AS EMOÇÕES QUE NOS FABRICAM Vinciane Despret
Introdução O décimo segundo camelo
Conta-se que de países longínquos, tão diversos quanto as ilhas do Pacífico Ocidental, as terras glaciais do Alaska, o Japão, a profundidade do deserto egípcio ou alguns países da África negra, antropólogos voltam com novas emoções, desconhecidas para nós. Estas emoções novas, das quais nos dizem, aliás, que elas são difíceis de traduzir, ganham os nomes estranhos de song, de metagu, de amae, de ikari, e outras ainda. Nossas almas não parecem conhecê-las, contudo, se nos esforçamos para dar palavras de nossa língua, elas se assemelham a certas emoções que nós conhecemos, o medo, a cólera justificada, ou ainda o sentimento da criança mimada por sua mãe. Mas estas emoções, dizem os antropólogos, são dificilmente acessíveis, e nós não poderemos compreendê-las plenamente plenamente senão se recriarmos o mundo que as viu emergir, e que lhes deu seu sentido. Os antropólogos que interrogam as almas daqueles a quem eles se dirigem, foram batizados etnopsicólogos, sugerindo com isso que as almas, por elas mesmas, poderiam diferir conforme as culturas que as acolhe. Eles nos narram que algumas das emoções que nós conhecemos, e que nós sempre tínhamos pensado universais, parecem desconhecidas em outros lugares, como a cólera. Mais inacreditável ainda, parece que algumas de nossas emoções, justamente aquelas que nós pensávamos naturais, arcaicas ou biológicas, aquelas que nós críamos inscritas em nosso fundo comum de natureza, não existem para outros a não ser se forem cultivadas, e que, por exemplo, se não forem ensinadas a seus filhos, é arriscado que elas jamais emerjam: como é o caso do medo. Pareceria assim, que nossas emoções, que sempre foram para nós de uma evidência tão íntima, estas emoções que são sempre tão internas para nós, tão naturais, tão biológicas, tão transbordantes, estas emoções cuja autenticidade mesma nos fascina, se constitui para os outros de uma maneira muito diversa. Parece mesmo que as questões que nós dirigimos às nossas emoções, a maneira pela qual nós nos interrogamos habitualmente para defini-las ou explicá-las, não faz muito sentido para as pessoas de outras culturas. Vocês não podem, dizem os antropólogos, pedir a um Ifaluk ou a um chinês para responder à questão do sentimento evocando o que se passa no interior de suas cabeças, porque não é assim que as emoções são interrogadas por eles. Vocês não podem lhes perguntar, dizem ainda alguns
[1] Comentário: Comentário:
dentre eles, se as emoções são naturais, ou ainda se elas são autênticas, porque esta questão não se coloca para eles nestes termos, e até mesmo, não se coloca de maneira nenhuma. nenhuma. E se vocês lhes pedissem para evocar a relação entre razão e emoção, seria muito provável que eles te olhassem com um ar surpreso e pensassem certamente que os Ocidentais têm preocupações bem estranhas. Esta busca que nos conduz a interrogar os “outros” e que retorna a nós sob a forma de uma lição de contraste, mina o sentimento de evidência com o qual nós pensamos nossas emoções. Nós as definimos como naturais, autênticas, universais, nós as opomos à razão, está bem aí o modo como nós a tomamos a sério, o modo pelo qual parece que elas se impõem à nossa experiência. À luz deste "por em contraste", nós nos damos conta de que estas características constituem de fato a maneira pela qual nós cultivamos as emoções: a natureza se torna, neste lugar, isto que em nós, se cultiva; a autenticidade que se constrói; a universalidade que nos singulariza. Pode-se, desde então, começar a compreender este fato de aparência tão surpreendente: o fato de que nossas questões possam não ter muito sentido, para aqueles a queles que os etnopsicólogos interrogam; o fato de que nós não podemos esperar grande coisa se pedirmos a um Ifaluk para nos contar a emoção como uma experiência sobre a qual a razão não tem nenhum domínio, a um chinês para descrever o que se passa num nível mais íntimo quando ele está emocionado, ou a um japonês para falar de um eu autêntico que deveria emergir a partir das experiências emocionais. O contraste entre o fato de que estas emoções fazem sentido para nós e não fazem da mesma maneira para os outros pode, por sua vez, guiar nossas práticas científicas para a via da reflexividade. O primeiro momento deste retorno reflexivo se apresenta de fato sob a forma de um paradoxo: como o que nós pensamos sob o signo da íntima evidência se faz ao mesmo tempo objeto de um tal questionamento, de um tão intenso interesse, ao ponto em que nós tivemos que, além do mais, interrogar os outros para definir a emoção? Como aquilo que nós pensamos como tão evidente pode ser objeto deste inacreditável acúmulo de teorias, desta proliferação de escritos, de definições, de explicações e de controvérsias? Muitos dos meus amigos cientistas a quem eu dizia querer estudar o problema das emoções me respondia rindo: “as emoções? Você não sab e no que está se metendo! Ninguém chegou chegou a um acordo. Há tantas teorias quanto teóricos, ninguém afinal sabe o que é.” Quantos cientistas afirmam que ninguém sabe o que é, e aí está o paradoxo, que poderia fazer rir: justamente, a emoção não é aquilo que todos nós conhecemos? Como pretender que ninguém saiba isso que ela é uma vez que nossa cultura se singulariza pela intensidade de seu interesse por ela? Basta ver como
[2] Comentário: Comentário:
nos romances, nos filmes, nos poemas, e nas mais antigas tragédias pelas quais são habitadas; basta escutar também a maneira pela qual cada um de nós fala dela. Levada ao extremo, esta afirmação gostaria de dizer então que nós sabemos o que é a emoção no todo, e que somente os cientistas não teriam acesso a este saber ou, em outros termos, que o saber da emoção resistiria à ciência? É uma hipótese que mereceria ser considerada. Mas, há uma maneira mais simples e menos radical de traduzir esta proliferação de explicações que desembocam em um “ninguém sabe verdadeiramente”: nossas ciências se definem também como herdeiras deste interesse pela emoção, mas elas as articulam aos seus projetos próprios, às suas exigências e entre estas últimas, àquelas que presidem à definição disto que é, para eles, “saber”. O fato de que a multiplicidade das concepções possa se traduzir tão laconicamente em um “ninguém sabe” ilustra então tanto a singularidade do acesso privilegiado para nossas ciências, quando a diversidade das formas que podem tomar esta intensidade de interesse pela emoção. Neste sentido, o etnopsicólogo se apresenta como uma das modalidades pelas quais as práticas que interrogam o que é ser um homem, isto que é ter uma alma, e o que é estar emocionado, uma modalidade que prolonga este interesse pelo “saber” da emoção, e multiplica as definições. Torna-se então interessante perguntar a esta prática etnopsicológica, na via reflexiva que ela contribui para abrir e para criar, as razões que a conduzem a ir buscar em outro lugar outras definições da emoção, definições que, somando tudo, não podem senão complicar um pouco mais o problema e multiplicar as explicações. Certamente, nós somos curiosos, e esta curiosidade nos singulariza. Certamente ainda, nosso interesse pela emoção utiliza todos os recursos para nutrir esta curiosidade, e para prolongar a cultura. Mas esta curiosidade não se resume a um simples apetite de saber os outros: ir buscar alhures não é apenas complicar o problema, é aprender a deslocá-lo, a colocá-lo em perspectiva, quer dizer a nos olhar “em perspectiva”. A curiosidade que nós tínhamos pelos outros se prolonga então na cultura de uma paixão: a paixão pelo espanto. A curiosidade pelos outros retorna em espanto de nós mesmos: eis nos a nos olhar, à luz deste contraste, como criaturas bem estranhas, eis nos a nos olhar como “outros”; eis nos a nos surpreender a nós mesmos em perspectiva. Imaginemos que um antropólogo extraterrestre nos chegue com o projeto de estudar as culturas terrestres, e que ele se empenhe em analisar a maneira pela qual, entre outros, nós, ocidentais, nos descrevemos. Haveria, ele poderia dizer ou escrever, entre os terráqueos, uma cultura bem surpreendente, que se auto nomeia cultura moderna. Estas pessoas apresentam uma crença bem curiosa: primeiro, elas falam geralmente delas mesmas
[3] Comentário:
como se elas fossem habitadas por duas pessoas diferentes, as quais elas dão dois nomes bem distintos. Elas batizam a primeira destas pessoas “Razão” e a segunda “emoção”. Elas descrevem estas duas entidades que as habitam como isto que as faz mexer e agir. Estas duas entidades parecem se comportar de maneira estranha entre elas, e nós poderíamos dizer, quando se analisa a maneira pela qual eles falam delas, que elas têm relações muitos conflituosas. Elas situam todas as duas entidades no interior de seu organismo, mas consideram que a primeira se aloja na cabeça, e que a segunda pertence ao corpo: elas dizem também que essa última é mais profundamente escondida, muito mais antiga. Estas entidades seriam de qualquer maneira, neste sistema de crenças, como um ancestral vivo nessas pessoas, um ancestral universal. Elas as descrevem aliás, nestes termos, falando de sua origem primitiva ou arcaica. Parece que este ancestral habita vários reinos do vivo, mas não todos. Nós não conhecemos muito bem o seu sistema de classificação, mas parece que os organismos vivos não móveis não são habitados por ela; e que entre os vivos móveis, alguns seriam dotados desse ancestral e outros não (é necessário acrescentar que a primeira entidade, batizada “Razão”, parece se distribuir de maneira mais parcimoniosa ainda). Algumas de suas descrições poderiam fazer pensar que elas crêem que este ancestral, ou esta entidade, de fato, “possuiria” o corpo, mas isto não está sempre muito claro. A relação com este ancestral não é das mais simples: em certos casos, eles a valorizam, e a descrevem como autêntica. Parece que esta autenticidade lhes aparece como uma qualidade particular, e que ela é privilegiada no sistema de valores. Não nos é fácil traduzir o que este termo “autenticidade” recobre. Elas dizem, por exemplo, que esta parte delas mesmas é mais verdadeira, e isto, por razões bastante complicadas. Elas explicam que esta autenticidade é a característica daquilo que elas chamam de natureza (pode-se aliás, observar que as duas entidades parecem corresponder a dois mundos diferentes). Pode-se igualmente pensar que esta característica da autenticidade refere, em seu sistema de classificação, àquilo que elas não controlam, mas que elas dizem dever controlar. Quando elas se referem nitidamente a esta necessidade de controle, a representação do ancestral aparece como uma figura ambivalente. Com efeito, se elas valorizam este ancestral que vive no interior delas mesmas, se elas falam muito a seu respeito e se insistem sobre suas qualidades, elas parecem, por outro lado, temê-lo: elas não cessam de lembrar que elas podem ser ultrapassadas por ele, e que elas são, muitas vezes, suas vítimas passivas. Elas dizem ainda que é à outra entidade que elas se referem para dominar isto que elas nomeiam de emoção, e que, paradoxalmente, embora ela seja muito menos antiga, elas a consideram como a mais sábia. Certamente, deveria continuar nosso extraterrestre, nós não encontramos apenas alguns entre estes
ocidentais, e parecia que estas crenças ou estas maneiras de ser habitado por duas entidades pode, entre eles, variar consideravelmente: alguns não temem o mais antigo; outros não crêem nisto e pensam que estas duas entidades não são duas, mas uma só; outros ainda não pensam que a emoção venha da natureza, mas que seria mais uma entidade fabricada pelo o que eles chamam cultura. É ressaltada entretanto, de nossas observações, que poderia concluir nossa viagem, que estes modernos são todos fascinados pelo o que eles dizem agir de dentro deles mesmos, e que eles não cessam de falar, de colocar questões a seu respeito, e até mesmo de criar em laboratório, dispositivos que podem ativar estas entidades. O contraste, assim radicalizado, poder ter um efeito devastador. Mas sua ironia não me parece poder nos conduzir mais longe do que esta desconstrução. Ela não pode, em todo o caso, nem nos permitir compreender que os contrastes se constroem, nem nos ajudar a explorar, tomando a sério a maneira pela qual nós cultivamos as emoções. Deixemos portanto aí este explorador costurado pelo fio branco e retomemos melhor o contraste tal como ele se constrói efetivamente, de tal maneira que ele me p ermita hoje falar de nossas emoções como de alguma coisa que perdeu seu caráter de evidência. A primeira evidência com a qual os etnopsicólogos tiveram que se resignar a romper e sob a qual circularia nossa concepção das emoções é a evidência de sua universalidade. As emoções desconhecidas por nós são cultivadas em outros lugares, algumas de nossas emoções apresentam inegavelmente um caráter local. Mas estas diferenças poderiam sempre se traduzir em termos de leves variações sobre um fundo natural e, portanto, universal – a cultura vem depositar algumas sombras sobre o belo tecido virgem da natureza. Por outro lado, a constatação segundo a qual “nossas” questões não fazem muito sentido para os outros convida muito mais seriamente a repensar esta universalidade. O fato de que isto se acompanha do espanto assinala o êxito do contraste: como, se nossas emoções são todas universais, se elas pertencem ao velho fundo de natureza que unifica nossas experiências e as torna idênticas para além das culturas, pode acontecer que “nossas” questões a propósito das emoções não serem, elas também, suscetíveis de sempre produzir respostas semelhantes às nossas? O espanto, para os outros, se transforma aqui também em um espanto reflexivo: eis nos a nos espantar de que estas questões que nós remetemos a nossas emoções, e que parecem surpreendentes e até incompreensíveis para os outros, possam fazer sentido para nós. À luz do contraste, estas questões perdem também seu caráter de evidência, e começam a nos parecer um pouco estranhas. Contudo, elas fazem sentido para nós. São as questões acima que os psicólogos, sociólogos e biólogos nos colocam, e é com elas que se constitui nosso saber científico da
[4] Comentário:
emoção. Nós podemos desde então tentar compreender como estas questões estranhas são articuladas em nossas concepções das emoções e as fazem prolongar. Pode-se, por exemplo, espantar-se de que algumas de nossas práticas possam, com total coerência, interrogar os sujeitos do laboratório a propósito disto que é a emoção isolando-as completamente; que elas possam lhes pedir, na maior solidão, para fazer bater seu coração um pouco mais rápido, produzir substâncias misteriosas que tornam a emoção legível, preencher questionários, reconhecer em outros rostos, que não são o seu, rostos aliás, tão isoladas quanto ela própria, as expressões de uma paixão. Por mais surpreendente que seja esse dispositivo, ele não é menos verdadeiro porque ele está totalmente de acordo com certas dimensões da emoção que nós privilegiamos: não é ela, antes de tudo, segundo nossa concepção, uma aventura íntima? Nós esperaríamos dos outros que trouxessem outras respostas a nossas questões, eis que nossas questões parecem dever estar elas mesmas submissas à interrogação, até mesmo à desconstrução. Não são somente nossas concepções da emoção que se trata de minar a evidência, é a maneira pela qual nossas práticas as definem e as interrogam que nós aprendemos a colocar em perspectiva. Nós podemos, por exemplo, tentar compreender como e porque estas práticas, como a psicologia experimental e social, a biologia e a sociologia privilegiam certas concepções da emoção (naturais, universais, íntimas, internas, somáticas, autênticas), e como as questões, que elas ambicionam resolver determinam estes privilégios. Eles poderiam me responder que as práticas científicas prolongam nossas concepções da emoção, as dimensões que são privilegiadas em nossa cultura. Não é isso que eu sugeria ao afirmar que as questões dos cientistas estão bem articuladas com nossas concepções e que elas as perpetuam em seu campo próprio? Eu espero complicar um pouco mais a resposta “concretamente”, esta resposta um pouco simples que, finalmente, reduz nossas ciências ao papel de herdeiras passivas de uma tradição que tem nela mesma o poder de se perpetuar. Esta resposta, com efeito, não nos diz como estas concepções chegam nas nossas práticas, e muito menos como ela não é capaz de dar conta das transformações pelas quais estas concepções sofrem, as exigências as quais elas respondem e que contribuem certamente para prolongá-las, mas também para reinventá-las e para retraduzi-las. Etnopsicologia de nossas práticas
[5] Comentário:
[6] Comentário:
Nós podemos, para ilustrar essa perspectiva, analisar como a fascinação pela autenticidade da emoção se traduz no laboratório de biologia ou de psicologia experimental. Esta fascinação pela autenticidade da emoção é bem uma característica de nossa tradição. Nós a exprimimos em linguagem corrente, de diversas maneiras: a emoção nos chega, ela nos excede: nós não controlamos nossas emoções, “nós somos a preza de nossas paixões”, diríamos para designar a autenticidade de uma experiência sobre a qual a razão tem pouco domínio, a permanência de um núcleo arcaico de natureza sob as camadas da cultura ou do social e de seus artifícios. Nós dizemos também que “elas revelam o que nós sentimos verdadeiramente”, e eis nosso rosto que trai nossa emoção como se a verdade ressurgisse por detrás da máscara. Esta fascinação pela autenticidade é reencontrada no laboratório. Mas ela não é reencontrada sob a forma de um simples prolongamento, ela traduz (e se traduz em) um certo tipo de exigência; ela concorda de fato de maneira privilegiada aos imperativos do fazer ciência. Com efeito, a esta autenticidade da emoção que nós cultivamos se articula a fascinação pela autenticidade daquilo que trata-se de saber e do acesso mais igualitário para garantir isso: trata-se para cada uma das práticas e das teorias, de achar o que permite o acesso à autenticidade da emoção. Serão desde então privilegiadas todas as dimensões da emoção as mais igualitárias para garantir os acessos autênticos. Uma das controvérsias, a mais recorrente no campo do saber das emoções consiste em determinar se as emoções são naturais e biológicas, ou se elas são culturais. É de todo evidente, quando se passa em revista toda a literatura científica, uma das questões mais importantes. Esta questão reflete certamente uma das características de nossa tradição, aquela que divide o mundo entre sujeito e objeto de natureza e sujeito e objeto de cultura: sob este título, a emoção deve tomar lugar no contraste. Mas, além dessa característica de nossa tradição, a controvérsia testemunha também a fascinação pela autenticidade: a questão desse velho debate, retraduzindo-a no campo científico, é de saber qual emoção poderá ser trabalhada em boa causa, em causa autêntica. Aquela que se dá como emanação do corpo, como sugere a versão biológica? A universalidade e a naturalidade de uma emoção é definida como não contaminada pela cultura, esta oferece todas as garantias de autenticidade: este velho fundo de natureza do qual testemunha a emoção não constitui a parte mais imutável, a mais universal de todos os humanos? E a legibilidade tão particular do corpo, deste corpo emocionado que não pode mentir, oferece ele mesmo a garantia da autenticidade do acesso. A emoção sempre nos trairá. Ela escapa à vontade do sujeito, desta forma ela pode se revelar autenticamente. Certamente, poder-se-ia imaginar que a autenticidade torna-se muito mais problemática para aqueles que mantêm outra concepção, a concepção social ou culturalista.
[7] Comentário:
[8] Comentário:
Aqui, não é mais a questão de um corpo que não poderia mentir, não é mais questão de desvelar a natureza sob os artifícios do social. Portanto, a preocupação da autenticidade se mantém presente. Mas ela se retraduz de novo, e desenha uma outra configuração: não seria autenticamente humano senão aquelas emoções sob as quais se imprime a cultura. O sentido de autenticidade da emoção se define aí de maneira um pouco diferente, porque ela se refere à vocação cultural do homem, mas ela articula sempre as mesmas dimensões do contraste. A questão da autenticidade do acesso é tomada aí também de outras formas, mas ela se inscreve no mesmo registro, naquele do acesso verídico a isto que é verdadeiro: assim, torna-se totalmente legítimo pedir à emoção que testemunhe a sua sociabilidade isolando o sujeito, uma vez que está aí o modo privilegiado pelo qual o cientista pode ter acesso a este fundo íntimo e autêntico ao erradicar tudo isto que poderia fazer figura de parasita, tudo aquilo que não poderia ser controlado na experiência quando ela pede ao sujeito para reagir. Nesta perspectiva, a versão que define a emoção como uma reação relativamente independente da vontade se articula particularmente bem aos dispositivos do laboratório, uma vez que este privilegia o acesso aos objetos que se pode fazer reagir, e define estes como os que devem reagir. O laboratório se encarregará de construir as condições nas quais a emoção se efetua como passividade. Esta coexistência de duas concepções contraditórias da emoção na paisagem teórica se prolonga num outro tipo de disjunção, também completamente recorrente e imperativa: a emoção, parece, deve escolher seu campo. Ela está no mundo? – sim, responderão uns, eu estou triste porque o mundo é triste, eu rio porque a brincadeira é engraçada, eu tenho medo porque o mundo é terrível. Ela está na alma? – sim, responderão outros, o mundo é triste porque eu o sou, a brincadeira só é engraçada porque eu rio, o mundo é terrível porque eu tenho medo. Ou ainda, outra possibilidade que deveria excluir o privilégio das outras duas sob o título de boa explicação, a emoção não seria uma emancipação do corpo? E os primeiros, que reprovam os segundos e os terceiros, teriam esvaziado o mundo em proveito do corpo ou da consciência, os segundos reivindicam dos outros o retorno da alma, do espírito ou do sujeito cognoscente; os últimos se escandalizariam daqueles que gostariam de fazer de nós anjos. Aqui também a questão da autenticidade constitui uma questão maior: trata-se não somente de achar a boa causa (o mundo, a consciência, o corpo), mas trata-se também de estabilizar esta causa – ou o mundo produz o sujeito emocionado, e é sempre a ele que o cientista poderia se referir; ou é a consciência; ou é o corpo, e é a este que o cientista se dirigirá, são eles que lhe garantirão o bom acesso. Mas não pode ser questão que a emoção
[9] Comentário:
[10] Comentário:
mude de causa, que ela transforme este em efeito, que ela se empenhe em resistir às determinações. É aí, sem dúvida, que reside a diferença essencial entre o romance e a psicologia: o que o primeiro assume construir sob um modo o mais indeterminado, a segunda se esforça em revelar em suas determinações; o primeiro exige que a emoção seja bem construída, o segundo que ela seja autenticamente revelada. Se todos os dois traduzem esta intensidade de interesse pela emoção, parece que seja na obediência à necessidade de disjunção que as ciências se delimitam o mais nitidamente do romance. Onde esta constrói e cultiva a indeterminação e de fato, o “nós” de sua intriga, deixando o leitor na perplexidade a mais livre – que se pense, por exemplo, nos romances de Henry James –, a psicologia se esforça em distribuir as determinações, o que é causa privilegiada e o efeito que resulta daí, tentam responder de uma vez por todas à questão recorrente de saber se é minha paixão que constrói um mundo apaixonante, ou se ao contrário, é um mundo apaixonante que me produz como ser apaixonado. Os acontecimentos que, no dispositivo do romance, misturam e complicam a seu bel prazer cada um dos candidatos ao título de causa e de efeito, estes acontecimentos que o romance cultiva como indeterminados, se inscrevem nos dispositivos das nossas ciências de maneira totalmente diferente: nós separamos tanto o corpo do mundo, quanto o corpo da alma, quanto a alma do mundo, segundo o privilégio concedido a cada um deles. E esta separação garante desde agora a autenticidade do acesso ao que nós ambicionamos saber, e a autenticidade daquilo que se trata de saber. Certamente nós poderíamos levar mais longe esta desconstrução: a lição do contraste pode nos incitar a multiplicar as questões reflexivas, e a desconstruir as articulações entre nossas concepções e as práticas que as prolongam e as efetivam. Nós podemos colocar a questão de saber como o que nós cultivamos como não negociável deve justamente se negociar para ser definido como tal, como isto que nós consideramos como natural deve ser cultivado para existir como tal. E nós podemos também fazer recuar esta questão reflexiva à vontade, até a vertigem ou ao paradoxo: nos espantamos disto que nós somos à luz disto que nós não somos para melhor nos compreender, para nos desiludir de qualquer maneira, participando finalmente desta fascinação pela autenticidade – nós vamos enfim nos “saber”. Eis nos, com a questão da autenticidade, na posição de um regador r egado. Nos é necessário medir aquilo que nos engaja ao fato de nos interrogar nestes termos. Manter-se nesta vontade de nos compreender ou de nos saber sob o único modo da desconstrução me parece não poder chegar senão a dois tipos de atitude, finalmente pouco interessantes: com a primeira, eu me veria optar pela ironia, com a segunda, eu me decidiria
[11] Comentário:
pela aceitação passiva. A posição do irônico consistiria em afirmar que nosso saber das emoções é apenas um conjunto de ficções relativas às nossas crenças – e nós poderíamos chamar de novo nosso extraterrestre falsamente ingênuo para nos dar outras lições de ironia. Na versão mais crítica, nós chegaríamos à conclusão de que nosso saber das emoções não deve ser nada mais do que uma longa sequência de divagações e de erros. Ou, esta ironia seria pelo menos paradoxal. Com efeito, para tirar as lições do contraste, eu me imponho, por um lado, de tomar o saber dos outros a sério, e por outro lado de tomar com a mesma seriedade o fato de que é a intensidade mesma de nosso interesse que nos conduz à interrogar e a construir o contraste. Inicialmente, seria pelo menos paradoxal rir desta intensidade do interesse e das formas que se pode tomar e de recusar aquilo pelo qual ele é prolongamento. Em seguida, não seria menos paradoxal não utilizar o saber dos outros senão como um modo de desqualificação do nosso. Com efeito, se a etnopsicologia como disciplina toma sua fonte na interrogação dos “outros”, o fato de nos inscrever no contraste faz então de nossa psicologia uma etnopsicologia entre outras. E a este título, da mesma maneira que nós tomamos a sério a etnopsicologia dos outros para criar uma perspectiva, nós devemos tomar nossa etnopsicologia a sério. Mas, tomar a sério não se resume ao segundo ramo de alternativa, aquele da aceitação passiva, aquele que se resumiria em afirmar que nosso saber revela nossa concepção das paixões e que nós não podemos nos pensar de outra forma a não ser esta que nós nos pensamos. Se, ao contrário da constatação irônica, esta constatação aberta não chegasse sobre nenhum paradoxo, é muito simplesmente porque ela não chega a nada. Vê-se mal, aliás, a razão de construir um contraste qualquer, ou o interesse de nos saber, se não for senão para emitir algumas lamentações quanto à indigência de nossa herança, e a fatalidade daquilo que ela produz. Ora, se nosso conhecimento das paixões é bem um produto de nossa herança, e si nós podemos mostrar como nossas práticas efetivam as concepções de nossa tradição, este saber e essas práticas são ao mesmo tempo o vetor desta herança: nosso saber certamente prolonga nossas concepções, mas ele as transformam também. E isto que eu poderei dizer participa desta transformação, e se torna vetor da herança. Não se trata de recuar a questão reflexiva de um corte, mas de interrogar ativamente isto a que o fato de ser vetor nos engaja: como fazer de nossa herança um problema e não uma solução? Como nos reconhecer como produtos desta herança, e nos engajar também como seu vetor? E, porque é para a etnopsicologia que as questões pelas quais nós herdamos puderam ser suscitadas, trata-se de definir como nós queremos utilizar o saber dos outros, o saber que nos torna outros do fato de termos reencontrado os outros, em uma nova maneira de colocar o problema daquilo que se
[12] Comentário:
[13] Comentário:
transmite,
e
daquilo
que
nós
queremos
fazer
do
que
é
transmitido.
[14] Comentário:
Uma herança a construir
Um velho homem, sentindo seu fim se aproximar, chama a seus três filhos, para dividir entre eles, aquilo que lhe resta de bens. Ele lhes diz: meus filhos, eu tenho onze camelos, eu deixo metade deles ao primeiro filho, um quarto, ao segundo, e tu, meu último filho, eu te dou a sexta parte. Com a morte do pai, os filhos ficam bem perplexos: como dividir? A guerra
da divisão parece tornar-se inevitável. Sem solução, eles se dirigem à vila vizinha, para pedir conselho de um velho sábio. Este reflete, pois coça a testa: eu não posso resolver este problema. Tudo o que eu posso fazer por vocês, é vos dar meu velho camelo. Ele é velho, é magro e muito valente, mas ele vos ajudará a separar vossa herança. Os filhos levam o velho
camelo e partilham: o primeiro recebe então seis camelos, o segundo três e o último dois. Resta ainda o velho camelo insignificante que eles puderam devolver a seu proprietário. O que nós podemos fazer disto que os etnopsicólogos nos tem trazido de suas viagens aos países de outras paixões me parece poder ser lido da mesma maneira que a solução que o velho homem propõe aos filhos herdeiros de uma herança a qual os filhos não sabiam muito bem o que fazer, e que não poderia ser transmitida tal e qual. Estejamos atentos, este décimo segundo camelo que foram buscar nossos antropólogos não é a solução – não menos do que ele não foi para os filhos – mas, ele transforma o problema sob um modo que exibe a possibilidade da construção. O décimo segundo camelo não constitui, ele mesmo, a solução, ele põe o problema do que nós vamos fazer. Isto que os outros são, isto que eles terão produzido como saber e como paixão, nos permite nos pensar de outra maneira, mas não nos diz como nos pensar de outra maneira, como nos apropriar desta herança se torna matéria a pensar. Tudo o que ele nos diz deste como, está no “sim” que os filhos conseguiram produzir, e no humor do mal-entendido que nós podemos ler aí. Os filhos não ficaram coagidos entre os dois ramos de um dilema que põe a herança em termos de solução: a aceitação tal e qual (ainda que seja preciso brigar para dividi-la) ou recusá-la. O “sim” que os filhos conseguiram produzir, e do qual emerge este modo de divisão propriamente inesperado, o “sim” que
[15] Comentário:
encoraja o dom do último camelo, não é nem a recusa ou a denúncia de uma escolha impossível, nem a aceitação pura e simples da herança. Os filhos conseguiram considerar que isto que seu pai lhes legou não era uma solução, mas um problema, o problema daquilo que eles poderiam fazer com aquilo que eles receberam. Eles tiveram que se tornar dignos de sua
[16] Comentário:
herança, e dignos da confiança da qual seu pai lhes testemunhou lhes legando alguma coisa a construir. Este “sim” dos filhos, e este modo de divisão inesperado que assinala o sucesso da transmissão, define então uma outra maneira de herdar: uma herança a se construir, e tudo isto que participa de sua construção se torna um devir possível desta herança; os filhos não herdaram somente onze camelos, eles se fizeram herdeiros de um problema e tiveram que definir a herança a partir deste problema. E é aí, eu penso, que reside a lição do humor; o humor que celebra, no paradoxo, a construção e a invenção inesperada disto que se transmite, e daquilo que torna esta transmissão aceitável. É para conseguir produzir este mesmo “sim” que eu queria então me ater, para criar as condições pelas quais nós podemos inventar uma nova relação com nossa herança, uma nova maneira de ser digno e de ganhar a confiança, uma nova maneira de nos por em acordo. Entre a tentação irônica e a aceitação passiva, eu gostaria de achar uma maneira de fazer herança, uma maneira que nos engajar ao mesmo tempo, como produtos e como vetores disto que herdamos: eu gostaria de me espantar, mas sob o modo do humor; eu gostaria de prolongar, mas sob o modo da invenção. Por um lado, eu gostaria de me espantar sob o modo do humor, me reconhecendo a mim mesma como o produto da história daqueles que busco seguir a construção. Eu posso rir com meu extraterrestre, mas eu sei que meu riso me designa como herdeira da fascinação pela autenticidade, já que ela traduz ainda, a vontade de nos “saber” autenticamente, e até mesmo talvez, a esperança inesquecível de que existe um saber mais verdadeiro da emoção, uma vez que nós seremos desembaraçados de todo o monte confuso de crenças. Por outro lado, eu gostaria de prolongar esta herança, mas sob o modo da invenção, e fazer de minha busca um dos vetores desta invenção. Na conclusão do livro Nascimento de uma teoria etológica, na dança do pássaro ???, eu já tinha feito a escolha do humor contra aquela da ironia. Ao longo do livro, eu já tinha analisado a maneira pela qual cada um dos etologistas observavam este estranho pássaro nomeado “craterope”, tentando responder à questão de saber porque este pássaro dança. Eu tinha tentando religar cada uma de suas hipóteses aos contextos, às histórias que mobilizaram estes pesquisadores, e nas quais, por sua vez, eles mobilizaram os pássaros. Eu poderia certamente sorrir ao observar que o pássaro descrito por Jon, etologista de Oxford cuidadoso na experimentação, se tornava ele mesmo um experimentador de talento, e inventava os dispositivos finalmente muito similares àqueles de seu observador para colocar o real à prova; eu não podia me impedir de notar que quando este pássaro recebia como porta-voz o etologista israelense Zahavi, ele começava a contar uma história estranhamente parecida
[17] Comentário:
[18] Comentário:
[19] Comentário:
àquela dos kibboutz, e se encontravam resolvendo os mesmo dilemas que aqueles que encontraram os pioneiros de Israel: mas eu aprendia, ao longo da minha busca, que os fios que guiavam a minha análise destas práticas e destes discursos, eram os mesmo daqueles que eu tentava desembaraçar: Se nós queremos aprender sobre nós mesmos analisando o discurso sobre os animais, é necessário aprender a rir de nossa incompetência face à relação sempre opaca na qual nós somos enredados. O riso nos perseguirá no momento em que nós nos encontrarmos tão presos nos laços que nós seremos – e todos desta vez – os regadores regados.
Entretanto, esta escolha do humor contra a ironia não me engajaria além desta posição de narradora perplexa: eu poderia mandar de volta para trás, cada um dos protagonistas desta comédia etológica; eu poderia deixar os teóricos discutir a questão de saber porque estes pássaros dançam, e me contentar em me interessar pelos motivos e pelos jogos das respostas; eu poderia deixar para o futuro o cuidado de encerrar as controvérsias, sem me preocupar, sem tomar partido, e concluir com uma confiança tranqüila: “Isto não impedirá os crateropes de continuar a dançar”. Minha relação com os saberes das emoções não pode mais se definir hoje como uma relação de relativa exterioridade, e esta confiança tranqüila que me habitaria então não me parece mais aqui colocada. Uma teoria etológica, por princípio, não impede um pássaro de dançar. Eu digo “por princípio” pois eu sei que uma teoria da ligação pode conduzir os cientistas, como o primatólogo Harlow, a impedir os pequenos símios de amar. Eu conheço bem demais os efeitos terríveis destes dispositivos que, em nome das exigências do “fazer ciência”, não encontraram para interrogar seus sujeitos e conhecer seus objetos, outros meios a não ser aqueles de destruí-los. O fato de que eu perco totalmente o humor quando eu me remeto a estes tipos de práticas situa bem o contraste: o saber de nossas emoções é um saber que nós levamos a sério, é um saber que nos afeta. A maneira pela qual nossos cientistas concebem os bons modos de definir e de interrogar as emoções, os dispositivos que eles criam, a maneira pelas quais eles se remetem a nós, não terá nunca conseqüências insignificantes ou indiferentes. Os saberes que eles produzem nos afetam, nos transformam, nos inventam e nós podemos nos inventar com eles: nós somos os produtos deles e podemos ser também os vetores. Vetor e produto da herança, é assim que nós podemos aliás definir sobre um modo positivo a relação aparentemente paradoxal de nossos saberes com a paixão, a relação de nossas práticas com nossas emoções: nosso saber é um produto daquilo que são nossas
[20] Comentário:
paixões, porque aquilo que elas são nos permite sabê-las; mas existe também o vetor, uma vez que aquilo que nós sabemos de nossas paixões, a maneira pela qual nossa cultura as define – compreendido aí isto que as ciências produzem como seus sujeitos – nos dá uma existência, e as faz existir. Da mesma maneira que nós construímos nossos mitos para nos inventar a partir deles, nós fabricamos nossas emoções afim de que elas nos fabriquem. Está aí a relação que eu gostaria de construir para a nossa herança: prolongar aquilo que nós recebemos; inventar e nos inventar no gesto mesmo do prolongamento. Desde então, as lições do contraste as quais eu nos convido a entrar para nos definir sob o modo do humor não se resume a uma desconstrução. Se é verdadeiro que eu tive necessidade dos outros para nos pensar de outra forma, para nos pensar da exterioridade e para aprender a me espantar, é a isto que nós somos, a isto que nós pensamos e a isto que nós podemos nos tornar que eu gostaria de me interessar. Como os filhos herdeiros, eu escolhi nosso décimo segundo camelo como um modo pelo qual nós apropriamos nossa herança, não como um meio de escapar ao problema que ela pode nos colocar. E é ao problema que eu quero me interessar: como descobrir nosso saber, como dizer nossas práticas sob o modo pelo qual eu saiba que ele vai fazê-los existir, que ele vai os transformar, sob um modo que eles oferecem uma possibilidade suscetível de nos interessar? Eu me situo, neste fato, em relação a este problema, na mesma relação que nossos cientistas têm com os seus objetos: uma relação de contemporaneidade, uma relação que faz com que as condições de produção de saber daqueles que interrogam são ao mesmo tempo as condições de existência do outro, o sujeito ou o objeto de interrogação, uma relação que caracteriza o inextrincável emaranhado do saber e de seu objeto, do saber e daquele que produz este saber. Quando o psicólogo social construtivista Keneth Gergen se interroga sobre os efeitos da disseminação das teorias psicológicas para o grande público, ele nota a existência de duas possibilidades contraditórias destes devires. Por um lado, os sujeitos interrogados realizam as predições. A ciência psicológica, como prolongamento da cultura e produtora de cultura, porque ela prolonga a tradição, torna alguns destes aspectos possíveis mais prováveis, e porque ela é produto da cultura, prescreve ao mesmo tempo em que ela descreve. A análise de Ian Hacking dá conta do fenômeno: as pessoas classificadas de uma
[21] Comentário:
[22] Comentário:
[23] Comentário:
certa maneira tem tendência a se conformar ou a tornar-se da maneira pela qual ela foi descrita. Mas por outro lado, não se pode esquecer que certas teorias são rapidamente invalidadas, e isto, paradoxalmente, pelo fato mesmo de que elas se tornaram um ingrediente do saber daqueles que ela descrevia. Pelo fato de ser verdade, uma teoria se torna falsa. Um
[24] Comentário:
exemplo simples e real permite ilustrar este paradoxo. Os pesquisadores do tema altruísmo, nos anos sessenta, foram principalmente ativados pelo escândalo do assassinato de uma jovem nova-iorquina, Kitty Genovese. Esta jovem mulher foi assassinada quando ela se apressava para entrar em sua casa. O assassinato durou perto de trinta minutos, ao longo dos quais seu assassino a esfaqueou múltiplas vezes. Apesar de seus gritos, e de seus apelos, nenhuma, das cerca de 30 pessoas que assistiam aquilo de seus apartamentos, reagiu, nem chamou a polícia. O escândalo foi enorme. Os psicólogos sociais tentaram compreender o que tinha se passado. Eles chegaram, entre outras conclusões, a pensar que as testemunhas não eram, de fato, nem monstros egoístas, nem malfeitores, mas que sua abstenção poderia se explicar em termos de dissolução da responsabilidade. Os pesquisadores confirmaram esta hipótese: quanto mais há testemunhas, menos as pessoas pensar dever reagir. E se a situação é ambígua, eles se referem as respostas dos outros para se determinar o que é que dá pra fazer. Menos os outros fazem, menos cada um será tentado a fazer ele mesmo. Mas, muito rapidamente, a teoria se torna inválida, e isto, pelo fato mesmo de que ela se tornaria um ingrediente de saber daqueles pelos quais ela pensaria descrever o comportamento. Porque os pesquisadores e a transmissão dos resultados tornaram conhecida a teoria da dissolução da responsabilidade, as pessoas tornaram-se muito atentas ao fato de intervir, e isto, tanto mais quanto maior fosse o número de pessoas. Diante do fenômeno da invalidação de um saber, por sua partilha, Gergen propõe juntar às teorias uma teoria dos efeitos teóricos do saber. Mas, se se seguir a lógica de sua proposição, esta deveria então ela mesma, se acrescentar uma teoria de seus próprios efeitos, e a regressão não cessaria, senão com a penúria dos pesquisadores ou, o que seria mais provável, um rápido silenciamento dos subsídios. Esta proposição, em último recurso, testemunha uma coisa: a impossibilidade da psicologia de se aceitar como cultura, como efeito e produto de cultura, uma vez que ela propõe considerar seus próprios efeitos sob um modo, digamos, esquizofrênico. Porém, mais do que uma regressão ao infinito que se inventaria sob o modo de metateorias cada vez mais complexas, sob o modo da história da história, sob o modo reflexivo, eu proponho que nós voltemos à especificidade das ciências que interrogam o homem: são ciências que estão engajadas, pois cada uma delas se inscreve no tempo inseparável daqueles que ela descreve-prescreve. E têm os riscos específicos que as caracterizam, os riscos do engajamento, os riscos que nos fazem definir o que nós produzimos como saber em termos de problema e não de solução. Cada um dos enunciados destas ciências, explica Isabelle Stengers, deve poder “ser colocado em risco por aquilo a que ela se endereça, as ciências ditas humanas não podem esperar produzir um saber confiável senão na
[25] Comentário:
medida em que elas não se endereçam aos “humanos” mas aos seres que elas sabem que são capazes de tomar posição quando à pertinência das questões que lhes são endereçadas” e eu acrescentaria, quanto à pertinência e ao devir das respostas que se empresta deles, ou que lhes são propostas. É, com efeito, em termos disto que é proposto que nós podemos ler a maneira na qual o saber torna-se um saber que se partilha e que se coloca em risco pelo fato de ser partilhado. Desde então, se a referência aos outros deve nos conduzir à melhor compreensão da relação de nossos saberes e de nossas paixões, com eu teria sugerido, este não é o projeto tranqüilo de um conhecimento mais lúcido daquilo que nós somos e daquilo que nós pensamento que este termo “compreender” quer traduzir. Compreender, escreve Isabelle Stengers, “não é, quando se trata de questão de ciência, descobrir o que preexistiria à questão”. Compreender, e nos encontramos aqui ainda com a figura de nosso último camelo, compreender é prender com, é “integrar em novas relações produtoras de história humana”. Compreender nosso saber das paixões se traduz não em termos de reflexividade, e de desconstrução da história, mas em termos de engajamento e dos riscos inerentes à construção de uma história. É aqui que a zona que eu vou tentar construir se revela a mais exigente, estão aí os riscos que definem minha posição: se eu me imponho olhar nossos saberes com a mesma curiosidade e a mesma confiança que aquela que nós manifestamos pelos “outros”, que nós oferecemos ao contraste, me é necessário ao mesmo tempo fazer existir, na maneira de sua fala, as possibilidades de tornar estes saberes, e as possibilidades, não de corrigi-los, mas de deslocar o que lhes parece incontornável. Visões do mundo, versões de mundos
Como construir essa zona de risco entre a crítica e a aceitação passiva, e me situar nas inumeráveis controvérsias e nas definições tão contraditórias da emoção? Como dar conta ativamente da coexistência de saberes divergentes sem trair o projeto que eu me incumbi, aquele de me espantar sem denunciar, aquele de rir e de tomar a sério isto que nos acontece e que pode nos acontecer, aquele de tomar com sem afirmar que tudo é válido, aquele de ser benevolente e de me reconhecer filha desta tradição que, no todo, suscita ativamente os devires possíveis para ela? Para me construir este acesso, eu escolhi cartografar nossas práticas definindo o que elas produziriam em termos de versões. Eu escolhi, de início, este termo por duas razões: primeiro porque me parecia, melhor que todos os outros, poder dar conta desta coexistência múltipla de saberes, de definições contraditórias e de controvérsias.
[26] Comentário:
Como dar conta da existência de tais controvérsias se não construindo a hipótese de uma multiplicidade de versões da emoção? Assim, por exemplo, porque ela coloca em cena uma versão da emoção como emanação do corpo, o laboratório efetua esta versão pedindo ao corpo para produzir tanto os batimentos cardíacos, quanto uma resposta eletro-dérmica, quanto uma resposta à injeção de adrenalina, e cada um destes sujeitos, cujo corpo, assim colocado em cena e submetido aos constrangimentos do dispositivo, estará de acordo com os cientistas para dizer que ele se emocionou. Por exemplo, ainda, porque ele põe em cena uma versão segundo a qual a emoção vem do encontro com o mundo e com os outros, a experiência da psicologia social ou cognitiva submeterá seu sujeito a este encontro, em todo o caso, a uma variante purificada disto, que produzirão tanto a cólera, quanto a alegria, quanto o medo ou a emulação, e construirá deste fato, a versão segundo a qual a emoção é o reencontro ou a interpretação do mundo. E cada um destes sujeitos interrogados se convencerá de que, com efeito, ele esteve bem emocionado. Neste sentido, o termo “versão” que eu escolhi para dar contra desta coexistência, apresenta as mesmas características que o termo “alternativa”: ele remete sempre, para além dele mesmo, à existência de uma outra versão, ele remete sempre à multiplicidade e guarda na memória a existência de outras versões. Isto me parece dar conta melhor da paisagem de nossas práticas: porque elas guardam na memória as outras versões, cada uma delas que se põe em cena no dispositivo, prolonga ou reativa algumas dentre elas. O laboratório que constrói sua versão obedecendo aos imperativos do fazer ciência tem necessidade de um objeto que possa reagir; ele reativará a versão remetendo também, para além dela mesma, à existência de outras versões, aquelas que não contam a mesma história, ou que a fazem variar; ela guarda na memória aquilo a que ela se opõe, e contra o que ela continua a se constituir. Assim, a versão que define a emoção como cultural e social não é uma simples versão daquilo a que ela se propõe, ela é também “contraversão”, e guarda na memória este contra ao qual ela se define e se constitui: dizer da emoção que ela é cultural quer também dizer que ela não pode ser natural, ou que ela não é corporal, ou ainda, que ela não é biológica. Esta versão guarda na memória a história no seio da qual ela é constituída, a história da separação entre natureza e cultura, a história do contraste entre razão e emoção, a história da separação entre o homem e o animal, e a história das múltiplas versões que participaram desta partilha. Mas há algo mais que me faz construir minha cartografia em termos de versões, alguma coisa que deve me permitir ir além desta simples representação (mise em scène) daquilo que se prolonga e daquilo que faz controvérsia. Uma versão, certamente se constitui
sempre em referência àquilo que não é ela, mas o modo mesmo pelo qual se constrói esta referência pode tomar formas múltiplas, elas mesmas suscetíveis de ser interrogadas. E é por esta razão mesma que ela se torna necessária ao meu projeto. Uma versão pode se articular com as outras e com o conjunto da cultura, mas, estas articulações elas mesma podem ser qualificadas, avaliadas, segundo o modo como elas se dão sob o regime da coexistência simples, aquele do conflito, aquele da negação da existência das outras versões ou de sua desqualificação, aquele da emulação, da ativação de novas versões, ou ainda, aquele do simples prolongamento. Bruno Latour, invocando a noção de “proposição articulada”, me permite explicitar a maneira pela qual nós podemos avaliar a possibilidade das versões se articularem nas práticas científicas e nos dispositivos, e o interesse destas avaliações. Segundo Latour, uma teoria ou um dispositivo podem se definir em termos de “ocasiões” para uma versão, ou para retomar seus termos, ele se constitui como uma “oferta de oportunidade” que se faz a um fenômeno. Um dispositivo, por exemplo, pode ser considerado como uma oferta de oportunidade a uma série de fenômenos que não teriam, em outros dispositivos, nenhuma chance de existir: nós o veremos, quando a psicologia social propõe de por em cena uma versão social da emoção, ela vai construir uma série de condições que permitirão à emoção de se efetivar como relação cognitiva com o mundo e com os outros. Ela propõe, portanto, uma versão segundo a qual “não é o corpo que nos dá a significação da emoção, são os acontecimentos implicados na situação”. E os acontecimentos que ela põe em cena serão construídos como aqueles que oferecem a oportunidade a esta versão. Não haverá mais um corpo deixado a ele mesmo a quem se pede para reagir, mas uma outra cena que se enche de “ofertas de oportunidade”: um cúmplice do experimentador, um questionário a preencher, engodos para impedir o sujeito de duvidar daquilo que se espera dele, uma injeção de produtos, um experimentador que dá rótulos, etc. mas o fato deste oferecer a oportunidade autoriza um devir que não está escondido das outras versões, ou que não se resume à reproduzir aquilo que todo o mundo já sabia sobre o modo da tautologia, dependendo da maneira pela qual a versão é proposta e efetuada no dispositivo, pode ou não ser articulada. Poder-se-ia considerar, seguindo Latour, que uma proposição é articulada se ela autoriza, pelas conexões que ela permite criar, a multiplicação das versões daquilo que ela quer conhecer e fazer existir. Nesta perspectiva, uma versão bem articulada não representa a realidade de maneira mais científica, ela permite aos psicólogos alargar o sistema de referências que lhe permite falar. Os sujeitos recebem a ocasião de produzir as versões deles mesmos, daquilo que eles pensam, daquilo que eles sentem e daquilo que fazem deles mais interessantes, mais complexos, mais
prolixos, mais articulados àquilo que eles cultivam nas suas relações com eles mesmo e com o mundo. Numa certa medida, o exemplo da proposição invocada por Gergen “as pessoas não são altruístas”, poderia se tornar uma versão tautológica (os egoístas serão sempre egoístas), e os egoístas poderiam ver, nesta proposição, um modo de confirmação. Mas na medida em que o saber foi colocado em risco por aqueles a quem eles se dirigem, como uma versão que pode se negociar, a inclinação da tautologia a uma proposição mais articulada – porque nós a sabemos, nós podemos modificar aquilo que este saber define – pode-se efetuar, e fazer da versão uma chance do acontecimento novo, que articularia diferentemente a maneira de saber e a maneira de agir. Bruno Latour nos dá um belo exemplo da diferença entre as possibilidades de se articular, submetendo ao contraste, duas versões de um mesmo fenômeno, aquele da relação entre o óvulo e o espermatozóide. À concepção tradicional segunda a qual o espermatozóide é único ativo no processo da reprodução, o ovo aqui sendo considerado como passivo, ele opõe a versão de Tang-Martinez, que propõe traduzir o processo em termos de atividade do ovo. A diferença entre a imagem clássica de um espermatozóide ativo tentando penetrar em um ovo passivo, explica Latour, e a nova versão proposta por Tang-Martinez não reside no fato de que a primeira imagem difere da segunda porque ela seria mais enviesada pela visão masculina da atividade da semente do macho, e que a segundo seria liberada deste viés falocêntrico. Da mesma forma, não se poderia resumir esta diferença ao simples fato de que a visão feminista de Tang-Martinez tomou emprestado da cultura um elemento que viria a contaminar os fatos fisiológicos. A diferença, explica Latour, se atém ao fato de que a primeira hipótese define um grande número de entidades como inativas, os considera como “simples veículos de necessidades”, lá onde a segunda gera em cada ponto entidades ativas que podem modificar as causalidades as quais elas estão submetidas: Um ovo que seleciona ativamente os espermatozóides difere de um ovo passivo, não porque ele é mais “feminino” ou porque ele é estudado por uma feminista radical, mas porque ele faz mais coisas, porque ele é composto de mais elementos, de mais artigos, de mais mediações das quais nenhuma pode ser reduzida a um simples sistema de entradas e saídas de uma caixa-preta.
A versão de Tang-Martinez é mais articulada, ela dá sua chance a mais fenômenos, ela multiplica as questões, as entidades agentes, e as articulações que cada uma delas pode criar.
É aqui que nós podemos chamar pelo contraste, as situações nas quais nós evocamos a “visão das coisas”. Se vocês relerem algumas linhas precedentes, vocês verão que o termo “visão” aparece num contexto particular: “Alguns poderiam retorquir que a “visão” feminista de Tang-Martinez viria de sua cultura e contaminaria os fatos fisiológicos, como a visão falocêntrica determina a partir dela a visão do ovo passivo”. Se referir à visão, neste quadro, implicaria o retorno à idéia de que algumas concepções são mais “autênticas” ou mais científicas, porque menos articuladas à cultura. Paralelamente, para voltar ao exemplo que eu já tinha citado a propósito dos dispositivos que produzem versões diferentes da emoção (biológica ou social), poder-se-ia pensar que as duas situações, aquela que se interroga o corpo, e aquela que constrói a emoção nas relações, são finalmente duas situações nas quais cada um dos cientistas tem a sua visão das coisas. Mas falar nestes termos não dá conta muito bem da complexidade daquilo que se faz e daquilo sobre o que se trabalha, falar nestes termos reduz as articulações a prolongamentos relativamente deterministas e unívocos e deixa finalmente, bem pouca chance aos dispositivos de fazer outra coisa que não um simples trabalho de repetição. E esta maneira de considerar o trabalho dos cientistas me deixaria tão poucas chances de fazer outra coisa, de meu lado, a não ser um trabalho de repetição, eu diria até mesmo um trabalho de pura tautologia: “é porque eles tinham tal ou qual visão das coisas que os cientistas deram tal ou qual definição da emoção”. Falar nestes termos, sobretudo, voltaria a me privar de todos os recursos do domínio que eu tento explorar. Remeter ao fato de que existem simplesmente visões aqui, de alguma maneira, determinaria (no sentido forte do termo) a relação com as emoções, e eu não retornaria a afirmar que, de um lado as ciências das emoções não têm outra função a não ser descobrir isto que preexistiria às suas questões, de prolongar e de explicitar a visão que eles têm de seu objeto, e, por outro lado, o que faz existir este objeto se dá ao mesmo tempo, como isto que esvazia ironicamente de seu sentido a idéia de que nós poderemos aprender alguma coisas disto? Uma visão, e está aí o contraste que eu tento construir com a noção de versão, é evidente, ela invade o campo, ela se impõe de fora, e paradoxalmente, utilizando um termo que refere ao fato de desvelar o mundo sob o modo da revelação e da evidência, a visão nos remete de fato àquilo que impede o acesso à verdade. Quando se fala de visão, a partir de uma natureza romântica, afirma-se, ao mesmo tempo, que esta visão é o que impede o acesso autêntico àquilo que se trata de conhecer. Neste sentido, a visão, porque ela se impõe, porque ela é sofrida, exclui a verdade, e, sobretudo, exclui as outras visões. As múltiplas formas pelas quais as concepções das emoções, a cultura que lhes dá nascimento, e os dispositivos que lhe colocam em cena, se articulam uns aos outros, seriam vistos singularmente empobrecidos.
Uma visão se impõe ou se recusa, uma versão se propõe e se narra. Ao direito de julgar que confere e que impõe a visão, e que denuncia a crítica, a versão substitui por um outro modo de apresentação: eis como ela está de acordo com as outras, eis o que ela suscita, eis o que ela transforma, o que ela traduz, eis como ela pode ser negociada. Todos os recursos da etimologia se articulam bem ao problema que eu tento por em cena. De início, no latim medieval, a versão ( versio) significa “retorno”, “mudanças”. Tratase bem, com a versão, de retornar, de reverter o que se prolonga. Neste sentido, a versão, ao contrário da visão, porque ela guarda na memória o que ela retorna, se reverte e se muda, pode integrar outras versões, ou se articular. Que seu modo de coexistência seja pacífico ou conflituoso, pouco ou muito articulado, as versões coexistem no mesmo mundo, e se cultivam neste mundo. Em seguida, o termo se transforma (o que poderia fazer uma versão, se não se transformar?), e no século XVI, significa a tradução, quer dizer a necessidade de “relatar”, relatar alguma coisa de um outro mundo que vai se tornar ingrediente do nosso mundo. Dito isto, nós religamos com o sentido que toma a versão no século XIX: trata-se por um lado, de relatar, de interpretar, trata-se, por outro lado, do estado de um texto ao longo das frases de sua história. É então em relação a nós mesmos que nós criamos as versões da diferença. A versão, dizia eu, não se impõe, ela se constrói. Ela não se define sobre o registro da verdade ou da mentira e da ilusão, mas sobre aquele do vir a ser: vir a ser de um texto sem cessar retrabalhado e reenviado, vir a ser do mundo comum, vir a ser dos retornos e das traduções. A versão não desvela o mundo mais do que ela o vela, ela o faz existir sob um modo possível. A versão não é o fato de um homem só, ela é fonte e fruto de uma relação, ela é posta em trabalho, no seio de uma relação, ela é negociação disto que se torna, se transforma, se traduz. É por abordar nossos saberes das paixões como tantas versões do mundo ou das paixões, que me parece o caráter a nos ajudar a compreender, sem desqualificar, cada um dos mundos nos quais estas paixões puderam emergir. Isto não permite somente contar nossas práticas, mas também a avaliá-las: se duas versões da paixão são contraditórias, isto não quer dizer que elas são verdadeiras ou falsas, simplesmente que elas prolongam outras versões sob diferentes modos, que elas as transformam ao se articularem a outros dispositivos. São estas transformações, estas articulações e o que elas fazem existir que nos podemos avaliar: com efeito, se a versão não se situa no registro da disjunção verdadeiro-falso, entretanto, todas as versões não se valem. Para dizer rápido, algumas poderão ser consideradas como robustas ou confiáveis, outras se confessarão pouco resistentes face às outras versões, pois elas não devem sua plausibilidade somente às ausências destas últimas: algumas versões para as quais
o fora de campo aparece como uma ameaça, e que não podem existir senão negando este fora de campo, nos parecerão mais próximas da visão. As versões se inscrevem no tempo de uma história, que elas prolongam, transformam, retornam ou rearticulam; elas se inscrevem também no espaço de uma cartografia de nossos saberes: os lugares podem ser tão diferentes quanto o laboratório, as instituições médicas, os outros dos antropólogos, a política, as instituições da cultura, os coletivos que estudam sociologia. Eu definiria estes lugares de saber e de definição da emoção como os lugares de seu vir a ser conhecível: são os lugares que, para produzir este vir a ser conhecível, constroem e transformam as paixões. Eu tentarei ver e contar como alguns desses lugares constroem e transformam a emoção, como eles prolongam ou reativam certas versões, articulando-os às maneiras pelas quais são concebidos, pelas quais eles definem seus objetos e seus sujeitos, ou ainda, pelas quais eles definem sua versão de saber. Assim, eu proporei em um primeiro momento, seguir a singular aventura de nossos laboratórios, e a maneira como estes têm construído a paixão. Nós podemos achar aí uma versão que foi privilegiada em nossa tradição, aquela que nos dá as paixões como internas, reativas, biológicas, universais e naturais, mas esta semelhança não é um simples prolongamento ou transmissão: ela é o objeto e o produto de uma verdadeira operação de conversão. Isto que se define em nossa herança sob o modo do contraste entre emoção sofrida-intelecto ativo, entre vida racional-emoção a controlar, se verá “efetuado” no laboratório. Porque o lugar que é o laboratório irá traduzir, pela assimetria, a vontade de ir além das culturas, em buscar um universal comum “confiável” e robusto: porque ele vai traduzir a ambição de controlar ou de erradicar o incontrolável e a vontade de se garantir um acesso autêntico a um objeto que é assim, interrogando um corpo que reage e que não pode mentir, a idéia de que a emoção é passividade em contraste com a razão, e que ela pode (deve) ser controlada vai se efetuar . O laboratório, tal como ele define seus imperativos, seus objetos privilegiados e a boa maneira de os construir e de os interrogar, torna “a ocasião” desta versão herdada, e da qual ele constrói as condições de efetivação. E é nesta construção que se efetua a velha idéia e uma separação entre a vida intelectual e a vida emocional, entre a vida de natureza e a vida de cultura, entre o universal da emoção e o particular disto que não é ela, entre a vida íntima e privada e a vida social. São portanto, estes acontecimentos e estas articulações que devem se tornar conhecidas, as ocasiões que suscitam e que as suscitam em nossos laboratórios e nas nossas práticas as quais eu vou seguir a construção, ao longo dos dois primeiros capítulos. Mas, ao mesmo tempo, contando estas “ocasiões bem-sucedidas” entre uma versão e suas condições
de efetivação, estas convergências, estas conversões, e estas articulações privilegiadas, me farão também encontrar as ocasiões perdidas, aquelas que as versões que interrogam o corpo no laboratório não pode se articular, aquelas versões deixadas escondidas e que deverão encontrar outros lugares para ser, por sua vez, construídas, articuladas, transformadas, recontadas. São estes lugares e estas versões que se provaram capazes de produzir que eu avaliarei no curso dos capítulos seguintes. Cada um destes capítulos pode se definir como a etapa de uma busca progressiva no curso da qual eu buscarei as versões cada vez mais articuladas, analisando, por um lado, as condições que tem favorecido estas articulações, e, por outro, as dificuldades que estas versões encontram. Eu considerarei, no terceiro capítulo, a versão que propõe à psicologia a psicóloga alemã Tamara Dembo: nós estamos sempre no laboratório, mas não é mais a versão somática que é posta em cena pelos dispositivos da biologia que se trata de construir. Tamara Dembo propõe uma concepção segundo a qual a emoção é relação do sujeito com o mundo que o circunda, e cria um dispositivo para levar uma parte do mundo para o laboratório. Esta versão, o quão diferente seja ela, se revela entretanto, como não rompendo radicalmente com algumas dimensões da versão “corporal” ou biológica da emoção, bem ao contrário: ela exprime a mesma fascinação pela autenticidade da emoção, ela se funda sempre sobre o fato de que a emoção é a reação de um sujeito passivo, ela efetua ainda o contraste emoção-razão e define sempre a paixão como um acontecimento íntimo. Isto me leva a por para as nossas emoções a questão de sua história: como nós viemos a pensar as paixões como nós pensamos? Interrogar a história de nossas paixões é retornar a isto que, em nossa história, nos dá uma alma, isto que tem participado da invenção de uma alma em sua relação com as paixões. É a Platão que eu pedirei para testemunhar esta invenção. Platão, inventor de nossa alma nos lega várias dimensões de nossas paixões. Nós encontraremos nesta invenção a idéia de que as paixões estão em contraste com a razão, e as dimensões de passividade, de naturalidade, de incontrolabilidade da emoção, são idéias e dimensões unidas numa configuração muito fechada. O espanto coerente desta configuração é aparentemente sua origem no domínio dos problemas epistemológicos. Uma análise atenta nos mostra que a verdadeira questão de uma definição das paixões nestes termos, o verdadeiro motivo desta configuração fechada é um motivo político. Platão queria resolver os problemas políticos deslocando a questão da alma e de suas paixões para o domínio epistemológico, quer dizer, o domínio no qual a resposta ao problema político poderia receber uma legitimidade praticamente inquestionável. Eu me aterei, no início, a compreender como algumas de nossas práticas interrogam as emoções, que elas sejam resultados da psicanálise o do laboratório experimental, podem ainda se
definir como herdeiras desta teoria platônica da alma e das paixões, assim como as dificuldades que se apresentam a estas versões em se articular a outras dimensões da paixão. No curso do capítulo 4, nós retomaremos, para narrar as múltiplas traduções pelas quais ela se faz objeto, a versão segunda a qual a emoção deve ser estudada como relação do sujeito com o mundo. Eu considerarei as diferentes maneiras pelas quais esta versão pôde ser retomada e efetuada, desde o fim dos anos sessenta, pelas práticas da sociologia, da antropologia e da psicologia social, e nós avaliaremos o que esta nova versão permite melhor articular nestes diferentes campos. Esta versão se define resolutamente contra a versão “naturalista” da emoção: os corpos não podem ser o lugar privilegiado da legibilidade das paixões. A controvérsia que opõe os proponentes de uma concepção somática e naturalista, e aqueles que reivindicam uma definição cultural e social da emoção conhecem aqui uma reviravolta decisiva, que influenciará muito fortemente as versões que nós conhecemos atualmente, e notadamente as versões da etnopsicologia. Eu me interessarei por esta controvérsia, mas por outras razões que aquelas da história: esta controvérsia de fato reativa um debate muito antigo, suscitado pela concepção que propõe o filósofo William James, no início deste século. Este debate nos dará a ocasião de melhor compreender as dificuldades do “fazer ciência” face às emoções. Estas dificuldades são particularmente legíveis na rejeição que suscita a teoria de James. Ou, isto que nos aparece com particularmente rico e articulado. Como compreender, portanto, esta rejeição, tanto da parte dos naturalistas quanto dos especialistas em ciências sociais? Parece que, na análise, as objeções feitas a James se fundam sobre uma série de mal-entendidos, de contra-sensos, e que eles exprimem antes de tudo, as resistências dos cientistas a uma concepção que não responde bem aos imperativos do fazer ciência. Eu me fixarei, por um lado, a elucidar os problemas destes malentendidos e destas dificuldades, e por outro lado, a encontrar isto que, na teoria de James pode nos ensinar outras maneiras de definir, de interrogar as emoções e de articulá-las em novas versões. James “desorienta” as questões tradicionalmente endereçadas para a ciência das emoções, e constrói novas paisagens para as responder: uma cena de teatro e de performance do ator; um romance pleno de paixão; a experiência a mais comum como aquela para manter este romance nas mãos ou de fora de sua raiva, rir; um psicólogo muito digno seguindo uma jovem mulher pela rua e imitando seu passo para se sentir feminino; alguns amigos bêbados; um corpo ambíguo. A versão desorientada torna-se muito indeterminada – não se pode mais saber isto que é causa e efeito de uma emoção, isto que é corpo, mundo, consciência da emoção –, ela multiplica as articulações e faz proliferar as versões.
Estes são os efeitos desta prática de desorientação que nós poderemos encontrar, no curso do quinto e último capítulo, naquelas versões que nos trazem os etnopsicólogos. Com estas versões, nós encontraremos a figura de nosso décimo segundo camelo: a prática de levar o pesquisador a outros lugares que não nos fornece nenhuma solução, mas ela nos propõe reconstruir o problema, e nos indica alguns dos modos pelos quais nós poderemos reconstruir. Como pensar nossas versões, como nos apropriar disto que nós herdamos? As versões da emoção que os etnopsicólogos adicionam às nossas, não somente podem reativar aquelas que nossas práticas científicas articulam mais dificilmente ou deixam para trás; mas elas submetem os praticantes a novas exigências, e lhes impõem outras maneiras de interrogar e de traduzir as versões: elas envolvem, portanto, as práticas a definir de uma outra maneira isto que pode ser nossa versão do “saber” e nossa versão do saber a paixão.