Dossiê FREI LUÍS DE SOUSA
1 Memória ao Conservatório Real de Lisboa «Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...] Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas. O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua. Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico. [...] Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett) DEFINIÇÃO DE TRAGÉDIA «É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. [...] Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...] E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão. [...] Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que
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praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa. [...] Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b
CLASSIFICAÇÃO DE FREI LUÍS DE SOUSA «Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo. Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, 1. o número de personagens é diminuto; 2. Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris); 3. uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos); 4. contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso; 5. há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis); 6. Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego. Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo: 1. a crença no sebastianismo; 2. a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo; 3. a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições; 4. as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico; 5. o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
6. a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba. Se a isto acrescentarmos certas características formais, como 7. o uso da prosa; 8. a divisão em três actos; 9. o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.» Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II Paula Cruz
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Frei Luís de Sousa Elementos Essenciais da Tragédia Grega
Hybris − Sentimento que conduz os heróis da tragédia à violação da ordem estabelecida através de uma acção ou comportamento que se assume como um desafio aos poderes instituídos (leis dos deuses, leis da cidade, leis da família, leis da natureza).
Pathos − Sofrimento, progressivo, do(s) protagonista(s), imposto pelo Destino (Anankê) e executado pelas Parcas (Cloto, que presidia ao nascimento e sustinha o fuso na mão; Láquesis, que fiava os dias da vida e os seus acontecimentos; Átropos, a mais velha das três irmãs, que, com a sua tesoura fatal, cortava o fio da vida), como consequência da sua ousadia.
Ágon − Conflito (a alma da tragédia) que decorre da hybris desencadeada pelo(s) protagonista(s) e que se manifesta na luta contra os que zelam pela ordem estabelecida.
Anankê − É o Destino. Preside às Parcas e encontra-se acima dos próprios deuses, aos quais não é permitido desobedecer-lhe.
Peripécia − Segundo Aristóteles, "Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário". Assim, poderemos considerar um acontecimento imprevisível que altera o normal rumo dos acontecimentos da acção dramática, ao contrário do que a situação até então poderia fazer esperar. Anagnórise (Reconhecimento) − Segundo Aristóteles, "o reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para a amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou a desdita." Aristóteles acrescenta: "A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que se dá juntamente com a peripécia, como, por exemplo, no Édipo." O reconhecime nto pode ser a constatação de acontecimentos acidentais, trágicos, mas, quase sempre, se traduz na identificação de uma nova personagem, como acontece com a figura do Romeiro no Frei Luís de Sousa.
Catástrofe − Desenlace trágico, que deve ser indiciado desde o início, uma vez que resulta do conflito entre a hybris (desafio da personagem) e a anankê (destino), conflito que se desenvolve num crescendo de sofrimento (pathos) até ao clímax (ponto culminante). Segundo Aristóteles, a catástrofe " é uma acção perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes."
Katharsis (Catarse) − Purificação das emoções e paixões (idênticas às das personagens), efeito que se pretende da tragédia, através do terror (phobos) e da piedade (eleos) que deve provocar nos espectadores.
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4 LEI DAS TRÊS UNIDADES (textos teóricos) Unidade de Acção «Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as acções que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma acção una.[...] Porém Homero, assim como se distingue em tudo o mais, também parece ter visto bem, fosse por arte ou por engenho natural, pois ao compor a Odisseia não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por exemplo, o ter sido ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento em que reuniu o exército. Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessária e verosimilmente que outra houvesse de acontecer, mas compôs em torno de uma acção una a Odisseia - una, no sentido que damos a esta palavra - e de modo semelhante a Ilíada. Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando seja de um objecto uno, assim também o mito, porque é imitação de acções, deve imitar as que sejam unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo.» Aristóteles, Poética, 51 a
Unidade de Tempo «A epopeia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores, em verso; mas difere a epopeia da tragédia, pelo seu metro único e a forma narrativa. E também na extensão, porque a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopeia não tem limite de tempo - e nisso diferem [...] Aristóteles, Poética, 49 b
Unidade de Espaço «Aristóteles exigia para a tragédia um tempo de história muito curto, isto é, a acção devia começar, desenvolver-se e terminar no espaço de 24 horas. Os doutrinadores clássicos italianos e franceses foram apologistas das três unidade: tempo, lugar e acção.» Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. I A Verdadeira Unidade da Acção Dramática «O drama, por sua vez, procura representar também a totalidade da vida, mas através de acções humanas que se opõem, de forma que o fulcro daquela totalidade reside na colisão dramática. Por isso, como escreve Hegel, a verdadeira unidade da acção dramática «não pode derivar senão do movimento total, o que significa que o conflito deve encontrar a sua explicação exaustiva nas circunstâncias em que se produz, bem como nos caracteres e nos objectivos em presença». Deste modo, a profusão de personagens, de objectos, de faits-divers que caracteriza o texto narrativo, não existe no texto dramático, no qual tudo se subordina às exigências da dinâmica do conflito: o tempo da acção é relativamente condensado, o espaço é relativamente rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas, os episódios laterais abolidos, desenvolvendo-se a acção como uma progressão de eventos que resulta forçosamente da conformação (psicológica, ética, sócio-cultural, ideológica) das personagens e das situações em que estas se encontram envolvidas. No Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, por exemplo, não aparece a representação minudente da vida quotidiana de uma família, a descrição da sua casa e da localidade onde habita, etc. [...] Os elementos que porventura
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pudessem aparecer na obra de Garrett com o propósito de figurar a época, a sociedade coeva, o seu estilo de vida. etc., narrativizariam inevitavelmente o drama, enfraquecendo a acção e prejudicando o conflito. No Frei Luís de Sousa não existem personagens supérfluas ou tautológicas ou episódios dispensáveis, sob o ponto de vista da lógica da acção dramática: cada personagem ocupa uma posição definida e desempenha uma função necessária na acção e a ausência de qualquer delas afectaria gravemente o desenvolvimento desta; não existem episódios providos de certa autonomia estrutural e destinados a caracterizar, segundo a expressão hegeliana, «um estado do mundo», pois a acção encaminha-se irresistivelmente, sem ramificações, para a manifestação do conflito. A vida é assim representada nos seus momentos de crise e as relações humanas são apreendidas nos seus aspectos de tensão antagónica.» Aguiar e Silva, Vítor Manuel de, Teoria da Literatura, O Texto Dramático
LEI DAS TRÊS UNIDADES NA OBRA Unidade de Acção * No Frei Luís de Sousa, todos os acontecimentos se sucedem em conexão tal, que nada pode ser suprimido sem que se altere o conflito e o respectivo desenlace, tal como postulava Aristóteles; * O conflito desenvolve-se num crescendo até ao clímax, provocando um pathos cada vez mais cruel e doloroso; * A catástrofe é o desenlace aguardado; * A verosimilhança é inquestionável. Conclusão: a unidade da acção é inequivocamente alcançada. Unidade de Tempo * Acto I - «É no fim da tarde» (didascália inicial) - «Há pouca luz do dia já» (cena II) - «Já vai cerrar-se a noite» (cena VI) - «É noite fechada» (cena VII, didascália) - «São oito horas» (cena VII) * Acto II - É de tarde - «Há oito dias que estamos nesta casa» (cena I) - «Ficou naquele estado em que a temos visto há oito dias» (cena I) - «O arcebispo foi ontem a Lisboa e volta esta tarde» (cena IV) - «Hoje é sexta-feira» (cena V) - «Ora vamos: ao anoitecer, antes da noite, aqui estou» (cena VIII) * Acto III - «É alta noite» (didascália inicial) - «Manuel - Que horas são? Jorge - Quatro, quatro e meia» (cena I) - «Manuel - [...] a luz desse dia que vem a nascer» (cena I)
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Conclusão: 1. Embora não respeite as vinte e quatro horas, tem-se a noção da condensação do tempo da acção. Iniciando-se o acto I no fim da tarde de uma sexta-feira, termina o mesmo ao cair da noite com o incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho. Abre o acto II oito dias depois (entenda-se um semana, de acordo com o uso corrente), à tarde, por isso também numa sexta-feira, sendo que a chegada do Romeiro acontece muito antes do regresso de Lisboa de Manuel de Sousa Coutinho. O acto III decorre durante a noite, consumando-se a morte de Maria e a tomada de hábito dos dois esposos antes de se ver a luz do dia de sábado. Sendo assim, a transposição da acção de uma sexta-feira para a sexta-feira da semana seguinte, só pelo facto de se manter o mesmo dia da semana, faz criar a ilusão de que tudo se passa no mesmo dia. Aliás, a elipse temporal de uma semana só se compreenderá pelo facto de Garrett pretender justificar a ausência clandestina de Manuel de Sousa Coutinho como consequência do incêndio do seu próprio palácio. 2. De notar o carácter fatal da sexta-feira, como, aliás, também acontece para a família do Vale de Santarém em Viagens na Minha Terra, do mesmo autor, e a enorme coincidência dos diferentes aniversários: Madalena - Hoje... hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que mais tenho receado... que ainda temo que não acabe sem muito grande desgraça... É um dia fatal para mim: faz hoje anos que... que casei a primeira vez; faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião; faz anos também que... vi pela primeira vez a Manuel de Sousa.1
Unidade de Espaço * Acto I - Palácio de Manuel de Sousa Coutinho: «Câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete. Porcelanas, varões, sedas, flores; etc.» (didascália) Jorge - Mas, enfim, resolveram sair; e sabereis mais que, para corte e «buen retiro» dos nossos cinco reis, os senhores governadores de Portugal por D. Filipe de Castela que Deus guarde, foi escolhida esta nossa boa vila de Almada, que o deveu à fama de suas águas sadias, ares lavados e graciosa vista. * Acto II - «É no palácio que fora de D. João de Portugal, em Almada: salão antigo de gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de família [...]» (didascália) * Acto III - «Parte baixa do palácio de D. João de Portugal, comunicando, pela porta à esquerda do espectador, com a capela da Senhora da Piedade [...] É um casarão vasto, sem ornato algum. Arrumadas às paredes, em diversos pontos, escadas, tocheiras, cruzes, ciriais e outras alfaias e guisamentos de igreja de uso conhecido. A um lado um esquife [...]; do outro, uma grande cruz negra [...] e um hábito completo de religioso domínico, túnica, escapulário, rosário, cinto, etc. (didascália) Conclusão: 1. Verificamos que, da passagem do primeiro para o segundo acto, existe uma mudança de espaço, o que implica a necessária mudança de cenário; da passagem do segundo para o terceiro acto, embora o espaço cénico pertença ao mesmo
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espaço físico (Palácio de D. João de Portugal), é já diferente do anterior, o que implica, de igual modo, a mudança de cenário. 2. Assim, se considerarmos que, para existir unidade de espaço, este obriga à manutenção de um mesmo cenário, concluiremos que tal unidade não é respeitada. No entanto, muitos autores consideram a unidade de espaço sempre que este represente um só país, uma só região, uma só cidade, uma só vila, um só palácio, etc. De acordo com este ponto de vista, concluiremos que Garrett respeitou a unidade de espaço, já que, embora exista a referência a outros espaços físicos, as personagens em cena permanecem sempre na mesma vila de Almada. 3. Convém notar que, à medida que o conflito evolui para a catástrofe final, o espaço vai-se tornando cada vez mais austero e severo, à boa maneira romântica, até desembocar na capela da Senhora da Piedade e no altar-mor da igreja de S. Paulo. Conclusão final: penso que estão reunidos elementos bastantes para podermos afirmar que Garrett conseguiu, com engenho, iludir, se não respeitar, a lei das três unidades. A importância d' Os Lusíadas no início da peça
Creio que Almeida Garrett não poderia ter concebido melhor cena para iniciar o Frei Luís de Sousa. Sendo esta obra, pela sua forma, um drama, "título modesto" com que o autor se contentou, como o deixou expresso na Memória ao Conservatório Real, é, efectivamente, pela sua essência, uma tragédia. Assim, teve o autor o cuidado de abrir a cortina com uma cena em que Madalena, sozinha, «como quem descaiu da leitura na meditação», repete, «maquinalmente e devagar», dois versos do episódio de Inês de Castro, de Os Lusíadas.
«Naquele engano d'alma ledo e cego / Que a fortuna não deixa durar muito...» O solilóquio de Madalena evoca aspectos particularmente pertinentes: o carácter trágico do episódio determinado pelo destino (fortuna), à boa maneira clássica (ver Elementos Essenciais da Tragédia Grega), e a diferença que ela própria sente em relação a Inês. «Viveu-se, pode-se morrer.», diz Madalena, só que o medo e os terrores que a perseguem (note-se a gradação crescente) não lhe permitiram ainda que vivesse, levando-a, no final da cena, a desabafar: «...que desgraça a minha!» Temos, pois, o primeiro indício de que acção se encaminhará inevitavelmente para a catástrofe. Por outro lado, o facto de Garrett ter colocado Madalena a ler Os Lusíadas propicia a segunda fala de Telmo (cena II), que considera este livro «como não há outro, tirante o respeito devido ao da palavra de Deus», que não conhece por não saber latim como o seu «senhor»2. Tal dito, aparentemente um lapso do domínio do subconsciente, foi o suficiente para que Telmo, como que censurado pelo seu consciente, corrigisse: «... quero dizer, como o Sr. Manuel de Sousa Coutinho». Esta correcção evidencia o conflito existente entre ambas as personagens, já que o que Telmo pretende é justamente lembrar a Madalena que o seu senhor continua a ser D. João de Portugal, em cuja morte não acredita, como podemos verificar no decurso da mesma cena3. A utilização de Os Lusíadas em Frei Luís de Sousa pode ser tudo menos surpreendente. Não nos esqueçamos de que o Romantismo, em Portugal, por convenção, teve o seu início em 22 de Fevereiro de 1825, data da publicação, em Paris, de Camões, poema em dez cantos, de Almeida Garrett. Era, sem dúvida, Garrett um camonianista, por isso não estranha que soubesse que uma das formas que os que se opunham à governação filipina encontraram para alimentar o sebastianismo foi precisamente o fomento da leitura da epopeia nacional. Nunca, até então, Os Lusíadas haviam tido tão elevado número de tiragens. Assim, aparentemente, Madalena surge em cena duplamente marcada pelo destino: todo o simbolismo do episódio de Inês de Castro e o prenúncio de um sebastianismo que só lhe poderá ser adverso.
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O Romantismo na obra O Frei Luís de Sousa apresenta alguns dos tópicos românticos, tais como: - Sebastianismo - alimentado por Telmo e Maria; - patriotismo e nacionalismo - além do que decorre do Sebastianismo, deve-se ter em conta o comportamento de Manuel de Sousa Coutinho ao incendiar o seu próprio palácio para impedir que fosse ocupado pelos Governadores ao serviço de Castela; - crenças e superstições - alimentadas por Madalena, Telmo e Maria, que, sistematicamente, aludiam a agouros, visões, sonhos; - religiosidade - uma referência de todas as personagens; note-se, no entanto, a religiosidade de Manuel de Sousa Coutinho, que inclui o uso da razão e que determina a entrada em hábito como solução do conflito; Madalena, por exemplo, não compreende a atitude de Joana de Castro, a condessa de Vimioso que se tornou freira (Soror Joana); - individualismo - o confronto entre o indivíduo e a sociedade é particularmente visível em Madalena; - tema da morte - a morte como solução dos conflitos é um tema privilegiado pelos românticos; no caso do Frei Luís de Sousa, verifica-se: - a morte física de Maria (morre tuberculosa); - a morte simbólica de Madalena e de Manuel, que, ao tomarem o hábito, morrem para a vida mundana; - morte simbólica de D. João de Portugal que, depois de admitir que morreu no dia em que sua mulher o julgou morto, simbolicamente, morre uma segunda vez, quando Telmo, depois de lhe ter desejado a morte física como única maneira de salvar a sua menina, o seu anjo (Maria), aceita colaborar com o Romeiro no sentido de afirmar que se trata de um impostor, numa última tentativa de evitar a catástrofe; - morte psicológica de Telmo (ver texto de António José Saraiva);
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9 SEBASTIANISMO
«[...] Veio depois a derrota de Alcácer Quibir e o desaparecimento do Rei (1578). A nação caiu sob o domínio castelhano. A literatura chorou, com a perda de D. Sebastião, o desfazer das esperanças desmedidas, a ruína dum povo que, havia pouco, deslumbrara o mundo com os Descobrimentos e a criação de um grande Império. Vasco Mouzinho de Quevedo, por exemplo, recorda doridamente o Rei, «Sebastião cuja morte inda hoje é viva, / Renovando-se sempre de ano em ano». Foi então que surgiu, como instintiva reacção, o sebastianismo. Julgou-se que só a fé visionária poderia salvarnos. Na primeira metade do séc. XVI vários pretensos profetas, desafiando os rigores da Inquisição, haviam aliciado adeptos, nomeadamente cristãos novos. Entre esses «profetas» contavase Gonçalo Anes, de alcunha «o Bandarra», sapateiro de Trancoso (Beira Alta), homem cujas trovas, largamente divulgadas, se tornariam «o evangelho do sebastianismo». O Bandarra (falecido em 1545, segundo um epitáfio mandado gravar no séc. XVII) tinha-se inspirado na Bíblia para verberar a corrupção da época e fazer obscuras predições, entre as quais, parece, estavam a da conquista de Marrocos, a da derrota dos Turcos e a do Quinto Império. [...] Durante o séc. XIX, o sebastianismo foi passando da esfera política para os domínios literário e culturológico. O sonho heróico de D. Sebastião, a sua morte na batalha, o mito do seu regresso e a quimera do Quinto Império inspiram poetas e prosadores. [...] No Frei Luís de Sousa de Garrett, é Telmo, o velho criado, quem associa à fé no retorno do Rei a convicção de que D. João de Portugal, seu amado amo, um dia aparecerá.» (Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA)
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Esboço de estudo paralelo de OS MAIAS e FREI LUÍS DE SOUSA (Duas formas de recuperação da tragédia clássica)Frei Luís de Sousa
Os Maias
Uma partida e separação: D. João de Portugal parte para a batalha de Alcácer Quibir, deixando em Portugal sua mulher, D. Madalena.
Uma partida e separação: Maria Monforte parte com o napolitano, deixando em Portugal Pedro, seu marido, e Carlos, seu filho.
D. João de Portugal é dado como morto; D. Madalena tenta, por todos os meios ao seu alcance, certificar-se da morte do marido. A hipótese da morte acaba por ser aceite como certeza.
Maria Monforte e sua filha são consideradas mortas; Afonso da maia tenta, por todos os processos, adquirir a certeza da morte da neta. A hipótese da morte acaba por ser aceite como certeza.
D. Madalena reorganiza a sua vida, baseandose na morte de D. João.
Afonso dedica-se inteiramente a Carlos, considerada a neta para sempre perdida.
D. João de Portugal, erradamente considerado morto, vai-se aproximando de portugal.
Maria Eduarda, erradamente tida por morta, aproxima-se de Portugal.
D. João de Portugal, uma vez regressado, dirige-se à sua antiga casa. Encontra-se com D. Madalena que não o reconhece e pára diante do retrato. Perante a interrogação inquieta de Frei Jorge, responde: «Ninguém».
Maria Eduarda, uma vez de regresso a Lisboa, encontra Carlos que, naturalmente, a não reconhece. Acabando ela por se dirigir ao Ramalhete, pára diante do retrato do Pai. Carlos esclarece: «- É meu Pai».
Uma vez consumada a tragédia, D. Madalena revolta-se, tenta negar a evidência dos factos, lutando desesperadamente pela conservação de um amor para ela mais forte que todas as dúvidas.
Quando conhece o parentesco que o une a Maria Eduarda, Carlos revolta-se e tenta, também ele, com desespero, lutar pela sobrevivência de um amor que julga superior a todos os imperativos que lhe são exteriores.
D. João de Portugal permanece impassível e silencioso perante a tragédia. Sensibilizado apenas por uma falsa interpretação dos sentimentos de D. Madalena, quando pretende (?) alterar o curso dos acontecimentos que desencadeara, vê-se impossibilitado de o fazer.
Maria Eduarda aceita, discreta e silenciosa, a tragédia que destrói as suas relações amorosas com Carlos. Apenas de ressente do mutismo e ausência deste último.
Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena separam-se. Permanecem vivos para se enterrarem no convento.
Carlos e Maria Eduarda separam-se. Tentam reintegrar-se, aparentemente incólumes, numa vida solitária: Carlos - instalado em Paris, Maria Eduarda - casada em Orléans
Maria, a verdadeira vítima trágica e testemunha acusadora do «erro» dos pais, morre.
Afonso, oponente racional à paixão «incestuosa» de Carlos e Maria Eduarda, morre.
Gandra, Maria António / Oliveira, Luís Amaro de, Caderno Para Uma Direcção de Leitura de OS MAIAS, Porto Editora, Ldª, Porto, 198
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