitação de interesse social, especialmente nas grandes cidades. As possibilidades e limites de diferentes instrumentos de política urbana são avaliados à luz da diversidade de situações em que esses imóveis se encontram, tomando-se como exemplo dessas situações, na maioria das vezes, o caso da Cidade do Rio de Janeiro. Além dos mecanismos constitucionais, voltados ao cumprimento da função social da propriedade, são avaliados outros instrumentos tradicionais e inovadores de natureza tributária, urbanística e jurídica. Esta avaliação conduz o trabalho a destacar o potencial da desapropriação por interesse social, instrumento tradicional à disposição dos municípios, sendo então buscados caminhos para a superação dos atuais entraves encontrados pelas administrações municipais para uma utilização deste instrumento com o objetivo da reinserção imobiliária. Uma proposta preliminar para o encaminhamento e solução desses entraves é então elaborada, com o objetivo de contribuir com os debates que se desenvolvem na interlocução entre dois temas muito atuais na agenda das grandes cidades: de um lado, o aproveitamento de vazios urbanos em áreas infraestruturadas, e de outro lado a grande necessidade da obtenção de áreas com acessibilidade e infraestrutura adequadas para enfrentar a demanda por habitação social.
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CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA E SITUAÇÃO ATUAL Quase todas as cidades de maior porte no Brasil dispõem de muitas áreas ociosas, em geral centrais, hoje pendentes de regularização fundiária ou scal. Em vista destas pendências elas permanecem degradadas, sem uso ou subutilizadas. Este problema recorrente pode ser entendido a partir da noção de que o uso do solo urbano em geral, e mais concretamente a utilização dos lotes urbanos, obedece a ciclos de vida (ABRAMO, 2007). Na dinâmica da urbanização, os terrenos passam se quencialmente por processos como o parcelamento, a edicação, o adensamento, a verticalização, alterações de uso e atividades incorporadas aos lotes urbanos. Porém, ao m de cada ciclo, o uso e o aproveitamento de determinados imóveis podem passar a ser considerados inadequados. Neste caso, seu reaproveitamento passa pela demolição das edicações existentes para a reinserção dos lotes, individualmente ou em conjunto de lotes, com novo uso e aproveitamento, iniciando novo ciclo de vida, ou podem ser reaproveitados através de seu recondicionamento para usos não previstos na cadeia de usos de seu ciclo de vida. 2
Fachadas remanescentes de sobrados residenciais da área central carioca. 52
Foto: Andréa Sampaio, 2012.
Nas áreas centrais das grandes cidades brasileiras e em suas periferias imediatas, observa-se na atualidade o esgotamento de um ciclo de vida dos terrenos, associado também ao esvaziamento econômico dessas áreas, o qual por sua vez teve origem, entre outros fatores, na substituição do modelo de pequenas indústrias e comércios por outro perl de negócio, que demandava condições logísticas diferentes das encontradas nessas áreas. Enquanto nas áreas mais recentemente incorporadas aos centros urbanos ou nas inteiramente renovadas os terrenos vêm sendo utilizados com novos padrões de uso e aproveitamento, nas áreas mais tradicionais verica-se na maioria dos casos uma paralisação do mercado. Nestas áreas, as transformações econômicas, aliadas a uma legislação urbanística cada vez mais restritiva – em alguns casos de cunho protecionista tendo em vista o patrimônio cultural edicado, trouxe como consequência a degradação dos imóveis, seu abandono ou sua subutilização.
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Assim, o que encontramos hoje, na grande maioria desses casos, são imóveis tão comprometidos com penhoras, dívidas e outras restrições, que sua absorção pelo setor da construção civil voltado para a produção de moradias ca impedida, já que a aquisição desses imóveis, mesmo quando possível, é cercada de tal insegurança jurídica que a transação é desaconselhável. Este é o caso, por exemplo, nos corredores tradicionais de acesso viário, onde é frequente a presença de muitas antigas indústrias hoje fechadas e em estado de abandono, como se pode observar na Av. Brasil, principal corredor de acesso ao Rio de Janeiro até inícios dos anos de 1990, quando foi inaugurada a Linha Vermelha. O problema é ainda agravado quando se trata de centros históricos, pois em diversos lotes verica-se imprecisão em seus registros imobiliários, ou mesmo a sua ausência. Além disso, na maioria dos casos trata-se de estruturas fundiárias pretéritas, com malhas irregulares e lotes de pequenas dimensões, como bem retratado por vários autores para o caso do Rio de Janeiro (ABREU, 1987; CAVALCANTI, 2004; FRIDMAN, 1999). Em suma, ao m de cada ciclo, a situação desses lotes urbanos pode apresentar conitos que muitas vezes impedem a sua reinserção imobiliária sem a mediação da atuação pública.
ALTERNATIVAS PARA A REINSERÇÃO IMOBILIÁRIA Para encaminhar este problema através da atuação pública municipal, podemos encontrar di versos instrumentos de política urbana. Aqui, eles são classicados, para melhor organização
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da exposição, como Instrumentos Tributários e Mecanismos de Aquisição Municipal. Incluímos também um conjunto de outras possibilidades, às quais nos referimos brevemente, uma vez que escapam aos limites estritos deste trabalho. Com relação aos Instrumentos Tributários, estão previstos na Constituição Federal, em seu Artigo 182, e regulamentados no Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 2001), alguns instrumentos – parcelamento e edicação compulsórios, imposto progressivo no tempo e desapropriação com pagamento através de títulos da dívida pública – especialmente pensados para facilitar ou induzir a sua reutilização, ou seja, sua reinserção ao mercado. Esses instrumentos, porém, são em geral dirigidos àqueles terrenos cujo principal problema é a sua retenção especulativa (“engorda”). Sendo este o caso, trata-se na verdade de um problema que aparentemente poderia ter sido resolvido pela via scal tradicional, através da cobrança de passivos tributários e de sua inclusão na dívida ativa municipal, funcionando esses instrumentos mais recentes como substitutivos à ausência da atuação pública em período anterior. Cabe observar, porém, que se em teoria essas ações scais tradicionais poderiam encaminhar esses terrenos ao mercado, é necessário situar melhor o fenômeno da retenção de terrenos em áreas urbanizadas, uma vez que esta nem sempre está vinculada à especulação fundiária, existindo muitas outras razões para a sua ociosidade (FURTADO e OLIVEIRA, 2002). Ademais, há que se considerar que tal fenômeno ocorre em um ambiente em que existem dois tipos de diculdades importantes: as ligadas aos entraves legais a uma atualização mais ágil da planta de valores pelo executivo municipal, e as diculdades políticas, que conjugam a força política de proprietários fundiários, a cultura patrimonial que ainda domina o cenário econômico do país (MARICATO, 2010), e mesmo a retenção da terra como importante item de reserva de valor. Este conjunto de fatores concorre para uma inadequada atualização dos impostos prediais (IPTU), tornando pouco ecaz a atuação pública sancionadora através da cobrança de tributos tradicionais. Além dessas diculdades, as dívidas de IPTU são às vezes muito superiores ao valor de mercado dos imóveis, e ainda é frágil a institucionalização da quitação dessas dívidas através do mecanismo de Dação em Pagamento. 3
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No caso dos mencionados instrumentos constitucionais, observa-se que, dados os prazos para cada etapa da utilização dos instrumentos, trata-se de um processo algo moroso, sobretudo
quando o tempo necessário para completar a aplicação sequencial dos instrumentos previstos é confrontado com o período de um governo municipal. Além disso, muitos municípios ainda não regulamentaram a utilização de tais instrumentos. Assim, trata-se de ferramental importante para ser desenvolvido em médio e longo prazo, porém não dá conta das necessidades e projetos urbanos de prazo mais curto, ou mais urgentes. Outra linha complementar de ação, sobretudo para a reinserção desses terrenos em nichos especícos do mercado, é a de incentivos tributários, como por exemplo os denidos em legislação no Rio de Janeiro para amparar os atuais programas habitacionais, prevendo a redução e até mesmo a isenção de tributos como o ISS e o ITBI na produção de moradias para o setor de baixa renda (Lei 5065 de 2009), assim como a remissão de créditos tributários do IPTU para facilitar a reinserção de terrenos com passivos scais, com vistas à produção de habitação de interesse social (Lei 5066 de 2009).
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LEI N.º 5065 DE 10 DE JULHO DE 2009 Concede isenção e redução do Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS para construção e reforma no caso de empreendimentos habitacionais de interesse social e de arrendamento residencial vinculados à política habitacional municipal, estadual e federal, e do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles relativos, realizada Inter-Vivos, por Ato Oneroso – ITBI para a aquisição dos correspondentes imóveis. (ambos com isenção até 6 SM e redução de 50% de 6 a 10 SM) LEI N.º 5066 DE 10 DE JULHO 2009 Concede remissão de créditos tributários do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Ter ritorial Urbana – IPTU para imóveis destinados a programas habitacionais de interesse social, nos casos que especica. São iniciativas importantes e que podem fomentar a provisão habitacional nas áreas centrais, porém, de qualquer modo, o encaminhamento desses terrenos ao mercado através de políticas scais e tributárias depende de que eles se encontrem em uma situação fundiária bem denida. Entretanto, em muitos casos os lotes não têm uma situação jurídico-registrária pacíca (ou clara), ou pesam sobre eles gravames que dicultam ou até impedem o seu aproveitamento pelo
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A I R Á I L I B O M I O Ã Ç R E S N I E R A A R A P S O T N E M U R T S N I
mercado. Exemplos desses casos são lotes com penhoras originadas por ações trabalhistas, lotes cujas dimensões reais diferem das registradas, lotes com disputas ou problemas de titularidade, e até mesmo lotes remanescentes de épocas pretéritas que nem mesmo constam nos registros ociais (RGI).4 E, em vários desses casos, não se pode ter nem mesmo uma previsão de quando esses lotes poderiam ter uma adequada reinserção imobiliária. Outra situação frequente ocorre com lotes que individualmente têm pouco aproveitamento possível – e até nenhum quando se trata de substituição para uso residencial multifamiliar, devido à contraposição entre suas dimensões restritas originais (por exemplo, lotes muito estreitos e profundos, remanescentes em esquinas, etc.) e normativas urbanísticas mais atuais (por exemplo, projetos e alinhamento de vias, limites à profundidade, afastamentos, etc.). Nesses casos, somente o remembramento de lotes pode garantir o seu adequado aproveitamento em usos mais intensivos, porém este remembramento pode esbarrar em diferentes condições jurídicas e scais dos lotes envolvidos, o que pode tornar este processo muito complexo e por vezes inviável.
Edificações na área portuária do Rio de Janeiro. 56
Foto: Andréa Sampaio, 2012.
Impedimentos e diculdades podem ocorrer tanto quando o lote é considerado individu almente, como quando ele é parte de uma área que seja objeto (ou, em que se pretenda) uma transformação urbanística mais abrangente ou mais ampla. Entretanto, para as áreas em que se pretenda uma reurbanização conjunta de imóveis estão previstas ferramentas especícas, tais como as Operações Urbanas Consorciadas, denidas pelo Estatuto da Cidade e já regulamentadas em diversos Planos Diretores Municipais, além de outras iniciativas como as Concessões Urbanísticas previstas no Plano Diretor de São Paulo (art. 239) e já regulamentadas no âmbito municipal.5 Em outra vertente, podem ser considerados instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social, a serem utilizadas como plataforma para a reabilitação de imóveis nas áreas centrais6, além de iniciativas de Locação Social estabelecidas através de programas especícos para estas áreas.7
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Aqui, nos concentramos nas questões que surgem para a reinserção de lotes e edicações isolados – ou conjunto de lotes de diversos proprietários. Assim, vale mencionar que o recorte aqui considerado é o de lotes privados isolados, estando excluídos próprios federais, estaduais e municipais, assim como imóveis do INSS e outras entidades públicas, os quais requerem a utilização de ferramentas especícas e são da alçada dos respectivos níveis e setores da administração pública. No que se refere aos Mecanismos de Aquisição Municipal, o primeiro a ser mencionado por sua vinculação direta com a reinserção imobiliária é a Arrecadação por Abandono, prevista no Artigo 1276 do Código Civil: Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. ... § 2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
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Este mecanismo, ainda com pouca repercussão nos municípios pode ser bastante útil no caso de imóveis abandonados, desocupados, em ruínas e sem proprietário conhecido. Sua utilização vem sendo testada em Recife, em cuja experiência são feitas várias avaliações, como garantia para o caso de proprietário vir a manifestar-se no prazo legal. 8 A obra para reinserção pode ser feita com nanciamento da CEF, desde que o imóvel seja desapropriado pelo município. Na opinião de juris tas9, neste caso a via administrativa se apresenta como a mais adequada. Também recomendam que o município ocupe os imóveis abandonados, para caracterizar a posse, o que permite ao município registrar esses imóveis, e por m destacam que (mesmo os de posse) a “presunção absolu ta” constante no instrumento merece ser objeto de debate público. Enm, trata-se de importante alternativa a ser explorada. Contudo, apresenta limitações para uma ação de maior envergadura, merecendo ser considerada em um rol de iniciativas municipais a serem somadas. O Estatuto da Cidade também prevê alguns instrumentos que, apesar de não diretamente vinculados ao tema dos lotes ociosos nas áreas centrais, merecem ser aqui incluídos por seu potencial papel complementar. O primeiro deles é o Direito de Preempção (Artigos 25 a 27), que confere preferência na aquisição de imóvel urbano ao Poder Público Municipal. Art. 25. O direito de preempção confere ao Poder Público municipal preferência para aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares. § 1º Lei municipal, baseada no plano diretor, delimitará as áreas em que incidirá o direito de preempção e fixará prazo de vigência, não superior a cinco anos, renovável a partir de um ano após o decurso do prazo inicial de vigência. … Art. 27. O proprietário deverá noticar sua intenção de alienar o imóvel, para que o Muni cípio, no prazo máximo de trinta dias, manifeste por escrito seu interesse em comprá-lo.
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§ 1º À notificação mencionada no caput será anexada proposta de compra assinada por terceiro interessado na aquisição do imóvel, da qual constarão preço, condições de pagamento e prazo de validade.
...
Como se observa, sua utilização depende da iniciativa de cada proprietário, e a ausência, até hoje, de uma experiência municipal consolidada, mostra as diculdades para sua aplicação. Vale também observar que quando o instrumento foi incluído no PL775 de 1983 (Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano) e também no PL181 de 1989 (projeto original do Estatuto da Cidade), se previa a possibilidade de arbitramento judicial em caso de discordância de preço, assim como o desconto da valorização decorrente de investimentos públicos posteriores à edição da lei municipal correspondente (BASSUL, 2005). Como tais quesitos não estão previstos no Estatuto da Cidade, uma aplicação adequada do instrumento merece estudo especíco de viabilida de jurídica. Assim, nas condições de uso atuais, é mais útil como instrumento complementar de planejamento urbano e como fonte de informação e avaliação do mercado imobiliário.
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Outro instrumento que pode ser associado à reinserção de imóveis ociosos nas áreas centrais é o Consórcio Imobiliário, presente no Artigo 46 do Estatuto da Cidade: Art. 46. O Poder Público municipal poderá facultar ao proprietário de área atingida pela obrigação de que trata o caput do art. 5º desta Lei, a requerimento deste, o estabeleci mento de consórcio imobiliário como forma de viabilização nanceira do aproveitamento do imóvel. § 1º Considera-se consórcio imobiliário a forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas. § 2º O valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário será correspondente ao valor do imóvel antes da execução das obras, observado o disposto no § 2° do art. 8º desta Lei. Tal como o Direito de Preempção, o Consórcio Imobiliário também é de iniciativa do pro prietário. Sua utilização também é limitada por sua vinculação a situações em que os imóveis
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tenham sido atingidos por parcelamento, edicação ou utilização compulsórios. Pelas condições legalmente denidas, tem utilização mais provável em áreas de expansão periférica, carentes de infra-estrutura e equipamentos públicos e com pouco potencial de valorização imobiliária. Tem ainda como diculdades não só a exigência ao Município da dotação de recursos como também do planejamento e da execução de obras e serviços. Por outro lado, seu parágrafo segundo con tém um interessante dispositivo que permite descontar do valor do imóvel as mais-valias fundiárias decorrentes da atuação pública prevista, merecendo, por esta particularidade, um esforço dos municípios para sua regulamentação e implementação. O Estatuto conta ainda com a Transferência do Direito de Construir, prevista em seu Artigo 35: Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para ns de: I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários; II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, pai sagístico, social ou cultural; III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social. § 1º A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput . …
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Este instrumento na verdade vem sendo utilizado para suprir a deciência na obtenção de recursos necessários à desapropriação, sobretudo nos casos da preservação de imóveis em áreas centrais – como em Curitiba – e na implantação de artérias viárias – como em Porto Alegre (BA CELLAR, 2007). Sua aplicação na maioria das vezes é deciente, pois não observa o princípio de
que o direito de construir repassado ao proprietário esteja limitado ao aproveitamento básico estabelecido pela normativa urbanística, gerando contradição com a aplicação da Outorga Onerosa do Direito de Construir (REZENDE et al, 2009). Poderia ser considerado para o caso de programa de locação social, assim como para a regularização de imóveis ocupados nas áreas centrais. Consideradas essas diversas possibilidades, ca claro que, em muitos desses casos, trata-se de lotes sem condições de reintegrar o mercado de modo automático, sendo reconhecidos pelos agentes privados como imóveis que só podem ser empreendidos pela administração pública municipal. De fato, somente o poder público dispõe da ferramenta necessária para que tais terrenos possam retornar à cadeia de uso e aproveitamento que caracteriza a dinâmica urbana e integrar um novo ciclo de vida: a sua desapropriação por interesse social.
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A desapropriação destes imóveis, por tratar-se de uma aquisição originária, exclui da propriedade todos os seus gravames, bem como possibilita a regularização do seu registro. Com a utilização deste mecanismo, o lote passa a ter uma nova condição jurídico-registrária, ou seja, um novo registro imobiliário, e deste modo, após o processo de desapropriação, o lote poderá ter sua reinserção imobiliária, através da sua oferta pública. Não obstante a necessidade da participação pública em uma possível utilização do instituto da desapropriação para o fomento à produção de moradias, por outro lado, para viabilizar este caminho de solução ao problema dos lotes excluídos do mercado faz-se necessário suplantar algumas diculdades operacionais. A Lei de Responsabilidade Fiscal determina que a administração pública destine recursos orçamentários como condição para iniciar a ação de desapropriação, o que diculta este caminho, sobretudo quando se trata não de um imóvel especíco, mas de um conjunto de imóveis necessários a algum programa de maior alcance. Este é o caso, sem dúvida, dos grandes estoques de imóveis existentes hoje nas áreas centrais das metrópoles, bem como em áreas industriais esvaziadas e outras áreas urbanas em transformação, que nestas condições são de difícil colocação no mercado. Em suma, o maior entrave encontrado para a efetivação de forma mais ampla de programas de provisão de habitação de interesse social é a obtenção de t errenos adequados e disponíveis para a realização de projetos. Trata-se de um processo no qual embora exista a demanda e existam os terrenos em áreas que já contam com adequada infraestrutura urbana e acessibilidade, a transação não pode concretizar-se devido aos problemas, de ordem física, jurídica e scal, que envolvem esses terrenos.
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É nesta situação que os municípios podem absorver o papel essencial de intermediar este processo, através da desapropriação de terrenos, por interesse social, para sua posterior oferta pública aos empreendedores imobiliários, após sua regularização jurídico-registrária. Deste modo, podem contribuir tanto com o setor da construção em obter terrenos disponíveis para esses projetos nas áreas centrais e periferias imediatas das cidades, assim como para os proprietários de terrenos nessas áreas em tornar seus terrenos disponíveis. A grande quantidade de imóveis nestas situações, contudo, é em geral muito maior do que aquela que os municípios têm capacidade de intervir. Em Salvador, por exemplo, a prefeitura contabiliza na área central cerca de mil e duzentos imóveis baldios, fechados ou em ruínas. Com uma média de sete a oito unidades por imóvel, há um potencial para cerca de oito mil novas unidades habitacionais na área central, ou seja, um terço a mais do que o existente. 10 O caso do Rio de Janeiro ilustra a situação encontrada nas áreas centrais de diversas metrópoles brasileiras. O Sindicato das Indústrias da Construção Civil, Sinduscon-Rio, em parceria com a Secretaria Municipal de Habitação, realizou um levantamento prévio dos imóveis existentes na área central ampliada – bairros centrais e também bairros adjacentes e corredores viários caracterizados pela forte presença de galpões e edicações industriais sem uso – encontrando um quantitativo de cerca de sete mil imóveis com potencial de transformação para uso habitacional, seja através da construção de novos imóveis ou do aproveitamento parcial das edicações. Somente na área central restrita, são cerca de três mil e quinhentos imóveis, e mais dois mil e quinhentos na região da Lapa. Em uma aproximação mais detalhada, o Programa Novas Alternativas, vinculado à Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, identicou 486 imóveis com potencial habitacional na Zona Portuária, compreendida por seis áreas de trabalho, podendo estes imóveis abrigar até nove mil unidades residenciais. Uma triagem em apenas uma dessas áreas de trabalho destacou 32 imóveis com gravames que impedem a sua entrada no mercado. Extrapolando este caso para o conjunto da Zona Portuária, chega-se a cerca de 200 imóveis que só poderiam ser empreendidos pelo município.
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Entretanto, esta quantidade excede em grande medida a capacidade de atuação municipal de modo mais amplo, sobretudo em termos nanceiros. Além disso, de modo mais geral, como se sabe, o processo expropriatório não é imediato, ultrapassando, em muitos casos, o tempo de
uma administração. Isto diculta a aplicação de recursos do orçamento municipal nessas ações de resultados que nem sempre são de curto prazo. Assim, pode-se apontar que a maior diculdade desta alternativa reside na existência de um descompasso em termos de uxo de caixa, uma vez que os recursos necessários para a desapropriação de um imóvel somente são repostos ao nal do processo, com a sua venda e consequente reinserção no mercado. O quadro a seguir sintetiza as alternativas analisadas.
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ALTERNATIVAS DE REINSERÇÃO IMOBILIÁRIA I. Instrumentos tributários municipais de correção, sanção e incentivo • Via scal tradicional
Problemas: • Legais (competência legislativa da atualização da planta de valores) • De natureza política (cultura patrimonial, terra como reserva de valor) — Cobrança de passivos tributários e inclu• Dívidas de IPTU às vezes muito superiores ao valor de imóveis são na dívida ativa municipal • Requer a institucionalização da Dação em Pagamento
• Instrumentos constitucionais de reinserção Diculdades a superar: CF 1988, Art. 182 – edicação/utilização compulsó• Necessidade de regulamentação municipal ria, imposto predial progressivo, desapropriação • Imprecisão na denição de subutilização com títulos da dívida pública. • Morosidade do processo (etapas de aplicação do preceito constitucional) Consolidados pelo Estatuto da Cidade (2001). • Aprovação de títulos municipais pelo Senado Federal Mecanismos de incentivo à reinserção Redução / Isenção de ISS e ITBI Remissão de créditos tributários de IPTU Ref. Rio de Janeiro – Leis municipais 5065 e 5066 DE JULHO DE 2009
Limitações: • Como qualquer política scal depende de situação fundiária bem denida • Envolve renúncia scal que pode criar precedente tributário • Fomenta a evasão scal, por isso recomendável apenas como solução pontual e com temporalidade limitada • Lotes com problemas jurídico-registrários — Penhoras por ações trabalhistas — Dimensões reais distintas das registradas
PROBLEMAS GERAIS
— Disputas ou problemas de titularidade — Inexistentes no RGI — Problemas de adequação física e espacial — Lotes sem possibilidade de aproveitamento individual — Dimensões não atendem a normativa urbanística — Diculdade de remembramento de lotes em difere ntes condições
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II. Outras possibilidades (denição de perímetros de atuação) • Estabelecimento de Operação Urbana Consorciada como plataforma de requalicação e reinserção imobiliária • Programas de Locação Social e de Arrendamento Residencial • Estabelecimento de Concessão Urbanística • Reformatação das ZEIS para utilização como plataforma de reabilitação de áreas centrais III. Mecanismos de Aquisição Municipal • Arrecadação por abandono Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário aban -
donar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distri to Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. Aquisição por Preempção Art. 25. O direito de preempção confere ao Poder Pú-
blico municipal preferência para aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.
Consórcio Imobiliário Art. 46. O Poder Público municipal poderá facultar ao
proprietário de área atingida pela obrigação de que trata o caput do art. 5º desta Lei, a requerimento deste, o estabelecimento de consórcio imobiliário como forma de viabilização nanceira do aproveitamento do imóvel. Transferência do Direito de Construir Art. 35 . Lei municipal, baseada no plano diretor,
poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente...
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Código Civil, art. 1276 Observações: • Limitações para ação de maior envergadura. • Recomenda-se que o município ocupe os imóveis abandonados, para caracterizar a posse. • A “presunção absoluta” constante no instrumento merece ser objeto de debate público. Estatuto da Cidade, Artigos 25 a 27 Observações: • Iniciativa do proprietário. • Para ser nanceiramente interessante depende de estudo de viabilidade jurídica. • Não há ainda experiência consolidada de aplicação documentada. Estatuto da Cidade, Artigo 46 Observações: • Iniciativa do proprietário. • Depende de recursos municipais e também de sua iniciativa no planejamento e na execução de obras e serviços. • Utilização limitada, com foco em áreas de expansão ainda não atingidas pela valorização imobiliária. Estatuto da Cidade, Artigo 35 Observações: • Vem sendo utilizado como substituto da desapropriação. • Tem gerado contradição com a aplicação da Outorga Onerosa do Direito de Construir. • Potencialmente adequado para locação social e regularização de imó veis ocupados.
Desapropriação por Interesse Social • Vantagens: • Principal diculdade: — Instrumento tradicional presente e regulamen— Vinculação de recursos orçamentários municipais tado em todos os municípios O PROBLEMA ESSENCIAL NA DESAPROPRIAÇÃO PARA PROGRAMAS HA — Iniciativa do município BITACIONAIS DE CUNHO SOCIAL É NA VERDADE UM DESCOMPASSO NO — Permite ação massiva FLUXO DE CAIXA. — Aquisição originária: facilita regularização jurídico-registrária, exclusão das pendências scais e gravames.
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Fonte: elaboração própria com base em dados e informações obtidos na pesquisa “Estudos de requisitos e consultas a especialistas de mecanismos de reinserção de lotes no mercado”, Acordo de Cooperação UFF/FEC –FIESP – SNH, 2010.
BASES PARA UMA SOLUÇÃO INSTITUCIONAL A partir das alternativas apresentadas, e entendendo que a desapropriação é potencialmente o melhor caminho para responder ao problema em mãos, propõe-se como solução a criação de um fundo municipal de caráter rotativo que possa ser utilizado em conjunto com a montagem de um programa continuado de desapropriações, com a previsão de aporte nanceiro inicial ou ao início de cada ciclo, vinculando este fundo ao programa 11. O Fundo viabilizaria então uma ação de maior envergadura, envolvendo a obtenção e a gestão dos recursos necessários à desapropriação e reinserção dos terrenos e imóveis ociosos ao mercado. O aporte municipal, então, seria necessário apenas para iniciar a operação do Fundo Rotativo, com o objetivo de fazer frente aos recursos iniciais necessários para a implementação de desapropriações de interesse social. Os imóveis desapropriados e regularizados poderiam então ser colocados no mercado através de licitação pública, sendo sua utilização vinculada à construção de moradias de interesse social, através de previsão no edital correspondente. A rotatividade do Fundo é garantida na medida em que o produto nanceiro da venda desses imóveis retorne ao Fundo, de modo a respaldar novas iniciativas de desapropriação. Tal mecanismo deverá permitir aos Municípios a utilização de uma prerrogativa prevista em lei, sem comprometer seu orçamento e contribuindo para a implantação de uma política habitacional que ultrapasse o tempo de uma administração.
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O esquema a seguir ilustra o funcionamento do Fundo Rotativo no caso da obtenção de terrenos para a produção de novas unidades de habitação social. CIRCULAÇÃO DOS RECURSOS ENVOLVIDOS
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Esta iniciativa deve prever também a denição de atribuições complementares para o Fundo, de modo a apoiar o Programa Habitacional Municipal. Entre essas atribuições, é importante realizar um mapeamento prévio dos imóveis a serem incluídos no processo, através de Comitê Gestor, com a identicação de grupos de imóveis ou imóveis isolados, conforme o caso. O mes mo Comitê deve ser responsável tanto por decisões internas ao processo de desapropriação (por exemplo, a raticação da intenção de inclusão dos imóveis no programa, após sua avaliação), como pela deliberação de atividades complementares necessárias à reinserção, como a regularização cadastral dos imóveis ou o cadastramento de populações a serem beneciadas pelo programa. Também podem ser previstas, se necessário, as iniciativas para a guarda dos imóveis entre a imissão na posse e a transcrição imobiliária, atividade que poderia ser delegada a entidades associadas. Um ponto importante a denir é se é necessária a criação de um Fundo especíco para abrigar as atribuições previstas, ou se é possível criar uma rubrica em um Fundo existente. Pro 66
vavelmente, a melhor solução vai depender da situação existente em cada município em relação à presença e características de Fundo (ou Fundos) habitacionais. O Fundo Rotativo também poderia receber o aporte de recursos complementares para intensicar sua atuação, como por exemplo recursos oriundos de proprietários sem herdeiros (herança jacente) ou recursos obtidos em plataformas como a das Operações Urbanas Consorciadas, as quais poderiam prever um percentual para esta destinação.
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Quanto ao desenho do Fundo e sua articulação com o processo de desapropriação, o Fundo tem basicamente três pontos de conexão com o processo de desapropriação, em uma dinâmica de retroalimentação. São eles: I – V ínculo de recursos do Fundo II – Dispêndio de recursos pelo Fundo III – Aporte de recursos ao Fundo Vale observar que estes pontos de conexão do Fundo com o processo de desapropriação se sucedem de forma circular (e não hierárquica). Enquanto a primeira conexão refere-se à vinculação dos recursos necessários para dar início aos sucessivos processos de desapropriação, em cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal, a terceira conexão se faz com o aporte de recursos ao Fundo, oriundos das ofertas públicas de imóveis desapropriados e regularizados. Quanto à conexão intermediária, esta se situa no decorrer do processo de desapropriação, podendo ocorrer em momento variável, conforme o desenrolar desse processo e as condições especícas dos imóveis envolvidos. Buscando identicar as possibilidades desta conexão, identicamos quatro momentos de dispêndio dos recursos pelo Fundo Rotativo e respectivas opções, conforme as etapas da desapropriação identicadas na sequência abaixo:12
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ETAPAS DA DESAPROPRIAÇÃO E PONTOS DE CONEXÃO COM O FUNDO ROTATIVO • Decreto de desapropriação por interesse social • Instrução do processo – Plano de Trabalho (PT) e n° (de qual parte do orçamento municipal) Vai para avaliação – Procuradoria Geral do Município / Secretaria de Fazenda / Urbanismo – (avaliação total, sem discriminar dívidas) Situação A) Proprietário aceita avaliação (minoria dos casos) • Secretaria de Fazenda – cálculos (ônus reais, etc.) • Termo de desapropriação amigável
Apresentação ao proprietário II. Dispêndio de recursos pelo Fundo (opção i)
• Proprietário apresenta certidões • Se há dívidas: 1. Dívidas com o município — Se a menor, recebe a diferença
II. Dispêndio de recursos pelo Fundo (opção ii)
• Se a maior, encerra a etapa amigável 2. Dívidas com terceiros — Encerra a etapa amigável Situação B) Proprietário não aceita avaliação / há dívidas a maior / há dívidas com terceiros • Município ajuíza a ação – oferecendo o valor da avaliação e pedindo a imissão imediata na posse • Juiz – consulta perito (maioria dos casos) Obs. Caso não haja contestação, ou réu ignorado, ou imóvel abandonado, o Juiz pode dar imissão na posse com base na avaliação municipal
• • • •
Se há contestação por parte do expropriado: Juiz – consulta assistentes técnicos das partes (o AT do município é em geral o mesmo avaliador responsável) Juiz dene o valor da guia Município emite a guia É feito o depósito judicial
• Proprietário levanta 100%, ou 80% para seguir discutindo (divergência por parte do expropriado), ou mesmo nada (o valor do depósito é confrontado a possíveis dívidas) • Regularização jurídico-cadastral para oferta pública do Imóvel, com repasse de recursos para o Fundo
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I. Vínculo de recursos do Fundo
Vai para Etapa Judicial
II. Dispêndio de recursos pelo Fundo (opção iii)
II. Dispêndio de recursos pelo Fundo (opção iv)
Município tem imissão na posse III. Aporte de recursos ao Fundo
Mas é importante destacar que para um bom funcionamento do Fundo Rotativo, o instituto da desapropriação necessita também ser revisitado (FERNANDES e ALFONSIN, 2009). Além da diculdade da vinculação de recursos públicos orçamentários para alavancar a desapropriação por interesse social, outra limitação reconhecida é o alto custo envolvido, uma vez que os imóveis costumam ser avaliados por seu “preço de mercado”. Nesta reavaliação, um dos elementos mais importantes a considerar é o potencial de aproveitamento dos terrenos urbanos, denido pela normativa urbanística municipal. De modo a compatibilizar a noção de que os direitos adicionais de construção pertencem à coletividade e que por isso são objeto de outorga onerosa pelo poder público municipal13, a justa indenização precisa ser redenida de modo a não incluir direitos po tenciais não exercidos, no cálculo do valor dos imóveis a desapropriar (RABELLO, 2007).
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Outro ponto a considerar para a revisão dos valores de indenização na desapropriação é o de que a Lei 11977 (Minha Casa Minha Vida – MCMV – de 07 de julho de 2009) permite, em seu artigo 74 (Disposições Finais) descontar os débitos ajuizados, para o depósito inicial, um caminho a ser explorado nas recomendações nacionais de política urbana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Certamente, o avanço das questões envolvidas nesta proposta, de caráter preliminar, depende do enfrentamento de desaos jurídicos ainda por serem identicados. De qualquer modo, é im portante reconhecer que o objetivo do Fundo Rotativo proposto é o de complementar, e não substituir, as iniciativas de reinserção imobiliária nas áreas centrais e periferias imediatas das metrópoles brasileiras, a serem realizadas através da utilização de instrumentos de política urbana e institutos jurídicos correlatos, em apoio à política habitacional municipal, e em especial à provisão de habitação popular. O foco prioritário do Fundo Rotativo proposto são os terrenos vagos, com edificações em ruínas ou sem utilização, envolvendo não somente os perímetros mais centrais como também regiões no entorno dos centros urbanos, tais como áreas industriais nos eixos de acesso às metrópoles. Outras situações, como os casarões desocupados nos centros urbanos, e mesmo em alguns casos os ocupados por moradores sem outras opções, podem ser considerados em um programa mais abrangente que contemple essas diversas possibilidades. Há que se buscar, em paralelo, a operacionalização dos instrumentos já regulamentados, como o IPTU progressivo,
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que em diversos casos podem operar como pano de fundo para a inserção de novos instrumentos complementares, como é o caso do Fundo Rotativo. Neste sentido, há que se observar que a lei MCMV prevê que sejam privilegiados repasses aos municípios que tenham instrumentos de combate às áreas ociosas. A composição de um sistema de instrumentos que permita abarcar as diferentes possibilidades e diferentes situações encontradas pode dar-se através da utilização de plataformas urbanísticas. É essencial que o conjunto de instrumentos esteja vinculado ao planejamento e ao projeto urbano. Tanto as Operações Urbanas Consorciadas (no modelo institucionalizado pelo Estatuto da Cidade) como as Zonas de Especial Interesse Social (em seu entendimento reformatado para contemplar a reabilitação de áreas centrais) podem oferecer a oportunidade para a criação dessas plataformas. Finalmente, para fomentar essas iniciativas por parte dos municípios, várias dessas possibilidades poderiam ser encaminhadas através de Diretrizes emitidas pelo Ministério das Cidades, ou através de Resoluções recomendadas pelo Conselho das Cidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, P. A Cidade Caleidoscópica: coordenação espacial e convenção urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. ABREU, M. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Zahar Ed., 1987. BACELLAR, I. Transferência do Direito de Construir: questões e conitos na aplicação do instrumento do Estatuto da Cidade . Dissertação de Mestrado, PPGAU – UFF, 2007. BASSUL, J.R. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. BRASIL. Código Civil, 2002. BRASIL. Constituição Federal, 1988. BRASIL. Estatuto da Cidade. LEI FEDERAL 10.257 de 10 de julho de 2001. CAVALCANTI, N. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. FERNANDES, E. e ALFONSIN, B. (Coords.) Revisitando o instituto da desapropriação. Belo Horizonte: Fórum, 2009. FRIDMAN, F. Donos do Rio em nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 70
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NOTAS DE FIM A base deste trabalho provém do relatório “REIMOB – Estudos de requisitos e consultas a especialistas de mecanismos de reinserção de lotes no mercado”, de 2010, coordenado pela autora com a supervisão geral do Prof. Sergio Leusin de Amorim, no âmbito do Acordo de Cooperação UFF/Fundação Euclides da Cunha, FIESP e Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades. 1
Diversas possibilidades de recondicionamento incluem os atuais ‘retrots’ com a implantação de novos usos, a adaptação de edicações de uso institucional (por exemplo, sedes institucionais que passam a funcionar como Centros Culturais), mas também o aproveitamento de imóveis que já passaram pela etapa comercial e que voltam a ter uso residencial. 2
Um exemplo do mecanismo pode ser encontrado em Santo André. O Rio de Janeiro só tem lei municipal especíca neste sentido para ns de regularização fundiária. 3
Embora tais situações possam parecer muito especícas e mais prováveis em cidades menos desenvolvidas, todas elas podem ser encontradas sem diculdades no centro do Rio de Janeiro. 4
O site www.spurbanismo.sp.gov.br oferece uma visão sobre esses instrumentos do ponto de vista da legislação pertinente (para a Concessão Urbanística, ver “Nova Luz”) 5
Um estudo das possibilidades desta abordagem das ZEIS pode ser encontrado no Guia para Delimitação e Regulamentação de Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS em Vazios Urbanos , produzido pela Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades em 2009, com texto de Ana Lucia Ancona. 6
O Seminário Internacional de Locação Social, promovido pelo Ministério das Cidades em 2008, registrou as apresentações. Consultar http://www.cidades.gov.br/index.php/reabilitacao-de-areas-urbanas-centrais/905-seminario-internacional-de-locacao-social. Para os propósitos deste artigo destacamos as de Margareth Matiko Uemura e de Helena Menna Barreto Silva. 7
Segundo informações da Secretaria de Urbanismo da Cidade do Recife, o mecanismo vem sendo testado em imóveis abandonados identicados na área central antiga. 8
Colhidas em ocina sobre o tema do reaproveitamento de imóveis centrais, realizada pela SNH do Ministério das Cidades em outubro de 2011. 9
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Informação de 2010 fornecida pela Secretaria de Habitação estadual.
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Esta ideia foi inicialmente proposta por Marcia Bezerra, especialista em Assuntos Fundiários da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, tendo sido posteriormente desenvolvida no âmbito da pesquisa citada. 11
Esta sequência foi elaborada com base no caso do Rio de Janeiro, conforme entrevista realizada com Procurador Municipal de Fazenda em junho de 2010. 12
Vide Artigos 28 a 31 do Estatuto da Cidade, Seção IX, “Da Outorga Onerosa do Direito de Construir”.
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F F
[email protected] Professora Associada da Escola de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Arquitetura e Urbanismo, com especialização em Planejamento e Usos do Solo (IPPUR-UFRJ, 1988), Mestrado em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ, 1993) e Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas (FAU-USP, 1999). Suas áreas especícas de interesse incluem a estruturação intra-urbana, a dinâmica imobiliária, o mercado de terras, o planejamento dos usos do solo urbano, os instrumentos de intervenção urbana. Desde seu doutoramento, tem se debruçado sobre a gestão pública da valorização da terra urbana, tema de suas pesquisas e publicações, que se desdobram em objetos como os vazios urbanos, os fundamentos e instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas e a Outorga Onerosa do Direito de Construir e instrumentos correlatos. Suas principais publicações em torno desses objetos incluem co-autorias como: Outorga Onerosa do Direito De Construir (Ministério das Cidades, Lincoln Institute of Land Policy, 2012); Novas perspectivas para o nanciamento do desenvolvimento urbano no Brasil: a outorga onerosa do direito de construir (in: Revisitando o instituto da desapropriação.Belo Horizonte : Fórum, 2009); Outorga Onerosa do Direito de Construir: panorama e avaliação de experiências municipais (XII ENANPUR, 2007); Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas: reunindo os conceitos envolvidos (In: Gestão Social da Valorização da Terra. Pólis, 2004); Tierra Vacante en Rio de Janeiro: Aproximación a la situación actual y bases para la formulación de una política (In: Tierra Vacante en Ciudades Latinoamericanas. Lincoln Institute of Land Policy, 2002) e Recuperación de Plusvalías en América Latina: alternativas para el desarrollo urbano. (Eurelibros, 2001).
TANTOS TETOS E TANTOS SEM-TETO1: Relato analítico de uma experiência de readequação de edifícios públicos ocupados. Luciana ANDRADE
INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é expor, criticamente, a experiência por mim vivida junto a uma associação de arquitetos voltada para a realização de projetos de arquitetura e urbanismo para a população pobre, particularmente, moradores de edifícios públicos ocupados no Centro do Rio de Janeiro. A perspectiva é a de discussão das potencialidades e desaos relativos à adequação dos imóveis, desde as questões de projeto arquitetônico até os entraves relacionados à vontade política do poder público de aplicação da função social da sua própria propriedade. Tal como em outras cidades do mundo, o Centro do Rio de Janeiro sofreu sensíveis mudanças nas duas últimas décadas, dentre as quais destacamos o esvaziamento de imóveis devido à migração de diversas atividades para outros bairros da cidade. Muitos dos edifícios do Centro caram inadequados às novas tecnologias informacionais e a pouca cultura para o retrot de edifícios antigos contribuiu para o processo de relativa descentralização. No contexto brasileiro, o Centro do Rio ainda preserva muito de suas funções, t endo sofrido menos do que o de outras cidades. Isto não signica que sua transformação tenha sido pouco complexa. A alta especialização do uso do solo, devido à lei que proibiu habitação entre as décadas de 1970 e 1990, e a perda de importância econômica e política da Cidade no cenário nacional contribuíram para que muitos imóveis cassem ociosos, especialmente edifícios públicos. Concorre também para isto a retração – em alguns casos atroa – sofrida pelo Estado em decorrência da onda neoliberal dos anos 1990. Ao mesmo tempo em que este fenômeno acontecia, outro explicitava o drama da desigualdade socioeconômica brasileira. A grave crise vivida no País na década de 1980 e a falta de
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políticas habitacionais e sociais efetivas empurraram parcela expressiva da população para o trabalho e a moradia informal. Nas ruas do Centro, observou-se o crescimento de moradores de rua que passaram de andarilhos solitários a grupos de mendigos, de menores abandonados e até de famílias que zeram do espaço público a sua casa (Martins, 1992). Outros fatores participaram da constituição deste quadro trágico, que persistiu até bem recentemente, quando a Operação Ordem Urbana expulsou para as periferias grande parte dos andarilhos das áreas centrais do Rio. A péssima qualidade e o alto custo dos transportes coletivos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro contribuíram para que muitos moradores da periferia que trabalham no Centro optassem por dormir nas ruas durante a semana útil, voltando para casa apenas nos ns de semana. Além disto, algumas pessoas passaram a viver nos espaços públicos para fugir da violência nas favelas ou porque foram expulsas de seus barracos por grupos de narcotracantes. Também se somaram aos sem-teto, famílias que perderam seus imóveis em desastres naturais – como deslizamento de encostas em períodos de chuvas intensas – ou que não podiam arcar com os custos do aluguel de uma casa, mesmo numa favela. Um terceiro fenômeno ocorreu do encontro desses dois fenômenos expostos. Especialmente a partir do m da década de 1990, vericou-se um processo de ocupação dos prédios va zios pela população sem-teto, organizada politicamente, em maior ou menor grau. Entre as ocupações do Centro da Cidade do Rio de Janeiro, a denominada Chiquinha Gonzaga foi, em sua origem, uma das mais organizadas. A população que a formou contou com o apoio de movimentos sociais de luta pela moradia, o que contribuiu não só para a organização do processo de reversão da ociosidade do edifício, como também para que Chiquinha Gonzaga servisse de referência para outros grupos de sem-teto que buscavam de uma alternativa de moradia. Por exemplo, os moradores da Chiquinha Gonzaga foram procurados para dar apoio às pessoas que formaram a que foi a maior ocupação do Centro do Rio: Zumbi dos Palmares, situada num edifício de oito andares, que abrigava aproximadamente 140 famílias.
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Por meio do apoio de Marcelo Edmundo, um membro da Central dos Movimentos popu lares – CMP –, a ocupação Chiquinha Gonzaga, situada nas proximidades da estação central de trem – a Central do Brasil – conseguiu o apoio de arquitetos recém-formados na FAU-UFRJ para a realização de um workshop com vistas a debater e realizar um estudo preliminar para o projeto arquitetônico de readequação do edifício.
Embora alguns ocupantes não entendessem muito bem do que se tratava um projeto arquitetônico, eles sabiam da sua importância para o início do processo de regularização da ocupação e para a sua inscrição em algum programa federal de recursos para as obras de readaptação e melhoria do edifício. O workshop gerou apenas ideias conceituais, mas nenhum projeto. Entretanto, os arquitetos que organizaram o evento engajaram-se na questão, com apoio da Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião, e desenvolveram um projeto que serviu de base para a solicitação de recursos para as obras de readequação do Edifício.
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Apenas em 2009, Chiquinha Gonzaga e outras ocupações receberam verba do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS, para a realização de projeto arquitetônico de reabilitação dos edifícios ocupados e para realização de projeto de mobilização social. Naquela ocasião, o Centro do Rio que ainda estava abandonado pelas elites acabou por promover um retorno de pobres a esta área privilegiada da cidade. Entretanto, o capital imobiliário já estava redescobrindo o valor da área e vem fazendo pressão política e ideológica para uma nova expulsão desta população do Centro, orquestrada principalmente pela revitalização da área portuária, batizada como Porto Maravilha. Por sentirem necessidade de desenvolvimento de um diálogo com a academia, os autores do projeto me convidaram para participar de reuniões temáticas de debate da equipe, o que evoluiu para a integração a outras atividades ao grupo. Inicio este artigo contextualizando sinteticamente o problema habitacional no Rio de Janeiro, à luz de alternativas e formas inventadas para a moradia. Em seguida, discuto brevemente as ocupações de edifícios ociosos no centro da cidade, uma das táticas recentes da população pobre para ter seu direito à moradia no contexto urbano, para nalmente me posicionar criticamente em relação à experiência vivida com a Associação Chiq da Silva.
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Quilombo das Guerreiras. Foto: Luciana Andrade. 2012.
A MORADIA CONSTANTEMENTE REINVENTADA: Exponho a questão da habitação na perspectiva de formas de morar, ou mais precisamente na solução habitacional – casa, bairro, cidade – (re)inventada pelos pobres, numa comprovação do seu potencial para fazer cidade e resistir à (anti-)cidade que os nega. De fato, na história de sua ação emudecida pelos poderes que os rejeitam, eles – a quem são impostas condições materiais e simbólicas precárias de existência – revelam intensa participação na construção da cidade. Na história da questão habitacional brasileira, observamos a existência de uma série de alternativas informais às soluções formais para a moradia popular e, principalmente, à falta de iniciativas e políticas habitacionais ecazes. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a pai 76
sagem foi e é marcada por diversos tipos de moradias para os pobres, sejam eles formas de exploração destes por proprietários de imóveis e outros empreendedores ou soluções encontradas pela própria população para o equacionamento do seu problema. Cortiços, favelas, loteamentos clandestinos e irregulares, ocupações planejadas de terras urbanas, consolidação de favelas pela substituição de barracos de madeiras por casas de alvenarias, “favelização” de conjuntos habitacionais e a recente ocupação de imóveis ociosos no Centro da Cidade ou em bairros que sofreram desindustrialização são alternativas encontradas ou criadas pela população de baixa-renda para ter onde morar2. O alto índice de informalidade na produção habitacional brasileira – entre 40 e 50%3 – só conrma o que a população já sabe: a ação ocial não tem sido suciente para dar conta do direito à moradia.
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Mesmo em períodos de grande produção de casas para a população de baixa-renda, como durante a primeira metade da existência do BNH – Banco Nacional da Habitação, criado em 1964 e extinto em 1986 –, o Estado brasileiro não foi capaz de equacionar o décit habitacional, não chegando sequer a minimizar signicativamente o problema. Pelo contrário, muito de sua ação – que no Rio de Janeiro fomentou uma política de remoção de favelas das áreas próximas aos locais de trabalho e das redes de relações familiares e sociais dos moradores – contribuiu para o surgimento de novos problemas. Parte da população que foi morar nos conjuntos habitacionais em pouco tempo voltou para outras favelas 4 menos visadas pela política de remoção ou que, devido à pouca visibilidade na cidade ou à resistência de seus moradores, não foram removidas5. Quando permaneciam nos conjuntos, uma vez que, em muitos casos, as casas de conjuntos habitacionais eram entregues sem redes de serviços urbanos e de transporte públicos, seus moradores precisaram lutar para que estes serviços fossem levados ao local. Do mesmo modo, tem sido por meio de lutas também dos pobres que são realizados avanços na legislação e nas políticas públicas para urbanização de favelas, regularização de loteamentos clandestinos, melhoria de conjuntos habitacionais e requalicação de cortiços e edifícios ociosos ocupados. Pelo exposto, podemos concluir que se a população pobre esperasse por meios formais para o equacionamento da questão habitacional, o contingente de sem-teto nas ruas de cidades brasileiras seria composto por um número innitamente maior do que o observado nos dias atuais. Diferentemente do propalado, a população brasileira das classes D e E mostra-se participante
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e ativa na produção do espaço urbano, fazendo uma cidade possível com os parcos recursos 6 – materiais, educacionais, culturais, técnico etc. Aqui percebe-se um vasto universo de possibilidades para a prática do tipo de planejamento capaz de compreender as ações populares como “formações de cidadania insurgente”, como proposto por Holston (1996).
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O PAPEL DOS POBRES NA BUSCA POR ALTERNATIVAS DE MORADIA: A despeito de parte signicativa da população brasileira viver em condições de pobreza, a sociedade não cansa de ressaltar preconceitos contra os pobres, que muitas vezes também acabam por introjetar os estereótipos. Diz-se que são preguiçosos, desorganizados, passivos. Entretanto, a simples observações do seu cotidiano mostra que estes preconceitos muitas vezes são descabidos7. O desao de construção de seus espaços de moradia com parcos recursos reforça seu papel ativo e participativo na cidade. Mais que isto, essa parcela da população revela uma impressionante capacidade de reagir às ações que a expulsam de suas soluções habitacionais 8, como ocorreu há mais de um século, com a demolição de cortiços, que intensicou a formação de favelas. Outro exemplo de resistência se revelou na permanência das favelas no cenário de várias cidades brasileiras, à despeito das políticas de remoção. De fato, o Estado brasileiro tem sido ineciente para atender às necessidades de moradia das classes baixas. Ao longo dos mais de 100 anos da questão habitacional no País, ignorou-se o problema, tratou-o com prepotência ou de forma distante da realidade dos moradores. Poucas foram as ações públicas que procuraram prover habitação a partir de um diálogo democrático com a população9. Até hoje, o que se observa é que para a população pobre, via de regra, é negado o direito à moradia, entendida em seu contexto urbano. Além disso, o desenvolvimento das políticas e das tipologias habitacionais no Rio de Janeiro mostrou-se excludente, alcançando grupos sociais de rendas mais altas do que aquelas às quais se destinavam originalmente (Vaz, 2002).
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Por sua vez, ao construir seus espaços de moradia com seus limitados recursos materiais e técnicos, essa população acaba, muitas vezes, criando involuntariamente más condições de habitabilidade. As favelas cariocas, particularmente as mais densamente construídas, são um exemplo. Em pesquisa por nós realizada na favela da Rocinha, identicamos uma série de problemas
cotidianos da população, causados pelas características do espaço construído (Andrade, 2002). Destacam-se os relativos à acessibilidade física e a inci dência de doenças infectocontagiosas: por exemplo, a Rocinha apresenta elevados índices de tuberculose, devido à alta densidade construída e à existência de espaços com pouca ou nenhuma iluminação e ventilação. Há ainda que se considerar que se a falta de regulação pública, por um lado, permitiu alternativas viáveis de moradia para a população pobre, por outro lado, proporcionou uma super exploração por parte de empreendedores informais, que impõem péssimas condições de moradia muitas vezes com custos relativamente altos, numa espécie exacerbação do capitalismo selvagem.
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Nesse sentido, é importante aprofundar o conhecimento da relação entre as práticas e dinâmicas socioespaciais na produção informal da moradia das classes de menor renda e as possíveis ações técnicas de construção da habitação, visando criar condições de melhoria efetivas da qualidade dos espaços de vida da população pobre. O desao é conceber com a população espaços de qualidade que assim sejam e se mantenham apropriados. Trata-se de explorar o repertório de possibilidades para a reprodução que atendem a população ao mesmo tempo que se cria condições de promoção socioespacial de modo a proporcionar boas condições espaciais para a população pobre. Voltamos aqui à perspectiva de um planejamento engajado com a realidade, reconhecida por investigações etnográcas, como proposto entre outros por Santos (1981) e Holston (1996). É uma proposta de construção de uma ponte que ancora o Estado e as formas insurgentes de cidadania (Holston,1996). Neste sentido, vale a pena observar táticas recentes da população na luta pelo seu direito de habitar o Centro.
A VANÇOS E RETROCESSOS PELO DIREITO À CIDADE NO RIO DE JANEIRO: Como dito anteriormente, somente em ns da década de 2000, a Ocupação Chiquinha Gonzaga e outras receberam verba do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS10, para a realização de projeto arquitetônico de reabilitação dos edifícios ocupados e para realização de pro jeto de mobilização social. Além da citada, as que tiveram o projeto arquitetônico realizado pela associação Chiq da Silva foram a Zumbi dos Palmares e Almor. Quilombo das Guerreiras, uma
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ocupação na área hoje designada Porto Maravilha, teve projeto social, mas não a readequação do espaço físico que ocupa. Entretanto, seus moradores se articularam com dois outros grupos e, por meio da Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião – FDHBR – e da União Nacional de Moradia Popular, ingressou no edital Produção Social da Moradia, que destinava os recursos diretamente para os movimentos sociais – um modelo que antecipou o Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades. Neste caso, um projeto para uma edicação foi concebido e desenvolvido11. Outras ações de referência neste sentido foram realizadas. Merece ser especialmente destacada a atuação pioneira das arquitetas Helena Galiza e Laís Coelho que se engajaram num projeto para a reabilitação de um edifício ocupado por nove famílias nas proximidades da Praça Tiradentes no Rio de Janeiro. Esta ação ocorreu antes da instituição do SNHIS e da criação do FHNIS, o que levou as arquitetas a procurarem formas de nanciamento da intervenção entre as alternativas de programas habitacionais para as populações de 0 a 3 salários mínimos 12. Outro caso importante é a da Ocupação Manoel Congo, situada ao lado da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, que também foi contemplada com recursos do FNHIS para a realização de projeto desenvolvido pelo NAPP – Núcleo de Assessoria Planejamento e Pesquisa.
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Se o fato de realizar projetos arquitetônicos de readequação para os ocupantes t raz em seu bojo a vantagem de se ter o morador real, reduzindo os riscos de impor modelos idealizados de famílias e moradias, o fato das ocupações terem, muitas vezes, espaços densamente ocupados, demanda que estes projetos estejam vinculados à uma política habitacional muito consistente. Deveriam, então, ser produzidos outros espaços que permitissem promover a salubridade dos ambientes, sem desintegrar a rede social formada pelos moradores. Em outras palavras, quando a política se reduz à readequação do edifício, há o risco de remover os moradores excedentes, como era o caso particular de Zumbi dos Palmares, quando discutimos intensamente qual postura a ser tomada, sem que pudéssemos chegar a uma conclusão, antes do desfecho descrito posteriormente. Outro aspecto importante, é a relação do projeto arquitetônico com o sistema de posse adotado e a política de gestão social. O sonho da casa própria, que signica a propriedade individual privada, cria o confronto entre a moradia-mercadoria e a moradia-direito. Mais ainda, a possibilidade de reordenação do espaço de tal modo que as famílias maiores quem com os espaços maiores, o que foi possível realizar no projeto para a Ocupação Almor, precisaria de uma
gestão social muito consistente de tal modo que fosse realizada outra redistribuição das unidades, quando a formação familiar se alterasse com o casamento de seus membros, o nascimento de outros lhos ou, ainda, outras dinâmicas da vida13. Entretanto, mais complexas que as questões projetuais são as questões políticas e econômicas. Até meados de 2012, apenas as obras de reabilitação da Ocupação Regente Feijó caram prontas, porém ainda não foi dada a concessão do habite-se. Manoel Congo e Chiquinha Gonzaga aguardavam o processo de licitação das obras. Almor enfrentava problemas relativos à propriedade do imóvel, que pertence à Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Há a necessidade de realização de troca de próprios públicos de instituições diferentes – particularmente pela autonomia da UERJ, ainda que sejam da mesma instância de poder, para que se possa efetivar as reformas necessárias e o estabelecimento de algum tipo de garantia do direito de moradia para os ocupantes, como a concessão de direito real de uso. O caso da Zumbi dos Palmares foi ainda mais complexo. Por estar em área da fase 1 das obras do Porto Maravilha, a Ocupação que reabilitou informalmente um prédio abandonado do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS –, sofreu um processo de desocupação promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O edifício, propriedade de órgão federal, já estava em estágio avançado de negociação com o governo do estado para sua readequação efetiva para uso residencial. Mas mesmo assim, sua população foi removida em nome do potencial de maior rentabilidade do imóvel pela valorização da área. Por m, o projeto para o edifício que iria abrigar a Ocupação Quilombo das Guerreiras e dois outros grupos de moradores sem-teto teve que ser totalmente refeito, uma vez que o terreno que tinha sido disponibilizado pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU – no contexto do Programa Produção Social da Moradia foi eliminado pelo projeto viário do Proto Maravilha. A intenção era que o prédio fosse construído em outro lugar. O grupo só conseguiu que o outro terreno concedido fosse na mesma localidade graças à atuação dos movimentos sociais e da FDHBR. Mesmo depois de todo o projeto refeito, ainda não há perspectivas de início das obras. As conquistas dos ocupantes pelo seu direito de morar no Centro da Cidade e por ter melhores condições de sobrevivência foi atropelado pelas políticas estaduais e, principalmente, municipais que mercantilizam a cidade. Copa do Mundo e Olimpíadas viraram pretexto para colocá-las em prática de forma irracional. Soma-se a isto o aliança entre as três instâncias de governo, o que permitiu a liberação dos terrenos federais para a realização do projeto municipal que traz
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em seu discurso a “revitalização da Área Portuária”. Apesar dos grandes terrenos e de muitos edifícios públicos ociosos nesta área, que anteriormente recebeu projetos para as classes média e baixa, os imóveis projetados no “Porto Maravilha” destinam-se às atividades e moradia das camadas mais ricas da sociedade. Em outras palavras, as ações e obras na área tem sido no sentido de impedir a permanência justamente daquela parcela da população que ocupa este espaço, justamente por ter sido historicamente excluída das políticas habitacionais14. A nossa sociedade é estruturada com base na propriedade privada da terra, o que faz com que a luta pela moradia encontre grande resistência de diversos s etores da sociedade. Apesar da Constituição Federal, promulgada em 1988, ter rearmado o compromisso do Estado brasileiro com o direito à moradia, somente em 2001 o Estatuto da Cidade foi aprovado. Esta lei determina que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” 15, garantindo “...o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer...”16. Ainda assim, diversos obstáculos são encontrados para garantir o cumprimento do Estatuto. O Estado moderno brasileiro pouco investiu ou investiu inadequadamente em políticas públicas para a promoção social dos cidadãos. Isto se reetiu sobre as bases físico-urbanísticas para a reprodução da força de trabalho. São exemplos as políticas da habitação social e as de implantação de um sistema ecaz de transporte público. Deste modo, a forte concentração de renda observada nas cidades brasileiras se reete na concentração da infraestrutura e das amenidades urbanas, aumentando ainda mais o fosso existente entre os pobres e os ricos. Como mostrado, o abandono do Centro do Rio pelas elites acabou por promover um retorno de pobres à esta área privilegiada da cidade. Entretanto, o capital imobiliário já redescobriu o valor da área e faz pressão política e ideológica para uma nova expulsão desta população do Centro, o que vem ocorrendo por remoções mais ou menos explicitas. Tudo indica que, mais uma vez, os pobres estão perdendo o direito ao Centro. E continuam os tetos sem sem-teto.
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NOTA DE FIM Este artigo faz parte da pesquisa “Formas de Habitar a Cidade: a ação dos pobres pela moradia”, coordenada pela Professora Doutora Luciana Andrade. Participam desta pesquisa os professores doutores Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Maria Lais Pereira da Silva (Universidade Federal Flumninense-UFF) e Gerônimo Leitão (UFF); os doutorandos Andre Orioli Parreiras e Mara Oliveira Eskinazi; os mestrandos Lívia Ribeiro Abreu Muchinelli, João Paulo Huguenin e Juliana Canedo; e as graduandas Gabriela Perez Chaves e Lei lane Ribeiro de Melo. A aluna Pâmella Louize Carriço Silva e já arquiteta Vyrna Jacomo de Abreu Nunes participaram da pesquisa de agosto de 2009 à julho de 2010. Na discussão relativa às ocupações de edifícios ociosos no Centro do Rio, a pesquisa conta com a participação dos arquitetos Carol Rezende, Daniel Wagner, Gilberto Rocha e Thais Meireles, da Associação Chiq da Silva. A pesquisa é desenvolvida no âmbito do CiHabE/PROURB/FAU/UFRJ e recebe apoio nanceiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro – FAPERJ, pelo Programa Jovens Cientistas do Nosso Estado, além de contar com duas bolsas de iniciação cientíca fornecidas pelo CNPq e pela UFRJ. 1
Sobre a história da habitação popular no Brasil ver, por exemplo: Taschner (1997); Finep/GAP (1985); Bonduki (1998); Silva e Silva (1989). Sobre a história das favelas ver: Abreu (1994), Silva (2005); Valladares (2005). 2
De acordo com Ferreira (2005).
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Sobre este fato ver Valladares (1979).
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Algumas favelas cariocas conseguiram resistir às políticas de remoções. A resistência de Brás de Pina cou bastante conhecida pelo trabalho de Santos (1981). 5
Usamos a expressão “cidade possível” inspirados no texto de Maricato (1982).
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Vários trabalhos de diferentes áreas descontruíram mitos sobre a população pobre. Entre eles destacamos o de Carvalho (1987), que investigou as razões daquela que cou conhecida como a Revolta da Vacina. Embora explorado no contexto dos preconceitos entre naturalidades brasileiras, um interessante trabalho enfrenta a idéia difundida de que baiano é preguiçoso. Ver Zanlorenzi, (1998). 7
A Prof. Dr. Lilian Fessler Vaz, do PROURB/UFRJ ressaltou este aspecto em nossas discussões sobre o tema.
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Um exemplo importante pode ser visto em Bonduki (1993).
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O FNHIS foi criado no contexto da instituição pelo governo federal do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS. (Lei Nº11.124, de 16 de junho de 2005). 10
Ver: http://www.chiqdasilva.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=52:gamboa&catid=1:projetos&Item id=2 (último acesso em 10/07/2012). 11
Até R$1.500,00 o que correspondia à 650€, na cotação de 28 de setembro de 2010.
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Além da convivência com a Chiq da Silva e movimentos sociais – MNLM, CMP e UNMP –, as questões aqui discutidas também fo ram desenvolvidas a partir de debates com os professores Adauto Cardoso e Luciana Lago do IPPUR/UFRJ, a advogada do Núcleo de Terras e Habitação – NUTH – da defensoria pública do Estado do Rio de Janeiro e a arquiteta Helena Galiza. 13
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Dois exemplos podem ser relatados. A suspensão do projeto de reabilitação da Ocupação Zumbi dos Palmares, que tinha sido contratado no início de 2009 pelo Instituto de Terras e Cartograa do Estado do Rio de Janeiro – ITERJ, no contexto do FNHIS – e as diculdades que vem sendo criadas pela prefeitura para a aprovação do projeto do Quilombo da Gamboa. Este projeto trata-se de uma uma conquista dos movimentos populares. Três grupos de moradores sem-teto se organizaram com entidades de luta pela moradia e com a Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião para ter acesso a recursos do FNHIS para a construção do edifício numa das áreas disponibilizadas pelo Governo Federal para a construção de moradia popular. 14
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Lei Nº 10.257, Estatuto da Cidade. Artigo 2º.
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Idem.
E D A R D N A a n a i c u l
L A
[email protected] Professora Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Geograa (UFRJ, 2002) seu tema de pesquisa é habitação popular, com foco em ocupações em áreas centrais, favelas e con juntos habitacionais. De dezembro de 2005 a novembro de 2006 desenvolveu pesquisa de pós-doutorado sobre os Espaços Públicos de conjuntos habitacionais (Siedlungen) em Berlim. Esta pesquisa foi realizada junto à BAUHAUS Universität Weimar, no contexto do PROBAL-CAPES/ DAAD. Foi membro da CHIQ DA SILVA, associação de apoio arquitetônico e urbanístico a população sem-teto, com a qual participou de projeto habitacional na Gamboa, Rio de Janeiro, que recebeu menção honrosa no Concurso Caixa IAB 2009. Foi Subcoordenadora de Ensino do PROURB (gestão 2008-2009). Em 2009 foi contemplada com apoio nanceiro da FAPERJ, no contexto do Programa Jovem Cientista do nosso Estado (2009-2012). Atualmente coordena projeto de pesquisa para avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida, nanciado pelo Ministério das Cidades e CNPq.
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VACÂNCIA E INTERVENÇÕES NO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR Tensões entre privatização urbana e direito à cidade Angela Gordilho Souza
INTRODUÇÃO No contexto atual de retomada de grandes investimentos nas cidades brasileiras, em uma condição econômica favorável, como país emergente, frente ao panorama da crise nanceira mundial, intensicam-se os investimentos urbanos e as parcerias público-privada na produção e gestão de grandes projetos, com especial interesse nas renovações urbanas de áreas esvaziadas com potencial de valorização. Entre outras questões, evidenciam a vulnerabilidade das áreas centrais tradicionais e dos seus conteúdos históricos. Com os preparativos para os grandes eventos mundiais a serem sediados no Brasil – Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 –, surge uma avalanche de megaprojetos urbanos nas cidades-sede. Utilizam-se do receituário do chamado “Planejamento Estratégico”, modelo implantado com sucesso emblemático em Barcelona, por ocasião das Olimpíadas 1992, amplamente replicado mundo afora. Ao atingirem os objetivos de ganhos de capital, com base em processos altamente especulativos, esses projetos nem sempre promovem benfeitorias duradouras para os lugares. Quase sempre derivam para uma seletiva privatização da cidade e ganhos públicos duvidosos, o que tem gerado um intenso debate sobre os reais melhoramentos urbanos trazidos para a coletividade e o direto à cidade. Acarretam também um prolongado endividamento público e impactos indesejáveis, sociais, urbanos e ao patrimônio histórico e cultural, nos lugares onde se implantam. No Brasil, seguindo esse escopo de empreendedorismo urbano em áreas centrais esvaziadas, as primeiras experiências são implantadas ainda na década 1990, como foi o caso do projeto
de requalicação do Pelourinho, em Salvador, com a instalação de novos negócios de serviços e comércio voltados para o turismo, no lugar de antigas habitações, desapropriadas. Passados vinte anos, essa intervenção mostra sinais evidentes de esgotamento, com o fechamento sucessivo dos pontos comerciais surgidos então, associado a outras formas de decadência, degradação física e social, somadas às fragilidades da gestão pública, fatores que contribuíram para determinar um novo ciclo do processo de esvaziamento da área. Com a criação do Ministério das Cidades em 2003, foram denidas outras perspectivas de enfrentamento da vacância de áreas centrais nas grandes cidades brasileiras, sendo então lançado o Programa Nacional de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, que apontava diretrizes para promover a diversidade de usos e de atividades voltadas para o desenvolvimento urbano, social e econômico, compreendendo a reutilização de edicações ociosas, de áreas vazias ou abandonadas, subutilizadas ou insalubres, bem como a melhoria da infra-estrutura, dos equipamentos e dos serviços urbanos. Buscando-se assim incentivar a “moradia no centro” e dar suporte aos governos locais para tais iniciativas. Alinhando-se a esse Programa, foi criado pelo Governo da Bahia, em 2007, o Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador (ERCAS), que elaborou o Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador (2009-2010). Diferentemente da proposta anterior para o Pelourinho, as indicações propositivas contidas nesse novo plano trazem um conjunto de intervenções urbanas mais abrangentes, com destaque para a inserção habitacional e usos diversicados em áreas de vacância, considerados essenciais para redenção da vida urbana e reintegração dessa área central na dinâmica da cidade, como forma de sustentabilidade desse patrimônio histórico.
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Passados três anos desde o seu anúncio desse novo Plano, não se percebe uma efetiva implantação do conjunto de propostas indicadas, tampouco iniciativas práticas de intervenção pública em habitação que tenham impactado a requalicação pretendida. Entretanto outras ini ciativas públicas e privadas já se impõem com mais vigor para essa área e seu entorno, sem que haja conjugação com os propósitos do referido Plano, evidenciando contradições entre os conteúdos propostos e resultados almejados. Nesse sentido, dentre os grandes projetos que vêm sendo denidos para Salvador, com os preparativos para a Copa 2014, alguns incidem diretamente no Centro Antigo e seus arredo-
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res imediatos. São viabilizados por parcerias público-privada, com manifestação de interesse das empresas habilitadas, grandes corporações, abrangendo as deni ções projetuais e execução, além da gestão privatizada de longa duração dos equipamentos públicos propostos. Nesse novo ciclo de produção e gestão urbana, esses projetos são denidos de forma autônoma, sem discussão para um planejamento democrático que vise o conjunto de demandas da cidade. São pro jetos de renovação urbana de grandes impactos urbanos, envolvendo também essa área histórica da cidade, que retomam o planejamento estratégico de mercado, com vigor ampliado pelos grandes investimentos e expectativas de retorno. Confrontando essa dinâmica emergente de produção e gestão urbana privatista às propostas do Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador, a questão que se coloca para análise é como esse duplo movimento se estabelece na (re)conquista dessa área urbana central, buscando-se pontuar as intervenções em curso, com especial enfoque na vacância e inserção habitacional, situações que ilustram as tensões atuais entre a privatização urbana e o direito à cidade.
TENSÕES ENTRE PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO NA REABILITAÇÃO DE ÁREAS URBANAS ESVAZIADAS
Nas últimas décadas, a reabilitação de áreas urbanas esvaziadas e os grandes eventos mundiais foram o mote do chamado Planejamento Estratégico no empreendedorismo urbano. São impulsionados pelo processo de globalização e de consumo ampliado das cidades, também fortalecido pelo incremento das comunicações e do turismo.
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Para além das intervenções preservacionistas em áreas históricas, o esvaziamento de áreas centrais, o fechamento de antigas indústrias no interior das metrópoles e a desativação de áreas portuárias vêm sendo objeto de propostas de intervenção para a reabilitação desses sítios, sobrepondo-se aos conteúdos urbanos de interesse coletivo, em vista de novas possibilidades de negócios. Constituem grandes projetos urbanos alavancados pela mediação do setor público, pelo incentivo a um mercado imobiliário diferenciado e pela privatização de espaços coletivos.
Projetos pioneiros, como o Inner Harbor, em Baltimore (1970), t razem como concepção, a parceria da gestão pública com a iniciativa privada, como forma de redenção de áreas degradadas com potencial de valorização, a serem viabilizados por novas incorporações imobiliárias, com forte incentivo de recursos públicos. O argumento em favor desses investimentos é que criam empregos e geram renda, sendo demandadas, para sua realização, medidas públicas viabilizadoras de desocupação, mudanças no uso do solo, ampliação de potencial construtivo, renegociações de endividamentos acumulados, desbloqueios jurídicos e de situações fundiárias travadas. Embora esses empreendimentos possam trazer inovações e melhorias para a cidade, o montante de recursos públicos alocados é muito alto, e “boa parte dos investimentos tem sido uma história de altos e baixos”, como é analisado para as cidades americanas, após sua realização (HARVEY, 2004:189).
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Esse foi o modelo aplicado ao caso de Barcelona, por ocasião das Olimpíadas em 1992, que recebeu grandes investimentos para a qualificação da cidade, associados às medidas de preservação histórica, contribuindo, dessa forma, para a sua incisiva inserção no circuito turístico internacional. Tornou-se um caso emblemático, difundido mundo afora, extraindo-se dessa experiência os conceitos teóricos e conteúdos que passaram a ser identicados como Planejamento Estratégico (BORJA e CASTELLS, 1997; GÜELL, 1997). Essas ações têm sido amplamente replicadas, gerando um intenso debate dos reais benefícios urbanos trazidos para a coletividade. Ao atingirem os objetivos de ganhos de capital, com base em processos altamente especulativos, as avaliações dessas iniciativas assinalam que nem sempre as intervenções promovem benfeitorias duradouras para os lugares. Acarretam prolongado endividamento público e dívidas sociais geradas pela expulsão de moradores pobres, com o enobrecimento das áreas em que se inserem. Ao analisar o caso de Baltimore, Harvey acusa os investimentos públicos permanentemente aplicados de “alimentar o monstro do centro da cidade”. Para esse autor, a parceria entre o poder público e a iniciativa privada signica que o poder público entra com os riscos, e a iniciati va privada ca com os lucros (HARVEY, 2004:190). Nessas iniciativas, são visualizados nichos de oportunidades de negócios no território. Mais do que o solo urbano em si, nelas a cidade aparece como agente econômico, mercadoria, sendo o marketing promocional o elemento propulsor
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(VAINER, 2000). Segundo Arantes (2012), esse é “um dos traços do urbanismo dito de última geração; vive-se à espreita, de ocasiões [...] para fazer negócios!” O que “está à venda é um produto inédito: a própria cidade.” (p. 14) 1. Nos países de economias avançadas, essas práticas ocorreram num contexto urbano em que as principais demandas coletivas estão atendidas; busca-se atrair novos capitais e a amplia ção do consumo. Os megaeventos mundiais, alinhando-se a essas estratégias, potencializam, além dos investimentos para sua realização, projetos de renovação urbana, em função de uma maior visibilidade internacional do país que os sedia. Eles têm, na imagem midiática do espetáculo e da cidade, sua principal fonte de lucros para os patrocinadores e organizadores. Otília Arantes (2012) identica, nesse receituário, os principais pressupostos conceituais na recuperação de áreas urbanas deterioradas, que criam, no redesenho urbano, novas centralidades. Nos seus estudos sobre Barcelona e Berlim, ela destaca o papel do almejado consenso, que viabiliza celeridade sem riscos. Seguindo esse caminho, salienta, como um dos principais ingredientes desse urbanismo empresarial, a cultura como marketing urbano: a cidade espetáculo posta à venda. São processos de renovação urbana que acabam por atrair novos usos e rendas superiores às dos moradores tradicionais, elevando os preços imobiliários, e, nas palavras da autora, provocando um “arrastão gentricador de grandes proporções” (p. 8). Seguindo esses pressupostos de planejamento empresarial, algumas cidades brasileiras experimentaram, já na década de 1990, intervenções para reverter o esvaziamentos das áreas centrais, ao implantar projetos de requalicação urbana, com a denição de novos usos e atração de eventos para essas áreas, como o já citado caso do Pelourinho, em Salvador, que promoveu a retirada maciça de antigos moradores. Outros exemplos que seguiram essa linha de atração do turismo com a ampliação de negócios, incorporaram outras dimensões culturais e uma menor intensidade de evasão da população residente e, talvez por isso, mantiveram mais vigor na reabilitação do lugar, como no caso da Estação das Docas, em Belém, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, e o Bairro do Recife, dentre outras 2.
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Essas intervenções trazem em comum a reincorporação de territórios que estavam esvaziados, a partir de empreendimentos ancoras, novas centralidades e um mercado imobiliário e de consumo renovado e ampliado. São alavancados por vultosos recursos públicos, em grandes
operações urbanas, que induzem à exibilidade normativa para viabilização de oportunidades de novos negócios no território, que acabam por induzir gentricação direta ou indireta de antigos moradores 3. Frente a complexa problemática urbana das cidades brasileiras no início do século XX e ao quadro politico favorável para implantação do almejado projeto de Reforma Urbana, a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, e as novas politicas urbanas delineadas a partir de 2003, com a criação do Ministério das Cidades, trouxeram um alento para o planejamento e gestão urbana mais democrática. Com ênfase em habitação, saneamento e mobilidade foram denidos sistemas operacionais inovadores para atingir resultados mais estruturantes de longo prazo no uso e apropriação do solo. Nesse âmbito, o esvaziamento progressivo de centros urbanos foi considerado um tema fundamental de enfrentamento, sendo denido então o Programa Nacional de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, incluído no Plano Plurianual de 2004/2007 desse Ministério4. Esse Programa traz como objetivo a recuperação e reapropriação de áreas já consolidadas da cidade, com o incentivo do uso e ocupação democrática das áreas urbanas centrais, propiciado pela permanência de população residente e a atração de população não-residente. Portanto enfatiza a moradia e serviços complementares, como questão crucial nas ações de reabilitação de áreas centrais. O programa propunha assim consolidar a cultura da reabilitação urbana e edilícia nas áreas urbanas centrais em oposição à cultura dominante da construções novas, da periferização e expansão horizontal das cidades brasileiras.
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No contexto desse planejamento includente que se propunha, a política de reabilitação de áreas centrais deveria considerar sobretudo as especicidades das cidades brasileiras, pois que a vacância de imóveis em áreas amplamente infraestruturadas e dotadas de equipamentos urbanos se confronta com a problemática de altos índices de décit habitacional nessas cidades. Nesse sentido, a priorização das chamadas áreas urbanas centrais representa uma estratégia de construção de uma política de reabilitação urbana, com a perspectiva de que possam se estender, paulatinamente, para outras áreas consolidadas das cidades, para outras centralidades (ROLNIK e BOTLER, 2007). Por outro lado, considera-se ainda que as áreas centrais são concentradoras de equipamentos culturais – cinemas, teatros, museus, igrejas – praticamente ausentes nas áreas periféricas,
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além de exercerem importante mediação no sistema de transportes dos grandes centros urbanos, questões cruciais de centralidade ao se tratar de ações para reabilitação de áreas centrais na sua inserção metropolitana. A partir desses pressupostos, evidencia-se uma forte política de incentivo à elaboração de planos locais de adesão a esse Programa Nacional, como foi o caso da criação do Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador – ERCAS, que lançou em 2010 o Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador. Entretanto, o que se observa mais recentemente é que esse processo de planejamento mais inclusivo das áreas centrais vem sendo tencionado pela denição de grandes projetos urbanos implementados por outras instâncias, gerando espacialidades disitintas. Inicialmente são motivados pelos eventos da Copa 2014 e das Olimpíadas 2016, logo ampliando-se para outras demandas na produção da “cidade mercadoria”. Nessa dinâmica emergente, retomam com vigor o planejamento estratégico de mercado, no escopo de parcerias público privadas com grandes corporações, que absorvem tanto a denição dos projetos quanto na sua futura gestão. Os conteúdos programáticos desses megaprojetos, denidos para o alcance de rentabilidades ampliadas, não dialogam com a pers pectiva de sustentabilidade e direto à cidade anteriormente anunciada, implicando em grandes impactos na reabilitação de área centrais esvaziadas e no patrimônio coletivo da cidade, como será analisado a seguir para o caso de Salvador.
CONCEITOS E INTERVENÇÕES PROPOSTAS PARA O CENTRO ANTIGO DE SALVADOR
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Como uma das primeiras áreas urbanas a ser edicada no continente americano de forma planejada para ser uma capital colonial, Salvador é uma das poucas cidades nesse continente que guarda as principais características de sítio histórico, conforme ocupação original. Isso é revelado tanto no seu traçado urbanístico, como no seu ambiente construído, que mantém as marcas das interações dos grupos sociais nativos e imigrantes c om o ambiente natural. Na sua edicação gradativa foram utilizadas as técnicas construtivas originárias culturalmente dos portugueses que aí se instalaram, dos africanos trazidos para o trabalho escravo e dos índios que nessas terras habitavam.
Nesses quase cinco séculos de existência, foi construído um rico patrimônio histórico e cultural, composto por um acervo arquitetônico colonial tombado por sua importância nacional e internacional, que se estende por uma área mais abrangente que a do Pelourinho – núcleo mais conhecido deste Centro Histórico –, atingindo uma área ocupada até o nal do século XIX de aproximadamente mil hectares (10km2), com uma população de cerca de 200 mil habitantes, conformando a construção desta cidade tão plural ao tempo que tão singular. 5 Até o início do século XIX, as atividades econômicas e administrativas exigiam uma relativamente baixa concentração populacional, já que era na zona rural, nos engenhos e fazendas, onde se produziam as riquezas básicas e, portanto, neles se localizavam a maior parte da mão-de-obra e a população em geral. A partir de então, o comércio urbano se intensicou, com o incremento de exportações, e os primeiros indícios de industrialização começaram a se ampliar nas periferias urbanas.
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No nal do século XIX surgiram os movimentos de expansão urbana para áreas mais afas tadas, manifestando-se, ao sul, em localidades como Garcia, Canela, Vitória, Graça e Barra, que passam a abrigar população de renda mais alta, famílias vindas das antigas residências do saturado centro antigo e proprietários rurais recém-xados na cidade. Logo, os sobrados que vão sendo deixados para trás passam a ter seus pavimentos subdivididos em pequenos cubículos, principalmente aqueles localizados no antigo núcleo, agora multiplicados em pequenas unidades domiciliares que irão dar origem aos cortiços. Assim, até a década de quarenta do século XX a Cidade do Salvador, guardou no seu território as características de cidade colônia, registrando um baixo cr escimento populacional, chegando a cerca de 290 mil habitantes. A partir de então nasce a Salvador moderna, impulsionada por vários fatores socioeconômicos internos e externos que propiciam momentos de urbanização intensiva, com grandes u xos populacionais direcionados para essa cidade-capital, registrando-se, nas diversas situações, ao seu tempo, uma expansão urbana abrupta e signicativa do espaço construído. A emergência de novas demandas e a ação de agentes diversicados na produção imobiliária resultaram em espaços urbanos mais complexos, que caracterizam a ocupação urbana até este início de século XXI, registrando-se no Censo 2010, 2,6 milhões de habitantes em Salvador, município polo de uma ampla região metropolitana que atingia então cerca de 3,5 milhões de habitantes.
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Na década de 1970, o Centro Antigo de Salvador atingiu o seu auge na concentração das atividades econômicas de serviços e comércio e como praça nanceira, passando a s ofrer, a partir de então, um processo de esvaziamento e decadência, impulsionado pela realização de uma série de obras fora da área central, tais como: a abertura da Av. Paralela; a construção do Centro Administrativo da Bahia e a implantação de um novo centro comercial em suas proximidades; a construção do Shopping Center Iguatemi; e a implantação de muitos edifícios de escritórios, lojas comerciais e equipamentos urbanos. Rompeu-se com a estrutura urbana antiga para dar lugar a uma cidade espraiada, verticalizada, de uxos viários extensivos, segmentada por diversos usos, múltiplas funções e conteúdos sociais distintos. Bairros pobres justapostos a bairros de classes mais altas, ocupações informais dividindo espaço com grandes empreendimentos imobiliários, arquitetura e urbanismo moderno marcando a produção desse novo espaço urbano, cada vez mais segregador e excludente dos benefícios públicos. Atualmente a ocupação de Salvador praticamente já atinge os limites do município, se expandindo de forma conurbada para os municípios vizinhos, congurando uma cidade-metrópole com uma malha urbana contínua de mais de 20 mil hectares (200 km 2). Por outro lado, considerando-se o esgotamento gradativo de vazios com possibilidade de ocupação, constata-se atualmente uma área remanescente para uso habitacional em Salvador de cerca de apenas 3 mil hectares (30 km2) 6. Esse também constitui um importante aspecto a ser considerado, frente ao atual esvaziamento da área central da cidade. Esse crescimento populacional e espacial abrupto, caracterizado, no entanto, por uma ampla pobreza da maioria de sua população e acentuado desnível na distribuição de renda, aliado a uma frágil e descontinua administração pública do seu território, traz em si, profundos problemas estruturais, que irão se reetir na forma desigual, segregada, precária e excludente da ocupação e construção do seu espaço urbano, com impactos na área antiga da cidade.
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Nessa dinâmica urbana, o Centro Antigo de Salvador, nas últimas décadas do século XX, vai perdendo população e atividades de comércio e serviço, se degradando sicamente com a saída das atividades econômicas mais dinâmicas e a população de renda mais alta. Seu parque imobiliário passa a dar sinais de desgaste, com o fechamento e arruinamento de imóveis, vários
deles habitados por famílias pobres, que passam a ocupar também a encosta da escarpa entre a Cidade Alta e Cidade Baixa, condições estas que se acumulam aos já precários cortiços e vilas aí existentes, desde épocas anteriores. Nesse sentido, uma breve retrospectiva das intervenções ocorridas nessa área da cidade, associada às indicações dos projetos realizados nos últimos dez anos, permite que sejam identicados, a partir da segunda metade do século XX, três momentos distintos que caracterizam a forma como as ações empreendidas se revelaram no ambiente construído e no tratamento do uso habitacional nessa área.
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Num primeiro momento, até o nal da década de 1980, os antigos sobrados e casarões localizados no Centro e no Comércio, deixados pelas famílias mais abastadas, foram substituídos por modernas edicações, visando novos usos de comércio e serviços, além de prédios de apartamentos. As ações preservacionistas estiveram então focadas principalmente no tombamento e recuperação de monumentos e edicações históricas de uso institucional, mas não trouxeram impactos signicativos para o Pelourinho e adjacências, densamente habitado por famílias de baixa renda, moradoras em cortiços. Além de intervenções pontuais, são empreendidas ações de cunho assistencialista, visando integrar a população pobre residente, em sua maioria afro-descendentes, observando-se poucos desdobramentos efetivos na melhoria habitacional. Essa área, que já vinha sofrendo um intenso processo de decadência e evasão das atividades econômicas mais dinâmicas e da população mais abastada, foi tombada em 1984 pelo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e, em 1985, reconhecida como Patrimônio da humanidade pela UNESCO. Nessa época, a Prefeitura, à frente das iniciativas para recuperação dessa área, convidou arquitetos de renome, como Lina Bo Bardi, para desenvolver projetos de reabilitação de trechos degradados. Além da preservação histórica, foi incorporada a ideia de fortalecer as raízes africanas sociais e culturais, o que foi revelado nos vários projetos realizados por essa arquiteta para o Centro Histórico, entre 1986 e 1989, como estratégia de propagação de outras iniciativas similares. Dentre eles, destacam-se, o Belvedere da Sé, Complexo Barroquinha, Complexo da Ladeira da Misericórdia, Casa de Benin, Casa de Olodum; Fundação Pierre Verger.
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Essa estratégia foi modicada a partir da atuação mais efetiva do Governo do Estado na área, que passou a privilegiar projetos de incentivo ao crescimento turístico na cidade, tendo o Pelourinho como porta de entrada, ações que deram início a um segundo momento de intervenções nessa área. Inicia-se a partir da década de 1990, quando estava em curso um intenso processo de esvaziamento das atividades de comércio e serviço nessa área, movidas pela implantação de grandes shoppings e edifícios comerciais nas novas áreas de expansão da cidade, bem como pela saída de muitas instituições e órgãos públicos estaduais, esses transferidos para o novo Centro Administrativo da Bahia, na Av. Paralela, em 1972. Desde então, ocorre uma evasão signicativa de atividades bancárias e de escritórios privados da área do Comércio e do Centro, atraídos pelo novo centro urbano, na região do Iguatemi. A partir de 1992, o Governo do Estado, por meio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e da então Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (Conder), iniciou uma grande intervenção na área do Pelourinho, tendo como diretriz o “Plano de Ação Integrada do Centro Histórico de Salvador”, projeto concebido em sete etapas, que visava realizar uma intervenção por quarteirões, abrangendo toda a área, com cerca de 12 ha. Esse projeto de revitalização do Pelourinho, de grande impacto na área do Centro Histó rico, dinamizou o comércio e serviço, com ênfase nas atividades voltadas ao turismo, eventos festivos, musicais e outros entretenimentos, incentivando o surgimento de bares, restaurantes e butiques, em detrimento do uso habitacional. Os cortiços passaram a ser sistematicamente eliminados, com a indenização dos seus antigos moradores, com valores muito baixos, insucientes para aquisição de novas moradias, fazendo com que a maioria dessa população passasse a ocupar informalmente áreas nos arredores, sobretudo os prédios fechados e em ruínas, bem como as encostas e áreas livres próximas. Foram também criados novos espaços abertos para eventos, tais como as praças Tereza, Batista, Pedro Arcanjo e Quincas Berro d’Água, Praça Arte, Cultura e Memória, utilizando de forma agregada os quintais de antigas residências, no miolo das quadras, além de estacionamentos periféricos, na Baixa dos Sapateiros ao Pelourinho. Transformou-se, assim, essa grande área, em um shopping cultural .7 Os principais parâmetros urbanísticos desse plano foram:
restauração, aplicada aos imóveis mais importantes; recuperação predial, mantendo a volumetria e fachada, com mudanças nos espaços internos;
conservação e manutenção dos imóveis em bom estado;
construção de equipamentos em áreas vazias e utilização de imóveis em ruínas;
agenciamento, urbanização e paisagismo, com a criação de praças no interior das quadras;
Implantação de estacionamentos nas áreas de entorno;
melhoria de infraestrutura e remanejamento do tráfego, com fechamento de ruas.
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As novas atividades econômicas criadas, com forte subsídio estatal, além da privatização de espaços públicos nessa área, receberam um regime de segurança ostensiva e houve o incentivo às atividades culturais dos movimentos musicais da cultura afro-baiana. Muitos pontos comerciais tradicionais voltados para a população local também foram esvaziados e progressivamente. As obras se estendem vigorosamente até os anos 1996/97, nas seis das sete etapas previstas, sofrendo desaceleração a partir de então, diante dos altos investimentos públicos realizados e da pouca efetividade econômica dos novos pontos comerciais. De 1992 a 1996, foram investidos cerca de US$ 100 milhões em obras de infraestrutura, praças e intervenções prediais. Conforme previsto inicialmente, US$ 85 milhões era a estimativa para a conclusão das sete etapas do projeto de revitalização do Pelourinho, basicamente recursos estaduais, sendo investidos 3,9 milhões em indenizações para as famílias relocadas. Nas seis primeiras etapas, cerca de 72% dos imóveis previstos (531 dos 734) foram recuperados, 2.909 famílias foram relocadas, de um total de 470 imóveis. Desses imóveis, o governo baiano adquiriu 432 e obteve o usufruto de 133 (FERNANDES, 2006). Essa ampla intervenção, se por um lado converteu o Pelourinho em uma das atrações turís ticas mais conhecidas e visitadas do País, aumentando signicativamente o número de visitantes e a ocupação de hotéis, ao criar uma nova condição de cenário, com o seu casario multic olorido e espaços comerciais, para a “cidade espetáculo” , também promoveu um grande esvaziamento do
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seu conteúdo de “cidade permanente” , com a retirada maciça da população moradora do Pelourinho, que passou de 6,7 mil, em 1991, para cerca de 3 mil habitantes, em 2000, conforme dados dos censos respectivos do IBGE. A retirada maciça dos antigos moradores e a atração de um mercado informal nessa área, além dos laços sociais existentes, são alguns dos fatores que contribuíram, nesses últimos anos, para promover a ocupação intensiva das encostas próximas do Pilar, Lapinha e Santo Antonio e Taboão, além do surgimento de novos cortiços na Baixa dos Sapateiros e Saúde, seguidos pela ocupação sistemática de imóveis ociosos e ruínas, conforme já assinalado. Em 2004, por força de um Termo de Acordo e Compromisso (TAC), envolvendo o Ministério Público e associações de moradores locais, iniciou-se o primeiro projeto habitacional, na 7ª Etapa da recuperação do Pelourinho, com nanciamento do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, e do Ministério das Cidades. O novo projeto propunha receber os antigos moradores em condições de aluguel, além de novos moradores,. Do total de 337 unidades habitacionais e 55 pontos comerciais previstos para a 7ª. Etapa no TAC, foram entregues apenas 11 moradias, em dois imóveis 8. Esse é o marco inicial de um terceiro momento, que se caracteriza por trazer a discussão da inserção de moradias na área central, numa perspectiva preservacionista mais ampla, tendo como pressuposto a implantação de atividades mais dinâmicas e duradouras para a área do Centro Histórico, como garantia do direito a moradia e cidades sustentáveis, perspectiva respaldada pelo Estatuto da Cidade, fortalecida pelo então recém-criado Ministério das Cidades. Passado o encantamento do “sucesso”, sob a tutela permanente do Estado, os resultados então já apontavam para a insustentabilidade dessa estratégia de mercado efetivada, com o fechamento sucessivo de grande parte dos novos negócios implantados, levando tanto os comerciantes aí instalados quanto a população a fazer fortes críticas ao “estado de abandono” e “insegurança na área”, condições apontadas para a progressiva fuga de visitantes. Sendo o Governo do Estado da Bahia o principal gestor dessa área, tanto na contratação de eventos quanto na manutenção do amplo patrimônio desapropriado na intervenção no Pelouri nho, a mudança de gestão municipal, a partir de 2005, não trouxe iniciativas para essa área, mas criou o Escritório de Revitalização do Comércio, na Cidade Baixa, também amplamente esvazia-
da nas últimas décadas, como o novo vetor de crescimento leste da cidade 9. Na questão habitacional, salienta-se como iniciativa da Prefeitura, nessa gestão, a denição de Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, identicando no Centro Histórico as ocupações informais consolidadas da Vila Nova Esperança e do conjunto de casarões da 7ª, Etapa, denidas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU de 2008.
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Já a nova gestão estadual, iniciada em 2006, cria, em 2 de outubro de 2007, o Escritório de Referência do Centro Antigo – ERCAS, pelo Decreto Estadual nº 10.478, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Tem como nalidade coordenar um plano de ações e atuar como um espaço de conciliação de ações, propostas e programas para a área, além da captação de recursos para viabilizar projetos e encaminhar as demandas locais.
a l e g n a
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Entre 2009 a 2010, o ERCAS deniu o Plano de Reabilitação Participativo para o Centro Antigo de Salvador, seguindo as diretrizes do Programa Nacional de Reabilitação de áreas Centrais, já mencionado. Para sua elaboração, contou com o apoio de consultorias especializadas contratadas pela UNESCO, com prossionais locais, na sua maioria professores-pesquisadores atuantes nas áreas temáticas abordadas e com uma ampla colaboração de entidades civis e instituições das três esferas de governo. Deniu como área de abrangência a área Contigua à Área de Prote ção Rigorosa do Centro Histórico de Salvador, de acordo com a Lei 3289/1983, abaixo indicada. Com uma área de abrangência quase dez vezes maior que a poligonal de tombamento do Centro Histórico – CHS (0,78km2), atingindo o perímetro do Centro Antigo de Salvador – CAS (6,45 km2), essa poligonal adotada corresponde ao conjunto integrado de ocupação da cidade até o século XIX. O sentido de complementaridade do CHS e do CAS, seja na diversicação de renda, seja relativo a um maior leque de atividades, constitui um importante elo territorial na proposta apresentada, com vistas a alcançar a sustentabilidade econômica, social, urbanística e ambiental desse importante sítio, considerando sua diversidade e potencialidade de fortalecimento na inserção urbana. “Tais proposições têm como metas: o resgate da função habitacional, o fomento das atividades econômicas e atração de novas, o incremento do turismo cultural, a dinamização do bairro do Comércio e do Porto, a requalicação dos tecidos urbanos, dos espaços e dos equi pamentos culturais, além de atrair a população de Salvador para freqüentar um espaço cultural, onde concentrasse a memória da cidade ...” (BAHIA, 2010: 9).
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