UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Aires José ROVER, professor
http://infojur.ufsc.br/aires
RESUMO DE LIVRO Matrix, bem vindo ao deserto do real
IRWIN, William. SP: Nadras, 2003.
Disciplina: Tecnologia e Direito Curso de Pós-Graduação em Direito 2004/3 Resumo realizado por Carlos Fernando Fer nando Coruja Agustini
1. Computadores, cavernas e oráculos: Neo e Sócrates (William Irwin)
Ao vislumbrarmos o céu, confundimos confundimos Conhecimento com conhecimento Branco, Flaminel, personagem da peça O Diabo Branco, de John Webster Matrix traz à tela, na sua polissemia, algumas histórias. William William Irwin, neste artigo, aponta a presença de uma clara imagem bíblica e compara a história de Neo à de Sócrates, destacando várias várias semelhanças. O herói intelectual que paga com a vida a sua persistente busca é talvez a similitude maior. O oráculo, as consultas e a epígrafe comum entre o Templo de Delfos e a casa de subúrbio de Matrix, não deixam dúvidas sobre a pretensão dos irmãos Wachowski. O diálogo entre o Oráculo e os tripulantes da nave Nabucodonosor é socrático. As respostas são elusivas e provocam mais dúvidas do que certezas. A sabedoria de Delfos pode ser captada nos diálogos e nas imagens. Nada em excesso é uma das lições: Pegue um biscoito, o biscoito, o Oráculo diz a Neo, e não pegue alguns biscoitos ou biscoitos ou pegue pegue quantos biscoitos biscoitos seu coração desejar . Neo não é “o” Escolhido – ele tem que se tornar “O Escolhido”. Dependerá dele, e somente dele, esta transformação. Neo precisa auto-conhecer-se. Irwin lembra outro grande momento da filosofia grega: o mito platônico da caverna. A prisão pra a mente, mente, citada por Morpheus no diálogo com Neo, é a imagem do prisioneiro da caverna platônico. Tanto na Matrix como na caverna o s prisioneiros não sabem que são prisioneiros e nem desconfiam que exista outra realidade além daquela em que vivem. Um dia, porém, um deles é libertado das correntes e levado ao mundo exterior e, sob a luz do sol, vê v ê as coisas como elas realmente são. Em vez de egoisticamente permanecer lá fora, o prisioneiro volta para contar aos outros, que retribuem seu gesto de bondade com zombarias e resistência, acreditando que ele ficou louco.. louco Sócrates, professor de Platão, é a figura do prisioneiro que volta, é estigmatizado como louco e morre por não querer voltar ao mundo da ilusão. Há um paralelo com a história de Neo, que um dia se liberta de Matrix para vislumbrar “o deserto do real”. A filosofia platônica do contraponto entre o conhecimento e a realidade, entre a matéria e a forma, a percepção pelo intelecto e pelos sentidos, perpassam por todo o filme. Neo também aprende que o intelecto é mais importante que os sentidos. A mente é mais importante que a matéria. Quando a Platão, o físico não é tão real r eal quanto a Forma; por isso, para Neo, “não existe colher”. A forma – o ideal platônico – é representada pelo déjà vu. vu. E o “déjà vu” não é evidência de uma falha na Matrix, e sim uma recordação (anamnesis) das (anamnesis) das Formas. Ao escolher a pílula vermelha, Neo segue o caminho menos percorrido, percorrido, o caminho da audácia e da inconformaçã inconformação. o. Irwin lembra o poema de Robert Frost: Escolhi o caminho menos percorrido / E isso fez toda a diferença. Escolher é o verbo predileto de Morpheus. 2.
Ceticismo, moralidade e Matrix (Gerald J. Erion e Barry Smith)
Ignorância é felicidade. felicidade. Cypher
É melhor ser um humano insatisfeito do que um porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito satisfeito.. Stuart Mill
Parece-lhe que você está agora sentado em uma cadeira, lendo este resumo. Você acredita nisso? Considera o fato verdadeiro? Vários céticos, ao longo da história da filosofia, criaram imagens e formularam argumentos para tentar responder ou, quem sabe, incrementar estas dúvidas. A obra clássica de Descartes, Meditações sobre a filosofia primeira, inicia com a formulação da hipótese de que um gênio maligno poderia estar criando todas as sensações e certezas que temos. A filosofia cartesiana recorre à figura da dúvida metódica para podermos saber o que realmente conhecemos. O demônio cartesiano poderia estar induzindo-nos a um sonho permanente e impossibilitados de distinguir entre a vigília e o sonho não poderíamos também separar o que é ou não real. Morpheus pergunta a Neo: Já teve um sonho, Neo, que você tinha certeza de que era real? E se você conseguisse acordar desse sonho? Como saberia a diferença entre o sonho e o mundo real? Peter Unger e Hilary Putnam são outros autores que “inventam” argumentos que apontam para você possa estar em uma Matrix. Unger, em Ignorance (1975), sugere a possibilidade de estarmos sendo narcotizados por um “cientista maligno”, um super neurologista que, através de um computador e eletrodos fixados ao nosso sistema nervoso central, cria em nossa mente, por exemplo, a idéia de que vimos um filme chamado Matrix. Putnam “imagina” os nossos cérebros separados cirurgicamente e soltos em barris, cheios de elementos químicos que os nutrem. Um poderoso computador enviaria impulsos elétricos e produziria “as ilusões que sentimos”. Muitos são os argumentos anticéticos. O filósofo Bernard Williams acalma nosso medo de estarmos trancafiados perpetuamente num sonho-prisão do tipo Matrix explicando que o próprio fato de estabelecermos uma distinção entre sonhos e experiências em vigília pressupõe que estamos cientes dos do is tipos de experiência e da diferença entre eles. Podemos falar sensatamente sobre a diferença entre as duas formas de experiência apenas porque existe uma diferença – e temos ciência dela. Como escreve Williams, é só “da perspectiva da vigília que podemos explicar o sonho” (p.313). Portanto, só podemos fazer a distinção entre estar acordado e sonhar, se estivermos realmente acordados às vezes; e já que somos capazes de distinguir entre os dois tipos de experiência, a conclusão é que não há um motivo sério para nos preocuparmos que nossas vidas sejam feitas inteiramente de seqüências oníricas intermináveis (...). A hipótese de que existe um mundo externo... é tão obviamente útil e tão firmemente confirmada pela experiência no decorrer das eras que podemos dizer, sem exagero, que é a mais bem confirmada de todas as hipóteses empíricas. Tal posição é tão útil que seria quase impossível, exceto para um louco ou um metafísico, achar uma razão para duvidar dela.(Martim Gardner, The whys of a philosophical scrivener [Nova York: Quill, 1983], p. 15, citado por Schick e Vaughn, p.87). A moralidade da escolha é salientada quando Cypher, cansado do mistério do mundo real, faz o acordo com o agente Smith e opta por viver uma vida de prazer, mesmo que aparente, na Matrix. Robert Nozick, citado por Gerald Erion e Barry Smith, afirma que aprendemos que algo importa para nós além da experiência, quando imaginamos uma maquina de experiência e depois percebemos que não a usaríamos. Descobrimos que alguma coisa é importante, além do prazer, quando consideramos a decisão de Cypher imoral. A decisão de Neo, de enfrentar “o deserto do real” dá significado à sua vida e, portanto, um valor moral.
3.
A possibilidade de Matrix (David Mitsuo Nixon)
Nixon faz algumas perguntas que, ao serem respondidas, ajudariam a encontrar a resposta de que se é possível a Matrix: a) Mesmo se estivéssemos realmente na Matrix, que implicações a Possibilidade de Matrix tem para o que sabemos ou não sabemos? b) Como Neo fica sabendo – se é que fica – que estava na Matrix? c) A Possibilidade de Matrix faz sentido? Sabemos mesmo alguma coisa?
O ceticismo metodológico cartesiano e a sua brincadeira da possibilidade de um demônio maldoso e astuto nos enganar cria, pelo menos, a possibilidade, e isto por si só pode produzir a dúvida sobre se realmente podemos ter qualquer conhecimento. Embora Descartes não tenha visto o filme, as suas idéias são argumentos na direção da possibilidade de estarmos todos flutuando em “um casulo de gosma cor-de-rosa”. A possibilidade de termos uma crença falsa, no dia-a-dia do “mundo real”, não nos impede de chamarmos algo de conhecimento. Por exemplo, estou em um ponto de
ônibus e alguém me pergunta: “Você sabe que horas são?” e olho para meu relógio e respondo: “Sim. São 12h30”. Eu reconheço a possibilidade de que meu relógio esteja com defeito, mas quando não estou usando meu relógio de filósofo, aquela possibilidade não me impede de dizer que eu sei as horas. O que, afinal de contas, justifica que os filósofos tenham padrões tão altos para o conhecimento – principalmente porque, assim que tiram o chapéu de filósofo, esses indivíduos nem sequer aderem a tais padrões? A resposta adequada a alguém me dizer que minha crença pode estar errada é: “E daí?”. Não é a possibilidade que importa, e sim a probabilidade. Não estou mudando coisa alguma sobre aquilo que acredito ou penso que sei. Nixon argumenta que a possibilidade de Matrix implica que não possuímos um superconhecimento, mas isso não nos impede de ter tanto conhecimento comum quanto ulgamos ter. E que sobre este prisma, questionar se sabemos alguma coisa em relação à possibilidade de Matrix é uma pergunta com pouco vigor. Para Nixon, talvez isso seja bom. Neo sabe que estava na Matrix?
Neo não pode acreditar na Matrix apenas em função do testemunho de Morpheus. A sua crença para ser verdadeira teria que ser justificada. Esta é a versão tradicional para o conhecimento. Ao tomar a pílula vermelha, e “vivenciar” uma situação, isto não lhe possibilita acreditar de pronto e Neo, a princípio, não acredita. A pílula vermelha poderia ser apenas uma potente droga alucinógena. Sim, obviamente isso é possível. Mas nem tudo o que é possível é algo que tenhamos bons motivos para acreditar que é real. Novamente, o possível não deve nos desviar de uma discussão sobre o provável; pois só aquilo que temos motivo para acreditar que é provável deve, de fato, ser acreditado. Qualquer habilidade ou experiência que Neo utilize para avaliar se está ou não em Matrix pode ser enganosa, pois afinal as suas experiências foram adquiridas, caso ele esteja em Matrix, através de Matrix – e, portanto, devem ser descartadas. Nixon cita alguns exemplos de experiências comuns que aceitamos como verdadeiras de pronto que Neo deveria descartar para aceitar a história de Matrix, contada por Morpheus: a) As pessoas não mentem de modo geral; por isso, se alguém parece estar lhe dizendo a verdade, você pode geralmente acreditar; b) Se alguém parece estar falando inglês, provavelmente está; c) Se você se lembra de ter feito alguma coisa, provavelmente fez; d) (...), etc. Enfim, ele não pode confiar em princípios porque não pode confiar em sua experiência passada e não pode confiar nas experiências atuais sem confiar nas passadas. Esta visão é conhecida em epistemologia como holismo e diz que nenhum pedaço de uma experiência pode realizar qualquer trabalho justificativo sozinho, mas somente como parte de um conjunto interconectado muito maior de experiências e crenças. E é defendida por teóricos como Quine, Davidson e Sellars. Neo, por esse raciocínio, não sabe de fato, mesmo no sentido restrito do conhecimento comum (ver exemplo do relógio, acima), que estava, mas não mais está em Matrix (o que o espectador do filme, sabe).[1] A possibilidade de Matrix ao menos faz sentido?
Nixon deixa claro que, ao questionar uma possibilidade coerente do sentido de Matrix, não está indicando pequenas inconsistências no enredo do filme. Se você está na Matrix, então muitas de suas crenças são falsas. Você pode acreditar que está lendo este resumo e na verdade está flutuando em casulo de gosma. Mas, é possível que todas ou quase todas as crenças de alguém sejam falsas? Se eu afirmo que alguém tem muitas crenças falsas, devo compreender que esta pessoa tem conceitos específicos que figuram nessa crença falsa. E significa também que d evo atribuir a esta pessoa crenças que considero verdadeiras. Só podemos ver sentido numa pessoa ter crença falsa se ela tiver outras crenças que consideramos verdadeiras. A idéia de alguém ter todas as crenças falsas só faz sentido quando não focalizamos todas as crenças verdadeiras atribuídas à pessoa. Nixon prossegue perguntando se esta linha de argumento consegue mostrar que a possibilidade de Matrix não é de fato uma possibilidade ou que não é inteligível. E responde ao seu próprio questionamento dizendo que não: Pois mesmo que os computadores malignos da Matrix não consigam tornar todas as crenças falsas (pois, do contrário, não seriam reconhecíveis como crenças), ainda haveria muitas – talvez a maioria – de suas crenças que poderiam ser falsas se você estivesse na Matrix. Portanto, afinal de contas, talvez tenhamos de reconhecer a inteligibilidade da Possibilidade de Matrix. Você realmente poderia estar na Matrix, e muitas de suas crenças podem ser falsas, mesmo que você tenha certeza de que nem todas elas sejam. 4.
Ver, crer, tocar e a verdade (Carolyn Korsmeyer )
Korsmeyer lembra a morte misteriosa de 120 pessoas no Laos e que aconteceram enquanto as vítimas dormiam. Nenhuma causa médica foi determinada e a doença ficou conhecida como “Síndrome da Morte Noturna súbita Inexplicável”. As vítimas sobreviventes relatavam um terror paralisante e a sensação de que uma criatura maligna se sentava sobre o seu peito. O episódio levantou a hipótese perturbadora de que os sonhos podem matar. Toda a suposição de Matrix é de que uma pessoa pode ter uma vida de ilusões provocadas, artificialmente, por algo exterior a seu cérebro. Diversos problemas clássicos de percepção são abordados no filme. Primeira Meditação, de Descartes, é a referência mais óbvia. Um dos únicos locais estáveis de referência é nave Nabucodonosor, onde os personagens fogem da ilusão sistemática. Korsmeyer aponta que os criadores do filme tinham consciência de problemas delicados, ocultos na premissa da história, a ponto de inserir uma certa autocrítica bem posicionada no diálogo. O diálogo entre Mouse e Neo, quando Neo têm a sua primeira refeição com a tripulação, traz um interessante questionamento. Mouse compara a gororoba artificial a Tasty Wheat (trigo saboroso). O questionamento é como as máquinas poderiam imitar o sabor do trigo e como alguém, sem a experiência de saborear, pode comparar estes sabores. Um dos aspectos mais interessantes do filme situa-se exatamente na utilização dos sentidos pelos personagens, dentro e fora de Matrix. Desde a filosofia antiga até os estudos psicológicos contemporâneos, os cinco sentidos tem sido estudados e analisados em vários aspectos, entre os quais a relação entre a mente e o corpo, o intelecto e a emoção e o conhecimento e o prazer. Segundo Korsmeyer, visão e audição são sentidos utilizados a distância e menos relacionados com o lado animal da natureza humana, mais associado ao tato, olfato e paladar. No filme Matrix , os sentidos são muito explorados e assumem funções particularmente interessantes. As informações auditivas ora são sussurros que requerem proximidade (quando Neo e Trinity se encontram), ora são muito altas (as músicas do clube que eles freqüentam). O olfato é bem explorado e o cheiro dos corpos humanos é enfatizado tanto positiva como negativamente. Trinity cheira Neo adormecido e tem prazer com isso. Smith parece quase enlouquecer com o cheiro de seus adversários humanos. O paladar é também utilizado em diversos momentos. Cypher quando trai seus companheiros, em um jantar com o agente Smith, em um elegante restaurante de Matrix, saboreia um bife perfeitamente cozido. Enquanto come, bebe e fuma um charuto, ele declara que quer ser reinserido na Matrix e não se lembrar de nada anterior. “Eu sei que o bife não existe. Eu sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro quer o bife é suculento e delicioso. Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é a felicidade”. A contraposição entre os prazeres produzidos pelos sentidos e valores morais mais altos, como a procura da liberdade, se evidenciam ao longo do filme. A cena do Oráculo oferecendo um único biscoito (“delicioso e cujo aroma enche o ar”) mostra que os prazeres do paladar não precisam necessariamente subverter a moral de um indivíduo. Qual o mundo mais real: dentro ou fora de Matrix? Morpheus diz que toda experiência sensorial é apenas estimulação interpretada dos receptores nervosos. Cypher, já com idéia de trair seus companheiros e voltar para Matrix, questiona Morpheus: O que é real? Como você define real? Se você está falando do que pode ser cheirado, provado e visto, então real é simplesmente um sinal elétrico interpretado por seu cérebro. Cypher opta pelos prazeres dos sentidos, associados à tentação e ao pecado. Comete uma falha moral e um erro epistêmico optando pela ilusão, ao invés da realidade. Embora a maior parte da trama ocorra dentro do programa de Matrix, isto afeta os corpos presos às cadeiras, a bordo da nave. Quando Neo sai de Matrix e percebe sangue escorrendo de sua boca, questiona de que maneira uma experiência virtual pode causar um ferimento físico e pergunta: Se você é morto na Matrix, morre aqui? Morpheus responde: O corpo não pode viver sem a mente, a mente torna tudo real. O episódio pode ser confrontado com as mortes do Laos e seus possíveis sonhos fatais. 5.
A metafísica de Matrix ( Jorge J. E. Garcia e Jonathan J. Sanford )
A vida é um sonho. Pedro Calderón de la Barca
As duas categorias fundamentais do filme Matrix são o real e o irreal. São apresentadas como irredutíveis, irreconciliáveis e mutuamente exclusivas. As inconsistências do filme acabam exigindo resoluções que não são conseguidas por implodir o mundo irreal no real, e sim distinguindo entre os dois mundos ou destruindo o mundo irreal. Os seres humanos tem mentes com o poder de superar ilusões e aí encontra-se a saída para o dilema de Matrix . É preciso lembrar que é apenas um filme e não a metáfora correta do mundo em que vivemos. As categorias vistas em Matrix são, entretanto, usadas no diaa-dia. Sonhos e alucinações provocadas por um agente químico qualquer são experiências apontadas como não reais. Em nossa vida real somos afetados tanto pelos fatos como pela ficção. Matrix é uma boa partida para refletir sobre isso e sobre a própria
natureza da realidade. “Uma” metafísica é uma visão do mundo que procura ser correta, consistente, inclusiva e sustentada por evidências seguras. Mas, além dessa, há outras metafísicas – inclusive aquela que foi desenvolvida em Matrix. Segundo Garcia e Sanford, há pelo menos duas metafísicas em Matrix: o filme em si e o mundo apresentado no filme. Uma metafísica do filme estabeleceria a categoria ou as categorias mais gerais a que o filme pertence. Uma metafísica com o segundo significado envolve a visão metafísica apresentada no filme. Ou seja, essa segunda acepção abrange “o mundo de Matrix”. O mundo de Matrix parece ser falsamente simples, mas, na verdade, é muito complexo e lembra, em muitos aspectos, o nosso mundo. Ao apresentar o contraste entre um mundo “real” e um mundo “virtual”, Matrix estabelece uma relação que envolve um jogo de conceitos de incomoda percepção. Ao mundo “virtual” (e nem se mpre complementar, pois há um sentido de exclusão muito forte permeando o contexto), podemos acrescentar os conceitos de “sonho” e “irreal”. E isso assume tal proporção quando esse tipo de “categorias menos gerais” se impõem e passam a fazer parte das “categorias mais gerais”. Matrix, em princípio, é um filme repleto de coisas e conceitos “menos gerais”. Muitas delas são tão específicas que precisam ser classificadas em subcategorias, que por sua vez são também divididas em outras subcategorias. No caso específico do irreal, Garcia e Sanford identificam, pelo menos, oito subcategorias: simulação (neurointerativa), imagem (de si próprio), entidade digital (uma pessoa), sonho, aparência, projeção mental, matrizes das quais Matrix é um exemplo, e programas gerais de computador quando considerados parte da realidade virtual. É um mundo paralelo ao “mundo real”. Mas seria isso suficiente para 1) identificar as diferenças entre o “real” e o “irreal”? 2) identificar o que é “real” e o que é “irreal”? Garcia e Sanford entendem que há pelo menos dois modos principais de distinguir metafisicamente entre as categorias reais e irreais. O primeiro tem a ver com a fonte do real e irreal respectivamente, o segundo com o status ontológico de ambos. O primeiro caso está associado com uma verdade irrefutável: Matrix não é a causa das coisas no mundo real. Quaisquer que sejam as causas das coisas que podemos categorizar em “real”, elas não têm a ver com as causas responsáveis por criar o mundo irreal de Matrix. E isso significa que conhecemos a fonte de todas as coisas no mundo de Matrix. Ela é um programa de computador muito complexo, feito por máquinas artificialmente inteligentes. A própria existência desse mundo virtual e suas dimensões variegadas são produtos dessas máquinas. Assim, embora não conheçamos as causas primárias do mundo real, um modo pelo qual podemos distinguir entre o mundo real e o irreal é por meio de suas respectivas fontes: eles têm causas diferentes. O segundo modo está diretamente relacionado com o modo como as coisas existem. O mundo real, em Matrix, não depende de qualquer fonte ou suporte externo para existir: ele se auto-sustenta. O mundo irreal depende totalmente das coisas existentes no mundo real para existir. O mundo virtual existe enquanto as máquinas artificialmente inteligentes continuam operando o programa e gerando sinais elétricos que afetam o s cérebros humanos. No entanto, as máquinas, os programas, os sinais elétricos e os cérebros são reais (o que incita a mente – também real – a produzir as entidades digitais e aparências do mundo irreal ). O mundo irreal é ontologicamente mais fraco, porque depende de coisas do mundo real para existir . Em Matrix, Morpheus é o guardião do conhecimento, pois é ele quem determina as diferenças entre o mundo real e o mundo irreal. Os demais personagens só conseguem entender essa distinção porque Morpheus assim o quis (da mesma maneira que o prisioneiro da alegoria da caverna de Platão volta para comunicar sua descoberta aos companheiros). Neo não saberia a diferença entre os dois mundos se não fosse por Morpheus e sua tripulação. Uma meta dos metafísicos é conciliar, se possível, aparência com realidade. Isso não é possível em Matrix. De um lado temos o mundo das aparências, o mundo irreal de Matrix; em oposição, o mundo real, onde está ocorrendo uma guerra entre máquinas e humanos. São duas realidades distintas, irredutíveis, irreconciliáveis, e mutuamente exclusivas. Cada um[a] tem regras próprias, e não há como misturá-las. Mas, antes de qualquer reflexão mais aprofundada, impõe-se a noção de que Matrix é apenas um filme. Seu peculiar retrato da dialética entre aparência e realidade não deve ser encarado simplesmente como uma metáfora correta do nosso mundo. 6. O fantasma feito pela máquina: ou a filosofia da mente, estilo Matrix ( Jason Holt ) O material propiciado por Matrix é muito bom, mas é coisa antiga para os filósofos. Holt também lembra Descartes, Putnam e Platão. Outras idéias de e ngodos sistemáticos já foram apresentadas no cinema, como em O Vingador do Futuro, Dark City, e O Planeta dos Macacos. O filme trás à tona a discussão da relação corpo-mente e de como esta funciona. Em oposição, especula sobre a possibilidade dos computadores pensarem. E conclui que ainda há boas possibilidades para não se acreditar nisso. Computadores “ainda” não possuem inteligência.
Holt acredita que o materialismo é uma boa teoria para explicar o funcionamento mental. Mas por que praticamente ninguém aceita o materialismo hoje em dia? A suspeita de Descartes: a mente não pode ser um conjunto de estados do cérebro e mesmo que os estados mentais sejam gerados por estes, não criam efeitos no mundo. 7.
Neomaterialismo e a morte do sujeito (Daniel Barwick)
De certa forma, Matrix é uma farsa. É um filme que desafia a platéia com perguntas: que pílula você tomaria? Como reagiria se descobrisse que sempre viveu uma mentira? E a pergunta mais profunda: a Matrix é o mal? O que há de errado com uma vida falsa, porém boa? Barwick inicia o seu artigo com essas frases provocativas, para logo depois argumentar: a verdadeira influência do filme é uma resposta, não uma pergunta. É uma resposta a uma das questões mais centrais da filosofia: qual é a natureza da própria mente? O filme presume como verdadeira (e celebra) uma teoria específica da mente e da identidade pessoal, amplamente conhecida como materialismo redutivo: a visão de que os estados mentais podem ser reduzidos a (explicados em termos de, o mesmo que, etc.) estados físicos. Morpheus especificamente descreve essa visão quando explica a Matrix a Neo. O que Barwick quer dizer que o filme Matrix parte de uma premissa falsa: Matrix como está no filme, não é possível. Ou melhor ainda, que a experiência não pode ser reduzida a apenas um estado físico ou a um estado cerebral – se isso fosse possível, então a experiência seria igual ao estado cerebral, não precisando de mais nada para ocorrer. Uma experiência é o resultado de um conjunto de fatores internos e externos e demanda mais do que um estado físico e/ou cerebral ( o “aprendizado” não se processa espontaneamente). Desta forma, a discussão mais importante em Matrix não é a inserção da ciência como elemento modificador do comportamento humano, mas a sustentação filosófica para que tal premissa se sustente. E a filosofia não dá guarida para a projeção de Matrix no filme. Inclusive porque há uma série de fatores (filosóficos, científicos, comportamentais, religiosos, ...) que se contradizem internamente no roteiro do filme. A imagem de Matrix é falsa por que não corresponde a consciência que Matrix deveria ter de Matrix. A consciência não é uma coisa, mas é algo, num certo sentido: é a revelação dos próprios objetos. Por fim, Barwick levanta a questão da moralidade em Matrix e lembra que Matrix produz um mundo ilusório, mas não imoral. A imoralidade está no roubo da liberdade (e no fato de nunca ficarmos sabendo disso). 8.
Destino, liberdade e pré-conhecimento (Theodore Schick Jr.)
Qualquer liberdade que os integrantes de Matrix possam acreditar ter é uma ilusão. O que não quer dizer muita coisa, pois a liberdade desfrutada pelas pessoas do mundo real, porém, deve ser igualmente ilusória. Schick Jr. sabe que você é livre para realizar uma ação somente se puder evitar cometê-la. E raramente conseguimos essa façanha. O Oráculo, ao emitir previsões, está sempre certo, pois aqueles que são citados no vaticínio não podem escolher uma alternativa diferente daquela que está na previsão. Somente a previsão é livre, pois pode oferecer uma alternativa ao que prevê. Em um mundo governado pelo destino, em que o futuro é fixo e inalterável, para que lutar pela liberdade? Para que tentar libertar as pessoas de Matrix, se elas não têm a liberdade de determinar o próprio destino no mundo real? Se um indivíduo tem de ser escravo, por que não um escravo feliz? Talvez a decisão de Cypher de se ligar novamente à Matrix não seja tão traiçoeira quanto parece (e, claro, se o mundo é governado pelo destino, então Cypher não podia evitar essa decisão). A liberdade é a habilidade de fazer escolhas racionais, diz Kant. Schick Jr. conclui que para Kant, o que determina se você teve uma boa vida não é o tipo de experiências que viveu, mas o tipo de escolhas que fez. E aquele que escolhe é mais livre do que aquele que vive no mundo das sensações. O Oráculo, em Matrix, assim como em Delfos, prevê o futuro. Mas, o Oráculo sabe tudo? Morpheus entende que sabe o suficiente. Mas saber o suficiente é quantidade adequada para saber o que aconteceu e o que acontecerá? Ou melhor ainda, saber o suficiente implica em determinar que não há livre vontade e, portanto, escolha, no futuro? A filosofia já gastou inúmeros baldes de tinta com o conflito entre livre vontade e onisciência (saber tudo). Alguns dos principais teólogos de formação cristã (Boécio, Calvino) afirmam que Deus traçou um destino para cada um de nós e que isso não pode ser alterado. Você pode argumentar que, embora Deus saiba que escolhas você fará, Ele não as faz em seu lugar. Talvez isso seja verdade, mas é irrelevante porque você só tem a liberdade de fazer algo se puder se recusar a fazê-lo. Se uma ação é inevitável – e deve ser, já que Deus a prevê – então quem a realiza não está livre. Onisciência e livre-arbítrio são incompatíveis. Se alguém sabe tudo, então não existe livre vontade. O Oráculo é uma prova de que os personagens de Matrix não são livres, pois se alguém sabe tudo – e as suas previsões, sejam verdadeiras ou não, são a prova
desse saber – então também sabe que não há escolhas. Quando o futuro é prédeterminado, nem mesmo Deus consegue mudá-lo. Por outro lado, Schick Jr. lembra que um ser onisciente não é aquele que sabe tudo, mas que sabe tudo o que é logicamente possível de saber. Ou seja, a onisciência quando se trata de fazer previsões sobre o futuro esbarra na violação do princípio de que um efeito não pode anteceder a sua causa. Só podemos ver algo depois que já aconteceu. Eventos futuros, porém, ainda não aconteceram. Schick Jr. sustenta a tese que o Oráculo, em lugar de prever o futuro, o constrói. Suas profecias se auto-realizam, pois a profecia em si ajuda a concretizar sua própria verdade, do mesmo modo como um rumor em Wall Street pode ajudar a gerar lucros de fato. Para explicarmos o sucesso do Oráculo, então, não precisamos supor que ela saiba o futuro nem que o futuro seja determinado. Só precisamos deduzir que aqueles que a consultam acreditam que ela sabe o futuro. A verdade não está nas palavras do Oráculo (que, além disso, exige uma interpretação correta – se é que isso é possível). A verdade está no que acreditamos ser a verdade. 9. Não existe colher: um espelho budista (Michael Brannigan)
Uma das principais orientações do pensamento budista nos diz que “é melhor refletir antes de agir”. E isso significa que o indivíduo, em sua proposta de convívio social, deve conduzir sua vida a um estágio onde o triunfo da mente sobre a força física seja realizado como uma forma de elevação espiritual. O significado do refletir, nesse contexto, está necessariamente relacionado com os espelhos (uma das metáforas mais utilizadas na filosofia budista). O jogo semântico entre a reflexão mental e o fenômeno físico não é acidente. O espelho reflete porque “nada retém”, por isso devolve a imagem como a recebeu. O indivíduo reflete porque analisa e elimina as impurezas. A imagem que devolve ao mundo das coisas e dos objetos é uma imagem modificada, porque o ato da reflexão é um ato mental, os acontecimentos somente “ocorrem” na mente. Neo, no apartamento de Oráculo, vê um menino (sentado em posição de lótus e vestido como um monge budista) entortar colheres com o poder da telecinesia. O menino, olha para Neo e diz: There is no spoon (não existe colher). Brannigan, quando utiliza esse exemplo, quer nos fazer entender que a mensagem budista é clara. A colher não se move, já que ela não existe. Tudo acontece na mente. A colher não existe. Assim como também é fruto da mente as imagens refletidas pelo espelho – o real está em uma outra dimensão e poucos conseguem alcançá-lo. Ao indivíduo cabe entender, primariamente, que as imagens são apenas imagens, não possuem autonomia. Desta forma, assim como não existe colher, também não existe espelho, pois o mundo nele refletido é só uma imagem, uma ilusão. O mundo que conhecemos e consideramos como o real, não é “o” mundo, nem real. O mundo é uma ilusão, é maia. O mundo é fruto da mente, que o recria como ilusão, porque o nosso conhecimento do mundo é ínfimo e incompleto e pervertido e apegado a valores que nos afastam do entendimento do mundo. Para entender o mundo e vê-lo em sua completitude é necessário a graça do “satori”(a iluminação) e isso não se consegue acreditando que a colher existe. Sem entender essa metafísica, não é possível entender o budismo. O espelho reflete o que o “eu” deseja ver refletido. O espelho não reflete o que deveria refletir, porque a imagem que o espelho reflete é a imagem que a mente desejou ver refletida. Embora fiquemos diante do espelho e vejamos a nós mesmos, nossa imagem não transmite nada sobre o que realmente somos. (...) Em nosso mundo não-autêntico, precisamos de espelhos para reafirmar a ilusão do “eu”. Buda recomendou ao seu filho, Rahula, que uma cuidadosa reflexão deve preceder a ação. E isso significa que é necessário estar ciente do impacto de sua ação sobre todas as outras coisas. A conexão entre os elementos que constituem a natureza é vital para que possamos entender o princípio de interdependência (pratityasamutpada) entre as coisas e a mutabilidade que surge entre elas (anicca). O sofrimento (dukkha) é fruto do apego ao permanente, ao “eu”, às regras gerais. Neo é um personagem budista? Talvez. Embora Brannigan afirme que em toda a sua vida, Neo jamais aceitou coisa alguma sem questionar , isso não é suficiente para afirmar tal postulado. Pois, se essa “dialética” comportamental se destaca como uma das características marcantes de Neo, há uma contradição irreversível no personagem: a violência. O budismo é um movimento filosófico e religioso não-violento. A mente de Neo está focada no combate, na morte e na superação do inimigo. O inimigo não é um obstáculo a ser superado, o inimigo é uma razão para o existir. A presença de Neo, dentro e fora de Matrix, só encontra justificativa na superação do agente Smith e de seus asseclas. E isso, definitivamente, não é uma orientação budista. A mente de Neo está presa, porque diante do espelho. A imagem que Neo vê, e que seu comportamento justifica, é uma imagem de sofrimento, cuja intensidade não consegue diminuir através da liberação mental. A imagem mental é mais forte que a mente que quer dessa imagem se libertar. Neo tem dificuldades para entender que a primeira verdade consiste em “dukkha”, toda vida está cheia de sofrimento. E, por não entender isso, por não
conseguir superar o sofrimento, luta contra Smith. Seu pensamento (assim como toda a orientação do filme) não é exatamente dialético, mas dualista. Matrix é um computador, o que significa o domínio da mentalidade dualista (0,1). Aqueles que estão juntos (dentro, fora, ao lado) de Matrix estão contaminados pelos pares opositivos (bem/mal, real/imagem, dentro/fora). Em Matrix, a escolha é sempre exclusão: um se o põe ao outro, um supera o outro, um elimina o outro. Em Matrix a prevalência pelo conflito é notória. E isso é oposto ao budismo. No budismo, há espaço para todos, as escolhas são inclusivas, o conflito é negado, ninguém procura pelo sofrimento. Considerar Matrix como um filme budista é, portanto, um equívoco. Matrix é um espelho, uma projeção da mente. A reflexão que nos traz é a que projetamos: o espelho nada retém. O espelho não é reflexivo. O espelho, assim como a colher, não existe.
10.
A religião de Matrix e os problemas do pluralismo (Gregory Bassham)
É um erro considerar Matrix como “apenas” um filme cristão ou budista. Matrix é um filme que celebra o sincretismo religioso. Matrix não foi lançado no fim de semana da Páscoa por acaso. Há inúmeros motivos cristão no filme, alguns óbvios, outros sutis. O mais claro de todos é o tema do redentor prometido. Jesus, aquele “que estava para vir”, eqüivale, em Matrix, a Neo, “o escolhido”. “Neo” é um anagrama de “One” (um, ou o “Escolhido”). Além disso, o termo grego neo significa “novo”, indicando a vida nova em que entra Neo e que, presumivelmente, tornará possível para os outros. Thomas Anderson é o nome de “Neo”. Assim como são Tomé, Neo passa por crises céticas, por questionamentos e por incertezas. Etimologicamente, Anderson pode ser decomposto no radical grego “andr ” (andro, homem) e no qualificativo inglês para o pater nouns, “son” (filho). Ou seja, Anderson é o “filho do homem”, uma designação que Jesus atribuía para si mesmo. Outros temas cristãos estão espalhados pelo filme. A ressurreição de Neo, no quarto 303, graças ao beijo de Trinity (Jesus ressuscitou no terceiro dia); é possível estabelecer paralelos entre Cypher e Judas; há claras ligações com Lucifer; no Antigo Testamento, Zion, a última cidade humana, é o nome poético e religioso de Jerusalém – na literatura cristã, a palavra “sion” (zion) é usada como uma designação do céu, como lar espiritual dos fiéis. Há diversas outras referências, mas é preciso destacar o que está escrito em uma placa da nave Nabucodonosor: Mark III, nº 11, uma possível referência ao Evangelho de são Marcos, capítulo III, versículo 11: Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus!”. Mas, Matrix não é apenas um filme cristão. É, antes, uma miscelânea sincrética de temas tirados do budismo tibetano, zen-budismo, gnosticismo, epistemologia ocidental clássica e contemporânea, mecânica quântica popular, psicologia de Jung, pós-modernismo, ficção científica, filmes de arte marcial de Hong Kong e outras fontes. Quando perguntaram, on-line, aos irmãos Wachowski, qual é o papel da fé no filme, eles responderam: “Hum... pergunta difícil! Fé em si mesmo. Que tal essa resposta?”. Bassham lembra que, do ponto de vista cristão, a fé e a confiança estão primeiramente em Deus, não em si mesmo. Por fim, há que se destacar que a violência em Matrix está em desacordo com o cristianismo, com o budismo e com qualquer proposta civilizatória (independente de ser religiosa ou não). A soma dessas influências religiosas e de sua simbologia sincrética atraiu muitos espectadores. O pluralismo religioso é sempre uma utopia bem-vinda aos corações e mentes desamparados pelas ideologias políticas. E isso significa que o número de indivíduos a deriva nesse mar (a religião) é cada vez maior. Acreditar ou não nos princípios religiosos de Matrix é uma escolha, mas aceitá-los como estão representados no filme é certamente uma má escolha. 11. Felicidade e a escolha de Cypher: a ignorância é felicidade? (Charles L. Griswold Jr .) O que é felicidade? De todas as grandes inquietações humanas, a felicidade desempenha importante papel no imaginário moderno: todo mundo ambiciona ser feliz. E, mais importante, não-filósofos em geral parecem supor que existe uma resposta à pergunta “o que é a felicidade?” Isso porque, para desespero de muitos, a felicidade é algo volátil, fugidio e escorregadio. Talvez por isso mesmo é que a felicidade é um tema corrente no cinema e na literatura. E, nesse sentido, Matrix oferece mais uma oportunidade para debater o assunto. O tema da caverna (Platão) é uma boa oportunidade para revisitar o tema. Embora os prisioneiros não se considerem prisioneiros (ignorantes da própria ignorância), um deles consegue se libertar. Sai da caverna, vê a luz e escolhe voltar para dentro da caverna,
para “libertar” seus companheiros. Chegar à verdade é uma transformação da alma que consiste tanto numa descoberta do “eu” – de que existe uma alma e essa alma possui uma determinada natureza – como do que é real. Inevitavelmente, esse é um caminho do sofrimento, bem como de felicidade. Lutar pela felicidade implica em superar o sofrimento, parece nos diz algum livro de auto-ajuda. Não é assim, o sofrimento e a felicidade caminham juntos e são frutos de escolhas pessoais. O prisioneiro da caverna sofre quando volta para revelar a verdade aos companheiros – mas sem esse sofrimento, seria impossível a sua pequena felicidade pessoal. Em um sentido platônico, a verdadeira liberdade e felicidade dependem do conhecimento do que é real; segundo essa visão, uma pessoa pode Ter a ilusão de ser livre e feliz, mas ser de fato um escravo e infeliz. É neste ponto que a figura de Cypher se destaca. Ao fazer o acordo com o agente Smith, Cypher pronuncia uma das frases mais famosas de Matrix: a ignorância é a felicidade. Na avaliação de Griswold Jr., a satisfação e a falta de reflexão são aliadas. Em outras palavras, a ignorância é a felicidade, pois um indivíduo tranqüilizado, isento das pressões do mundo externo (e aqui a analogia com o mundo de Matrix não é mera coincidência) e sem grandes preocupações metafísicas, vivendo em estado de quase ataraxia, inegavelmente está mais próximo de suas satisfações pessoais do que um que leve uma vida oposta a sua. Resta saber se esse é o verdadeiro “caminho para a felicidade”. De qualquer forma, essa caminhada não é suporte para se pensar que o esclarecimento, a reflexão e o conhecimento levam irremediavelmente à infelicidade, à insatisfação e à tristeza. Sem colocar em discussão os motivos de cada um dos indivíduos, muito do que chamamos “felicidade” nada mais é do um auto-engano. A confusão entre felicidade e satisfação é geral. Cypher quer satisfazer suas necessidades – mas isso não o fará feliz – sua felicidade está em ignorar o que é felicidade (porque se soubesse o que é a felicidade, então estaria lutando ao lado de Neo, o que, convenhamos, é a prova evidente da infelicidade). Griswold Jr. propõe três teses sobre a felicidade. A primeira diz que a felicidade está associada a uma ordenação apropriada da alma. É um conceito metafísico. Para se o bter esse tipo de felicidade necessário se faz eliminar todo tipo de ansiedade e rumar para algum estado de espírito próximo da ataraxia (tranqüilidade). A segunda tese sobre a felicidade se opõe à primeira. Aristóteles associava a felicidade com a atividade (energeia). Felicidade é o summum bonum , e o maior bem para uma pessoa consiste em excelência em sua função ( ergon ), ou seja, na atividade ou trabalho da psique. A terceira tese é uma união das duas anteriores, aproveitando partes de cada uma delas e se afastando principalmente da apatheia, a ausência de paixão. O distanciamento (e a indiferença), assim como o arrebatamento, a discórdia e a p erturbação, são elementos que nos afastam da felicidade. Definir felicidade, de qualquer forma, não é uma atividade feliz. 12. Nós somos o “escolhido”! Kant explica como manipular a Matrix ( James
Lawler )
Desde a antigüidade, os filósofos tentam encontrar maneiras de distinguir o mundo real da mera aparência. Kant afirma que mesmo as assim chamadas propriedades objetivas da física dependem de projeções humanas subjetivas. Embora exista uma realidade (numeno) esta não pode ser alcançada pelo conhecimento humano. O mundo que vemos (fenômeno) é apenas uma projeção da consciência humana. Para Kant, o responsável por este engano não é o gênio maligno, de Descartes, mas nós seres humanos que nos auto-enganamos ao projetarmos a nossa própria experiência. Atribuímos ao mundo uma realidade independente e com isso alienamos a nossa própria liberdade. Essa abdicação da liberdade humana criativa é o padrão gerador fundamental ou a “matriz” do mundo socioeconômico e político no qual as pessoas, na maioria, se encontram escravizadas por outras. O agente Smith revela a Morpheus a existência de uma outra Matrix, que foi criada para produzir um mundo humano perfeito e que foi um absoluto fracasso. Smith especula sobre o motivo disto: Alguns acreditam que nós não tínhamos a linguagem do programa para descrever o mundo perfeito de vocês. Mas eu creio que, como espécie, os seres humanos definem sua realidade por meio do sofrimento e da miséria. (...) O mundo perfeito era um sonho do qual o seu cérebro primitivo tentava acordar. Motivo por que a Matriz foi recriada para este fim: o auge de sua civilização. O homem parece escolher a sua própria ilusão, rejeitando o ideal do mundo perfeito. Qual seria o motivo para escolher o sofrimento e a miséria ao invés da felicidade plena da primeira Matrix? Duas teses filosóficas de libertação contrapõem-se: a visão platônica de um rei filósofo (“o escolhido”) que conduzirá a humanidade e a libertará dos grilhões d a miséria; e a visão kantiana, iluminista, moderna, de que a razão individual é que é libertadora e que ninguém pode nos salvar, exceto nós mesmos. Em Matrix, a escolha que desperta o indivíduo para a realidade e o leva à verdade e à liberdade é a da pílula vermelha. A pílula azul conduz ao sonho da ilusão centrada no “eu” . O egotismo, que consiste em usar a existência física individual como base primária
das escolhas pessoais, leva as pessoas a acreditarem que são “os escolhidos” ou o centro do universo e que tudo foi criado para elas. A experiência mostra, entretanto, que outras pessoas também se consideram “escolhidas” e limitam os desejos individuais. A similitude entre a volta à vida de Neo, após morrer para salvar Morpheus, e o mito cristão da ressurreição de Cristo é clara. Neo, assim como Jesus, morre e volta à vida. O salvador (Neo) não é, entretanto, um super-homem, mas um professor universal, que mostra aos outros como ser igual a ele. Ao dirigir-se aos controladores das máquinas, diz: Vou mostrar a eles um mundo sem vocês. Um mundo sem regras e controles, sem fronteiras ou limites, um mundo onde qualquer coisa é possível. Segundo James Lawler, O mundo sem limites, onde qualquer coisa é possível, é um mundo em que todos têm o poder de moldar a realidade, para manipular a Matrix. Para que esse mundo exista, é necessário que o egoísmo seja superado, que alcancemos uma compreensão de nossa unidade essencial entre nós todos. Nesse entendimento, encontraremos nossa liberdade, nossa ligação intrínseca com o poder Divino de realizar nossos maiores ideais, e nossa habilidade para transcender o medo da morte. O “Escolhido” pode ser o primeiro super-humano, mas não é o último. 13.
Memória do Subsolo: niilismo e Matrix (Thomas S. Hibbs)
Na avaliação de Thomas S. Hibbs, o debate sobre Matrix, e consequentemente sobre a modernidade, costuma esquecer alguns elos significativos de análise: um deles é o romance Memórias do Subsolo, de Fiodor Dostoiévski. Para o leitor atento (...) o homem do subsolo oferece mais do que a negação sombria do projeto do Iluminismo. A rincipal contradição, aquela que preocupa o homem do subsolo e é a fonte de sua dialética impiedosa e paralisante, diz respeito à liberdade. Em Memórias do subsolo, assim como em toda a obra de Dostoiévski, o que se destaca é o intenso niilismo com que os elementos que compõem a modernidade são tratados. Dostoiévski é um anti-iluminista, porque não acredita na razão como proposta de felicidade humana. A felicidade, encontramos em vários de seus ro mances, é um estágio ilusório, um momento de falta de reflexão, um estágio anterior a degradação. Somente o pessimismo, na avaliação de Dostoiévski, é que pode levar ao esclarecimento (o que significa, basicamente, ao sofrimento). Em uma outra vertente, Hibbs encontra paralelos entre Matrix e a série televisiva Arquivo X . De qualquer forma, Hibbs sabe que a possível influência de Memórias do Subsolo (se é que ela existe de fato) é apenas mais um elo de ligação entre Matrix e a literatura universal. E essa corrente nunca vai parar de crescer. 14. Tomando uma pílula amarga: autenticidade em Matrix e A Náusea. ( Jenifer L.
McMahon).
O homem está condenado a ser livre e é fruto de suas escolhas. Essa argumentação basilar da visão existencialista do mundo está presente em todo o contexto da trama de Matrix. A escolha é constante e é dela que depende o caminho e o conhecimento dos personagens do filme. Neo engole a pílula vermelha e cria a possibilidade do desenvolvimento da trama. As escolhas são feitas entre honestidade e ignorância ou verdade e ilusão. Os temas existencialistas como o absurdo, a alienação e a angústia são constantes. A escolha principal, entretanto, é entre autenticidade e inautenticidade. Camus, Sartre, Heidegger enaltecem a autenticidade e desprezam a inautenticidade, que consideram “má-fé” (Camus a descreve como “suicídio intelectual”). O estilo de vida autêntico é corajoso e “majestoso” (“Raciocínio absurdo”) e “livre de ilusões” ( Ser e o Tempo ). McMahon examina a autenticidade e a inautenticidade, e seus benefícios e problemas, contrapondo Matrix e o romance A Náusea, de Jean-Paul Sartre. Roquentin, personagem principal do romance, é comparado a Neo. Roquentin é mediano em oposição a Neo e suas habilidades fantásticas. A única coisa incomum de Roquentin é seu cabelo vermelho. As experiências que começa a ter fazem com que perca a confiança na realidade. A mão de um amigo que ele aperta parece um grande verme gordo e quente. Olha para a mão e vê um crustáceo e a sensação é tal que ele a esfaqueia. Ao longo do romance, Sartre cria bizarras experiências para seu personagem, que parece estar perdendo contato com a realidade, mas ao final deixa claro que ele está, na verdade, tornando-se ciente de sua verdadeira natureza. Roquentin descobre a verdadeira natureza da existência, a angustia da escolha, e descreve a existência como um “sofrimento desregrado” que o enoja e ao mesmo tempo lhe causa “medo”. A ordem e o propósito que ele supunha ser a realidade é uma construção que a consciência “coloca sobre ela”. Sartre explica, em O Ser e o Nada, que embora a consciência humana não crie o mundo, ela lhe dá ordem e propósito. Neo e Roquentin descobrem a verdadeira natureza humana e que a verdade (autenticidade) não é o caminho mais fácil. As resistências psíquicas e as ideologias sociais são um poderoso impedimento para o caminho da verdade. Roquentin questiona,
em vários momentos, a própria sanidade. A contraposição entre a tranqüilidade da inautenticidade e a turbulência da autenticidade são constantes, tanto em Matrix como em A Náusea. Enquanto os personagens não-autênticos são descritos como se existissem em tranqüila ignorância, os personagens que se aproximam da autenticidade são considerados ansiosos, alienados e à beira da insanidade. A ataraxia da inautenticidade parece ter vantagens sobre a autenticidade – mas a segunda é preferível, na visão existencialista. A ansiedade é diminuída pela vida nãoautêntica, mas não é eliminada. Somente a morte (suicídio camusiano) seria capaz disso, mas esta não parece ser a melhor opção. O modo não-autêntico tem também como conseqüência negativa à diminuição da liberdade individual. Roquentin conclui, ao final de A Náusea, que a existência é um dom perfeitamente livre e uma plenitude que o homem nunca pode abandonar. Ela é transformada de algo que desperta nojo em uma coisa deliciosa, quando Roquentin a descreve como “densa, pesada e doce”. Como ilustram, Roquentin e Neo, os discernimentos que a autenticidade traz só são insuportáveis enquanto resistimos a eles. Embora a existência não seja tudo o que queremos, ela só nos sufoca se insistirmos que seja diferente do que é. Se abrirmos mão dessas expectativas, poderemos ver as coisas como elas são. Só nesse ponto seremos capazes de apreciar plenamente e fazer uso do magnífico dom da existência. Por fim, McMahon nos aconselha a tomar a pílula vermelha. 15. O paradoxo da resposta real à neoficção (Sarah E. Worth)
A ficção cinematográfica contemporânea quer incluir a ciência e a f ilosofia como dois de seus temas principais. Pelo menos é isso o que indicam filmes como Matrix, Clube da Luta, eXistenZ e 13º Andar (todos lançados em 1999). Esses filmes seguem o sucesso de Blade Runner (1982/1991), Brazil (1985), O Vingador do Futuro (1990), Lawnmore Man (1992), Lawnmore Man 2: Beyond Cyberspace (1996) e O Show de Truman (1998). Anterior a todos esses filmes cabe não esquecer Jornada nas Estrelas. A bordo da nave Enterprise, havia uma interação muito interessante entre o real e a ficção – cuja origem está no clássico literário Alice no Pais das Maravilhas, de Lewis Carrol. Na verdade, a narrativa é um dos aspectos mais dinâmicos na comunicação da idéia central de uma história. A narrativa é o registro emocional de uma história (cuja narração nada mais é do que um dos vestígios dessa emoção) – e isso independe se a história é “real” ou ficcional. Mas, é importante destacar que a narrativa assume um caráter ficcional na medida em que é narrada e que reagimos à ficção, sabendo que é ficção, e reagimos de forma ainda mais forte a descrições narrativas vívidas e expressivas. Somos atraídos a ficção porque gostamos do modo como reagimos a elas. Nossa reação geralmente é mais completa quando a história é superior, ou seja, quando a narrativa é mais bem desenvolvida. O paradoxo principal da estrutura de uma narrativa está no fato do leitor/espectador acreditar ou não no que está sendo narrado. E isso é mais importante do que a ação dos personagens, a estrutura narrativa ou a verossimilhança do enredo. O ato criativo está na possibilidade de convencer que a história narrada merece ser acompanhada – compartilhada. Ao mesmo tempo, acreditar nessa narrativa leva o leitor/espectador a um grau de afastamento da realidade objetiva, o real, que conflita com determinados interesses. A literatura, o cinema, as artes em geral, possuem um componente de ataraxia muito forte – e isso independe do fato de acreditarmos ou não no que está sendo narrado. A narrativa não necessita ser convincente, basta ser bem narrada – e aqui ingressamos no universo ensandecido que Alice no País das Maravilhas já demonstrou ser lúdico, lúcido e compatível com as experiências físicas do leitor. Alice cai na toca do coelho e vislumbra um mundo inaudito: é poder da fábula que maravilha o leitor, é o mundo “fora da percepção” que maravilha o leitor. É com esse sentimento que apreciamos Matrix. Preenchemos os espaços vazios de conhecimentos com nossos palpites e preconceitos. Por isso, a realidade pode não ser tão “real” quanto pensamos, já que construímos boa parte dela. O mesmo fazemos com a ficção, imaginando que aqueles sobre quem lemos têm vidas humanas relativamente semelhantes, e funcionam como seres humanos de carne e osso, a menos que a história observe o contrário, e imaginamos também que eles vivem num mundo que funciona fisicamente, assim como o nosso. A realidade e a ficção não são a mesma coisa, mas Matrix é um momento em que a ficção se aproxima assustadoramente da realidade. 16. Gênero real e filosofia virtual (Debora Knight e George McKnight )
Matrix é um filme de gênero misto, afirmam os autores deste artigo. Ou seja, qualquer interpretação de Matrix como um filme filosófico ou de ficção científica ou mesmo uma nova versão do faroeste, é um equívoco. Matrix é um filme que aborda todas essas categoria e mais algumas outras. Toda classificação implica em reducionismo.
Matrix apresenta características convencionais, elementos estruturais e temáticos de vários gêneros e subgêneros. Por isso, cabe perguntar: o que faz de Matrix um filme diferente de tantos outros que são exibidos pelas telas? A resposta é simples: o pastiche – o reaproveitamento de características de vários gêneros e subgêneros de consenso em um enredo coerente. Ao mesclar ação, ficção científica, terror, faroeste, thriller , e as seqüências de lutas (que lembram um ballet, ou seja, um musical), suspense e mistério, Matrix se apropria de elementos temáticos que não são seus, primariamente, e num toque pós-moderno, elabora um discurso plural, onde qualquer forma de identidade evapora. Matrix é constituída de tantos elementos que parece ser a expressão do novo. Somente quando esses elementos são decompostos é que percebemos o quanto há de velho em toda a estrutura. De novo mesmo, apenas a embalagem. 17. Penetrando Keanu: novos orifícios, mas a mesma e velha porcaria (Cynthia Freeland ) Qualquer semelhança entre Matrix e eXistenZ (David Cronenberg) não é mera coincidência. Essa é a tese de Cynthia Freeland, em um artigo bem-humorado e cheio de provocações feministas. Freeland, na procura de uma suposta e utópica “terra da liberdade”, considera que o corpo é o território onde estão demarcados os comportamentos. De forma sutil, mas insistente, dá a entender que ser “penetrado” é uma característica feminina, enquanto “penetrar” é um atributo masculino. Assim, ao comparar Matrix como eXistenZ encontra elementos que subvertem essa orientação de caráter, digamos, sexual. A articulista mostra um (in)certo gozo quando descreve as cenas em que Keanu Reeves (Neo) é “penetrado” (o dispositivo rastreador em forma de escorpião, a extração desse dispositivo por Trinity, a paródia do parto em que Neo desce por um tubo gosmento, algumas agulhas de acupuntura, o plug instalado em sua nuca). Freeland entende que essa troca de “papéis” é benéfica para as relações sociais, pois subverte o posicionamento “ativo” do macho. Mas, como ela mesma faz questão de destacar, um pouco mais tarde, isso não significa muita coisa, pois todas as mulheres, em Matrix, desempenham atividades “passivos”. Na análise de Freeland, Trinity é uma figura secundária, uma personagem “escada”, um suporte para que as ações de Neo se destaquem ainda mais. Nem precisaríamos mencionar, mas mencionemos, que a personagem Trinity (Carrie-Anne Moss) ocupa uma posição feminina subserviente. (...) Trinity também é uma “gatinha” que está ali para oferecer Sex appeal. Ela é adorada por seus fãs por “arrasar”, e acompanha Neo no resgate de Morpheus, em que mata um bom número de homens; mas obviamente sua função principal é decorativa. De uma maneira irônica e quase admitindo o quanto Matrix fere as suas convicções feministas, Freeland acaba admitindo que mesmo nos momentos em que Neo é “penetrado”, a “penetração” masculina não diminui em intensidade e ritmo. Em outras palavras, Freeland queria para Trinity o que (e isso Freud explica!) queria para si mesma: carinho. Não podendo obter o que projeta para Trinity, só lhe resta esculhambar com Matrix – e faz isso com razoável competência, embora não de forma totalmente isenta: compara um produto “comercial” (Matrix) com um filme “cult” (eXistenZ ). O resultado desse paralelo é amplamente favorável a eXistenZ (inclusive porque o personagem Ted – Jude Law – assume o seu lado “feminino” com menos resistência e “aceita” uma posição secundária na trama, isto é, uma “posição passiva”). Nesse sentido, Freeland estabelece em seu artigo uma análise de “gênero”, onde as relações entre o masculino e o feminino estão em maior evidência do que a luta binária entre o bem e o mal. Por fim, Freeland emite o seu julgamento sobre Matrix: Nós, os espectadores, somos incentivados a escapar das ilusões, mas de uma maneira hipócrita, por um filme que se esforça em nos seduzir com suas próprias e notáveis visões. O que Freeland escreve sobre eXistenZ é um pouco diferente: o enredo de eXistenZ , uma amostra de ogos dentro de um jogo, nos pede para pensar se a realidade ilusória é preferível à vida regular. E termina sua análise decretando: Enquanto Matrix desonestamente usa um arsenal de truques mágicos cinemáticos para envolver os espectadores em sua realidade ilusória, eXistenZ constantemente alude aos jogos como uma metáfora para o cinema. (...) Matrix tem o objetivo ostensivo de devolver indivíduos humanos a uma realidade de sua própria criação, o tempo todo sugando platéias para uma realidade que jamais admite ser apenas um filme. eXistenZ é o oposto: em seu jeito tosco, fazendo orifícios em prol de jogos, o filme também lembra delicadamente ao público que todos nós gostamos de fantasiar porque a vida real se torna chata. 18. Matrix, Marx e a vida de uma bateria ( Martin A. Danahay e David Rieder ) Matrix é um bom filme para uma análise marxista – está repleto de alusões a numerosos temas sociais e econômicos que podem ser e ncontrados na obra de Karl Marx: a exploração do trabalho pelo capital, o progresso mecânico em detrimento da mão-de-obra, a alienação, o controle estatal, etc.
De acordo com Marx, os trabalhadores no sistema capitalista não reconhecem a relação entre o seu trabalho e o capital que produzem, porque se tornaram “alienados” das realidades do trabalho. Eles também não reconhecem que são forçados a trabalhar, acreditando que operam num mercado “livre”, no qual vendem o trabalho voluntariamente. Na verdade, argumenta Marx, os trabalhadores são explorados porque não conseguem escolher como e onde trabalhar. Devem aceitar os termos de sua contratação, que são ditados pelos detentores do capital. Em Matrix, o “sistema” controla tudo e todos. A liberdade é excluída, porque perniciosa ao funcionamento da estrutura. Aos trabalhadores humanos cabe se integrar a proposta niveladora ou serem destruídos. É por isso que os tripulantes da Nabucodonosor ( que “sabem”) se insurgem e lutam contra o sistema. Há uma intensa disputa econômica em todo o enredo de Matrix – cujo sinal inicial aparece quando descobrimos que Neo é um hacker (uma das mais novas formas de insubordinação contra a estrutura capitalista). A opção de Cypher também é uma opção econômica, mas de viés inverso. Cypher quer trabalhar para o sistema. Pouco lhe importa se isso interfere no coletivo, como um digno (?) representante da modernidade econômica é um egoísta: quer resolver a sua situação específica, quer ser feliz (mesmo na ignorância), quer ganhar dinheiro. Cypher é um alienado – e isso o faz uma caricatura do trabalhador na modernidade. No entanto, como salientam os autores deste artigo, nenhum espectador de Matrix, depois de assistir ao filme, sai da sala de cinema convencido de que precisa colaborar para a transformação do mundo. A estrutura total de Matrix “trabalha” contra a reflexão. 19. A simulação de Matrix e a era pós-moderna (David Weberman)
Entre 1966 e 1974, o mundo mudou. O nosso mundo mudou. Estamos agora na pós-modernidade. O que aconteceu? Muitas coisas. Desindustrialização, suburbanização e um aumento dramático na flexibilidade do acúmulo de capital levando ao que conhecemos hoje como globalização. Os conceitos artísticos são outros. A tecnologia também mudou. Nós, os indivíduos, também fomos afetados por todas essas transformações. Num mundo com drogas de marca, nossas personalidades têm plasticidade, deixando a autenticidade para trás como se nada mais fosse que um engodo. Isso para não falar no poder da mídia, que torce, retorce e destrói qualquer coisa que esteja fora de seus interesses (e que nunca ficam claros, pois dependem das variações do “mercado”). Em uma das cenas iniciais, Neo procura um disquete dentro de um livro. Sintomaticamente esse livro é Simulations and Simulacra, de Jean Baudrillard – um texto pós-moderno sobre a erosão do real e seu deslocamento por imagens simuladas. Essa referência parece nos dizer que não é mais possível distinguir entre o real e o irreal – tudo é simulacro. Deixando as implicações filosóficas de lado, há um desejo implícito de que a realidade pode ser simulada e melhorada – mesmo que isso implique em um pacto com o irreal (e a computação gráfica, por exemplo, dentro deste recorte, é o que?). O problema está em substituir essa simulação pelo real, e aceitar a simulação no lugar do real, como se a simulação fosse superior ao real. Somente teremos consciência (um conceito que foge ao propósito da pós-modernidade) quando soubermos separar o real do irreal e fazer a opção por um deles, conscientes do que essa opção acarreta no mundo em que estamos inseridos. Em alguns casos, o real não é melhor que o irreal, mas o irreal é sempre pior do que o real, porque simula o real. 20. Matrix: ou os dois lados da perversão (Slavoj Zizek )
Quando vi Matrix num cinema local na Eslovênia, tive a oportunidade única de me sentar perto do espectador ideal do filme – ou seja, um idiota. Slavoj Zizek O espectador citado por Zizek na epígrafe acima repetia durante a exibição do filme: Meu Deus, então não existe realidade! Zizek afirma que este é o analista ideal de Matrix, por não forjar interpretações intelectuais pseudo-sofisticadas. Zizek ironiza abordagens lacanianas, frankfurtianas, de adeptos da Nova Era e interpretações platônicas. A idéia não é nova, diz o autor. O Show de Truman, de Peter Weir, com Jim Carrey , em que o herói vai descobrindo que é personagem de um programa de televisão 24-horas e a novela Time out of Joint , de Philip K. Dick, na qual um homem vivendo um dia-a-dia modesto numa pequena cidade idílica da Califórnia no fim da década de 50, aos poucos descobre que toda a cidade é uma farsa encenada para satisfazê-lo. As duas histórias mostram o hiper-real, de carta forma irreal, sem substância, não é apenas a montagem pantomímica da vida real, mas é a desmaterialização da “vida real” em si, sua reversão em um show espectral.
Outro exemplo é Starship, de Brian Aldiss, em que a população de uma tribo vive numa gigante nave estelar e que descobre um universo além, ao ultrapassar uma barreira criada pela vegetação. O filme 36 Hours, de George Seaton, narra a história de um oficial americano é capturado alguns dias antes do dia “D” (ele sabe dos planos dos Aliados). Os alemães montam um pequeno hospital americano e tentam convencê-lo de que ele está no ano de 1950 e que o Estados Unidos ganhou a guerra e que ele perdeu a memória, com idéia de obter informações sobre os planos aliados. Stalin, durante a doença de Lênin, forjava números especiais do Pravda com a justificativa que o camarada Lênin precisava descansar. Muitas outras visões literárias e cinematográficas contemplam a visão pré-moderna da chegada até o fim do universo. Parsifal (de Syberberg), romances de Chandler, filmes de Hitchcock e a famosa cena da batalha da ponte, em Apocalypse Now (em que o além da ponte é experimentado como além do universo), são exemplos. Segundo Zizek, ao contrapor a existência do real diário, que no filme seria sustentado pela Matrix, e outra “realidade” real por trás desta, cria-se um paradoxo. Ambas não captam o real . O filme não está errado em insistir que existe um Real por trás da simulação em Realidade Virtual – como Morpheus diz a Neo, quando lhe mostra a paisagem de uma Chicago devastada: “Bem-vindo ao deserto do real”. Zizek especula comparando Matrix ao “Grande Outro”, uma ordem simbólica virtual qualquer que estrutura nossa realidade. O “Grande Outro”, p ara Zizek, é a substância social que mostra que a pessoa nunca domina completamente o efeito de seus atos, e suas atividades são sempre diferentes daquela que ele planeja ou almeja. Entende que a última grande versão deste “Grande Outro” é a comunicativa, de Habermas, com seu ideal regulador de assentimento. O “Grande Outro” refere-se ao campo do senso comum e, desta forma, não pode ser representado pelo conhecimento científico. O gap criado entre a ciência moderna e a ontologia filosófica aristotélica do senso comum parece ser insuperável. As ciências sozinhas não conseguem fornecer respostas e as opiniões dos especialistas, sempre procuradas, são cada vez mais dispares e transitórias. Mas são as opiniões dos especialistas é que valem. Para Zizek, a frustração política da maioria decorre de que as pessoas são instigadas a decidir, mas recebem mensagens de que não possuem condições de fazê-lo e de avaliar objetivamente os prós e os contras. O apelo às “teorias de conspiração” é muitas vezes uma saída para o impasse. Incapazes de aceitar a realidade social, muitos recorrem ao vasto domínio das pseudo-ciências, que vão da ufologia ao segredo das pirâmides, ou repousam confortados, acreditando em uma teoria conspiratória, em uma atitude paranóica. Segundo Zizek, somos tentados a afirmar, no estilo kantiano, que o erro da teoria de conspiração é até certo ponto análogo ao “paralogismo da razão pura”, à confusão entre os dois níveis: a suspeita (do senso comum científico, social, etc., recebido) como posição metodológica formal, e a transferência dessa suspeita para outra “parateoria”. Neo é “O Escolhido”? Essa autoridade simbólica é um dos avatares que alimentam o imaginário contemporâneo. Mas, será necessário que apenas “O Escolhido” seja capaz de nos indicar o caminho ou o método que torna possível distinguir o real do irreal, a verdade da simulação, etc.? Enquanto Matrix propõe uma estrutura social inovadora (?), Neo, “O Escolhido”, é a repetição insistente de um tema já ultrapassado pela História. É aí que encontramos o verdadeiro insight de Matrix: em uma justaposição dos dois aspectos da perversão: de um lado, a redução da realidade a um domínio virtual regulado por regras arbitrárias que podem ser suspensas; e de outro lado, a verdade oculta dessa liberdade, a redução do sujeito a uma completa passividade instrumentalizada.
[1]
Nixon diz que: Sou um daqueles empiristas que acham que a idéia da coerência explanatória tem importância central para entendermos a justificativa epistêmica. (É isso que quero dizer quando apresento a idéia de que as crenças de uma pessoa são ustificadas porque “se encaixam em todas as experiências” dessa mesma pessoa.) Aqueles cujas perspectivas filosóficas os colocam em substancial conflito com uma idéia, provavelmente não acharão o argumento persuasivo.