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INTRODUÇÃO CONTRAPONDO-SE À CULTURA Imagine-se no topo do mundo, observando de Ia a vastidão da miséria humana. Venha comigo para o coração das montanhas do Himalaia, onde, muito tempo, homens e mulheres lutando para sobrevier. Metade das crianças dessas aldeias em particular morre antes de completar oito anos de idade. Muitas não chegam a completar sequer um uno. Deixe-me apresentálo a Radha, uma núe que teria catorze filhos se doze deles não tivessem morrido antes de chegar à idade adulta. Conheça Kunsing, uma criança com deficiência fisica que passou os primeiros doze anos de sua vida acostumada em um celeiro porque família achava que ela era amaldiçoada. Conheça Chimie, um garotinho agora dando os primeiros passos, que perdeu irmã e o irmão aos dois meses, o que levou a mie ao suicídio e o pai entregá-lo em desespero para a primeira mulher da aldeia que pudesse alimentá-lo. O caso dessas crianças é tão chocante quanto o daquelas que nem sequer chegamos conhecer. Em algumas das aldeias nessas montanhas praticamente não há meninas entre cinco e quinze anos de idade. Seus pais se deixaram convencer por promessas de uma vida melhor para elas; por isso, entregaram-nas a homens que na verdade eram traficantes. A maior parte dessas meninas conseguiu ultrapassar a barreira dos oito anos de idade; no entanto, ao completarem dezesseis anos, elas são obrigadas a fazer sexo com milhares de clientes. Jamais verão suas famílias novamente. quando conhecemos pessoas, ouvimos histórias e vemos as faces da injustiça pelo mundo, como essas que acabei de relatar, é mais do que normal reagir com compaixão, convicção e coragem. A compaixão toma conta de nós por nos preocuparmos muito com as crianças, os pais e as famílias cujas vidas estão repletas de dor e sofrimento. A convicção nos invade por todos sabermos instintivamente que histórias desse tipo não deveriam acontecer. Não é justo que metade das crianças dessas aldeias do Himalaia morra antes de chegar aos oito anos. Não é justo que crianças com deficiências físicas sejam acorrentadas em celeiros a vida toda. E injusto que cafetões ludibriem os pais, os convençam a vender suas preciosas filhas e as transformem em escravas sexuais. Em última análise, essa compaixão e essa convicção serão os combustíveis para a coragem — coragem para fazer alguma coisa, qualquer coisa, por Radha, Kunsing, Chimie, essas meninas, seus pais, suas aldeias e inúmeras outras crianças, mulheres e homens como eles no mundo todo. Quando conhecemos pessoas, ouvimos histórias e vemos as faces da injustiça pelo mundo, como essas que acabei que relatar e mais que normal reagir com compaixão. que histórias desse tipo acontecer, Não é justo que metade das crianças dessas aldeias do Himalaia morra antes dos 8 anos anos. Não é justo que crianças com deficiência físicas sejam acorrentadas em celeiros a vida toda. F, injusto que cafetões; ludibriem os pais, os convençam a vender suas preciosas filhas c as transformem em escravas sexuais. E ultimo analise, essa compaixão e essa convicção serão os combustíveis para a coragens — coragem para fazer alguma coisa quer coisa, por Radha, Kunsing, Chimic, essas meninas, seus pais, suas aldeias c inúmeras outras crianças, mulheres e homens como eles no mundo todo. A luz dessas realidades mundiais, sinto-me imensamente encorajado quando vejo tal compaixão, convicção e coragem na igreja de hoje, Quando ouço os cristãos contemporâneos falando
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(os evangélicos mais jovens especialmente, embora não exclusivamente), percebo uma oposição ferrenha às injustiças cometidas em relação a pobres, órfãos e escravizados. Observo uma conscientização maior com respeito às questões sociais: há muitos livros, congressos e novos movimentos voltados para o combate à fome, o alívio à pobreza e o fim do tráfico sexual. Em meio a tudo isso, noto uma profunda insatisfação com a indiferença na igreja. Nós simplesmente não estamos satisfeitos com uma igreja que faz vista grossa e se finge de surda diante da injustiça social no mundo. Queremos que nossa vida — e a igreja — sejam relevantes para a justiça social. Todavia, embora eu me sinta profundamente encorajado pelo zelo manifestado por tantos cristãos em relação a certas questões sociais, preocupo-me muito com a falta de zelo entre esses mesmos cristãos (especialmente, embora não só, entre os evangélicos mais jovens) por outras questões sociais. Certas questões que têm mais apelo popular, como a pobreza e a escravidão, em relação às quais a ação social costuma render aplausos e elogios aos cristãos, rapidamente nos mobilizam e nos levam a erguer a voz. Contudo, em questões polêmicas, como a homossexualidade e o aborto, pelas quais nós, cristãos, costumamos ser criticados, contentamo-nos em ficar mudos e de braços cruzados. E como se tivéssemos decidido quais questões sociais confrontar e quais tolerar. E as escolhas que fazemos geralmente são as mais cômodas — e menos custosas — para nós em nossa cultura. Se você pedir para qualquer líder cristão conhecido fazer uma declaração pública sobre a pobreza, o tráfico sexual ou a crise dos órfãos, ele partilhará com muita alegria, ousadia e clareza suas convicções. Contudo, se pedir ao mesmo líder cristão, no mesmo contexto público, para fazer uma declaração sobre a homossexualidade ou o aborto, ele responderá com nervosismo hesitante ou lhe dirá praticamente alguma heresia, isso, é claro, se lhe der alguma resposta. "Essa questão não me preocupa", talvez ele diga. "Estou preocupado com outros problemas, e é sobre eles que quero falar." O efeito prático disso fica evidente no cenário cristão contemporâneo. Todo jovem evangélico tem blog, tira fotos, envia tuítes e participa de congressos nos quais luta para aliviar a pobreza e pôr fim à escravidão. Outros evangélicos se preocupam com as crianças americanas deixadas aos cuidados temporários de uma família e adotam órfãos do mundo todo. Muitos desses esforços são bons e não devem ser interrompidos. O problema, porém, é quando esses mesmos evangélicos ficam em silêncio quando se toca em questões culturais mais polemicas, como o aborto ou casamento com o mesmo sexo. Não me preocupo com esses assuntos. Discuto outros temas. quais a social costuma render aplausos c elogios aos cristãos, rapidamente nos utilizam e nos levam a erguer a voz. Contudo, em questões polêmicas, como a homossexualidade c o aborto, pelas quais nos, cristãos, costumamos ser criticados, contentamo-nos em ficar mudos e de braços cruzados. E como se tivéssemos decidido quais questões sociais confrontar e quais tolerar. E as escolhas que fazemos geralmente são as mais cômodas — e menos custosas — para nos em nossa cultura. Mas e se Cristo nos ordena que nos prcocupernos com essas coisas? E se o chamado de Cristo nossa vida não for para nos aconi0darmos cm nossa cultura? E se Cristo, cm nós, na verdade nos impele a confrontar nossa cultura, em vez de ficarmos sentados só observando o curso das tendências culturais e sutilmente aderindo às mudanças da maré cultural? E se, em vez disso, Cristo na verdade estiver nos impelindo a partilharmos e mostrarmos corajosamente nossas convicções, por meio
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daquilo que falamos, da forma que vivemos, mesmo (ou especialmente) quando essas convicções contradizem as posturas populares hoje em dia? E se nos pede para fazer tudo isso com uma mente livre de arrogância ou sem endurecer o coração, mas movidos pela compaixão humilde de Cristo sempre manifestada em tudo o que falarmos e fizermos? Não é essa, afinal de contas, a essência do que significa, antes de tudo, seguir a Cristo? "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me" (LC 9.23). Isso é contracultural. Num mundo em que tudo gira em torno de nós mesmos — de nos protegermos, nos promovermos, consolarmos a nós mesmos, cuidarmos de nós mesmos — Jesus diz: "Crucifique a si mesmo, Ponha de lado a autopreservação para viver em função de glorificar a Deus, não importa o que isso signifique para você em seu contexto cultural". Não é essa, no fim, a questão mais importante em qualquer cultura? Ou melhor dizendo, não é ele, no fim, a questão mais importante de qualquer cultura? E se a questão mais importante hoje em nossa cultura não for a pobreza ou o tráfico de pessoas para exploração sexual; e se não for a homossexualidade ou o aborto? E se a questão principal for Deus? O que aconteceria se fizéssemos dele o motivo da nossa reflexão? Em um mundo marcado por escravidão e imoralidade sexuais, por abandono e assassinato de crianças, por racismo e perseguição, pelas necessidades (10s pobres c por (lewaso comas viuvas, cotil() (Icvcrennos agir se fixarinos o olhar na santidade, no 'atnot', na bondade, na verdade, na justiça, na autoridade e na misericórdia de Deus revelados no evangelho? São essas as perguntas que norteiam este livro, c eu o convido a explorá-las comigo. Não estou afirmando de modo algutn que tenho todas as respostas. Na verdade, uma das razões pelas quais decidi escrever este livro foi o fato de haver percebido, em minha vida, minha família e meu ministério, uma tendência para um engajamento ousado e ativo em certas questões sociais, e, ao mesmo tempo, uma tendência a negligenciar outras questões de modo passivo e antibíblico. Percebi que se olhássemos honestamente para nossa vida, para nossas famílias e igrejas, nos daríamos conta de que boa parte da nossa suposta justiça social é, na verdade, uma injustiça social seletiva. E possível que venhamos a reconhecer que coisas que víamos como problemas sociais distintos se encontram, na verdade, intimamente relacionadas à nossa compreensão de quem Deus é e do que ele está fazendo no mundo. Nesse processo, é provável que venhamos a descobrir que o mesmo coração de Deus que nos move a combater o tráfico de pessoas para exploração sexual também nos move a combater a imoralidade sexual. Descobriremos que o mesmo evangelho que nos compele a combater a pobreza também nos compele a defender o matrimônio. E, no final, pode ser que decidamos reorganizar nossa vida, nossas famílias e igrejas no sentido de dar uma resposta mais coerente, impelida por Cristo e de caráter contracultural aos problemas sociais mais urgentes dos nossos dias. Certamente que as conclusões a que chegarmos relacionadas ao confronto com a cultura podem ter um alto custo para mim e para você. Nesse momento, porém, não creio que isso será muito importante, uma vez que nossos olhos deixarão de estar fixos no que é mais cômodo para nós; em vez disso, nossa vida estará voltada para aquilo que mais glorifica a Deus, e nele encontraremos uma recompensa muito maior do que qualquer coisa que nossa cultura jamais poderá nos oferecer.
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CAPíTULO 1 A MAIOR DAS OFENSAS: O EVANGELHO E A CULTURA O evangelho é a força vital do cristianismo e proporciona o fundamento para confrontar a cultura, pois, quando cremos de verdade no evangelho, começamos perceber que ele não só constrange o cristão a confrontar as questões sociais à sua volta, mas também cria de fato uma confrontação com a cultura ao seu redor — e dentro de nós. E cada vez mais comum que os pontos de vista bíblicos sobre questões sociais sejam rotulados de ofensivos. Para um número cada vez maior de pessoas, por exemplo, é ofensivo dizer que uma mulher que sinta afeição por outra mulher não deva expressar seu amor por meio do casamento. Sem demora o cristão se vê acuado quanto a essa questão, não querendo soar ofensivo, mas, ao mesmo tempo, perguntando-se qual deve ser sua resposta. E nesse ponto, porém, que temos de reconhecer que a visão bíblica da homossexualidade não é a maior ofensa no cristianismo. Na verdade, não é nem de longe a maior delas. O evangelho em si é uma ofensa muito, muitíssimo maior. Temos de começar, portanto, analisando o que é o evangelho. Devemos nos perguntar: Acreditamos mesmo nele? Nossa resposta a essa pergunta muda fundamentalmente nossa vida na cultura em que vivemos. NO PRINCíPlO, DEUS A ofensa do evangelho começa já com as primeiras palavras da Bíblia. "No princípio, Deus..." (Gn 1.1). A afronta inicial do evangelho é que há um Deus com o qual, por meio do qual e para o qual todas as coisas começam. ... o eterno Deus, o SENHOR, [é] o Criador dos confins da terra" (Is 40.28). Como todas as coisas começam com Deus e, em última análise, existem para Deus, nada em toda a criação é irrelevante para ele. Como é o Criador? "Eu sou o SENHOR, vosso Santo", diz Deus em Isaías 43.15. Em outras palavras, ele é totalmente sem igual diferente de nós e a quem não podemos nos comparar. Ele é de outro tipo. Deus é absolutamente puro, e não há nele nada errado. Nada. Tudo o que Deus é e tudo o que faz é certo. Nele não há erro. Ele é incomparável. Esse Deus santo também é bom. "O SENHOR é bom para todos, e suas misericórdias estão sobre todas as suas obras" (SI 145.9). A bondade divina fica evidente desde o início da Escritura, em que é dito que tudo o que ele cria é "bom", culminando com o homem e a mulher, a cuja criação a Escritura também se refere como algo "muito bom" (veja Gn 1.4,10,12,18,21,25,31). A grandiosidade universal da criação testifica a inegável bondade do Criador. A bondade de Deus se expressa em sua justiça. "O SENHOR julga os povos" (SI 7.8) e os julga perfeitamente. Deus justifica o inocente e condena o culpado. Consequentemente: "Justificar o ímpio e condenar o justo são duas abominações para o SENHOR" (PV 17.15). Como bom juiz, Deus se enfurece com a injustiça. Ele detesta os que dizem ao ímpio: "Você é bom", e os que dizem ao justo: "Você é ímpio". Deus é um juiz perfeito.
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A bondade divina também se expressa cm sua graça. Ele favor gratuito c imerecido daqueles que jamais poderiam merecê-lo. Ele é compassivo, paciente c deseja que todas as pessoas por toda parte conheçam c desfrutem de sua bondade, misericórdia e amor (veja 2Pe 3.9). Considere, então, a confrontação criada pela realidade de Deus cm nossa vida. Como Deus é nosso Criador, pertencemos a CIC. Aquele que nos criou é nosso dono. Não somos, conforme se lê no poema Invictus, mestres do próprio destino ou capitães de nossa alma. O Autor de toda a criação tem autoridade sobre tudo que criou, inclusive sobre mim e você. Temos de prestar contas a ele como nosso juiz. Uma das verdades fundamentais do evangelho é que Deus julgará todas as pessoas, e o fará com justiça. Isso nos coloca numa posição em que precisamos desesperadamente de sua graça. Já podemos perceber a ofensa do evangelho ganhando a frente de tudo. Diga a qualquer indivíduo de hoje que existe um Deus que sustenta, possui, define, governa e que um dia ele o julgará, e esse indivíduo ficará contrariado e ofendido, qualquer um ficaria — e todos ficam. Essa é nossa reação natural a Deus. NOSSA REACÃO NATURAL A DEUS Observe as primeiras páginas da história da humanidade e verá o problema fundamental do coração humano. Quando Deus cria o homem, ele o coloca no Jardim do Eden e diz: "Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá" (Gn 2.16,17, NVI). Aqui vemos a manifestação da santidade, da bondade, da justiça e da graça de Deus. Ele tem autoridade para definir o certo e o errado, o bem e o mal fundamentado em seu caráter puro e santo. Deus deixa claro ao homem que este será julgado com base na obediência à ordem divina. A graça de Deus é evidente porque ele não esconde sua lei, um amor, Deus aponta ao mesmo caminho da vida e o exorta a caminhar nele. E como a criatura responde ao Criador? Bastaram apenas uns poucos para que a tentação de pecar se manifestasse. disse: Nao contava de nenhum fruto das árvores do jardim? [...] Certamente não morrerão! [...] Deus sabe que, no dia em que dele seus olhos se abrirão, c vocês serão como Deus, conhecedores do e do mal" (Gn NVI). Você percebeu a inversão de papéis aqui? Tudo começa quando a ordem de Deus é reduzida a questionamentos sobre ele. Deus é santo mesmo? Ele sabe realmente o que é certo? Deus é bom de verdade? Ele quer mesmo o que é melhor para mim? Em meio a esses questionamentos, o homem e a mulher sutilmente se colocam não como aqueles que devem ser julgados por Deus, mas sim como aqueles que o julgam. A pergunta da serpente gira em torno da árvore do conhecimento do bem e do mal. Talvez, depois de lermos o nome da árvore, pensemos: "O que há de tão errado em saber a diferença entre o bem e o mal?". Contudo, o significado da Escritura aqui vai além de informar sobre o bem e o mal: ele diz respeito a determinar o bem e o mal. Em outras palavras, se o homem ou a mulher comessem dessa árvore eles estariam rejeitando a Deus como aquele que determina o bem e o mal, e tomando
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para si mesmos tal responsabilidade. A tentação no jardim era rebelar-se contra a autoridade de Deus e, nesse processo, fazer dos seres humanos juízes da moralidade. Quando compreendemos esse primeiro pecado, percebemos que o relativismo moral do século não é nenhuma novidade. Quando tentamos usurpar o lugar de Deus (ou mesmo eliminá-lo do cenário), perdemos a objetividade para determinar o bem e o mal, o certo e o errado, o moral e o imoral. Michael Ruse, conhecido agnóstico e filósofo da ciência, repercute isso quando afirma: "A posição do evolucionista moderno, portanto, é que [...] a moralidade é uma adaptação biológica assim como as mãos, os pés e os dentes [...] Se tomada como conjunto de declarações racionalmente justificáveis sobre algo objetivo, ela é ilusória"? De igual modo, disse o célebre ateu Richard Dawkins: Em um universo de forças físicas cegas e de replicação genética, há pessoas que se ferirão; outras, terão sorte, e não há nisso sentido algum, muito menos justiça. O universo que observamos tem exatamente as propriedades que seria de esperar se não houver, no fundo, nenhum projeto, nenhum propósito, nenhum mal ou bem. Nada, a não ser uma indiferença cega e impiedosa. O DNA de nada sabe e não se importa. Ele apenas é. E nós dançamos ao som dele.3 As cosmovisões ateias, portanto, deixam-nos com uma subjetividade inútil em relação ao bem e ao mal, pois totalmente dependente de construtos sociais. Aquilo que uma cultura disser que é certo, será certo, e o que ela disser ser errado, assim será. Essa é exatamente a visão de mundo que predomina na cultura dos Estados Unidos de hoje, onde mudanças rápidas no panorama moral comunicam claramente que nós não cremos mais que certas coisas sejam inerentemente boas ou más. Em vez disso, o certo e o errado são determinados pelos desdobramentos sociais à nossa volta. Contudo, não são assustadoras as implicações dessa visão de moralidade? Vejamos, por exemplo, o caso do tráfico de pessoas para exploração sexual. Estaríamos dispostos a concluir que, se a sociedade aprovar essa indústria, ela deixará de ser imoral? Estaríamos dispostos a dizer às jovens vendidas ao tráfico sexual que elas e os homens que as violam estão simplesmente dançando ao som do seu DNA, e que as coisas que estão acontecendo a elas não são inerentemente más, são apenas fruto de uma indiferença cega e impiedosa que fez delas seres sem sorte no mundo? Certamente não é isso o que diríamos a uma jovem dessas. Esse, porém, é o fruto de uma cosmovisão que muitos professam sem perceber. "Se não fizer mal aos outros, seja verdadeiro consigo mesmo" um amigo que se diz pagão me sugeriu como filosofia de vida, certa ocasião, no Bairro Francês de Nova Orleans. Essa filosofia supostamente simples era suficiente, segundo pensava meu amigo, para fazer juízos de valor e tomar decisões morais ao longo da vida. O problema evidente por trás dessa visão de mundo, porém, é quem define o que é prejudicial e até que ponto devemos ser verdadeiros conosco mesmos. Um cafetão no norte do Nepal não diria que está possibilitando uma vida melhor para uma jovem cuja chance de viver era pouca a princípio? Ele não poderia dizer também que ela tem um emprego que, aos olhos do cafetão, agrada a jovem? O que o impediria de dizer que ele e essa jovem estariam ajudando inúmeros homens a serem verdadeiros em relação às paixões sexuais que trazem dentro de si? Tal perspectiva ateia de moralidade se mostra completamente vazia quando confrontada com as realidades brutais do mal no mundo. Felizmente, o evangelho é completamente contracultural nesse
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aspecto, pois a Palavra de Deus nos diz que Deus criou, de forma bela e maravilhosa, cada jovem preciosa à sua imagem, e ama cada uma delas. E Deus as formou, do ponto de vista biológico e de maneira singular, não para serem violadas sexualmente por um contingente incontável de homens aleatórios, mas para viverem a alegria da união sexual com um marido que as valorize, sirva e ame como esposa. Esse é o bom projeto de um Deus cheio de graça e que, no entanto, tem sido alvo do mais grosseiro escárnio pela humanidade pecaminosa. O pecado é rebelião real contra o bom Criador de todas as coisas e o supremo Juiz de todos. O tráfico de pessoas para exploração sexual é injusto porque Deus é justo, e ele chamará os pecadores a prestarem contas diante dele. Essa compreensão do pecado ajuda a explicar por que cristãos e igrejas devem trabalhar para acabar com o tráfico de pessoas para exploração sexual. Contudo, uma rápida consulta ao parágrafo anterior mostra a razão pela qual esses mesmos cristãos e igrejas dcvem também trabalhar contra o aborto e em defesa do casamento. O Deus que cria pessoalmente cada jovem preciosa à sua imagem não é também o Deus que forma pessoalmente cada bebê precioso no útero materno? O projeto de Deus que torna a violação sexual errada na prostituição não é também o mesmo projeto que torna a união sexual correta no casamento? E não é o pecado em todas as suas formas — seja ao vender uma jovem à escravidão, ao retirar um bebê do útero materno, seja ao desprezar o padrão de casamento prescrito por Deus — verdadeira rebelião contra o bom Criador e supremo Juiz de todos? O PECADO DO EU Somos novamente confrontados com a ofensa contracultural do evangelho nessa área. Pois assim como o evangelho alicerça a definição de bem e de mal no caráter de Deus, ele afirma que o mal não está limitado a certos tipos de pecado e a grupos seletos de pecadores. O mal, infelizmente, faz parte de todos nós e, portanto, é parte inevitável de qualquer cultura que criamos. Embora todos tenhamos sido criados por Deus, também fomos corrompidos pelo pecado. Por mais que queiramos negar esse fato, nossa natureza o demonstra constantemente. Trazemos dentro de nós tanto a dignidade quanto a depravação; somos propensos tanto ao bem quanto ao mal. Essa é a ironia da condição humana. John Stott expressou isso muito bem em sua síntese do cristianismo básico: Somos capazes de pensar, escolher, criar, amar e adorar; mas também somos capazes de odiar, cobiçar, lutar e matar. O ser humano 'Nessa e na próxima seção, estou em dívida com a apresentação do evangelho feita por John Stott em 1170' Iam a Christian (Downers Grove: InterVarsity, 2003). inventou os hospitais para o cuidado dos doentes, as universidades para a aquisição de conhecimento c as igrejas para a adoração a Deus. Todavia, inventou também as câmaras de tortura, os campos de concentração e os arsenais nucleares. Esse é o paradoxo da condição humana. Somos ao mesmo tempo nobres e ignóbeis, racionais e irracionais, morais e imorais, criativos e destrutivos, amorosos e egoístas, semelhantes a Deus e bestiais.
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Por que isso acontece? O evangelho responde que nós, ainda que criados à imagem de Deus, nos rebelamos contra ele com nossa independência. Embora haja aspectos diferentes na vida de cada um de nós, somos todos iguais ao homem e à mulher do jardim do Eden. Pensamos: "Mesmo que Deus me diga para não fazer alguma coisa, farei de qualquer jeito". Basicamente estamos dizendo: "Deus não é Senhor sobre mim, e não sabe o que é melhor para mim. Eu defino o certo e o errado, o bem e o mal". O fundamento da nossa moralidade, portanto, muda da verdade objetiva que Deus nos deu em sua Palavra para conceitos subjetivos que criamos em nossa mente. Mesmo quando não percebemos as implicações dos nossos conceitos, chegamos inevitavelmente a uma conclusão: o que me Parecer correto ou me der a impressão de ser correto é correto para mim. No fim das contas, para cada um de nós, tudo gira em torno de mim. E por isso que a Bíblia diagnostica a condição humana dizendo simplesmente que todos "se desviaram" voltando-se para si mesmos (Rm 3.12). A essência do que a Bíblia chama de pecado é a exaltação do eu. Fomos criados para colocar Deus em primeiro lugar em nossa vida, as outras pessoas em segundo lugar e nós, por último. Contudo, o pecado inverte essa ordem: colocamos em primeiro lugar a nós mesmos, depois os outros (muitas vezes na tentativa de usá-los em proveito próprio) e Deus em algum lugar (se tanto) bem distante. Deixamos de adorar a Deus para adorar a nós mesmos. Ora, provavelmente não colocaríamos as coisas dessa forma. A maioria das pessoas não confessa publicamente "cu adoro a mim mesmo". Contudo, conforme ressalta John Stott, não é preciso chegar a tanto: basta olhar para nossa vida e ouvir o que falamos para que a verdade fique evidente. O dicionário tem centenas de palavras que começam com auto ou ego: autoestima, autoconfiança, autopromoção, autogratificação, auto glorificação, automotivação, autopiedade, autoelogio, egocentrismo etc. Criamos uma série de termos para expressar a extensão da nossa preocupação conosco. A tragédia em tudo isso é que em nossa constante busca por satisfação pessoal, nos tornamos, de fato, escravos do pecado. E por esse motivo que Jesus ensina: "Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado" (Jo 8.34). Sabemos que é verdade. E fácil ver isso no alcoólatra, por exemplo. Ele se embriaga acreditando que esse é o caminho da satisfação pessoal, mas logo se vê escravizado por um vício que o leva à ruína. O pecado funciona de modo semelhante em nossa vida — nas pequenas e nas grandes coisas. Não importa o que Deus diga, dizemos a nós mesmos que um pensamento lascivo, uma palavra áspera ou uma ação egoísta nos trará satisfação. Não importa o que Deus diga, nos convencemos de que o dinheiro que temos (não importa o preço para obtê-lo) e a experiência sexual que vivemos .com quem quer que seja o alvo do nosso desejo) nos trarão satisfação pessoal. Nós nos convencemos de que, não importa o que Deus diga, encontraremos satisfação nessa pessoa ou naquele bem material, nesse prazer ou naquela ocupação. Vivemos em busca de todas essas coisas na ilusão de que somos livres. No entanto, estamos cegos à nossa própria escravidão, pois, em toda essa correria para servir a nós mesmos, estamos, na verdade, nos rebelando contra o único que pode satisfazer nossa alma. No fim das contas, somos todos culpados de nos rebelar contra Deus. Não apenas o cafetão do norte do Nepal é culpado mas também nós, você c eu. Elidos nós nos afastamos de Deus, todos somos culpados perante ele c sabemos disso. Sentimos essa culpa c, embora inevitavelmente neguemos,
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instintivamente nós a experimentamos, I lá quem a negue por completo dizendo que não existe isso de certo c errado, que toda ética é ilusória c arbitrária c que somente as preferências pessoais é que contam. Contudo, as pessoas que creem nisso muitas vezes fazem o contrário do que dizem: elas argumentam que o certo é concordar com elas e o errado é discordar do que dizem. Irônico, não é mesmo? Outros tentam se livrar da culpa mudando os padrões de certo e errado em nome do progresso cultural. Uma das maneiras mais fáceis de aliviar a culpa consiste em convencer a nós mesmos de que nossos padrões morais são impraticáveis ou ultrapassados. Ora, não há nada de errado em ser ganancioso. A ganância é necessária para o bem da ambição. Promover a nós mesmos é a única maneira de sermos bem-sucedidos. A lascívia é algo natural para o homem e a mulher contemporâneos, e manter relações sexuais é o que se espera de todos hoje em dia, não importa o sexo das pessoas envolvidas ou seu estado civil. Tentamos nos livrar da culpa redefinindo o certo e o errado de acordo com as tendências culturais. Contudo, a culpa persiste. Não importa o quanto tentemos, não conseguimos apagar totalmente o senso de "dever" que Deus gravou na alma humana. Basta olhar nos olhos de uma garotinha vendida à escravidão sexual para saber que isso é algo que não "deve" acontecer, pois o certo e o errado existem como padrões objetivos para todas as pessoas em todos os lugares e em todos os tempos. Não podemos apagar a realidade da culpa diante de Deus e é por isso que precisamos de Jesus. Contudo, é nesse ponto que o evangelho é contracultural de um modo ainda mais agressivo. JESUS É ÚNICO E INCOMPARÁVEL? Em qualquer lugar do mundo, a maioria das pessoas que sabe algo a respeito de Jesus, até mesmo os intelectuais mais seculares, diria que ele foi um homem bom. As pessoas não têm dificuldade cm se identificar com Jesus — um homem habituado à angústia, à luta c ao sofrimento. Além disso, as pessoas gostam de Jesus. Ele foi amoroso e gentil. Defendeu a causa dos pobres e dos necessitados. Fez amizade com os marginalizados, com os fracos e com os oprimidos. Conviveu com os desprezados e rejeitados. Amou seus inimigos e ensinou os outros a fazerem o mesmo. No entanto, paralelamente ao caráter notavelmente humilde de Jesus, percebemos também afirmações extremamente egocêntricas. Não precisamos nos aprofundar muito nas histórias da vida de Jesus para concluir que ele fala muito de si mesmo. "Eu sou isso, sou aquilo", afirma ele inúmeras vezes. "Sigam-me, venham a mim", diz ele a todos a sua volta. Stott descreve isso muito bem: Uma das coisas mais extraordinárias que Jesus fez em seus ensinamentos (e o fez tão discretamente que muita gente, ao ler o evangelho, nem sequer percebe) foi colocar-se à parte de todos os demais. Quando disse, por exemplo, que era o bom pastor e fora ao deserto em busca de sua ovelha perdida, ele deixou implícito que o mundo estava perdido, que ele não estava e que por isso podia buscá-la e salvá-la. Em outras palavras, ele se colocou em uma categoria moral em que estava só. Todas as demais pessoas estavam em trevas; ele era a luz do mundo. Todos tinham fome; ele era o pão da vida. Todos tinham sede; ele podia aplacar essa sede. Todos eram pecadores; ele podia perdoar seus pecados. De
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fato, em duas ocasiões distintas ele o fez e, em ambas as vezes, os observadores ficaram escandalizados. Eles lhe perguntaram: "Por que esse homem fala dessa maneira? Ele está blasfemando! Quem pode perdoar pecados senão um só, que é Deus? (Mc 2.5-7; LC 7.48,49). Se Jesus dizia ter autoridade para perdoar todo aquele que se arrependesse, também estava dizendo ter autoridade para julga todo aquele que não se arrependesse. Em várias de suas parábolas ficou implícito que ele esperava voltar no final. Nesse dia, disse, ele se sentaria seu trono glorioso. Todas as nações viriam diante dele e ele as separaria umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes. Em outras palavras, ele determinará seu destino. Desse modo, ele se colocou como a figura central no dia do juízo. 8 Ainda que ninguém acreditasse, Jesus certamente acreditava que ele era alguém único, incomparável. Talvez sua declaração mais excêntrica seja a de João 14.6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, a não ser por mim." Que declaração! Como se o evangelho já não fosse ofensivo o suficiente ao dizer quem Deus é e quem nós somos, agora ouvimos Jesus afirmar que ele é a única pessoa capaz de nos reconciliar com Deus. Nenhum outro líder é supremo e nenhum outro caminho é suficiente. Se quisermos conhecer a Deus, devemos fazê-lo por meio de Jesus. Como isso é possível? Como pôde um homem, em perfeito juízo, fazer tal declaração dois mil anos atrás? E como podem as pessoas, em perfeito juízo, acreditar nisso dois mil anos depois? Só faz sentido se tudo o que já tivermos visto na Bíblia for verdade. Vimos que Deus é totalmente santo e infinitamente bom, perfeitamente justo e cheio de graça em amor. Vimos também que todos fomos criados por Deus, mas fomos corrompidos pelo pecado. Nós nos afastamos de Deus e estamos diante dele com nossa culpa. Essas duas realidades nos levam à questão fundamental: como pode um Deus santo reconciliar pecadores rebeldes consigo mesmo se eles merecem seu juízo? Lembremos Provérbios 17.15: "Justificar o ímpio e condenar o justo são duas abominações para o SENHOR." Em outras palavras, Deus detesta aqueles que chamam de "inocente" o culpado e de "culpado" o inocente. Deus os detesta porque é um bom juiz; ele chama o justo e o inocente pelo que são. Portanto, quando Deus se aproximar de nós como bom juiz que é, o que ele nos dirá? "Culpado". Se ele dissesse: "inocente", seria uma abominação para si mesmo. Começamos agora a perceber a tensão que permeia a Bíblia. Todo homem e toda mulher são culpados perante Deus. Como, então, pode Deus expressar sua justiça perfeita sem condenar todo pecador que há no mundo? Muitos dizem: "Bem, Deus é amor. Ele pode simplesmente perdoar nossos pecados". Mas no momento em que dizemos isso, temos de nos conscientizar de que o perdão de Deus a pecadores é uma ameaça em potencial a seu caráter perfeito. Se Deus simplesmente negligenciasse o pecado, então ele não seria nem santo nem justo. Se houvesse hoje um juiz de tribunal que absolvesse conscientemente criminosos culpados, nós o destituiríamos de sua função num piscar de olhos. Por quê? Porque ele não seria justo. No momento em que compreendermos a santa justiça de Deus e a natureza pecaminosa da humanidade, conforme diz John Stott, "não perguntaremos mais por que Deus acha difícil perdoar pecados, mas como ele consegue fazê-lo". 9
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Essa tensão nos leva a indagar: "Como, então, Deus pode nos amar se sua justiça exige nossa condenação?". Esse é o problema fundamental do Universo. Bem, obviamente não é um problema identificado por muitos. A maior parte das pessoas em nossa cultura não perde o sono se perguntando como é possível que Deus seja, ao mesmo tempo, justo e amoroso para com os pecadores. Em vez disso, a maioria acusa Deus, perguntando-lhe: "Como você pode punir os pecadores? Como pode deixar pessoas boas irem para o inferno?", Contudo, a indagação da Bíblia é exatamente o oposto: "Deus, como você pode ser justo e ainda assim permitir que pecadores entrem no céu?". A ÚNICA RESPOSTA A ESSA PERGUNTA É JESUS CRISTO. A vida de Jesus é verdadeiramente sem igual, única, incomparável. Ele é Deus encarnado — plenamente humano e plenamente divino. Como homem perfeito, só ele pode tomar o lugar de homens e mulheres culpados. Como Deus perfeito, só ele pode satisfazer a justiça divina. Isso torna a morte de Jesus algo sem paralelo, razão pela qual a crucificação é o clímax do evangelho. E estranho quando pensamos no assunto. Para todos os outros líderes religiosos, a morte foi o fim trágico da história. Nas outras religiões, a atenção está sempre voltada à vida de seus líderes. Com Jesus, no entanto, é exatamente o contrário. Ele antecipava constantemente sua morte, e os relatos de sua vida dão uma ênfase desproporcional a ela. Desde sua morte há dois mil anos, o símbolo central do cristianismo é a cruz, e a celebração mais importante da igreja se dá em torno do pão e do vinho que celebram o corpo e o sangue de Jesus. Por que a morte de Jesus na cruz é tão importante? Porque foi na cruz que Jesus, o Deus encarnado, tomou sobre si a justa punição que os pecadores mereciam. Na cruz de Cristo, Deus expressou plenamente seu santo juízo sobre o pecado. Ao mesmo tempo, Deus, em Cristo, suportou totalmente seu santo juízo contra o pecado. Nesse processo, Deus, por meio de Cristo, tornou a salvação possível a todos os pecadores — a pena pelo pecado foi paga. Sabemos que isso é verdade porque Deus ressuscitou Jesus dos mortos. Essa é a melhor notícia do mundo todo, e é por isso que a chamamos de evangelho (que quer dizer "boas-novas"). O Criador do Universo, santo, justo e cheio de graça, possibilitou em Cristo que qualquer pessoa, seja onde for, possa se reconciliar com ele. No entanto, uma vez mais, não podemos escapar à ofensa do evangelho: "Você está realmente dizendo que há apenas um caminho para Deus?", as pessoas perguntam imediatamente. Contudo, no mesmo momento em que fazemos essa pergunta, revelamos o problema. Se houvesse mil caminhos para Deus, desejaríamos querer que fossem mil e um. A questão não é quantos caminhos há para Deus. A questão é a nossa autonomia diante de Deus. queremos fazer nosso próprio caminho. Esta é a essência do pecado acima de tudo — confiar em nossos caminhos mais do que no caminho de Deus. Mas não seremos resgatados do nosso pecado voltando-nos para nós mesmos e confiando mais ainda em nossos caminhos. Ao contrário, somente seremos salvos se, em vez de nos voltarmos para nós mesmos, confiarmos cada vez mais em Deus. A OFENSA ETERNA
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Tudo o que vimos no evangelho até agora não desfruta de muita popularidade. A simples ideia de que Deus se tornou homem é estranha a um contingente enorme de pessoas mundo afora. Mais de um bilhão de muçulmanos acredita que Deus jamais se rebaixaria tornando-se homem. Centenas de milhões de outras pessoas acham absurda a ideia de que um homem possa ser divino. Mas a ofensa do evangelho vai mais longe ainda. Ele afirma que Deus não só se tornou homem, mas que esse Deus-homem foi crucificado. Isso é tolice para o homem contemporâneo. Imagine pegar um homem bem-sucedido, bem vestido, com um bom emprego, uma bela casa, um carro sofisticado e uma mulher que prospera graças à sua independência e levar ambos a um lixão, onde há um homem nu preso com pregos a um tronco, coberto de sangue, e dizer a eles: "Esse é o seu Deus". Eles ririam de você, talvez sentissem pena do homem e muito provavelmente seguiriam em frente com a própria vida. Todavia, a ofensa do evangelho chega a seu ponto máximo quando você lhes diz que seu destino eterno depende de crerem, ou o Senhor, não, que o homem pendurado na cruz é o seu Deus Juiz, Salvador e Rei de toda a criação. Logo que disser "se vocês o seguirem, terão a vida eterna; caso contrário, irão para o inferno eterno", você verá que ultrapassou uma linha de muita controvérsia na cultura contemporânea (e também na igreja de hojc). O evangelho afirma que a forma de você e eu respondermos a Jesus coloca em risco nossa eternidade. De acordo com a Bíblia, o céu é uma realidade gloriosa para aqueles que confiam em Jesus. E um lugar de plena reconciliação e completa restauração onde o pecado, o sofrimento, a dor e a tristeza finalmente cessarão, e todos os que tiverem confiado em Cristo viverão em perfeita harmonia com Deus e uns com os outros para todo o sempre. A Biblia também ensina que o inferno é uma realidade terrível para os que dão as costas a Jesus. Trata-se de uma realidade sobre a qual Jesus falou muito. Tim Keller diz que "se Jesus, o Senhor de Amor e o Autor da Graça, falou sobre o inferno com mais frequência e de forma mais vívida e aterrorizante do que qualquer outra pessoa, então é porque se trata de uma verdade crucial" 1 Essa "verdade crucial" flui diretamente de tudo o que já descobrimos até agora. Todos deram as costas a Deus e se voltaram para si mesmos, e se nada mudar até sua morte, o inferno será o castigo divino por sua escolha pecaminosa e soberba. Os que se rebelam contra Deus na terra receberão a justa pena pelo caminho que escolheram. E claro que ninguém, por pior que seja, escolheria o inferno se soubesse o horror que isso implica. A Escritura descreve o inferno como um lugar em que há choro e ranger de dentes e a fumaça de seu tormento sobe sem trégua para todos os que moram ali (veja Mt 8.12; Ap 14.11). Ninguém, em sã consciência, quer passar por isso. Contudo, ao colocar, de forma deliberada e definitiva, sua vontade contra a vontade de Deus, o destino de fato do pecador é a danação eterna. Quando juntamos todas essas verdades do evangelho, percebemos que a declaração mais ofensiva e contracultural do cristianismo não é aquilo que os cristãos creem a respeito da
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homossexualidade ou do aborto, do casamento ou da liberdade religiosa. Em vez disso, a declaração mais ofensiva é que Deus é o Criador, o Senhor e o Juiz de cada pessoa do planeta. Todos somos culpados diante dele pelo pecado, e a única maneira de nos reconciliarmos com ele é pela fé em Jesus Cristo, o Salvador crucificado e Rei ressuscitado. Todos os que confiarem em seu amor experimentarão a vida eterna, ao passo que aqueles que rejeitarem seu senhorio sofrerão a morte eterna. VOCÊ CRÊ NO EVANGELHO? Estamos de volta, portanto, à questão fundamental do início deste capítulo: você crê no evangelho? Imagino que este livro tenha três categorias de leitores. Na primeira categoria estão os leitores que não acreditam no evangelho, No momento, você não professa a fé cristã, mas, por essa ou aquela razão, está lendo este livro. Sou grato por isso, e espero que você encontre aqui uma perspectiva útil acerca das questões sociais mais prementes da nossa cultura e do mundo. Conforme verá no capítulo sobre liberdade religiosa, respeito profundamente as diferentes religiões e creio que há formas sadias não apenas de coexistência, mas também de cooperação em amizade genuína e parceria valiosa na sociedade e na cultura. Ao mesmo tempo, eu não seria honesto se não dissesse que oro para que, no processo de leitura deste livro, você possa conhecer o amor misterioso, insondável, inexplicável e pessoal de Deus por você em Cristo. Espero que — embora você possivelmente não tenha consciência disso — uma das razões pelas quais você esteja lendo este livro seja pelo fato de Deus, de maneira soberana, o estar atraindo para perto de si por meio de Cristo. A segunda categoria de leitor é parecida com a primeira no que se refere a não acreditar no evangelho. A diferença, porém, é que o leitor que pertence a essa segunda categoria se diz cristão. Talvez se autodenomine "cristão progressista" ou "cristão de mente aberta", ou "cristão que frequenta a igreja", ou adote qualquer outro modificador acrescentado à sua condição de cristão. Com o devido respeito — e não sei escrever sobre esse assunto sem ser contundente —, minha esperança é que esse leitor pare de chamar a si mesmo de cristão até crer no evangelho. Há "cristãos" que não acreditam que Deus seja o Criador do Universo ou o Autor da Bíblia; há outros "cristãos" que não acreditam que o pecado seja um problema muito grande para Deus; muitos cristãos" creem que Jesus é apenas um dos muitos caminhos para Deus; e vários outros "cristãos" rejeitam totalmente o que Jesus diz a respeito do inferno (embora acolham comodamente o que ele diz sobre o céu). Coloquei "cristãos" entre aspas simplesmente porque esses "cristãos" não são cristãos. E impossível ser um seguidor de Cristo e, ao mesmo tempo, negar, desprezar, não dar crédito e não crer nas palavras de Cristo. Portanto, se você estiver nessa categoria, meu objetivo é semelhante ao que partilhei com a primeira categoria de leitor. Espero sinceramente que você conheça o amor misterioso, insondável, inexplicável e pessoal de Deus por você em Cristo; que você creia no evangelho, apesar de toda a ofensa nele contida, e siga a Cristo pelo que ele é, e não pelo que nós preferiríamos que fosse. Até
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que isso aconteça, minha esperança é que você não blasfeme o nome do Senhor dizendo estar em Cristo (ser cristão) quando não está. A última categoria de leitor inclui aqueles que creem defato no evangelho. Suponho que muitos dos que estão lendo este livro façam parte dela. E esse certamente é o público principal para quem estou escrevendo. Nas páginas que se seguem, meu objetivo é mostrar as implicações do evangelho para as várias questões sociais da nossa cultura: pobreza, escravidão, aborto, imoralidade sexual, deterioração do casamento e negação dos direitos civis. Nesse processo, quero demonstrar de que modo uma compreensão plena do evangelho traz indissociavelmente consigo tanto uma preocupação radical para com os pobres quanto uma oposição radical ao aborto; um posicionamento radical contra a escravidão e a defesa radical do casamento. No fim das contas, meu objetivo é mostrar de que modo o evangelho leva o cristão a se opor a todos esses problemas em nossa cultura com convicção, compaixão e coragem. Ao lidar com cada um desses temas, quero chamar os cristãos à convicção. Vivemos dias sem paralelo na cultura ocidental, nos quais o cenário moral está mudando rapidamente. Como consequência, temos muitas oportunidades de insistir na verdade divina e de falar dela. Não deixemos esse momento passar. Elizabeth Rundle Charles, comentando como Martinho Lutero enfrentou os temas mais importantes de sua época, diz: E a verdade atacada em qualquer época que testa nossa fidelidade [...] Se professo em alto e bom som e exponho da forma mais clara possível cada porção da verdade de Deus, exceto precisamente aquele ponto que o mundo e o diabo estão atacando naquele momento, não estou confessando a Cristo, por mais ousadamente que eu possa professar o cristianismo. Quando recrudesce a batalha, aí a lealdade do soldado é posta à prova e estar firme em todas as frentes da batalha, exceto nessa, é mera fuga e desonra, se o soldado recuar naquele ponto. 12 De fato, há batalhas sendo travadas em torno de várias questões sociais em nossa cultura atualmente. Há algumas décadas apenas. Nós, cristãos evangélicos que cremos na Bíblia, estamos travando uma batalha. Não se trata de uma discussão entre cavalheiros. E um conflito de vida e morte entre os exércitos espirituais da impiedade e os que invocam o nome de Cristo [...] Contudo, acreditamos realmente que estamos em meio a uma batalha de vida e morte? Acreditamos realmente que o papel que desempenhamos nessa batalha tem consequências para a eternidade de homens e mulheres, que poderão passá-la no inferno? Ou para os que vivem em um clima de perversão e degradação moral? E assim que viverão? Infelizmente, é preciso reconhecer que muito poucos no mundo evangélico se comportam como se tais coisas fossem verdade. [...] Onde está a voz clara que aborda temas cruciais do momento, oferecendo respostas inequivocamente bíblicas e cristãs? Com lágrimas temos de reconhecer que não a encontramos e que um grande segmento do mundo evangélico se deixou seduzir pelo espírito mundano da presente era. E, mais do que isso, podemos esperar que o futuro seja um desastre ainda maior se o mundo evangélico não tomar uma posição em defesa da verdade bíblica e da moralidade em todo o espectro da vida. 13 Que ninguém diga isso da nossa geração. Que não pequemos pelo silêncio. Que possamos compreender que não falar é falar. Por fim, que se possa dizer de nós que não apenas nos mantivemos
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firmes no evangelho, mas também falamos claramente, com base nele, das questões mais prementes do nosso tempo. Além de nos chamar à convicção, quero chamar também à compaixão. Mateus 9 diz que "vendo as multidões, [Jesus se] compadeceu delas, porque andavam atribuladas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor" (Mt 9.36). Espero, entre outras coisas, que por meio deste livro Deus nos dê sua graça para que vejamos o que ele vê. ue possamos ver os pobres, os famintos e os marginalizados como ele os vê. Que possamos perceber, da perspectiva dele, quem são os esmagados pela opressão política, econômica ou étnica. Que possamos cuidar do bebê no útero da mãe e também da mãe do bebê como Deus cuida. Que possamos amar o órfão e a viúva, o homossexual e o heterossexual, o imigrante e o imoral como Deus os ama. Com base nesse amor, quero que entremos em ação. "Ama a teu próximo como a ti mesmo", ordenou Jesus (Mt 22.39). João escreveu: "Filhinhos, não amemos de palavra, nem de boca, mas em ações e em verdade" (IJo 3.18). A última coisa que quero fazer é promover o divórcio entre os princípios bíblicos, teológicos e éticos e o indivíduo, a família e a prática da igreja. O objetivo desta obra não é oferecer informações sobre o evangelho e as questões sociais, e sim aplicar o evangelho às questões sociais. Quero explorar todas essas questões, não de uma posição de complacência hipócrita que se contenta com uma preocupação leviana de aparência piedosa, mas, sim, com o compromisso do sacrifício pessoal de ser o que Deus nos chama a ser, de ir aonde ele nos chama a ir e de dar o que ele nos compele a dar, servindo a quem ele nos chama a servir. Inevitavelmente, Deus nos levará a agir de diferentes maneiras. Não há quem possa dar igual atenção a todos esses problemas. Ninguém consegue combater o tráfico de pessoas para exploração sexual e, ao mesmo tempo, acolher temporariamente uma criança em casa, ou adotá-la, em meio às atividades de um ministério novo para viúvas e de aconselhamento para mães solteiras, enquanto viaja pelo mundo para dar apoio à igreja perseguida etc. Nenhum de nós deve fazer todas essas coisas, porque a soberania de Deus nos coloca em posições e lugares específicos com privilégios e oportunidades de influenciar a cultura à nossa volta. O que todos precisamos é enxergar cada uma dessas questões culturais pelas lentes da verdade bíblica e falar essa verdade com convicção sempre que tivermos a oportunidade de fazê-lo. Então, com base em uma convicção consistente, buscaremos saber de que modo nós, cristãos, de forma individual e coletiva em nossas igrejas, estamos sendo guiados pelo Espírito de Cristo a agir com compaixão em nossa cultura. Para nos ajudar nesse propósito, cada capítulo conclui oferecendo algumas sugestões iniciais de pedidos práticos pelas quais eu e você podemos orar tendo em vista as questões levantadas, possíveis maneiras por meio das quais possamos abordar a cultura com o evangelho, e verdades bíblicas que devemos proclamar com respeito a cada uma dessas questões. As sugestões dadas o remeterão a um site (counterculturebook.com) em que você poderá explorar mais passos específicos que queira dar. Encorajo-o a considerar todas essas sugestões e de modo humilde, ousado, sério e em oração, refletir sobre o que Deus o está direcionando a fazer. Não vamos simplesmente contemplar a Palavra de Deus com o mundo à nossa volta. Vamos fazer o que ela diz (veja Tg 1.22-25).
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Agir com convicção e compaixão evidentemente exigirá coragem. E cada vez mais contracultural insistir na verdade inabalável nesses tempos tão inconstantes. Na cultura contemporânea, o preço da convicção bíblica é cada vez mais alto, dia após dia, e não estamos muito longe de participar de forma mais séria dos sofrimentos de Cristo. Não há dúvida de que essa é a razão pela qual um número sempre maior de "cristãos" hoje se distancia do evangelho. O medo é uma força poderosa e faz com que mais e mais "igrejas" atualmente se acomodem e se adaptem, em vez de enfrentar a cultura que as rodeia. Consequentemente, creio que as palavras de Schaeffer são apropriadas: Precisamos de uma geração jovem e de pessoas dispostas a levar adiante uma confrontação amorosa, mas real, em oposição à mentalidade de constante acomodação às formas atuais do espírito do mundo que nos rodeiam, e em oposição à maneira pela qual parte significativa do evangelicalismo desenvolveu a mentalidade automática de se acomodar a cada passo. Minha esperança é que atentemos a esse desafio, pois não se trata, no fim (Ias contas, de um desafio feito por Schaeffer; é um desafio feito por Cristo: não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; pelo contrário, temei aquele que pode destruir no inferno tanto a alma como o corpo. [...] todo aquele que me confessar diante dos homens, cu também o confessarei diante de meu Pai, que está no céu. Mas aquele que me negar diante dos homens, eu também o negarei diante de meu Pai, que está no céu. Quem achar a sua vida irá perdêla, e quem perder a sua vida por causa de mim a achará (Mt 10.28,3 O evangelho de Cristo não é um chamado à condescendência cultural diante do medo. E um chamado à crucificação contracultural — à morte ao eu diante da oposição terrena, por amor à recompensa eterna. Minha esperança é que acreditemos no evangelho de Cristo c que nossa fé nos leve a uma ativa participação em nossa cultura. Minha oração é que Deus nos conduza pelas páginas deste livro em uma jornada que nos abra os olhos às necessidades das pessoas cm nossa cultura e no mundo, nos coloque de joelhos em lágrimas e oração por sua causa e nos coloque em pé, com convicção, compaixão c coragem para humildemente difundirmos a verdade de Deus e, ao mesmo tempo, sem nenhum egoísmo, mostrarmos o amor dele. Tudo isso em esperançosa antecipação do dia em que o pecado, o sofrimento, a imoralidade e a injustiça finalmente desaparecerão.
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CAPÍTULO 2 ONDE RICOS E POBRES COLIDEM: O EVANGELHO E A POBREZA Caminhando por uma aldeia asiática coberta de neve, vi a pobreza personificada. Assim que entramos na aldeia, um homem saiu de sua casa. Ele vestia uma camisa bege esfarrapada e uma jaqueta marrom rasgada cujos furos certamente a impediam de cumprir seu propósito. Seu cabelo negro e lustroso, a barba grisalha quase branca e a pele áspera e bronzeada não eram lavados há semanas. Seu nome era Sameer. Quando vi Sameer, porém, o que mais sobressaía nele não era nenhum desses detalhes. Em vez disso, quando olhei em seus olhos, enxerguei dentro de seu crânio. Há pouco tempo, o olho direito de Sameer havia contraído uma infecção. Sem acesso a atendimento médico básico, a infecção piorara. Por fim, o globo ocular saiu de sua órbita e caiu. Na face direita de Sameer havia agora um buraco escancarado, e a infecção havia se espalhado mais ainda e estava corroendo sua bochecha. Sua audição começava a se deteriorar. Qualquer que fosse a doença por trás disso, era evidente que em breve tomaria toda a cabeça de Sameer e, por fim, sua vida. A consciência da capacidade limitada de que dispúnhamos para ajudar Sameer fisicamente era terrível. As pessoas com quem eu viera caminhando até aldeia estavam trabalhando na construção de um hospital próximo dali, mas, até aquele momento, não havia opções de cuidados médicos em nenhum lugar das redondezas. Quando conversamos com Samer contamos a história de quando Jesus curou um homem cego. Sarnccr nunca havia ouvido falar de Jesus. Dissemos a ela então quem era Jesus c como CIC curava enfermidades como demonstração do seu poder sobre a morte. Contamos a Sameer como Jesus, com sua morte, pagará o preço do pecado das pessoas contra Deus. Dissemos como a ressurreição de Jesus dá esperança de que um dia todos nós, que nele confiamos, estaremos com ele em uma terra onde não haverá mais pecado, sofrimento, doença ou morte. Sameer sorriu. Não demorou muito e tivemos de deixar a casa de Sameer e seguir viagem. Até hoje não sei quanto tempo mais ele viveu. O que sei com certeza é que Deus usou um homem sem um dos olhos para transformar a minha visão naquele dia. Quando olhei para Sameer, vi o que acontece quando a pobreza extrema transforma doenças simples em morte quase certa. Ao caminhar pela aldeia de Sameer e por outras aldeias depois dela, encontramos pessoas parecidas e ouvimos histórias semelhantes de homens, mulheres e crianças que haviam morrido ou estavam morrendo de doenças que podiam ser evitadas. Em uma dessas aldeias havia ocorrido recentemente um surto de cólera. Sessenta pessoas morreram em questão de semanas devido a uma simples infecção intestinal causada por água suja e higiene precária. Caso não tenha se dado conta por ter lido muito depressa a frase anterior, repito que um grande contingente de toda uma comunidade morreu de diarreia. Conforme eu disse na introdução, somente metade das crianças nessas aldeias sobrevive até seu oitavo aniversário. No mesmo dia em que percorri o restante da aldeia de Sameer, li em Lucas 10 0 resumo que Jesus fez dos Dez Mandamentos que Deus dera a seu povo.' "Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento, e ao próximo como a ti
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mesmo" (v. 27). Essa última frase saltou da página à luz do quadro que eu estava vendo: e o próximo como a ti mesmo". "Como a mim mesmo?" Imaginei o que gostaria que alguém fizesse por mim se eu vivesse em uma dessas aldeias. E se eu fosse Sameer? Não gostaria que alguém me ajudasse? E se fossem meus filhos ou as crianças da minha igreja que estivessem morrendo de doenças que poderiam ser evitadas? E se metade dos seus filhos ou dos meus morressem antes de chegar aos oito anos? Se fôssemos nós naquela situação ou os nossos filhos ou as crianças da nossa igreja, faríamos alguma coisa. Ignorar essas necessidades urgentes estaria fora de cogitação. Contudo, é exatamente isso o que muitos de nós da igreja ocidental temos feito. Nós nos isolamos da enorme pobreza material do mundo que nos cerca. Enchemos nossa vida e nossas igrejas com mais conforto para nós, ao mesmo tempo que nos fazemos de cegos e surdos à pobreza abjeta das outras pessoas, Vemos o mundo como se nos faltasse um dos olhos. Precisamos de uma visão nova. Temos de abrir os olhos às implicações do evangelho para nosso modo de vida. A ARISTOCRACIA RICA Precisamos começar avaliando o tamanho da nossa riqueza. Obviamente, em primeiro lugar, somos espiritualmente ricos, uma vez que todos os que abandonaram seu pecado e creram em Cristo foram levados a uma vida nova. Lembre-se das palavras de Efésios 2: Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos vida juntamente com Cristo, quando ainda estávamos mortos em transgressões — pela graça vocês são salvos. Deus nos ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar, nas eras que hão de vir, a incomparável riqueza de sua graça, demonstrada em sua bondade para conosco em Cristo Jesus (Ef2.4-7, NVI). Que texto! E tudo isso é possível por causa da "graça de nosso Senhor Jesus Cristo", "que, sendo rico, tornou-se pobre por vossa causa, para que fôsseis enriquecidos por sua pobreza" (2Co 8.9). Sem dúvida, nossa maior riqueza está no evangelho, porque Deus nos salvou de nossos pecados e nos deu vida nova com Cristo. Contudo, os leitores deste livro são, de forma quase inevitável, ricos também no plano material. Tenho consciência de que nem sempre nos sentimos ricos. Provavelmente isso se deva ao fato de, ao ouvirmos a palavra rico, pensarmos de imediato em pessoas que têm muito mais posses do que nós, o que faz com que raramente nos vejamos como indivíduos ricos. Contudo, precisamos de uma nova perspectiva. Se temos água potável, comida e roupa em quantidade suficiente, um teto sobre nossa cabeça à noite, acesso a remédios, um meio de transporte (ainda que público) e se podemos ler um livro, isso significa que, em comparação com bilhões de pessoas do mundo, somos incrivelmente ricos. Os professores de economia Steve Corbett e Brian Fikkert explicam como esse padrão de vida fundamentalmente comum entre nós é extremamente raro na história da humanidade. Dizem eles: "Em nenhum momento da história houve uma disparidade econômica maior no mundo do que atualmente". Falando especificamente dos americanos de hoje, eles concluem: "Seja qual for o parâmetro, somos as pessoas mais ricas que já caminharam sobre a face da Terra".
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Portanto, temos de acordar para a realidade de que, quando a maior parte das pessoas no mundo ouve a palavra rico, elas pensam em nós. O fato é que o americano-padrão, comum, trabalhador de classe média (assim como os cidadãos de classe média de outros países ocidentais) constitui uma aristocracia extremamente abastada em um mundo em que se encontra cercado de bilhões de próximos A extremamente pobres. E Jesus nos chamou a amar esses nossos próximos como a nós mesmos. O mandamento de Cristo, associado à profundidade da pobreza no mundo e à realidade da riqueza em nossa vida, tem enormes implicações para a forma de vivermos. Quando nossos olhos se abrirem para as condições do mundo à nossa volta, nossos ouvidos deverão estar abertos à pergunta que a Palavra de Deus nos faz: "Quem, pois, tiver bens do mundo e, vendo seu irmão em necessidade, fechar-lhe o coração, como o amor de Deus pode permanecer nele?" (IJo 3.17). Essa é claramente uma orientação específica aos seguidores de Cristo para que cuidem de outros cristãos necessitados (uma prioridade de que tratarei posteriormente neste capítulo). Todavia, o mandamento de Cristo em Lucas 10 para amarmos nosso próximo como a nós mesmos certamente não se limita ao pobre que crê, mas também ao que não crê. Esse amor ao próximo flui naturalmente de homens e mulheres que conhecem a Deus. Se temos o amor de Deus no coração, é impossível ignorarmos os pobres do mundo. O evangelho constrange o cristão de culturas ricas à ação — uma ação altruísta, sacrificial, custosa e contracultural — a favor do pobre. Porque se não agirmos desse modo, o que talvez fique claro é que nunca fomos cristãos de fato. A REALIDADE QUE TRAZ CONVICÇÃO Afirmações como essa que acabei de fazer já me causaram problemas na igreja (e lhe garanto que não estava à procura deles). Em meu livro anterior, Radical, escrevi a respeito da convicção em meu coração a respeito do materialismo em minha vida, Minha esposa, Heather, e eu morávamos em Nova Orleans quando o furacão Katrina afundou nossa casa. Depois de perder quase tudo o que possuíamos, recomeçamos. Eu disse a Heather: "Temos a oportunidade de reconstruir nossa vida do zero e não os encher de coisas de que não precisamos. Podemos, dar prioridade a viver uma Vida e ja concordou c foi o que decidimos fazer, Contudo, nos rncse6 que se seguiram, recebí um telefonema uma grande igreja do sul do país pedindo que cu fosse com o pastor Crendo que o Senhor estava nos mandando para Já, não demorou muito e estávamos cm Birmingham, Alabarna, onde, um ano aperro depois do Katrina, compramos uma casa maior do que qualquer outra cm que já tínhamos morado, com muito mais coisa; do que jamais havíamos tido. Aos olhos do mundo (inclusive da igreja), estávamos vivendo um sonho, Lá dentro da mim, porém, havia um sentimento profundo de que estávamos equivocados. Cheguei a essa convicção quando nossos amigos, John e Abigail, foram nos visitar cm Birmingham. Anos antes, eles haviam vendido tudo o que possuíam e tinham se mudado com a família (quatro meninas pequenas) para um país da Africa do Norte para anunciar e demonstrar o amor de Deus em meio a uma pobreza avassaladora. Eles voltaram aos Estados Unidos por alguns meses e, durante esse período, passaram alguns dias conosco. Compartilharam histórias de como
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Deus supria suas necessidades e as necessidades das pessoas em cujo meio estavam trabalhando. Falavam disso com tanta alegria, mesmo quando comentavam o sofrimento que haviam visto e as lutas que tinham experimentado, Ao ouvi-los em minha casa imensa, cercado de todos os confortos que eu havia adquirido, soube que meu amigo tinha uma fé que me era desconhecida. Nem ele nem a esposa fizeram comentário algum sobre a extravagância em que estávamos vivendo, mas fiquei extremamente tocado por aquela compaixão disposta a sacrifícios que via nele e não via em mim. Uma convicção trazida pelo Espírito de Deus levou-me de volta à sua Palavra, onde comecei a ver a misericórdia de Deus pelos pobres de um jeito que jamais havia visto antes. Não demorou muito para que aquela convicção crescesse e atingisse um nível totalmente novo, conforme eu lia versículos como os que se seguem: Provérbios 21. ,13: "Quem tapa os ouvidos ao clamor do pobre também clarnar;í c não será ouvido", Provérbios 28,27: "Quem dá ao pobre não terá falta, mas quem fecha os olhos para isso terá muitas maldições" Tiago 2.14-17: "Meus irmãos, que vantagem há se alguém disser que tem fé c não tiver obras? Essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiverem necessitados de roupas c do alimento de cada dia, c algum de vós lhes disser: Ide cm paz, aquecei-vos e saciai-vos, c não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que vantagem há nisso? Assim também a fé por si mesma é morta, se não tiver obras". IJoão 3,16-18: "Nisto conhecemos o amor: Cristo deu sua vida por nós, c devemos dar nossa vida pelos irmãos. Quem, pois, tiver bens do mundo c, vendo seu irmão em necessidade, fechar-lhe o coração, como o amor de Deus pode permanecer nele? Filhinhos, não amemos de palavra, nem de boca, mas em ações e em verdade". Ao ler esses versículos, eu me vi face a face com o fato de que havia tampado os ouvidos às súplicas dos pobres e fechado os olhos às suas agruras. Vivia como se eles não existissem. Eu era um pastor (bem-sucedido pelos padrões da cultura da igreja) que lia, estudava e pregava a Palavra de Deus. Contudo, em relação aos pobres, eu me limitava a palavras, não havia de minha parte nenhuma ação nem verdade. Tiago estava certo: minha falta de interesse pelos pobres era um claro sinal de que minha fé padecia de um problema básico. Tiago apenas escreveu o que Jesus havia dito anteriormente, isto é, que a fé que temos no coração ficará evidente no fruto da nossa vida. Jesus ensinou: "Pelos frutos os conhecereis" (Mt 7.16), Posteriormente, ele descreve a separação entre cristãos e não cristãos no juízo final como aqueles que haviam ajudado os seguidores pobres de Cristo e os que não o haviam feito (veja Mt 25.31-46).Com relação aos que não deram alimento, água e roupas aos irmãos e irmãs necessitados Jesus diz: "E eles irão para o castigo eterno" (Mt 25.46). Quanto mais eu ouvia as palavras de Jesus, Tiago e o restante da Escritura, tanto mais se tornava claro: os que se dizem cristãos, mas se recusam a ajudar quem foi atingido pela pobreza simplesmente não são filhos de Deus. Essa realidade sacudiu minha alma. LIVRE PARA A OBRA
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Agora sei (e quero dizer isso com cuidado) que nem Jesus, nem Tiago, nem qualquer outro autor da Escritura estava ensinando que o cuidado com o pobre é um meio de salvação. A Bíblia é clara, do início ao fim, quando diz que a fé humilde na graça divina é o único meio de salvação eterna. Paulo expressa essa verdade com imensa clareza: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe" (Ef2.8,9).A única base para a salvação é a obra de Jesus, sua vida, morte e ressurreição, e o único meio de salvação consiste em crer nele. As boas-novas do evangelho, de que Deus nos declara justos perante ele, não se baseiam em nada do que fizemos, mas em tudo o que Jesus fez — por sua graça somente, pela fé nele somente. Desse modo, o evangelho nos liberta de toda e qualquer tentativa de ganhar a aceitação divina pelas obras. Esse, porém, não é o fim da história. Quanto mais me dedicava ao estudo da Palavra de Deus, tanto mais me dava conta de que esse mesmo evangelho que me liberta das minhas obras também me liberta para praticá-las. Isso pode parecer confuso ou até contraditório, mas estou usando obras aqui em dois sentidos diferentes, assim como o faz a própria Escritura. As vezes, o termo obras na Biblia se refere a ações feitas na carne para conquistar o favor divino e, conforme vimos, tais obras não são de modo algum suficientes. Todas as nossas melhores obras, mesmo as mais radicais delas, jamais serão suficientes para merecer a salvação perante um Deus santo. Todavia, a fala também de obras no sentido de ações inspiradas pela fé com o propósito de glorificar a Deus, e a Bíblia celebra esse tipo de obra. É o tipo de obra de que fala Tiago quando se refere ao amor aos necessitados, à demonstração de misericórdia ao pobre e ao cuidado com os que sofrem. De igual modo, Paulo fala de "trabalho que resulta da fé" (ITS 1.3, NVI), que "toda boa obra que procede da fé" (2Ts 1.11, NVI) e da "fé que atua pelo amor" (Gl 5.6). De fato, imediatamente depois dos versículos em Efésios sobre como somos salvos pela graça somente, exclusivamente por meio da fé em Cristo, Paulo escreve: "Pois fomos feitos por ele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, previamente preparadas por Deus para que andássemos nelas" (Ef 2.10). Compreendeu? Deus nos criou para boas obras. Se você é seguidor de Cristo, então é livre para descansar na obra consumada por ele a seu favor e, ao mesmo tempo, é livre para fazer boas obras de acordo com a vontade dele. E essa vontade é clara. Ele quer tornar sua glória — a plenitude do seu caráter —conhecida por todos os povos no mundo todo. Ele quer mostrar ao mundo que é "misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e cheio de bondade e de fidelidade" (Êx 34.6); que ele "levanta o pobre do pó" e "ergue o necessitado do monte de cinzas" (ISm 2.8); que "defende os oprimidos" e "dá alimento aos famintos" (SI 146.7); que é "defesa para os indefesos" e "para o necessitado em sua angústia" (Is 25.4, NASB). Essas características de Deus são reveladas de forma suprema em Cristo, que veio ' para anunciar boas novas aos pobres" e "para pôr em liberdade os oprimidos" (LC 4.18). No momento em que vemos essa imagem de Deus em Cristo, percebemos que o cuidado com os pobres não é apenas uma evidência necessária da fé nele; é algo que flui de forma natural (ou sobrenatural) dessa fé. Não faz todo sentido que todos nós que amamos a Deus como nosso Pai vivamos, em consequência disso, como "imitadores de Deus, como filhos amados" que andam "em
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amor como Cristo, que também nos amou e se entregou por nós" (Ef5.1,2)? Como pessoas de quem Cristo cuidou em nossa pobreza e por quem se sacrificou, será que não nos sentimos impelidos a cuidar e não abnegação de outros sua. Além disso, como homens e mulheres ricos em bens materiais em um mundo que precisa urgentemente de cuidados espirituais e físicos, não queremos refletir a majestade de Deus em misericórdia pelos pobres? O "QUERER" Esse "quem" é especialmente importante porque consolida a motivação dos cristãos pelo cuidado com os pobres. Não nos importamos com os pobres por causa de algum sentimento superficial de que temos de fazê-lo, mas por causa de uma compulsão sobrenatural que faz com que queiramos fazê-lo. Os cristãos em nossa cultura não devem se importar com os pobres só por se sentirem constrangidos a isso devido a um sentimento menor de culpa. E claro que, quando percebemos que cerca de 19 mil crianças estão morrendo todos os dias de doenças que poderiam ter sido evitadas e reconhecemos, além disso, que estamos entre as pessoas mais ricas que já pisaram neste planeta, nossos olhos se abrem.2 Contudo, a culpa pura e simples diante das estatísticas mundiais não resulta em obediência constante aos mandamentos divinos. Podemos mudar durante algum tempo nosso comportamento por causa da culpa, mas isso logo passará. Em vez disso, o cuidado real, autêntico e sustentável pelos pobres só acontecerá quando esse sentimento menor de culpa for sobrepujado pelo sentimento maior do evangelho. Porque por meio do evangelho — as boas-novas do grande amor de Deus em Cristo — o cristão é compelido à obra voluntária, alegre, urgente, movida pela fé, plena de graça e de glorificação a Deus em favor do pobre. Para que fique bem claro, chegar a ponto de querer obedecer aos mandamentos de Cristo não é algo que aconteça assim da noite para o dia. O crescimento na vida cristã em geral começa pela obediência, mesmo quando falta o desejo profundo. Contudo, no processo de obedecer, o seguidor de Cristo aprende a confiar que os caminhos de Jesus de fato são bons. Como pastor, tenho visto com muita satisfação as pessoas darem pequenos passos em favor dos pobres em nossa comunidade c no mundo todo. E assim elas acabam percebendo o quanto isso vale a pena — não apenas para o próximo, mas para si mesmas. Conforme cuidamos dos pobres, o que inicialmente talvez fosse uma obrigação ("ter de") se transforma inevitavelmente em prazer ("querer) Mas mesmo quando estivermos cuidando dos pobres, seremos tentados a esquecer o evangelho a cada momento. E lamentável o fato de que a história do cristianismo está repleta de histórias de pessoas que trabalharam apaixonadamente em favor dos pobres, mas que, sutilmente, perderam o domínio do evangelho. O chamado evangelho social" do século 20 esvaziou o cristianismo de suas verdades básicas e colocou muitas igrejas num caminho de concessão teológica e heresia bíblica, Como consequência, vários dos cristãos fiéis à Bíblia encaram com muita cautela a questão do cuidado com os pobres. Todavia, não é necessário ter cautela a respeito de algo sobre o qual Deus é tão claro, De Gênesis a Apocalipse, na Escritura não encontramos referência a um Deus que se mostre hesitante em relação aos pobres. Ao contrário, Deus é pródigo em sua avidez por ouvir, ajudar, defender e demonstrar sua
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compaixão por eles. Portanto, o povo de Deus não pode ficar aquém desse padrão. Sim, cabe-nos guardar as verdades do evangelho, mas também nos cabe obedecer a Deus. Mesmo que essa seja uma área de sua vida em que você não está obedecendo aos mandamentos de Deus, pois tem negligenciado o pobre, o evangelho ainda é boas-novas, Deus perdoa esse pecado também e, por seu Espírito, capacita você a trilhar um novo caminho de amor sacrificial a seu próximo. Como é esse amor sacrificial? Gostaria de mc deter em cinco implicações simples, porém importantes, do evangelho para nossa vida em um mundo de pobreza espiritual e física prementes. Em uma cultura que tanto enfatiza o lazer, o luxo, o ganho financeiro, o aprimoramento pessoal e as posses materiais, será cada vez mais contracultural o cristão que trabalha diligentemente, vive com simplicidade, doa sacrificialmente, ajuda as pessoas de forma construtiva e investe na eternidade. Todavia, é isso o que devemos fazer. TRABALHE DILIGENTEMENTE Em primeiro lugar, o evangelho nos compele a trabalhar diligentemente. Como alguém que tem prazer no trabalho, Deus nos criou para que trabalhássemos. Quando Deus criou o homem, ele o "colocou no jardim do Eden, para que [...] o cultivasse e guardasse" (Gn 2.15). Quando nos lembramos de que isso foi antes da entrada do pecado no mundo, vemos que o trabalho é uma bela dádiva da graça divina. Costumamos encarar o trabalho como um mal necessário, algo que temos de suportar para ganhar dinheiro, mas não é assim que a Bíblia o vê. Desde o princípio, o trabalho foi símbolo da dignidade humana, parte fundamental do plano de Deus para que as pessoas cuidassem da criação que lhes fora confiada e desenvolvessem a cultura à sua volta em prol do bem comum. Tim Keller resume bem isso: Na lavoura, o solo e a semente— recursos naturais — se combinam e produzem o alimento. Na música, as propriedades física se combinam e transformam-se em algo belo e empolgante que dá significado à vida. Quando um pedaço de tecido é transformado em roupa, quando a vassoura varre uma sala, quando a tecnologia é usada para canalizar a força da energia elétrica, quando tomamos uma mente humana informe e ingênua e lhe ensinamos um assunto qualquer, quando ajudamos um casal a resolver seus problemas de relacionamento, quando transformamos materiais comuns em uma obra de arte que toca o coração — estamos continuando o trabalho que Deus começou de encher a terra e sujeitá-la [...] e estamos seguindo o padrão de desenvolvimento cultural e criativo de Deus.4 Quando produzimos bens e prestamos serviços por meio de qualquer tipo de trabalho, estamos contribuindo com nossa cultura de um modo que serve as pessoas e honra a Deus. Todo trabalho é importante para a sociedade. Se todos fossem pastores como eu, seria desastroso. E claro que saberíamos ensinar a Bíblia e pastorear igrejas, mas não teríamos nada para comer. Assim também, se todos fossem vendedores, não teríamos nenhum produto para comprar. Se todos fossem policiais, todos estaríamos seguros, mas também não teríamos onde morar. Se todos fossem advogados... bem, todos estaríamos encrencados. Conforme observa Lester DeKoster:
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[O trabalho] proporciona um retorno muito maior aos nossos esforços do que a contribuição específica do que fazemos [...] A cadeira em que você está comodamente sentado, acha que seria capaz de fazê-la? [...] Onde arrumaria, por exemplo, a madeira? Sairia em busca de uma árvore para derrubar? Mas não deveria primeiro fazer as ferramentas necessárias, conseguir um veículo adequado para transportá-la, construir um moinho para serrar a madeira, bem como construir estradas para ir de um lugar a outro? Em suma, precisaria de uma a duas existências para fazer uma simples cadeira! Se [...] trabalhássemos não apenas 40, mas 140 horas por semana, não conseguiríamos fazer do zero nem mesmo uma fração de todos os bens e serviços que hoje temos à nossa disposição [...] Ocorre que nosso contracheque compra para nós muito mais do que seríamos capazes de fazer por conta própria durante o tempo que levamos para ganhá-10. E DeKoster conclui: Imagine se todo mundo parasse de trabalhar agora! O que aconteceria? A vida civilizada rapidamente desapareceria, Os alimentos sumiriam das prateleiras dos supermercados, as bombas de gasolina ficariam secas, as ruas não seriam mais patrulhadas e os incêndios só se apagariam quando não houvesse mais o que queimar. Não haveria mais serviços de telecomunicação e transporte e as concessionárias de serviços públicos se extinguiriam. Os que sobrevivessem se juntariam em torno de fogueiras, dormiriam em cavernas e se cobriram com trapos. A diferença entre [selva] e cultura é simplesmente o trabalho.6 Todo tipo de trabalho humano é importante e criado por Deus para o bem do mundo. Enfatizo esse ponto porque o trabalho é uma das maneiras mais óbvias, embora negligenciadas, de suprir as necessidades dos pobres. As vezes, as pessoas ouvem apelos para ajudar os pobres e pensam imediatamente: "Talvez eu devesse deixar meu trabalho sem importância e dedicar mais tempo significativo para os pobres". Não estou dizendo que Deus não leva certas pessoas a abandonarem sua profissão por um propósito específico, mas me pergunto se esse modo de pensar não expõe uma falha fundamental em nosso entendimento do que seja trabalho. Ao trabalhar diariamente contribuímos para o desenvolvimento de uma sociedade capaz de sustentar a vida humana. Às vezes ouço isso vindo de estudantes, universitários, os quais, convencidos da existência de certa área carente no mundo, decidem que o curso óbvio de ação para sua vida consiste em parar de perder tempo com os estudos e começar a fazer algo de importante para o mundo. Repito: não estou dizendo que Deus esteja orientando todo mundo a sair (ou permanecer) na faculdade, mas será que ele não levou muitos a cursar a faculdade por algum motivo? Será que, em vez de perda de tempo, ela não seria uma maneira sábia de usar o tempo para receber treinamento nas habilidades de um trabalho que Deus poderá usar no futuro para realizar seu propósito no mundo? Além disso, é com trabalho que ganhamos dinheiro. Muitos que leram outros livros que escrevi ou me ouviram falar sobre bens perguntam: — David, você está dizendo que é errado ganhar muito dinheiro? Inequivocamente, minha resposta é sempre: — Não. Ganhe o máximo de dinheiro que puder. Seja um milionário, se o Senhor lhe der essa oportunidade! As pessoas ficam surpresas, e eu acrescento:
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— O mais importante não é o quanto você ganha, mas o que faz com o que ganha. Essa não é uma filosofia minha; é o que Deus prescreve. Leia Palavra em 1Timóteo: osos, nem Ordena aos ricos deste mundo que não sejam or ponham a esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que nos concede amplamente todas as coisas para delas desfrutarmos; que pratiquem o bem e se enriqueçam com boas obras, sejam solidários e generosos. Com isso acumularão um bom tesouro para si tocamos, um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a verdadeira vida (1Tm 6.17-19). Deus não ordena aos ricos que parem de ganhar dinheiro. Em vez disso, ele ordena que usem seu dinheiro na terra para acumular tesouros na eternidade. Temos mais dinheiro do que a maioria porque temos a capacidade de trabalhar em nossa cultura. Temos oportunidade de aprender nas escolas, de estudar em universidades e de conseguir emprego e ganhar dinheiro. Quando maximizamos nossas capacidades e aproveitamos as oportunidades, honramos a Deus e cultivamos o bem da sociedade. Nesse processo, adquirimos habilidades, conquistamos posições, alcançamos plataformas e auferimos recursos que podem (e devem) ser aproveitados para cuidar dos pobres. Tudo isso significa que enquanto formos capazes, o evangelho nos compele a ser contraculturais em nossa forma de trabalhar. Vivemos em uma cultura que não enxerga o trabalho como um bom dom de Deus, quer se trate de jovens adultos, quer de adultos aposentados. Muita gente jovem está prolongando a adolescência até a idade adulta. Inúmeros jovens na faixa dos 20 e dos 30 anos, por exemplo, estão se recusando a se tornarem adultos, preferindo jogar video game a estudar ou trabalhar, com empregos de meio período e dependendo dos pais para pagarem suas contas. O pior de tudo é que alguns disfarçam sua preguiça em linguagem espiritual dizendo que estão esperando para compreender o que Deus deseja que façam, ignorando enquanto isso a realidade bíblica cristalina de que Deus quer que trabalhem pelo bem de outros e para sua glória, Essa tendência não deveria nos surpreender em uma cultura que minimiza o valor do trabalho e engrandece o objetivo da aposentadoria. O sucesso, de acordo com os padrões da nossa sociedad e, significa atingir uma situação em que não seja mais necessário trabalhar. Acabei de voltar de um congresso no sul da Flórida onde me vi rodeado de homens e mulheres que estão passando os últimos anos de vida na terra descansando entre os prazeres dessa cultura. Cristo, porém, nunca nos chamou a esse tipo de aposentadoria. De modo algum a Escritura fala, em qualquer momento, que Deus pede a pessoas saudáveis que parem de trabalhar. Em parte alguma da Bíblia vemos que o plano de Deus para mentes e corpos produtivos consiste em ficar perpetuamente deitado em uma praia, movimentando-se de lá para cá em um campo de golfe ou sentado em um barco de pesca. O conceito de poupar para termos uma vida tranquila e repleta de comodidades não tem nenhum fundamento bíblico. Quero esclarecer que não estou me referindo aqui a homens e mulheres sem condições físicas para o trabalho. Tampouco estou falando de pessoas que se aposentam de um emprego para poder trabalhar em coisas que não pagam salário, Conheço muita gente já de certa idade que não está mais empregada, mas trabalha para Deus em nossa cidade e no mundo em várias funções diferentes. Tenho um amigo, Jack, que hoje está na faixa dos 60 anos, que, quando batizado, disse simplesmente: "Meu plano era me aposentar, comprar um carro esportivo alemão e jogar tênis". Em
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seguida, porém, ele me disse: "Graças a Deus, antes que eu pudesse pôr meu plano em ação, ele interveio". Jack contou de que modo Deus havia trabalhado em sua vida, não apenas salvando-o do pecado, mas também de si mesmo. Hoje ele usa o conhecimento de seu antigo trabalho para servir a igreja e os necessitados de nossa comunidade, além de liderar um ministério para órfãos em Camarões. "Que alegria", ele disse à igreja, "ver o sorriso das crianças quando procuram seu colo para sentar ou sua mão para segurar porque não têm um pai terreno e você conta a elas sobre seu Pai celestial". Em seguida, ele concluiu: "Esse é o plano que Deus tinha para mim, e a emoção e entusiasmo que me dá excedem em muito a aposentadoria ou qualquer carro esportivo". Uma das maneiras básicas de ajudar os pobres é pelo trabalho diligente. VIVA COM SIMPLICIDADE À medida que trabalhamos diligentemente, o evangelho nos leva, então, a viver com simplicidade. A única ressalva que faço quando encorajo as pessoas a ganhar tanto dinheiro quanto puderem é que sejam extremamente cautelosas nesse processo. Mais uma vez, essa é a Palavra de Deus, especialmente para os ricos. Pouco antes da passagem anterior de 1Timóteo, Paulo escreve: Mas os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos loucos e nocivos, que afundam os homens na ruína e na desgraça. Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e por causa dessa cobiça alguns se desviaram da fé e se torturaram com muitas dores (6.9,10). E claro que o dinheiro não é maligno por natureza. Contudo, o dinheiro nas mãos de pessoas pecadoras —como todos nós — pode ser perigoso, mortal ou mesmo danoso. Jesus disse: "Como é difícil para quem tem riquezas entrar no reino de Deus!" (Mc 10.23). No momento em que você e eu percebermos que somos ricos", essas palavras deveriam impactar nossos sistemas. Contudo, a maioria de nós simplesmente não acredita no que Jesus disse. A maior parte das pessoas em nossa cultura — e na igreja• — acredita que a riqueza é sempre um sinal de bênção divina, e praticamente não temos qualquer categoria que considere a riqueza uma barreira para chegarmos a Deus. Somos enganados com tanta facilidade! Como diz 1Timóteo, o dinheiro pode ser uma cilada poderosa. E como a água do mar. Se você estiver no mar e sentir sede, olhará em volta, verá toda aquela água e pensará "Eu devia beber essa água". No entanto, você mal se dá conta de que, por causa da alta concentração de sal que ela contém, quanto mais beber, com mais sede sentirá. medida que for bebendo para aplacar a sede, ficará desidratado, com dor de cabeça, boca seca, sua pressão sanguínea cairá c o coração ficará acelerado. por fim, terá delírios, perderá a consciência e morrerá. A ironia é impressionante. Ao beber aquilo que pensava ser uma fonte de vida, você, sem saber, mergulhou para a morte. E isso o que fazemos quando deixamos que o dinheiro nos seduza. Pensamos: "Quero mais", mas não percebemos que o desejo por mais é uma armadilha. Esse "mais" que queremos jamais nos satisfará porque nunca será suficiente. Qyando cedemos a esse desejo, ele destrói nossa alma pouco
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a pouco e pode nos destruir para sempre. Se por acaso você não prestou atenção à Palavra de Deus anteriormente, ouça-a novamente: o desejo por riquezas leva "os homens na ruína e na desgraça . Felizmente, a Escritura nos fornece um remédio para combater esse fascínio pelo dinheiro. Um pouco antes dessas advertências em 1Timóteo, a Bíblia diz: "De fato, a piedade acompanhada de satisfação é grande fonte de lucro. Porque nada trouxemos para este mundo, e daqui nada podemos levar; por isso, devemos estar satisfeitos se tivermos alimento e roupa" (6.6-8). Nessas palavras, a Escritura prescreve o antídoto: levar uma vida simples, de contentamento, que priorize as necessidades e minimize os luxos. Paulo diz a mesma coisa em 2Coríntios 8 e 9, onde aprendemos que Deus provê o suficiente para nós (veja 2Co 9.8) e o excesso para darmos a outras pessoas (veja 2Co 9.11). O evangelho nos leva a humildemente identificar o que é suficiente para nós, de modo que possamos dar livremente o excesso a outros. Ao entregarmos voluntariamente nossas riquezas para o bem do próximo, evitamos cair em ciladas e desfrutamos do contentamento descrito por Paulo. Esse tipo de atitude vai totalmente contra a natureza da nossa cultura, pois somos bombardeados pela mentira de que um salário mais alto requer um padrão de vida mais elevado. Se tivermos mais dinheiro, deveríamos gastar mais dinheiro com nós mesmos, Ora, temos o direito a mais coisas, a bens mais sofisticado; c a luxos maiores. Se formos bem honestos, veremos que a maioria de nos pensa dessa maneira, ainda que afirmemos seguir a Cristo. Afinal de contas, o dinheiro foi bênção de Deus, certo? No entanto, essa atitude não está de acordo com a Escritura. A 1311)Jia nos ensina que DCE nos dá mais não para que tenhamos mais, mas para que possamos dar mais. Deus não nos dá dinheiro cm excesso para que nos entreguemos a prazeres terrenos que perecerão. Ele nos dá dinheiro para que possamos investi-lo no tesouro eterno que durará para sempre. Por esse motivo, você e eu devemos resistir incansavelmente à ideia tão comum de que "vence aquele que, ao morrer, possuir mais coisas". Essa visão de vida é não apenas perigosa; é demoníaca. Deus é nosso maior tesouro, e nossa vida terá valor na terra somente quando a investirmos no reino de Deus para a eternidade. Quando realmente compreendermos isso, nosso estilo de vida mudará. Na prática, o que acontecerá é que colocaremos um limite ao nosso estilo de vida determinando o nível de "suficiente" e, além daquilo estaremos liberados para usar o excesso em beneficio de outros. De modo muito semelhante a Paulo, olharemos com espírito de oração nossos bens e diremos: .Com isso estaremos contentes . Em seguida, se ou quando recebermos mais dinheiro, em vez de subir nosso padrão de vida, esse montante aumentará apenas a nossa oferta aos outros. Contudo, no momento que fizermos isso, veremos que não há respostas fáceis para a forma que essas coisas deverão tomar na vida de cada um de nós. Deus não nos deu leis ou listas na Escritura que nos permitam avaliar que tipo de comida devemos comer, quanto de roupa precisamos ou em que tipo de casa devemos morar. Em vez disso, Deus nos deu algo melhor. Ele nos deu seu Espírito para nos liderar e conduzir em todas as decisões, à medida que entregamos a ele todo o nosso dinheiro. Lembro-me de quando Heather e eu começamos a procurar uma casa nova em resposta à convicção que nos dava a Palavra de Deus. Convencidos de que precisávamos diminuir os gastos, as perguntas começaram a pipocar. Qual deveria ser o tamanho da casa? Em que tipo de bairro
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deveríamos procurar? Essas perguntas eram desafiadoras porque sabíamos que praticamente toda casa e todo bairro em nossa comunidade seriam considerados um luxo em comparação com o resto do mundo. A questão era saber como priorizarmos, da melhor forma, as necessidades e, ao mesmo tempo, minimizarmos os excessos. Mas isso era bem difícil porque sabíamos que quase tudo que encontrássemos em qualquer casa seria um luxo para muita gente no planeta. Além disso, em meio às perguntas que nos fazíamos, logo ficou claro que Heather e eu tínhamos respostas diferentes na mente. Uma casa mais simples exigiria que o Espírito nos orientasse para que nossa decisão fosse consensual. Devo reconhecer aqui que minha esposa foi incrivelmente paciente comigo. Meu plano, inicialmente, era dar a ela uma lista de casas que eu gostaria que visitássemos, mas esse plano não funcionou muito bem. Lembro-me de uma casa que não tinha piso nem armários, nem encanamento. Lembro-me de outra que era muito velha, mal conservada e cheirava forte a mofo e a bolor. No momento em que Heather entrou na casa, teve de sair correndo em direção à área da frente do imóvel, onde vomitou. Quando vi a cena, concluí que precisávamos de outro plano. Tive então a ideia de lhe pedir que fizesse uma lista de dez prioridades para ela numa casa. Disse-lhe que faria o mesmo e que então mostraríamos nossas prioridades um ao outro. Ela gostou da ideia e, quando nos sentamos para conferir nossas listas, ela falou primeiro. Em primeiro lugar na minha lista — disse ela —, pensei em uma área externa onde as crianças pudessem brincar. Queria que de algum modo elas pudessem passar um tempo do lado de fora da casa. Olhei para ela e percebi que nossas listas seriam muito diferentes. — O que foi? — ela perguntou. O que você pôs cm primeiro lugar na sua lista? Fiz uma pausa. — Água. Água? — indagou ela, como se dissesse: "Sério?" Quando comecei a explicar que água não era uma coisa certa com que se pudesse contar no mundo (como se ela não soubesse disso), percebi que em meus esforços por simplicidade eu havia deixado o reino do espiritual e migrado para o reino do absurdo. Naquela noite e nos dias seguintes, comecei a raciocinar de maneira mais lógica. Chegamos então a uma decisão mais homogênea sobre como e onde Deus estava nos levando a morar. Em retrospecto, sinto-me muito agradecido por todo o processo em que fomos conduzidos pelo Senhor até a casa em que moramos atualmente — uma casa que, posso garantir, é extravagante quando comparada a lugares como a aldeia de Sameer, mas que, assim esperamos, é usada de forma responsável conforme os recursos que o Senhor nos confiou. A mudança para uma casa mais simples foi apenas uma das muitas decisões que tomamos no passado, e uma entre inúmeras outras que nos vemos tomando no presente em uma cultura materialista que contradiz constantemente a Palavra de Deus. Não me atrevo a dizer que sou um modelo perfeito de vida simples, mas sigo em frente, com minha família e minha igreja, numa batalha perpétua contra o desejo de acumular riquezas. Convido você a tomar parte dessa batalha, tanto em seu coração quanto em nossa cultura. Se você é uma pessoa que se empenha no seu trabalho, o que terá de fazer para viver com simplicidade? Como fará para traçar a linha do "suficiente" em sua vida, sabendo que isso, inevitavelmente, o levará
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a se contrapor à cultura à sua volta? A vida simples é um desafio constante, e estou convencido de que a única arma capaz de ganhar essa guerra diariamente é o evangelho de Jesus Cristo. DOE SACRIFICIALMENTE Além de uma vida simples, o evangelho nos compele a doar sacrificial mente. Em 2Coríntios 8, Paulo usa o exemplo das igrejas da Macedônia que em "extrema pobreza [...] transbordaram em riqueza de generosidade, e isso em dura prova de tribulação", com suas ofertas aos santos famintos de Jerusalém do século primeiro. Eles "deram de livre vontade na medida dos seus bens, e até mesmo acima disso, pedindo-nos, com muita insistência, o privilégio de participar da assistência em favor dos santos" (v. 2-4). Amo essa imagem de homens e mulheres que viviam em extrema pobreza e, contudo, suplicaram para dar uma oferta à igreja necessitada por toda parte. Já vi esse tipo de generosidade pessoalmente. Logo depois que o furacão Katrina atingiu Nova Orleans, eu estava pregando nas igrejas pobres do leste asiático, onde servia. Eram igrejas clandestinas que se reuniam secretamente tarde da noite, e as pessoas sabiam que se fossem pegas adorando a Cristo, podiam perder suas terras, sua liberdade, família ou a própria vida. A maior parte dos membros dessas igrejas era constituída de agricultores pobres, que trabalhavam longas horas todos os dias em seus campos simplesmente para sobreviver. Passei algumas semanas com eles ensinando o que a Palavra de dizia sobre fazer discípulos. Em determinado momento, o homem que me hospedava compartilhou com aquelas igrejas que furacão havia recentemente devastado minha cidade, espalhado pedaços da nossa igreja e destruído meu lar e muitos outros. Na noite que passamos ali, encerrada nossa atividade, Liang, um dos líderes, aproximou-se de mim com um envelope na mão. e disse: Levantamos uma oferta para você e para sua igreja de Orleans. Imediatamente eu disse : Oh, não, Liang, não posso aceitar. Agradeço sua generosidade, mas Você e sua igreja precisam desse dinheiro mais do que eu. Mas Liang insistiu, — Não dissc CIC. Quercmos dar isso a você. Respondi novamcntc: — Não, não posso aceitar. Esse diálogo persistiu até que Liang insistiu finalmente: Queremos tcr a alegria de poder servi-lo c à sua igreja disse ele. — Por favor, aceita. Assim, peguei o envelope c agradeci a Liang c à igreja imensamente. Mais tarde, ao abrir o envelope, deparei com uma quantia bastante pequena de dinheiro. Contudo, aquele pequeno valor não deixava de ser uma oferta sacrificial, pelo que custou, aos membros daquela igreja, dá-la. Com essa imagem em mente não posso fazer outra coisa senão imaginar o que deve significar para cristãos e igrejas de nossa cultura doar como fez essa igreja. Não apenas doar de um modo que seja cômodo para nós, mas doar de um modo que realmente nos custe caro. O que significaria para nós doar desse modo, com anseio e entusiasmo, insistindo na oportunidade de nos sacrificar verdadeiramente por nossos irmãos e irmãs pobres do mundo todo? Esse é o padrão claro de doação da igreja do Novo Testamento, mas isso, infelizmente, ainda está longe de ser prática comum nas igrejas ocidentais contemporâneas. Temos irmãos e irmãs em Cristo com necessidades urgentes pelo mundo afora. Eles não têm água potável para beber, não têm alimentos suficientes para comer e não têm como proporcionar os nutrientes essenciais para manter
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a vida de seus bebês. Tudo isso suscita uma indagação para nós: vamos transbordar em generosidade sacrificial por amor a eles? Sei que muitos se posicionam contra isso e afirmam que nossa responsabilidade primária é cuidar das pessoas da nossa família e das nossas igrejas locais. Sem dúvida, isso é biblicamente verdadeiro, pois, se não nos importarmos com as pessoas da nossa família, somos piores do que os descrentes (veja 1Tm 5.8), e a Escritura enfatiza claramente o cuidado com os que estão próximos de nós Ao mesmo tempo, há também um precedente na Escritura para ajudarmos os irmãos e as irmãs pobres em outra, O exemplo principal pela oferta a que já nos referimos em 2 Corintios 8 e 9 para a igreja de Jerusalém. Num contexto semelhante, Paulo ...O cenário retratado aqui é fantástico, pois comunhão corpo de Cristo dizendo outra: santos com vocês, Vocês não estão sozinhos nas suas necessidades", Receio que tenha sido nesse ponto que perdemos o padrão da igreja do Novo Testamento em nossos dias, e de modo muito arriscado. Nós, como cristãos que vivemos cm países mais prósperos e com uma condição financeira mais estável, somos incrivelmente ricos se comparados ao corpo de Cristo no restante do mundo. Se tudo o que fizermos for suprir as necessidades uns dos outros em nosso próprio país, devido à proximidade, é como se estivéssemos dizendo aos nossos irmãos c irmãs terrivelmente pobres de outras partes do mundo: "Não estamos ao seu lado, e vocês costão sós cm suas necessidades". Irmãos e irmãs, isso não pode acontecer. A distância física da igreja pobre não deve criar isolamento espiritual cm relação a eles. No momento em que digo isso, quero oferecer imediatamente uma série de outras ressalvas. Não estou tentando colocar sobre os ombros de ninguém nem de nenhuma igreja o fardo impensável de cuidar de todas as igrejas necessitadas do mundo. Tampouco estou tentando simplificar demasiadamente os problemas complexos que estão por trás das populações pobres de vários países e contextos. Não há dúvida de que nossos irmãos c irmãs estão sofrendo por causa de uma série de fatores, muitos dos quais nossa capacidade limitada não nos permite abordar. Contudo, a lógica que diz "Não posso fazer tudo, por isso não vou fazer nada" vem direto do inferno. Eu me pergunto simplesmente: O que aconteceria se permitíssemos que o amor sacrificial de Cristo por nós, no evangelho, despertasse nossa vida, famílias c igrejas uma generosidade sacrificial pelos irmãos c irmãs cm Cristo cm necessidade extrema no mundo todo? Assim como no caso de viver com simplicidade, não há respostas específicas aqui no que diz respeito a como seria isso cm nossa vida, em nossas famílias ou igrejas. Ofereço, entretanto, alguns dos conselhos mais proveitosos que recebi no tocante a quanto devemos doar. Eles vêm de C. S. Lewis: Não creio que seja possível definir quanto devemos doar. Receio que a única regra segura consista em doar mais do que conseguimos poupar. Em outras palavras, se nosso gasto com conforto, objetos de luxo, diversões etc. estiver em pé de igualdade com o padrão vigente entre os que têm a mesma renda que nós, isso significa que, provavelmente, estamos doando muito pouco. Se não sentirmos no bolso nossas doações para caridade, se elas não nos incomodarem nem um pouco, eu diria que são insignificantes demais. E preciso haver coisas que gostamos de fazer, mas não podemos, porque nossos gastos com caridade nos impedem de fazê-la
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Não há dúvida de que o amor de Cristo nos leva a fazer precisamente isso. AJUDE CONSTRUTIVAMENTE Embora nossa ajuda seja sacrificial, devemos tomar o cuidado de ajudar de forma construtiva. Citei anteriormente o livro de Steven Corbett e de Brian Fikkert, When helping hurts: how to alleviate poverty without hurting thepoor... andyourself [Qyando ajudar dói: como aliviar a pobrcza sem ferir o pobre... c a si mesmo]. Escrevi recentemente o prefácio da edição revisada desse livro, que recomendo aos líderes c aos membros da igreja como uma leitura muito importante. Na hora de doar aos pobres, devemos cuidar para que bom para eles (e para nós). Isso significa ajudá-los com sabedoria, com atenção para completar o que falta a alguém responsável, em vez de subsidiar um irresponsável. A pior coisa que podemos fazer para o necessitado é negligenciá-lo. A segunda pior coisa é subsidiá-lo, ajudá-lo a sobreviver um dia ignorando o que fazer para ajudá-lo a sobreviver a vida toda. A Escritura não nos chama a salvar os preguiçosos da pobreza. Ao contrário, ela nos chama a servir e a complementar a necessidade do responsável. Até mesmo em 1Timóteo 5, onde Paulo ordena à igreja que cuide das viúvas, ele especifica: "A viúva real mente necessitada" (v. 5). E prossegue dizendo que nem toda viúva está qualificada para receber o apoio da igreja. Consequentemente, precisamos pensar como ajudar os necessitados de forma a lhes dar poder para cumprirem o propósito para o qual Deus os criou, em vez de capacitá-los a perder de vista esse propósito. Uma ajuda desse tipo requer atenção pessoal, prestação de contas consistente e compromisso de longo prazo. Dar aos necessitados não significa distribuir donativos, mas compartilhar a vida. Ajudálos não significa usar o dinheiro para resolver o problema e pronto. E preciso investir a vida em alguém, o que é bem mais difícil de fazer. Temos de dar atenção individual às pessoas a quem estamos ajudando, possibilitando a prestação de contas no contexto de uma relação pessoal amparada por um compromisso de longo prazo. Jamais devemos considerá-las projetos temporários com os quais nos entretemos. Em tudo isso, é preciso reconhecer a diversidade e entender que as pessoas são pobres por diferentes motivos e, portanto, devemos ajudá-las de diferentes maneiras. Não existe uma estratégia que sirva para todo tipo de pobreza. Isso seria o mesmo que dizer: "É assim que devemos curar doenças", como se todas as enfermidades fosgcjrj iguais. Há muitos fatores por trás da pobreza: escolhas pessoais pecaminosas, visões de mundo não bíblicas, catástrofes naturais, desastres morais, falta de desenvolvimento tecnológico, desigualdade de poder, leis e líderes corruptos etc. Isso significa, portanto, que devemos nos dedicar a pensar cm como ajudar os necessitados de maneiras que reflitam sua situação. Há alguns anos, quando começou a me dar a convicção de que eu estava falhando em relação ao cuidado para com o pobre, Deus também deu convicção à nossa igreja no mesmo sentido. Começamos um processo de fatiamento do orçamento, redução de programas e corte de projetos para que tivéssemos o máximo de liberdade possível para necessidades espirituais e físicas urgentes de outras partes do mundo. Ao longo desse processo, adotamos um enfoque local e global para nossas doações.
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Localmente nos concentramos em uma área de criminalidade elevada e de baixa renda em nossa cidade. Alguns dos membros da igreja venderam suas casas em bairros elegantes e se mudaram para essa comunidade. Os líderes da nossa igreja passaram a explorar meios pelos quais trabalhar e servir, em parceria com igrejas e ministérios, nesse bairro ou próximo dele. Em tudo isso, aprendemos muito a respeito das causas da pobreza nessas comunidades: líderes do tráfico de drogas, chefes de favelas, todo tipo de exploradores, abandono e declínio de determinados bairros da cidade, racismo, dificuldades de transporte, famílias desfeitas, sistemas de ensino de má qualidade, políticas sociais ruins e escolhas pessoais pecaminosas, só para citar algumas delas. Ao mesmo tempo, começamos a estudar a atuação de vários ministérios e igrejas nos centros urbanos do nosso país para aprender o que pareciam ser as melhores maneiras de lidar com essas necessidades. Por fim, tendo em vista o que outros ministérios já estavam fazendo, decidimos que a melhor alternativa que poderíamos ado- tar à luz das necessidades da nossa cidade consistia em criar um programa de treinamento e recolocação no mercado de trabalho que girasse em torno de relacionamentos imbuídos do evangelho. Nosso projeto ajuda adultos desempregados a conseguirem um emprego e a mantê-lo, a desenvolverem uma ética de trabalho bíblica, uma visão de mundo igualmente bíblica e a caminharem no sentido de se tornarem proprietários de casa própria e membros ativos de sua comunidade, ao mesmo tempo que são mentoreados por alguém do projeto que conhece sua necessidade mais profunda (necessidade do evangelho). Não faz muito tempo, tivemos a primeira turma de homens e mulheres formada pelo programa. Foi impressionante ver, entre outras pessoas, uma mulher chamada Jennifer ir à frente e receber seu certificado de conclusão. Jennifer abandonou a escola quando estava no nono ano. Anos depois ela se perdeu ao ceder ao vício das drogas ilícitas. A espiral descendente de Jennifer aumentou ainda mais depois que ela arrumou um namorado que também fazia uso pesado de drogas. Eles tiveram um filho. Ela não tinha como sustentar o bebê e perdia todo emprego que arrumava por causa da dependência das drogas. Ela arrumou outro namorado, outro consumidor pesado de drogas. Juntos tiveram uma filha. Jennifer conseguiu então outro emprego para sustentar seus dois filhos pequenos, mas quando começou a roubar do patrão para comprar drogas foi o fim da linha. Aos 22 anos, ela foi presa, acusada de quatro crimes. Foi sentenciada a seis anos de detenção e perdeu a custódia dos dois filhos. Isso foi há seis anos. Jennifer foi libertada da prisão no início deste ano e levada para uma unidade de transição que tem parceria com nossa igreja. Rodeada pelo amor de mulheres que queriam servi-la, ela encontrou o Deus que queria salvá-la. Ela creu no evangelho, abandonou o pecado e seu eu e confiou em Jesus como Salvador e Senhor de sua vida. Pouco tempo depois, fez contato com nosso ministério de treinamento para recolocação profissional, onde aprendeu a lidar de forma honesta e ética com possíveis a respeito de seu passado, trabalhando ao mesmo tempo humilde c diligentemente para modificar o seu futuro. Ela completou o treinamento c se candidatou a vários empregos com uma consciência recém-descoberta de seu valor em Cristo e uma confiança renovada em seus planos de vida. Dois dias depois de receber o certificado de conclusão, Jennifer recebeu a ligação que há anos esperava ouvir. Ela conseguira um novo emprego e, mais do que isso, dera um
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primeiro passo enorme para a restauração da sua vida e, possivelmente, para trazer os filhos de volta aos seus cuidados. Ao mesmo tempo que começou a promover mudanças locais para o bem da nossa cidade, nossa igreja também adotou um enfoque global voltado para as necessidades do norte da Índia. Entre as muitas parcerias que fizemos e os muitos relacionamentos que estabelecemos para tratar das questões mais urgentes naquele contexto, uma que gravei bem na memória diz respeito a alguns membros de nossa igreja cujos olhos foram abertos para as realidades que estamos discutindo neste capítulo. Três homens, todos eles bem-sucedidos nas respectivas vocações, perceberam que Deus não lhes havia dado sucesso simplesmente para o bem deles mesmos. As excelentes oportunidades e a renda excedente que Deus lhes havia concedido na terra não lhes foram dadas para que comprassem casas maiores e carros mais bonitos na busca por maior conforto neste mundo. Eles refletiram então sobre sua vida e seus negócios considerando que tudo o que Deus lhes havia dado poderia ser aproveitado para a proclamação do evangelho num quadro de necessidades urgentes. Ao orarem e pesquisarem as necessidades do mundo e os meios de satisfazê-las, sentiram que o Espírito de Deus os levava a tratar da questão da água. Diante de um bilhão de pessoas no mundo sem acesso à água potável,8 muitas delas na India, eles criam um ministério chamado Neverthirst [Sede jamais] com 0 propósito de proporcionar água limpa e viva para os pobres através da igreja local. Desde o começo, esses homens sabiam que queriam criar projetos relacionados à água, em parceria com as igrejas locais, que comunicassem melhor o evangelho em uma comunidade local. Além disso, sabiam que, para o sucesso de um poço ou de um aparelho de filtragem de água, era preciso que a comunidade se apropriasse do projeto e dele participasse, por isso criaram maneiras de garantir que as coisas transcorressem dessa forma. Queriam ainda se certificar de que a igreja e a comunidade locais recebessem treinamento adequado quanto aos melhores métodos de manutenção e uso da nova fonte de água, tendo em vista o desenvolvimento da comunidade. Todas essas coisas juntas acarretavam dificuldades e contratempos significativos, mas esses irmãos em Cristo, que antes nada sabiam sobre esse tipo de ministério em países em desenvolvimento, perseveraram até o fim. O resultado? Em poucos anos, o ministério que começaram já executou mais de dois mil projetos, levando água potável para mais de trezentas mil pessoas, e tudo isso através de igrejas locais que proclamam as boas-novas da água viva que só pode ser encontrada em Cristo. O que mais me encanta nessas pessoas que fundaram a Neverthirst, bem como nos homens e mulheres que lideram nosso projeto local de recolocação profissional, é que nenhuma delas se considera um salvador rico que vai às comunidades ou países pobres para ajudar pobres pecadores em necessidade. Ao contrário, sabem que elas (e nós) somos todos pobres pecadores necessitados. Podemos tentar mascarar essa realidade vivendo uma vida de classe média com bens materiais, mas, no fundo, todos precisamos que Deus estenda sua mão de esperança e toque em nossos pobres corações. Por sua graça, ele faz isso em Cristo, de modo que faz sentido para homens e mulheres, a quem Cristo encontrou em suas necessidades, servir a outros em suas necessidades dedicando tempo, sacrificando dinheiro, correndo riscos e dando a vida, apontando a direção Salvador perfeitamente
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capaz não apenas de atender as necessidades de alguém na terra, mas também de satisfazer sua alma na eternidade. INVISTA ETERNAMENTE Poderíamos falar muito mais sobre de que modo o evangelho leva os ricos a viverem cm um mundo de pobreza exasperante, mas vou finalizar com uma última exortação. Ao nos salvar c cuidar de nós a graça de Deus nos compele a investir na eternidade. As palavras de Jesus sobre as riquezas repercutem no Sermão do Monte: "Não ajunteis tesouros na terra, onde traça e ferrugem os consomem, e os ladrões invadem e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem traça nem ferrugem os consomem, e os ladrões não invadem nem roubam. Porque onde estiver teu tesouro, aí estará também teu coração" (Mt 6.19-21). É evidente que Jesus colocou diante de nós uma escolha: podemos gastar nossos recursos em prazeres efêmeros que não podemos manter ou podemos sacrificar nossos recursos em troca de um tesouro eterno que jamais perderemos. Essas palavras ditas às multidões me lembram de uma das minhas partes favoritas do diálogo de Jesus com o jovem rico. Jesus disse a esse administrador abastado: "... vai, vende tudo o que tens c dá-o aos pobres; e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me (Mc 10.21). A primeira vista, isso parece um chamado ao sacrifício e, em certo sentido, é mesmo. Na verdade, no coração daquele homem o preço lhe pareceu alto demais para ser pago — ele rejeitou o convite de Jesus. Contudo, se examinarmos mais detidamente as palavras de Jesus, elas não são tanto um apelo ao sacrifício e, sim, um apelo à satisfação. E claro que Jesus disse ao homem para vender tudo o que tinha na terra. Em seguida, porém, ele lhe prometeu um tesouro duradouro na eternidade. Quando pensamos nisso, há um matiz (ou talvez muito mais do que um matiz!) de motivação pessoal para que esse homem cuide dos pobres. E como se Jesus estivesse lhe dizendo: "Dê o que você tem aos pobres. Vou lhe dar algo melhor". No fim das contas, Jesus não está convidando esse homem para sc afastar do tesouro. Ele o está convidando para se aproximar do tesouro. Quando entendemos essa passagem desse modo, percebemos que o materialismo não é apenas pecaminoso; é tolo. Por que haveríamos de abandonar o tesouro eterno em troca de bugigangas terrenas? Em que, portanto, investiremos nossa vida e, especificamente, nosso dinheiro e nossos bens? Não há dúvida de que alguns poderão dizer, em resposta a este capítulo, que não considerei a importância de poupar e investir, principalmente quando consideramos as possibilidades de expansão das riquezas para os propósitos do reino. Aplique os dez mil dólares que sobraram em um banco, é o que se costuma falar, deixe render e daqui a vinte anos você terá cem mil dólares para dar aos pobres. Sem dúvida, essa é uma forma de lidar com o investimento, e pode ser que o Senhor o leve a agir assim. Não se esqueça, porém, de que há outra forma. Imagine que você pegue esses dez mil dólares que sobraram e invista em um plantador de igreja que vá trabalhar em conjunto com a nova clínica médica construída nas imediações da aldeia de Sameer. Imagine essa clínica crescendo, atendendo às necessidades médicas básicas de homens, mulheres e crianças da comunidade vizinha e reduzindo drasticamente, com isso, a taxa de mortalidade por causa de doenças que podem ser evitadas. Imagine
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ainda que o plantador de igreja pregue o evangelho nessas mesmas aldeias, dizendo-lhes que Deus não apenas ouve seus clamores em meio à pobreza material, mas que ele salvará suas almas da pobreza espiritual. Imagine essas aldeias vinte anos depois, com centenas, senão milhares, de cristãos cantando e proclamando louvores a Deus enquanto espalham as boas-novas do evangelho. Certamente esse é um investimento que a pena considerar, certo? Lembre-se do que Jesus disse aos discípulos depois que o homem rico saiu: "Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por causa de mim e do evangelho, que não receba cem vezes mais, ra no presente, cm casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições, e no mundo vindouro, a vida eterna" (MC 10.29,30). Ao ler esses versículos, vemos neles uma estratégia sábia de investimento. qualquer um que possa nos garantir um investimento que renda juros de 10.000% é um excelente investidor, alguém com quem Vde a pena trabalhar. Contudo, investir eternamente, apesar da promessa de bom retorno, é contracultural. Esteja certo de que se você começar a pôr seu dinheiro em investimentos eternos, em vez de aplicá-lo em mercados terrenos, começará a ouvir questionamentos e objeções. Alguns talvez sejam válidos e devam ser considerados, mas nunca se esqueça de que, no fim das contas, não estamos falando de sua vida daqui a vinte anos. Estamos falando de sua vida daqui a vinte bilhões de anos, e isso muda tudo. E preciso lembrar que este mundo em que vivemos, com seus prazeres e sua miséria, não é nosso lar final. Estamos vivendo para outra terra, uma terra em que os prazeres jamais acabam e os pobres não mais o serão. Consequentemente, seria prudente de nossa parte abrir os olhos agora para a riqueza espiritual e material que Deus nos confiou neste mundo e escancarar o coração para as inúmeras formas pelas quais ele pode estar nos chamando para usar essa riqueza para o bem de outros, para o nosso próprio bem e, acima de tudo, para a sua glória em toda eternidade.
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Capítulo 03 HOLOCAUSTO MODERNO: O EVANGELHO E O ABORTO Vergonhosamente calada e espantosamente passiva. São essas as palavras que me vêm à mente quando penso em minha postura em relação à questão do aborto durante boa parte de minha vida como cristão e em meu ministério como pastor. Até bem poucos anos, eu mal tocava no assunto. Encarava o aborto como uma questão política sobre a qual não via necessidade de me preocupar pessoalmente. Errei por não perceber que ele é uma questão bíblica com a qual eu deveria me preocupar profundamente. De todos os problemas sociais tratados neste livro, o aborto oferece o risco mais evidente e atual para a maior parte das pessoas em seu dia a dia. No mundo todo, mais de 42 milhões de abortos são praticados todos os anos.l São 115 mil abortos diários. Acho difícil imaginar esse número ao olhar o rostinho de meus quatro filhos toda noite, quando os ponho para dormir. Acho difícil imaginar 115 mil outras crianças trazidas ao mundo à força, por meio de uma pílula ou de instrumentos cujo propósito é tirar-lhes a vida. Acho ainda mais difícil compreender como cu, durante tanto pude ficar insensível a essa pavorosa realidade mundial. A prática generalizada do aborto é a razão pela qual não creio que seja de modo algum um exagero chamá-lo de holocausto moderno. Minha intenção quando digo isso não é de forma nenhuma menosprezar o horror do Holocausto, episódio cm que um extermínio em massa ceifou a vida de seis milhões de judeus, homens, mulheres e crianças, em poucos anos. Contudo, estamos falando aqui de um massacre de 42 milhões de crianças não nascidas todos os anos. E assim como os cristãos alemães não deveriam ter ignorado a realidade do que estava acontecendo nos campos de concentração de seu país, eu jamais deveria ter ignorado— e os cristãos de hoje não devem ignorar — a realidade do que está acontecendo cm clínicas de aborto do meu país e do mundo inteiro. Diante de milhões de bebês desmembrados e dizimados diariamente, essa é sem dúvida alguma uma questão a respeito do qual o evangelho requer de nós uma atitude contracultural. POR TODOS Nós Abby tinha vinte e poucos anos. Ela foi criada em um lar cristão, frequentou uma escola cristã e até fazia parte de uma igreja. Contudo, o relacionamento com Cristo estava longe de ser uma realidade em sua vida. Em vez disso, ela estava totalmente consumida pelo trabalho e presa aos prazeres e ocupações do mundo. Certo dia, Abby conheceu um homem que cativou seus pensamentos e despertou suas emoções. Não demorou muito e ambos se entregaram um ao outro. Tudo estava indo muito bem. Até Abby descobrir que estava grávida e o homem desaparecer. Num instante, parecia que o mundo havia desabado sobre sua cabeça. "Não é possível", pensou. "Não posso ter esse bebê. Isso vai acabar com minha reputação, minha família ficará envergonhada e será o fim da minha carreira". Tomada de pânico e dominada pelo medo, Abby só via uma solução para o seu problema, só havia um jeito de (lar tini àquela Illiçác), aborto. poucas horas, seu estava resolvido e sua aflição fora (pelo
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nu.snos ela pensava assino. Na seguinte, voltou 110 trabalho ('01110 sen) pre e vida seguia normal. Ela ocultou o scgvcdo do que fizera como se nada houvesse acontecido. Quando o assunto é aborto Estados Unidos, Abby não está só. Estinrat'ivas conservadoras mostram que aproximadamente um terço das Ilitllhercs americanas fez (ou fará) um aborto cm algum momento da vida. Diante disso, imagino que várias Abbys com um aborto seu passado (levem estar lendo este livro agora. Algumas dessas mulheres jamais partilharam esse segredo com alguém. O aborto tem sido chamado de assassino silencioso — não apenas de bebês, mas de mães que carregam feridas profundas e cicatrizes amargas cm sua história. Portanto, quero tratar de modo sensível as mulheres que fizeram um aborto. Não tenho a presunção de saber tudo o que deve passar por sua mente e coração no momento cm que ler este livro. Baseio-me em amigas queridas que se submeteram a um aborto e compartilharam comigo que seu consolo mais profundo não se deu pela minimização da gravidade do aborto perante Deus, mas pelo engrandecimento da realidade da graça de Deus. Isso, mais do que qualquer outra coisa, é o que desejo fazer. Quero deixar claro de que modo um Deus santo vê o aborto, mas quero deixar igualmente claro de que modo um Deus de amor enxerga você no evangelho. Além disso, meu objetivo neste capítulo não é escrever simplesmente para mulheres que já fizeram aborto. Espero também falar às mulheres que já pensaram em fazer um aborto no passado, que talvez estejam pensando em fazê-lo no presente ou que talvez pensem em fazê-lo no futuro. Gostaria de dizer também que este capítulo não é apenas para mulheres que podem ter filhos; é para todo cristão que vive em uma cultura marcada pelo aborto. Minha esperança nas páginas seguintes é que todo seguidor de Cristo c todo líder de igreja possam ver de que modo o evangelho fundamenta nosso pensamento sobre o aborto c que, ao vê-lo, sejam constrangidos não pela via da política partidária, mas pela paixão do evangelho, a falar claramente e a se posicionar ousadamente contra o aborto, tanto em nosso país quanto no mundo. DEUS E OS BEBÊS POR NASCER Ao lermos a Bíblia, não encontramos a palavra aborto em parte alguma. Isso, porém, não significa que a Escritura nada diga a esse respeito, uma vez que as verdades fundamentais que já vimos no evangelho no tocante a quem Deus é, a quem nós somos e o que Cristo fez falam diretamente à questão do aborto. Veja de que maneira a Bíblia descreve a relação entre Deus e um bebê que ainda não nasceu. O salmista escreve a Deus: Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvarei, pois fui formado de modo tão admirável e maravilhoso! Tuas obras são maravilhosas, tenho plena certeza disso! Meus ossos não te estavam ocultos, quando em segredo fui formado e tecido com esmero nas profundezas da terra. Teus olhos viram a minha substância ainda sem forma, e no teu livro os dias foram escritos, sim, todos os dias que me foram ordenados, quando nem um deles ainda havia (SI 139.13-16).
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Quando lemos essas palavras, vem-nos à mente a verdade fundamental do evangelho: a de que Deus é o Criador. Só ele tem o poder e a autoridade de conceder vida. Em outra parte da Bíblia, Jó diz: "O Espírito de Deus me fez, c o sopro do Todo-poderoso me dá vida" (Jó 33.4). Ele também diz: "Na sua mão está a vida de todo ser vivo, e o espírito de todo o género humano" (Jó 12.10). Deus não é apenas o Doador da vida; ele também é Aquele que tira a vida. Mais uma vez, Jó confessa: "Eu saí nu do ventre de minha mãe, c nu voltarei para lá. O SENHOR o deu, e o SENHOR o tirou; bendito seja o nome do SENHOR" (Jó 1.21). Deus mesmo declara: "Eu faço morrer e faço viver" (Dt 32.39). É por isso que o homicídio c o suicídio são, ambos, pecados. E prerrogativa de Deus c apenas dele, como Criador, dar e tirar a vida inocente. À luz da realidade bíblica, fica muito claro que o aborto é uma afronta à autoridade única e soberana de Deus — o Doador da vida e também Aquele que a tira. O aborto, a exemplo do homicídio e do suicídio, "afirma" que o ser humano é quem controla a vida e a morte. Contudo, apenas Deus, o Criador, tem o direito de determinar quando alguém vive ou morre; portanto, o aborto representa uma investida direta contra a sua autoridade. O aborto não é apenas uma afronta à autoridade de Deus como Criador; é também uma agressão à sua obra na criação. Ouviu o salmista descrevendo de que modo belo Deus forma o "interior" de um bebê no "ventre [...] [da] mãe" (v. 13)? Quando se põe a refletir sobre a obra de Deus no ventre materno, o salmista responde num rompante de louvor: "Eu te louvarei, pois fui formado de modo tão admirável e maravilhoso!" (v. 14). A maneira pela qual Deus cria as pessoas compele ao louvor. Esses versículos se tornam ainda mais impressionantes quando nos damos conta de que seu autor chegou a essas conclusões sem conhecer tantos detalhes como hoje conhecemos a respeito do desenvolvimento de um bebê. Ele não sabia necessariamente como Deus une um óvulo e um esperma. Como, passadas poucas semanas, muitas vezes antes mesmo de a mulher perceber que está grávida, um coração humano já está batendo e fazendo circular seu próprio sangue. Passadas mais algumas semanas, os dedos das mãos estão se formando e ondas cerebrais já podcm scr detectadas. Logo esse "interior" está se movendo. Os rins estão sendo formados e já funcionam, seguidos pela bexiga e, depois disso, por volta da 12.a semana, todos os órgãos do bebê estão ativos e ele já pode chorar. Tudo isso acontece no curto prazo de três meses — tudo isso só no primeiro trimestre de gestação! Coração, mente, órgãos, sexualidade movimento, reação — e o Criador do Universo está orquestrando tudo isso! A obra da criação suscita admiração e assombro. Imagine, portanto, nesse momento da criação, um instrumento sendo inserido no ventre da mãe, uma pílula sendo tomada ou uma cirurgia sendo realizada para tirar aquela vida que Deus está desenvolvendo e destruí-la. A maior parte dos abortos acontece entre a 10.a e a 14.a semana de gestação — um período descrito como o "momento ideal" para o desmembramento e a remoção do feto. O aborto é, sem dúvida alguma, uma agressão à criação divina da vida humana. Não há outra maneira de ver a questão. Nossa vida e nossa linguagem testificam disso. Qyando penso na jornada que minha esposa, Heather, e eu já percorremos, inclusive os anos de infertilidade, ainda me lembro da alegria imensa que encheu nosso coração quando descobrimos que ela estava grávida. Por fim, havia um bebê em seu ventre — e esse foi o começo da vida de um garotinho que hoje lê todo livro que encontra pela
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frente e corre pela casa fazendo gestos de tae kwon do em minha direção e na direção do restante da família. Desde o início, falávamos do nosso filho como se ele fosse uma pessoa. Ele jamais foi um aglomerado de células que poderia vir a se tornar nosso filho se decidíssemos tê-lo. Ele foi nosso filho desde o começo, e nós sempre o amamos como tal. De igual modo, penso em Chris e Melody, dois amigos próximos cujos filhos são a alegria de sua vida. Um deles está entrando na faculdade; o outro acabou de ingressar no Ensino Fundamental. Entre o nascimento de um e do outro, Melody sofreu quatro abortos espontâneos. Chris e Melody não se referem a esses abortos como perdas de aglomerado de células. Ao contrário, eles falam de seus momentos mais vuneraveis entre uitas lagrimas de bebes que foram, a quem amavam e queriam muito criar. Chris, Melody, minha esposa e eu não estamos sós no modo de pensar e falar sobre o que acontece no útero. Até aborto se juntam a nós, ainda que não aos bebês que ainda não nasceram exatamente bebés. Lembro-me de quando correu a notícia de que a princesa Kate, da Inglaterra, estava grávida. Até mesmo a; emissoras de notícias mais seculares começaram imediatamente a se no útero da mãe como herdeira do trono. Deram a esse bebé, c ninguém se referia a ele como ou 'célula embrionária não diferenciada". Abominaríamos o jornalista que ousasse usar esse tipo de linguagem. Mas essa mesma diziam que conferimos ao bebê "real" não se aplicaria também aos inúmeros outros bebes "comuns", cuja vida não é menos importante? A PERGUNTA FUNDAMENTAL A pergunta fundamental que todos temos de responder — e que determina de que modo encaramos o aborto — é a seguinte: o que está dentro do útero? E um ser humano? Ou será meramente um embrião, um feto? Praticamente qualquer outra pergunta e todo argumento na controvérsia sobre o aborto retoma essa indagação: o que, ou quem, está no útero? Uma vez respondida essa pergunta, tudo o mais ganha perspectiva.3 Pense nisso. Conforme assinala Gregory Koukl, "Se aquele que ainda não nasceu não for um ser humano, não há necessidade de tificativas para o aborto". 4 | lá quem sustente isso. Essas pessoas dizem que aquele que ainda não nasceu não é uma pessoa ou simplesmente que é uma pessoa com o potencial para se tornar um ser humano (seja lá o que for que isso signifique). Uma vez mais, se isso for verdade, o argumento chegou ao fim. Não há necessidade de justificativas para o aborto. Contudo, conforme diz Koukl: "Se aquele que ainda não nasceu for um ser humano, não há justificativa adequada para o aborto".5 Muita gente diz: "O aborto é um assunto complexo, simplesmente não há respostas fáceis". Contudo, se o que está dentro do útero materno for uma pessoa, então mesmo que alguém seja favorável ao aborto ou defenda o direito de escolha da mulher pelas mais diversas razões, todo seu raciocínio cai por terra. Seja qual for seu posicionamento atual na questão do aborto, imagine por um momento que aquele que ainda não nasceu é uma pessoa formada e criada pelo próprio Deus. Se isso for verdade, reflita então sobre os argumentos básicos a favor do aborto.
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"A mulher tem direito à privacidade com seu médico". Sem dúvida, temos direito a algum grau de privacidade. Contudo, nossas leis invadem constantemente a privacidade das pessoas quando a vida de outra pessoa está em jogo. Nenhum homem ou mulher tem direito a uma conversa em particular com um médico para conspirar sobre o modo de pôr fim à vida de alguém. Se aquele que ainda não nasceu é um ser humano, cabe-nos protegê-lo a despeito do que isso signifique para a privacidade de alguém. "A mulher deve ter o direito de escolher". Todos concordamos, porém, que ninguém deve ter direito de escolha ilimitado. Se uma criança pequena ou um adolescente se tornar um fardo ou for muito dispendioso, isso não dá a seus pais o direito de eliminá-los. Da mesma forma, portanto em se tratando do aborto, a questão não é se a mulher tem direito de escolha, e sim se essa mulher em , de fato em seu útero, um ser humano que, para é valioso, se for, disso se segue que o dever moral de honrar a vida superar a dificuldade pessoal que possa resultar da gravidez. Decidir pela iluminação de ura vida inocente é, por definição, escolher cometer um homicídio, De fato, a questão primordial no debate sobre o aborto é a identidade daquele que ainda não nasceu. Vejamos como Grcgory Koukl descrcvc uma menininha chamada Rachel, filha de um amigo da família: Rachel está com dois meses, mas faltam ainda seis semanas para que ela seja um bebê a termo, ou seja, com seu desenvolvimento completo. Ela nasceu prematuramente quando tinha 24 semanas, no meio do segundo trimestre de gestação da mãe. Quando nasceu, Rachel pesava 710 gramas, mas seu peso caiu para menos de 700 gramas pouco depois. Ela era tão pequena que cabia na palma da mão de seu papai. Rachel era um ser humano pequenino c vivo. Foram tomadas medidas heroicas para salvar a vida dessa criança. Por quê? Porque temos a obrigação de proteger, alimentar c cuidar de outros humanos, especialmente criancinhas que, sem nossa ajuda, morreriam. Rachel era um ser humano vulnerável e precioso. No entanto, veja só, se um médico entrasse no quarto do hospital e, em vez de cuidar de Rachel, tirasse a vida dessa menininha no momento em que ela estivesse mamando no peito da mãe, isso seria homicídio. Contudo, se essa mesma garotinha — a mesma Rachel — ainda estivesse abrigada dentro do útero de sua mãe, a poucos centímetros de distância, ela poderia ser legalmente morta porque se trataria de um aborto.6 Para qualquer pessoa razoável, isso não faz sentido algum. O aborto é um absurdo total caso se trate de uma criança no útero da mãe. Tudo — tudo! — gira em torno do que acontece no útero materno e a Escritura é clara: esse útero abriga uma pessoa que está sendo formada à imagem de Deus. Qualquer distinção entre alguém que ainda não nasceu e uma pessoa (ou entre um ser humano e uma pessoa por assim dizer) é tanto artificial quanto contrária à Biblia. Deus vê aquele ser que ainda não nasceu como uma pessoa e o designa para viver desde o momento da concepção. Embora nossa cultura esteja continuamente lutando contra essa ideia, não é possível acreditar na Biblia e negar que aquele ser que ainda não nasceu seja uma pessoa. No momento em que, como seguidores de Cristo, aceitamos isso, não podemos mais nos sentar passivamente enquanto pessoas são assassinadas impiedosamente no útero de suas mães.
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OBRAS MARAVILHOSAS O aborto não só investe contra a obra de Deus na criação como também atinge o relacionamento de Deus com aquele que ainda não nasceu. Uma das coisas maravilhosas do salmo 139 é o vislumbre que ele nos dá do modo de Deus se relacionar com a criança no útero. Ele está intimamente envolvido na vida do bebê, desde o momento da concepção — e até mesmo antes disso! Deus diz a Jeremias: "Antes que eu te formasse no ventre te conheci, e antes que nascesses te consagrei" (Jr 1.5). O salmista diz a Deus: "Mas foste tu quem me tirou do ventre [...] tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe" (SI 22.9, 10). A Escritura fala sobre como Deus chama, dá nome e abençoa as crianças enquanto elas ainda estão no útero materno (veja Gl 1.15; Is 49.1; LC 1.15). A Bíblia descreve também como um bebê salta de alegria no útero (veja LC 1.39-44)! Deus nos lembra em sua Palavra que, embora o bebê ainda não nascido esteja oculto de nossa visão, ele não está oculto diante de Deus. Neste exato momento, no mundo todo, Deus vê as crianças no útero de suas mães, e ele mesmo está formando, moldando, entretecendo, criando, alimentando, modelando e trabalhando-as de maneira maravilhosa (veja Jó 31.15; 10.8-12). Infelizmente, essa visão biblica do relacionamento de Deus com bebês que ainda não nasceram está cada vez mais em oposição ao que nossa cultura crê que seja a verdade. Boa parte da defesa contemporânea do aborto nega que essa obra de Deus no útero seja tão maravilhosa assim. O aborto nos Estados Unidos ocorre com frequência porque filhos são considerados inconvenientes. Criar um filho e educá-lo tem um custo muito alto. Para certas mulheres, é muita coisa para dar conta em certas situações. Não é algo aconselhável para mulheres em outras situações. Com o avanço da tecnologia médica que nos permite detectar o sexo do bebê antes do nascimento, pessoas em várias partes do mundo agora podem decidir pelo aborto do bebê com base nessa informação. Na China, por exemplo, onde vigora a política do filho único, é vantagem ter filhos do sexo masculino, o que leva, subsequentemente, ao aborto de muitas meninas. Na India, é muito mais caro ter uma menina (porque a família perde dinheiro com seu dote), por isso as famílias, quando descobrem que o bebê ainda no útero é menina, muitas vezes optam por se desfazer dele. Achamos isso certo? Todas as crianças, independentemente do sexo, não foram criadas maravilhosamente à imagem de Deus? Se não é correto que as pessoas descartem meninas na China ou na India por uma questão de conveniência, por que então seria certo descartá-las nos Estados Unidos também por uma questão de conveniência nossa? Esse problema não se limita à questão do sexo da criança. Ele se estende também às suas deficiências. E possível determinar se um bebê no útero corre o risco de ter síndrome de Down ou outras deficiências que afetarão sua vida. O aborto deveria, então, ser permitido nessas circunstâncias? Insisto: não, se acreditamos realmente que todas as obras de Deus são maravilhosas. Tomemos o caso do homem que nasceu cego, em João 9. A maior parte dos judeus que conhecia esse homem teria considerado sua deficiência um sinal inequívoco de pecado, quer na vida dele, quer na de seus pais. Assim, os discípulos perguntam a Jesus: "De quem é a culpa?". Jesus respondeu: "Nem ele pecou nem seus pais; mas isso aconteceu para que nele se manifestem as obras de Deus".
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Jesus revela que aquele homem nasceu cego para que um dia pudesse ver, conhecer, declarar e se deleitar na glória de Cristo. De modo algum estou dizendo que estou ciente de todas as dificuldades relacionadas às deficiências. Minha esposa e eu investimos tempo e recursos num orfanato para crianças com necessidades especiais na China, onde vimos e servimos meninos e meninas com deficiências severas. Perto de casa, acompanhamos várias famílias da nossa igreja em sua jornada dolorosa com seus filhos deficientes. Lembro-me de Thomas, um adolescente com síndrome de Down, que há anos, quase todos os domingos, aproxima-se de mim, aperta minha mão, me dá um abraço e me conta como foi sua semana. Simplesmente não consigo tirar Thomas da cabeça quando ouço um geneticista especializado em pediatria do Hospital Infantil de Boston dizer que "segundo estimativas, 92% das mulheres que recebem um diagnóstico de síndrome de Down no pré-natal decide pôr fim à gravidez" 7 Estamos matando 90% dos Thomas em nossa cultura. Com base na Escritura, suplico que não neguemos a obra maravilhosa de Deus até mesmo (ou especialmente) nos casos de deficiência. Mesmo quando não compreendemos, Deus tem um plano e o desejo de usar tudo para o nosso bem e para sua glória (veja Rm 8.28), e não é apenas errado, como é também tolice, bancar deus em tais situações dizendo, basicamente, que sabemos mais das coisas do que ele. Assim, as obras de Deus são maravilhosas mesmo (ou especialmente) em meio às dificuldades. As pessoas indagam: "Mas e nos casos de incesto ou estupro? O aborto se justifica?". Insisto novamente que não tenho a pretensão de saber como é estar em uma situação dessas. Estremeço só de pensar em minha esposa, ou em qualquer outra mulher, sendo violentada. Não posso imaginar a do dano físico e emocional que isso impõe à mulher e à sua família. Todavia, voltamos à questão fundamental: o bebê no útero materno é uma pessoa? Se for, isso muda toda a nossa perspectiva. Será que mataríamos uma criança que estivesse fora do útero porque foi fruto de estupro? E claro que não. Por que, então, mataríamos uma criança dentro do útero por ser fruto de estupro ? Por que haveríamos de punir uma criança pelo crime do pai (veja Dt 24.16)? Como, afinal de contas, deveríamos tratar uma criança inocente que nos lembra de uma experiência terrível? A resposta é clara: com amor e misericórdia. Mas as pessoas dirão: "Você não se importa com os sentimentos da mulher?". Repito que não consigo nem imaginar o que essa mulher passou emocionalmente. Sem dúvida essa mulher preciosa precisa de mulheres e de homens compassivos à sua volta para amá-la, dar-lhe apoio e servi-la de todas as formas possíveis. Contudo, pense assim: se o estuprador fosse pego, será que incentivaríamos a mulher a matá-lo para que se sentisse aliviada emocionalmente? Certamente que não. Por que, então, haveríamos de encorajá-la a matar uma criança inocente em nome do alívio emocional? Esse é um tema em relação ao qual me coloco especialmente contra a cultura, uma vez que em nossos dias até mesmo o político mais conservador em questões sociais jamais ousaria dizer que o aborto deveria ser ilegal nos casos de estupro e incesto. Mas eu não sou político. Sou um seguidor de Cristo e tenho certeza do seguinte: 0 Deus do evangelho tem um histórico comprovado de ser alguém que faz todas as coisas, inclusive as ruins, trabalharem para a realização dos seus bons propósitos. Ele pegou a tentativa dos irmãos de José de assassiná-lo c a transformou na preservação de milhares
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de pessoas. Ele usou o incesto que, mais tarde viria a contribuir para o nascimento de Jesus Cristo (veja Mt 1.3). Por fim, Deus pegou o assassinato de seu Filho c o transformou cm meio da nossa salvação, O evangelho prova que podemos confiar em Deus. Todas as suas obras, até mesmo aquelas que menos compreendemos, são maravilhosas, e ele tem o poder, o amor, a bondade e a graça de dar a você e a mim tudo de que necessitamos para perseverar nas dificuldades. E, no fim, ele promete transformar todo nosso pranto em dança e todo nosso sofrimento em alegria. DEUS, O JUIZ O aborto é uma afronta à autoridade do Deus como Criador, uma agressão à obra da criação divina e um ataque à relação de Deus com o ser que ainda não nasceu. Quando compreendemos a gravidade do aborto perante Deus, as implicações do evangelho nesse caso ficam claras. Lembremo-nos do caráter de Deus. Ele é o santo e justo Juiz de todos e odeia a injustiça. Ele detesta que tirem a vida do inocente, e é Juiz de todos os que tomam parte nisso. Deus é o Juiz das mães que abortam seus filhos, dos pais que incentivam o aborto, dos avós que o apoiaram e dos amigos que o aconselharam. Deus é o Juiz dos médicos que fizeram o aborto, dos líderes que o permitiram, dos pastores que aconselharam as pessoas a fazê-lo e dos legisladores que trabalharam para tornar o aborto possível. Isso inclui o atual presidente dos Estados Unidos, um homem a quem respeito profundamente e por quem oro regularmente, mas que está trabalhando de forma proativa e decidida para manter na legalidade o assassinato de crianças inocentes. Aventuro-me com cautela na arena política sem nenhum desejo de apoiar esta ou aquela linha partidária. Quero, sim, falar a verdade bíblica, pois a Escritura não está muda diante do aborto, e não está muda cm relação ao papel do governo nessa questão. Em Romanos 13, a Bíblia trata do papel das autoridades civis e da nossa responsabilidade para com elas: Todos devem sujeitar-se às autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por ele. Por isso, quem recusa sujeitar-se à autoridade opõese à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos. Porque os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal, Não queres temer a autoridade? Faze o bem e receberás o louvor dela. Porque ela é serva de Deus para o teu bem (v. 1-4). A Bíblia ensina que Deus nos deu o governo para o nosso bem. O governo existe sob a autoridade divina. DC acordo com o plano de Deus, o governo deve refletir a moralidade divina, que se importa com o pobre, com o oprimido e com o vulnerável, pois são menos capazes de se proteger. O propósito fundamental do governo instituído por Deus é promover o bem de todo o seu povo. E o governo faz isso ao criar e promulgar leis que recompensam o bem e punem o mal. Muita gente diz atualmente: "Não cabe ao governo legislar sobre a moralidade". Trata-se, porém, de um falso argumento, e sabemos disso, O Estado não apenas tem o direito, mas a responsabilidade de legislar em assuntos morais. O Estado deve dizer com todas as letras que roubar, mentir, matar e uma
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série de outras coisas são erradas. Isso faz parte do fundamento do seu propósito. O governo impõe a moralidade às pessoas diariamente, e isso é bom. Outros dizem: "Não é papel do governo tirar o direito de escolha das pessoas". Contudo, esse é sem dúvida alguma o papel do governo. Roubar não é uma escolha: se você roubar, haverá consequências. Você não podc escolher fazer uma série de coisas contrárias à lei, e é bom que o governo tenha criado essas leis. Se todos escolhessem fazer o que bem desejassem, o resultado inevitável seria a anarquia. E tolice moral e suicídio cultural dizer que o governo não deveria tirar o direito de escolha das pessoas. O que importa é o que escolhemos. Alguém deveria ter o direito de escolher comida mexicana ou chinesa para o jantar, ou o direito de escolher onde morar, ou que tipo de carro dirigir. E claro que somos a favor da liberdade de escolher essas e milhares de outras coisas. Contudo, não somos a favor do direito de escolher estuprar alguém. Não somos a favor do direito de escolher roubar alguém. Não somos a favor do direito de escolher sequestrar crianças. Por que deveríamos, então, ser a favor do direito de escolher matá-las? Se você é cristão, peço-lhe que fique longe da trilha da indecisão que diz "eu posso escolher não abortar, mas não acho que devemos impedir as outras pessoas de fazer sua própria escolha", e compreenda como é inconcebível para nós permanecermos quietos enquanto milhões de crianças — indivíduos feitos à imagem de Deus — são desmembradas e destruídas à nossa volta no mundo todo, Esse pensamento não é de tolerância esclarecida. E indiferença pecaminosa. Não há opção de neutralidade moral e política para nós nesse ponto. Randy Alcorn foi muito feliz quando disse: "Endossar ou mesmo permanecer neutro diante do assassinato de crianças inocentes criadas à imagem de Deus é inconcebível nas Escrituras, foi inconcebível para os cristãos na história da igreja e deveria ser inconcebível para os cristãos de hoje . Conforme eu disse na introdução, não podemos escolher de quais questões trataremos e sobre quais nos calaremos. Se cremos no evangelho, temos de falar contra a injustiça do aborto. Porque Deus não é apenas o Juiz dos pais que consentiram com o aborto, dos médicos que o executaram e dos políticos que o permitiram, mas é também o Juiz dos membros da igreja e dos líderes que nada fazenn a esse respeito. Conforme cu disse no início deste capítulo, sou o principal dos pecadores nessa questão. Durante muito tempo, fui culpado de injustiça seletiva em relação ao aborto, c por isso necessito desesperadamente da graça de Deus. REDIMIDOS E RESTAURADOS Felizmente, Deus nos deu tal graça— a mim, a você, a todos nós, — no evangelho. Lembre-se: Deus não é apenas o Juiz do pecado. Ele é também o Salvador dos pecadores. Deus é o Juiz que abomina o aborto e o Rei que ama até mesmo os que participam dele; portanto, ouça essas boas-novas. Desejo a toda pessoa que já abortou uma criança, foi a favor do aborto, de alguma forma o encorajou, praticou, permitiu que ocorresse ou nada fez a respeito que os seguintes fatos encontrem profunda acolhida em sua alma.
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Deus perdoa totalmente: "Pois seu amor para com os que o temem é grande, tanto quanto o céu se eleva acima da terra, Como o Oriente se distancia do Ocidente, assim ele afasta de nós nossas transgressões" (SI 103.11, 12). Deus diz: "Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim, e não me lembro dos teus pecados" (Is 43.25). "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (1Jo 1.9). A boa-nova do evangelho é que quando deixamos o pecado e confiamos em Cristo, descobrimos que ele pagou o preço por qualquer participação que tenhamos tido no aborto e, por causa da sua cruz, somos inteiramente perdoados. Deus não apenas nos perdoa totalmente; ele também nos cura profundamente. Deus não quer que você ou outra pessoa qualquer viva com a dor do remorso. E perfeitamente correto odiar o pecado em sua história. A dor do pecado passado é, muitas vezes, uma barreira poderosa para pecados futuros, mas não permita que ela roube a paz que Deus planejou para você no presente. Lembre-se do que Jesus disse a uma mulher que vivia um estilo de vida imoral: "Os teus pecados estão perdoados. [...] tua fé te salvou; vai em paz" (LC 7.48-50). Deus quer que essa paz seja sua hoje. Ele perdoa completamente, cura profundamente e restaura inteiramente. A todos os que confiam em Cristo, lembrem-se disto: em Cristo você não é culpado, e não há condenação para você. Isso vale quer você tenha feito um aborto, quer cinco. Isso é verdade mesmo que tenha realizado milhares de abortos ou permitido legalmente a realização de milhões. Você não anda por aí com um A escarlate gravado no peito, porque Deus não olha para você e vê alguém culpado pelo aborto cometido. Em vez disso, ele olha para você e vê ajustiça de Cristo. Deus restaura e redime. Conforme vimos anteriormente, Deus tem um histórico de fazer todas as coisas, inclusive as ruins, em última análise, cooperarem para o bem. Lembra-se de Abby, a pessoa que mencionei no início deste capítulo? Durante anos ela guardou segredo de seu aborto para si. Contudo, no final de semana em que seu marido lhe propôs casamento, ela decidiu que tinha de lhe contar o que havia feito anos antes de se conhecerem. Ele a ouviu compassivamente e decidiram que guardariam segredo disso nos oito anos seguintes. Ninguém mais sabia. Até que um dia Abby e seu marido estavam conversando com alguns amigos que lhes haviam contado a respeito da liberdade e do perdão encontrados no evangelho. Abby sabia de Cristo e havia crescido na igreja, mas as palavras de Isaías 61 jamais haviam repercutido em sua alma e coração. Em uma passagem que Jesus mais tarde citaria em referência a si mesmo, a Bíblia diz: "O [...] SENHOR enviou-me a restaurar os de coração abatido, a proclamar liberdade aos cativos e a pôr os presos em liberdade; [...l, a consolar todos os tristes; a ordenar que se dê uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria em vez de pranto, vestes de louvor em vez de espírito angustiado [...]" (Is 61.13). Pela primeira vez, Abby compreendeu por que Cristo veio morreu na cruz. Ele veio curar os corações partidos de pesso exatamente como ela, libertando-as de sua escravidão ao pecado e à desonra. Durante 15 anos Abby fizera tudo o que podia para encobrir seu passado c conseguir a aprovação de outros. Agora, pela primeira vez, ela sabia que cm Cristo podia contar com a aprovação de Deus, a despeito de seu passado.
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A liberdade de que Abby desfrutava agora a levou a liderar um ministério na igreja que ajuda mulheres que fizeram aborto. Ela recebeu um treinamento que a preparou para se relacionar de modo sábio, cuidadoso e compassivo com essas mulheres, no intuito de servi-las e de apoiá-las. Começou a trabalhar regularmente com grupos de mulheres na cidade. Além de liderar outras mulheres na igreja, Abby está ativamente envolvida em campanhas públicas para reduzir o número de abortos na cidade, especificamente no aconselhamento a mulheres grávidas que pensam em abortar, compartilhando sua história pessoal e dizendo a elas que há outra maneira de resolver seu "problema". Ela faz tudo isso junto com o marido e os dois filhos — uma bela filha que vem ao meu encontro com um sorriso largo e me abraça toda vez que a vejo, e um lindo garoto de quem fui técnico de basquete. E uma imagem que não tem preço ver essa mulher, que um dia achou que o aborto havia manchado permanentemente seu passado e lhe roubado para sempre a paz, agora transformada pelo evangelho, e ver Deus usando-a literalmente para salvar a vida de inúmeras crianças e mulheres. TODAS VALEM A PENA No final deste capítulo, penso em uma mãe que mora num desses países do mundo onde os bebês do sexo feminino não são bem-vistos. Mais de 35 mil crianças são tiradas do útero de suas mães todos os dias na China, e mais de 50% das mulheres ali já fizeram pelo menos um aborto.10 Alguns desses abortos são voluntários; outros, obrigatórios, governamentais impõem o aborto com a finalidade de garantir o controle da população. As autoridades nas aldeias rurais são constantemente submetidas a exames; para garantir que não estejam gravidas grávidas e que não tenham dado 'a luz recentemente. Não sei de todos os detalhes dessa mãe em particular, mas sei com certeza que quando engravidou não acreditava que poderia cuidar do seu bebê. Contudo, ela se recusou a abortar. Em vez disso, levou até o fim a gravidez e, sozinha, deu à luz uma menininha preciosa. Em seguida, tomou aquele bebê recém-nascido, embrulhou-o cm urna manta azul-clara c o colocou em uma caixa de papelão marrom. No meio da noite, deixou-o em frente a um orfanato para crianças com necessidades especiais. As pessoas do orfanato encontraram o bebê na manhã seguinte e procuraram a mãe, mas não a encontraram. Embora eu não saiba quem seja essa mãe, agradeço a Deus por ela. Graças à sua coragem de recusar o aborto, e graças à compaixão pelo bebê que ainda não havia nascido, aquela menininha sobreviveu. Todos os dias, quando chego do trabalho, aquela garotinha vem correndo em minha direção com um sorriso estampado no rosto, pula nos meus braços e grita: "Papai!", depois me dá o abraço mais apertado que você pode imaginar. Todas essas crianças valem a pena. Que tenhamos a convicção, a compaixão e a coragem de fazer tudo o que pudermos para deter o holocausto moderno à nossa volta. PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA Peça a Deus que:
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Perdoe você por qualquer participação que tenha tido cm algum aborto. Traga convicção àqueles que podem usar sua influência para pôr fim ao aborto. Participe Em oração, considere dar os seguintes passos: Escreva a seus representantes no Congresso e exponha de maneira clara e respeitosa por que o aborto tem de acabar em seu país. Trabalhe com ministérios ou participe de eventos que busquem preservar o valor da vida humana não nascida. Seja voluntário de um centro de apoio à não interrupção da gravidez em sua cidade e ajude em seu trabalho de mostrar às mulheres em situações desesperadoras que há outras opções, não apenas o aborto. Proclame Reflita sobre as seguintes verdades da Escritura: Salmos 139.15, 16: "Meus ossos não te estavam ocultos, quando em segredo fui formado e tecido com esmero nas profundezas da terra. Teus olhos viram a minha substância ainda sem forma, e no teu livro os dias foram escritos, sim, todos os dias que me foram ordenados, quando nem um deles ainda havia". Provérbios 24.10-12: "Se te desanimares em tempos de dificuldades, serás fraco. Livra os que estão sendo levados à morte, detém os que vão tropeçando para a matança. Se disseres: Não sabemos de nada. Por acaso aquele que sonda os corações não percebe? E aquele que guarda a tua vida não sabe? Não retribuirá a cada um conforme seus atos?". Mateus 19.14: "Jesus, porém, disse: Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais, porque o reino do céu é dos que são como elas."
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CAPíTULO 4 SOLITÁRIOS EM FAMíLlA: O EVANGELHO, OS ÓRFÃOS E AS VIÚVAS
No momento em que descobrimos quem seria nossa filha, soubemos exatamente que nome daríamos a ela. Anos antes, Heather e eu fomos inadvertidamente encorajados a pensar em adoção. Mês após mês, durante cinco anos, tínhamos orado, almejado e tentado engravidar, mas Deus ainda não nos havia abençoado conforme esperávamos. Sem saber se um dia poderíamos ter filhos, optamos finalmente pela adoção. "Creio que é a segunda melhor opção", dissemos um ao outro. "Já que não podemos ter filhos biológicos, podemos pelo menos adotar." Não demorou muito para que compreendêssemos que a adoção era uma opção tão "boa" quanto a outra. Deus usou a infertilidade para abrir nossos olhos para a crise em relação aos órfãos no mundo inteiro. E é, de fato, uma crise. Cerca de 153 milhões de crianças são órfãs. Isso quer dizer que perderam pelo menos um dos pais. Estão incluídos nesse número em torno de 18 milhões de crianças que perderam os dois pais. Contudo, não estão incluídos nesse número os milhões de crianças efetivamente órfãs que moram em instituições ou nas ruas, além de enormes multidões que vivem como "órfãos sociais", isto é, ainda que um dos pais esteja vivo, os filhos raramente o veem, se é que o veem, ou não têm a experiência de pertencer a uma família. Mas eu já havia ouvido essas estatísticas antes. Eu era capaz de ler um parágrafo como o anterior e seguir em frente sem pensar duas vezes, talvez do mesmo jeito que você esteja propenso a fazer. Mas tudo mudou quando abrimos nossa vida à possibilidade da adoção. Tudo mudou quando vimos pela primeira vez o rosto de um garotinho precioso de dez meses, do Cazaquistão, que precisava de um pai e de uma mãe. Tudo mudou quando visitamos o orfanato em que vivia, vimos as crianças brincando do lado de fora e os quartos cheios de berços do lado de dentro. Tudo mudou quando nos demos conta de que as estatísticas se referiam a crianças exatamente iguais ao nosso futuro filho. Aprendemos bem depressa que é mais fácil esquecer dos órfãos quando não vemos o rosto deles. E mais fácil ignorá-los quando não sabemos os nomes deles. E mais fácil negligenciá-los quando não os pegamos no colo. Contudo, no momento em que fazemos essas coisas, tudo muda. Logo que Deus nos deu nosso primeiro filho adotivo, ele nos surpreendeu com um segundo filho biológico. Cerca de duas semanas depois que voltamos com Caleb do Cazaquistão, Heather engravidou e Joshua chegou nove meses depois, Quando conto essa história, as pessoas muitas vezes tentam oferecer uma explicação física ou emocional para a gravidez da minha esposa depois da adoção, contrastando com o fato de que isso não havia acontecido antes. Embora eu não queira de modo algum discutir a fisiologia da procriação, não tenho dúvida de que a prerrogativa divina é a
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única explicação por trás da razão pela qual Heather engravidou naquele momento. Deus, sem dúvida alguma, tinha algo mais glorioso em mente quando usou essa dificuldade em nossa vida e nos levou a adotar um menininho precioso, de uma cidade obscura do noroeste do Cazaquistão, a quem jamais teríamos conhecido sc fossem outras as circunstâncias. Somos gratos para sempre pelos cinco longos anos de infertilidade pelos quais Deus nos fez passar. Contudo, mesmo sabendo que podíamos conceber, Heathcr c eu queríamos adotar novamente. Deus havia aberto nossos olhos às necessidades dos órfãos, e um processo de adoção que começara como um desejo de preencher um vazio em nosso coração tornou-se um desejo de refletir uma realidade que havia no coração de Deus. Quando lemos a Bíblia, observamos inúmeras vezes a paixão de Deus por demonstrar seu poder e amor pela vida do órfão. "Pois o SENHOR, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o SENHOR dos senhores; o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz discriminação de pessoas nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe comida e roupa" (Dt 10.17,18). "Pai para os órfãos e defensor das viúvas é Deus em sua santa habitação" (Salmos 68.5, NVI). No momento em que entrega sua lei, Deus ordena a seu povo: "Não tratarás mal nenhuma viúva ou órfão" (Êx 22.22). Depois, sempre ao longo de sua história, Deus exorta seu povo: "... aprendei a praticar o bem; buscai ajustiça, acabai com a opressão, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva" (Is 1.17). Quando lemos esses versículos, observamos imediatamente que o coração de Deus não é justo apenas com o órfão, mas também com a viúva. Nos versículos acima (e em muitos outros), Deus agrupa essas duas classes de pessoas. Não é de espantar, portanto, que mais tarde deparemos com o seguinte versículo bíblico de tirar o fôlego: "A religião pura e imaculada diante do nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas dificuldades e não se deixar contaminar pelo mundo" (Tg 1.27). Que declaração fantástica! Essa é a definição da religião pura para Deus: "visitar os órfãos e as viúvas nas suas dificuldades". Aparentemente a verdadeira religião não consiste na participação monótona em uma atividade piedosa superficial. A verdadeira religião consiste em demonstrações justas e consistentes de amor sobrenatural e altruísta. Quando a Bíblia fala em "visitar" órfãos e viúvas aqui, ela tem em vista mais do que simplesmente dar um "olá" a eles de vez em quando. A mesma palavra para "visitar" em Tiago 1.27 é usada em diferentes partes do Novo Testamento para descrever como Deus visita seu povo para ajudá-lo, fortalecê-lo e encorajá-lo? Visitar os órfãos e as viúvas significa ir a eles com um interesse profundo por seu bem-estar e um compromisso claro de cuidar de suas necessidades. Por que, talvez nos perguntássemos, Deus definiria "religião pura" dessa maneira específica — isto é, privilegiando o cuidado com os órfãos e as viúvas? A resposta a essa pergunta encontra-se na
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segunda metade de Tiago 1.24, quando o autor diz: "e não se deixar contaminar pelo mundo". E nesse ponto que muita gente pensa: "Muito bem, se é para ter uma religião verdadeira, então isso significa que devo cuidar dos órfãos e das viúvas e, em seguida, devo evitar a imoralidade no mundo". Evidentemente é verdade que precisamos evitar a imoralidade, e o restante do livro de Tiago trabalha esse tema de diferentes maneiras; mas devemos ser cuidadosos para não desconectar a admoestação de "não se deixar contaminar pelo mundo" da recomendação para "visitar órfãos e viúvas". Pois nos versículos que vêm logo depois de Tiago 1.27, o autor censura a igreja por dar atenção a um sistema de mundo que prioriza os ricos e negligencia os necessitados, As pessoas que vivem de acordo com os padrões do mundo, diz Tiago, dão atenção e honra ao tipo de gente que mais pode beneficiá-las, que mais tem para lhes oferecer em troca de sua bondade. A verdadeira religião, porém, não cede ao apelo da cultura; é isenta do jeito mundano de raciocinar e de viver. A verdadeira religião contrapõese à cultura e resulta no cuidado sacrificial das pessoas que menos nos beneficiarão, que menos têm para nos oferecer em troca de nossa bondade. E, então, entram em cena os órfãos e as viúvas — crianças e mulheres que perderam um membro importante da família de quem dependiam para o sustento físico, emocional, relacional e espiritual. Consequentemente, eles precisam desesperadamente de alguém que intervenha e lhes proporcione sustento físico, emocional, relacional e espiritual. A verdadeira religião, de acordo com Deus, consiste em amar pessoas assim. A verdadeira religião é ser família para os que perderam a família. Portanto, o que isso significa para o seguidor de Cristo num mundo de 153 milhões de órfãos? Além disso, o que devemos fazer num mundo com 245 milhões de viúvas, 115 milhões das quais vivem na pobreza, sofrem isolamento social e passam privação econômica por terem perdido o marido?3 Como sabemos que cada um desses milhões representa uma criança ou uma mulher que são únicos, por quem Deus tem compaixão, a questão não é saber o que devemos fazer. A única questão é se faremos o que devemos.
UMA HISTÓRIA DE REDENÇÃO Deus não só proclamou na Escritura seu zelo apaixonado pelo órfão e pela viúva. Ele também nos deu um livro inteiro mostrando seu cuidado com aqueles que perdem a família desse modo. Rute é um dos meus livros prediletos da Bíblia. Trata-se de uma história de amor atemporal que apresenta todos os componentes necessários de um romance: tragédia, perda, desespero, triunfo, esperança e lealdade, tudo isso num invólucro só. Todavia, não se trata apenas de uma história de amor. E uma história dentro de uma história e envolve muito mais do que uma mulher moabita chamada Rute. Essa história diz respeito a você, a mim e a todas as outras pessoas que sobem ao palco da história humana.
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Se você me conceder um tempo, gostaria de lhe contar essa história. Prometo que nos ajudará a ver de que modo nos encaixamos na narrativa que Deus está tecendo no mundo em benefício de órfãos e viúvas de toda parte. O contexto de Rute é o do tempo dos juízes, um período em que "não havia rei em Israel" e "cada um fazia o que lhe parecia certo" (Jz 21.25). A história começa em Belém, uma cidade conhecida como "casa do pão", mas onde não havia pão para seus cidadãos assustados e desalentados. Em vez disso, uma grande fome deixara as famílias à míngua e desesperadamente necessitadas de alimento. Então um homem de nome Elimeleque pega a esposa e os dois filhos e se muda para Moabe. Moabe era longe de Belém e sua cultura era estranha sob todos os aspectos. Os moabitas haviam surgido há muitas gerações, quando Ló, sobrinho de Abraão, teve uma relação incestuosa com sua filha (veja Gn 19). Os moabitas eram um povo abominável. Certa ocasião, algumas mulheres moabitas seduziram os israelitas e os levaram a cometer pecado sexual, o que acabou resultando na morte de 24 mil israelitas (veja Nm 25.1-10). Os moabitas eram conhecidos por sua imoralidade e idolatria, e Deus dissera que nenhum deles entraria na assembleia de seu povo até a décima geração (veja Dt 23.3). Não é preciso dizer que a ida de um judeu para Moabe era não apenas sinal de desespero, mas também um ato que certamente só lhe traria vergonha. Contudo, o que começa como vergonha logo, como em instantes aos olhos do leitor, transforma-se em dor. Depois de descrever a jornada de Elimeleque com sua família a Moabe, o narrador usa apenas três versículos para descrever uma tragédia que se desenrola ao longo de dez anos. Em primeiro lugar, Elimeleque morre e deixa sua esposa, Noemi, viúva. Depois, seus dois filhos, Malom e Quiliom, tomam para si esposas moabitas, Rute e Orfa, respectivamente, Em seguida, passados dez anos da morte de Elimeleque, Malom e Quiliom morrem, deixando Noemi em meio a um pesadelo, Ela não tem marido nem filhos. Está pobre, sua única família são duas noras nascidas de um povo desprezado. Essa é a maldição das maldições para uma israelita. Ela agora não tem descendentes que perpetuem a linhagem de sua família, não tem nenhuma promessa de provisão futura e a menor ideia do que fazer a seguir, Até que, diz o narrador, Noemi ouve em Moabe que Deus havia "visitado" seu povo em Belém (Rt 1.6), dando comida às pessoas e pondo fim à fome na região. Noemi diz a Orfa e a Rute que pretende voltar a Belém. Ela insiste com as duas que fiquem em Moabe. Certamente não será bom para elas irem em sua companhia para uma terra onde serão vistas como estrangeiras e não terão esperança alguma de conseguir um marido ou um herdeiro futuro. AIém disso, Noemi conclui, é evidente que a mão de Deus está pesando sobre ela. As duas noras seriam sábias se ficassem longe dela. Orfa concorda, mas Rute, não. Em uma das declarações mais significativas de toda a Escritura, Rute diz a Noemi: -Não insistas comigo para que te abandone e deixe de seguir-te. Pois aonde quer
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que fores, irei também; e onde quer que ficares, ali ficarei. O teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus. Onde quer que morreres, ali também morrerei e serei sepultada- Que o SENHOR me castigue, se outra coisa que não seja 2 morte me separar cie ti'.(Rt 1.16,17). Essas palavras inesquecíveis são, com frequência. pronunciadas pelos noivos em sua cerimónia de casamento (e se você as usou em seu casamento, isso é maravilhoso , porém é importante lembrar que essas palavras foram ditas por uma nora à sua soara. Já fiz muitos casamentos, mas nunca vi miliares com esse de parentesco conversarem nesses termos entre st.' Noemi concorda e as mulheres partem para Belém. Podemos imaginar os pensamentos que passavam pela de Noemi, à medida que ela se aproximava da terra que deixara anos antes, acompanhada do marido e dos dois filhos. Eles haviam a Tema Prometida por uma tema pagã. Quando saíra, era esposa abençoada e, agora vou como uma mulher amarga. Quando as mulheres de Belém a veem ao longe, correm em sua direçâo induzindo ansiosamente: "E você, Noemi? Ela responde a todas: "Não me chameis Noemi", diz, "mas sim Mara, pois o Todo-Poderoso tornou a minha vida muito amarga" (Noemi significa "agradável"; Mara significa "amargo"). E prossegue: "Na fartura parti, mas o SENHOR me trouxe de volta de mãos vazias. Por que me chamais Noemi, visto que o SENHOR se colocou contra mim e o Todo-Poderoso me afligiu?" (Rt 1.20,21). Que recepção! As mulheres de Belém saúdam Noemi empolgadas, depois de uma década de separação, e ela responde laconicamente: "Vocês me chamaram de agradável? Nada poderia estar mais longe da verdade. Meu nome é amargura! Imagine agora que você seja Rute. As mulheres de Belém ali estão, chocadas, ouvindo o que Noemi diz, e logo que a ouvem dizer "Voltei e comigo trouxe só calamidade", aquelas mulheres olham para você. Você abaixa os olhos porque é o retrato da aflição imposta pelo Senhor. E a imagem do infortúnio trazido pelo Todo-Poderoso. Mal sabiam Noemi e Rute, no silêncio lúgubre daquele momento, o que estava reservado para elas. Havia duas coisas de que ambas necessitavam desesperadamente: alimento para o estômago e uma família que lhes desse um teto para se protegerem. E nesse momento que o narrador conta que, nos bastidores, há um parente rico e generoso de Elimeleque, chamado Boaz. No dia seguinte, Rute diz a Noemi que vai procurar um campo onde possa colher algum alimento para comerem. Uma das maneiras pelas quais Deus supria os pobres consistia em ordenar aos donos de terras que deixassem para trás alguns grãos para que os pobres e os destituídos os colhessem do solo. O autor nos diz então que Rute "por coincidência, [se dirigiu à] parte da plantação [que] pertencia a Boaz, que era da família de Elimeleque" (Rt 2.3). Enquanto trabalhava, "Boaz chegou de Belém" (Rt 2.4).
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O autor narra a história de modo a mostrá-la repleta de coincidências impressionantes, Rute, por acaso, se dirige ao campo de Boaz. Naquele momento, aconteceu de Boaz chegar e, coincidência das coincidências, ele era do clã de Elimeleque. Quando leio essa história da Bíblia, penso inevitavelmente nos filmes de amor que Heather adora ver, em que as coisas vão se somando até que, de repente, unem-se para criar um encontro inesperado entre um homem e uma mulher. Se estou vendo o filme com ela, faço uma expressão de incredulidade e digo: "Isso é absurdo. As coisas nunca acontecem desse jeito!" Contudo, antes de falar, primeiro olho para Heather, que a essa altura já está com lágrimas nos olhos, absorta pelo filme e encantada com todos os detalhes. Aí então decido ficar quieto e penso: "Não é que ela está acreditando mesmo nisso?". Volto então a ver o filme, frustrado e mudo. Mas o livro de Rute não é um conto de fadas. E um drama divino, escrito pelo Deus do universo, que conta como ele provê as necessidades dos pobres. Boaz observa Rute e pergunta a um traba lhador do campo: "Qyem é esta moça?". O homem responde: "Esta é a moça moabita que voltou de Moabe com Noemi" (Rt 2.5,6). A informação faz com que Boaz volte os olhos diretamente para o campo em direção à expatriada Rute. Ele passa pelos demais trabalhadores, aproxima-se dela e lhe fala usando um termo carinhoso ( minha filha"); em seguida lhe garante que, em seu campo, não lhe faltarão suprimentos. Ela estará segura e satisfeita enquanto estiver ali. Rute fica atônita e se pergunta por que teria ele sido tão generoso com ela, uma mulher desprezada e que se achava no último degrau da escala social. Boaz responde pronunciando sobre ela a bênção de Deus: "Que o SENHOR recompense o que fizeste, que recebas grande recompensa do SENHOR, Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar abrigo!" (Rt 2.12). Esse diálogo prepara o palco para o que nós, em nossa cultura, chamaríamos de "primeiro encontro" no livro de Rute, quando Boaz convida Rute para cear com ele à sua mesa. "Aproxima-te, come do pão e molha o teu pedaço no vinagre" disse ele a Rute. O narrador Prossegue: "Ela se sentou ao lado dos ceifeiros, e Boaz lhe ofereceu grãos tostados. Ela comeu até ficar satisfeita..." (Rt 2.14). Depois da refeição, Boaz dá instruções a seus homens para que se assegurem de que Rute leve consigo uma grande quantidade de grãos. Eles o obedecem dando a ela "um efa de cevada" (Rt 2.17). Para que tenhamos uma ideia do que significa isso, um trabalhador colhia em média, por dia, cerca de um quilo de cevada. No final do dia, porém, Rute leva do campo entre 14 a 23 quilos de cevada. E assim ficamos sabendo que Rute fazia musculação regularmente, já que ela punha o fardo de grãos sobre os ombros e o levava até a cidade todo dia. Quando chega em casa, Noemi se sente grata, para dizer o mínimo. "Onde colheste hoje? Onde trabalhaste? Bendito seja aquele que se importou contigo!" Tenha em mente que, àquela altura,
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Noemi não tem a menor ideia de onde Rute trabalhara o dia todo. Imagine, portanto, seu espanto quando ela responde: "O nome do homem com quem trabalhei hoje é Boaz". Ao ouvir isso, Noemi, sem dúvida alguma até então agradecida, fica também perplexa. Ela exclama: "Seja ele abençoado pelo SENHOR, que não deixou de mostrar benevolência nem para com os vivos nem para com os mortos [...] Esse homem é parente nosso, um dos nossos resgatadores" (Rt 2.19,20). A declaração de Noemi nos introduz à palavra mais importante do livro de Rute: resgatador. Deus, em sua misericórdia, havia criado um sistema pelo qual os parentes próximos cuidariam uns dos outros quando estivessem passando por situações de extrema necessidade, entre as quais estava a morte de um marido. Nesse caso, um resgatador de sangue interviria em favor do parente em dificuldades. Ele se apropriaria da terra do parente e se responsabilizaria pela vida dele. Passagens do Antigo Testamento como Levítico 25, Deuteronômio 25 e Jeremias 32 apresentam três requisitos básicos para que alguém seja um resgatador de sangue. Em primeiro lugar, esse homem deve ter o direito de resgatar. Basicamente, ele teria de ser o primeiro na linha familiar dentre os possíveis provedores do parente em dificuldade. Ter esse direito implicava uma responsabilidade — o dever de cuidar de um parente em necessidade. Em seguida, esse homem deveria ter recursos para resgatará-lo. Para ajudar alguém em dificuldade, um resgatador em potencial deveria ter habilidade e capacidade de suprir as necessidades da pessoa como se ela fosse parte da própria família. Por fim, esse homem teria de ter a determinação de resgatar. Em outras palavras, ele tinha de estar disposto a fazê-lo. Era possível que um homem fosse o primeiro na linhagem familiar e plenamente capaz de prover, mas lhe faltasse a determinação de acolher um membro da família sob seus cuidados. Com esse pano de fundo, a história de Rute prossegue enquanto ela, dia após dia, trabalha nos campos de Boaz, um possível resgatador de Noemi e de sua família. E, dia após dia, Rute leva alimento para casa, mas Boaz parece demorar em resgatá-las e acolhê-las como parte da família. Noemi, a sogra,já impaciente, decide cutucar Boaz e para isso arquiteta um plano para que Rute se aproxime dele no meio da noite e lhe peça que as resgate. Rute concorda, o que resulta no curioso encontro com Boaz na eira, no qual ele diz a Rute: "E verdade que sou o resgatador, mas há outro parente mais próximo do que eu. Fica aqui esta noite. Se de manhã ele quiser assumir o seu papel de resgatador, que o faça. Se não quiser, juro pelo nome do SENHOR, eu o farei" (Rt 3.12, 13). Na manhã seguinte, Boaz procura o homem que tem primazia no resgate das terras de Noemi. O suspense na história aumenta à medida que esse outro possível resgatador diz inicialmente: "Eu a resgatarei". Boaz, porém, informa-o gentilmente de que resgatar Noemi e suas terras significa também ficar com Rute, a moabita, para preservar a herança do parente. Esse dado faz com que o homem se recuse a resgatá-la. "Nesse caso não poderei resgatá-la, pois poria em risco a minha
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propriedade", diz ele (Rt 4:6, NVI). Tendo recursos para o resgate, falta a esse homem a determinação para fazê-lo; por isso ele passa o direito a Boaz. Com o outro sujeito fora do caminho, Boaz declara sua resolução de resgatar Noemi: "Então Boaz anunciou aos líderes e a todo o povo ali presente: 'Vocês hoje são testemunhas de que estou adquirindo de Noemi toda a propriedade de Elimeleque, de Qyiliom e de Malom. Também estou adquirindo o direito de ter como mulher a moabita Rute, viúva de Malom, para manter o nome do falecido sobre a sua herança e para que o seu nome não desapareça do meio da sua família ou dos registros da cidade. Vocês hoje são testemunhas disso!"' (Rt 4.9, 10). Com essas palavras, Noemi e Rute são recebidas na casa de Boaz, e Rute se torna sua esposa. Um versículo depois de anunciado o resgate, Rute e Boaz estão casados e ela dá à luz. Na cena final que se segue, Noemi toma a criança em seus braços e as mulheres de Belém dizem: "Bendito seja o SENHOR, que hoje não te deixou sem resgatador! Que o seu nome se torne famoso em Israel! O menino vai restaurar a tua vida e te consolar na tua velhice, pois é filho da tua nora, que te ama e o deu à luz. Ela é melhor do que sete filhos para ti" (Rt 4.14,15). Mas a história não acaba aí. O livro de Rute é como um filme em que, depois da cena final, a tela fica escura e você pensa que o filme terminou, mas aí aparece um pós-escrito contando o que aconteceu dias depois. E esse pós-escrito talvez seja um dos mais poderosos de toda a história. Diz o narrador a respeito do filho de Rute e de Boaz: "E chamaram ao menino Obede. Este é o pai de Jessé, pai de Davi" (Rt 4.17). Quando os judeus ouviam pela primeira vez essa história, esse pós-escrito lhes parecia simplesmente assombroso. A história começava com um resgatador de sangue em uma época em que não havia rei em Israel e terminava com a genealogia do homem que se tornaria o mais famoso rei de Israel, A genealogia que aparece nos versículos finais do livro de Rute cobre dez gerações, um sinal simbólico, porém certo, dos dez anos de morte e aridez em Moabe e da maldição de dez gerações sobre o povo moabita. Assim termina a história de como Deus, em sua misericórdia, salvou uma moabita desprezada, pertencente a uma família israelita sem esperanças, pela determinação de um resgatador de sangue.
ESPELHO DE DEUS
Mencionei anteriormente que o livro de Rute não pretende simplesmente contar uma história de amor. E uma história dentro de outra cujo objetivo é, em última análise, nos apontar o Deus que está acima da história e que tem compaixão pelo aflito. Boaz aparece no drama não como modelo de boa vontade, mas como espelho de Deus. Ele ilustra o plano misericordioso de Deus de suprir as necessidades dos
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que não têm família por meio de uma família mais ampla de homens e mulheres que puseram sua fé nele. E aí que você e eu entramos na história. E claro que não estamos na época dos juízes, séculos antes da vinda de Cristo, mas isso não significa que devamos nos sentir menos compelidos a refletir o caráter de Deus em nossa cultura hoje. Pois em uma cultura que cada vez mais vê o órfão e a viúva como um peso, são inúmeras, à nossa volta, as oportunidades contraculturais de generosidade semelhantes às de Boaz. Certo domingo, quando me preparava para pregar sobre Tiago 1.27, liguei para o Departamento de Recursos Humanos (DRH) do nosso condado. Queria saber se eles precisavam de ajuda no setor que cuida de órfãos e coordena as adoções. Quando terminei de falar, a diretora do DRH riu. — Sim! — disse ela. — Precisamos de muita ajuda! Queria que ela me informasse de quantas famílias o DRH precisava para suprir as necessidades de adoção e acolhimento temporário de menores em nosso condado. Mais risos. — Estou falando sério — eu disse. — Se acontecesse um milagre, quantas famílias seriam necessárias para cobrir todas as inúmeras necessidades de vocês? Ela se recompôs um instante e depois respondeu: Seria um milagre se tivéssemos um total de 150 familias a mais. Chegou o dia em que preguei sobre Tiago 1.27. No final, fiz à igreja um convite incomum: "Se Cristo, em você, o está tocando para fazer parte dos que servem às crianças desse modo, então, por favor, venha a uma reunião que faremos daqui a duas semanas". No dia da reunião, as pessoas encheram o auditório. Naquela noite, mais de 160 famílias se comprometeram a ajudar, seja acolhendo temporariamente em sua casa crianças e adolescentes (até que pudessem ser reintegrados à família de origem ou encaminhados para a adoção), seja como pais adotivos. Como família de fé em Cristo dissemos: "Queremos nos certificar de que, no que depender de nós, todas as crianças do nosso condado tenham braços amorosos que as acolham à noite. ueremos direcionar cada uma delas para o Pai dos órfãos e Defensor dos fracos que se importa com elas". A igreja hoje está cheia de crianças de todas as partes da cidade, Homens e mulheres estão trabalhando em conjunto não apenas para suprir suas necessidades, mas também junto com seus pais, no intuito de reunir novamente essas famílias. A imensa alegria de participar do programa de acolhimento temporário de menores invadiu a igreja e nossas famílias nunca mais serão as mesmas. Olhando em retrospectiva para aquela reunião inicial em que transmitimos as informações, jamais me esquecerei de uma conversa com um funcionário do DRH. Enquanto os membros da igreja entravam na sala da reunião, um dos funcionários do DRH me chamou de lado com lágrimas nos olhos e disse: O que o levou a tomar a decisão de fazer isso? E como foi que você conseguiu que todas essas pessoas participassem?
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Sorri. — Eu não decidi fazer nada — eu disse — Deus decidiu. Essas pessoas são um espelho do amor de Deus por essas crianças, a quem você serve todos os dias, e pelas famílias delas.
UMA CULTURA DE ÓRFÃOS E VIÚVAS Quanto mais nossa igreja se envolvia nos programas de acolhimento temporário de menores e de adoção em nossa cidade, tanto mais nos dávamos conta de que órfãos e viúvas muitas vezes vivem na mesma casa. Anos atrás, alguns membros da igreja começaram a se mudar intencionalmente para áreas empobrecidas da cidade. Ao estudarmos essas áreas específicas, descobrimos que mais de 60% das crianças de uma comunidade vivia com os avós, e não com o pai ou a mãe. Para a maior parte dessas crianças, tanto o pai quanto a mãe eram praticamente ausentes de sua vida. Além disso, a maior parte dos avós era composta por mulheres sozinhas em razão de abandono, divórcio ou morte do marido. Depois de reunir esses dados, percebemos que na maior parte dos lares daquela comunidade havia órfãos e viúvas que viviam sob o mesmo teto. Nem preciso dizer que, numa cultura desse tipo, as oportunidades para o ministério são muitas. Tais oportunidades simplesmente se multiplicaram em nossa cultura com o aumento do número de crianças vivendo na casa de pais solteiros. Quando a Escritura fala do órfão e da viúva, sem dúvida alguma ela se refere, sobretudo, àqueles que ficaram órfãos ou que enviuvaram em decorrência da morte dos pais ou do homem. Contudo, nos dias de hoje, bem mais de um terço das crianças nos Estados Unidos vivem em um lar com um dos pais apenas, e cerca de 50% dos nascidos são filhos de mães solteiras — duas realidades inevitáveis em uma cultura que minimiza a prioridade e a indissolubilidade do casamento (algo que analisaremos mais tarde). Em consequência disso, há um número crescente de crianças sem um dos pais e de mulheres sem o marido em casa. As implicações disso são enormes para a igreja na cultura contemporânea. Hoje, possivelmente mais do que em qualquer outra época da história, a igreja tem a oportunidade de se levantar e mostrar o amor de Deus não apenas às crianças e às mulheres cujos pais ou maridos morreram, mas também às crianças e mulheres cujos pais ou maridos desapareceram da vida delas. Cristo nos leva a nos contrapor à cultura cuidando dos órfãos e das viúvas no momento em que pessoas importantes saíram de suas vidas. De fato, o Pai dos órfãos e o Defensor das viúvas está chamando seu povo para que tome conta dessas crianças e mulheres como se fossem da nossa família. Penso em Frank, um aposentado da igreja que serve na equipe que cuida do estacionamento da igreja todos os domingos. Faz alguns anos, Frank conversava com a enfermeira de uma clínica que lhe contou das necessidades que tinha visto nas casas de seus pacientes. Ela lhe contou como muitas
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viúvas, em particular, viviam presas em suas casas sem família ou amigos que cuidassem delas. Enquanto ouvia, Frank disse: "Era como se Deus estivesse dizendo: 'Você vai fazer alguma coisa em relação a isso?"' Ele decidiu agir. Frank sabia que a "religião pura" requer mais do que ajudar as pessoas a encontrar um lugar para estacionar o carro antes do culto de domingo pela manhã. Requer também ajudar as viúvas a encontrar um lugar em uma família que as ame e cuide delas. Imediatamente, Frank começou a visitar várias residências de viúvas. Ele conheceu mulheres cujas lixeiras não eram esvaziadas há meses e cujos lençóis não eram trocados também há meses. Conheceu outras ainda que precisavam de uma rampa para a cadeira de rodas porque não conseguiam descer três simples degraus do trailer onde moravam, o que as deixava isoladas durante várias semanas. Outras cujo telhado estava cheio de goteiras e sua casa inundava toda vez que chovia. Fiel a Tiago 1.27, Frank não apenas visitou essas mulheres como começou a mobilizar equipes da igreja para se responsabilizarem por elas. Juntos, passaram a servir mulheres como a sra. Maureen, uma irmã preciosa em Cristo prestes a se tornar viúva e responsável pela criação de suas duas netas. O marido da sra. Maureen estava morrendo de cirrose causada por alcoolismo. A guarda das duas netas, cuja mãe estava presa, havia sido confiada a ela. Contudo, a mãe abandonou as filhas depois que conseguiu a liberdade condicional. Quando Frank esteve na casa da Sra. Maurecn, descobriu que havia sido construída havia mais de 50 anos com madeira não tratada, e agora estava infestada de cupins. O único banheiro da residência havia afundado totalmente e o encanamento de ferro fundido estava afundando no solo. Uma das netinhas da Sra. Maureen estava um dia na varanda da casa quando o chão ruiu sob seus pés. Frank e um grupo de homens e mulheres, entre eles a neta de Frank, começaram a ir à casa da sra. Maureen e acabaram praticamente reformando a casa. Nesse tempo, tiveram numerosas oportunidades de encorajar uns aos outros e de orar uns pelos outros. Frank se lembra de estar um dia ao lado da cama do marido da sra. Maureen quando ela disse que o marido queria orar. "Ele se levantou, estendeu a mão e chorou", disse Frank. "Ele não conseguia falar porque tivera inúmeros derrames, mas minha neta segurou-lhe a mão e, juntos, oramos. Gostaria que você visse como o rosto de Frank se ilumina quando ele fala da recompensa de obedecer a Tiago 1.27. "E uma coisa que nem em meus sonhos mais delirantes imaginei que faria", disse Frank um dia, Em seguida, acrescentou: "Você sabe quando vê aquela pessoa sorrindo para você — o que nos últimos seis meses ela não fizera — que ela está sorrindo porque vê Deus em você. E é assim que temos de ser."5 Lembra muito o que vimos em Boaz, não é mesmo?
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O DIREITO DE RESGATAR O que impede, então, que mais igrejas se unam em esforços de peso em favor dos órfãos e das viúvas? O que impede um número maior de cristãos de contrariar a maré cultural de negligência e abandono que vemos nos lares de nosso país e do mundo todo? Certamente tal obra não está restrita à igreja, porque a pessoa não tem de ser cristã para se importar com o órfão e com a viúva. Contudo, insisto que homens e mulheres que creem no evangelho têm mais motivação do que quaisquer outras pessoas no mundo para levar adiante essa obra. Basta pensar nos requisitos de um resgatador e como eles encontram paralelo nas razões pelas quais os que foram enxertados na família de Deus são compelidos a se importar com os órfãos e as viúvas. Em primeiro lugar, um resgatador tem deve ter o direito de resgatar. No Antigo Testamento, vimos que isso tinha a ver primordialmente com a linhagem familiar. Esse direito implica responsabilidade, uma vez que os ascendentes mais próximos eram obrigados a cuidar dos parentes necessitados que estivessem por perto. Isso se reflete, obviamente, no Novo Testamento também, onde os cristãos são admoestados a cuidar de seus parentes mais próximos. Nas palavras de Paulo, "se alguém não cuida dos seus, especialmente dos de sua família, tem negado a fé e é pior que um descrente" (1Tm 5.8). Entretanto, o Novo Testamento vai muito além do que simplesmente chamar o cristão a cuidar dos membros de sua famflia de sangue, pois em Cristo o cristão foi adotado por uma família inteiramente nova, que está muito acima da linhagem de sangue. Não pensamos mais da perspectiva do parentesco biológico somente, pois fomos unidos a uma linhagem totalmente distinta. Em Cristo, porque ele derramou seu sangue por nossos pecados, fomos unidos como irmã os e irmãs. Dirigindose a judeus e gentios no primeiro século, Paulo diz aos gentios: Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, viestes para perto pelo sangue de Cristo, pois ele [...] de ambos os povos fez um só e, derrubando a parede de separação, em seu corpo desfez a inimizade, [...] para em si mesmo criar dos dois um novo homem, fazendo assim a paz e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um só corpo, tendo por ela destruído a inimizade [...] pois por meio dele ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito. Assim, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus" (Ef2.13-16,18,19). Essa verdade do evangelho tem grandes implicações no modo de os seguidores de Cristo pensarem na família e falarem a respeito dela. Devemos pôr um fim de uma vez por todas a conversas em nossas casas do tipo "não queremos adotar até que tenhamos nossos próprios filhos" ou será que "seremos capazes de amar uma criança sob nossa guarda temporária ou um filho adotivo tanto quanto amamos nossos filhos". Conversas assim revelam falta de compreensão no que diz respeito ao que
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significa "visitar os órfãos" — assumir a responsabilidade de cuidar deles assim como cuidamos de nossa própria família. Não fomos colocados nesta terra simplesmente para preservar nosso material genético. Fomos postos aqui para refletir a mensagem do evangelho, e essa mensagem cruza as barreiras físicas e transcende a linhagem biológica. Eu estava pregando, não faz muito tempo, em uma igreja grande em um país asiático. Ao me apresentar às pessoas, contei-lhes a história de como Deus havia guiado minha esposa e a mim a adotar dois de nossos filhos. Mais tarde naquele mesmo dia, um líder da igreja me procurou e disse: — David, sua história sobre adoção de crianças foi muito estranha para nossa igreja. Em nosso país, a preservação da linhagem sanguínea é extremamente importante. Simplesmente não temos em nossa cultura uma categoria que nos permita pensar a famflia de um modo que não envolva uma linhagem sanguínea comum. Imediatamente perguntei a ele: O que isso significa para os órfãos em sua cultura? Ele respondeu: Nós não os adotamos. Os órfãos são colocados em casas sob a supervisão de cuidadores e ali são cuidados. Contudo, eles Até hoje, enquanto escrevo, não consigo conter as lágrimas nem sufocar a dor em meu coração. Chorei incontrolavelmente. Meu irmão me explicou que papai estava deitado no sofá naquela noite e, de repente, começou a ofegar. Quando a ambulância chegou, poucos minutos depois, ele havia morrido de um ataque muito forte do coração. Ainda me lembro da dor que senti naquela noite e como ela foi aumentando nos dias que se seguiram, uma dor que volta periodicamente de um modo que não sei se um dia vou me libertar dela. Contudo, em meio à profundidade da dor do luto naqueles momentos, também experimentei o consolo sereno da presença de Deus. O povo de Deus imediatamente cercou meus irmãos, minha irmã e minha mãe de um modo pungente e forte. Ainda me lembro de determinadas pessoas que me abraçaram, que oraram por mim, que me levaram para Atlanta, que vieram visitar minha família e puseram de lado o que estavam fazendo para comparecer ao funeral. Ainda hoje, anos depois, recebo mensagens de texto, e-mails e ligações de gente que separa um tempo para orar por mim e me encorajar do jeito que meu pai faria. Minha família e eu sempre comentamos: "Não dá para imaginar como suportaríamos essa dor sem o apoio da igreja". Isso é parte do desígnio de Deus em relação ao cuidado da viúva e do órfão pela igreja, e sou profundamente grato por isso. Essa mesma realidade se manifesta na igreja quando vejo membros servindo os órfãos à sua volta. Enquanto alguns adotam crianças de nossa comunidade ou de outros países, ou as acolhem temporariamente em seu lar, vejo outros se levantarem não apenas em apoio a essas crianças, mas também às famílias que as acolheram como filhos adotivos ou temporários, ajudando-as e servindoas de inúmeras maneiras. Deus chamou algumas famílias para adotar ou abrigar temporariamente algumas crianças, mas também chamou outras famílias para providenciar o meio de transporte para
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essas crianças; chamou outras famílias para cozinhar para famílias que acolheram crianças temporariamente; e ainda outras famílias para cuidar de crianças adotadas, de modo que os pais adotivos possam passar algum tempo a sós. Em todas essas maneiras e em outras mais, notei que a igreja dispõe de fontes únicas para cuidar da viúva e do órfão, e que o cristão tem inúmeras possibilidades a explorar quando considera de que forma poderá exercer esse cuidado. Em minha jornada pessoal, conforme mencionei, quando minha esposa e eu voltamos do Cazaquistão, sabíamos que queríamos adotar outra criança. Começamos então a nos fazer uma série de perguntas: daqui mesmo ou de fora? Se for de fora, de que país? Que agência de adoção deveríamos escolher? Como financiaremos tudo? Enquanto fazíamos todas essas perguntas, sentimos que o Senhor estava nos conduzindo a uma adoção internacional, especificamente do Nepal. A taxa de mortalidade infantil no Nepal é alarmante, a predominância da pobreza é esmagadora e a quantidade de meninas aliciadas pelo tráfico sexual é devastadora. Depois de anos fechados à adoção, o Nepal estava reabrindo a possibilidade com regras bem específicas. Por exemplo, para adotar uma criança do Nepal ou a família não pode ter filho nenhum ou os filhos devem ser todos do mesmo sexo. Nesse último caso, a família pode adotar uma criança nepalesa do sexo oposto. Portanto, como tínhamos dois meninos, podíamos adotar uma menina. Disseram-nos que o processo todo levaria cerca de um ano. Demos entrada imediatamente. Depois de um ano de papelada, impressões digitais, exames médicos, análise de casas, mudança de casa e mais burocracia, tínhamos finalmente terminado tudo que era necessário da nossa parte para adotar uma criança do Nepal. O próximo passo seria encontrar uma garotinha que combinasse conosco. Enquanto isso, devido a uma série de fatores associados ao governo relativamente instável e em constante alternância no Nepal, 0 país logo se fechou para a adoção. Cerca de dois anos depois que nosso processo de adoção havia começado, eu estava pregando em uma conferência sobre adoção quando conheci um oficial do Departamento de Estado dos Estados Unidos que, ao descobrir sobre o nosso processo, disse-nos imediatamente que desistíssemos do caso. E acrescentou: "Não há nenhuma chance de vocês adotarem uma criança do Nepal". Ficamos com o coração partido. Lembro-me de orar em lágrimas com Heather na conferência, sem saber o que fazer a seguir. Havíamos orado com nossos filhos praticamente todas as noites, no decorrer dos dois últimos anos, por "sua irmãzinha do Nepal". Sabíamos que havia inúmeras crianças nepalesas sem mãe nem pai para cuidar delas, por que então Deus, o Pai dos órfãos, estava fechando essa porta? Mal sabíamos, porém, que embora estivesse fechando a porta da adoção no Nepal, ele estava abrindo a porta da adoção na China. Ao canalizarmos então todas as nossas energias nessa nova
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direção, nem Heather nem eu podíamos negar que um pedaço do nosso coração havia ficado no Nepal. Sabíamos que Deus havia posto os órfãos daquele país em nossa cabeça por um motivo; portanto, ainda que orássemos por um irmãozinho ou irmãzinha da China, continuávamos a orar pela menininha do Nepal. Pouco tempo depois, conheci um homem chamado Jack que tem um ministério voltado às crianças nas montanhas do Nepal. Eu havia ouvido histórias a respeito das formas impressionantes pelas quais Jack e o ministério por ele liderado estavam tratando de questões de saúde, educação e tráfico de crianças, tudo com base na pregação do evangelho e na plantação de igrejas. Sentei-me então com ele e compartilhei o desejo especial de minha família em relação ao Nepal. Aquela conversa abriu as portas para o que hoje é uma amizade próxima e uma parceria de minha família com o ministério de Jack. Pela graça de Deus, estamos agora envolvidos em doar e servir não apenas a uma garotinha preciosa do Nepal, mas a um enorme contingente de menininhas e menininhos cujas necessidades vão muito além do que eu jamais poderia imaginar. Estou contando isso simplesmente para lembrar que a adoção é um caminho que Deus talvez o leve a tomar, porém há milhares de outros caminhos por meio dos quais você poderá pôr em prática o cuidado prioritário de Deus com o órfão. De igual modo, Deus pode chamá-lo a começar um ministério dedicado a viúvas, como o de Frank, ou a encontrar muitas outras possibilidades de servir às viúvas em sua igreja, em sua comunidade e no mundo todo. A conclusão, porém, é que Deus está chamando todos os seus filhos a cuidar do órfão e da viúva de alguma maneira. A despeito do que isso possa significar para cada um de nós, como pessoas cativadas pelo amor do Pai celestial, somos constrangidos a mostrar seu amor aos que nesta terra não têm família.
A DETERMINAÇÃO DE RESGATAR Isso nos leva à última exigência do resgatador do Antigo Testamento. Um resgatador podia ter o direito e os recursos — a responsabilidade e a capacidade — de cuidar dos destituídos, mas, no fim das contas, ele deveria também ter a determinação de fazer alguma coisa por eles. Essa determinação não pode ser fabricada por simples números, estatísticas ou histórias de necessidades. A única fonte de onde flui a determinação é o amor de Deus revelado no evangelho. Lembre-se de que a história de Rute é, na verdade, a nossa história. Antes vivíamos obstinados em nosso pecado, andando pelo campo sem nada que atraísse o Senhor da seara para nós. Na verdade, tudo depunha contra nós. Eramos pecadores marginalizados, rebeldes afastados de Deus e desesperadamente necessitados de seu favor. Contudo, ele nos procurou como família dele. Ele nos
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escolheu e veio diretamente ao nosso encontro, tornando-se humano e derramando seu sangue por nós. Paulo escreve aos Efésios: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo. Porque Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para
sermos santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor nos predestinou para
sermos adotados como filhos por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade, para o louvor da sua gloriosa graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado. Nele temos a redenção por meio de seu sangue... (Ef 1.3-7, NVI). Que boa notícia — o fato de que o Deus do universo deixou seu trono para nos alcançar pela sua graça! Foi seu amor que o levou a nos adotar como seus filhos. Não apenas ele nos buscou como sua família, como também nos salvou de todo mal. Ele nos atraiu para si, aconchegando-nos sob a sombra de suas asas, de modo que, mesmo quando tempestades rugem à nossa volta e dificuldades nos sobrevêm, ele é "nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia" (SI 46.1). Além disso, o Senhor da seara nos convidou para cearmos com ele à sua mesa. Não somente isso: ele se curvou para nos servir ali. Surpreendendo-nos com sua misericórdia, ele nos falou ao coração e satisfez nossos desejos de tal modo que não temos necessidade de correr para nenhum outro lugar em busca de realização. Por fim, o Senhor da seara derramou sobre nós sua graça. Jesus é nosso resgatador de sangue com o direito de nos redimir — feito em semelhança nossa, mas sem pecado (veja Hb 4.15). Ele tem os recursos para nos redimir — tem toda a autoridade sobre a natureza e sobre as nações, sobre doenças e demônios, sobre o pecado e Satanás, sobre o sofrimento e a morte. Por fim, ele tem a determinação de nos salvar. Sua determinação levou-o a assumir a culpa pelo nosso pecado, suportando em nosso lugar a ira divina, para que por meio da fé nele não fôssemos mais rejeitados e separados de Deus, mas, em vez disso, pudéssemos ser chamados filhos e filhas de Deus. Quando compreendemos o que Deus fez por nós, conforme é revelado no evangelho, reconhecemos que ele deseja esse mesmo tipo de ação da nossa parte em favor dos órfãos e das viúvas. Pois não somos redentores que dão a vida e a família para salvar órfãos e viúvas em necessidade; ao contrário, somos os que foram redimidos, cujas vidas foram transformadas em nossa necessidade mais profunda. Portanto, faz todo sentido agora que homens e mulheres cativados pelo mistério da misericórdia divina sejam constrangidos a se doar ao ministério da misericórdia divina. Constrangidos a cuidar do órfão e da viúva em nossas igrejas e em nosso mundo através de meios diversos. E assim como os leitores do livro de Rute não tinham a menor ideia de como Deus estava usando aquela história na história de Israel, você e eu talvez jamais imaginemos de que formas imensuráveis Deus poderá usar nosso cuidado com os órfãos e as viúvas em seu plano mais amplo de redenção.
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MARA RUTE Quase sete meses depois que entramos com o processo de adoção na China, nossos dados se encaixaram com os de uma menininha preciosa ainda bebê. Logo que ouvimos sua história, soubemos imediatamente que nome daríamos a ela. Mara Rute. Mara. Nós a chamamos Mara não por acharmos que ela seria um bebezinho amargo, mas porque desde os primeiros momentos de sua vida ela pareceu estar totalmente cercada pela tragédia. Como eu disse anteriormente, ela fora abandonada em uma caixa de papelão marrom, do lado de fora de um orfanato. Mesmo eu e minha esposa parecíamos estar de certo modo cercados pela tragédia nesse aspecto: depois de anos de infertilidade em nosso casamento, parecia que a esterilidade se impregnara em nossa vida. Contudo, o Pai do céu sabe exatamente o que faz aqui na terra. E assim como Noemi não tinha ideia de como Deus usaria Rute para transformar sua história trágica e dolorosa em triunfo surpreendente, nossa filha, minha esposa e eu não tínhamos ideia de como Deus uniria nossas histórias de acordo com seu desígnio soberano, porque Deus pegaria essa menina abandonada e a transformaria em uma menina adotada e, ao mesmo tempo, pegaria uma mulher infértil e faria dela uma mãe abençoada. No final, Deus se alegra em manifestar sua soberana misericórdia em situações aparentemente desesperadoras para pessoas aparentemente desamparadas. Qyem poderá dimensionar o pós-escrito colossal que será redigido nas páginas da história humana, quando tiverem sido contadas todas as histórias de como o povo de Deus demonstrou compaixão divina pelos órfãos e viúvas deste mundo? E quem poderá imaginar as inúmeras formas a que Deus poderá recorrer para usar você e a mim para escrever essa história?
PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA
Ore Peça a Deus que: Abra seus olhos para ver os órfãos e as viúvas à sua volta, e abra seu coração para cuidar deles. Capacite os cristãos do mundo todo a protegerem os mais vuneráveis. Leve você a se lembrar do modo pelo qual ele o(a) adotou como filho(a) em Cristo. Participe Em oração, considere os seguintes passos: Inicie o processo de acolhimento temporário ou de adoção definitiva, ou descubra meios tangíveis de apoiar famílias que estejam participando desses processos.
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Sozinho ou com sua família, considere a possibilidade da entrar em contato com um órfão ou uma viúva de sua igreja ou de seu bairro, dedicar tempo e servir a eles. Apadrinhe um órfão ou uma viúva de outro país por intermédio de um ministério cristão centrado no evangelho e mantenha contato com a pessoa a quem você está apadrinhando.
Proclame Reflita sobre as seguintes verdades da Escritura: Salmo 68.5, 6: "Pai de órfãos e juiz de viúvas, é Deus na sua santa morada. Deus faz o solitário viver em família; liberta os presos e os faz prosperar; mas os rebeldes habitam em terra árida". Gálatas 4.4,5: "Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei, para resgatar os que estavam debaixo da lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos". Tiago 1.27: "A religião pura e imaculada diante do nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas dificuldades e não se deixar contaminar pelo mundo".
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CAPÍTULO 5 'AS MULHERES: O EVANGELHO E A ESCRAVIDAO SEXUAL
Apresento-lhes Maliha, eu nome significa "bela". Ela nasceu no norte do Nepal, no 1lto das montanhas do Himalaia, das quais falei antes. Desde o momento em que entrou no mundo, Maliha e sua família lutaram para sobreviver: faltavam água potável, alimento suficiente e cuidados medicos básicos. Imagine, portanto, a esperança da mãe quando um jovem chegou 1 aldeia e viu Maliha do lado de fora lavando as roupas da família no tanque comunitário. Ela tinha nove anos, embora parecesse mais nova. O homem sabia onde Maliha morava. Ele foi então à casa dela e se apresentou à sua mãe. -
Tashi delek - , disse ele, inclinando-se para frente com as mãos unidas. Essa saudação budista
tibetana significa: "Bênçãos e bom favor sobre você". Sua mãe, surpresa, respondeu da mesma forma ao homem: -
Tashi delek.
O homem então começou a falar em nupri, a língua local falada nessa região do Nepal. -
Notei que sua filha é muito bonita - ele disse.
-
Ela é mesmo - respondeu a mãe orgulhosa. - E é traba- lhadeira também. Ela cuida dos
irmãozinhos e me ajuda com as coisas que tenho de fazer. Maliha nunca foi à escola. Na verdade, mesmo que ela cami- nhasse o dia inteiro, não encontraria escola alguma, e mesmo que houvesse escola, Maliha não poderia frequentá-la. Seu pai havia abandonado a mãe anos antes, e Maliha tinha de cuidar de uma irmã e um irmão menores do que ela. Isso não a incomodava, por- que amava profundamente sua família e se orgulhava de ajudar e cuidar dela. Um ano antes, o irmão mais novo de Maliha adoecera gravemente, acometido de uma simples infecção no estômago cau- sada por ingerir água não potável. A mãe de Maliha havia descido a montanha naquela semana e coube a Maliha cuidar para que o irmão se recuperasse, no que foi bemsucedida. Sua felicidade era ver a mãe e os irmãos com saúde. -
Sim - disse o homem. - Notei que seu marido se foi e a senhora tem três filhos para criar
sozinha. Eu gostaria de ajudar no sustento de sua família. A mãe de Maliha ficou intrigada. -
O que o senhor pode fazer? - ela indagou. O homem disse:
. - Há uma oportunidade de trabalho lá em Katmandu, a cidade grande aos pés da montanha. Há empregos que podem ajudar no sustento financeiro de famílias como a sua aqui das montanhas. A mãe de Maliha se inclinou para ouvir atentamente. O homem prosseguiu: -
Sei que a senhora precisa ficar aqui para cuidar dos seus filhos e da sua terra. Contudo, estou
disposto a levar sua filha comigo para a cidade. Ali ela poderá fazer os mesmos trabalhos que faz
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aqui na aldeia, mas poderá ganhar muito mais dinheiro. Ela poderia enviar esse dinheiro para o sustento da senhora e dos seus filhos. Ao mesmo tempo -
o homem continuou -
ela seria bem
cuidada, teria acesso a muita água e comida em uma bela casa junto com outras meninas da idade dela. Sem dúvida o homem conseguira a atenção da mãe de Maliha. Enquanto ouvia, ela pensava: "Será que isso é verdade mesmo? Seria essa a resposta para as necessidades de minha família? Seria esse o sustento de que preciso para mim e meus filhinhos, enquanto minha filha mais velha fica sob os cuidados desse homem gentil na cidade?". Contudo, enquanto essas indagações todas passavam pela cabeça dela, imediatamente lhe sobreveio o seguinte pensamento: "Não, não posso me separar da minha filha preciosa. Ela é muito importante para mim". Depois que o homem terminou de fazer sua proposta, a mãe de Maliha olhou para ele e disse: -
Obrigada por sua oferta gentil para ajudar minha família.
Contudo, não posso aceitá-la. Minha filha tem de ficar comigo. O homem ficou nitidamente desapontado, mas disse: -
Quero muito ajudar a senhora e a sua família. Cuidarei muito bem de sua filha. Por que a
senhora não pensa um pouco melhor e quem sabe eu não volte outro dia para conversar novamente sobre esse asssunto? A mãe de Maliha hesitou em aceitar até mesmo esse pedido, mas, não querendo ofender o homem, concordou educadamente e se despediu dele. Nos dias que se seguiram, por mais que a mãe de Maliha tentasse, não conseguia tirar a oferta do homem da cabeça. Ela olhava para a filha, bela e esforçada, e pensava: ''Acho que Maliha teria gostado de ir embora com aquele homem sabendo que poderia oferecer mais à sua família. E o homem parece simpático. Aposto que Maliha iria gostar da companhia dele. Talvez alguém como ele até se casasse com ela um dia". Mas não conseguia suportar o pensamento de mandar a filha para longe ainda tão jovem. Um dia, então, o homem voltou à casa de Maliha, novamente num momento em que ela estava fora de casa, ocupada com suas tarefas. Ele se aproximou da mãe de Maliha com um sorriso e a cumprimentou. Então disse: -
Estive pensando um pouco mais sobre nossa conversa de algumas semanas atrás e entendo
que a senhora esteja hesitante em enviar sua filha para a cidade comigo. Hoje, porém, venho com uma promessa que, espero, demonstrará meu desejo de ajudá-la. A mãe de Maliha sentou-se de frente para o homem. -
Como garantia da minha promessa de cuidar da sua família aqui e de sua filha lá na cidade -
disse o homem -, quero lhe oferecer dez mil rupias.
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A mãe de Maliha arregalou imediatamente os olhos. Dez mil rupias equivalem a cerca de cem dólares e correspondiam aproxi- madamente ao que a mãe de Maliha ganhava em seis meses. "Esse homem é mais generoso do que qualquer outro que jamais conheci em toda a minha vida!", pensou. -
Além disso - acrescentou o homem - prometo trazer sua filha de volta a estas montanhas
comigo uma vez por ano para ver a senhora e passar um tempo com seus irmãos. Sei que isso é importante para ela e para a senhora. A essa altura, Maliha havia voltado para a casa e viu o homem conversando com sua mãe. Sua mãe olhou para ela e, depois de uma longa pausa, pediu a Maliha que se sentasse no seu colo. Ela disse: -
Maliha, esse homem veio oferecer ajuda a você e a nossa família. Maliha sorriu hesitante
enquanto sua mãe prosseguia: -
Ele quer levar você para Katmandu, a grande cidade aos pés da montanha. Ali você poderá
viver e trabalhar com outras meninas da sua idade. Você terá toda a comida e toda a água que quiser, e vai morar em um lugar lindo onde esse homem tomará conta de você. Você fará o mesmo tipo de trabalho que faz aqui, com a diferença de que vai ganhar muito mais dinheiro e poderá enviá-lo para casa para ajudar seus irmãos e a mim. E depois, quando você tiver trabalhado um tempo ali, esse homem trará você de volta às montanhas para nos visitar e ver também o tanto que nos ajudou. Enquanto a mãe falava, os olhos de Maliha se encheram de lágrimas. Ela pensou imediatamente: "Não, não posso deixar minha familiá'. Contudo, quanto mais sua mãe falava, mais ela se dava conta de que essa era uma oportunidade de ajudar as pessoas a quem amava. Claro, havia risco. Maliha nunca havia saído daquelas montanhas antes. Contudo, se as coisas não dessem certo, ela poderia voltar em breve para sua aldeia e viver com sua família novamente. A mãe de Maliha olhou para a filha. Agora as duas estavam chorando. Ela disse: -
Acho que seria melhor para você e para nossa família que você fosse com esse homem bom.
Maliha olhou para os olhos da mãe crendo que ela a amava e que sabia o que era melhor. Por fim, disse: -
Farei tudo o que você quiser para sustentá-la e aos meus irmãos. O homem pôs o braço sobre
os ombros de Maliha, sorriu e disse: -
Prometo cuidar bem de você.
Nos dias que se seguiram, foram feitos os preparativos neces- sários, e o homem voltou com a caução de dez mil rupias. Foi uma despedida cheia de lágrimas. Maliha abraçou a mãe, a irmã pequena e o irmão e partiu montanha abaixo na companhia do homem. Enquanto caminhavam durante os dias do seu percurso, o ho- mem deu instruções a Maliha sobre o que esperar no momento em que se aproximassem da cidade. -
Há lugares em que a polícia pede identificação - ele disse.
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Nós não queremos que a polícia nos pare, por isso você terá de se esconder junto a um grupo
de pessoas o melhor que puder. Isso nos ajudará a chegar mais depressa na cidade. Foi o que Maliha fez. Em todos os postos de inspeção, ela caminhava inocentemente junto a um grupo de pessoas e conseguia passar despercebida pelos guardas que, afinal de contas, não eram muito diligentes em seu trabalho. Foi fácil, o que não surpreendeu o homem que estava acompanhando Maliha. Ele havia feito a mesma coisa com outras meninas no passado e, de qualquer forma, conhecia a maior parte dos policiais. Era noite quando chegaram à cidade. Dirigiram-se imediata- mente a um restaurante para comer alguma coisa. No entanto, esse restaurante era diferente dos demais. Era um restaurante onde havia várias cabines e ficava situado junto a uma fila de restaurantes onde as famílias iam comer, porém as cabines desse restaurante eram diferentes. Pareciam-se mais com cubículos. Estruturas de madeira que iam do chão ao teto separavam as cabines umas das outras, de modo que ninguém conseguia ver o que se passava dentro ou fora da cabine. Havia uma pequena mesa no centro de cada cabine com um banco em volta. Outras meninas, todas elas mais velhas do que Maliha, estavam sentadas na frente do restaurante. Ela supôs que estivessem descansando depois de um longo dia de trabalho e sorriu ao passar por elas. O homem levou Maliha a uma das cabines, onde ela se sentou. Logo, um prato grande de comida foi colocado à sua frente. Faminta pela viagem, e, na verdade, jamais tendo visto tanta comida em um prato antes, ela comeu tudo. O homem então a levou a uma sala no segundo andar. Era um cômodo pequeno com uma cama estreita em um canto. Um lençol sujo e manchado estava estendido sobre um colchão fino. O homem disse: - Você pode me dar sua bolsa. Vou arrumar roupas novas para você vestir amanhã. Enquanto isso, durma bem esta noite. Vejo você li de manhã. Maliha agradeceu. Ela estava cansada, para dizer o mínimo, e embora sentisse falta da família, sentia-se grata porque tinha li
finalmente chegado ao lugar em que moraria e ganharia o
sustento da mãe e dos irmãos. Ela pensou: "Preciso descansar bem para poder trabalhar duro amanhã, como aquelas meninas, antes de voltar aqui para o jantar". Com isso, adormeceu tranquila, jamais imaginando que aquela seria sua última noite de sossego nos anos que se seguiriam. Na manhã seguinte, Maliha acordou com a voz do homem. Ele entrou no quarto com as mãos cheias de roupas bonitas, novas e apertadas para que ela usasse. Ele disse a ela que se lavasse, se vestisse 'depois fosse até o restaurante, onde eles conversariam sobre trabalho. Ela o obedeceu imediatamente e foi em seguida até uma das cabines, onde o homem esperava por ela sentado. Maliha se sentou à mesa d frente para ele. O homem começou então a lhe dar instruções. -
Bem, para que você possa enviar sustento para sua mãe, sua irmã e seu irmão, f ça tudo o que
eu lhe disser para fazer.Já paguei rnuito dinheiro à sua família, por isso você terá de começar a tra-
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balhar hoje para pagar o que deve. E aí, depois que você fizer mais dinheiro, mandarei para sua família - disse. Maliha assentiu com a cabeça e perguntou: -
O que o senhor quer que eu faça?
Q_yando fez essa pergunta, ela jamais poderia imaginar o que l" seguiria. Tudo começaria naquela noite, durante o jantar com o homem, que lhe deu álcool para beber junto com a refeição. Depois, c1 • acompanhou aquela menina de nove anos, cujos sentidos já 1•stavam embotados, até o andar de cima, onde tirou as lindas roupas d,·la, roubando-lhe a inocência e estuprando-a em seu quarto. Ele a deixou à noite e voltou na manhã seguinte. Perguntou a l\1aliha se ela queria o café da manhã. Agora assustada e ainda em d11vida sobre o que exatamente havia acontecido no dia anterior, .Sabendo que seu corpo fora gravemente ferido de um jeito que 1,11nais havia experimentado anteriormente, ela seguiu o homem 11c\ o andar de baixo para comer. Ele lhe disse que ela havia feito 11111 bom trabalho ganhando dinheiro na noite passada, mas que 11'1 ia de trabalhar mais para que sua família tivesse o suficiente para 11hr 'viver. Maliha chorou porque não queria mais fazer aquele tipo ,li I rabalho. O homem, porém, a ameaçou e disse: -
É melhor você não chorar, ou não vai ganhar o dinheiro 1 l1• que precisa. Se quiser
garantir o sustento da sua família, faça o 1 p11• ·u digo e não chore. Nos dias que se seguiram, o homem estuprou Maliha em várias ocasiões, às vezes por mais de uma vez no mesmo dia. Cada episó- dio era acompanhado de bebidas e, nas semanas que se seguiram, também de drogas. No início, Maliha tentou lutar. Ela não queria fazer o que o homem queria que ela fizesse; queria só ir embora. Contudo, a força do homem subjugava seu corpo frágil à medida que, dia após dia, semana após semana, ela era espancada e forçada a ceder. Não demorou muito - apenas alguns meses - para que seu espírito fosse totalmente subjugado. O cenário agora estava pronto para a participação de outros homens. Eles entrariam no restaurante onde encontrariam Maliha, essa bela jovenzinha, sentada na entrada, olhando para o chão. No teto, acima da sua cabeça, havia diversos preservativos pendurados. Um homem tomava-lhe pela mão e ela o seguia em silêncio em direção a uma das cabines. Ali, ele comeria e beberia e depois levaria Maliha para o quarto dela no andar de cima, ou ficaria ali mesmo na cabine, e a obrigaria a fazer o que ele quisesse. Depois de tudo terminado, ela sairia e ficaria à espera do próximo homem, e depois de outro, e mais um, e mais outro. Às vezes, numa noite movimentada, de 15 a 20 clientes teriam relações sexuais com ela do jeito que desejassem. Essa era a vida de Maliha, e não havia saída. O homem que, meses antes, sorrira um dia para ela na aldeia onde morava, havia voltado à procura de outras jovens. Maliha agora trabalhava para outros homens. Eles lhe diziam que se ela tentasse parar de trabalhar no restaurante, eles voltariam à sua aldeia e pegariam sua irmãzinha para tomar seu lugar. Garantiram-lhe que o trabalho que fazia proporcionava o sustento de sua familia na aldeia. Mal sabia
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ela que sua mãe jamais recebera uma rupia a mais sequer. Enquanto isso, a mãe seu irmãozinho e sua irmãzinha achavam que Maliha havia se esquecido deles. Nada possuía que fosse seu. A única coisa que carregava consigo era vergonha. Ela era, sem dúvida alguma, uma mulher amaldiçoada em uma cultura segundo a qual o lugar que alguém ocupa na vida pre- sente é o que a pessoa merece pelo comportamento que teve em sua vida passada. Ke garne, pensava consigo muitos dias, uma expressão cm nepali que significa simplesmente "a vida é o que é, vire-se". Ela se virou, entrou na adolescência bem-sucedida no seu ofício, porém sem um fio sequer de esperança.
MAIS PERTO DE CASA A história de Maliha pode parecer algo muito distante até você conhe-·er Hannah, cuja experiência está muito mais perto de nós. Hannah t ·m pouco mais de 20 anos atualmente, mas nasceu em um ambiente muito diferente do de Maliha. Hannah nasceu e cresceu bem no centro do Cinturão da Bíblia,1 em Birmingham, no Alabama. Ela é de lá. Sua f:unilia está longe de ser pobre.Ao contrário, seus pais puderam lhe dar tudo de que precisava -e queria. Qyando Hannah completou 16 anos, os pais lhe deram um carro e,junto com ele,liberdade e oportunidade novas. Ela podia sair com os amigos sempre que quisesse. Ao menos, era o que ela pensava. No ano seguinte, seus pais notaram que ela estava fazendo mau uso da confiança que haviam 1 I·positado nela. Não demorou muito para que restringissem os locais, onde e quando ela poderia ir. Com o tempo, estabeleceram também 11·gras mais severas em relação às roupas que ela usava. Suas saias haviam fi ·ado mais curtas e os decotes, mais baixos. Seus pais decidiram então que ela não poderia mais usar as roupas que havia escolhido. Foi então que Hannah conheceu Molly, uma nova amiga da escola. discrentemente de Hannah, Molly não tinha restrição de vestuário, 110Jia ir aonde quisesse e com quem quisesse. Hannah queria ser igual esquecido completamente deles depois que fora para a cidade grande . Mesmo que ela tivesse escapado, para onde iria? Ela não tinha a menor ideia de onde estava e não sabia como voltar para casa. Não conhecia ninguém, exceto o homem de quem se tornara propriedade. Molly e bem depressa se tornaram amigas muito próximas. Com o 'Região sudeste dos Estados Unidos onde predominam evangélicos de perfil conservador. (N. da E.) tempo, Hannah confidenciou a Molly que estava com dificuldade para pagar o seguro do carro e que queria ter mais dinheiro para comprar roupas que pudesse vestir ao chegar à escola, assim que estivesse longe da aparente supervisão muito rigorosa dos pais. Molly ficou feliz em poder ajudar Hannah. Ela a apresentou a Mark, que, por sua vez, apresentou Hannah a um mundo totalmente novo. Hannah saiu com Mark, que a tratou como a uma rainha. Mark disse a Hannah que ela era muito bonita, elogiou-a dizendo que poderia ser modelo. Hannah se sentiu
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o máximo. Parecia que Mark tinha muito a lhe oferecer. Ele a inundou de roupas novas e bonitas, perfumes, joias - e tudo o que ela quisesse. Não demorou muito para que Hannah se apaixonasse. Ela sabia que Mark era "o homem dos seus sonhos". Quando Mark a encorajou a morar fora da cidade com ele, fez muito sentido. Ela agora tinha idade suficiente para tomar esse tipo de decisão por conta própria. Então, passadas poucas semanas, no meio da noite, Hannah saiu de casa. Seus pais não tinham a menor ideia de onde ela poderia ter ido. Logo Mark começou a falar do seu desejo de levar Hannah para uma cidade como Los Angeles, onde poderiam viver juntos e ela poderia ser modelo. "Será que eu realmente poderia ser modelo na Califórnia?", Hannah se perguntava, imaginando como seria essa vida. Tudo o que ela precisava fazer, disse Mark, era vender o carro e posar para algumas fotos com alguns de seus amigos em Birmingham. Isso os ajudaria a economizar o suficiente para chegar a Los Angeles, e também ajudaria Hannah a compor seu portfólio de modelo. Hannah concordou. Ela começou a trabalhar como modelo e gostou, até que um dia Mark sugeriu que ela posasse nua para algumas fotos. No início, Hannah hesitou, porém Mark disse que ela era muito bonita e lhe assegurou que isso a ajudaria a ganhar muito dinheiro e seria sua garantia para chegarem à Califórnia. Embora relutante, Hannah concordou. Não demorou muito, porém, para que essas fotos se tornassem muito mais do que ela havia imaginado. Mark a deixou em um local para que fosse fotografada pelos amigos e, depois que saiu, os amigos de Mark pediram a Hannah que não apenas posasse nua, mas que tivesse relações sexuais diante das câmeras. Qyando Mark voltoue a levou para casa, Hannah lhe disse que não queria mais fazer aquilo. Mark ficou irado e insistiu que, se ela o amava, posaria para aquelas fotos. Ele fez com que ela se lembrasse de todas as coisas que havia lhe dado e insistiu para que ela ganhasse mais dinheiro para os dois. Hannah concordou e as sessões de fotos nos dias que se seguiram s ' pioraram. Quanto mais ela resistia às coisas que Mark e seus amigos queriam que ela fizesse dia te das câmeras, tanto mais Mark insistia para que ela fizesse. Ele começou então a bater nela e, por fim, tirou-lhe lodo o senso de identidade. Mark lhe dizia que ela precisava ganhar mais dinheiro, e foi então que as sessões de fotos feitas durante o dia levaram aos encontros pessoais à noite. Mark a buscava depois das sessões de fotos na casa dos amigos e a levava até uma parada para leva-los na rodovia lnterstate 20. Ali, comiam alguma coisa e aguardavam do lado de fora a chegada dos caminhoneiros. Mark a mandava n1tao a um dos caminhões onde oferecia ao motorista todo tipo de 111,\'l, res sexuais. O motorista a pagava em troca dos seus serviços e entregava o dinheiro a Mark. Passados alguns meses, o promissor 11,1111orado de Hannah havia se tornado seu cafetão.
ESCRAVIDÃO MODERNA
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Sinto-me envergonhado em confessar que só recentemente me dei conta da gravidade do tráfico sexual no mundo à minha volta. Por muito tempo, a ideia de escravidão me pareceu uma relíquia de seculos anteriores à minha época. Jamais poderia imaginar que há mais escravos hoje do que no tempo em que eram capturados na Africa, nos quatro séculos de comércio de escravos no Atlântico. Jamais poderia imaginar que 27 milhões de pessoas vivem na escravidão atualmente - um número maior do que em qualquer outra época da história. 3 Jamais poderia imaginar que muitos desses milhões de pessoas são comprados, vendidos e explorados sexualmente por meio de uma atividade que se tornou uma das indústrias que mais crescem no mundo.4 Mas mesmo depois de tomar conhecimento desses números, eles ainda me pareceram distantes. Enquanto fossem meros números numa página, poderia me distanciar deles. Com toda a sinceridade, eu poderia viver como se eles simplesmente não existissem - tanto os números quanto as pessoas que eles representam. Mas tudo isso mudou quando entrei na aldeia de Maliha, no vale do Nupri, no Nepal. Pela primeira vez na minha vida, fiquei face a face com a realidade terrível do que acontece naquelas montanhas. Ouvi uma história após a outra, de muitas e muitas meninas, e quando voltei à grande cidade de Katmandu, passei por vários restaurantes que tinham escravas do lado de fora, à espera de alguém à procura do serviço que ofereciam nos cubículos dentro daqueles estabelecimentos. Vi onde Maliha viveu, e vi onde ela trabalha agora. Por mais que eu me esforce, não consigo tirar essas imagens da minha mente. Na volta do Nepal, pousei em Atlanta e fui para minha casa em Birmingham. Na Interstate 20. Cresci ali, e viajava de uma ponta à outra dessa estrada que chegava até o oeste do Texas, mas não tinha a menor ideia de que era a "superrodovia do tráfico" nos Estados Unidos. Essa mesma estrada, que representa liberdade para dez milhões de viajantes todos os anos, retrata a realidade da escravidão para inúmeras jovens todas as noites.5 Isso muda nossa perspectiva, quando nos damos conta de que o homem e a jovem que encontramos num hotel de estrada talvez não sejam o que imaginávamos que fossem. A escravidão existe. E agora que sei disso, não tenho escolha a não ser fazer algo a respeito. Além disso, agora que você sabe que ela existe, não tem outra escolha senão fazer algo também.
CRIADOS IGUAIS Mas como se combate a escravidão? É possível escrever muito a esse respeito (e muito já foi escrito) na tentativa de responder a essa indagação de vários ângulos diferentes. Não me julgo de modo algum um especialista em como deter a escravidão no mundo à nossa volta. Quanto mais me envolvo nesse assunto, mais complexo vejo que é. Este capítulo, por exemplo, limita sua abordagem ao tráfico sexual de mulheres; ele não trata, por exemplo, das formas pelas quais esse horror indescritível explora também meninos nem lida com as várias outras formas de escravidão no mundo. Não há
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respostas fáceis para perguntas sobre escravidão, e não há soluções simples para essa questão endêmica. Contudo, estou profundamente convencido de que só o evangelho é capaz de promover a profundidade de mudança de perspectiva e a transformação do coração necessárias para a erradicação da escravidão. Sei que é uma afirmação ousada, porém a faço com a humilde confiança na verdade do evangelho para mudar mentes e no poder do Espírito de Deus para mudar corações. Vou explicar melhor. O evangelho começa com Deus -
o único que tem autoridade para reinar
como Mestre e Senhor no Universo. Somos todos propriedade dele (veja Sl 24.1). Isso não impede, por exemplo, que existam entre as pessoas relacionamentos marcados pela autoridade baseada no amor e por uma cordial submissão a essa autoridade, informe vemos no desígnio divino de um bom pai que ama seus fiIhinhos e cuida deles. Mas mesmo nesse caso, um pai não é dono dos filhos, tampouco os filhos pertencem, em última análise, a seu pai. A propriedade e o pertencimento por excelência estão reservados ao grande Senhor, o Deus a quem todos pertencemos. Quando a Escritura trata especificamente da escravidão no primeiro século, ela lembra aos que se auto intitulam "senhores" que seu "Senhor" está no céu (veja Ef 6.9), e só ele governa sobre todos. Isso nos leva a um segundo componente, igualmente fundamental, do evangelho: Deus, o Senhor de tudo, criou todas as pessoas em todos os lugares à sua imagem. Sendo assim, todos, onde quer que estejam, têm o mesmo valor perante ele e perante os demais. Nenhum homem ou nenhuma mulher é superior a outros homens e mulheres, e nenhum homem ou nenhuma mulher é inferior a outros homens e mulheres. "Há 87 anos, nossos pais conceberam, neste continente, uma nova nação, gerada em liberdade e dedicada à afirmação de que 'todos os homens são criados iguais'"6 - essas são as primeiras palavras de um dos mais famosos discursos da his- tória dos Estados Unidos, o Discurso de Gettysburg, proferido em 19 de novembro de 1863 pelo então presidente Abraham Lincoln. Contudo, não foi Lincoln quem concebeu a ideia de que todos os homens são criados iguais. Essa ideia é de Deus. O primeiro capítulo da Bíblia nos diz que "Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (Gn 1.27).Jó deixa isso implícito quando diz por que se recusa a tratar mal seus servos. Ele pergunta: ''Aquele que me formou no ventre não fez também o meu servo? Não foi o mesmo que nos formou no útero?" (Jó 31.15) . Essa dignidade uniforme diante de Deus fica também evidente no Novo Testamento, quando Paulo diz:"Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3.28). Em outras palavras, embora tenhamos diferenças, temos todos a mesma dignidade perante Deus e, mais especificamente, todos os seguidores de Cristo têm a mesma posição em Cristo. Essa mesma dignidade é a base que Tiago usa para combater o favoritismo na igreja (Tg 2.1-9).
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À luz dessa dignidade partilhada por todas as pessoas, Deus denuncia o abuso físico no caso específico da escravidão (veja Êx21.20-27).Além disso, ele condena todo tipo de tráfico humano. Sequestrar alguém é algo punível com a morte, pena que se aplica tanto ao indivíduo que vende o escravo quanto ao que o compra (Êx 21.16) . Paulo condena o pecado do tráfico com a mesma veemência com que fala sobre o homicídio e a imoralidade sexual. A palavra traduzida como "exploradores" em 1Timóteo 1.10 significa literalmente "ladrão de homens" ou "traficante de escravos".7 Aqueles que sequestram uma pessoa para vendê-la como escrava são "transgressores e insubordinados, incrédulos e pecadores, ímpios e profanos" (lTm 1.9).8 Não é preciso dizer (mas é importante notar) que, se essa verdade bíblica tivesse sido acolhida e obedecida pelos cristãos nos séculos 18 e 19, o comércio de escravos africanos na Europa e na América jamais teria existido da forma que existiu. Milhões de homens e mulheres eram transportados em condições cruéis e torturantes que tiraram a vida de muitos antes mesmo de chegarem a seu destino. Quando vendidos, os escravos eram submetidos a condições severas de trabalho e ao abuso físico, sexual e à tortura. Frederick Douglas, líder do movimento abolicionista na década de 1800, escreveu o seguinte a respeito do seu primeiro senhor de escravos, o capitão Anthony:
Ele era um homem cruel, endurecido por uma longa vida de exploração de escravos. Às vezes, parecia sentir enorme prazer em dar chibatadas em um escravo. Muitas vezes acordei de madrugada com gritos de partir o coração de uma tia minha, a quem ele costumava amarrar a uma coluna e açoitar com a chibata [...] até ela ficar literalmente coberta de sangue. Nem palavras, nem lágrimas, nem orações de sua vítima ensanguentada pareciam demover aquele coração de pedra de seu propósito sanguinário.9 Relatos desse tipo nos lembram dos horrores da escravidão, horrores que Deus condena explicitamente. É claro que pastores e membros de igreja que viveram nos Estados Unidos na época anterior à Guerra Civil e usaram a Palavra de Deus para justificar a prática da escravidão pecaram. Isso porque, seja hoje, seja ontem, a Escritura claramente considera qualquer forma de escravidão, tudo o que diminui o valor ou a dignidade do ser humano, como rebelião contra o senhorio de Deus, violação da lei divina e negação do amor de Deus por todos nós, que fomos criados à sua imagem. Muitas culturas no mundo, porém, não acreditam que Deus tenha criado todas as pessoas com a mesma dignidade. Muitas culturas muçulmanas, hindus, budistas, animistas e ateias do mundo todo, por exemplo, negam o valor das mulheres de várias maneiras. E do mesmo modo que a opressão das mulheres no Oriente Médio ou o aborto de bebês do sexo feminino na Ásia começam com a desvalorização da vida da mulher, assim também começa a escravidão sexual. Uma vez que a mulher é vista como ser de menor impor- tância, menos nobre ou menos digna do que o homem, ela é mais
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facilmente descartada como objeto a ser usado e abusado, e seu drama é mais desprezado ainda na prática pelas autoridades de um país. Imagino como seria caminhar pelas ruas de uma cidade no sul da Ásia repleta de milhares de adoradores hindus que se reuniram para celebrar o deus supremo dos hindus, Shiva, que teve relações sexuais com várias mulheres. Para alguns seguidores do hinduísmo, sexo em si é uma forma de adoração a Shiva e até mesmo uma exigência para agradar e pacificar esse e outros deuses. Algumas dessas famílias entregam suas filhas ao templo aos 12 anos, como oferta aos deuses, para serem usadas para fins sexuais. Não é de admirar, portanto, que essa cosmovisão leve centenas de de milhares de meninas a trabalhar nos bordéis de megacidades indianas como Mumbai, Délhi e Calcutá.
ESCRAVIDÃO E PORNOGRAFIA Certamente a cultura americana não está imune a tal cosmovisão, uma vez que a adoração do sexo em nossa cultura resultou a desvalorização da mulher. Isso fica evidente na indústria da prostituição e da pornografia, e é evidente não apenas na cultura a nossa volta, mas até mesmo na igreja, entre cristãos que ,em vez.de combate- remessa cultura, imitam-na. As pesquisas mostram consistente me te que mais da metade dos homens e um número_ cada vez maior de mulheres nas igrejas assistem à pornografia sistematicamente. O que é notável (mas quando se pensa no assunto ve-se que não é necessariamente surpreendente), é que as estatísticas sao similares para os pastores que lideram essas igrejas-10 A pornografia é um problema grave de diversos ângulos, as não se deve perder sua ligação com o tráfico sexual. Pesquisas demonstram de forma reiterada a existência de um vínculo claro entre o tráfico sexual e a produção de pornografia. A legislação federal reconhece isso,12 os envolvidos na produção de pornografia confirmaram isso13 e, embora os números exatos não possam ser devidamente apontados, um centro de combate ao tráfico informa que pelo menos um terço das vítimas de tráfico em troca de sexo é usado na produção de pornografia.14 Outro estudo sobre a relação entre prostituição, pornografia e tráfico constatou que 50% de cerca de 900 prostitutas em nove países diferentes disseram que há produção de pornografia durante sua atividade de prostituição.15 Ao tomarmos conhecimento de uma pesquisa dessas, não devemos perder a conexão. Homens e mulheres que cedem à pornografia estão criando uma demanda por mais prostitutas, o que, por sua vez, abastece a indústria do tráfico sexual. Contudo, o ciclo é ainda mais cruel. tanto mais as pessoas assistem à pornografia, tanto mais elas desejam se satisfazer sexualmente através da prostituição .16 Tal desejo leva homens (e mulheres) a participar de atos físicos de prostituição ou mesmo de prostituição virtual, já que "todo computador
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dentro de casa se torna
uma casa da luz vermelha em potencial" .17 Assim, a pornografia
alimenta a prostituição, aumentando novamente a demanda por tráfico sexual. Será que nos damos conta do que estamos fazendo? Toda vez que um homem ou uma mulher vê pornografia online está contribuindo, na privacidade do seu computador, para um ciclo de escravidão sexual. Estamos abastecendo uma indústria que escraviza as pessoas ao sexo para satisfazer nosso prazer sexual na sala de estar, no escritório e no celular. Dá para perceber o tamanho da ironia aqui? Um levantamento sucinto d" ambiente universitário em nossa cultura revela um ativismo zeloso contra a escravidão no mundo todo. Os estudantes assistem a documentários, ouvem palestrantes, promovem caminhadas e
corridas para fins de caridade e
levantam fundos para ajudar a pôr fim ao tráfico de pessoas. Enquanto isso, cerca de 90% dos estudantes do sexo masculino e mais de 30% das estudantes veem pornografia em seus quartos, apartamentos e no celular.1s E· isso na- o se limita aos campi seculares ou a ativistas não cristãos. De acordo com um estudo recente sobre faculdades cristãs evangélicas, aproximadamente 80% dos alunos da graduação nessas faculdades haviam visto pornografia na internet no ano anterior e mais de 60% viam toda semana.19 A hipocrisia é atordoante e a conclusão é clara. Não importa quantos X vermelhos desenhemos em nossas mãos para simbolizar a necessidade de dar um basta à escravidão: se essas mesmas mãos clicam em sites pornográficos e deslizam o cursor do mouse para ver as fotos e os vídeos da página, no fundo, somos uma fraude. Todas as vezes que sucumbimos à pornografia, negamos a verdade preciosa do evangelho de que todo homem e toda mulher têm uma dignidade inerente, que não deve ser aliciada nem vendida em troca de sexo, mas deve ser valorizada e apreciada como algo excelente aos olhos de Deus. As pessoas não são objetos ou seres inferiores a serem usados e abusados em troca de prazeres egoístas, sexuais e sensuais. Elas são igualmente portadoras da imagem do Deus que as ama e cuida delas. Podemos zombar de como aqueles frequentadores de igreja dos tempos anteriores à Guerra Civil justificavam os escravos que tinham em suas propriedades, mas será que não somos perigosamente como eles, quando nos envolvemos com pornografia dentro de casa (e promovemos a escravidão sexual a que ela se acha indissociavelmente atrelada)?
COMBATENDO COM O EVANGELHO Combatemos a escravidão primeiro crendo no evangelho - compreendendo que somente o bom, santo e amoroso Deus Criador é Senhor de todas as pessoas. Prosseguimos com a aplicação do evangelho-
vivendo-se a verdade segundo a qual todos foram feitos à imagem de Deus e, portanto,
devem ser respeitados e jamais escravizados. Combater a escravidão requer que proclamemos o evangelho que façamos tudo o que pudermos para dizer aos que vivem na mais completa angústia que há esperança verdadeira em Jesus Cristo. Isso nos leva à realidade chocante do modo pelo qual o
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evangelho lida com a escravidão. Na Escritura, Deus toma a escravidão, um fruto evidente do pecado no mundo, e a transforma em uma imagem poderosa da sua salvação para o mundo. O âmago do evangelho propriamente dito é a pessoa de Jesus Cristo, que, embora plenamente divino, "esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens" (Fp 2.7, HCSB, ênfase minha). A palavra escravo aqui - dou/os- vem da mesma raiz que as palavras usadas em outros textos do Novo Testamento para se referir a escravos que tinham senhores. De modo bastante literal, a Bíblia diz que Jesus se tornou escravo da humanidade para salvá-la. Quando lemos essas palavras, não podemos senão imaginar Jesus, pouco antes de ir para a cruz, amarrando sua túnica ao corpo, ajoelhando-se e lavando os pés dos discípulos (veja Jo 13). As palavras que dissera anteriormente a eles certamente ecoaram em suas mentes: "Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a vida em resgate de muitos" (Me 10.45). Essa é a essência do evangelho. O clímax da mensagem cristã consiste em que o Senhor do mundo todo se tornou servo desse mundo. Deus veio a nós m carne, como homem, tornou-se semelhante a nós sob todos os aspectos (exceto pelo pecado). Ele caminhou entre nós neste mundo de pecado e de dores e sofreu por nós. Morreu na cruz em nosso lugar e por nosso pecado; ressuscitou dos mortos com uma oferta de vida eterna a todos os que o confessam como Senhor. O evangelho cristão não descreve Deus como um Senhor que distribui uma lista de exigências para homens e mulheres executa- rem como escravos, a fim de agradá-lo e pacificá-lo. Ao contrário, o evangelho descreve Deus como o Senhor que diz: "Vou encontrar vocês onde estão, na profundeza do seu pecado e do seu sofrimento, e os salvarei. Eu os restaurarei. Vou redimi-los -comprarei vocês com o sacrifício da minha vida -para que, um dia, estejam livres de todo pecado e de todo sofrimento". Esse evangelho revela o que (ou de quem) Maliha e Hannah mais precisam. Naquele restaurante com cabines ou às margens da rodovia interestadual, M aliha e Hannah não precisam de boas-novas vindas de deuses que as condenam em seu pecado e fazem exigências para sua salvação. Elas e outras jovens nessa mesma situação, quando chegarem à idade adulta, já terão sido estupradas literalmente milhares de vezes. Elas não necessitam de um Salvador que fica à espera delas. Elas necessitam de um Salvador que vá até elas, como um pastor que deixa as 99 ovelhas em busca de uma só, como uma mulher que vira do avesso a casa à procura de uma moeda perdida, e como um pai que corre ao encontro do filho rebelde (veja Lc 15). Em meio à sensação de imundície sem fim, elas precisam de um Salvador que olhe para elas com olhos de misericórdia e diga: "Purificarei vocês" (veja Lc 5.12-14). Com um sentimento angustiante de vergonha, elas precisam de um Salvador que restaure sua honra nesta terra e renove sua esperança por toda a eternidade. É desse mesmo Salvador que necessitam os traficantes. Os homens e as mulheres por trás da indústria do tráfico sexual precisam compreender a natureza severa do seu pecado e o juízo divino iminente sobre ele. Ao mesmo tempo, precisam compreender o sacrifício gracioso de Deus para resgatar suas
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almas. Necessitam de um Salvador que perdoe seus pecados e transforme sua vida, para que não mais tirem proveito dessas jovens; ao contrário, para que passem a defendê-las. Só o poder do evangelho pode realizar esse tipo de mudança nesses corações maus. O mesmo se pode dizer dos homens e mulheres que usam essas jovens na prostituição e assistem a seus vídeos pornográficos. No fim das contas, você e eu, todos nós, precisamos desse Salvador. Precisamos de que Deus, em sua misericórdia, nos sirva com sua salvação e nos transforme de dentro para fora, para que o sigamos como único Senhor de tudo e assim possamos amar as pessoas à nossa volta, reconhecendo a dignidade que ele lhes concedeu. Quando o evangelho transforma nossa vida, ele muda o jeito de interagirmos com nossa cultura. Desse modo, como diz o estudioso Murray J. Harris, o evangelho lança "a carga explosiva: Dr Jack viajou pela primeira vez ao Nepal para fazer uma expedição por meio de trilha. Ele queria subir o Himalaia e investiu tempo e dinheiro nos preparativos dessa aventura. Quando começou a subir sua trilha, a primeira parada para descanso o colocou em contato mm uma infinidade de viajantes que subiam e desciam as montanhas. Ele observou alguns homens que viajavam com um grupo de meninas. Ao conversar com eles, disseram-lhe de bom grado o que faziam. Estavam levando aquelas jovens para a fronteira, lá seriam entregues para serem posteriormente vendidas em uma das grandes cidades da Índia para prostituição sexual. Jack ficou perplexo. Ao olhar para os rostos daquelas jovens, não soube o que fazer. Começou a chorar. Em suas palavras, "não foi um choro superficial. Foi uma coisa profunda, muito profunda, orno um poço cujo fundo eu sinceramente ainda não consegui encontrar". Naquele momento, ele se sentiu mais impotente do que jamais se sentira. Jack se deu conta de que não havia nada que pudesse fazer por aquelas meninas, mas havia algo que podia fazer por outras como elas. Em suas palavras, "decidi transformar minhas lágrimas em tática".
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Ele fez as malas imediatamente e desceu a montanha. Isso foi há dez anos. Desde então, Jack consagrou a vida a levar a esperança do evangelho àquelas montanhas do Himalaia. Entre outras coisas, o ministério liderado por ele abriga uma coalizão de quarenta [ ..]. que [...] em última análise [...] leva à detonação e à destruição organizações centradas no evangelho que trabalham juntas no Nepal da escravidão" completamente.20
ESPERANÇA E CURA Fiz inúmeras vezes referência ao Nepal neste livro e, no capítulo anterior, falei de Jack, um amigo meu que vive e tem um ministério combatendo o tráfico sexual de diversas maneiras, entre elas, por meio da educação, prevenção, resgate e restauração. A guerra contra 0 tráfico sexual é extremamente complexa e extraordinariamente difícil, mas vale a pena travá-la sem dúvida alguma, por amor a incontáveis Mahilas necessitadas da esperança do evangelho.
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Essa guerra também está sendo travada em favor de incontáveis Hannahs em lugares como Birmingham. Penso em Tajuan, uma mulher que foi explorada sexualmente aos 15 anos por seu namorado, que se tornou seu cafetão. O tráfico a levou tantas vezes a Birmingham que a cidade se tornou seu lar. Contudo, pela graça de Deus, ela foi liberta da indústria do tráfico sexual. Graças à transformação operada pelo evangelho em sua vida, Tajuan hoje dá abrigo e ajuda a mulheres exploradas sexualmente em Birmingham, as quais não apenas estão sendo resgatadas do tráfico sexual, mas também estão experimentando a restauração através da esperança e da cura encontradas unicamente em Cristo. Para o cristão, é a imagem de Cristo no evangelho que nos compele a lutar pela detonação e destruição da escravidão no mundo. Ele é o Salvador que busca, e como homens e mulheres que se identificam com ele, devemos buscar os escravizados. Não podemos ficar quietos nem parados. Não temos essa opção. Somos constrangidos a orar, a doar e a trabalhar para que os escravos do sexo sejam libertos de seus captores e restaurados, ganhando vida nova. Em meio a nossas orações, ofertas e trabalho, somos constrangidos a proclamar Cristo, porque só ele pode nos libertar totalmente. Somos constrangidos a lutar de todas essas maneiras, tendo na mente a verdade do evangelho, levando no coração o poder do evangelho e trazendo nas mãos o amor do evangelho.
PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA Ore Peça a Deus que: •
Intervenha e resgate as pessoas no mundo todo que estão sendo usadas como escravas sexuais.
•
Abra os olhos dos cristãos e das igrejas para o drama da escravidão sexual.
•
Salve os que praticam a escravidão sexual ou execute a justiça
à luz do pecado deles. Participe Em oração, considere dar os seguintes passos: •
Apoie um ministério que lida com o problema da escravidão sexual; pense como você pode
participar dessa obra. •
Conscientize os membros ou a liderança de sua igreja a respeito do problema, de modo que
possam todos orar pelas vítimas da escravidão sexual e criar estratégias para ajudá-las. •
Ligue e escreva para seus representantes políticos insistindo para que eles se oponham ao
tráfico sexual, bem como à indústria da pornografia. Proclame Reflita sobre as seguintes verdades da Escritura:
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•
Salmos 24.1: "Ao SENHOR pertencem a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele
habitam''. •
Salmos 82.4: "Livrai o pobre e o necessitado, livrai-os das
mãos dos ímpios". •
Salmos 7.11: "Deus é um juiz justo, um Deus que manifesta indignação todos os dias".
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CAPÍTULO 6
UM MISTERIO PROFUNDO: O EVANGELHO E O CASAMENTO
Definir os termos é extremamente importante. Eu estava pregando na Alemanha quando, um dia, um grupo de novos amigos me perguntou: -
Você gostaria de jogar futebol conosco hoje à tarde?
Gosto de futebol, tanto de assistir quanto de jogar. No ensino médio e na faculdade, meus amigos e eu costumávamos passar nossos fins de semana jogando. -
Contem comigo -
disse a eles, animado.
Para minha surpresa, quando cheguei ao campo, não encontrei um gol de traves altas nem tampouco a bola marrom de extremidades pontiagudas. Em vez disso, vi dois gols com redes e uma bola redonda preta e branca. Foi aí que me lembrei: o futebol na Europa (e na maior parte do mundo) é muito diferente da minha compreensão americana de futebol. O que o resto do mundo chama de futebol nós americanos, chamamos de soccer. Futebol. O termo é o mesmo, mas a definição é diferente. definição dos termos afeta as decisões que tomamos. O futebol é 11m exemplo simples e sem maiores consequências disso que estou falando (embora se eu soubesse que havia concordado em jogar futebol com um grupo de amigos europeus especialistas no assunto, teria entrado em campo um pouco menos entusiasmado!).Contudo, há também outros exemplos mais importantes e cujas consequências são muito mais significativas do que esse. Conforme vimos no capítulo 3, a definição de alguém para ser humano tem ramificações muito sérias para sua visão do aborto. A definição de vocábulos desse tipo determinada pela cultura tem grande influência na forma pela qual as pessoas não apenas tomam decisões, mas também conduzem sua vida nessa cultura. Como então se define casamento? Essa pergunta encontra-se no centro de uma revolução moral em nosso tempo e cultura. Durante milênios, as civilizações definiram o casamento como a união exclusiva e permanente entre um homem e uma mulher. Há duas décadas, os políticos dos Estados Unidos de todos os partidos votaram em defesa dessa definição de casamento ao aprovarem a Lei em Defesa do Casamento (Defense of Marriage Act). Em junho de 2013, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou algumas cláusulas fundamentais dessa lei, abrindo caminho para a redefinição completa do casamento em nossa cultura. Nos dias que se seguiram, os estados começaram oficialmente a definir o casamento em termos diferentes e, agora, notadamente permitindo que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo atendesse também pelo nome de casamento. Como se não bastasse a sentença da Suprema Corte como mudança de paradigma, o voto majoritário redigido pelo juiz Anthony Kennedy asseverou que homens e mulheres que votassem a favor da Lei em Defesa do Casamento assim se comportavam com o intuito de prejudicar terceiros. Entre os votos minoritários, os juízes John Roberts e Antonin Scalia responderam que, para a maior
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parte da corte os defensores do casamento tal como definido há milênios eram'"preconceituosos"e tinham o intuito de"menosprezar","desmerecer","humilhar" e"ferir" os casais formados por pessoas de mesmo sexo. Numa decisão de grande efeito, a Suprema Corte dos Estado Unidos redefiniu, portanto, "um aspecto do casamento que jamais fora questionado em nossa sociedade durante a maior parte de sua existência - na verdade, jamais fora questionado em nenhuma sociedade durante praticamente toda a história da humanidade", e considerou, ao mesmo tempo, os proponentes do casamento tradicional como "inimigos da raça humana".1 A decisão da corte em 2013 representa apenas parte de uma tendência muito mais ampla de distanciamento do casamento convencional em nossa cultura1 algo que vem ocorrendo já há muitos anos. Embora seja difícil obter dados precisos, os números do censo estimam que praticamente 50% de todos os primeiros casamentos terminarão em divórcio.2 Isso, é claro, se o casal decidir se casar. O número de casais que vivem juntos em nossa cultura praticamente quadruplicou nos últimos 30 anos, à medida que um número maior de solteiros adia ou descarta completamente a ideia do casamento. 3 A união matrimonial está claramente em declínio. De acordo com Mark Regnerus, nos últimos 40 anos "o número de mulheres que constituem família nos Estados Unidos sem se casar cresceu 65%, ao passo que o número de famílias constituídas por homens nessa mesma situação disparou saltando para 120%. Como consequência, menos de 50% de todas as famílias americanas atualmente são constituídas por casais casados".4 Todas esses fatos nos levam a indagar: "Será que o casamento é realmente tão importante assim? E qual é o problema em redefini-lo? Será que devemos mesmo afirmar que é errado dois homens ou duas mulheres se casarem? Não é errado (talvez até mais odioso) negar a dois homens ou a duas mulheres o direito de amar um ao outro dessa forma?". Nas palavras de um líder "cristão" que advoga a redefinição do casamento, "Deus está nos impelindo na direção de uma conscientização maior de que precisamos de mais amor [...] Precisamos de mais pessoas que estejam comprometidas umas com as outras. Não é bom que estejamos sós. Portanto, este é um momento importante em que, creio eu, muitos de nós estão se dando conta de que o jeito antigo de ver as coisas não funciona'' .5 Ora, será que a discussão do casamento em nossa cultura é simplesmente uma questão de passar do "jeito antigo de ver as coisas " para um jeito novo de vê-las? O casamento é meramente um tradição aberta a mudanças com o passar do tempo? Ou o casamento é uma instituição ordenada de modo a permanecer inalterável ao longo do tempo? Mais importante do que essas perguntas é como os evangelhos e aplicam ao casamento. O que disse o Deus Criador sobre o casamento? Será que nos afastamos do que ele disse? A morte de Cristo na cruz tem alguma relação com o modo pelo qual definimos o casamento? E o que significa para os seguidores de Cristo viver em uma cultura que, com frequência, define o casamento de forma diferente da Bíblia? Se fizermos com sinceridade essas perguntas, deveremos estar prontos para respostas surpreendentes. Sobretudo, estar preparados para combater a cultura à nossa volta de forma significativa.
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Nossa compreensão do casamento depende da nossa compreensão da sexualidade. De acordo com nossa cultura, as diferenças sexuais são meramente construtos sociais. É verdade que há
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distinções física entre homens e mulheres, mas até isso pode ser mudado, se assim o preferirmos. Fora isso, homens e mulheres são iguais - e quando dizemos iguais, queremos dizer idênticos. Consequentemente, faz muito sentido que um homem se case com outro homem ou que uma mulher se case com outra mulher, assim como faz sentido que um homem se case com uma mulher. Não há diferença alguma, uma vez que somos idênticos - segundo diz nossa cultura. Mas o que diz Deus? Os primeiros dois capítulos do Gênesis apresentam relatos complementares da criação humana. Gênesis 1 nos diz: "E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (v. 27). A dignidade de homens e mulheres é demonstrada desde o início. Nada mais em toda a criação, nem mesmo o anjo mais majestoso, é retratado como alguém "criado à imagem de Deus". Somente os homens e as mulheres são como Deus, mas não no sentido de que compartilhamos de todas as qualidades divinas. Ele é infinito; nós somos finitos. Ele é divino; nós, humanos. Ele é ' espírito; nós, carne. Contudo, de um modo que nada mais na criação é capaz, homens e mulheres partilham certas capacidades morais, intelectuais e relacionais com Deus. Temos o poder da razão, o desejo de amar, a capacidade de falar e a facilidade de tomar decisões morais. Mais importante de tudo, homens e mulheres têm a oportunidade de se relacionarem com Deus de um modo que cachorros e gatos, montanhas e mares e até mesmo anjos e demônios não têm, logo depois de criar o homem e a mulher, Deus imediatamente os abençoou e iniciou um relacionamento com eles, os únicos seres em toda a ordem criada que se assemelham ao Criador. É desse ponto que qualquer diálogo biblicamente informado que homens e mulheres deve começar: tanto os homens quanto mulheres foram, ambos, criados com a mesma dignidade perante Deus e um diante do outro. Analisamos anteriormente o que essa realidade significa para a questão da escravidão, no capítulo 5, mas devemos também analisar o que essa mesma dignidade significa para o modo de compreender a sexualidade. Homens e mulheres compartilham ambos do valor inexprimível de serem criaturas formadas à imagem do próprio Deus. Desse modo, Deus se pronuncia, em alto e bom som, desde o princípio da Escritura, contra todo tipo de superioridade ou dominação masculina ou feminina. Perto do fim da Escritura, Deus se refere a homens e mulheres como herdeiros "da graça da vida" (lPe 3.7). Em conformidade com o projeto de Deus, os homens jamais devem ser vistos como melhores do que as mulheres, e as mulheres jamais devem ser vistas como melhores do que os homens. Deus abomina qualquer tratamento dispensado a homens e mulheres como se fossem objetos inferiores para serem usados e sofrerem abusos. Jamais, em toda a eternidade, nenhum dos sexos será superior ao outro. Ninguém deve se sentir superior ou inferior pelo fato de ser homem ou mulher. Ambos foram lindamente - e de igual modo - criados à imagem de Deus. Mas não são idênticos. A dignidade é igual, mas não elimina as diferenças. Vemos de modo claro em Gênesis 1 que Deus cria o ser humano, homem e mulher, e o faz por uma razão. Logo depois de abençoá-los, ele lhes ordena:"... Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra..." (Gn 1.28). Essa ordem somente é possível em virtude da peculiaridade do homem e da mulher. A multiplicação seria impossível se Deus tivesse criado os seres humanos homem e homem ou mulher e mulher. O desígnio singular de Deus permite a ambos cumprir o que o Criador lhes ordenou. Além disso, esse desígnio divino refere-se a muito mais do que a capacidade de se reproduzir (por mais importante que isso seja). Há algo maior do que mero acidente biológico ou adaptação volucionária em processo aqui. Deus cria o homem e a mulher para que desfrutem da igualdade que compartilham e, ao mesmo tempo, para que se complementem em suas várias diferenças.
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Em Gênesis 2 vemos um quadro mais detalhado de como Deus, no princípio, cria o homem. Ele o forma do barro, sopra a vida em suas narinas e o coloca no Jardim do Éden. Deus faz com que os animais passem diante de Adão e lhe dá a incumbência de dar nome a cada um deles. O objetivo dessa cena é deixar claro ao homem que ele está só - não há ninguém semelhante a ele. Qyando olha para cada animal e pensa no nome que dará a cada um conforme sua natureza, ele se dá conta de que "nenhum deles combina com minha natureza". O homem então se recolhe, em solidão, e pela primeira vez na Bíblia lemos:"... Não é bom..." (Gn 2.18). Tenha em mente que isso acontece antes da entrada do pecado no mundo. Ao longo de Gênesis 1, há um intercâmbio constante entre a criação terrena e a declaração divina. Deus cria a luz e diz que é boa. Deus cria a terra e a água, e diz que são bons. Deus cria o céu e os planetas, os animais e as plantas, e diz que é tudo bom. Contudo, uma coisa não é boa: o homem está só. Por isso Deus diz: "Eu lhe farei uma ajudadora que lhe seja adequada". Quando o homem adormece, Deus faz a primeira cirurgia do mundo: retira uma costela do homem. É óbvio que ele não precisava fazê-lo. Assim como ele criou o homem do pó, também poderia criar a mulher da mesma maneira. No entanto, ele não o fez. Em vez disso, Deus tirou uma costela do lado do homem e formou a mulher. Quando o homem abriu os olhos, ficou surpreso, para dizer o mínimo. As primeiras palavras dele registradas são pura poesia, pois o homem exclama:
Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; ela será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada (Gn 2.23).
Não desprezemos a grandeza dessa cena. Deus faz com que o homem perceba que precisa de alguém igual a ele, criado com a mesma natureza dele, em bora diferente, para ajudá-lo a fazer coisas que jamais poderia fazer sozinho. Isso é precisamente o que Deus dá ao homem ao criar a mulher, e o palco está pronto, então, para a instituição do casamento. No versículo imediatamente seguinte lemos: "Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se uniráà sua mulher, e eles serão uma só carne" (Gn 2.24). Eis a beleza do desígnio de Deus para o homem, para a mulher e para o casamento. Duas pessoas dignas, ambas moldadas à imagem do seu Criador. Duas pessoas diferentes, feitas especialmente para complementar uma à outra. Um homem e uma mulher moldados por Deus para ser uma só carne, um vínculo físico entre dois corpos onde o ponto de união mais profundo encontrase no ponto de sua maior diferença. Um matrimônio marcado pela unidade na diver- sidade, igualdade e variedade e na satisfação pessoal por meio da consumação compartilhada.
CRISTO E A IGREJA
Nada disso é aleatório. Desde o princípio dos tempos, Deus planejou o casamento desse modo porque tinha um propósito. Tal propósito não foi plenamente revelado até que Jesus morresse na cruz, ressurgisse dos mortos e instituísse a igreja. Depois de tudo isso, a Bíblia olha novamente para a instituição do casamento e afirma : "Esse mistério (do casamento) é grande; mas eu me refiro a Cristo e à igreja" (Ef 5.32). <2.!iando Deus criou o homem, e depois a mulher, e a seguir os uniu em um relacionamento chamado casamento, ele não estava simplesmente jogando dados, "tirando no
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palitinho" ou jogando uma moeda. Ele estava pintando um quadro. Seu objetivo desde o início era ilustrar seu amor pelas pessoas. Essa revelação deixou perplexos homens e mulheres do primeiro século e deveria nos deixar chocados no século 21. Além disso, ela é importante para o modo pelo qual as pessoas compreendem o casamento em qualquer cultura. Sejam cidadãos greco-romanos daqueles tempos ou cidadãos do mundo de hoje, a maior parte das pessoas vê o casamento como meio de realização pessoal acompanhado de satisfação sexual. O objetivo do homem ou da mulher é encontrar um companheiro que os complete. Nesse sentido, o casamento é um fim em si mesmo, e a consumação sexual é uma celebração de tal realização. Contudo, a Bíblia ensina que Deus criou o casamento não como um fim em si mesmo, mas como meio para um fim. Embora a alegria pessoal e o prazer sexual pessoal façam parte do plano de Deus para o casamento, o propósito divino não para aqui, porque Deus criou o relacionamento do matrimônio com o intuito de apontar para outra realidade maior. O casamento foi instituído por Deus com o objetivo de dar ao mudo um exemplo do evangelho. Assim com uma fotografia representa uma pessoa ou um fato em um ponto específico da história, o casamento foi designado por Deus para refletir uma pessoa e um acontecimento no momento mais importante da história dela. O casamento, de acordo com Efésios 5, representa Cristo e a igreja. Ele é um retrato vivo feito pelo Pintor Divino que deseja que o mundo saiba de seu amor por seu povo, tão grande que enviou seu Filho para morrer por seus pecados. Na imagem do casamento, Deu s quis mostrar o amor de Cristo pela igreja e o amor da igreja por Cristo na tela da cultura humana. De que modo então esse quadro foi pintado? A Bíblia explica isso ao dizer que "o marido é o cabeça da mulher, assim como Cristo é o cabeça da igreja, sendo ele mesmo o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres sejam em tudo submissas ao marido" (Ef 5.23,24). Em outras palavras, Deu s criou os maridos para refletirem o amor de Cristo pela igreja no modo pelo qual eles se relacionam com suas esposas, e criou as mulheres para refletirem o amor da igreja por Cristo no modo pelo qual elas se relacionam com seus maridos. E, no entanto, isso é que é ser contracultural! Ou talvez, melhor dizendo, isso é que é ser politicamente incorreto! Dizer que "o marido é o cabeça da esposa? Ou que as esposas devem se submeter a seus maridos? Você está falando sério?" Deus é sério, e ele é bom. Em nossa compreensão limitada, ouvimos palavras e frases como as de Efésios 5 e nos recolhemos ultrajados. No entanto, se pausarmos apenas por um momento para refletir sobre a imagem do casamento da perspectiva do evangelho, nossa reação talvez seja diferente. Ouando a Bíblia afuma que "o marido é o cabeça da mulher, assim como Cristo é o cabeça da igreja", devemos imediatamente perguntar: "O que significa Cristo ser o cabeça da igreja?". A Bíblia responde dizendo: "Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, a fim de santificá-la, tendoa purificado com o lavar da água, pela palavra, para apresentá-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha, nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e ' irrepreensível" (Ef 5.2527). Que quadro impressionante! Para Cristo, ser o cabeça da igreja é dar tudo o que possui pelo bem da igreja. Cristo assume a responsabilidade pela beleza de sua noiva, pronto para pôr de lado seus direitos e disposto a entregar a própria vida por seu esplendor. Esse é o projeto de Deus para o marido: um homem que dá tudo o que tem pelo bem de sua esposa. Um homem que assume a responsabilidade pela beleza de sua noiva, pronto para pôr de
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lado seus direitos e disposto a entregar a própria vida pelo esplendor dela. Deus quis que o marido fosse o cabeça da esposa desse modo, de forma que, no amor do marido por sua esposa, o mundo visse a imagem do amor de Cristo por seu povo. Penso em Don, um marido que vi servir à sua esposa, Gwen, que sofria de câncer terminal. Nos anos que precederam o diagnóstico de Gwen, era evidente que Don tratava com carinho a mulher. Contudo, quando ela iniciou a jornada de 13 meses que resultaria em sua morte, vi Don entregar sua vida, de todas as formas que pôde, para servi-la. Ele caminhava ao lado dela, ele a servia, levava a esposa às consultas e atendia cada uma de suas necessidades. Ele se colocou de lado, priorizando-a acima de sua própria vida e de um modo que retratou poderosamente o modo pelo qual Cristo se anulou na cruz, priorizando sua igreja acima da própria vida.6 De igual modo, "assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres sejam em tudo submissas ao marido" (Ef 5.24). Logo que ouvimos o termo submissão juntamente com o quadro anterior de liderança, pensamos imediatamente em inferioridade e superioridade, subordinação e dominação. Contudo, isso nem de longe se aproxima do que a Bíblia quer dizer quando usa esses t ermos. Confor.me vimos, Deus deixou claro desde o início que os homens e as mulheres são iguais em dignidade, valor e importância. Submissão não significa desprezar o valor da vida de outra pessoa. Ao contrário, o termo bíblico significa render-se ao próximo em amor. Tal submissão ao longo da Escritura é um componente maravilhoso,senão inevitável, das relações humanas. Sou pai, por exemplo, e tenho quatro filhos. Eles estão em uma posição de submissão em seu relacionamento comigo (embora, infelizmente, nem sempre reconheçam isso!). Contudo, essa é uma boa posição para eles, uma vez que eu os amo, guio, sirvo, protejo e lhes dou sustento. Sua submissão a mim de modo algum implica que sou superior a eles. Ao contrário, sua submissão mostra que confiam em meu amor por eles. Essa submissão não se limita aos relacionamentos humanos. Também se aplica ao divino. A Bíblia descreve um Deus revelado em três pessoas: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo. Essas três pessoas da Trindade são igualmente divinas. O Pai é plenamente Deus, o Filho é plenamente D eus e o Espírito é plenamente Deus. Eles são todos igualmente dignos de adoração eterna e não há uma pessoa na Trindade que seja superior a outra. Contudo, o Filho se submete ao Pai. Jesus diz:"... A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra" (Jo 4.34). Diante da cruz, Jesus suplica:"... Pai, se queres, afasta de mim este cálice...". Em seguida, porém, ele ora:"... todavia, não seja feita a minha vontade, mas a tua" (Lc 22.42). Em outra ocasião, não menos significativa, em que o marido é descrito como cabeça da esposa, o Pai também é descrito como ca- beça do Filho:"... Cristo é o cabeça de todo homem; o homem, o cabeça da mulher; e Deus, o cabeça de Cristo" (lCo 11.3). Certamente isso não significa que Deus Pai domine e que Deus Filho seja cruelmente forçado à subordinação compulsória. Ao contrário o Filho se submete de bom grado ao Pai no contexto de um relacionamento íntimo. É isso, portanto, o que a Bíblia quer dizer quando fala de uma igreja que se submete a Cristo. Como seguidores de Cristo na igreja, estamos em posição de submissão a Cristo. Isso é ruim? Certamente que não. É ótimo! Cristo ama, lidera, serve, protege e nos sustenta, e nós alegremente nos submetemos a ele no contexto de um relacionamento mútuo de intimidade. Deus criou o casamento para mostrar esse relacionamento. Deus quer que as pessoas saibam que segui-lo não é se submeter relutantemente a uma divindade dominadora. D eus anseia que as pessoas saibam que segui-lo é uma questão de alegre submissão a um Senhor de amor. Ele chama a
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esposa a se submeter à liderança amorosa de um marido que entrega sua vida para o seu bem. À medida que esse retrato do casamento é mostrado ao mundo todo, Deus mostra a homens e mulheres que podem confiar nele para serem liderados por seu amor. Penso em Clint e Katie, nossos amigos que recentemente se mudaram com a família para outra cidade. Clint é médico e surgiu a oportunidade de trabalhar em uma clínica com outro colega, em um lugar completamente diferente. Quando ele tocou no assunto com Katie, ela hesitou. Tinha muitas preocupações e uma lista de dúvidas com respeito a se mudarem. Clint ouviu a esposa, se solidarizou com suas preocupações e lidou com as indagações dela com sabedoria e cautela. Depois de muita conversa e muita oração, Clint acreditava que Deus os estava levando a se mudar, e Katie apoiou sua decisão. Mas não porque ela quisesse se mudar. Na realidade, ela ainda estava em dúvida, ainda tinha preocupações e questionamentos sobre o desconhecido e, se dependesse só dela, não teria se mudado. No entanto, ela confiava na liderança amorosa de Clint sobre sua vida e sobre a vida de sua família; por isso mudou-se alegremente para onde ele os estava levando. Muita gente em nossa cultura diria que Katie foi fraca; alguns diriam até que ela deveria ter ficado, com ou sem Clint. Contudo, Katie sabe que Deus planejou que seu casamento fosse um exemplo do que acontece quando as pessoas confiam na liderança amorosa de Deus e seguem alegremente para onde quer que ele as leve, mesmo que não compreendam perfeitamente o que ele está fazendo. Ela, por sua vez, sabe que Clint continuará a amá-la e a servi-la em meio aos desafios que enfrentarão para se ajustar a um novo lugar. Ao fazê-lo, ele demonstrará como Cristo ama seu povo. É por isso que vale a pena defender o casamento bíblico em face da redefinição a que a cultura o submete, e é por isso que vale a pena ser um exemplo de casamento bíblico, mesmo quando isso signifique confrontação cultural. Deus estabeleceu o casamento no início da criação para ser fonte primordial por meio da qual ele exemplifica o evangelho aos olhos do mundo. Quando os maridos sacrificam a vida por suas esposas - amando-as, liderando-as, servindo-as e provendo seu sustento -, o mundo tem um vislumbre da graça divina.Os pecadores verão que Cristo foi levado à cruz, onde sofreu, sangrou e morreu por eles, para que pudessem experimentar a salvação eterna por meio de sua submissão a ele. Eles verão também no relacionamento da esposa com o mari- do que tal submissão não é um fardo que se tem de suportar. Os observadores perceberão uma esposa que experimenta, com alegria e continuamente, o amor sacrificial do seu esposo por ela e então, com alegria e espontaneamente, submete-se em amor altruísta a ele. Nessa representação visível do evangelho, o mundo notará que seguir a Cristo não é uma obrigação. Ao contrário, é um meio para o deleite pleno, eterno e absoluto.
A DISTORÇÃO DO DESÍGNIO DIVINO
Infelizmente, não é esse retrato do casamento que o mundo vê com frequência. E a principal razão disso não se deve às leis dos vários estados ou mesmo à decisão da Suprema Corte. A razão primordial por que o evangelho não é evidente nos casamentos de nossa cultura se deve ao fato de que o evangelho não é evidente no casamento dentro da igreja. Não estou falando aqui apenas dos índices de divórcio e da padronização da união estável entre os que professam o cristianismo. É difícil calcular os dados dessa realidade por uma série de razões,7 porém os números não dariam conta das histórias que estão por trás do que se vê - histórias de como o plano de Deus e o modelo do casamento que deveria manifestar o evangelho foram
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negados, distorcidos e menosprezados na vida dos que dizem seguir a Cristo. Nas palavras de Francis Schaeffer, O evangelicalismo está profundamente impregnado do espírito mundano desta nossa era no que diz respeito ao casamento e à moralidade sexual[...] Há os que chamam a si mesmos de evangélicos, mas fazem parte da liderança evangélica que nega completamente o padrão bíblico de relacionamento entre homem e mulher em casa e na igreja. Há muitos que aceitam a ideia de igualdade sem distinção e põem de lado deliberadamente o que as Escrituras ensinam sobre o assunto. Contudo, nem isso deveria ser surpreendente à luz dos primeiros capítulos da Bíblia. O pecado ocorreu pela primeira vez não como reação a uma tentação genérica, mas como resposta a um teste específico de gênero. O intento da serpente ao enganar o casal em Gênesis 3 foi introduzir uma subversão deliberada do desígnio de Deus em criar o casal. Em Gênesis 2, antes mesmo de Deus haver criado a mulher, ele diz ao homem que não coma do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (veja Gn 2.1_6,17). Assim, Deus dá ao homem a responsabilidade de cumprir a ordem divina. Contudo, em Gênesis 3, a serpente se aproxima não do homem, mais da mulher. Ela conversa com Eva, enquanto Adão nada faz (veja Gn 3.1-6). Em vez de assumir a responsabilidade de proteger a si mesmo e à mulher, o homem fica ali, calado - como um covarde. Então, quando Deus o confronta em seu pecado, o homem tem a audácia de culpar a esposa (veja Gn 3.12). Em tudo isso, o mundo testemunha a primeira abdicação covarde da responsabilidade atribuída ao homem de amar, servir, proteger e cuidar de sua esposa. Hoje, histórias de abdicação covarde como essa são muito comuns entre homens que se dizem cristãos professos e seu casa- mento - maridos que se recusaram a assumir a responsabilidade de amar, servir, proteger e sustentar suas esposas em todos os aspectos possíveis. É claro que através do trabalho o homem pode, com justiça e de forma responsável, proporcionar o sustento das necessidades físicas da esposa, mas se ele não for cauteloso, esse mesmo trabalho muitas vezes o impedirá de dar a ela o sustento espiritual, emocional e relacional de que ela necessita. O marido chega em casa e não consegue se separar do celular ou do e-mail. Liga a tevê, surfa na internet ou vai mexer com qualquer coisa na garagem - seja lá o que for, ele consegue estar fisicamente presente na casa ao mesmo tempo que cria uma distância emocional da esposa. Ele jamais pergunta como ela se sente e não sabe o que se passa em seu coração. Ele pode se achar homem por causa das coisas que faz no trabalho e do que conquistou na vida, mas na verdade está agindo como uma pessoa fraca que abdicou da responsabilidade mais importante do mundo: deixou de ser o líder espiritual da esposa. Essa é a história de muitos homens que decidiram se casar, para não falar de outros que simplesmente resolveram ignorar o casa- mento. Não estou me referindo aqui àqueles a quem Deus chamou para maximizar a vida de solteiro para a proclamação do evangelho (veja l C o 7), dos quais tratarei em breve. Estou me referindo aos homens na faixa dos vinte e dos trinta anos, adolescentes perpétuos, preocupados única e egoisticamente com eles mesmos e com seus desejos. É o caso, por exemplo, do sujeito que há dez anos está na faculdade e não se casou porque não tem ideia do que faria com uma esposa. Ou talvez de um sujeito que trabalha em tempo parcial e joga video game no tempo que lhe resta, amparando-se nos pais ou em outros da igreja para ajudá-lo a pagar suas contas. Ele está "tentando se encontrar", o que significa que não se responsabiliza por si mesmo e sem dúvida não quer se responsabilizar por nenhuma outra pessoa também. Ou, talvez, seja o caso de um sujeito que trabalha muito para progredir na vida, mas nunca separa tempo para refletir sobre como renunciar a si mesmo para entregar a vida pela esposa. Em todas as suas tentativas de ser bem-sucedido segundo os padrões da nossa cultura, ele não leva em conta de que modo Deus pode estar chamando-o a dedicar menos do seu tempo a uma carreira e mais a um casamento. Esse retrato distorcido da vida de solteiro torna ainda mais evidente a tendência dos homens de abdicar da responsabilidade que Deus lhes deu de amar a esposa de um modo que manifeste o amor de Cristo pela igreja.
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O pêndulo pode oscilar, porém, da abdicação covarde de um homem da responsabilidade que lhe cabe para com sua esposa ao abuso egoísta de autoridade sobre ela. Um dos efeitos do pecado em Gênesis 3 é a tendência do homem de exercer autoridade sobre sua mulher de um modo coercitivo e opressor, que menospreza a igualdade de dignidade da qual ambos são dotados. É como se o homem dissesse: "Muito bem, não serei um covarde; em vez disso, vou dominar meu casamento". Essa é uma das principais razões pelas quais a submissão e a liderança são termos tão impopulares e incômodos para nós hoje em dia - porque vimos as formas perigosas que tais ideias foram exploradas. No casamento, em especial, pensamos naquele homem que maltrata a esposa emocionalmente, verbalmente e até fisicamente para mostrar que está no controle; que usa egoisticamente a mulher para conseguir o que quer, quando quer, não importa como a esposa se sente ou de que modo é afetada. Não é dessa forma, é claro, que Cristo ama a igreja, e isso não é nem de longe o que a Bíblia deseja dizer com submissão e liderança. Contudo, é exata- mente isso o que muitos homens estão comunicando ao mundo no que diz respeito à submissão e à liderança. Os efeitos correspondentes na vida da mulher são evidentes. A esposa se vê suscetível a uma distorção pecaminosa da vontade divina para ela. Quando a mulher recebe a pena por seu pecado, em Gênesis 3.16, Deus lhe diz que, como consequência do pecado, não apenas seu marido será tentado a oprimi-la, como também ela terá a tendência de se opor a ele - de trabalhar contra ele e contra o papel que ele terá no casamento. A esposa estará propensa também a fazer o que deseja, a despeito do que seu marido disser ou fizer. "Ele não está no comando; eu é que estou", pensará ela no momento em que desafiar não somente seu marido, mas, em última análise, também a Deus. Você compreende como a obra de Satanás em Gênesis 3 constitui um ataque às bases não apenas da humanidade em geral, mas de forma específica ao homem, à mulher e ao casamento? Dá quase para imaginar o adversário rindo quando pensa: ''Agora criei uma confusão que atrapalhará para sempre o casamento deles" - uma confusão que também representará mal e impiedosamente o evangelho. O s maridos transitam entre a atitude de abdicar de sua responsabilidade de amar e a atitude de abusar de sua autoridade de líder. As esposas, por sua vez, não confiam em tal amor e desafiam a liderança dos maridos. Nesse processo, minam completamente o modo pelo qual o sacrifício misericordioso de Cristo na cruz constrange a igreja a uma alegre submissão.
CASAMENTO CONTRACULTURAL
Portanto, como o cristão deve contrapor-se à cultura na área do casa- mento? Certamente uma ação pessoal, e não política, será o ponto de partida. Evidentemente, nenhum de nós (inclusive eu) tem um casamento perfeito, e todos distorcemos o desígnio de Deus de alguma maneira, seja num casamento anterior, seja no atual, seja em pecados na vida de solteiro. O evangelho, porém, é a boanova para todos. Penso em Bob e Margaret, que se casaram cedo e logo se divorciaram. Depois, uniram-se novamente em um casamento que estava mais uma vez à beira do colapso. Contudo, pela graça de Deus, compreenderam o evangelho e perceberam que o casamento era uma ilustração desse evangelho. Depois de quarenta longos anos, nos quais houve dificuldades, mas também muitos momentos bons, eles persistem nessa ilustração ou demonstração do evangelho. Penso em André, que amou sua esposa, Emily, mesmo depois que ela cometeu adultério. Graças ao perdão e à paciência que André demonstrou à semelhança de Cristo, eles (e seus filhos) agora têm prazer na companhia um do outro numa familia em que não há ressentimentos e que vibra para a glória de Deus. Embora
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nossa cultura não cultive nem encoraje essas formas, cheias de graça e centradas no evangelho, de abordar o casamento, esses homens e mulheres sabem (e demonstram) que Deus é capaz de redimir e promover a reconciliação desse relacionamento tão importante. Ele quer fortalecer e sustentar todos os que confiam em seus caminhos e vivem de acordo com sua Palavra. Vimos que Deus ordena claramente aos maridos: "Maridos, cada um de vós ame a sua mulher, assim como Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela..." (Ef 5.25). Essa é a primeira de uma série de quatro vezes, em nove versículos de Efésios 5, em que os maridos recebem a ordem de amar as esposas. Devem amá-las sem egoísmo, diz a Bíblia. Nossa cultura nos diz que devemos nos defender, nos impor e chamar a atenção sobre nós; Cristo, porém, nos ordena a nos sacrificarmos por nossas esposas. A liderança não é uma oportunidade para controlar nossas esposas; é a responsabilidade de morrer por elas. Isso quer dizer, maridos, que vocês e eu não amamos nossas esposas por causa do que recebemos delas. É assim que o mundo define o amor no casamento. O mundo diz que você ama sua esposa por causa de atributos atraentes e características marcantes que ela possui; mas esse tipo de amor é perigosamente volúvel, pois no momento em que algum atributo ou característica perder o vigor, o amor entrará em colapso. Maridos, amem suas esposas não por causa de quem elas são, mas por causa de quem Cristo é. Ele as ama profundamente, e nossa responsabilidade é refletir seu amor. É claro que não fazemos tudo o que Cristo fez - isto é, não morremos pelos pecados de nossas esposas. Contudo, vivemos de fato para servi-las e vê-las crescer à semelhança de Cristo. Somos responsáveis por amar nossas mulheres de tal modo que elas cresçam em afeto. Assim como Cristo assume a responsabilidade pela saúde espiritual de sua igreja, somos responsáveis pela saúde espiritual de nossa esposa e de nosso casamento. Imagine o capitão de um navio que cochile no seu turno de vigília. Enquanto dorme, um marinheiro rebelde põe o navio a pique. O marinheiro é culpado? Claro que sim. O capitão é responsável? Sem dúvida. De igual modo, a Bíblia não está dizendo que uma esposa não seja culpada do pecado em sua vida. Contudo, ela afirma que o marido é responsável pelo cuidado espiritual para com a esposa. Quando ela luta com o pecado, ou quando ambos lutam no casamento, ele é o responsável final. Por esse motivo, Deus chama o homem para que "alimente" a esposa e "cuide" dela, "assim também Cristo em relação à igreja" (Ef 5.29). A linguagem da Escritura aqui é expressiva. O marido deve valorizar, encorajar, elogiar e consolar a esposa. Cabe a ele a iniciativa de cuidar dela, em vez de esperar que ela se aproxime dele e diga: "Há alguns problemas em nosso casamento que precisam ser discutidos". Ao contrário, ele deve se aproximar dela e dizer: "Como posso amar você e fazer com que nosso casamento seja melhor?". Eu faço essa pergunta com regularidade à minha esposa, e geralmente ela responde sem nenhuma hesitação! Compartilho isso para que fique claro que em toda essa conversa sobre casamento, tenho muito o que crescer. Contudo, quero crescer não só porque amo minha a, mas também porque quero transmitir uma imagem precisa de Cristo em nossa cultura. Maridos, vejam o que está em jogo aqui: vocês e eu representamos Cristo perante um mundo que observa de que modo amamos nossas esposas. Se formos severos com elas, mostraremos ao mundo que Cristo é cruel com seu povo. Se as ignorarmos, mostraremos ao mundo que Cristo não quer nada com seu povo. Se abandonarmos nossas esposas, mostraremos ao mundo que Cristo abandona seu povo. Que imagens do relacionamento de Cristo com a igreja nosso casamento está transmitindo à nossa cultura? Assim também, esposas, reverenciem Cristo respeitando seus maridos. Ouçam a sabedoria de Deus no versículo final de Efésios 5: "Entretanto, também cada um de vós ame sua mulher como a si
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mesmo, e a mulher respeite o marido" (v. 33). Observem que ao marido é dada a ordem de amar sua esposa, contudo a esposa deve respeitá-lo. Agora, é óbvio que isso não significa que amor e respeito não devam ser, ambos, expressos pelo marido e pela esposa, mas a Palavra de Deus quer sutilmente, embora de forma clara, indicar que Deus criou a mulher com uma necessidade especial de ser amada, e o homem com uma necessidade especial de ser respeitado. As mulheres com frequência acham mais fácil amar seus maridos do que respeitá-los. Elas são capazes de falar dos maridos de forma desrespeitosa com outras mulheres e, então, podem ir para casa e cui- dar das necessidades do esposo. Por quê? Porque amam seu marido. Contudo, a pergunta mais importante aqui é: elas o respeitam? Assim também a esposa, quando estiver tentando melhorar uma relação conjugal conturbada, poderá dizer ao marido que o ama, que é o que ela gostaria de ouvir. No entanto, a pergunta mais importante é se ela respeita o marido e se diz isso a ele. A esposa talvez pense: "Bem, meu marido não trabalha o suficiente ou não se esforça o bastante para conquistar meu respeito". Será que tal esposa está caindo na mentira não bíblica de que o respeito se baseia puramente no desempenho? Do mesmo modo que o amor altruísta do marido pela esposa se fundamente na ordem divina dada a ele, o respeito altruísta da esposa pelo marido não se baseia também na ordem de Deus dada a ela? Portanto, esposas, vejam-se em uma relação complementar, e não competitiva, com seus maridos. Entreguem-se à liderança dele em amor, sabendo que vocês representam o relacionamento da igreja com Cristo. Se vocês desrespeitarem seus maridos, mostrarão ao mundo que a igreja não respeita Cristo. Se vocês não buscarem os maridos, mostrarão ao mundo que não vale a pena seguir a Cristo. Se vocês traírem os maridos com outros homens, mostrarão ao mundo que Cristo não satisfaz o suficiente seu povo. Assim também, se você é solteiro, por amor ao evangelho, não durma com outros homens ou mulheres com quem não são casados. Trataremos no próximo capítulo da ordem divina explícita segundo a qual homens e mulheres solteiros devem se abster da atividade sexual fora do casamento. Por enquanto, eu me limitarei a dizer que é terrível ver hoje jovens evangélicos solteiros que, com frequência, apaixonam-se por questões sociais como a pobreza e a escravidão, mas, ao mesmo tempo, destroem o tecido social do casamento fazendo sexo fora do matrimônio. De acordo com um "estudo nacional da situação de jovens adultos", cerca de 80% dos protestantes não casados, conservadores, que vão à igreja hoje e namoram alguém estão praticando algum tipo de atividade sexual".9 Se for esse o seu caso, peço que pare e veja como Deus preparou de forma misteriosa e gloriosa essa união em uma só carne com o intuito de mostrar o amor de Cristo pela igreja. Se não parar, mesmo com todo o seu empenho em favor dos pobres e oprimidos, você estará minando o evangelho em que diz crer e zombando ao mesmo tempo do coração do Deus a quem você afirma adorar. Conforme venho dizendo ao longo deste livro, não podemos escolher a área de nossa vida em que obedeceremos a Deus. Nesse sentido, a Escritura fala claramente a solteiros e solteiras. Para aqueles que sentem um desejo sexual forte pelo casamento, a Palavra de Deus exorta a solteiros e solteiras que se casem (veja 1Co 7.2). O ônus aqui recai particularmente nos homens, a quem Deus incumbiu de tomar a iniciativa no relacionamento conjugal. Sem dúvida, esse chamado para buscar uma esposa vai contra a natureza das atuais tendências culturais que minimizam a impor- tância do casamento. Contudo, parte da razão pela qual Deus nos fez homens e mulheres foi para que buscássemos o casamento acima de confortos e carreira neste mundo . Ao mesmo tempo, a Escritura faz também exortações aos soltei- ros que ainda aguardam encontrar um marido ou uma mulher, bem como a homens e mulheres a quem Deus chamou
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especificamente para que permaneçam solteiros. O apóstolo Paulo se identificou com esta última categoria, dizendo: "Desejaria que todos os homens estivessem na mesma condição em que estou..." (1Co 7.7). "... por causa da dificuldade do momento" - da perseguição e da perversão que rodeavam Paulo na cultura do primeiro século-,ele advogava que se permanecesse solteiro para poder se dedicar ao Senhor "sem distração alguma" (1Co 7.26,35). A Escritura, portanto, encoraja todo homem e toda mulher solteiros, enquanto forem solteiros, a maximizar o potencial de sua condição através do compromisso com Cristo e com sua missão na cultura que nos cerca. Tudo isso é bom para nós. É bom para os maridos entregar a vida por suas esposas e, ao perder a vida, encontrá-la, conforme Jesus pro- meteu (veja Mt 10.38,39). E também é bom para as esposas receber esse amor e respeitar os maridos. Ainda não encontrei uma esposa que não quisesse seguir a um marido que a ame com amor sacrificial e com espírito de servi-la. Por fim, é bom que solteiro e solteira se unam em uma união sobrenatural que Deus criou para satisfazê-los. Contudo, enquanto permanecerem solteiros (o que pode ser pela vida toda, como foi o caso de Cristo e tem sido para muitos cristãos ao longo da história); é bom que maximizem tal estado por meio da pureza diante de Deus e pela paixão de proclamar o evangelho. Em última análise, tudo isso glorifica a Deus. Ele enviou seu Filho para morrer pelos pecadores e criou o casamento para que refletisse essa realidade. Quando compreendemos isso, percebernos que o casamento existe mais para Deus do que para nós. Deus, em última análise, criou o casamento não para satisfazer nossas necessidades, mas para mostrar sua glória no evangelho. Quando nos damos conta disso, percebemos que, se quisermos proclamar o evangelho, devemos defender o casamento .
DE UMA VEZ POR TODAS
Diante de tudo isso, é sem dúvida correto se sentir preocupado com a redefinição do casamento em nossa cultura. O chamado "casamento entre pessoas de mesmo sexo" é hoje considerado uma instituição legítima aos olhos do nosso governo. Seu reconhecimento por um governo, porém, não muda a definição estabelecida por Deus. O único casamento verdadeiro aos olhos de Deus continua a ser a união exclusiva e permanente de um homem e uma mulher, ainda que a Suprema Corte dos Estados Unidos e a legislação dos estados desafiem deliberadamente esse fato. Sem dúvida, vivemos dias notáveis, mas em um sentido devastador. No entanto, nem tudo está definitivamente perdido. A oportunidade para testemunhar o evangelho na cultura contemporânea é muito maior do que há alguns anos. A escuridão espiritual tomou conta da imagem bíblica do casamento em nossa cultura, porém uma luz espiritual brilhará ainda com mais força na imagem de um marido que entrega a vida pela esposa e na imagem de uma esposa que segue com alegria a liderança amorosa do marido. Tenha certeza disso: o desígnio de Deus para o casamento é muito mais surpreen- dente e muito mais satisfatório do que qualquer outra coisa que possamos criar por conta própria. <2.1ianto mais homens e mulheres manipularem o casamento, tanto mais descobriremos que "esse tipo de casamento" ou "aquele tipo de casamento" não conseguirá nos satisfazer plenamente, porque somente o Rei que criou o casamento poderá, por fim e eternamente, nos satisfazer. Além disso, temos uma razão muito forte para confiar na resiliên- cia do casamento no padrão definido por Deus. Afinal de contas, ele existe desde o começo dos tempos (veja Gn 2.24-25).Jesus afirma que a realidade fundacional do casamento faz parte do tecido da criação divina (veja Mt 19.1-
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12). Além disso, o casamento existirá no fim dos tempos. É claro que não se parecerá com o que há hoje, porque a sombra terrena atual dará lugar um dia a sua substância eterna. Nesse dia, Cristo se unirá completamente a sua igreja e todo o céu proclamará: "... Aleluia! Porque o Senhor nosso Deus,o Todo--poderoso, já reina. Alegremo-nos, exultemos e demos glória a ele, porque chegou o momento das bodas do Cordeiro, e sua noiva já se preparou..." (Ap 19.6,7).João escreve no livro do Apocalipse: "E [o anjo] me disse: Escreve: Bem-aventurados os que são chamados à ceia das núpcias do Cordeiro! Disse-me ainda: Estas são as ver- dadeiras palavras de Deus" (v. 9).10 Com base nessas "verdadeiras palavras de Deus", não temos de nos preocupar com a possibilidade de o casamento não sobreviver. Afinal de contas, não buscamos a definição de casamento dada por nenhum tribunal ou governo. Deus já fez isso, e sua definição não pode ser erradicada pelo voto de legisladores ou pelas opiniões dos juízes da Suprema Corte. O Juiz Supremo da criação já definiu o termo de uma vez por todas. O casamento não sofre transformação nas culturas como o fatebof, pois o casamento é um termo que transcende a cultura e epresenta uma verdade atemporal sobre quem Deus é e como Deus ama. O chamado e o desafio para nós consistem em viver de acordo com essa verdade na época e na cultura em que ele nos colocou.
PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA
Ore Peça a Deus que: •
Dê-lhe poder para ser puro, fiel e altruísta no casamento ou na vida de solteiro.
• Fortaleça o testemunho da igreja para que ela reflita a beleza do evangelho e o padrão bíblico de casamento. • Mude o coração e a mente dos integrantes dos poderes legisla- tivo e judiciário no tocante ao denominado casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Participe Em oração, considere dar os seguintes passos: • Peça humildemente à liderança de sua igreja que trate do tópico do casamento nas pregações e nos ministérios de ensino da igreja • Ofereça-se para falar, orar ou se reunir com outras pessoas que você conhece (do seu sexo) que passam por dificuldades no casamento. •
Vote em candidatos que apoiem a visão bíblica do casamento
e incentive-os ativamente a continuar apoiando essa visão.
Proclame Reflita sobre as seguintes verdades da Escritura: • Gênesis 2.24: "Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne".
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• Efésios 5.22,25: "Mulheres, cada uma de vós seja submissa ao marido, assim como ao Senhor; [...] Maridos, cada um de vós ame a sua mulher, assim como Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela". • Hebreus 13.4: "Sejam honrados entre todos o matrimônio e a pureza do leito conjugal; pois Deus julgará os imorais e adúlteros".
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CAPÍTULO 7 COMPRADOS POR PREÇO: O EVANGELHO E A MORALIDADE SEXUAL
Lembro-me da conversa como se fosse ontem. Eu ia me casar naquele fim de semana e muitos dos meus parentes estavam na cidade para participar da cerimônia. Quando eu morava com meus pais, minha família sempre se reunia com os parentes todos os anos, embora morássemos em estados diferentes. Nós sempre nos empenhamos muito para que a distância geográfica não impedisse um relacionamento mais próximo. Como consequência, éramos muito ligados uns aos outros. Mas agora, como muitos haviam se mudado para lugares diferentes e estavam começando novas famílias, era raro estarmos todos juntos no mesmo lugar à mesma hora. Portanto, a celebração desse casamento seria uma espécie de reunião familiar. Conversamos, comemos, jogamos e choramos de tanto rir lembrando velhas histórias e partilhando novas. Na noite anterior ao meu casamento, fui levar de volta ao hotel um membro de nossa família que eu amava muito. Conversamos obre várias coisas da nossa vida e foi muito bom colocar os assuntos em dia. Quando ele estava prestes a descer do carro para entrar no hotel, virou-se para mim e disse: -David, queria dizer uma coisa para você. Diga -eu respondi. Ele prosseguiu: Queria que você soubesse que eu sou gay. Caiu um silêncio no carro. Eu não sabia o que dizer. Os pensamentos giravam na minha cabeça e não sabia muito bem o que fazer com eles. Ele acrescentou: Quero que você saiba que há muito tempo tenho desejos, mas agora resolvi dar vazão a eles. Decidir assumir minha homossexualidade. Infelizmente, o silêncio continuava a inundar o carro. Olhando em retrospectiva para aquele momento, gostaria de ter dito uma porção de coisas. Gostaria de ter lhe agradecido por sua honestidade, transparência e vulnerabilidade ao compartilhar aquilo comigo. Gostaria de ter assegurado a ele que aquela revelação jamais mudaria a minha afeição por ele. Gostaria de ter feito perguntas sinceras para compreendê-lo melhor: Como foi que ele havia chegado àquela conclusão? A quem mais ele havia contado aquilo? Foi muito difícil fazê-lo? Quais foram as grandes vantagens e desvantagens que ele havia experimentado em consequência dessa decisão? Infelizmente, eu não falei quase nada. Ele saiu do carro e eu lhe disse que havia sido muito bom revê-lo. Contudo, nossa conversa não passou disso. Meus pensamentos, por outro lado, foram muito além. Voltei para casa na véspera do meu casamento com uma porção de perguntas na cabeça. Por que eu sinto desejo sexual por uma mulher e ele tem desejos por homens? Será que aprendemos a ter esses desejos em algum momento? Será que nascemos com eles? Será que aquele meu parente escolheu isso ou será que Deus o fizera daquele jeito? E por que é certo (e festejado) aos olhos de todos que eu satisfaça meus desejos, enquanto é errado (e condenado) aos olhos de tanta gente que ele satisfaça os dele? Será que ele não pode amar um homem do mesmo jeito que eu amo uma mulher? Essas perguntas me levaram a um caminho que ultrapassou muito aquela noite. Desde aquele dia, tenho convivido com outros parentes, amigos, homens e mulher s da minha igreja e da minha cidade que se sentem atraídos por pessoas do seu sexo. Esses relacionamentos próximos em minha
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vida, combinados com as tendências atuais da cultura, levaram-me a investigar que luz, se é que há alguma, o evangelho lança sobre a homossexualidade. Nas minhas pesquisas, entretanto, constatei que os raios do evangelho não se limitam à homossexualidade, uma vez que a luz do evangelho impregna toda a sexualidade. Quem é Deus e o que Cristo fez na cruz têm implicações enormes para quem somos pessoalmente e para o que desejamos sexualmente. Essas implicações têm ramificações inevitáveis no modo de confrontarmos a cultura que nos cerca.
LIMITES DE AMOR
Conforme já vimos, Deus nos criou como seres sexuais. Somos homens e mulheres com corpos distintos feitos à imagem de Deus. A Bíblia enfatiza a importância dos nossos corpos ao dizer que foram feitos para "o Senhor, e o Senhor, para o corpo" (1Co 6.13). Essa frase simples é um ponto de partida substancial para a compreensão do desígnio de Deus para nós. Nossos corpos foram criados não apenas por Deus, mas também para Deus. Esse é um ponto de partida muito diferente do que a maior parte das pessoas adota em nossa cultura. Somos movidos hoje por tudo o que possa proporcionar o maior prazer aos nossos corpos. O que podemos comer, tocar, ver, fazer, ouvir ou com o que podemos nos envolver para satisfazer os desejos do nosso corpo? Estamos mergulhados num oceano cultural que grita a cada onda: "Satisfaça seu corpo!". Contudo, e se nosso corpo, afinal, não foi criado para satisfazer a nós mesmos? E se, na verdade, ele foi criado para glorificar a Deus? Melhor ainda, e se esse glorificar a Deus for, na verdade, a forma de experimentarmos a maior satisfação possível em nosso corpo? Leia novamente a frase de 1Coríntios: o corpo foi feito "para o Senhor, e o Senhor, para o corpo". Não só nosso corpo é designado para Deus, como também Deus é devotado a ele. Literalmente, Deus é para o seu corpo. Deus quer que você experimente a alegria máxima para a qual seu corpo foi criado e, como Criador do nosso corpo, ele sabe o que lhe proporciona maior prazer. Isso nos leva de volta a uma das verdades fundamentais do evangelho - a realidade de que Deus nos ama e é por nós, e não contra nós. Deus deseja o melhor para nós. Ele criou nosso corpo não apenas para sua glória, mas também para o nosso bem. É por isso que Deus, em seu amor, nos dá limites para o corpo: ele nos ama e sabe o que é melhor para nós. Ele quer nos proteger do mal e nos proporcionar algo maior do que podemos enxergar. Sempre que Deus nos dá uma ordem negativa, ele também nos concede duas coisas positivas: ele nos concede algo melhor e ao mesmo tempo nos protege de algo pior. Pense num exemplo de sua vida diária. Quando digo aos meus filhos que fiquem em nosso quintal em vez de ir para a rua, estou lhes dizendo isso para o bem deles. Sei o que poderia acontecer se um carro viesse a toda velocidade pela rua, por isso estou certo na restrição que faço - porque sei o que é melhor para eles. Quero protegê-los do mal e também lhes dar um ambiente seguro no qual possam se desenvolver. De modo muito parecido, o Deus que criou nosso corpo sabe o que é melhor para que ele floresça e seja feliz. Essas verdades simples nos ajudam a ver mais claramente o que estamos fazendo quando ignoramos as boas instruções de Deus. Ao longo de toda a Bíblia, ele fixa limites para nós, para a forma que nosso corpo deve ser usado. Quando, porém, ignoramos tais limites, é como se estivéssemos dizendo a Deus: "Você não sabe como meu corpo deve ser usado. Sei melhor do que você". Parece um pouco arrogante, não é verdade? É como se meu filho de quatro anos me dissesse que eu não sei do que estou falando quando me preocupo com os carros que passam pela rua.
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Em seu amor para conosco, Deus nos disse quais as melhores formas de usarmos nosso corpo, e ele foi específico em relação à nossa sexualidade. Conforme já vimos desde o início da Bíblia, Deus criou o corpo do homem e da mulher para que se unissem em uma "só carne" no casamento (Gn 2.24). A expressão "uma só carne" aponta para a natureza pessoal da união. O sexo não é um ato mecânico entre dois objetos; é um elo entre duas pessoas. E não somente entre duas pessoas quaisquer. A união física foi criada por Deus para um homem e uma mulher que consagraram sua vida em um relacionamento mútuo de aliança (Pv 5.3-20; Ml 2.14). Não há nenhum outro caso, em toda a Palavra de Deus, em que o Senhor defenda ou celebre o sexo fora de uma relação matrimonial entre marido e esposa. Nem um sequer. Para Deus, portanto, essa é a zona de segurança em que o sexo deve ser desfrutado. Deus cria esse limite de amor para maximizar a experiência sexual em todos os seus ricos significados. Além disso, essa é a razão pela qual a Bíblia está cheia de proibições contra toda e qualquer atividade sexual fora do casamento entre homem e mulher. Deus proíbe, por exemplo, a prostituição sexual (veja Lv 19.29; Dt 23.18; Pv 6.25,26) e a violência sexual (veja Dt 22.25-27). Ele ordena que não tenhamos relações sexuais com animais (veja Lv 18.23; 20.15,16) ou com parentes (Lv 18.6; 1Co 5.1,2). Esses são limites com os quais a maior parte das pessoas em nossa cultura está de acordo (pelo menos por enquanto), mas não são os únicos limites de que fala a Bíblia. Com a mesma força de comando, Deus também proíbe o sexo entre um homem e uma mulher que não sejam casados. A Bíblia chama isso de adultério e foi proibido nos Dez Mandamentos (veja Êx 20.14; veja tb. Lv 20.10; Pv 6.28-32). Contudo, essa não é uma ordem dada exclusivamente no Antigo Testamento.Jesus e os auto- res do Novo Testamento reiteram essa restrição (veja Mt 19.79; Rm 13.9; Hb 13.4). Para Deus, o sexo com alguém que não seja seu marido ou sua mulher é pecado, quer isso aconteça antes, durante ou depois do casamento. Conforme já vimos no desígnio complementar de Deus para o homem e a mulher no casamento (capítulo 6), essa proibição inclui também o sexo entre um homem e outro homem ou entre uma mulher e outra mulher. A Bíblia é muito clara quanto a isso. Imediatamente antes de proibir o sexo com animais, diz o Antigo Testamento: "Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher; é abominação" (Lv 18.22). Alguém poderia dizer: "Mas essa lei é do Antigo Testamento, que também inclui proibições quanto a comer carne de porco (veja Lv 11.7). Então isso significa que comer churrasco de linguiça também é pecado?". Esse talvez pareça um bom argumento, até nos darmos conta de que há distinções claras e fundamentais entre diferentes tipos de leis no livro de Levítico. Algumas delas são de natureza civil e dizem respeito especificamente ao governo do Israel antigo, de modo que não se referem necessariamente aos governos de hoje. Outras são cerimoniais e prescrevem sacrifícios, ofertas e festas específicas do povo de Deus sob a antiga aliança. Essas leis civis e cerimoniais aplicavam-se particularmente ao povo judeu no Antigo Testamento. Sabemos disso porque tais leis não são reiteradas para todo o povo no Novo Testamento. Contudo, várias leis morais (as proibições de roubar e mentir, por exemplo) são explicitamente reiteradas no Novo Testamento. 1 Essas leis, baseadas no caráter de Deus, aplicam-se claramente a todas as pessoas em todos os tempos.2 Sabemos que as leis morais incluem proibições não apenas de roubar e mentir, mas também de praticar atividades homossexuais, porque, quando chegamos ao Novo Testamento, o próprio Jesus ensina que a única alternativa ao casamento que honra a Deus - isto é, entre um homem e uma mulher - é permanecer solteiro (Mt 19.10-12). Além disso, o Novo Testamento refere-se a "paixões desonrosas" e dá o exemplo de mulheres que "substituíram as relações naturais pelo que é contrário à natureza" e de homens que "da mesma maneira, abandonando as relações naturais com a mulher, arderam em desejo sensual uns pelos outros[...] cometendo indecência e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro" (Rm 1.26,27). Deus é claro em sua Palavra: a atividade homossexual é proibida.
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Na cabeça de muitas pessoas, já fomos longe demais nessa questão mas, na verdade, estamos apenas começando quando se trata de ver e compreender os limites de proteção divinos e as proibições sexuais na Escritura. Para nos proteger da lascívia, da ganância, dos desejos e das tentações que dão lugar ao pecado, a Bíblia também proíbe todo olhar e todo pensamento de natureza sexual fora do casamento entre homem e mulher. Nas palavras de Jesus, "todo aquele que olhar com desejo para uma mulher já cometeu adultério com ela no coração" (Mt 5.28). Para Cristo, é pecado até mesmo olhar para alguém que não seja seu marido ou sua mulher e cultivar pensamentos sexuais sobre a pessoa (veja 2Pe 2.14). Não somente é contrário ao sublime desejo de Deus e, portanto, errado ter ou cultivar desejos sexuais por outros fora do casamento, como também é errado despertar desejos sexuais em outros fora do casamento. Deus proíbe os trajes indecentes (veja 1Tm 2.9,10) e admoesta com veemência as palavras sedutoras (vejaPv5.1-23; 7.1-27). E, mais do que isso, Deus proíbe todo tipo de palavras, humor ou entretenimento grosseiro que recorra, ainda que remotamente, à imoralidade sexual. Nas palavras de Efésios 5: "Mas a prostituição e todo tipo de impureza ou cobiça nem sequer sejam mencionados entre vós [... ] nem haja indecências, nem conversas tolas, nem gracejos obscenos, pois essas coisas são inconvenientes [...] Porque bem sabeis que nenhum devasso, ou impuro [...] tem herança no reino de Cristo e de Deus" (v. 3-5) . Ao lidar com a imoralidade desenfreada da cultura que circundava a igreja n primeiro século, Efésios 5 prossegue:"... pois é vergonhoso até mesmo mencionar as coisas que eles fazem às escondidas" (v. 12). Essas palavras atingem em cheio a igreja cercada pela cultura do século 21,já que tantas vezes compactuamos com ela em vez de combatermos sua imoralidade sexual. Até mesmo os cristãos que se recusam a sucumbir pessoalmente à atividade sexual pecaminosa com frequência assistem a filmes e a shows, leem livros e artigos e acessam sites de internet que destacam, exibem e promovem a imoralidade sexual ou a tratam como coisa de menor importância. É como se estivéssemos dizendo ao mundo: "Não vamos fazer o que vocês fazem, mas vamos alegremente nos entreter vendo o que vocês fazem".4 É doentia, não é mesmo, essa tendência de sentir prazer quando observamos outros na prática do pecado sexual? Por fim, Deus proíbe a adoração sexual - a idolatria do sexo e a paixão pela atividade sexual como meio fundamental para a realização pessoal. Em toda a Escritura e na história, as pessoas caíram equivocadamente na armadilha de acreditar que o prazer do sexo e da sexualidade, criados por Deus, nos trarão a máxima satisfação (veja Êx 32.2-6; Dt 23.17; Pv 7.1-27; lCo 10.8). Infelizmente, parece que não somos diferentes em nossa época. Por toda parte em nossa cultura, as pessoas pensam: "Ah, se pelo menos eu tivesse liberdade sexual e pudesse agir dessa ou daquela maneira, então eu seria feliz". No entanto, isso não é verdade. O sexo é bom, mas não é Deus. Ele não nos trará a satisfação plena. A exemplo de tudo o mais que transformamos em ídolos, ele sempre tomará para si mais do que dará, desviando, ao mesmo tempo, o coração humano do Único que pode lhe proporcionar a alegria suprema. Cada uma das proibições sexuais descritas na Bíblia está contida no mandamento abrangente: "Fujam da imoralidade sexual..." (lCo 6.18, NVI). Essas palavras foram escritas a uma igreja na cidade de Corinto, cidade enlouquecida pelo sexo, onde os solteiros tinham vida sexual ante s do casamento, os maridos e as esposas tinham envolvimentos '"sexuais fora do casamento, a homossexualidade era tolerada e a prostituição era comum (não mudou muito em dois mil anos). Portanto, para a igreja daquela cultura e para a igreja de nossa cultura, Deus ordena: "Fujam da imoralidade sexual - de todo e qualquer pensamento, olhar, desejo, toque, conversa e atos de conotação sexual fora do casamento entre um homem e uma mulher. Não racionalize, não argumente - fuja. Fuja o mais rápido que puder". Deus diz isso para a glória dele. E diz isso para o nosso bem.
NASCIDOS ASSIM
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Neste ponto não cremos em Deus. Nenhum de nós crê. A essa altura deveria estar claro que a Bíblia não adverte simplesmente contra o adultério e a homossexualidade, mas contra as inúmeras manifestações de imoralidade sexual em nossa vida. Vou confessar o óbvio antes de prosseguir. Represento a classe de pessoas responsáveis pela maior parte da imoralidade sexual no mundo de hoje: os heterossexuais do sexo masculino. São os homens heterossexuais que financiam a indústria da pornografia e da prostituição no mundo, e estou convencido de que a causa da maior parte dessa confusão sexual em nossa cultura é a falta de liderança amorosa e de sacrifício altruísta dos maridos e pais heterossexuais. Enfatizo isso porque, quando minhas dúvidas iniciais sobre meu parente gay me levaram ao evangelho, eu me convenci imediatamente não do pecado sexual na vida dele, mas do pecado sexual na minha vida. Meu objetivo em lidar com a questão da imoralidade sexual não é o de criticar o predomínio do pecado sexual em nossa cultura, e sim expor a profundidade do pecado sexual que há dentro de nós. Eu e todos os leitores deste livro somos culpados em vários níveis de pensar em sexo, desejá-lo, falar dele e de praticá-lo fora do casamento entre marido e esposa. Nenhum de nós é inocente quando o assunto é imoralidade sexual, e nenhum de nós está imune a ela. O evangelho nos diz por que isso acontece. Todos temos um coração orgulhoso que está inclinado a se desviar de Deus (veja Gn 8.21). Uma das passagens mais significativas sobre imoralidade sexual na Bíblia começa da seguinte forma:"... porque, mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o seu coração insensato se obscureceu [...] É por isso que Deus os entregou à impureza sexual, ao desejo ardente de seus corações, para desonrarem seus corpos entre si" (Rm 1.21,24). Esses versículos contundentes mostram que o coração obscurecido é a raiz dos desejos pecaminosos. Em nosso coração, todos temos a tendência pecaminosa de nos desviar de Deus por causa dos nossos desejos. Essa tendência causa um efeito inevitável em nossa sexualidade . Observe a conexão fascinante feita nesse trecho das Escrituras. Quando desdenhamos do louvor a Deus em nosso coração, nos inclinamos à impureza sexual em nossa vida. Para piorar as coisas, nascemos desse jeito. Desde que Adão e Eva pecaram no Jardim do Éden, todas as pessoas nascidas de um homem e de uma mulher herdaram esse coração pecaminoso. Podemos ter heranças biológicas distintas, mas compartilhamos de uma herança espiritual comum: o pecado (veja Sl 51; Rm 5.12-21). É importante nos lembrarmos disso porque nenhum de nós pode ou deveria dizer: "Deus não permitiria que eu (ou alguém) nascesse com uma tendência para um pecado sexual específico". Ao contrário, a Bíblia é clara: todos nós nascemos com uma inclinação para o pecado. Contudo, só porque temos essa inclinação isso não significa que devemos em conformidade com ela. Vivemos em uma cultura para a qual uma explicação natural implica uma obrigação moral. Se a pessoa nasceu com um desejo, então é essencial à sua natureza satisfazê-lo. Essa é uma das razões pelas quais nossa discussão atual sobre a sexualidade está colocada de forma equivocada, como se fosse uma questão de direitos civis. Mesmo na falta praticamente total de evidências científicas que provem que o desejo sexual está vinculado ao DNA, a moralidade cultural emergente quer agora elevar o desejo pessoal à categoria de mais alta autoridade moral, de modo que as pessoas tenham o "direito" de satisfazer seus desejos sexuais conforme preferirem. Além disso, alegra-se atualmente que negar às pessoas esse "direito" é como ser racista. De acordo com a opinião predominante, assim como não devemos fazer discriminação entre pessoas negras e brancas, não devemos fazer diferença entre as preferências heterossexuais e homossexuais. Vivemos em uma época em que dizer que a atividade heterossexual ou homossexual é imoral é o mesmo que afirmar que uma pessoa branca ou negra é inferior. Contudo, essa linha de pensamento está fundamentalmente equivocada, porque nega a distinção óbvia entre identidade étnica e atividade sexual. A identidade étnica é um atributo moralmente neutro. Ser branco ou negro não é uma questão de certo ou errado, e qualquer tentativa
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de dizer o contrário deve ser combatida (conforme veremos no próximo capítulo). No entanto, a atividade sexual é um comportamento de escolha moral. É claro que, assim como temos diferentes cores de pele, talvez tenhamos disposições distintas em relação a certos comportamentos sexuais. Entretanto, enquanto nossa constituição étnica não é determinada por uma escolha moral ou contrária a uma ordem moral, nosso comportamento sexual é uma decisão moral, e só porque somos inclinados a certos comportamentos, isso não os torna corretos. Veja, por exemplo, a reportagem da revista Time segundo a qual a infidelidade pode estar em nossos genes.5 Isso significa que um homem casado que tem um desejo inato por sexo com uma mulher que não seja sua esposa deve satisfazer esse desejo para se realizar plenamente como pessoa? É claro que não. A mera presença do desejo não é desculpa para ser infiel à esposa. Não se trata de algo que faça parte da constituição humana; é uma questão de moralidade pessoal. Sua disposição em relação a um comportamento não justifica o comportamento. "É assim que ele é" não significa que "é assim que ele deve agir". O adultério não é inevitável; é imoral. Isso se aplica a todo comportamento sexual que se desvia do desígnio divino. Todos nós temos um coração que tende para o pecado sexual. Essas tendências produzem diferentes tentações em nossa vida. Alguns de nós sentem desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, e outros são mais inclinados a satisfazer o desejo sexual com pessoas do sexo oposto. Até mesmo as maneiras pelas quais queremos satisfazer esses desejos sexuais variam de uma pessoa para outra. Sem dúvida, faz parte do mistério deste mundo caído a razão pela qual certas pessoas têm determinados desejos e outras, desejos diferentes. Nem sempre escolhemos nossas tentações. No entanto, escolhemos nossa reação a elas.
"DEUS REALMENTE DISSE... ?"
Isso nos leva de volta à questão fundamental do que Deus disse. E nos leva de volta à primeira pergunta da Bíblia, quando o inimigo perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse: 'Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim?"' (Gn 3.1, NVI). Já vimos como o pecado começou quando a ordem divina foi reduzida a uma pergunta. Naquele momento, a força espiritual mais mortífera foi disfarçadamente introduzida no mundo: a suposição de que a Palavra de Deus esteja sujeita ao juízo humano. Essa força espiritual não está apenas ativa em nossa cultura, mas também ameaça abalar a igreja. Vamos tomar a atividade homossexual como exemplo de imoralidade sexual. Vamos mergulhar um pouco mais fundo aqui e indagar com honestidade: o que Deus diz em sua Palavra a esse respeito? O modelo de casamento de Gênesis 2 é suficiente para estabelecer o padrão prescrito por Deus para a união sexual entre um homem e uma mulher. Contudo, não muito depois disso, em Gênesis 19, lemos também a respeito da atividade homossexual como motivação primordial para o juízo de Deus sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. Há quem diga que Sodoma e Gomorra foram destruídas por outros motivos: desatenção para com os pobres, o que também é verdade (Ez 16.49). Contudo, no Novo Testamento, quando Judas volta a Gênesis 19, não é isso que ele ressalta. Ele faz referência, isso sim, à "imoralidade e relações sexuais contra a natureza" como causas do juízo divino (Jd 1.7). No momento de estabelecer a lei a seu povo no Antigo Testa- mento, conforme já vimos, Deus ordena: "Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher; é abominação" (Lv 18.22). Algumas pessoas dizem que a homossexualidade é condenada aqui por causa da sua associação à idolatria daquela época. Contudo, nessas passagens a atividade homossexual é citada junto com o adultério, o incesto,
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a bestialidade e o sacrifício de crianças. Certamente essas coisas não serão permitidas, mesmo que não estejam associadas à idolatria. Além disso, Paulo recorre ao mesmo termo usado para designar a "atividade homossexual" em Levítico 18 quando se refere à atividade homossexual como algo que desonra a Deus, em 1Coríntios 6 e 1Timóteo 1.6 Afirma o apóstolo: "Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem os que se submetem a prática homossexuais, nem os que as procuram, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem caluniadores, nem os que cometem fraudes herdarão o reino de Deus" (lCo 6.9,10). De igual modo , ele inclui os "sexualmente imorais" e os "homens que praticam a homossexualidade" em uma lista de "desobedientes" que abrange também os "homicidas [...] os que exploram outros homens e os mentirosos" (1Tm 1.8-11, ESV). Isso corresponde às palavras que já lemos em Romanos e que descrevem as "paixões desonrosas", como as "mulheres [que] substituíram as relações sexuais naturais pelo que é contrário à natureza" e "homens [que abandonaram] as relações naturais com a mulher, arderam em desejo sensual uns pelos outros" (Rm 1.26,27). A Bíblia é clara e coerente quando afirma de forma uníssona, do começo ao fim, que a atividade homossexual é imoralidade sexual perante Deus. Contudo, assim como Adão e Eva no Jardim do Éden, estamos inclinados não apenas em nossa cultura, mas também na igreja, a submeter a Palavra de Deus ao nosso juízo. Em vez de obedecer ao que Deus disse, questionamos se Deus disse. Veja as palavras de William Kent, membro do Comitê Metodista Unido para Estudo da Homossexualidade. No final do estudo, ele conclui: "Os textos da Escritura no Antigo e no Novo Testamento condenando a prática homossexual não são inspirados por Deus e não têm valor cristão duradouro".7 Kent pelo menos é honesto o bastante para admitir o que esses versículos afirmam, mas também é ousado o bastante para dizer que a Bíblia não é a Palavra de Deus. Ou então, leia o quis diz também David Comstock, capelão protestante da Universidade Wesleyana: Não reconhecer, não criticar e não condenar a correspondência que Paulo estabelece entre impiedade e homossexualidade é perigoso. Persistir em nossas tradições cristãs e não contestar essas passagens que nos degradam e nos destroem é contribuir para nossa própria opressão[...] Essas passagens serão invocadas e usadas contra nós, reiteradas vezes, a não ser que os cristãos exijam sua remoção do cânone bíblico ou, no mínimo, depreciem formalmente sua autoridade para ditar comportamentos8. O reconhecimento de Comstock do que a Bíblia ensina o leva a rotular a Bíblia como algo perigoso que precisa de uma séria revisão. Luke Timothy Johnson, professor de Novo Testamento na Escola de Teologia Candler, na Universidade Emory, aprofunda um pouco mais essa ideia. Johnson aceita que a "Bíblia, em parte alguma, fala de modo positivo ou mesmo neutro sobre o amor entre pessoas de mesmo sexo". Contudo, ele conclui: Creio ser importante afumar claramente que nós, de fato, rejeitamos as ordens objetivas da Escritura e apelamos, em vez disso, a outra autoridade quando dizemos que as uniões de pessoas de mesmo sexo podem ser santas e boas. E que autoridade exatamente é essa? Apelamos explicitamente ao peso de nossa experiência e da expe- riência que milhares de outras pessoas também testemunharam, segundo a qual invocar nossa orientação sexual é, na verdade, aceitar o modo pelo qual fomos criados por Deus. Ao fazê-lo, rejeitamos explicitamente também as premissas das afirmações da Escritura que condenam a homossexualidade - a saber, rejeitamos que se trata de vício livremente escolhido, sintoma da corrupção humana e desobediência à ordem criada por Deus.9
Johnson não pode escapar à questão mais óbvia por trás do que está dizendo. Se vamos jogar fora a Palavra de Deus em favor da experiência humana, então na experiência de quem vamos
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confiar? E a resposta óbvia é: na experiência de Johnson - e na de todos quantos concordarem com ele. As citações anteriores deixam extremamente claro que, se alguém quiser defender a atividade homossexual, deverá admitir que a Bíblia é irrelevante para a humanidade moderna, incoerente em relação à nossa experiência e, portanto, insuficiente como fonte de verdade e de orientação para nossa vida - que a Bíblia não apenas é deficiente, mas também explicitamente perigosa. A realidade é que, tão logo passamos a defender a atividade homossexual, minamos a autoridade bíblica. E nesse processo de erosão da Bíblia, arruinamos a integridade de todo o evangelho. Porque se a Bíblia estiver errada sobre certos assuntos,quem poderá dizer em que mais ela errou? É por isso que Daniel Heimbach, num excelente livro intitulado True sexual morality [A verdadeira moralidade sexual], afirma: Os riscos do conflito atual sobre a questão sexual são mais críticos, mais centrais e mais essenciais do que em qualquer controvérsia jamais enfrentada pela igreja. Essa é uma declaração forte, porém eu a faço com sobriedade, sem exagero. O conflito em torno do sexo atualmente não apenas desafia a tradição, a ortodoxia e o respeito pela autoridade em áreas como a ordenação, o casamento e o papel dos sexos. E não afeta de maneira fundamental apenas doutrinas importantes como a santidade da vida humana, a autoridade e a confiabilidade da Escritura, a Trindade e a encarnação de Cristo. Mas a guerra que hoje se trava em torno do sexo entre os cristãos atinge questões de fé absolutamente essenciais e, sem as quais, ninguém pode ser cristão de fato são questões como o pecado, a salvação, o evangelho e a identidade do próprio Deus. Não importa de que modo se classifique a controvérsia atual sobre a imoralidade sexual, está claro que estão em jogo aqui as questões mais fundamentais relacionados ao que significa ser cristão e à devida submissão à Palavra de Deus.
CORAÇÕES OBSCURECIDOS , MENTES PERTURBADAS
Não deveríamos nos surpreender com isso, porque o evangelho uma vez mais explica por que há tanto em risco em nossa visão da moralidade sexual. A Bíblia associa nosso coração obscurecido a mentes perturbadas. Como resultado da rebelião em nosso coração, nossos pensamentos tornaramse "fúteis". Parafraseamos Romanos 1 para tornar o problema mais pessoal: "Embora nos consideremos sábios, tornamo-nos tolos, trocando a verdade de Deus por uma mentira, adorando e servindo as coisas criadas e não ao Criador" (v. 22,25). Em nossa mente, começamos de fato a acreditar que nossos caminhos são melhores do que os caminhos de Deus. Pegamos essa dádiva criada por Deus, que se chama sexo, e a usamos para questionar o Criador que foi quem, em primeiro lugar, a deu para nós. Substituímos o padrão instituído por Deus por nossas preferências trocando o que a Palavra de Deus afirma sobre sexualidade pelo que nossa observação e experiência dizem a esse respeito. Entretanto, estamos cegos para a própria tolice. É como se estivéssemos vivendo na prática Provérbios 14.12 - "Há um caminho que ao homem parece correto, mas o fim dele conduz à morte". O perigo real aqui é nossa pretensão de saber mais do que o próprio Deus o que é melhor para nossos corpos e, como consequência, justificar o pecado sexual. Qualquer pecado sexual, inclusive o mais hediondo deles, pode ser justificado e racionalizado por quem o comete. Quando penso no tráfico sexual de meninas, de que tratamos no capítulo 5, ou nos escândalos sexuais dos líderes de igreja que marcaram tragicamente o cristianismo do nosso tempo, não consigo imaginar de que maneira tais ações podem ser explicadas. Contudo, já ouvi explicações assustadoras da boca de quem pratica essas coisas, para dizer o mínimo. Ouvi adultos, por exemplo, responderem da seguinte forma à acusação de que manipulavam jovens: "Quem pode definir, afinal, o que é manipulação? E que tipo de expressão sexual não manipula de algum modo?". Por fim, o argumento prossegue basicamente assim: Por que Deus lhes
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daria esse desejo se não fosse para satisfazê-lo? Deus deve tê-los criado desse jeito. Além disso, Jesus nunca disse nada contra; ao contrário, ele acolheu as crianças que o buscaram . Só de escrever essas coisas me sinto enojado, mas de modo assustadoramente parecido, estou convencido de que tais justificação e racionalização são reflexos do nosso coração e do nosso pensamento mais do que desejamos admitir. Quer sejamos homens ou mulheres, quer sejamos atraídos por desejos heterossexuais ou homossexuais, todos nós temos desejos sexuais pecaminosos. Todos temos corações obscurecidos que nos tentam a satisfazer esses desejos fora do casamento entre um homem e uma mulher. Todos temos pensamentos perturbados prontos para explicar e desculpar atitudes guiadas por esses desejos, nem que para isso seja preciso distorcer a Palavra de Deus, para que ela diga o que queremos ou- vir. Somos todos pessoalmente, psicologicamente, culturalmente e espiritualmente predispostos ao pecado sexual - alguns de nós são simplesmente predispostos de maneiras mais aceitáveis pela cultura. No fim das contas, somos todos pecadores sexuais. E isso significa que todos precisamos desesperadamente de um Salvador.
DEUS AMA TANTO...
Esse Salvador é exatamente quem encontramos no evangelho. Depois de ouvirmos a exortação da Bíblia para que "[fujamos] da imoralidade sexual", Deus nos diz: "Pois fostes comprados por preço" (lCo 6.18,20). A boa-nova do evangelho é que Deus ama tanto quem comete pecados sexuais - todos nós - que enviou seu Filho para pagar o preço de todos esses nossos pecados. Paulo escreve: "Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus" (2Co 5.21, NVI). Quando Jesus estava na cruz, ele tomou todos os nossos pecados sobre si mesmo. Nas palavras de Martinho Lutero,
Nosso Pai muito misericordioso [...] enviou seu único Filho ao mundo e pôs sobre ele os pecados de todos os homens, dizendo: Qye tu sejas Pedi-o, aquele que nega; que sejas Paulo, o perseguidor, blasfemador e opressor cruel; Davi, o adúltero; que sejas aquele pecador que de fato comeu a maçã no Paraíso; aquele ladrão que foi pendurado na cruz; que por um breve momento, sejas tu a pessoa que cometeu os pecados de todos os homens; e, portanto, que pagará e satisfará por todos eles.11
Ah, só de pensar nisso! Pensar que Jesus, o Deus encarnado, tomou sobre si a pena por todo o nosso adultério, toda a nossa pornografia e lascívia a que nos entregamos e a que nos entregaremos. De fato, Jesus pagou um alto preço pelo nosso corpo. Às vezes, achamos que Deus só está preocupado com o que temos em nosso coração, no nosso espírito, nossa alma e que o corpo não é realmente importante para ele. Contudo, nosso corpo é importante para ele, e sabemos disso não só por causa do preço que Jesus pagou por ele na cruz, mas por causa do que aconteceu ao seu corpo antes e depois de ser crucificado. Jesus não apenas morreu por nosso corpo; ele nasceu e viveu em um corpo. O maior mistério de todo o cristianismo é a encarnação a realidade de que Deus veio até nós em um corpo. Jesus nasceu tal como nós e teve uma vida exatamente como a nossa. Tendemos a minimizar sua humanidade, esquecendo-nos de que ele comeu e bebeu, caminhou e dormiu, riu e chorou em um corpo físico, assim como o fazemos em nosso corpo. Ele não veio como um espírito para morrer por nossos pecados, mas como uma criança que cresceria e viveria entre pecadores.
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Jesus viveu uma vida plena também, o que é extremamente importante lembrar. Algumas pessoas dizem: "Se eu não pensar em meus desejos sexuais e se eu não os satisfizer, serei incompleto. Não estarei sendo verdadeiro para com a pessoa que Deus me criou para ser". Jesus, porém, rejeita totalmente esse sentimento, porque ele foi o ser mais plenamente humano, a pessoa mais plenamente completa que jamais viveu, e nunca se casou. Nunca cedeu a qualquer tipo de imoralidade sexual (veja Hb 4.15) - a qualquer tipo de pensamento, palavra ou ato sexual fora do casamento entre um homem e uma mulher. Sermos verdadeiros para com quem Deus nos criou para ser não significa cedermos a desejos sexuais pecaminosos. Nesse corpo plenamente humano, Jesus foi crucificado e morreu por nossos pecados. Em seguida, depois da crucificação, Deus ressuscitou seu corpo dentre os mortos. Não foi uma ressurreição apenas do espírito ou da alma de Jesus, mas do seu corpo, e as implicações disso são imensas para o nosso corpo. A Bíblia diz: "Deus não somente ressuscitou o Senhor, mas também nos ressuscitará pelo seu poder"(lCo 6.14; veja tb. lCo 15).Assim como Deus ressuscitou o corpo de Jesus dos mortos, ele também ressuscitará o nosso. Quando lemos isso, percebemos que Deus fez um investimento eterno em nosso corpo. Um dia, Deus o ressuscitará para estar com ele em um novo céu e uma nova terra. Nosso corpo físico na terra, portanto, é importante para Deus, porque ele existirá para sempre ao lado de Deus no céu. Quando juntamos tudo isso, a verdade impressiona . Deus se preocupa tanto com nosso corpo que enviou seu Filho em carne para viver como nós e entre nós. Depois, embora não tivesse pecado de forma alguma, e embora não merecesse castigo algum pelo pe- cado, esse Filho foi pendurado na cruz, onde o preço do pecado foi lançado sobre ele (veja Rm 8.3). Jesus morreu por nossos pecados. Então, três dias depois, ele ressuscitou fisicamente dos mortos em um corpo que durará para sempre e prometeu ressuscitar o corpo de todo aquele que abandonar o pecado e confiar nele como seu Salvador (veja lCo 15.42-55). Vamos fazer uma pausa para que essa informação penetre em nossa mente. O Deus do Universo se preocupa muito com você. Para ele, seu corpo é m tesouro inestimável, que não tem preço, é eterno, foi criado por ele. E quando você confia em Cristo, não importam quais sejam os pecados sexuais que tenha cometido com seu corpo, você pode ter certeza de que Deus, um dia, ressuscitará seu corpo enfermo pelo pecado, tornando-o puro, santo e imperecível com ele para sempre. Ao mesmo tempo em que me regozijo ao escrever essas coisas, sinto também a seriedade no tocante às advertências da Escritura dirigidas a todos aqueles que não confiam em Cristo - a todos os que desprezam a Palavra de Deus e persistem, sem arrependi- mento, na imoralidade sexual. Deus disse, e o fez de forma clara: "Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem os que se submetem a práticas homossexuais, nem os que as procuram, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem caluniadores, nem os que cometem fraudes herdarão o reino de Deus" (lCo 6.9,10; veja tb. Mt 5.2729; Gl 5.19-21; Ef 5.5; Jd 1.7; Ap 21.8). Isso não quer dizer que se você tiver cometido qualquer tipo de imoralidade sexual irá para o inferno. A Bíblia está se referindo aqui àqueles que se recusam a deixar a imoralidade sexual e a confiar em Cristo . De acordo com o evangelho da graça de Deus, o pecador sexual que humildemente se arrepender entrará no céu. Contudo, o pecado sexual sem arrependimento acabará levando o pecador ao inferno.
UMA NOVA IDENTIDADE
Arrependimento não significa perfeição total; significa, isto sim, uma nova direção. Conforme vimos, somos todos inclinados ao pecado sexual, e essa inclinação é diferente na vida de cada um.
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Somos pessoas diferentes - homens e mulheres, solteiros e casados, com desejos e atrações diferentes-; no entanto, o chamado do evangelho é idêntico para todos nós. Nas palavras de Jesus: "Se alguém quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me" (Lc 9.23). O arrependimento é um chamado de alto preço que, em essência, nos chama a dizer não a quem somos (em nosso pecado) para encontrar uma identidade totalmente nova em quem Jesus é. Isso é fundamental em uma cultura que praticamente iguala a identidade à sexualidade. Se somos atraídos pelo sexo oposto, é porque somos, no âmago, heterossexuais. De igual modo, se somos atraídos por pessoas do mesmo sexo que o nosso, somos, no âmago, homossexuais. Naturalmente, isso se torna a percepção que temos de nós mesmos e, consequentemente, vemos tudo em nossa vida através dessa lógica. O evangelho, porém, nos desperta para uma lógica inteiramente nova. Ele abre nossos olhos para a verdade de que Deus de fato está certo e é bom. Seu caráter é santo, sua Palavra é verdadeira, e em nosso âmago nos voltamos contra ele. Nesse sentido, nossa identidade é pecaminosa. Contudo, Cristo veio para suportar a pena pelo nosso pecado e tomar nosso lugar como pecadores. Ao fazer isso por nós, ele nos ofereceu uma nova identidade - a identidade dele. Não estamos mais separados de Deus. Agora estamos unidos a ele. Não estamos mais manchados pelo pecado, mas limpos. Não somos mais escravos, somos livres. Não somos mais culpados diante de Deus, o Juiz, porque agora somos amados por Deus, o Pai. Não merecemos mais a morte eterna, jamais alcançando tudo o que Deus planejou que fôssemos quando nos criou. Agora temos vida eterna e experimentamos mais e mais precisamente da pessoa que Deus nos criou para ser. É por isso que Paulo, ao relatar sua conversão, escreve em tom de celebração: "Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2.20). Paulo está comunicando aqui como, quando você se volta para Cristo, sua identidade é inteiramente modificada. Você está em Cristo e Cristo está em você. Sua identidade não é mais a de um heterossexual ou a de um hdmossexual, de um viciado ou de um adúltero. Paulo, em outra passagem, escreve para pessoas que foram caracterizadas de todas essas formas e até piores: "Alguns de vós éreis assim. Mas fostes lavados, santificados e justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (lCo 6.11). Rasaria Champagne Butterfield era uma estudiosa feminista que se deleitava em depreciar a Bíblia e os que nela criam. "Estúpidos. Inúteis. Uma ameaça", dizia ela. "Era isso o que eu pensava dos cristãos e do seu Deus,Jesus, que nas pinturas parecia tão poderoso quanto um modelo de comercial de xampu". Ela se apresentava como uma "professora lésbica de esquerda" com as seguintes palavras: "Minha vida era feliz, tinha sentido e era plena. Minha companheira e eu partilhávamos de inúmeros interesses vitais: fazíamos campanhas contra a AIDS, a favor da saúde e da alfabetização infantil, participávamos da equipe de resgate de cães Golden Retriever, frequentávamos a Igreja Universalista Unitária, só para citar algumas das coisas que fazíamos".12 Graças ao envolvimento compassivo de um pastor que respondeu gentilmente a um editorial crítico que ela havia escrito em um jornal local, ela viu e ouviu o evangelho. Esse pastor e sua esposa mostraram-lhe o amor de Deus. Ela começou a ler a Bíblia e a lutar com a seguinte dúvida: "Será que eu queria mesmo entender a homossexualidade do ponto de vista de Deus, ou será que eu queria apenas discutir com ele?". Uma noite ela começou a orar e só parou de manhã. Ela conta: "Qyando olhei no espelho, parecia a mesma. Mas quando olhei para o meu coração pelas lentes da Bíblia, me perguntei: "Sou lésbica mesmo ou isso será um caso de identidade equivocada? Se Jesus era capaz de dividir o mundo, de separar a medula da alma, será que ele poderia fazer com que minha verdadeira identidade prevalecesse? Qyem sou eu? Qyem Deus quer que eu seja?".13 Essa crise de fé levou-a ao que ela descreve como "um dia comum" em que veio a Cristo. "Nessa guerra de visões de mundo", diz ela, "Jesus triunfou. Eu era um caos e estava em ruínas. A conversão foi uma catástrofe. Eu não queria perder tudo o que amava. Contudo, a voz de Deus entoou uma
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canção de amor cheia de esperança nos destroços da minha alma. Cri, frágil como estava, que se Jesus podia vencer a morte, ele podia endireitar meu mundo".14 Tal testemunho não se limita a professoras lésbicas de esquerda. Esse mesmo testemunho é uma realidade inequívoca nas páginas da história da humanidade, na vida de inúmeros homens e mulheres com pecados e tendências sexuais dos mais variados, que foram levados, pela morte misericordiosa de Cristo, a negarem alegremente a si mesmos para experimentarem uma vida totalmente nova nele. É essa a essência ou o âmago do que significa ser cristão.
UM CHAMA DO DE ALTO PREÇO
O chamado do evangelho não é apenas crucial em uma cultura que praticamente iguala identidade com sexualidade, mas é crítico tam- bém em uma igreja que reduz sistematicamente o cristianismo ao consumismo. "Venha a Cristo", anunciam inúmeras igrejas,"e você terá tudo o que quer neste mundo: saúde, riqueza, felicidade, prosperidade". Imagine dizer isso a Rosaria Butterfield, uma mulher para quem o custo de seguir a Cristo foi imenso. Para ela, atender ao chamado de Cristo significou deixar para trás não apenas sua companheira, mas um estilo de vida.Tantos detalhes de sua vida foram construí- dos em torno de sua identidade de lésbica. Mudar essa identidade significou descartar tudo isso. Foi por isso que ela escreveu sobre sua resistência ao evangelho: "Lutei com tudo o que tinha. Não queria isso[...] Contabilizei os cu;tos. E não gostei do resultado que vi do outro lado da equação".15 O chamado para seguir a Cristo na vida de Rosaria Butterfield não foi um convite para receber alguma coisa que ela queria neste mundo. Foi um chamado para deixar para trás tudo o que ela possuía. Consequentemente, é preciso que tenhamos cuidado na igreja para não minimizar a magnitude do que significa seguir a Cristo. Sim, esse é um evangelho que chama a lésbica e lhe diz que pare de dormir com sua companheira, mas é também o evangelho que chama o heterossexual e lhe diz que pare de sucumbir à pornografia, que chama o homem casado e diz a ele que não abandone mais sua esposa, e também chama o solteiro e lhe diz para evitar a atividade sexual antes do casamento. Sim, o sacrifício talvez seja demais para certos cristãos que optaram por ficar solteiros, porém o custo deve estar claro também em companheiros cristãos que estão alegremente abandonando os prazeres deste mundo em troca da busca e da proclamação de Cristo neste mundo. Como igreja em meio à cultura, devemos nos assegurar de não pregar um evangelho que imagine simplesmente Cristo como meio para uma guinada casual, conservadora e cômoda no sonho americano. Esse evangelho não funcionará na comunidade gay e lésbica - ou, a propósito, em nenhum lugar. O evangelho é um chamado para que todos morram - morram para o pecado e para o próprio eu - e vivam com uma confiança inabalável em Cristo, escolhendo seguir sua Palavra mesmo quando ela nos coloca em evidente confronto com a cultura. Essa morte para o eu requer o exame da nossa sexualidade por inteiro. De que maneiras você se sente especificamente inclinado à atividade sexual fora do casamento entre um homem e uma mulher? Você tem a tendência de ter fantasias sexuais com alguém mais além de seu marido ou de sua esposa? Você se sente tentado a agir de algum modo em relação a esses pensamentos? Está realmente pondo em prática esses pensamentos - seja você solteiro, seja casado, seja heterossexual, seja homossexual? Esteja atento ao que assiste e ao que veste. Você costuma usar saias apertadas e roupas decotadas? De que maneira você está cultivando um sistema de entretenimento obcecado por sexo que envenena sua alma enquanto você sente prazer vendo outros pecan- do sexualmente? De que modo essas coisas, tão comuns em nossa cultura, impedem você de ser mais semelhante a Cristo?
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Deus não o deixou no escuro em relação ao que você deve fazer. "Fuja!", diz ele."Pare de argumentar com a imoralidade sexual, pare de racionalizá-la e corra. Fuja de toda forma de imoralidade sexual o mais rápido que você puder!" Não estamos sozinhos quando fugimos. Todos somos pecadores sexuais num mundo cheio de pecadores sexuais. Infelizmente, na igreja temos uma tendência evidente de isolar certos segmentos de pecadores que lutam com um tipo específico de tentação sexual. Olhamos para os adúlteros como um grupo de infiéis que merece ficar sozinho. Para nós, gays e lésbicas são inimigos imersos em uma conspiração cultural para tomar o país. Os viciados em pornografia são pervertidos, as prostitutas são seres abjetos e as travestis são gente que nos contamina se chegarmos muito perto. Para nós, as outras pessoas são diferentes de nós e, em alguns casos, são até perigosas. Contudo, a verdade é que são pessoas como nós, e nós somos como elas. Cada um de nós está em busca de um caminho que nos parece certo e que parece trazer satisfação. A Palavra de Deus fala a um mundo dividido, um mundo de pecadores sexuais, e nos diz que todos nos desviamos, tais como ovelhas que se desgarraram do seu pastor (veja Is 53.6). Não importa se somos homens ou mulheres, casados ou divorciados, solteiros ou estejamos vivendo com alguém, heterossexuais ou homossexuais, cada um de nós foi por um caminho próprio. Contudo, a boa-nova do evangelho é que Deus lançou o castigo pelos nossos pecados sobre o Filho dele. E a todos os que diariamente negam a si mesmos e confiam nele, Deus promete a paz e a tranquilidade do próprio Cristo em meio a um mar cultural de confusão sexual. Além disso, nessa cultura, Deus nos chama a proclamar o evan- gelho, a nos preocuparmos o suficiente uns com os outros a ponto de chamar o próximo a fugir de todo tipo de imoralidade sexual. Não devemos nos recostar e ficar calados por ser uma atitude mais conveniente em nossa cultura (ou mesmo na igreja). Não devemos esperar que as pessoas venham até nós; devemos ir até elas, assim como Cristo veio até nós, em amor e humildade, com gentileza e paciência, no contexto de uma amizade compassiva e de um relacionamento próximo. Deus nos chama a compartilhar o evangelho com todo tipo de pecador sexual à nossa volta e a mostrar a ele o amor de Deus, sabendo que a eternidade está sob ameaça. Pois quando reconhecemos que um céu eterno e um inferno eterno estão pendentes na balança, nos damos conta de que não é possível crer no evangelho e ficarmos impassíveis em questões como as do pecado sexual. PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA
Ore Peça a Deus que: • Leve os cristãos (inclusivevocê) envolvidos em imoralidade sexual à convicção do pecado e ao arrependimento . • Dê aos cristãos compaixão, ousadia, sabedoria e humildade para lidar com questões como a da atividade homossexual, a pornografia e outras formas de pecado sexual. • Abra o coração dos descrentes para que vejam que Deus perdoa e quebra o poder do pecado sexual, e que a verdadeira liberdade está em Jesus Cristo. Participe E oração, considere dar os seguintes passos: Reúna-se com um pequeno grupo em sua igreja para exortar uns aos outros quanto à pureza sexual e à fidelidade. • Apoie ou se envolva em um ministério que trate de questões de imoralidade sexual em nos.sa cultura.
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• Faça contato com as autoridades locais e exorte-as a aprovar e implementar leis que impeçam a exploração de mulheres mediante pornografia e prostituição em nossa cultura. Proclame Considere as seguintes verdades da Escritura: • }Coríntios 6.9,10: "Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem os que se submetem a práticas homossexuais, nem os que as procuram, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem caluniadores, nem os que cometem fraudes herdarão o reino de Deus". • }Coríntios 6.18-20: "Fugi da imoralidade. Qualquer outro pecado que o homem comete é fora do corpo; mas quem pratica a imoralidade peca contra o seu corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que habita em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Pois fostes comprados por preço; por isso, glorificai a Deus no vosso corpo". • Isaías 1.1 8:"Vinde e raciocinemos, diz o SENHOR: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã".
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Capítulo 8 UNIDADE NA DIVERS IDADE: O EVANGELHO E AS ETNIAS
Addie Mae Collins, Cynthia Wesley, Carole Robertson e Denise McNair. Essas quatro jovens perderam repentinamente a vida num domingo, em uma explosão numa igreja situada no fim da mesma rua onde eu era pastor. Talvez você esteja se perguntando: "Por que jogaram uma bomba naquela igreja?". E a resposta em nada se relaciona com o tipo de perseguição que as pessoas enfrentam mundo afora por causa de sua fé em Cristo. Não, aquela igreja foi atacada por ser uma comunidade de negros, e os homens responsáveis pela bomba eram supremacistas brancos. Não faz muito tempo, tive a honra de pregar ao lado do pastor da igreja Sixteenth Street Baptist Church, exatamente no prédio onde ocorreu a explosão há cinquenta anos. Fiquei ao seu lado e de outros pastores da cidade diante de um auditório repleto de cristãos negros e brancos, e juntos lembramos aquele acontecimento terrível - infelizmente, uma das muitas atrocidades ocorridas em Birmingham (que a certa altura foi chamada de "Bombingham") naquela época. Renovamos nosso compromisso mútuo em Cristo por amor ao evangelho em nossa cidade. A reunião ocorreu numa Sexta-Feira Santa, no mesmo dia em que, há cinquenta anos, Martin Luther King Jr. havia liderado um a marcha pacífica pelo centro de Birmingham, que acabou em seu aprisionamento. Na solitária, onde fora confinado em condições bastante adversas, alguém lhe entregou uma carta, publicada e assinada por oito pastores brancos de Birmingham, criticando King por seus métodos e instando-o a cultivar a paciência em suas atividades de promoção dos direitos civis. King escreveu-lhes em resposta: É fácil para aqueles que nunca foram alvo dos dardos ardentes da segregação dizer que é preciso esperar. Contudo, depois de ver multidões cruéis linchando seu pai e sua mãe à vontade e afogando suas irmãs e seus irmãos sem mais nem menos; depois de ver policiais cheios de ódio xingar, chutar, tratar com violência e até matar seus irmãos e suas irmãs negras impunemente; depois de ver a imensa maioria dos 20 milhões de irmãos negros sufocados na jaula da pobreza em meio a uma sociedade rica; depois de sentir a língua travar e gaguejar quando tentamos explicar à nossa filha de seis anos por que ela não pode ir ao parque de diversões que acaba de ser anunciado na televisão, e ver seus olhinhos marejados ao lhe dizer que a Funtown está fechada para crianças negras, e ver então as nuvens depressivas da inferioridade começando a se formar em seu pequeno céu mental, ver como ela começa a distorcer sua pequena personalidade ao desenvolver de forma inconsciente uma amargura em relação às pessoas brancas; depois de você precisar inventar uma resposta para seu filho de cinco anos que lhe pergunta agoniado e comovido: "Papai, por que as pessoas brancas tratam tão mal os negros?"; depois de viajar pelo país e constatar que tem de dormir noite após noite no próprio carro, sem o menor conforto, porque nenhum hotel aceita hospedá-lo; depois de ser humilhado todos os dias ao deparar com placas irritantes em que se lê "brancos" e "negros"; depois que seu nome passa a ser negro, seu nome do meio garoto (não importa sua idade) e seu sobrenome "John''; depois de ver que sua esposa e sua mãe nunca terão o respeito de serem chamadas de "senhora"; depois de você ser atormentado de dia e acossado à noite pelo fato de ser negro, e viver constántemente pisando em ovos e não sabendo nunca o que esperar a seguir, amaldiçoado por temores íntimos e ressentimentos externos; depois de lutar o tempo todo contra um sentimento degradante de "não ser ninguém'' - só então vocês compreenderão por que achamos difícil esperar. Chega um momento em que o cálice da paciência transborda, e um homem não está mais disposto a ser atirado no abismo da injustiça. Em seguida, depois de explicar por que era sua obrigação desobedecer uma lei injusta do governo para obedecer a justa lei de Deus, King acusa esses pastores com as seguintes palavras contundentes:
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Em meio às injustiças flagrantes infligidas ao negro, vejo igrejas brancas se omitirem, contentando-se meramente em proferir irrelevâncias piedosas e trivialidades farisaicas. Em meio à luta gigantesca pela libertação do nosso país da injustiça racial e econômica, ouvi tantos pastores dizerem: "O evangelho não se preocupa com essas questões sociais".2 E então ele roga a esses pastores que apliquem o evangelho às questões sociais: Houve um tempo em que a igreja tinha muito poder. Foi nessa época que os primeiros cristãos se regozijavam quando eram considerados dignos de sofrer pelo que acreditavam. Naqueles dias, a igreja não era simplesmente um termômetro que registrava as ideias e os princípios da opinião popular; ela era o termostato que transformava os costumes da sociedade... Contudo, o juízo divino está sobre a igreja como nunca antes. Se a igreja de hoje não recuperar o espírito sacrificial da igreja primitiva, ela perderá o selo da autenticidade, negligenciará a lealdade de milhões e será descartada por ser considerada um clube social irrelevante, sem sentido algum para o século 20.3 Reli essas palavras enquanto preparava minha preleção naquela Sexta-Feira Santa e me senti novamente consternado pelas atitudes despidas do evangelho dos meus antepassados brancos naqueles dias. Mas eu precisava ser honesto. Por mais que eu quisesse me distanciar daqueles oito pastores na Birmingham dos anos 1960, tinha de admitir que trago comigo as mesmas tendências de negar o evangelho que inspirou a carta deles. Porque sou inclinado a preferir pessoas que são como eu - que são da mesma cor, da mesma cultura, com a mesma herança e a mesma história. Se entro em uma sala sozinho e vejo duas mesas, uma com um grupo de pessoas etnicamente iguais a mim e outro com um grupo de pessoas etnicamente diferentes de mim, instintivamente me desloco em direção ao grupo parecido comigo. Imagino que algo dentro de mim parte da suposição de que as pessoas parecidas comigo inspiram mais confiança, fazem com que me sinta mais à vontade e, portanto, serão melhores para mim. De igual modo, estou pronto a agir como se aqueles que são diferentes de mim fossem menos dignos de confiança, mais incômodos e menos propensos a me beneficiar. Portanto, isso me parece chegar bem perto da mera preferência pelo tipo de preconceito pecaminoso que marcou meus antecessores no ministério. A diferença entre mim e eles é mais de grau do que de espécie. Assim, quando preguei meu sermão naquela Sexta-Feira Santa, tive de confessar a tendência pecaminosa do meu coração de preferir uma pessoa em detrimento de outra tomando por base semelhanças específicas. Além disso, até hoje, quando escrevo estas palavras, devo admitir que não resisti a essa tendência em meu coração e na minha igreja com a contundência com que deveria ter feito. Sinto em mim uma inadequação para escrever este livro em vários níveis, mas talvez essa inadequação seja mais forte neste capítulo, porque embora eu tenha pr9curado fazer amizades, desenvolver parcerias e iniciativas que promovam a unidade em todas as frentes étnicas, sei que há muito mais que precisa ser feito em minha vida e na igreja a que pertenço. Isso fica mais evidente quando precisamos lidar com uma questão correlata em nossa cultura, a imigração. Vivi e trabalhei em um estado em que os legisladores têm procurado pôr em prática a legislação mais dura do país para lidar com a imigração. Repercutiu pelos Estados Unidos um debate acalorado sobre certas leis do Alabama que regulamentam a maneira de lidar com os milhões de imigrantes, de 12 a 15 milhões, que não têm documentos e vivem atualmente no país. Esses homens, mulheres e crianças que vivem em minha comunidade (e na sua) representam etnias variadas, falam linguas diferentes e têm bagagens culturais diversas. A igreja dá passos tímidos para alcançá-los por meio de ministérios específicos, mas é necessário considerar urgentemente de que modo podemos e devemos - evitar os pecados dos que nos antecederam na era dos Direitos Civis. A opressão da maioria sobre os imigrantes certamente não é melhor do que a segregação imposta pelos brancos aos negros.
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O evangelho obriga a tomada de atitude. Pela graça de Deus, devemos trabalhar para vencer a arrogância preconceituosa em nossa vida, família e igreja, um processo que, estou convencido, começa com a mudança do que falamos sobre raça, de uma vez por todas. Além disso, amparados pela sabedoria de Deus, como cidadãos responsáveis, devemos trabalhar no sentido de respeitar as leis de imigração em nosso país e, ao mesmo tempo, como cristãos compassivos, temos de amar as almas imigrantes em nossa comunidade. Em um contexto em que as minorias se tornarão maioria nos próximos trinta anos, é preciso considerar como aplicar o evangelho no âmbito de uma multiplicidade de cores e culturas para a glória de Cristo.
A RAÇA HUMANA Vivemos em uma cultura em que estamos constantemente imersos em discussões sobre raça e racismo. Dialogamos e organizamos fóruns, patrocinamos debates e promovemos diálogos, escrevemos artigos e damos palestras sobre como resolver a tensão racial em nossa cultura. Mas será que estamos entendendo quais são as soluções para um problema que definimos tão mal? É possível que o evangelho não apenas contrarie a cultura nesse aspecto, mas reformule inteiramente a discussão sobre raça? Vamos refletir sobre o ponto de partida do evangelho para tantas das questões sociais mencionadas: a criação do homem e da mulher à imagem de Deus e com igual dignidade perante ele. Conforme vimos, isso significa que nenhum ser humano é mais ou menos humano do que outro. Todos são criados à imagem de Deus. É a falta de confiança nessa verdade do evangelho que tem levado a horrores indescritíveis na história humana. A escravidão nos Estados Unidos, o Holocausto na Alemanha, o massacre armênio na Turquia, o genocídio em Ruanda e o massacre de seis milhões de coreanos, chineses, indochineses e filipinos pelos japoneses são produtos, todos eles, da ilusão satânica de líderes e cidadãos que acreditaram ser intrinsecamente superiores a outros tipos de pessoas. Já no primeiro capítulo da Bíblia, uma informação fica muito clara: todos, homens e mulheres, foram criados à semelhança de Deus. Gênesis 1 lança esse fundamento, mas Gênesis 10 o amplia ao nos dizer que, depois da queda do homem e do dilúvio que inundou o mundo, as pessoas foram divididas segundo "suas familias, segundo suas línguas, em suas terras, segundo suas nações" (Gn 10.31). Todas essas divisões, porém, apontam para a origem de seus antepassados humanos em uma mesma familia - a de Noé e seus filhos cujos antepassados remontam a um casal, Adão e Eva. É a isso precisamente que Paulo faz referência no Novo Testamento, quando fala a uma multidão de filósofos em Atenas: "De um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda a superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e os territórios da sua habitação" (At 17.26). A narrativa bíblica, portanto, apresenta uma unidade básica por trás da diversidade mundial. Desde o início, Deus planejou uma família humana que se originaria de um pai e de uma mãe. Desses ancestrais comuns viria uma série variada de clãs, que habitariam em terras distantes e produziriam novas nações. Não muito tempo depois, vemos na Bíblia, pessoas de cores variadas de pele e diferentes culturas por toda a paisagem humana. Pensar nisso pode nos levar a indagar: "Mas de que raça eram Adão e Eva?". A resposta é óbvia e simples: eles eram da raça humana. "Não", talvez alguém diga, "eu quero saber de que cor era a pele deles". Logo que essa pergunta é feita, já percebemos qual é o problema dela - em dois aspectos. Em primeiro lugar, não sabemos a resposta a essa pergunta, porque a Bíblia não diz. Agora, na maior parte das Bíblias ocidentais, retratamos um Adão e uma Eva brancos, mas não há base nenhuma para essa pressuposição. Pelo que sabemos, o primeiro casal pode ter sido de qualquer cor ou mesmo de diferentes cores. Talvez a pele de Eva fosse do tom da terra ou de ossos. Na verdade, segundo a genética, há maior probabilidade de que a pele de nossos primeiros pais fosse mais escura, já que esse
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é o gene dominante de cor de pele. Apesar de tudo, nós nos pegamos pensando e falando sobre as pessoas em termos que a Bíblia nem sequer usa. Em segundo lugar, e mais importante, a Palavra de Deus não nos diz de que cor eram Adão e Eva porque, para Deus, não há correlação entre pertencer à raça humana e a cor da pele. Qualquer que tenha sido a cor de Adão e de Eva (e de seus filhos), havia neles um DNA criado por Deus que, no futuro, daria lugar a uma familia de várias cores, em um mundo multicultural. Desse modo, a Palavra de Deus nos lembra de que, seja qual for a cor da nossa pele, temos todos as mesmas raízes. Somos todos, fundamentalmente, parte da mesma raça. É por isso que todos precisamos do mesmo evangelho.
UM PONTO DE PARTIDA DISTANCIADO DO EVANGELHO
Quando compreendemos isso, percebemos que a maior parte das discussões sobre raça e racismo em nossa cultura tem uma perspectiva distanciada do evangelho. Isso porque, no processo de discutir nossa diversidade da perspectiva de diferentes "raças", desconstruímos nossa unidade de raça humana. E isso não é simplesmente uma questão de semântica. Em nossas conversas, criamos categorias para definir uns aos outros que não são apenas terrivelmente inúteis, uma vez que são também, no fim das contas, impossíveis. O critério de "raça", conforme o usamos normalmente, não nos ajuda, porque situa a identidade na aparência física. Você é negro; eu sou branco. Tais declarações parecem simples, no entanto, são mais do que meros indicadores da cor da pele. Elas carregam consigo uma gama de estereótipos e pressupostos baseados diretamente em atributos biológicos. Pelo simples fato de o tom da pele ou da textura do cabelo ser de certa maneira, supomos instintivamente determinadas características nos outros, sejam elas positivas, sejam negativas (com frequência, negativas). Além disso, o critério de "raçà', conforme o usamos normalmente, torna-se insustentável quando conhecemos alguém que não se encaixa perfeitamente nas classificações de cor. Penso aqui em um bom amigo meu, chamado Deric. Quando a mãe de Deric tinha 17 anos, em uma cidade rural do noroeste do Alabama, ela descobriu que estava grávida. El era branca e o pai da criança, negro. Ela entrou em pânico, não sabia o que fazer. Depois de conversar com alguns amigos, decidiu fazer um aborto. Afinal de contas, o que as pessoas da comunidade diriam? O casamento inter-racial no Alabama foi proibido por lei até 1967 (foi só em 2000 que as seguintes palavras foram retiradas da constituição estadual: "O legislativo não deverá aprovar nenhuma lei que autorize ou legalize o casamento entre uma pessoa branca e um negro ou descendente de um negro"). Os amigos a acompanharam então até a clínica, lá ela foi levada para uma mesa de cirurgia. Depois de sedá-la, o médico começou a lhe fazer algumas perguntas. Ele foi ticando os quadradinhos de respostas até que veio a última pergunta: -
Você quer prosseguir com este procedimento?
Ela pensou um pouco. Então, embora sedada e, para a surpresa tanto do médico quanto dos amigos, ela se levantou e disse: -Não. Saiu da clínica e, meses depois, Deric nasceu. Então, de que raça é Deric? Ele é negro? É branco? É as duas coisas de alguma forma? Em que categoria o colocaríamos? E com que pressupostos devemos nos aproximar dele?
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Essa categorização se torna ainda mais impossível com a globalização das nossas comunidades. Thabiti Anyabwile, um amigo e pastor que escreveu muito sobre esse assunto, morou nas Ilhas Cayman durante muitos anos. Como indivíduo "negro" que é, ele explica que de nada adianta usar a "raça" para distinguir homens e mulheres: Meu barbeiro no Caribe se parece exatamente comigo. Você talvez achasse que ele fosse afroamericano até o momento em que abrisse a boca. Quando ele fala, sua língua é um patoá jamaicano; portanto, fica claro que ele não é afro-americano. Meu assistente--administrativo também é orgulhosamente jamaicano - e tem a pele muito branca. A senhora na barbearia que frequento se parece muito com minha esposa. Você talvez achasse que ela fosse afro-americana ou mesmo das Ilhas Cayman. Ela é hondurenha. Essa ideia de impor categorias artificialmente às pessoas de acordo com a cor da pele - sua biologia - é uma grande bobagem . É uma impossibilidade. É por isso que boa parte das áreas que estudam as questões de raça e etnia abandonaram em grande medida a tentativa de identificar as pessoas com base em categorias biológicas de raça.5 Penso na mesma realidade quando prego em um lugar como Dubai. Nunca estive em um lugar do mundo em que me sentisse mais perto do céu do que quando estive em Dubai, diante de uma igreja movida pelo evangelho e pastoreada por um amigo. Imagine você olhar para uma multidão e ver pelo menos 70 nacionalidades diferentes representadas em uma única sala. Depois do culto, fiquei um pouco mais para conversar com os membros da igreja. Acho que não encontrei mais de uma pessoa que fosse da mesma etnia. Havia pessoas de diversas cores, de diferentes culturas, com sotaques diferentes e atributos distintos. Foi então que ali, no meio deles, me dei conta estranhamente de que eles (ou, melhor dizendo, nós) éramos todos iguais. Cada um de nós tinha raízes que remontavam a Adão, e cada um trazia em si a imagem de Deus. Esse ponto de partida contraria basicamente o ponto de par- tida em vigor atualmente para compreender e abordar essa questão social em nossa cultura. E isso não é apenas uma questão de semântica desconectada da nossa vida cotidiana. No momento em que escrevo, vejo que houve distúrbios em Ferguson, no Missouri, onde um adolescente "negro" foi recentemente assassinado na rua por um policial "branco", aparentemente sem justificativa. Depois que este livro for publicado, surgirão mais fatos relacionados ao caso e, a despeito desse, outro casos trágicos como esse terão ocorrido. Seja como for, a realidade em nossa cultura é clara: a troca de ideias sobre acontecimentos como os de Ferguson ou da Flórida, com Trayvon Martin, iniciou-se a partir de um ponto de discórdia. Como classificamos uns aos outros, inutilmente, com base em diferentes raças e como, inevitavelmente, atribuímos uns aos outros iferentes cores com todo tipo de pressupostos e estereótipos associados aos rótulos "negro" e "branco", desde o princípio minamos nossa capacidade de discutir e de tratar da enorme tensão que essa questão social gera. A menos que o ponto de partida seja outro, rótulos desse tipo continuarão a ter efeito mortal, literalmente mortal. Não estou, obviamente, tentando negar as diferenças evi- dentes entre as pessoas. Isso é algo que se baseia não apenas em fundamentos bíblicos, mas também na observação prática. O que defendo, em vez disso, é uma confissão enriquecida pelo evangelho de que somos uma só raça, pois quando essa realidade estiver clara, teremos um ponto de partida melhor em nossa cultura para discutir nossas diferenças.
ETNIA Isso nos leva diretamente ao lugar em que a Bíblia fundamenta nossa compreensão da diversidade humana: na etnia humana. Parafraseando a linguagem de Gênesis 10 (NVI), formamos "clãs" em "nações" separadas, que falam diferentes "línguas" em "territórios" diversos. Com a globalização e a migração de homens e mulheres para vários continentes e cidades, esses clãs, de nações distintas, com idiomas diferentes, hoje convivem, com frequência, no mesmo território.
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Aqui, o conceito de etnia ajuda muito, uma vez que inclui todas essas considerações e outras mais. Em vez de estar rigorosamente atrelada à biologia, a etnia é muito mais fluida, porque leva em conta características sociais, culturais, linguísticas, históricas e até religiosas. Embora reconheçamos a existência de aproximadamente duzentas nações no mundo todo atualmente, os antropólogos identificaram milhares (para alguns, mais de onze mil; para outros, mais de dezesseis mil) grupos etnolinguísticos distintos no mundo. Esses grupos, geralmente chamados de grupos étnicos têm uma identidade pessoal e uma história comuns, os mesmos costumes, padrões e práticas baseados naquelas duas características primordiais: etnia e linguagem.6 Essas categorias, porém, não são somente restritivas. Alguns grupos étnicos podem falar várias línguas e ainda assim se considerarem um único grupo étnico. Os dinka, com quem tive contato no Sudão do Sul, são um exemplo. Eles falam vários dialetos que compreendem cinco línguas distintas, mas se identificam claramente como um só povo. De igual modo, outros grupos étnicos talvez falem a mesma língua, porém se situem em grupos étnicos diferentes. Os tutsi e os hutu, da região leste da África central, são um exemplo. Ambos têm uma língua comum e uma mesma cultura, mas conservaram identidades sociais distintas durante os últimos dois mil anos.7 Se aplicarmos o conceito aos Estados Unidos, não faz sentido, então, classificar o país como uma nação de negros, brancos, pardos ou outras "raças". Em vez disso, os Estados Unidos são uma nação de grupos étnicos cada vez mais diversos. O país é formado por anglo-americanos, afroamericanos, latino-americanos, asiático-americanos etc. Essas categorias podem ser subdivididas em outras mais, com base em outros fatores etnolinguísticos, o que nos leva a perceber que os Estados Unidos são uma nação de grupos étnicos específicos, com histórias diversas, de diferentes territórios, com costumes e até línguas distintas. No último final de semana, um pequeno grupo de membros da nossa igreja-passo a tarde reunido propositalmente com homens e mulheres de diferentes grupos étnicos de nossa cidade. Eles foram a restaurantes e mercados internacionais, centros comunitários e campi universitários e fizeram contato com tailandeses, filipinos, vietnamitas, punjabis, falantes de gujarati, colombianos, salvadorenhos, árabes palestinos, árabes jordanianos, árabes iemenitas do norte e árabes marroquinos, só para citar alguns dos grupos etnolinguísticos que eles encontraram em poucas horas. Certamente essa diversidade de pessoas não pode ser definida pelo tom de pele, textura do cabelo ou cor dos olhos apenas. Alguns talvez achem que ao abandonar as categorias de negro e branco nas discussões sobre raça e racismo, estamos tentando varrer para debaixo do tapete séculos de história e de opressão como se nunca houvessem existido. De modo algum! Em vez disso, ao basear nosso diálogo de forma mais significativa nas características etnolinguísticas, estamos reconhecendo esses séculos reais de história e de opressão e combinando-os com uma série de outros fatores fluidos que não podem ser reduzidos à biologia básica. Além disso, ao tirar a raça e o racismo totalmente da discussão, estamos abrindo caminho para que nós, como uma só raça, chamemos o racismo pelo que ele de fato é: um pecado nascido em um coração onde há orgulho e preconceito. Com isso, preparamos o cenário para compreender de que modo o evangelho, e somente ele, pode promover uma união poderosa em meio a uma diversidade tão disseminada.
O QUE TORNA O EVANGELHO POSSÍVEL Assim como a Palavra de Deus de imediato nos apresenta diversos clãs, línguas, territórios e nações, ela também condena as pessoas por sua tendência à arrogância egoísta e ao preconceito étnico. Tal arrogância fica evidente até mesmo na primeira família, quando Caim, filho de Adão e Eva, mata seu irmão, Abel. Pouco depois disso,"[...] o SENHOR viu que a maldade do homem na terra era grande e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má" (Gn 6.5). Poucos capítulos depois na Bíblia, essa impiedade se transforma em guerras entre nações e conflitos
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entre clãs. anto mais pessoas diferentes se misturavam, tanto mais maltratavam umas às outras. As páginas da Bíblia e da história da humanidade estão, portanto, cheias de uma afinidade maligna pela animosidade étnica. Essas mesmas páginas revelam um Deus com uma paixão por todos os grupos étnicos. Depois que as nações se rebelam contra ele em Babel, em Gênesis 11, Deus chama um grupo étnico para que seja seu, em Gênesis 12. Ele promete abençoar essa etnia de israelitas, mas o propósito de sua bênção se estende muito além deles. Deus diz:"... todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de ti"(Gn 12.3). Essa promessa é reiterada muitas outras vezes no Antigo Testamento, à medida que Deus declara seu desejo de que todas as nações contemplem sua grandeza e experimentem sua graça (veja Sl 96). Além disso, Deus dá leis a seu povo, a essa etnia de israelitas, referentes ao tratamento correto aos outros povos em seu meio. 8 Depois que os israelitas passaram séculos no exílio no Egito, Deus lhes ordena: "Não maltratarás o estrangeiro, nem o oprimirá , pois fostes estrangeiros na terra do Egito" (Êx 22.21). No texto que segue e na esteira do que já examinamos no capítulo 4: acerca da justiça ao órfão e à viúva, Deus diz que ele "ama o estrangeiro, dando-lhe comida e roupa" e, consequentemente, conclama seu povo a que ame O estrangeiro (Dt 10.18). Por meio dos profetas, Deus acusa seu povo de extorsão e roubo. "O povo[...] tem agido com opressão [para com 0 ] pobre e [o] necessitado", diz Deus, "e tem oprimido injustamente o estrangeiro" (Ez 22.29; veja tb.Jr 7.6; Zc 7.10). O termo, hebraico para "estrangeiro" nessas passagens pode ser basicamente traduzido e entendido, na prática, como "imigrante". Esses estrangeiros, que haviam se separado de suas famílias e de sua terra, encontravam-se em situação precária, necessitados da ajuda das pessoas entre as quais viviam. Como consequência, Deus tem por eles compaixão especial, e a Bíblia muitas vezes agrupa o estrangeiro, ou imigrante, com o órfão e a viúva. As páginas do Antigo Testamento apresentam Deus como o "SENHOR [que] protege os peregrinos" (Sl 146.9). , Quando Jesus vem à terra no Novo Testamento, ele nos é imediatamente apresentado como imigrante. Fugindo da situação política de brutalidade em Belém, depois que Jesus nasce, sua família vai para O Egito, onde seus membros vivem durante anos como estrangeiros em uma terra estrangeira. Jesus retorna a Israel e, desde o começo do seu ministério, ele subverte sutilmente o orgulho nacional da etnia dos israelitas, que aguardavam um Messias judeu que derrubasse Roma e restabelecesse Israel. Embora a atenção principal de Jesus fosse para com as "ovelhas perdi as[ . .. ]_de Israel" (Mt 15.24), ele, não obstante, vai além das fronteiras nacionais em momentos críticos para amar, servir, ensinar, curar e salvar cananeus e samaritanos, gregos e romanos. 9 Então, Jesus choca o sistema preconcebido de seus discípulos judeus, não apenas morrendo em uma cruz e ressuscitando da sepultura, mas também lhes ordenando que proclamem "o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações" (Lc 24.47).Jesus veio não apenas como Salvador de Israel; ele veio como Salvador e Senhor de todos. Esse entendimento se tornou o fundamento para o chamado à unidade étnica por ocasião do estabelecimento da igreja. A divisão cultural entre judeus e gentios (não judeus) era profunda durante o primeiro século. Contudo, com o desdobramento da história da igreja, lemos que, para a surpresa de muitos judeus, os gentio s começaram a crer em Jesus. Primeiro, os cristãos judeus não sabiam como reagir. Será que deveriam aceitar os cristãos gentios? Em caso positivo, deveriam impor a eles os costumes judeus? Embora os gentios fossem finalmente aceitos na igreja, eles se sentiam , na melhor das hipóteses, cristãos de segunda classe. Nessa atmosfera, Paulo se dirige aos crentes gentios dizendo-lhes: ... estáveis naquele tempo sem Cristo, separados da comunidade de Israel, estranhos às alianças da promessa, sem esperança e sem Deu s no mundo. Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, viestes para perto pelo sangue de Cristo, pois ele é a nossa paz. De ambos os
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povos fez um só e, derrubando a parede de separação, em seu corpo desfez a inimizade... (Ef 2.1214). Em seguida, ele os exorta: "... pois por meio dele ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito. Assim, não sois mais estrangei- ros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da familia de Deus..." (Ef 2.18,19). Essas palavras descrevem de um modo belo o poder único do evangelho de unir pessoas de diferentes grupos étnicos (unindo, inclusive, os membros no interior de seus grupos). E isso faz sentido, na raiz da arrogância e do preconceito étnicos. Quando Cristo foi cruscificado, ele derrotou o pecado, abrindo caminho para que pessoas fossem libertas de seus grilhões e restituídas a Deus. Com isso, ele abriu caminho para que todos se reconciliassem. Os segui dores de Cristo, portanto, têm um "Pai" como em uma só "familia", em um "lar" em que não há "parede de separação e de inimizade" resultante da diversidade étnica. Essa, portanto, foi a realidade gloriosa expressa naquela reunião de Sexta-Feira Santa na igreja Sixteenth Street Baptist Church. Eu estava diante de um auditório de pessoas diversas, algumas das quais estavam naquele prédio no dia em que a bomba foi jogada. Quando olharam para a pele branca do meu rosto, podiam ter visto o mesmo tipo de pessoa que matou aquelas jovens. Mas, pela graça de Deus, não foi o que aconteceu. Em vez disso, elas viram um irmão em Cristo cujo caráter, graças a Deus, não estava atrelado a uma história assustadora, e cuja identidade, felizmente, não era delimitada por determinada cor. Esse é o quadro que o evangelho torna possível.
UM EM CRISTO Contudo, não nos enganemos no sentido de achar que aqueles homens e mulheres diferentes de mim, ali reunidos naquela Sexta-Feira Santa, devessem ignorar a história do meu grupo étnico e o que nós lhes havíamos feito ou fechar os olhos para as diferenças existentes entre nós. Em seu mais célebre discurso na Marcha sobre Washington, Martin Luther King Jr. subiu as escadas do Lincoln Memorial e disse em alto e bom som:" Eu tenho um sonho: que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter".10 Desde esse dia, alguns em nossa cultura têm defendido uma sociedade cega à cor e que finge que nossas diferenças não existem. Não é essa, porém, a atitude a que o evangelho nos compele. O evangelho não nega as diferenças étnicas, culturais e históricas evidentes que nos distinguem uns dos outros. Tampouco ele supõe que tais diferenças sejam meramente superficiais. Ao contrário, o evangelho começa com um Deus que cria homens e mulheres à sua imagem e, em seguida, diversifica a humanidade segundo clãs e terras, como reflexo criativo de sua graça e glória em grupos étnicos distintos. Ao realçar a beleza dessa diversidade, o evangelho, portanto, opõe-se à ilusão cultural de que o caminho para a unidade se constrói minimizando o que nos torna especiais. Ao contrário, ele nos leva a celebrar nossas diferenças étnicas, a valorizar nossas diferenças culturais e a reconhecer nossa diversidade histórica, perdoando até mesmo os aspectos em que tal história possa ter sido terrivelmente danosa. Venho experimentando uma alegria especial nos laços de amizade e parceria decorrentes do ministério com pastores e membros de igrejas etnicamente diferentes de mim - especificamente com aqueles que têm razões históricas para guardar alguma animosidade para comigo. Temos trabalhado juntos quando furacões arrasam comunidades em nossa cidade. Temos orado juntos quando tragédias e crises tomam de assalto nosso país. Temos pregado juntos em igrejas, congressos e eventos na cidade. Temos servido juntos em esforços específicos para atender às necessidades dos pobres, das viúvas e dos órfãos à nossa volta. Em tudo isso, tenho aprendido muito com meus irmãos e irmãs diferentes de mim. E quanto mais essas amizades florescem e as parcerias se ampliam, tanto mais agradeço a Deus por eles não serem como eu.
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Em uma escala maior, não posso deixar de pensar em Steve Saint ao lado de Mincaye testemunhando juntos, em um púlpito, sobre o poder de Deus no evangelho. Mincaye, membro do povo huaorani das selvas do Equador, havia matado anos antes o pai de Steve, Nate, que tentara compartilhar o evangelho com Mincaye e seu povo. Mincaye hoje é seguidor de Jesus e amigo de Steve. De braços dados, um vestindo roupas ocidentais e o outro, as vestimentas de sua tribo, um falando inglês e o outro, sua língua nativa, um cujo pai fora morto e o outro, cuja lança matara o pai, ambos representam o poder do evangelho - não de eliminar diferenças, como se não existissem, mas de transcendê-las como um só em Cristo. É isso o que a Bíblia quer dizer em Gálatas: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um e Cristo Jesus"(Gl 3.28). Algumas pessoas interpretam mal esse versículo, assim como se equivocam na interpretação das palavras de Martin Luther King, dizendo que as diferenças não importam. Acontece que elas importam. Nossas peculiaridades são importantes. Temos muito a aprender e a celebrar em nossas diferenças culturais, étnicas e de gênero. Quando penso nas pessoas que influenciaram profundamente minha vida, sinto-me grato porque muitas delas pertencem a etnias distintas. Penso em Jeffries, um amigo do Sudão do Sul que foi quem primeiro me apresentou o drama da igreja perseguida. Jeffries me mostrou uma perspectiva totalmente nova de alegria em meio ao sofrimento e, por meio do seu desejo de compartilhar o evangelho com seus perseguidores, ele me ensinou como amar inimigos de outra etnia. Penso em Fátima, uma mulher do Oriente Médio que foi para mim a personificação da hospitalidade bíblica pelo modo que ela e sua familia acolheram a mim e a outras pessoas em sua casa. Como seguidora de Cristo em um país onde era ilegal ser cristão, ela foi um exemplo do que significa exaltar Cristo de forma humilde, ousada e sábia na cultura. Penso também em Jian e Lin, um casal asiático a quem conheci durante uma refeição em que foi servida em uma caçarola quente um ensopado picante de galinha inteira (inteira mesmo). No convívio com Jian e Lin, Deus tem usado sua vida simples e sua liderança sacrificial na igreja para revelar pontos cegos culturais da minha vida e da minha liderança. Eu poderia prosseguir listando nomes de homens e mulheres de diferentes etnias que deixaram marcas indeléveis em minha vida. Quando penso no impacto conjunto que tiveram sobre mim, percebo que eles me modelaram, não a despeito de nossas diferenças, mas por causa delas. Todo isso aponta, em última análise, para a bondade de Deus no evangelho, pois, segundo Gálatas 3, em Cristo somos capazes de experimentar a plenitude da beleza do projeto de Deus para a diversidade do ser humano.
O ESTRANGEIRO EM NOSSO MEIO
O evangelho não afeta apenas as várias maneiras pelas quais anglo-americanos e afroamericanos veem uns aos outros em nossa cultura, outra maneira pela qual vemos as pessoas em diferentes países, mas afeta também como os seguidores de Cristo veem os imigrantes, homens e mulheres, que vivem à nossa volta no país. Basta uma leitura superficial do Antigo Testamento, combinada com um entendimento claro da cruz de Cristo no Novo Testamento, para colocar em dúvida o enfoque contemporâneo dado à imigração por muitos cristãos em nossa cultura. Além da ignorância prática sobreo assunto na esfera política, nossa vida pessoal revela, com frequência, pouca atenção ao estrangeiro em nosso meio. Russell Moore diz que a reação cristã a nossos vizinhos imigrantes é parecida com algo como: "Crianças, saiam do meu gramado!". Contudo, se o Deus da Bíblia se compadece de modo especial do imigrante, a ponto de compará-lo ao órfão e à viúva, e se a cruz de Cristo nos compele a ir além das divisões étnicas, então, tanto mais nós, como povo de Deus, não devemos cuidar do imigrante em nosso meio?
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Vejamos a história de Sam e Lucas. Os dois moravam no México cm meio a uma pobreza desesperadora, sem condições de atender às necessidades básicas das esposas e filhos. Um dia, um amigo lhes disse que havia descoberto um meio de arrumarem um emprego nos Estados Unidos. Ali eles poderiam ganhar dinheiro e enviá-lo às suas familias. Sam e Lucas não viram outra opção e concordaram em ir. Eles se despediram das esposas e filhos e partiram com o amigo. Semanas depois, os dois se viram deitados na traseira de uma camioneta velha, totalmente cobertos por uma manta, enquanto o veículo sacolejava pela estrada. Por fim, chegaram à entrada dos fundos de um restaurante muito conhecido. O arrogante dono do estabelecimento saiu para recebê-los. Depois de conversar com o motorista em uma língua estrangeira, o proprietário lhe dá algum dinheiro; em seguida, abre a porta traseira do carro. Ele descobre Sam e Lucas e diz a eles que saiam depressa do veículo. Eles entram no restaurante pela porta dos fundos, onde o dono do estabelecimento faz com que se sentem e lhes serve uma refeição rápida. Enquanto comem, o proprietário apresenta a Sam e a Lucas seu futuro trabalho: tirar mesas e lavar louça. Depois de comerem, o dono os leva de carro até um sobrado deteriorado, com persianas fechadas nas janelas, que eles dividirão com vários outros trabalha- dores como eles. "Venho pegar vocês e os outros às dez horas da manhã", disse o dono do restaurante ao sair. Sam e Lucas haviam chegado a sua nova casa. Os dois tinham agora uma vida nova. Todos os dias eles iam da casa onde moravam para o restaurante onde trabalhavam e voltavam. É um restaurante bem conhecido, com ótimas avaliações na imprensa e que atrai todo tipo de pessoas diferentes - gente como você e eu. Contudo, em meio à multidão que cerca Sam e Lucas, ninguém os conhece. Ninguém nem mesmo nota sua existência. Eles vivem em condições de pobreza e mandam o máximo de dinheiro possível para suas familias, ao mesmo tempo que se entregam ao álcool e às prostitutas para preencher a solidão.12 Não é meu objetivo estereotipar o trabalhador imigrante - embora essa história seja verdadeira, isso não significa, obviamente, que todo latino-americano que lava louça em restaurantes tenha a mesma história. Também não é meu objetivo hipersimplificar0 drama dos imigrantes em nosso país ou o dilema de como atender às suas necessidades. Por fim, não é minha intenção aqui propor respostas políticas abrangentes para o atoleiro legislativo que a imigração ilegal representa na prática em nosso país. Contudo, é, sim, meu objetivo mostrar que a mensagem do evan- gelho tem implicações no problema da imigração e, especialmente, para imigrantes ilegais como Sam e Lucas. Em meio a discussões políticas necessárias e discordâncias pessoais inevitáveis, o evangelho nos lembra, em primeiro lugar, de que quando falamos de imigrantes (legais ou ilegais), estamos nos referindo a homens e mulheres criados à imagem de Deus que são alvos de sua graça. Consequentemente, quem segue a Cristo deve ver o imigrante não como um problema a ser resolvido, mas como uma pessoa a ser amada. O evangelho nos leva em nossa cultura a condenar todo tipo de opressão, exploração, intolerância ou assédio ao imigrante, não importa qual seja seu status legal. Trata-se de homens e mulheres por quem Cristo morreu, cuja dignidade não é maior nem menor do que a nossa. De igual modo, suas famílias não são menos importantes do que as nossas. Muitos imigrantes ilegais, como Sam e Lucas, estão nos Estados Unidos por razões compreensíveis: estão fugindo de uma situação econômica e política brutal em seu país e lutando pela sobrevivência de suas famílias. Outros vieram para os Estados Unidos há muitos anos e agora têm família aqui. Penso em Ricardo, seguidor de Cristo e pai de cinco filhos, três dos quais são cidadãos americanos. Ricardo entrou ilegalmente no país há mais de 20 anos e nesse tempo todo trabalhou para sustentar a família, enquanto servia a comunidade. Contudo, se Ricardo voltasse agora para sua aldeia no México, ele estaria condenando a si mesmo e à sua família à pobreza mais abjeta. Sua opção seria dividir a família, deixando para trás seus três filhos "legais" (considerados cidadãos americanos) aos cuidados de algum vizinho.13 Não há dúvida de que, assim como o evangelho nos obriga a respeitar a dignidade dos imigrantes a despeito de seu status legal, ele também nos constrange a proteger a união da família qualquer que seja seu status legal.
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Tudo isso, obviamente, complica-se devido a uma legislação ultrapassada e fora de sintonia com o atual mercado de trabalho dos Estados Unidos. Acrescente-se a isso a aplicação seletiva das leis de imigração e fica claro para todos que, seja qual for nossa preferência política pessoal, o sistema precisa ser reformado. O evangelho não se cala nem mesmo nesse caso, conforme vimos no capítulo 3, uma vez que a Bíblia ensina claramente que o governo existe sob o governo de Deus, para estabelecer e aplicar leis para o bem da população (veja Rm 13.1-7).Temos diante de Deus, como cidadãos de um governo, a responsabilidade de trabalhar juntos para criar e aplicar leis justas aos imigrantes. Entre outras coisas, tais leis exigem a segurança de nossas fronteiras, a responsabilização dos donos de empresas por suas práticas de contratação e a adoção de medidas essenciais que garantam aos contribuintes do país um tratamento justo no que se refere ao pagamento de impostos. Assim também, como cidadãos de um país, temos a responsabilidade perante Deus de trabalhar juntos para refutar e pôr fim a leis injustas que oprimem os imigrantes. 14 Deixar de agir de uma dessas duas formas seria o mesmo que promover a injustiça, o que nos deixaria fora de sintonia com o evangelho. Não creio que haja respostas fáceis para nenhuma das dificuldades mencionado, mas defendo que o evangelho exige dos cristãos que se envolvam com essas questões. Não importa qual seja nossa visão política pessoal, nenhum de nós pode escapar à realidade de que estamos falando de nossos próximos. E a ordem de Jesus em relação ao nosso próximo é clara. Enquanto houver imigrantes, legais ou ilegais, vivendo à nossa volta pelo desígnio poderoso de Deus (veja At 17.26,27), somos chamados a refletir sobre como amá-los assim como amamos a nós mesmos (veja Lc 10 .25-37).
EM AÇÃO
Penso em meu amigo Tyler, pastor no Arizona. Em meio à entrada vertiginosa de imigrantes em sua comunidade (muitos dos quais, ilegais) e rodeado por um ambiente de discussões legislativas em seu estado, Tyler e a igreja por ele liderada decidiram contribuir para a questão com a perspectiva do evangelho e servir essas pessoas, movidos pela compaixão do evangelho. Juntos, passaram a providenciar alimentação e roupas para os trabalhadores imigrantes por meio de uma série de diferentes ministérios. Esses ministérios propiciaram o desenvolvimento de relacionamentos pessoais com homens, mulheres e crianças imigrantes, abrindo portas para que os membros da igreja não apenas amassem essas pessoas, mas aprendessem com elas e com suas famílias. Isso, é claro, exigiu mais tempo e recursos, entretanto, nas palavras de Tyler, "não demorou muito para que nossa gente começasse a doar mais do que alimentos - eles começaram a doar a própria vida". Isso, por fim, levou à construção de um centro comunitário, em um bairro latino, que agora oferece semanalmente aulas de inglês, programas complementares depois das aulas, treinamento em habilidades para a vida e estudos bíblicos. Além disso, a igreja que Tyler pastoreia fez parceria com uma igreja latina para criar um centro de proteção para pessoas que, em outros tempos; acabariam abusadas por seus empregadores ou trabalhando sem remuneração. O trabalho da igreja entre os latinos levou à conscientização da presença de refugiados bantu da Somália e de refugiados do Uzbequistão na comunidade. Consequentemente, centenas de membros da igreja agora servem esses refugiados, recepcionando-os no aeroporto, orientando-os, ensinandolhes estratégias empresariais e de sobrevivência e organizando formas de dar apoio financeiro a refugiados que se tornam donos de restaurantes. Em tudo isso, diz Tyler, "tivemos centenas de oportunidades de conversar sobre Jesus [...] e temos visto Deus mudar vidas". Contudo, não tem sido fácil. Tyler comenta: "Nosso trabalho é ratificado por muitos, mas também vem sendo alvo de críticas tanto dentro quanto fora da igreja [...] Por causa do nosso apoio a essas comunidades, temos sido acusados de contribuir para a crise e a sobrecarga econômica do nosso sistema de educação e de saúde, e até mesmo para crimes violentos como estupro e homicídio pra- ticados por imigrantes ilegais". Uma das coisas de que mais gosto em
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Tyler é sua disposição para ouvir e aprender com as críticas. Em suas palavras: "Descobrimos que é importante pausar e ouvir as críticas de pessoas respeitáveis, cujas preocupações são legítimas. Devemos ouvir especialmente aqueles que nos desafiam com o argumento de que nosso trabalho é contrário ao bem comum. Se sua preocupação for válida, cabe-nos responder a ela e fazer os ajustes necessários. Se, porém, essas pessoas estiverem mal orientadas, cabe-nos esclarecer nossas intenções e continuar a trabalhar naquilo a que fomos chamados ".15 Ninguém pode esperar participar de um ministério desses em nossa cultura sem esperar menos do que desafios como esses. O que eu mais admiro em Tyler e em sua igreja é a forma destemida de eles se envolverem ativamente em suas atividades - e a um grande custo diante de certas críticas aplicando o evangelho a essa necessidade social premente dos nossos dias. Os membros dessa igreja, evidentemente, não são perfeitos em sua resposta à imigração. Ao mesmo tempo, grandes contingentes de homens, mulheres e crianças criados à imagem de Deus sentem-se gratos porque os membros dessa igreja também não são passivos. Um Pais melhor No fim das contas, somos todos imigrantes. Não estou me referido simplesmente a nossos ancestrais que talvez tenham migrado para os Estados Unidos há muitos anos. Refiro-me à essência do que significa ser cristão. A Bíblia se refere aos crentes em Cristo como "peregrinos e estrangeiros" que "estão buscando uma pátria" e "almejam uma pátria melhor", uma "cidade[...] que virá"(lPe 2.11; Hb 11.13,14,16; 13.14). Em outras palavras, os cristãos são migrantes nesta terra e, quanto mais nos envolvermos na vida dos imigrantes, tanto melhor compreenderemos o evangelho. Infelizmente, ao longo da história os cristãos falharam em compreender como o evangelho afeta a maneira de vermos e amarmos pessoas de diferentes etnias. Minha esperança e minha oração é que não seja isso o que os historiadores venham a escrever sobre a igreja do nosso tempo. O corpo de Cristo é composto de uma cidadania multicultural de um reino de outro mundo, e isso muda a maneira pela qual vivemos neste país em constante transformação. Pela graça pura e simples de Deus no evangelho, somos compelidos a combater o orgulho egoísta e o preconceito étnico tanto em nosso coração quando em nossa cultura. Isso porque, afinal, não é essa a cultura à qual pertencemos. Em vez disso, olhamos para frente, para o dia em que "uma grande multidão, que ninguém [pode] contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas" (Ap 7.9) se apresentará como uma única raça redimida para dar glória ao Pai, que não nos chama de estrangeiros ou de exilados, mas de filhos e filhas.
PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA Ore Peça a Deus que: Abra os olhos de todos os crentes (inclusive os seus) para o orgulho egoísta e o preconceito pecaminoso, e lhes conceda o arrependimento. Proteja os imigrantes, dê a eles e a suas famílias o sustento de que necessitam, e os ponha em contato com crentes que ministrem a eles. Dê à liderança dos Estados Unidos (e de outros países) sabedoria para lidar com a questão da imigração. Participe Em oração, considere dar os seguintes passos:
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123 Converse com a liderança de sua igreja sobre uma parceria com o ministério de urna igreja cujos membros sejam de uma etnia diferente da sua. Abra sua casa para um estudante de outro país ou para alguém de um grupo étnico diferente, uma vez que a maior parte dessas pessoas jamais teve a oportunidade de entrar no lar de uma família americana. Comece um ministério para imigrantes necessitados em sua região. Providencie alimento, abrigo e ensino do idioma. Principalmente, anuncie o evangelho para eles. Proclame Considere as seguintes verdades da Escritura: Atos 17.26: "De um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda a superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e os territórios da sua habitação...". Deuteronômio 10.19: "Amarás o estrangeiro, pois fostesestrangeiros na terra do Egito". Gálatas 3.28:"Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus".
124 CAPÍTULO 9 CRISTO EM PRAÇA PÚBLICA: O EVANGELHO E A LIBERDADE RELIGIOSA
Assustador. Essa é a única palavra que me vem à mente quando penso que estava a cem metros de soldados norte-coreanos que me fitavam com armas nas mãos. Eu estava na zona desmilitarizada (conhecida como DMZ), uma pequena faixa de terra que corta ao meio a península coreana e separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul. Com cerca de 240 km de extensão e 4 km de largura, ela serve de divisa entre esses dois países e os aliados que representam. Ironicamente, é a fronteira mais militarizada do mundo. Eu estava na chamada Área de Segurança Conjunta, a única parte da DMZ que permite às forças das Coreias do Norte e do Sul ficarem frente a frente. Há alguns anos, essa pequena aldeia foi escolhida para sediar as negociações entre os dois países. No centro dessa região há um pequeno prédio azul onde ocorrem as reuniões internacionais. Entrei no prédio e vi uma mesa de reunião, nela havia um risco branco separando um lado do outro. Durante as discussões oficiais, as autoridades sul-coreanas sentavam-se de um lado da linha enquanto os representantes da Coreia do Norte sentavam-se do outro. O que mais me assustou, porém, não vinha daquele prédio nem dos soldados que eu avistava do outro lado da fronteira, cujos olhos estavam fixos em todos os movimentos que eu fazia (e nos que faziam os demais próximos a mim). Não. O que mais me assustou foi saber da condição das pessoas, principalmente dos cristãos, que viviam atrás daquela linha de soldados. A Coreia do Norte tem um histórico terrível na área de direitos humanos. Escassez de alimentos, trabalhos forçados, violência sexual, tortura sistemática e execuções públicas caracterizam esse país comunista. O país é conhecido, especialmente, por colocar pessoas de qualquer fé em campos de prisioneiros chamados de kwan-li-so, onde algumas acabam sendo mortas por causa de suas crenças. Durante anos a Coreia do Norte ocupou o topo da World Watch List [Lista de Monitoramento Mundial], um ranking de cinquenta países que mostra onde os cristãos são mais perseguidos no mundo. Se um norte--coreano é pego com uma Bíblia ou é suspeito de algum contato com cristãos sul-coreanos ou chineses, corre risco de vida. Policiais norte--coreanos são treinados para entrarem na China, passando-se por refugiados, e se infiltrarem em igrejas para descobrir seus contatos nas igrejas da Coreia do Norte. Eles promovem falsas reuniões de oração para prender e, mais tarde, matar os cristãos norte-coraenos. Não é preciso dizer que, para os nortecoreanos, liberdade religiosa não existe. E o mesmo se pode dizer de homens e mulheres em muitos outros países, embora as condições talvez não sejam tão graves quanto na Coreia do Norte. A repressão a essa liberdade afeta pessoas de diferentes credos, embora os seguidores de Cristo cons- tituamo grupo religioso mais amplamente perseguido do mundo. De acordo com o Departamento de Estado dos Estados Unidos, os cristãos são vítimas de algum tipo de perseguição em mais de sessenta países atualmente. Portanto, de que modo o evangelho nos compele a viver num mundo em que muitos de nossos irmãos e irmãs sofrem por sua fé em Cristo? Esse mesmo evangelho nos leva a agir em favor de pessoas de outros credos que sofrem por sua fé, tanto judeus, muçulmanos, hindus, budistas ou animistas como ateus? Quanto mais lidamos com essas dúvidas, tanto mais percebemos que a liberdade religiosa é um bem raro no mundo e cada vez mais incomum em nossa cultura.
A PRIMEIRA LIBERDADE
125 Contudo, perguntas desse tipo nos levam de volta ao princípio da Bíblia, em que Deus cria o homem à sua imagem com uma capacidade única de conhecê-lo e um desejo inato de buscá-lo. Consequentemente, uma das liberdades humanas fundamentais - se não a mais fundamental de todas - é o privilégio de cada um de explorar a verdade sobre o divino e viver à luz de suas determinações. Fazer e responder perguntas como "De onde vim?", "Por que estou aqui?" e "Como devo viver minha vida?", e então agir de acordo com as conclusões é parte essencial da experiência humana. Obviamente pessoas diferentes terão convicções distintas em relação àquilo em que crer, a quem adorar e como viver. Essa é uma escolha que Deus ofereceu a todas as pessoas, porque desde o início deu a homens e mulheres a liberdade de decidir adorá-lo ou não. Adão e Eva não foram obrigados a crer, tampouco foram coagidos a obedecer quando ainda viviam no jardim do Éden com Deus. Em vez disso, fazia parte de sua humanidade a capacidade (e a oportunidade) de agir por vontade própria, um privilégio concedido por Deus e que, por fim, resultou na decisão de desobedecê-lo. Contudo, foi decisão deles, porque mesmo em sua soberania divina, Deus não excluiu (e não exclui) a responsabilidade humana. Tal realidade se torna ainda mais clara no restante da Escritura, especificamente na vida e no ministério de Jesus. Jamais vemos Jesus coagindo as pessoas a crerem nele. Ao contrário, ele ensina doutrina, conta histórias e convida as pessoas a recebê-lo ou a rejeitá-lo. Em resposta, as pessoas o ouvem, raciocinam com ele, discutem com ele, discordam dele e, com frequência, o abandonam (em última instância, na cruz). Num determinado momento, Jesus censura os discípulos porque eles querem a condenação do céu aos samaritanos por rejeitá-lo (veja Lc 9.51-56). Então, quando os envia, no capítulo subsequente, Jesus os encoraja a respeitar a liberdade das pessoas de rejeitá-los (veja Lc 10.5-11). Vemos assim que, a despeito da perspectiva que se tenha das doutrinas da eleição e do livre-arbítrio, não há dúvida de que a linguagem bíblica mostra a importância da escolha deliberada e do convite pessoal. Afinal, a mensagem do evangelho é, fundamentalmente, um convite, e não uma coerção. "Estou à porta e bato", diz Jesus no final da Bíblia, "se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3.20). Por esse motivo, aqueles que compreendem o evangelho e creem nele defendem o livre exercício da fé. Se voltarmos ao século 4, ouviremos Agostinho, um dos pais da igreja, dizer que, quando "se a força é aplicada, a vontade não é despertada. Pode-se entrar na igreja obrigado, pode-se chegar perto do altar obrigado, pode-se receber o sacramento obrigado; contudo, ninguém pode crer se não voluntariamente''.2 De igual modo, voltando ao século 20, ouvimos 4 mil líderes de 198 países reunidos na Cidade do Cabo, na África do Sul, dizerem: "Esforcemo-nos para que haja liberdade religiosa para todos os povos. Para isso, devemos nos posicionar diante dos governos em favor dos cristãos e das pessoas de outros credos que são perseguidas".3 Esse respeito pela liberdade religiosa não se limita aos cristãos. Não é preciso crer no evangelho para saber que a fé deve ser livre para que seja genuína. A fé autêntica exige escolha aul ·ntka. A dignidade humana requer a descoberta pessoal - a oportunidade de buscar a verdade sem se sentir ameaçado, de se decidir pela fé sem ser subjugado pela força e de chegar a conclusões sem ter sido coagido a isso. É por isso que os fundadores dos Estados Unidos disseram que a fé era um direito humano fundamental - na verdade, esse foi o primeiro direito humano inscrito no que conhecemos como Declaração de Direitos. A Declaração de Independência dos Estados Unidos começa da seguinte forma: "Consideramos essas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade", e prossegue: "E a fim de assegurar esses direitos os homens instituem governos". Em outras palavras, o objetivo do governo consiste em proteger os direitos das pessoas -direitos inatos, evidentes e inegáveis em conformidade com a razão. Para garantir a proteção desses direitos, os fundadores dos Estados Unidos redigiram a Declaração de Direitos. Afirma o primeiro desses direitos: "O Congresso não criará lei alguma que se ocupe do estabelecimento da religião; tampouco proibirá seu livre exercício". Ao situar esse direito em primeiro lugar,
126 os fundadores reconheceram que a liberdade religiosa é o fundamento de todas as demais liberdades. Afinal, se o governo puder mandar naquilo em que você crê ou lhe negar a oportunidade de viver de acordo com suas crenças, até onde chegará seu alcance? O que o impediria de ditar o que você pode ler ou escrever, o que pode ouvir ou dizer ou de que maneira deve viver? De fato, concluíram os fundadores, o próprio Deus não viola a liberdade religiosa do homem ,então o governo certamente não deverá fazê-lo. O que o governo americano chama de "direito", limita, desnecessária e inutilmente, o "livre exercício" da religião à esfera privada. Quando ouvem o termo "liberdade de culto", as pessoas frequentemente imaginam a liberdade de homens, mulheres e crianças de se reunirem em um prédio de igreja, numa sinagoga, numa mesquita ou em outro lugar para adorar em comunidade. Esse quadro pode se estender também para o lar, onde famílias têm a liberdade de orar (ou não) na hora das refeições, antes de dormir ou em outras ocasiões durante o dia. Seja como for, tudo isso se dá no âmbito privado e constitui liberdade religiosa restrita ao que acontece quando alguém está só ou reunido em um encontro específico com sua família natural ou da fé. O que essa identificação não reconhece é que as pessoas que se reúnem para cultuar em ambientes privados depois se dispersam e vão viver seu credo em praça pública. À medida que homens, mulheres e crianças vivem, estudam, trabalham e se divertem em todos os setores da sociedade, eles cumprem deveres e tomam decisões em sintonia com suas consciências e de acordo com suas convicções. Isso faz parte do "livre exercício" da religião: a liberdade de culto não apenas em reuniões episódicas, mas na vida cotidiana. E é esse "livre exercício" que está sendo atacado sutilmente, porém de modo significativo, pela cultura americana atual.
UM ALERTA Imagine que você seja um seguidor de Cristo que crê na Bíblia. Por ser movido pelo desejo de amar a Deus, você deseja também amar o próximo. Imagine ainda que você seja um fotógrafo profissional. Certo dia, uma mulher de sua comunidade entra em contato com você para contratá-lo para um evento em data próxima. Ela lhe diz: "Minha parceira e eu vamos celebrar nosso compromisso mútuo em uma cerimônia formal e gostaríamos que você fotografasse". Imediatamente, sua mente se agita. "O que devo dizer?", você pensa. Em seguida, começa a processar suas convicções pessoais. Por um lado, você tem um desejo sincero de servir à omu11id,1 h- em que vive, inclusive às pessoas que dela fazem parte. Montou um negócio que lhe permite usar seu talento para abençoar pessoas com a mulher que lhe fez aquele pedido. Contudo, ao mesmo tempo, seu amor pelo próximo é uma ramificação do seu amor por Deus, e você crê que o Senhor criou o casamento como uma união entre um homem e uma mulher a fim de demonstrar seu caráter divino e manifestar seu evangelho no mundo. Consequentemente, sente muita dificuldade em imaginar de que maneira poderá participar da celebração de algo que, segundo você está convencido, Deus condena. Não dá para evitar o pensamento de que sua participação violaria sua consciência. O mais grave ainda é que você não consegue evitara convicção em seu coração de que tal participação seria uma desonra a Deus. Ao conversar com a mulher, então, você decide educadamente recusar o trabalho proposto. Ao fazêlo, você se vê gratamente amparado no "livre exercício" da religião que lhe foi garantido em seu país - a "liberdade de culto" não apenas na esfera privada, mas também pública. Imagine sua surpresa, então, quando descobre que está sendo processado pela decisão que tomou. Imagine sua surpresa ainda maior ao saber que o governo no qual se apoiava para esse "livre exercício" da religião lhe diz que a lei exige que você faça uma concessão nesse caso. Essa não foi uma situação hipotética para Elaine Huguenin, uma das proprietárias da Elane Photography, de Albuquerque, Novo México. Quando Vanessa Willock pediu a Elaine que foto- grafasse o
127 compromisso que assumiria com outra mulher, Elaine educadamente se recusou dizendo que não fotografava esse tipo de cerimônia. Vanessa, apesar de ter encontrado outro fotógrafo mais barato para a cerimônia, entrou com uma queixa na Comissão de Direitos Civis do estado do Novo México acusando a empresa Elane Photography de discriminação. O tribunal votou a favor de Vanessa e Elane teve de pagar uma multa muito alta. Esse mesmo caso ganhou contornos ainda mais sérios no momento em que foi parar na Suprema Corte do Novo México, que ratificou o veredito contra a empresa Elane Photography. Os juízes unanimemente decidiram que "quando a Elane Photography se recusou a fotografar a cerimônia de compromisso entre duas pessoas do mesmo sexo, violou a NMHRA [Lei de Direitos Huma- nos do Novo México] do mesmo modo que se tivesse se recusado a fotografar um casamento entre pessoas de raças diferentes".4 Além do equívoco fundamental de igualar a identidade étnica à atividade sexual, para o qual já chamamos a atenção, o raciocínio evidente por trás dessa decisão é assustador, para dizer o mínimo. Em voto concordante com a decisão do tribunal, o juiz Richard Bosson disse que Elaine Huguenin e seu marido estão "obrigados por lei a abrir mão das crenças religiosas que inspiram a vida de ambos". Ele acrescentou que "os Huguenins estão livres para pensar, dizer, crer e desejar o que quiserem; eles podem orar ao Deus de sua escolha e seguir os mandamentos desse Deus em sua vida pessoal, onde quer que estejam. A Constituição protege os Huguenins nesse aspecto e em muitos outros". Contudo, o tribunal acrescentou: "no mundo menor e mais específico dos negócios, do comércio, da acomodação pública, os Huguenins devem direcionar sua conduta, não suas crenças, de modo a deixar espaço para outros americanos que creiam em algo diferente". Esse, disse o tribunal, é "o preço da cidadania em nosso país.5 Quando lemos isso, percebemos como é perigosa a distinção entre a suposta "liberdade de culto" na vida privada do indivíduo e o "livre exercício" da religião em praça pública. O mais alto tribunal do estado do Novo México afirmou que, embora Elaine Hughenins seja livre para exaltar seu Deus na igreja que frequenta, ela não é livre para expressar suas crenças na empresa que possui. Em outras palavras, ela é livre para praticar sua fé em particular, por algumas horas no início da semana, mas é obrigada a negá-la em público, durante várias horas em todos os outros dias da semana. No fim, Elaine Huguenin se vê obrigada a violar sua consciência e a desonrar seu Criador como cidadã em sua cultura. A Elane Photography recorreu à Suprema Corte dos Estados Unidos, qué' se reusou a acolher seu caso. Felizmente, porém, a Suprema Corte acolheu um caso similar muito importante envolvendo a Hobby Lobby e a Conestoga Wood em que, por uma decisão de 5 votos a 4, ficou determinado que as empresas de capital fechado têm, de fato, a liberdade de aplicar suas convicções religiosas na forma de administrar suas organizações (nesse caso específico, o tribunal decidiu que o governo não pode obrigar as empresas em questão a violar suas crenças religiosas adquirindo drogas abortivas).6 Não há dúvida de que casos semelhantes deverão ser analisados futuramente. Mudanças rápidas na maneira de definirmos, compreendermos e aplicarmos a liberdade religiosa em nosso contexto atual fazem praticamente com que qualquer livro que trate de casos específicos se torne quase que obsoleto do dia para a noite. Contudo, quais princípios embasam a forma de processarmos circunstâncias como as que a Elane Photography precisou enfrentar? Em uma cultura que está redefinindo com celeridade o" livre exercício" da religião, essa é uma pergunta que não somente os Huguenins devem fazer, mas todas as pessoas, de qualquer fé. Um rápido levantamento das tendências culturais indica uma série de situações possíveis de encontrar. Um número cada vez maior de profissões precisa de licença de funcionamento do Estado (a quantidade de licenças exigidas praticamente quintuplicou nos últimos sessenta anos) e, muitas vezes, essas licenças incluem condições que colidem com as crenças religiosas tradicionais. Cada vez mais, empregados e empregadores, médicos e farmacêuticos, professores e administrado- res, seguradoras e investidores, ministros e ministérios são alvos de determinações governamentais para que forneçam bens e serviços que contradizem as convicções pessoais. Esforços sistemáticos para reprimir a profissão pública de fé e a
128 aplicação deles afetam como as pessoas de fé podem falar, as roupas que podem usar, a maneira que devem se organizar e o que podem fazer nas comunidades onde vivem. Ao escrever isso, quero logo deixar claro que não é meu objetivo ser alarmista. Mas, pensando bem, talvez seja motivo de alarme mesmo. Talvez seja realmente o caso de soar um alarme e começarmos, todos, a refletir seriamente sobre formas de confrontar essa cultura religiosa que muda rapidamente com uma clara convicção do evangelho.
DIGNIDADE NA DISCORDÂNCIA
Mais uma vez, devemos nos lembrar de que não estamos falando exclusivamente da liberdade do cristão em nossa cultura. O mesmo direito à liberdade religiosa que deve proteger os seguidores de Cristo deve proteger também os seguidores de Moisés, de Maomé, de Krishna e de Buda, bem como os que creem que não há deus algum a ser seguido. Essa é uma das razões pelas quais há poucos anos eu me uni a destacados líderes religiosos, inclusive com alguns dos quais discordo veementemente, e assinei um documento expressando nossas convicções com respeito à liberdade religiosa. No final, declara o documento: Não nos[...] curvaremos a nenhuma regra que pretenda nos obrigar a abençoar parcerias sexuais imorais, a tratá-las como casamentos ou equivalente. Tampouco deixaremos de proclamar a verdade, conforme a conhecemos, a respeito da imoralidade da família. Entregaremos plenamente, e com generosidade que é de César. Contudo, em hipótese alguma entregaremos a César o que é de Deus.7 Essa última frase alude ao ensinamento de Jesus de que, embora tenhamos certas obrigações para com o governo (i.e., para com César), nossa obrigação fundamental é para com o nosso Deus (veja Me 12.1317). Foi ele quem pôs no coração humano a liberdade de consciência, e ja aplicação é universal. Por esse motivo, para defender a liberdade religiosa, eu me coloco com prazer ao lado de pessoas que não creem no mesmo evangelho que eu. Não acredito que passarei a eternidade com essas pessoas no céu, porém estou mais do que disposto a ir preso por elas na terra.8 O evangelho me constrange a dizer isso, porque começa com um Deus que concede a homens e mulheres a liberdade de buscá-lo ou de negá-lo conforme queiram. Infelizmente, a história do cristianismo é assombrada pelo espectro de pessoas que perderam esse fundamento extremamente importante. Não demorou muito para que a oficialização da religião cristã por Constantino, no século 4, tornasse obrigatória a conversão ao cristianismo . A história da igreja nos séculos que se seguiram apresenta outros exemplos de tentativas vergonhosas de difundir o cristianismo por me10 da força ou do poderio militar. Até hoje, guerras e batalhas começam e são travadas sob a fachada da religião cristã. Contudo, a história, a razão e a Escritura proclamam juntas a realidade de que nada disso era, ou é, correto. Por isso é tão fundamental a existência de certa separação entre igreja e Estado. Essa expressão "separação entre igreja e Estado" embora seja objeto de amplo debate no que se refere à sua aplicação específica, aponta para o papel determinado dessas duas instituições na sociedade e para sua relação de interdependência. A igreja (leia-se: a religião) existe como um espaço em que as pessoas buscam os questionamentos existenciais mais profundos e aplicam suas respostas de maneira consistente na forma de viverem. O Estado (leia-se: o governo), por sua vez, existe para possibilitar essa busca, protegendo homens e mulheres enquanto exercitam essa sua prerrogativa humana. O Estado não existe para estabelecer a religião nem tampouco para reprimi-la, mas para que haja liberdade de religião. Nessa relação entre igreja e Estado, o governo cria um espaço de ideias em que a prática e a expressão religiosa são franqueadas - um ambiente em que homens e mulheres de todos os credos podem refletir juntos sobre possíveis formas de florescer juntos.
129 Contudo, se não tomarmos cuidado, esse espaço de ideias pode ser sutilmente minimizado, restringindo inevitavelmente a liberdade religiosa. Isso fica cada vez mais evidente na cultura contemporânea, contexto em que a busca pela verdade religiosa é, com frequência, suplantada pela idolatria a uma suposta tolerância. O maior pecado da nossa cultura é a intolerância e, no entanto, nossa definição de intolerância é ironicamente intolerante. Permita-me explicar essa afirmação. Basta alguém dizer hoje em dia que a atividade homossexual é errada ou pecaminosa para que seja imediatamente chamado de " intolerante . Poderia ser chamado também de "ofensivo", "pre- conceituoso" ou "detestável", como já vimos, mas vamos ficar com "intolerante", por enquanto. Essa suposta intolerância baseia-se, com frequência, no fato de essa pessoa crer na Bíblia. Somente porque crê em algo diferente do que outros creem, ela é rotulada de "intolerante". Contudo, tal rótulo, estranhamente, impõe uma derrota a si mesmo. Quem chama alguém de "intolerante" não manifesta, na verdade, uma intolerância semelhante em relação à crença do outro? No processo de classificar alguém de "intolerante", a pessoa que o faz certamente também demonstra intolerância em relação ao" intolerante". Isso é comum em nossa cultura. É como se estivéssemos cansados de gente intolerante, por isso não vamos mais tolerar pessoas assim. Nós nos vemos na estranha posição de ser intolerantes com gente intolerante. Em outras palavras, não conseguimos mais nos tolerar. Aparentemente, nossa visão de tolerância é um tanto distorcida. Afinal, a própria ideia de tolerância exige desacordo. Pense um pouco sobre isso. Se você crê exatamente no que eu creio, não faz sentido a ideia de eu ter de tolerá-lo. Se você acha que beisebol é o esporte mais genial já inventado, perde o sentido a ideia de eu ter de tolerá-lo. Estamos plenamente de acordo, e me sentarei feliz da vida ao seu lado, atrás do batedor [do time de beisebol], comendo um cachorroquente e apreciando uma partida qualquer dia desses! Só se você achar que beisebol é chato e futebol uma coisa muito mais emocionante é que me verei na posição de ter de tolerá-lo. Nesse caso, discordarei muito de você e, é claro, farei de tudo para que você veja porque está errado. No final, porém, eu me sentarei alegremente ao seu lado na arquibancada, enquanto vemos os jogadores correrem juntos chutando a bola pelo campo de futebol. Tolerância implica desacordo. Tenho de discordar de você para que possa tolerá-lo. A superioridade no esporte é, naturalmente, um exemplo leve, mas nas questões religiosas mais profundas da vida, teremos desacordos semelhantes, não é verdade? E, nesses casos, seria não apenas prudente, mas também útil, que não recorrêssemos imediatamente à ideia de chamar o outro de intolerante (ou pre-conceituoso, ou detestável, ou coisa parecida). Em vez disso, o mais prudente e útil seria considerarmos pacientemente de onde cada um de nós procede e por que chegamos às respectivas conclusões. Com base em tais considerações, estaremos livres para analisar como nos tratarmos com a maior dignidade possível, tendo em vista as nossas diferenças. Outras distorções em relação à intolerância serão esclarecidas quando nos dermos conta de que a tolerância se aplica a pessoas e crenças de diferentes maneiras. Por um lado, tolerar as pessoas exige que nos tratemos uns aos outros como pessoas de igual valor, honrando a liberdade fundamental do outro de expressar sua fé particular em locais públicos. Por outro lado, tolerar crenças não significa que devamos aceitar todas as ideias como igualmente válidas, como se uma crença fosse verdadeira, correta ou boa simplesmente porque alguém a expressa. Desse modo, a tolerância dos valores de uma pessoa não significa que eu deva aceitar seus pontos de vista. Por exemplo, tenho amigos muçulmanos a quem respeito pro- fundamente; no entanto, discordo deles com veemência. Creio que Jesus é o Filho de Deus; eles, não. Eles acreditam que Maomé foi um profeta enviado por Deus; eu discordo. Creio que Jesus Cristo morreu em uma cruz e ressuscitou dos mortos; eles, não. Eles creem que irão para o céu quando morrerem; eu discordo.
130 Esses são pontos fundamentais de discordância e não devem ser minimizados. A tendência da nossa estratégia relativista refe- rente à verdade religiosa consiste em dizer: "Olhe, contanto que alguém creia em alguma coisa, essa coisa está certa". Contudo, tal pensamento simplesmente não pode ser aplicado a quaisquer das questões mencionadas acima. Ou Jesus é o Filho de Deus ou não é. Ele não pode ser o Filho de Deus e não ser o Filho de Deus ao mesmo tempo. De igual modo, ou Maomé foi um profeta enviado por Deus ou não foi. Ou Jesus morreu na cruz e ressuscitou dos mortos ou não. Ou os muçulmanos vão para o céu quando morrerem ou não vão. Essas são questões sérias (eu diria até eternamente sérias), e o propósito da liberdade religiosa consiste em proporcionar uma atmosfera em que essas questões possam ser exploradas. Essa atmosfera deve se destacar pela capacidade de articularmos fortes discordâncias acerca das crenças ao mesmo tempo que atribuímos valor e dignidade às pessoas de quem discordamos. É essa atmosfera que está cada vez mais comprometida em nossa cultura atual. Lamento pelas várias maneiras que certos cristãos expressam suas diferenças de crença sem manifestar respeito pelas pessoas a quem se dirigem. De igual modo, lamento as inúmeras maneiras pelas quais os cristãos são tachados de intolerantes, de pessoas de mente tacanha e de ultrapassados sempre que expressam suas crenças bíblicas que persistem há séculos. Em nenhum lugar essa dupla realidade se mostra mais clara do que no debate atual sobre o casamento. Se retomarmos o que foi discutido no capítulo 6, veremos que muita gente discorda das verdades discutidas aqui. Isso não significa, porém, que o cristão deva considerar os que defendem a redefinição do casamento como inimigos do cristianismo ou pessoas que conspiram para tomar de assalto a cultura. Em vez disso, trata-se de homens e mulheres que buscam um caminho que lhes parece certo. Consequentemente, há formas maravilhosas de expressar nossa discordância deles e transmitir simultaneamente amor e estima por eles. Ao mesmo tempo, vimos que a recente decisão da Suprema Corte de redefinir o casamento não apenas debilita "um aspecto do casamento nunca antes posto em dúvida em nossa sociedade durante boa parte da sua existência", mas também parece afirmar de forma bastante contundente que a oposição ao casamento entre pessoas de mesmo sexo está alicerçada no ódio aos homossexuais. Os defensores do casamento tradicional, de acordo com o parecer discordante do juiz Scalia, foram tachados de "preconceituosos" e de "inimigos da raça humana". Tais defensores foram descritos como homens e mulheres que buscam "'diminuir', 'impor a desigualdade', 'impor[...] um estigma', negar às pessoas 'igual dignidade', tachar os gays de 'indignos' e 'humilhar' seus filhos".9 Tais caracterizações não são apenas perigosamente inúteis. Elas são simplesmente inverídicas. As ramificações disso para a liberdade religiosa são imensas. Desde os fundamentos da família até a vida depois da morte, todos são assuntos muito sérios a serem discutidos. São assuntos que demandam uma capacidade de fazer perguntas e de explorar respostas em uma atmosfera de dignidade e respeito, de discussão apaixonada e discordância inevitável. Além disso, assuntos desse tipo requerem que todos nós, cidadãos, tenhamos a oportunidade de organizar a vida de acordo com aquilo que cremos, enquanto pensamos em como ouvir, aprender e viver uns com os outros não apesar das nossas diferenças, mas sim à luz delas. Nada disso é simples em uma cultura como a nossa. No entanto, tudo isso é fundamental para uma cultura como a nossa.
UMA PERSPECTIVA GLOBAL
E também é fundamental para as demais culturas do mundo todo. Milhões de homens e mulheres de diferentes credos; dentre eles nossos irmãos e irmãs em Cristo, vivem atualmente sem esse tipo de
131 liberdade de que estamos tratando. Milhões e milhões de pessoas não têm oportunidade sequer de analisar a verdade que afetará sua vida na terra e na eternidade. A coerção do governo é uma das maiores restrições à liberdade religiosa no mundo. Isso fica muito claro nos Estados islâmicos e comunistas, cujos países adotam uma religião oficial (ou nenhuma religião) e exigem que seus cidadãos se conformem em seguir tais posicionamentos. Em situações assim, Estado e igreja (ou anti-igreja) são coisas praticamente sinônimas. Os ensinamentos religiosos (ou não religiosos) se tornam a lei da terra. Homens e mulheres são penalizados (quando não são expulsos ou executados) por desobedecê-los. A pressão da sociedade acompanha as regulamentações do go- verno, na medida em que família, amigos, fanáticos religiosos, líderes comunitários e máfias criminosas intimidam, ameaçam, fazem mal ou matam homens, mulheres e crianças que professam determinada fé. Essa pressão é responsável por boa parte da perseguição aos cristãos atualmente. Rebeldes sírios atacam brutalmente cristãos sírios, abusando dessas pessoas, estuprando-as, assassinando-as e decapitando-as. Em 2013, em apenas um mês no Egito, 38 igrejas foram destruídas, outras 23 foram vandalizadas, 58 casas foram queimadas, 85 lojas saqueadas, sete cristãos foram sequestrados e seis foram mortos. No mês seguinte houve o pior ataque aos cristãos na história do Paquistão: homens-bomba se explodiram na parte externa da Igreja de Todos os Santos em Peshawar, matando 81 membros da igreja e ferindo mais de 100.1º Todas essas histórias atestam a perseguição de cristãos por pessoas de fora dos governos oficiais desses países. De modo geral, cem cristãos, em média, são mortos em todo o mundo todos os meses por causa de sua fé em Cristo (algumas estimativas apontam números ainda mais elevados).11 Muitos outros são literalmente perseguidos por meio de abusos, espancamentos, encarceramento, tortura, privação de alimentos, de água e de abrigo. Cada episódio de opressão religiosa constitui uma história pessoal de fé provada por meio de fogo e tribulações. Para mim, entretanto, não são meras histórias registradas em uma página. Elas falam de amigos meus. E eu louvo a Deus pela forma como eles suportaram fielmente o fogo. Penso em Bullen e Andrew, amigos meus da África central que viveram em meio à guerra. Quando criança, Bullen se escondeu em um canto de sua casa enquanto o restante da familia era sequestrado por militantes muçulmanos do norte. Hoje, com 20 anos, ele não tem a mínima ideia de onde seu pai, sua mãe ou suas irmãs vivem, ou mesmo se estão vivos. Andrew, que é da mesma idade de Bullen, descreveu como as metralhadoras de um helicóptero varreram sua aldeia, ferindo todo mundo. As crianças, Andrew me disse, tinham buracos específicos no chão para onde deveriam correr na hora dos ataques. Em sua curta vida, eles viram igrejas serem bombardeadas e mulheres cristãs serem estupradas, enquanto seus maridos eram assassinados. Mas ninguém imaginaria nada disso ao olhar para Bullen e Andrew. Seus rostos escuros e magros estampam um brilho e um sorriso contagiante enquanto falam sobre a fidelidade de Deus, que lhes preservou a fé apesar de tudo o que testemunharam. A expressão favorita de ambos é "Deus maior". Penso em Ayan, uma mulher preciosa que conheci numa região chamada Chifre da África. Ela pertencia a um povo que se orgulhava de ser 100% muçulmano. Pertencer à tribo de Ayan é o mesmo que ser muçulmano. Os membros de sua tribo encontram exclusivamente no Islã sua identidade pessoal, honra familiar, relação de parentesco e status social. Consequentemente, quando Ayan conheceu um cristão e passou a analisar o cristianismo, sabia que teria de pagar um alto preço caso viesse a se converter. "Se minha familia ou as pessoas de minha aldeia descobrissem que eu estava me tornando cristã, cor- tariam minha garganta sem dúvida nem hesitação", Ayan me disse. Por fim, ela chegou à conclusão de que Cristo valia o risco. Sua fé em Cristo obrigou-a a fugir de sua familia e a se isolar dos amigos. Agora ela dedica a vida a anunciar o evangelho para seu povo numa região diferente. Penso em Fátima e Yaseen, no Oriente Médio. Fátima é a mulher a que me referi no capítulo anterior, que se converteu à fé em Cristo depois de ouvir o evangelho, compartilhado por um amigo em outro país. Mas todos os demais parentes de Fátima são muçulmanos. Todos os dias, ela luta com a dificuldade de viver sua fé em uma familia que a deserdará (ou fará coisa pior) tão logo descobrir o que se passou. Yaseen é
132 pastor de uma comunidade próxima a Fátima. Quando estive em sua casa, ele me contou que, um ano antes, aquela mesma casa havia sido bombardeada por um grupo rebelde disposto a acabar com qualquer vestígio de cristianismo no país. É claro que Yaseen poderia ter tirado imediatamente sua família dali (e muitos estão convencidos de que ele deveria tê-lo feito). Contudo, Yaseen ficou onde estava e viu muita gente da comunidade se converter a Cristo por causa disso (e a um grande custo para eles também). Penso em um grupo de seminaristas do Sudeste Asiático a quem tive a oportunidade de me dirigir em sua formatura. Vivendo em um país com a maior população muçulmana do mundo, eles enfrentam tanto a pressão do governo quanto a perseguição da sociedade em diversos graus. Antes de se formarem, porém, esses alunos devem plantar uma igreja em uma comunidade muçulmana com pelo menos 30 novos crentes batizados. Na hora em que aqueles formandos subiram ao palco para receber o diploma, fiquei impressionado com a expressão humilde, embora confiante, de seus rostos. Todos eles haviam cumprido a exigência de plantação de uma igreja. A parte mais solene do dia foi o momento de silêncio em homenagem a dois colegas que haviam sido mortos pelas mãos de seus perseguidores muçulmanos. Penso em Jian e Lin, um casal do Leste Asiático também mencionado anteriormente. Eles são responsáveis por uma rede de igrejas nos lares do leste da Ásia, e treinam pastores e cristãos em locais subterrâneos onde, se pegos, o governo pode lhes tomar a terra, o emprego, a familia ou a vida. Lin é professora em campo universitário onde é ilegal falar do evangelho. Ela se reúne com os alunos da faculdade para falar sobre os ensinamentos de Cristo, embora isso possa lhe custar o emprego. Jian é médico e deixou sua clínica bem-sucedida para levar cuidados médicos a aldeias empobrecidas e, assim, realizar cultos domésticos secretamente. Acompanhei Jian a diferentes partes do país onde passamos um tempo na companhia de líderes de igrejas nos lares. Todas as vezes que viajamos juntos, ele sempre me dizia que, se fôssemos pegos, eu seria deportado para o conforto da minha casa nos Estados Unidos. Jian, porém, seria levado para o confinamento de uma prisão de seu país e poderia perder a vida. Contudo, ele segue em frente, amando e liderando essas igrejas, apesar do risco constante. Penso em Sahil, no Sul da Ásia. Ele e sua esposa cresceram em lares muçulmanos. Ela se converteu a Cristo primeiro; depois, ela apresentou Cristo a Sahil. Logo que suas famílias descobriram que eles haviam se tornado cristãos, ambos foram obrigados a fugir de sua comunidade. Nos anos que se seguiram, cresceram em Cristo e em seu desejo de que suas famílias o conhecessem também. Lentamente, eles restabeleceram contato com os parentes. Aos poucos, os parentes começaram a corresponder. Eles acolheram Sahil e a esposa nova- mente na comunidade e aparentemente tudo estava indo bem, até que um dia Sahil deixou a esposa na casa da família dela, onde ela faria uma refeição, e foi visitar sua família. Sua mulher sentou-se à mesa com os parentes e começou a se servir. Passados alguns mo- mentos, ela estava morta. Seus próprios pais a envenenaram. Oliando conheci Sahil, ele era um homem que havia perdido a esposa, mas não a fé. Hoje ele trabalha plantando igrejas em seu país. Penso em Norbu e Sunita, um casal que morava em uma aldeia tibetana budista. Quando ouviram pela primeira vez o evangelho, foram imediatamente ameaçados pelos líderes de sua aldeia. "Se vocês se converterem ao cristianismo", disseram a Norbu e a Sunita, "não poderão mais pegar água na mina da nossa aldeia". Essa era, sem dúvida, uma ameaça severa, uma vez que a mina é literalmente uma fonte de vida para as pessoas da comunidade. Contudo, Norbu e Sunita não desistiram da conversão, o que fez com que aqueles líderes da aldeia reforçassem a intimidação. "Se vocês se converterem ao cristianismo", disseram, "a comunidade não os protegerá". Apesar das ameaças, Norbu e Sunita chegaram à conclusão de que Cristo é Senhor e se tornaram seus seguidores. Duas semanas depois, Norbu e Sunita estavam mortos. A versão oficial foi a de que o casal havia sido vítima de uma avalanche de pedras. A versão não oficial, no entanto, é que Norbu e Sunita foram apedrejados. Quando penso em meus amigos, a fé descrita em Hebreus 11 me vem imediatamente à lembrança. Esses amigos me lembram aqueles que foram "torturados e recusaram ser libertados, para poderem alcançar uma ressurreição superior. Outros enfrentaram zombaria e açoites, outros ainda foram acorrentados e
133 colocados na prisão, apedrejados, serrados ao meio, postos à prova, mortos ao fio da espada. Andaram errantes, vestidos de pele de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos e maltratados. O mundo não era digno deles" (Hb 11.35-38, NVI).
PROCLAMANDO CRISTO Essas histórias não surpreendem se levarmos em conta as palavras de Cristo nos Evangelhos. "Bemaventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o reino do céu", disse Jesus a seus discípulos. "Bem-aventurados sois, quando vos insultarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai, pois a vossa recompensa no céu é grande" (Mt 5.10-12). Mais tarde, em outra ocasião, quando enviou os discípulos como "ovelhas no meio de lobos", ele lhes prometeu que haveria persegui- ção."Cuidado com os homens, pois eles vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; e por minha causa sereis levados à presença de governadores e reis, para que deis testemunho". Ele conclui: "E sereis odiados[...] por causa do meu nome, mas aquele que perseverar até o fim será salvo" (Mt 10.16-18,22). Basta uma leitura superficial de passagens dos Evangelhos como essas para ficar claro que, quanto mais nos tornarmos semelhantes a Jesus neste mundo, tanto mais experimentaremos o que ele experimentou. Assim como ele pagou um preço alto para ir contra a cultura, será custoso também para nós fazer o mesmo. Pense na razão pela qual perseguições assim acontecem. Não acontecem pelo fato de os cristãos de outros países terem uma fé secreta que guardaram para si. Se um cristão ficar em silêncio em relação à sua fé em Cristo, se não disser coisa alguma a ninguém sobre Cristo, se orar e praticar sua fé em segredo, ele corre um risco muito menor de ser perseguido. Só quando o cristão torna pública sua fé, exercendo-a abertamente e até mesmo proclamando a Cristo, é que a perseguição vem inevitavelmente. Em outras palavras, enquanto nossos irmãos e irmãs do mundo todo descansam e se acomodam à cultura à sua volta, eles evitam o sofrimento. Só quando se levantam e se opõem à cultura ao seu redor com o evangelho de Jesus Cristo é que passarão pelo sofrimento. Esse é, portanto, o dilema que os cristãos enfrentam no mundo todo, quando submetidos à pressão do governo e da sociedade por causa de sua fé. De um lado, se ficarem quietos, estarão seguros. No entanto, eles sabem que, se assim procederem, violarão sua consciên- cia e os mandamentos que Cristo lhes deu, para que compartilhassem a verdade do evangelho com as pessoas à sua volta. Contudo, se eles se manifestarem e puserem sua fé em prática em praça pública, cer- tamente haverá perseguição. Louvo a Deus pelos cristãos do mundo todo que decidiram proclamar Cristo com seus lábios e sua vida e que, por causa disso, no momento em que você lê este livro, passam por pressões, estão sendo encarcerados e perseguidos. Rodeados por essa realidade global e movidos por nosso amor por Deus, devemos agir. É preciso que oremos e trabalhemos pelos irmãos perseguidos do mundo todo. Qiando uma parte do corpo sofre, o corpo todo sofre (veja lCo 12). Onde há liberdade religiosa, temos a responsabilidade bíblica de nos levantarmos e falar em favor deles. Além disso, em um país em que até mesmo nossa liberdade religiosa está cada vez mais restrita, esses irmãos que sofrem nos exortam para que não permitamos que o preço de seguir a Cristo em nossa cultura silencie nossa fé. Qie não nos recostemos em relativo conforto, acomodados à nossa cultura, enquanto eles se erguem e se opõem à cultura a um grande custo. Qie, assim como eles, possamos nos dar conta de que o cristianismo praticado apenas na esfera privada não é cristianismo de forma alguma, uma vez que é quase impossível conhecer a Cristo e não proclamá-lo- crer em sua Palavra, quando a lemos em ca a ou mr igreja, e não obedecê-la em nossas comunidades e cidades. Que possamos nos lembrar, junto com a grande nuvem de testemunhas que nos antecedeu, que, embora nossa cidadania pertença a um governo, nossa alma pertence a Deus.
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PRIMEIROS PASSOS PARA SE CONTRAPOR À CULTURA Ore Peça a Deus que: •Prepare os cristãos em nossa cultura para que respondam com ousadia e humildade à crescente oposição do governo e da cultura. •Trabalhe na vida dos governantes de nosso país e do mundo todo de modo que haja mais liberdade para viver e falar de acordo com a verdade do evangelho. •Fortaleça os crentes perseguidos do mundo todo para que perseverem na fé e continuem a dar testemunho de Cristo, sejam quais forem as consequências. Participe Em oração, considere dar os seguintes passos: •Use sua liberdade religiosa para falar abertamente do evan- gelho com uma pessoa esta semana. Em seguida, estabeleça como objetivo fazer o mesmo nas semanas seguintes. •Apoie e/ou envolva-se com um ministério que defenda os crentes que vivem em contexto de perseguição. •Pense como você, ou alguém que conheça, poderia se envolver na questão da liberdade religiosa de forma legal ou política. Proclame Reflita sobre as seguintes verdades da Escritura: •Mateus 5.11,12: "Bem-aventurados sois, quando vos insul- tarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai, pois a vossa recompensa no céu é grande; porque assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós". •Provérbios21 .1:"0 coração do rei é como a corrente de águas nas mãos do SENHOR: ele o dirige para onde quer". •1Pedro 2.23:''Ao ser insultado, [Cristo] não retribuía o insulto, quando sofria, não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga com justiça".
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CAPÍTULO 10 A NECESSIDADE MAIS URGENTE: O EVANGELHO E OS NÃO ALCANCADOS
Ao encerrar este livro, sinto meu coração despedaçado. Nas páginas anteriores, procurei compartilhar aqueles fardos que tanto pesam dentro de mim. Não creio que eu esteja só, porque sei de muitos seguidores de Cristo com paixões semelhantes no que diz respeito a esses fatos. A opressão do pobre, o aborto de inocentes, a negligência para com o órfão e a viúva, o tráfico de escravos, o declínio do casamento, a confusão em torno da sexualidade, a necessidade de igualdade étnica e a importância da liberdade religiosa são todas questões de enorme importância em nossa vida, em nossas família, igrejas e cultura. Se você não sentia fardo algum lhe pesando antes de começar a ler este livro, minha esperança é que agora o sinta. Contudo, não quero que esses fardos que trago no coração acabem como palavras registradas em uma página. Quero que realidades transformem minha maneira de viver. Não qu ero unir ao coro de homens, mulheres, pregadores e dos que se ocupam com prognósticos, os quais se contentam em adotar um a a1it u1k de piedosa preocupação com o drama de nossa cultura,· n q 11:1111 0 descansam num silêncio prático, e pouco ou nada fazem a esse respeito. Tampouco desejo aplicar o evangelho de forma incoerente me mantendo calado sobre questões espinhosas. Em última análise, não quero desperdiçar as oportunidades que Deus me tem dado de viver na prática o evangelho por meio do qual ele me salvou, na cultura em que me pôs. Imagino que você também não queira desperdiçar sua vida nessa cultura. Portanto, agora que o livro está chegando ao fim, preciso fazer três perguntas a você e a mim também. Essas perguntas baseiam-se em um breve relato bíblico de três homens que, um dia, viramse face a face com Jesus em uma estrada de sua comunidade. Diz assim a história: Quando iam pelo caminho, um homem lhe disse: Eu te seguirei aonde quer que fores. Jesus
lhe respondeu: As raposas têm tocas, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde descansar a cabeça. E disse a outro: Segue-me. Mas ele respondeu: Permite que eu primeiro vá sepultar meu pai. Jesus lhe respondeu: Deixa os mortos sepultarem os seus mortos; tu, porém, vai e anuncia o reino de Deus. E outro disse: Senhor, eu te seguirei, mas deixa-me primeiro despedir-me dos de minha família. Jesus, porém, respondeu-lhe: Ninguém que ponha a mão no arado e olhe para trás é apto para o reino de Deus (Lc 9.57-62). Esses três homens eram seguidores em potencial de Jesus, mas, pelo que podemos depreender do texto, Jesus os convenceu a não segui-lo. A razão pela qual essa passagem me vem à mente ao concluir este livro se deve ao fato de que essa é, basicamente, a decisão que você e eu estamos considerando neste momento em nossa cultura. Vamos seguir a Jesus ou vamos abaixar a cabeça, fazer uma oração, ler a Bíblia, ir à igreja, dar o dízimo e prosseguir com a vida do mesmo jeito de antes? Vamos seguir a Jesus com toda a nossa vida, não importa para onde ele nos leve, por mais contracultural que seja nossa tarefa, não importa a que custo para nós, para nossa familia e nossa igreja? Para responder a essa pergunta crucial, vejo-me compelido a fazer estas três perguntas pertinentes: Vamos optar pelo conforto ou pela cruz? Vamos deixar as coisas como estão ou aceitar
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o sacrifício da missão? E, por fim: Nossa vida será marcada por uma mente indecisa ou por um coração inteiramente voltado para o reino?
VAMOS OPTA PELO CONFORTO OU PELA CRUZ?
O primeiro homem da história que acabei de contar disse ansioso a Jesus: "Eu te seguirei
aonde quer que fores". Com base em outros relatos bíblicos, sabemos que esse homem era um doutor da lei, e era costume que esses homens se associassem a outros doutores para promover seu status na sociedade. A essa altura, Jesus já era bastante popular entre as pessoas à sua volta; por isso deve ter parecido aos olhos desse homem um bom candidato para ajudar em sua promoção pessoal nesse contexto cultural. Jesus responde: "... o Filho do Homem não tem onde descansar a cabeça". Em outras palavras, se esse homem seguir a Jesus, pode esperar uma vida em que não terá onde morar. Cristo deixa claro que o cristianismo não é o caminho para um conforto maior, uma posição mais elevada na sociedade ou mais facilidades nesse mundo. A estrada trilhada por Jesus não foi pavimentada pela perspectiva do progresso do eu. Ao contrário, ela começa com a exigência da renúncia pessoal. Jesus afirma objetivamente a outros discípulos, um pouco antes, neste mesmo capítulo: "Se alguém quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me" (Lc 9.23). Fica evidente que escolher a cruz em detrimento do conforto é um requisito para seguir a Cristo. Estou convencido de que essa é uma palavra necessária para todo cristão (e para todo o cristão em potencial) em nossa atual cultura.Já vão longe os dias em que era positivo, do ponto de vista social, frequentar uma igreja no início da semana. Já vão longe os dias em que era publicamente aceitável seguir a Cristo todos os dias da semana. Vivemos dias em que ser fiel ao evangelho, em que crer de fato na Bíblia e colocá-la em prática significa pôr em risco a reputação, sacrificar o status social, discordar da família e dos ami- gos mais próximos, arriscar a segurança econômica e a estabilidade temporal, abrir mão de bens materiais, deixar para trás os elogios deste mundo e arriscar a própria vida (dependendo do lugar para onde Deus levá-lo e do modo que ele o fizer). Pense nisso. Não é possível amar o pobre e viver no mais com- pleto luxo. Não é possível cuidar do órfão e da viúva sem que isso tenha implicações imensas na composição de sua família. Não é possível confessar as convicções do evangelho sobre o casamento e a sexualidade sem ser criticado. Não é possível de modo algum professar a verdade do evangelho e continuar benquisto por todos. Foi o que Jesus prometeu: "O servo não é maior do que o seu senhor", disse ele. "Se perseguiram a mim, também vos persegui- rão" (Jo 15.20). Se perguntarmos de que maneira o mundo reagiu a Jesus, a resposta virá sob a forma de uma cruz brutal e banhada em sangue. Seria rematada tolice, portanto, para os seguidores desse mesmo Cristo neste mesmo mundo crer que seu destino seria diferente. É verdade que a maior parte dos cristãos não seria crucificada literalmente e, para que fique claro, nenhum cristão deve buscar intencionalmente a perseguição. Não estamos à procura de uma batalha cultural; no entanto, é de se imaginar que, quanto mais fundamentarmos nossa vida, família e igreja na Palavra de Deus, tanto mais nos distanciaremos da cultura em que vivemos e mais difícil será para nós viver neste mundo. O que isso significa, na prática, para nossas igrejas, ainda não está claro; entretanto, estou convencido do seguinte: quanto mais empenhadas nossas igrejas estiverem em fazer nossa cultura interagir com o evangelho, mais teremos de nos apegar às verdades bíblicas e mais precisaremos abrir mão sacrificialmente das preferências pessoais. Com relação às verdades bíblicas, os membros da
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igreja e seus pastores são diariamente assediados por tentações fascinantes para que cedam às marés inconstantes da opinião cultural. Vemos e ouvimos com frequência líderes "cristãos" de destaque deixando para trás a verdade bíblica atemporal em nome do amor ao próximo e da tolerância. Contudo, como pode ser um ato de amor mentir ao próximo, torcer a verdade para adequá-la ao gosto dele (e ao nosso) e, por fim, levá-lo (e a nós mesmos) para longe de Deus? Será que não conseguimos ver que a tolerância genuína não mascara a verdade, mas a amplía, mostrando-nos de que modo amar e servir uns aos outros em vista de nossas diferenças? Que Deus nos dê a graça de não nos colocarmos orgulhosamente sob o juízo da sua Palavra enquanto, pouco a pouco, capitulamos aos costumes deste mundo. Peço ainda que essas verdades bíblicas possam encontrar seu lugar adequado acima das preferências pessoais. Quando olhamos hoje para nossas igrejas, será que se parecem com grupos de pessoas que se unem à medida que dedicam suas vidas à proclamação do evangelho entre os que ainda não foram alcançados por ele, entre comunidades pobres, órfãos abandonados, viúvas solitárias, bebês às portas da morte, escravos sexuais e entre irmãs e irmãos que sofrem no mundo todo? Infelizmente, não creio que seja essa a imagem que passamos. Em vez disso, gastamos a maior parte do nosso tempo sentados como expectadores em cul tos cuja preocupação é nos proporcionar conforto. Até mesmo as ofertas que entregamos à igreja são gastas, em sua maior parte, em locais de reunião, em profissionais que se ocupem do ministério e em programas que giram em torno de nós e de nossos filhos. O que estamos fazendo? Ou, melhor dizendo, o que estamos fazendo com respeito à Palavra? Conseguimos introduzir tanta coisa que não está na Bíblia até mesmo igrejas que mais creem na Bíblia. Eu me pergunto o que aconteceria se puséssemos de lado nossas preferências, se abríssemos mão de nossas tradições extra bíblicas (e em alguns casos antibiblicas), abandonássemos nossos confortos culturais em atitude de sacrifício, unicamente em torno da Palavra de Deus e da missão do evangelho. Vamos optar pelo conforto ou escolher a cruz? Isso nos leva à segund a pergunta.
VAMOS DEIXAR AS COISAS COMO ESTÃO OU ACEITAR O SACRIFÍCIO DA MISSÃO?
Jesus começa a conversar com o segundo homem em Lucas 9 dizendo-lhe: "Segue-me". O homem responde: "Permite que eu primeiro vá sepultar meu pai". Tudo o que ele quer é sepultar o pai, algo que ele não só quer fazer, como se espera que ele o faça. Não dar ao pai um funeral digno é expô-lo à desonra. Contudo, a resposta de Jesus é concisa e vai direto ao ponto: "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos; tu, porém, vai e anuncia o reino de Deus". Não dá para imaginar o que significa ouvir essas palavras. Ainda me lembro muito bem do dia em que recebi aquele telefonema inesperado do meu irmão, em que dizia que meu pai, meu melhor amigo neste mundo, havia morrido de repente de um ataque do coração. Em meio à dor intensa daquele momento e à tristeza indescritível que marcou os dias que se seguiram, não consigo imaginar Jesus me dizendo: "Nem sequer vá ao funeral de seu pai. Há coisas mais importantes a fazer". Afinal, o que isso significa? Jesus não quer dizer de modo algum que seja errado ir a um funeral, e sim que ninguém, ou nada, poderá colocar seu reino em segundo lugar. Para aquele homem do capítulo 9, isso significava entrega imediata para a realização de uma missão urgente. Mais importante até do que honrar os mortos era proclamar o reino àqueles que estavam morrendo. Dois mil anos depois, estou convencido de que uma urgência semelhante, se não maior, nos rodeia.
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A NECESSIDADE MAIS URGENTE: O EVANGELHO E OS NÃO ALCANÇADOS 271
Ao longo deste livro, falamos de necessidades físicas imensas existentes no mundo. Contudo, ao contemplarmos essas necessidades, se não formos suficientemente cuidadosos, corremos o risco de ignorar a necessidade mais urgente das pessoas. E ela não se confunde com a necessidade de água, alimentos, família, liberdade, segurança ou igualdade. Por mais urgentes que sejam todas essas coisas
para homens, mulheres e crianças do mundo inteiro, elas são superadas por uma necessidade muito maior. Essa necessidade- a mais urgente de todas - é a necessidade do evangelho. É por isso que Jesus, quando se dirigiu ao segundo homem, disse-lhe exatamente o que diria a seus discípulos antes de deixar a terra: "... vai e proclama o reino de Deus". Em seguida, disse a seus discípulos que o "arrependimento e o perdão dos pecados deveriam ser proclamados[ ... ] a todas as nações" (Lc 9.60; 24.47, ESV, ênfase do autor). Esse chamado à proclamação é interessante. Jesus, mais do que ninguém, sabia da profundidade das necessidades físicas das pessoas. Ele dedicara tempo aos doentes, moribundos e servira aos pobres. Quando viu as multidões, a Bíblia nos diz que ele "compadeceu-se delas" (Mt 9.36). Essas palavras no texto original do Novo Testamento demonstram um profundo anseio físico por atender as pessoas em "toda doença e toda aflição" (v. 35,ESV). Contudo, suas últimas palavras aos discípulos foram exatamente como as primeiras que disse a esse homem: à luz do sofrimento humano, acima de qualquer outra coisa, Jesus os estava chamando a proclamar. Vê-se, então, que Jesus sabia que, por maiores que fossem as necessidades terrenas das pessoas, a necessidade eterna delas era ainda maior. Quando um paralítico foi levado a ele numa maca, Jesus lhe disse: "Filho, os teus pecados estão perdoados" (M e 2.5). Ele usou essa oportunidade para ensinar ao paralítico e às pessoas à sua volta que a prioridade máxima de sua vinda não em :tliv 1,11 o sofrimento, por mais importante e necessário que isso lo , vez disso, sua prioridade ao vir ao mundo era extirpar a raiz do sofrimento: o pecado. Essa é nossa maior necessidade e a de todos os demais. Basicamente todos pecaram contra Deus e estão separados dele. Consequentemente nossa vida, não apenas na terra, mas também na eternidade, está em risco. Céu e inferno oscilam na balança. Deus proveu um meio para que todos pudessem se reconciliar com ele através da vida, morte e ressurreição de Cristo. Todos os que o receberem ganharão a vida eterna, porém os que o rejeitarem sofrerão o tormento eterno. Essa é a mensagem do evangelho e é isso o que as pessoas mais precisam ouvir. Cristo não está insensível às necessidades terrenas. No entanto, sua grande paixão são as necessidades eternas. Ele veio para reconciliar as pessoas com Deus. Ele veio não somente para saciar a sede dos corpos dos pobres, mas para dar às pessoas água viva para a alma. Ele veio não somente para dar aos órfãos e viúvas uma família agora, mas para lhes dar uma família para sempre. Ele veio não somente para libertar as jovens da escravidão sexual, mas para libertá-las (e os que delas abusam) da escravidão do pecado. Ele veio não somente para tornar a igualdade possível na terra, mas para tornar a eternidade possível no céu. Como o evangelho é a necessidade mais premente das pessoas, ele define o propósito fundamental de nossa vida. Nós que conhecemos o evangelho recebemos o maior presente de todo o mundo. Temos as boas-novas de um Deus glorioso que veio libertar homens, mulheres e crianças de
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todo pecado e de todo sofrimento para sempre. Portanto, não podemos - não devemos- ficar calados diante desse evangelho. Ter o evangelho significa proclamá-lo. A maior falácia é cometida quando o ministério social na igreja se divorcia da proclamação do evangelho de Cristo. Se nos limitarmos apenas a satisfazer as necessidades físicas das pessoas, ignorando suas necessidades espirituais, não entendemos nada. Contudo, com frequência é isso o que fazemos, por ser mais fácil e menos custoso para nós. É muito mais fácil dar um copo de água a quem tem sede e ir embora, do que dar o mesmo copo de água e ficar para compartilhar com essa pessoa sobre a água viva que pro- cede unicamente de Cristo. Mais uma vez, porém, como cristãos, não temos a opção de separar as duas coisas. Devemos proclamar o evangelho e, ao mesmo tempo, fazer o bem às pessoas. Somos compelidos a falar quando servirmos. Testificamos com nossos lábios aquilo que atestamos com nossa vida. Para ser claro, dar um copo de água ao pobre não é algo que dependa da confissão de fé daquela pessoa em Cristo. Amar ao próximo como a nós mesmos não é algo que se limita a essa forma de doação. Antes, essa atitude acompanha o compartilhar das boas--novas do evangelho. O verdadeiro amor pelo próximo requer nada menos do que isso. Nós nos importamos muito com o sofrimento terreno, mas nos importamos muito mais com o sofrimento eterno.1 Além disso, em conformidade com a boa providência divina, é quando lidamos com o sofrimento eterno que aliviamos com maior eficácia o sofrimento terreno. Depois de mais de uma década de pesquisas sobre o impacto dos missionários na saúde das nações, o sociólogo Robert Woodberry chegou à conclusão de que "a obra dos missionários[...] revelou ser o fator mais importante para a garantia da saúde dos países".2 Woodberry comparou especificamente a obra dos missionários do "protestantismo de conversão" com o "clero financiado pelo Estado" e os "missionários católicos antes da década de 1960". Ele disse que "as áreas em que os missionários protestantes tiveram presença significativa são, em média, mais economicamente desenvolvidas atualmente, com condições de saúde comparativamente melhores, taxa de mortalidade infantil menor, índice de corrupção menor, índice de alfabetização maior, nível de instrução maior (especialmente das mulheres) e com maior volume de filiação a associações não governamentais".Nas palavras de Woodberry, essas conclusões caíramlhe como uma "bomba atômica". 3 Contudo, suas descobertas não nos surpreendem, quando analisemos o que lemos na Escritura. Isso porque a melhor maneira de promover a transformação social e cultural não é pela via da transformação social e cultural, e sim pela consagração da nossa vida à proclamação do evangelho quando contamos a outros as boas-novas de tudo o que Deus fez em Cristo conclamando-os a seguilo. O fruto dessa salvação será a transformação inevitável - de vidas, familias, comunidades e até de nações. A missão central da igreja no mundo, portanto, consiste em proclamar o evangelho, e há muito trabalho a ser feito, não apenas em nossa cultura, mas com as pessoas do mundo todo. No capítulo 8, observamos que antropólogos identificaram mais de onze mil diferentes grupos étnicos no mundo. Jesus nos chamou a pregar o evangelho a todos eles."... fazei discípulos de todas as nações" (Mt 28.19), afirma ele na Grande Comissão, e a palavra "nações" aqui é ethne ou grupos etnolinguísticos. Essa comissão não é somente uma ordem genérica para fazer discípulos em meio ao maior número possível de pessoas. Antes, trata-se de um manda- mento específico de fazer discípulos em todos os grupos étnicos do mundo. Talvez você se pergunte como vamos obedecer ao mandamento de Cristo. Os estudiosos de missões procuraram identificar quantos desses onze mil grupos étnicos foram alcançados pelo evangelho. Um grupo étnico é classificado como "não alcançado" se menos de 2% da população é constituída de cristãos que confessam o evangelho e creem na Bíblia. Em termos práticos, para um
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grupo étnico considerado "não alcançado", não apenas os indivíduos desse grupo não creem no evangelho como também não há igreja nas proximidades, nenhum cristão entre eles e, em muitos casos, ninguém que procure levar o evangelho a eles. A maior parte dessas pessoas morrerá sem jamais ter ouvido o evangelho Portanto, quantos grupos étnicos ainda não foram atingidos? Mais de seis mil - uma população de pelo menos dois bilhões de indivíduos.4 Já encontrei muitas dessas pessoas mundo a fora. Caminhei durante dias por aldeias da Ásia onde parava para perguntar às familias o que sabiam sobre Jesus. A resposta era, invariavelmente: "Nunca ouvi falar dele". Conversei com homens em cidades do Oriente Médio que haviam ouvido falar de Jesus, mas ninguém havia lhes contado a verdade sobre quem ele é ou o que fez. Até aquele momento, eles jamais haviam visto pessoalmente um cristão ou uma Bíblia. Já estive em desertos africanos com pessoas que não haviam ouvido o evangelho e não desejavam ouvi-lo. São indivíduos que vivem em grupos étnicos completamente fechados a outras crenças e a todos os que tentem compartilhar outra fé com eles. É por isso que me vejo compelido a perguntar: será que vamos optar pelo conforto ou pelo sacrifício da missão? Jesus Cristo nos deu ordem para marchar, e ela é bem clara. Proclamar o evangelho - as boas-novas do grande amor de Deus por nós em Cristo - a todos os grupos étnicos do planeta. Portanto, como é possível que, dois mil anos depois, seis mil grupos étnicos ainda sejam classificado s como não alcançados? Uma das principais razões disso se deve ao fato de que optamos pelo conforto na igreja. Escolhemos um status quo em que nos contentamos em ver passivamente bilhões de pessoas morrendo sem ouvir o evangelho. Certamente essa é a maior injustiça em todo mundo inteiro, acima de tudo e
de todas as demais questões desenvolvidas atualmente em condições de saude, por nós tratadas. Sei que é uma declaração ousada, mas a faço sem reservas. Mais de dois bilhões de pessoas que vivem atualmente na Terra são pecadoras e estão em confronto com Deus, destinadas ao inferno e desesperadamente necessitadas de um Salvador; e ninguém lhes disse o quanto Deus as ama e que ele propiciou um meio para sua salvação. Estive às margens do rio Bagmati, sul da Ásia, onde todos os dias se realizam funerais e incineração de corpos. É costume entre os hindus, quando a familia ou os amigos morrem, pegar o corpo e levá-lo no período de 24 horas ao rio, onde são postos em piras funerárias e queimados em seguida. Com isso, eles acreditam que estejam ajudando o amigo ou o membro da família no ciclo da reencarnação. Quando vi essa cena, recaiu sobre mim um silêncio arrasador. No momento em que eu observava aquelas chamas se espalhando pelos corpos, soube, com base na Escritura, que aquilo era o reflexo físico de uma realidade eterna. Lágrimas rolaram pelo meu rosto quando me dei conta de que a maioria, se não todas as pessoas as quais eu estava observando, haviam morrido sem nunca ter ouvido as boas-novas de como poderiam ter vivido para sempre com Deus. Em que momento o conceito de povos não alcançados se tornará intolerável para a igreja? O que será preciso para que despertemos para a falta do evangelho nos povos do mundo? O que será preciso para que nosso coração e vida se sintam tocados pelos homens e mulheres cujas almas estão mergulhando na perdição, sem nunca terem tido a oportunidade de conhecer a salvação? Isso é inconcebível para pessoas que professam o evangelho. Porque se o evangelho for verdadeiro, e se nosso Deus for digno do louvor de todas as pessoas, a conclusão é que devemos mobilizar nossas igrejas e passar a vida proclamando o amor de Cristo a grupos étnicos do mundo todo que ainda não foram alcançados. Jesus não nos deu uma comissão para que a analisássemos; ele nos deu uma ordem para que a obedecêssemos.
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Essa ordem requer sacrifício sob todos os aspectos. Se tivermos acesso suficiente ao evangelho em nossa cultura e se ele estiver ausente em outras culturas, então certamente Deus está conduzindo muitos de nós (talvez a maioria) para essas culturas. Se Deus nos chamar a permanecer na cultura em que estamos, então certamente ele nos está chamando para que vivamos de modo simples e nos doemos em sacrifício, de modo que o maior número possível de pessoas possa alcançar outras culturas. Quer fiquemos, quer partamos, não temos outra escolha senão nos contrapormos à cultura. Se ficarmos, será preciso reconhecer que sacrificar prazeres, vender bens e adequar nossa vida para que
o evangelho seja levado a outras pessoas do mundo que nunca o ouviram será algo que inevitavelmente se oporá à cultura que o tempo todo nos acena para que busquemos mais prazeres, conquistemos mais posses e passemos a vida em torno do que nos proporciona mais conforto neste mundo. Além disso, se partirmos, precisamos estar conscientes de que esses grupos étnicos não foram alcançados por um motivo: são pessoas perigosas e difíceis de serem alcançadas, e o custo disso poderá ser imenso. Contudo, o evangelho nos chama a nos opormos à cultura não impor ta a que custo - mesmo que tenhamos de arriscar a vida, nossa família, nosso futuro, nossos planos e nossos bens - por causa de uma recompensa: a proclamação da maior de todas as boas-novas, a fim de que as pessoas tenham suas maiores necessidades atendidas . Isso nos leva à última pergunta que me sinto compelido a fazer.
NOSSA VIDA SERÁ MARCADA POR UMA MENTE INDECISA OU POR UM CORAÇÃO INTEIRAMENTE VOLTADO PARA O REINO?
O último homem de Lucas 9 se aproxima de Jesus e diz:"... eu te seguirei, mas deixa-me primeiro despedir-me dos de minha família". Um pedido simples, ao que parece. Ele quer dizer adeus a sua família e a seus amigos. Contudo, parece também que Jesus sabe que, tão logo esse homem volte para sua familia, o forte encanto do lar o seduzirá a ficar. Portanto, Jesus lhe diz: "Ninguém que ponha a mão no arado e olhe para trás é apto para o reino de Deus" (v. 61,62). Em outras palavras, "mantenha sua atenção e afeição fixadas totalmente em mim e no caminho para o qual eu o chamei". Já vi cenas semelhantes acontecer hoje em dia. Vi universitários, jovens solteiros e casais jovens sentirem o chamado de Deus alcançar os que ainda não ouviram o evangelho e, em seguida, vi-os retornar às casas de seus pais (cristãos e também não cristãos) onde foram per- suadidos a não obedecer. "Não é arriscado?", eles lhes perguntavam. "Como você vai encontrar um marido assim? Não será perigoso para sua esposa? E quanto a seus filhos? Você quer realmente criá-los lá? quer realmente que nossos netos não nos conheçam? "lronicamente, o cenário às vezes se inverte quando os casais, já aposentados, decidem partir para a missão, mas são interpelados pelos filhos: "Vocês têm certeza de que é prudente fazer missão nessa idade, na etapa de vida em que se encontram?". Não é raro que os atrativos do amor familiar levem a uma vida sem fé. Às vezes, é algo que se manifesta, por exemplo, quando um irmão aconselha a irmã a abortar a fi m de evitar situações desgastantes. "Certamente Deus nos perdoará nessas circunstâncias", pensam. Ou é algo que possamos notar, por exemplo, quando pais e mães encorajam seus filhos e filhas em sua vida sexual, a despeito do que diz a Escritura. "Certamente não há problema algum se meu filho ou filhar fizer sexo agora", pensam. Em tais situações, as palavras de Jesus são a um só tempo sucintas e sóbrias: "Porque vim causar hostilidade entre o homem e seu pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra; assim, os inimigos do homem serã o os de sua própria familia. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do
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que a mim não é digno de mim; e quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim" (Mt 10.35-37). Seguir a Jesus não implica apenas abandonar nossa vida em atitude de smr if 1n o; é algo que requer a afeição suprema do nosso coração . Contudo, vejo nas situações descritas, bem como em minha própria vida espiritual, uma tendência sutil, mas perigosa, para a indecisão. Eu me vejo inclinado a hesitar em relação ao chamado d 1• Deus. Antes de fazer qualquer coisa, quero a confirmação absoluta de que estou fazendo a coisa certa. Pesquiso todas as opções e ouço a opinião de todo mundo. Isso por si só não é uma coisa ruim. Quero agir com sabedor a; porém, se não tiver cuidad o, posso lentamente permitir que a indecisão se torne inação. Posso facilmente ficar paralisado pela pressão das pessoas à minha volta e pelas dúvidas que prevalecem dentro de mim. E, antes que me dê conta, a demora em obedecer se transforma em desobediência. No entanto, não deveria ser assim. Se estou caminhando perto de um lago e vejo uma criança se afogando, não paro para refletir sobre o que devo fazer. Tampouco fico ali parado orando para saber que atitude tomar. Faço algo imediatamente, sem hesitação: pulo na água e salvo a criança que está se afogando. O paralelo não é perfeito, mas pense nas situações de que temos tratado nestas páginas. Neste momento, milhões de homens, mulheres e crianças estão morrendo de fome e de sede. Inúmeros bebês foram abortados hoje e muitos mais serão abortados amanhã. Orfanatos, familias que acolhem crianças temporariamente, as ruas das cidades e as favelas estão transbordando de meninos e meninas que precisam de um pai e de uma mãe. Neste momento, inúmeras viúvas desconhecidas encontramse em suas casas, sem familia nem amigos que lhes deem assistência como fazia o marido que amavam, mas que se foi. Enquanto você lê estas palavras, milhares de jovens estão sentadas nas esquinas e nos bordéis à espera de um cliente que irá violá-las. Ao mesmo tempo, muitos homens e mulheres se acham oprimidos por causa de sua etnia, e nossos irmãos e irmãs no mundo todo são perseguidos por causa de sua fé. E finalmente, enquanto refletimos sobre o evangelho, mais de dois bilhões de pessoas no planeta jamais o ouviram. Elas estão esperando para ouvir as boas-novas de como o amor de Deus por elas em Cristo pode satisfazê-las na terra e salvá-las na eternidade. Meu objetivo ao colocar esses fatos diante de nós não é nos levar a sucumbir sob seu peso. Na verdade, só Deus pode suportar os fardos do mundo inteiro. Somente ele tem a estrutura emocional para perceber o mundo conforme o percebe. Contudo, Deus nos ama demais para permitir que vivamos na indiferença e na passividade. Com certeza ele quer que ajamos, no mínimo, de acordo com as orientações oferecidas no final de cada capítulo deste livro: orando, participando com ele e proclamando sua Palavra no mundo à nossa volta. Certamente devemos começar pela oração. Essa é, em termos práticos, a coisa mais simples e, possivelmente, mais importante que podemos fazer à luz da injustiç a social. São batalhas que, no fim das contas, pertencem a Deus (veja lSm 17.47), e ele deseja que participemos com ele da realização de seus propósitos por meio da oração. Portanto, tendo em vista a instrução de Cristo para nós, peçamos que venha o reino de Deus e sua vontade seja feita (veja Mt 6.9,10). Em sintonia com os que partiram antes de nós, oremos para que o juízo e a misericórdia de Deus sejam manifestos em meio a tão grandes necessidades (veja Sl 7, 10,17,18), conscientes de que nenhuma de nossas orações é feita em vão (veja Lc 11.1-13). Para ajudá-lo a saber qual a melhor maneira de orar, além das sugestões de oração no final de cada capítulo deste livro, eu e outros colegas criamos um site CounterCultureBook.com - que remete o visitante para pontos específicos de oração de acordo com cada uma das dificuldades tratadas neste livro. Minha esperança é que esse site possa, em primeiro lugar, alimentar homens e mulheres que estejam caindo de joelhos perante Deus diante da necessidade do mundo.
143 Que nossas orações possam então nos conduzir à participação com Deus no mundo à nossa volta. Uma das formas mais importantes pelas quais isso pode acontecer é pela oferta. Em vista do
provimento de nossas necessidades e da fartura que Deus tem concedido a tantos de nós, é preciso que consideremos o uso disso em favor da adoração divina. O modelo apresentado pelo Novo Testamento prioriza as ofertas feitas à igreja local e as levantadas por ela (veja lCo 16.1-4) . Portanto, esse é o local por excelência para se começar. Que Deus nos ajude em nossas igrejas a organizar nossos gastos, direcionando-os para a proclamação do evangelho em um mundo de necessidade espiritual e física urgentes. Queremos, obviamente, doar com sabedoria para as necessidades específicas tratadas neste livro. Por isso, é importante encontrar ministérios que atuem nessas área aos quais você ou sua igreja local possam se associar para fazer suas ofertas. No site que mencionei anteriormente indico alguns ministérios desse tipo em meu país. Garanto-lhe que não obtenho lucro algum com a indicação dessas organizações - inclusive tudo o que eu ganhar com a venda deste livro será direcionado para a proclamação do evangelho através de ministérios desse tipo. Meu objetivo é simplesmente proporcionar-lhe um primeiro passo para que você considere como doar com generosidade, com espírito de sacrifício, de forma sensível e com alegria em nossa cultura. Ao orarmos, e quando fizermos nossa oferta, confio que Deus nos guiará aonde ir. Uso "ir" aqui geralmente para me referir a muitas outras atitudes que Deus pode nos levar a tomar . Em vista dos seis mil grupos étnicos não alcançados, confio que Deus levará muitos de nós ao seu encontro, tocando em nossa vida e em nossas famílias para que vivamos entre eles e com eles compartilhemos o evangelho. Confio que ele levará outros de nós a trabalhar entre os pobres em nossas cidades e em todo o mundo; a adotar ou a acolher temporariamente crianças; a criar ministérios dedicados às viúvas, mães solteiras ou imigrantes, ou deles participar; a trabalhar contra o aborto; a combater a escravidão; a apresentar o evangelho num casamento segundo os padrões bíblicos; a lutar pela unid ade étnica; a servir a igreja perseguida; a defender a liberdade religiosa etc. A criatividade de Deus talvez fique mais clara nas formas pelas quais ele chama diferentes seguid ores de Cristo a usar seu tempo, talentos e tesouros de diversas maneiras para os propósitos do seu reino. Conforme eu disse no capítulo 1, nem todos podem ou devem dar a mesma atenção a cada um dos problemas mencionados, pois Deus nos coloca soberanamente em posição e lugares especiais, com privilégios e oportunidades ímpares para influenciar a cultura à nossa volta. Por esse motivo, o site CounterCultureBook.com também oferece algumas ideias iniciais para você considerá-los, enquanto reflete sobre maneiras específicas pelas quais Deus pode chamá-lo para pôr em prática sua Palavra. No entanto, devemos todos ser constantes em orar, fazer nossas ofertas e ir aonde ele nos guiar, e, ao fazê-lo, devemos proclamar o evangelho com convicção, compaixão e coragem. Espero que tenha conseguido mostrar que, uma vez reconhecida a importância fundamental do evangelho para toda e qualquer cultura, todos nós possamos nos dar conta de que esse evangelho nos constrange a confrontar as dificuldades sociais prementes da nossa cultura. No centro desse confronto, priorizamos a proclamação do evangelho, já que só ele tem poder não apenas de mudar as culturas desta terra, mas de transformar vidas para a eternidade. Portanto, não nos calemos diante do evangelho. Não deixemos que o medo em nossa cultura silencie nossa fé em Cristo. Não deixemos que a indecisão governe nossa vida. Não deixemos que a demora caracterize nossos dias. Não precisamos perguntar qual é a vontade de Deus; ele a deixou bem clara. Ele quer que seu povo supra as necessidades dos pobres, valorize os que ainda não nasceram, preocupe-se com os órfãos e as viúvas, resgate as pessoas da escravidão, defenda o casamento, combata a imoralidade sexual em todas as suas formas e em todas as áreas de sua vida, ame o próximo como a si mesmo, independentemente de sua etnia, pratique a fé, não importa a que risco, e proclame o evangelho a todas as nações. Dessas coisas podemos ter certeza.
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Portanto, ore a Deus, participe com ele dessa missão e proclame o evangelho. Faça isso não porque você se sente relativamente culpado e se vê na obrigação de agir, mas porque tem uma compreensão elevada da graça que o leva a querer agir. Faça por saber que, antes, era uma pessoa empobrecida pelo pecado, escrava de Satanás, órfã de Deus e só no mundo. Contudo, Deus esten deu sua mão cheia de misericórdia ao seu coração imerso no pecado e, por meio do sacrificio do seu Filho unigênito numa cruz manchada de sangue, ele o levantou pelo seu cativante amor para uma nova vida. Você agora não tem o que temer e nada a perder, porque foi revestido das riquezas de Cristo e está guardado na segurança que Cristo lhe dá. Ore a Deus, participe com ele da missão e proclame o evangelho não pela i.4isão ut'ópica de que você ou eu, ou uma pessoa qualquer, ou todos nós, possamos nos livrar da dor e do sofrimento. Isso cabe ao Cristo ressuscitado, e ele o fará quando voltar. Até aquele dia, porém, empenhe-se de todo o coração, não importa o que ele lhe peça para fazer. Alguns dirão que os problemas aqui apresentados são complexos e que uma pessoa, família ou igreja não podem, realmente, fazer muita diferença. Sob muitos aspectos, isso é verdade, e cada uma das questões tratadas é extremamente complicada. Contudo, não subestime o que Deus fará em uma pessoa, família ou igreja e através de cada uma delas pela proclamação do seu evangelho e por amor à sua glória em nossa cultura. Portanto, faça essas coisas com a convicção inabalável de que Deus o colocou nessa cultura, neste momento, por uma razão. Ele o chamou para si, salvou-o através de seu Filho, encheu-o com seu Espírito, conquistou-o com seu amor e o compele por sua Palavra a se contrapor à nossa cultura para a proclamação do seu reino, sem se preocupar com o preço disso, porque confia que o próprio Deus é sua grande recompensa.