Paul Ricceur TEORI
Os textos aqui publicados são uma síntese clara e profunda do projecto hermenêutico de P. Ricoeur e das suas categorias centrais: discurso como . evento, noção de texto, mundo da. obra; distanciação e apropriação.
INT
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BIBLIOTECA DE FILOSOFI CONTEMPORÂNEA
edições 70
TECA DE FILOSOFIA ONTEMPORANEA
edições 70
BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA 1. MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA, John Searle 2. TEORIA DA INTERPRETAÇÃO, Paul Rícoeur 3. TÉCNICA E CIÊNCIA COMO .IDEOLOGIA~, Jurgen Habermas 4. ANOTAÇÕES SOBRE AS CORES, Ludwig Wittgenstein 5. TOTALIDADE E INFINITO, Ernrnanuel Levinas 6. AS AVENTURAS DA DIFERENÇA, Gianni Vatimo 7. ÉTICA E INFINITO, Emmanuel Levinas 8. O DISCURSO DE ACÇÃO, Paul Rícoeur 9. A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO, Martin Heidegger 10. A TENSÃO ESSENCIAL, Thomas S. Kuhn 11. FICHAS (ZETTEL), Ludwig Wittgenstein 12. A ORIGEM DA OBRA DE ARTE, Martin Heidegger
TEORIA
DA INTERPRETACÃO ,
Paul Ric~ur DOAÇAo/OT·OtENClA
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FtegiBtro
No. 583. "176 DaUl..
Autor:RIOOEUR.
PAUL
TI1Ulo:TEORIA
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TEORIA
DA INTERPRETAOAO
DA
Preço:10.00 Doador:DIVERSOS
Título original: Interpretation Theory: discourse and the surplus of meaning
© 197.6 by Texas Christian Unversity Press
INTERPRETACÃO ,
Tradução de Artur Morão
o DISCURSO
E O EXCESSO DE SIGNIFICAÇÃO
Capa Depósito legal n. o 18296/87 Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa por Edições 70, Lda. Av. Elias Garcia, 81, r/c - 1000 Telefs. 76 27 20 / 76 27 92 / 76 28 54 Fax: 761736 Telex: 64489 TEXTOS P
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~ediçOeS70
PREFÁCIO No outono de 1973, Paul Ricoeur foi de Paris a Fort Worth dar uma série de lições como parte da celebração centenária da Texas Christian University. A série tinha o título "Discurso e o excesso de significação". O texto publicado aqui sob o título Teoria da Interpretação conserva o primeiro título como subtítulo. Esta mudança assinala o desenvolvimento do texto numa teoria sistemática e compreensiva que tenta explicar a unidade da linguagem humana em vista dos diversos usos a que é sujeita. Uma questão justa é a da localização deste texto dentro do horizonte das investigações de Ricoeur a propósito da linguagem e do discurso, publicadas depois de A Simbólica do Mal (1960). Este amplo horizonte é a busca de uma filosofia compreensiva da linguagem que possa explicar as múltiplas funções do acto humano de significar e todas as suas inter-relações. Nenhuma obra singular publicada durante este período (1960-1969) pretende oferecer semelhante filosofia compreensiva, e também não se pretende que as investigações tomadas em conjunto a constituam, pois Ricoeur duvida de que ela possa ser eleborada por um só pensador. Como se situa a Teoria da Interpretação relativamente a essa busca? Ocupa um lugar distinto, pois obras como Da Interpretação (1965) e O Conflito das Interpretações (1969) são sobretudo investigações dos diversos usos a que a linguagem enquanto discurso é submetida, ao passo que a Teoria da Interpretação oferece uma explicação da unidade da linguagem humana em vista dessa diversidade de funções. Em Teoria da Interpretação temos a filosofia da linguagem integral de Paul Ricoeur. Como resultado da apresentação inicial das conferências, manteve-se um seminário sobre a interpretação de textos e um simpósio acerca da linguagem na Texas Christian University em 1975. O professor Ricoeur regressou á TCU para tomar parte nesses acontecimentos e desenvolveu a sua teoria .9
pelas críticas que fez nos ensaios apresentados pela faculdade da TCU e pelos estudantes de muitas e diversas disciplinas. Tais acontecimentos indicam o poder desta teoria da interpretação e desta filosofia da linguagem. É nossa intenção pô-Ia agora à disposição de um auditório muito mais vasto, mediante a publicação da versão ampliada das conferências centenárias de Paul Ricoeur da TCU. Esta Universidade escolheu o que há de melhor no saber contemporâneo para ajudar a celebrar o seu centenário e assim honrou adequadamente o professor Ricoeur pelo convite que lhe fez. Por seu turno, ele proporcionou-nos o melhor da sua investigação e honrou deste modo a Universidade, ajudando-nos a celebrar adequadamente o seu centenário. Estamos-lhe muito agradecidos .. Ted Klein Presidente do Departamento de Filosofia Texas Christian University Fort Worth, Texas
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INTRODUÇÃO Os quatro ensaios que constituem este volume baseiam-se em e ampliam as conferências que fiz na Texas Christian University de 27 a 30 de Novembro de 1973 como suas conferências centenárias. Podem ler-se ou como ensaios separados, ou também como aproximações graduais de uma solução para um problema singular, o de compreender a linguagem ao nível de produções como poemas, narrativas e ensaios, quer sejam literários ou filosóficos. Por outras palavras, o programa central que está em jogo nos quatro ensaios é o das obras; em particular, o da linguagem como obra. Uma completa apreensão deste problema não se consegue antes de chegar ao quarto ensaio, que se ocupa de duas atitudes aparentemente antagónicas que podemos assumir ao lidar com a linguagem enquanto obra; quero dizer, o conflito aparente entre a explicação e_20mpreensão. CreIO, porém, que talc-õnflifO é apenas aparente eque pode vencer-se se for possível mostrar que as duas atitudes se relacionam dialecticamente entre si. Daí, pois que o horizonte das minhas lições seja constituído por essa dialéctica. Se se puder dizer que a dialéctica entre a explicação e a compreensão fornece a referência última das minhas observações, o primeiro passo a tomar nesta direcção deve ser decisivo: devemos transpor o limiar para lá do qual a linguagem se apresenta como discurso. Por conseguinte, o tópico do primeiro ensaio é o da linguagem como discurso mas, na medida em que só a linguagem escrita ostenta plenamente os critérios do discurso, uma segunda concerne à amplitude das mudanças que afectam o discurso quando já não é falado, mas escrito. Daí o título do meu segundo ensaio, "Fala e Escrita". . A teoria do texto que emerge desta discussão é apresentada mais à frente com a questão da plurivocidade, que pertence não só às palavras (polissemia), ou mesmo a frases (ambiguidade), mas a obras inteiras de discurso como poeI1
mas, narrativas e ensaios. O problema da plurivocidade, discutido no terceiro ensaio, fornece a transição decisiva para o problema da interpretação, redigido pela dialéctica da explicação e da compreensão, que, como indiquei, é o horizonte de todo este conjunto de ensaios. Desejo expressar a minha gratidão e o meu obrigado aos elementos da Texas Christian University pela oportunidade que me ofereceram de dar as lições que formam a base desta obra e também pela sua graciosa hospitalidade, durante a minha estadia ali. Foi para mim muito aprazível poder contribuir para a celebração do seu centenário.
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1 LINGUAGEM
COMO DISCURSO
Os termos em que o problema da linguagem como discurso se discutirá neste ensaio são modernos no sentido de que não se teriam podido adequadamente formular sem o tremendo progresso da linguística moderna. No entanto, se os termos são modernos, o problema em si não é novo. Foi sempre conhecido. No Crátilo, Platão já mostrara que o problema da "verdade" das palavras isoladas ou nomes deve permanecer indecidido porque a denominação não esgota o poder ou a função da fala. O logos da linguagem requer, pelo menos, um nome e um verbo e é o entrelaçamento destas duas palavras que constitui a primeira unidade da linguagem e do pensamento. E mesmo esta unidade suscita uma pretensão à verdade; a questão tem ainda de decidir-se em cada caso. O mesmo problema reaparece em obras mais maduras de Platão como o Teeteto e o Sofista. A questão aí é de compreender como é que o erro é possível, isto é, como é possível dizer o que não se verifica, se falar significa sempre dizer alguma coisa. Platão é, de novo, forçado a concluir que uma palavra por si mesma não é verdadeira nem falsa, embora uma combinação de palavras possa significar alguma coisa e, no entanto, nada apreende. O suporte deste paradoxo é, mais uma vez, ~r~ não a palavra. Tal é o primeiro contexto em cujo seio se descobriu o conceito de discurso: o erro e a verdade são "afecções" do discurso, e o discurso exige dois signos básicos - um nome e gm verbo - que se conectam numa síntese que vai além das j?.alavras; Aristóteles diz a mesma coisa no seu tratádo Da Interpretação. Um nome tem um significado e um verbo tem, além do seu significado, uma indicação do tempo. Só a sua conjunção produz um elo predicativo, que se pode chamar logos, discurso. Esta unidade sintética é que comporta o duplo acto de afirmação e negação. Uma afirmação pode ser contradita por outra afirmação e pode ser verdadeira ou falsa.
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Este breve sumano do estádio arcaico do nosso problema pretende lembrar-nos da antiguidade e da continuidade do problema da linguagem enquanto discurso. Porém, os termos em que agora o discutiremos são inteiramente novos, porque tomam em consideração a metodologia e as descobertas da linguística moderna. Nos termos desta linguística, o problema do discurso tornou-se um problema genuíno, porque o discurso pode agora opor-se a um termo contrário que não era reconhecido ou tido como garantido pelos filósofos antigos. 9 termo oposto é_~ o objecto autónomo da investigação científica. É o código linguístico que fornec~ uma estrutu!.!LesQecífic~ cada um dos sistemas linguísticos, que agora conhecemos cõiüõãS diversas llnguaslaladas· pelas diversas comunidades linguísticas. oCLínguasignifica, pois, aqui algo de diferente da c.~E.acidade geral de falar o.u da competênCia comum de falar. Desigga a estrutura articular do sistema lin ístico particular. Com as palavras "estrutu'fã"e "sistema" umá nova problemática emerge que tende, pelo menos inicialmente, a pospor, se é que não a cancelar, o problema do discurso, que é condenado a retroceder do primeiro plano da preocupação e a tornar-se um problema residual. Se o discurso ~e, para nós, é problemático é porque as principais realizações da linguística dizem res eito à.lingua enquanto estruturg esistema, e não enqüãnto usada. A nossã1ã"fefã será, portanto, libertar o discurso o seu exílio marginal e precário.
Langue e Parole: O Modelo Estrutural A recessão do problema do discurso no estudo contemporâneo da linguagem é o preço que devemos pagar pelas tremendas realizações levadas a cabo pelo famoso Cours de linguistique général do linguista suíço Ferdinand de Saussure (I). A sua obra funda-se numa distinção fundamental entre ..!!linguagem como langue e como parole, que configurou forte~nte a linguística moderna. (Note-se que Saussure ~ --~. não falou de ISCurSO"mas de "paroM'. Mais tarde, entenderemos porquê.) Y!!lK.lfe é o CÓdIgOou o conjunto de código~ - sobre cuja base falante o particular produz a ~ como um~tp.ensagem particular. 14
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. A esta dicotomia ulcra igam-se várias distinções subsidiárias. Uma mensagem é individual, o seu código é colectivo. {fortemente influenciado por Durkheim, Saussure conside~nguística como um·ra~<) JãSõ'ciologiã".) A mensagem e o código não pertencem ao tempo da mesma maneira. Uma mensagem é um evento temporal na sucessão de eventos que constituem a dimensão diacrónica do tempo, ao passo que o código está no tempo como um conjunto de elementos contemporâneos, isto é, como um sistema sincrónico. Uma mensagem é intencional; é intentada por alguém. O código é an9.mmo e não intentado. Neste sentido, é inconsciente, não no 'sentido em que os impulsos e tendências são inconscientes segundo a metapsicologia freudiana, mas, no sentido de um inconsciente estrutural e cultural não libidinal. Mais do que qualquer outra coisa, uma mensagem é arbitrária e contingente, ao passo que um código é sistemático e compulsório para uma dada comunidade linguística. Esta última oposição reflecte-se na afinidade de um código para a investigação científica; sobretudo num sentido da palavra ciência que sublinha o nível quase algébrico das capacidades combinatórias, implicadas por tais conjuntos finitos de entidades discretas como sistemas fonológicos. Iexi<.cais e sintácticos. E mesmo se a parole pode escrever-se cientificamente, cai sob a alçada de muitas ciências, incluindo a acústica, a filosofia, a sociologia e a história das mudanças semânticas, ao passo que a langue é o objecto de uma única ciên~i~.? a de~crição dos Sistemas sincrónkos da lingUaEem. . Este rápido panorama das principais dicotomias estabeI~CId~spor Saussu~e é suficiente para mostrar porque é que a Iinguística conseguiu progredir sob a condicção de pôr entre parênteses a m.ensagem por mor do código, o evento por mor do -sistema, a intenção por mor da estrutura, e a arbitrariedade do acto pela sistematicidade das combinações dentro de sistemas sincrónicos. .2.- eclipse do discurso foi, ademais, encorajado pela tentativa que se fez de estender o modeloesfrutural para além do seu lugar de nascimento na linguística e pela consciência sistemática dos requisitos teóricos implicados no modelo linguístico enquanto modelo estrutural. A extensão do modelo estrutural diz-nos respeito directamente, na medida em que o modelo estrutural se aplicou às 15
mesmas categorias de textos que são o objecto da nossa teoria da interpretação. Originalmente, o modelo dizia respeito a unidades mais pequenas do que a frase, os signos dos sistemas lexicais e as unidades discretas dos sistemas fonológicos, de que se compõem as unidades significativas lexicais. No entanto, ocorreu uma extensão decisiva com a aplicação do modelo estrutural a entidades linguísticas mais amplas do que a frase e também a entidades linguísticas semelhantes aos textos da comunicação linguística. No tocante ao primeiro tipo de aplicação, o tratamento. dos contos pelos formalistas russos, como V. Propp (2), assinala uma viragem decisiva na teoria da literatura, especialmente no que se refere à estrutura narrativa das obras literárias. A aplicação do modelo estrutural aos mitos por Claude Lévi-Strauss constitui um segundo exemplo de uma abordagem estrutural a séries longas de discurso; uma abordagem análoga mas, no entanto, independente, do tratamento formal do folclore proposto pelos formalistas russos. Relativamente à extensão do modelo estrutural às entidades não linguísticas, a aplicação pode ser menos espectacular - incluindo, como faz, sinais de tráfego, códigos culturais como modos de estar à mesa, vestuário, códigos habitacionais e residenciais, padrões decorativos, etc. - mas é teoricamente interessante, por fornecer um conteúdo empírico ao conceito de semiologia ou semântica geral, que foi desenvolvida independentemente por Saussure e por Charles S. Peirce . ..AJin: guísticª torna-se aqui uma província da teoria geral dos sig::Jiõs:-emborã seja uma províiicia que tem o privilégio se ser simultaneamente uma espécie e um exemplo paradigmático de um sistema sígnico. Esta última extensão do modelo estrutural implica já uma apreensão teórica dos postulados que governam a semiologia em geral e a linguística estrutural em particular. Tomados conjuntamente, tais postulados definem e descrevem o modelo estrutural como um modelo. .frimei.t:.o,uma aborda em sincr9nica d!y-e_PIYcederqualquer abordagem diacrónica, porque os sistemas são mais inteligíveisdo queã"Smudanças. Quando muito, uma mudança é uma mudança, parcial ou global num estado de um sistema. Por conseguinte, a história das mudanças deve vir depois da teoria que descreve os estados sincrónicos do sistema. Este 16
pri~eir~ p~s.tulado expressa a emergência de um novo tipo de inteligibilidade, directamente oposto ao historicismo do século XIX. Em segundo lugar, o caso paradigmático para uma ab~rdagem estrutural é o de um conjunto finito de entidades discretas. A primeira vista, os sistemas fonológicos podem parecer satisfazer este segundo postulado mais directamente do que fazem os sistemas lexicais, onde o critério de finitude é mais difícil de aplicar concretamente. Contudo a ideia de um léxico infinito permanece, em princípio, absurda. A vantagem teórica dos sistemas fonológicos - apenas umas quantas .dúzi?s. de signos distintivos caracterizam qualquer sIs.tema linguístico dado - explica porque é que a fonologia veio para o pnrneiro plano dos estudos linguísticos, a seguir à obra deSaussure, embora '!. fonologia .constituísse, para o fundador da linguística estrutural, apenas uma..ciência auxiiar_ p~ra ,o. núcleo. da Iinguística: _a semântica A posição pàrâdigmática dos SIstemas constituídos por conjuntos finitos de entidades discretas reside na capacidade combinatória e nas possibilidades quase algébricas que pertencem a tais conjun~os. !~i~ .capaci?ad~s e possibilidades enriquecem o tipo ~e lllte~I1?IbIhdade instituído pelo .,primeiro postulado, o da .slllcrolllcIdade Js!.ceiro lugar, em tal sistema, nenhuma entidade que pertença à est~utura do sistema tem um significado por si mesma; o sentido de uma palavra, por exemplo, resulta da sua oposição a outras unidades lexicais do mesmo sistema. ,.Çomo .§aussure disse, Jlum sistema de signos, há_apenas difeJenças, mas nªo uma existência substancial. Este postulado define as l?ropriedadesformais das entidades linguísticas opondo-se aqui formal a substancial, no sentido de uma existência positiva autónoma das entidades em jogo na linguística e em geral, na semiótica. ' [Em quarto lugar" em tais sistemas finitos, todas as rela_. J. çoes sao imanentes ao SIstema. Nesse sentido os sistemas l..ePlió.ticos são "fechados", isto é, sem relações' êõffia reali_dade exte.;na folãose~iótica~ À aefinição do sig~o dada por Saussure implicava ja este postulado: em vez de se definir pela relação externa entre o signo e uma coisa, relação essa tornaria a linguística dependente de uma teoria das entidades extraliuguístícas, .o,","s~gJ10_ defi e-se or uma oposição entre" --5l0IS asp~ctos qu~~e I~serem ,ambos dentro da circunspecção
.ê?
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de uma única ciência a dos signos. Estes dois aspectos são o significante - por exemplo, um sem, u~ ~adrão escrito, um gesto ou qualquer meio físico - e o Ingmfic~do. - Q... valor, diferencial no sistema lexical. O facto de 2...slg~~ficante e o - significado admitirem dois tipos d~ferentes de analise - fono~ lógica no primeiro cas?, semâ~tlca n_o se,gundo - m~s, ~o conjuntamente constitUlrem o signo, nao so fornece ~ cnteno para os signos tínguístícos, mas ta~b~m por extensao, o d~s entidades de todos os sistemas semióticos, qu~ s,e.podem definir com a condição de se "enfraquecer" esse cnteno. . O último postulado basta, só por si, para caractenzar ~ estruturalismo como um modo global de p_ensamento, ~ara Ia . de todos os aspectos técnicos da sua metodologia. A lmguagem já não apareçe ~omo uma m~di~ção entre as mentes e as ·coisas. Constitui um mundo propno, dentro do qual ca~a eiemento se refere apenas a outros elementos do m~smo SIStema, graças à acção recíproca das opos~ções e dl~~re~ça~ constitutivas do sistema. Numa palavra~!!.nBl!.a?em ja n~o ~ tratada como uma "forma. de vida", com? Wlttgenstem_ a chamaria, mas como' o sistema auto~s.uficlente de relaçoes internas, Neste ponto, extremo, _a linguagem
desapareceu
corno.
discufso., Semântica versus Semiótica: a Frase A esta abordagem unidimensional da linguagem, para a qual os signos são as únicas entidades básicas,. quero opor uma abordagem bidimensional, ~ar~ a qu~l a linguagem ~ funda~Jlas entidades irredutlv~, ~ Sl@QS e as frases. Esta dualidade não coincide com a de Zangue e paroZe, como foram definidas por Saussure no seu Cours d~ lin!5!"'istique générale, ou mesmo como essa dualid~d~ foi mais tarde reformulada enquanto oposição entre código e mensa~em. N a terminologia de Zangue e paroZe, apenas a Zangue e um objecto homogéneo para uma ciên~ia ~n~ca, graças às propriedades estruturais dos sistemas sm~ro~l.coS. Pa,:oZe" c?mo dissemos, é heterogénea, além de ser individual, dlacromca e contingente. Mas a paroZe a· resenta também uma .e~t~utura que é irredutíve1 num sentido específico ao das possIbIlIdades 18
combinatórias abertas pelas oposições entre entidades discretas. Esta estrutura é 1!....construção sintética da ró ria frase . enquanto distinta de qualquer combjnaçãn., nalítica de enti.dades discretas. A minha substi~ termo "discurso" ao de ''paroZe'' (que exprime apenas o aspecto residual de uma ciência da "Zangue") visa não só salientar a especificidade desta nova unidade em que se apoia todo o discurso, mas também legitimar a distinção entre a semiótica e a semântica como as duas ciências que correspondem a duas espécies de unidades características dslingyagem, o signrn fr.a~ ---Além-disso as duas ciências não só são distintas mas reflectem igualmente uma ordem hierárquica. O objecto da semiótica --4"0 'I---- --.,..-. t -'signo~ -.::- I~ é meramente virtual. \.Apenas a rase é ~~tu~l enq?anto genuíno acontecimento da fai~ nao e possível passar da palavra, enquanto signo léxica para frase, por simples extensão da mesma metodologia a uma entidade ma~s complexa. ,A frase não é uma palavra mais ampla ou mais complexa. ~e. Pode decompor-se em palavras, mas as palavras são algo de diferente de frases curtas. Uma frase é um todo irredutível à soma das suas partes. É constituída por palavras, mas não é uma funç~o derivativa d.as suas p~la;ras. Uma fr~põ~e ~_mas ~Sl mesma nao.e um SIgno. Nao existe, por consegumte, nenhuma progressão linear do fonema para o lexema e, em seguida, para a frase e para totalidades linguísticas mais amplas do que a frase. Cada estádio requer novas estruturas e uma nova descrição. A relação entre as duas espécies de entidades pode expressar-se da seguinte maneira, de acordo com a sanscritista francês Emile Benveniste: a linguagem baseia-se na possibilidade de dois tipos de operações, a integração em todos mais vastos e a dissociação nas partes constitutivas. O sentido promana da primeira operação; a forma, da segunda. A distinção entre as duas espécies de linguística - a semiótica e a semântica - reflecte esta rede de relações. A ~ciência dos signos, é formal na medida em que se ~da....!la dissociação da.Jíngua ~em partes constitutivas. A ", .. ",. ~•....• _ se~tlca, a CIenCIada fraset diz imediatamente re~peito ao conceito del sentidol( que, neste momento, se pode considerar ~ significação, antes de se introduzir mais à frente 'a distiiÍÇãõ'êri'ti=êSenfido e referência), na medida em ""-
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que a semântica se define fundamentalmente mediante procedimentos integrativos da linguagem. Quanto a mim, a distinção entre semântica e semiótica é a chave de todo o problema da linguagem, e os meus quatro ensaios baseiam-se nesta decisão metodológica inicial. Como disse nas observações introdutórias, esta distinção é simplesmente uma revalorização do argumento de Platão no Crátilo e no Teeteto, segundo o qual o logos se funda no entretecimento de, pelo menos, duas entidades diferentes, o nome e o verbo. Mas, noutro sentido, esta distinção exige hoje mais sofisticação por causa da existência da semiótica enquanto moderna contraparte da semântica.
A Dialéctica de Evento e Significação A parte seguinte deste ensaio será consagrada à busca de critérios adequados para diferenciar a semântica e a semiótica. Construirei os meus argumentos a partir da convergência de várias abordagens que, por diversas razões, têm a ver com a específicidade da linguagem como discurso. Estas abordagens são a linguística da frase, que fornece o título geral de semântica; e a fenomenologia da significação, que deriva da primeira Investigação lógica de Husserl (3); e o tipo de "análise linguística", que caracteriza a descrição filosófica anglo-americana da "linguagem comum". Todas estas realizações parciais se reunirão sob um título comum, a dialética de evento e significação no discurso, para o qual descreverei em primeiro lugar o pólo do evento, em seguida, o pólo da significação enquanto componentes abstractas desta polaridade concreta. Discurso como Evento
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s~~ântica do discurso deve ser rectificar a fraqueza epistemológica da parole, avançando do carácter fugaz do evento enquanto oposto à estabilidade do sistema relacionando-o com ~ prioridade ontológica do discurso,' que resulta da actualidade do evento enquanto oposto à mera virtualidade do sistema. É verdade que só a mensagem possui uma existência temporal, uma existência na duração e na sucessão' e como o aspect? sincronístico do código põe o sistema fora' do tempo suceSSIVO,então a existência temporal da mensagem dá testemunho da sua actualidade. De facto, o sistema não existe. Tem apenas uma existência virtual. Unicamente a mensagem proporciona actualidade à língua e o discurso funda a existência genuína da língua, visto que só os actos de discurso discretos e únicos em cada tempo actualizam o código. Mas, este primeiro critério, por si só, seria mais enganador do que elucidativo, se a "instância do discurso" como a chama Benveniste, fosse meramente o acontecimento evanesce~te: Então a ciência estaria justificada em pô-lo de lado e a pnonda?e ?ntológica do discurso seria insignificante e sem consequencias, No entanto, um acto do discurso não é simplesmente transitório e evanescente. Pode identificar-se e reidentificar-se como o mesmo, de maneira que o possamos dizer novamente ou por outras palavras. Podemos até dízê-lo noutra língua ou traduzi-l o de uma língua para outra. Ao longo de todas as transformações preserva uma identidade própria, que pode chamar-se o conteúdo proposicional o "dito enquanto tal". ' Temos, pois, de reformular o primeiro critério - o discurso como evento - de um modo mais dialéctico a fim de se tomar em consideração a relação que constitui o discurso enquanto t~l, a relação entre evento e significado. Mas, antes de conseguirmos apreender esta dialéctica como um todo consideremos o lado "objectivo" do evento da fala. '
Partindo da distinção saussuriana entre langue e parole podemos dizer, pelo menos de um modo introdutório, que o @scurso é o evento da linggagem, Para urna linguística aplicada à estrutura dos sistemas, a dimensão temporal deste evento exprime a fraqueza epistimológica de uma linguística da parole. Os eventos esvanecem-se, enquanto os sistemas permanecem. Por conseguinte, o primeiro passo de uma
Considerada do ponto de vista do conteúdo proposicional, ? f~se pode caracteriz~r-se QQ! um único traço distintivo: ..!e~.!:!!!!..J2realcaao. Como observa Benveniste, o sujeito gramatical pode faltar, mas não o predicado. Mais ainda, esta
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Discurso como Predicação
nova unidade não se define pela oposição a outras unidades, como um fonema a outro fonema ou um lexema a outro lexema no interior de um sistema. Não há diversas espécies de predicados; ao nível dos categoremas (categorema, em grego=praedicatum, em latim), existe precisamente uma espécie de expressão linguística, a proposição, que constitui uma classe de unidades distintivas. Por conseguinte, não há nenhuma unidade de .uma ordem superior que possa fornecer uma classe genérica à frase concebida como uma espécie. É possível conectar proposições segundo uma ordem de concatenação, mas não integrá-Ias. Este critério linguístico pode relacionar-se com descrições estabelecidas pelos teóricos da linguagem comum. O predicado, que, como afirma Benveniste, é o único facto r "indisQensável da frase, faz sentido nos casos aradigmátlcos Onde as suas "fun.c_ões''Se. podem)ig
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combinatório baseado nas oposições prévias de unidades discretas. É, antes, uma estrutura no sentido sintético, isto é, como o entrelaçamento e o efeito recíproco das funções de identificação e predicação numa só e mesma frase. A Dialéctica do Evento e Significação O discurso considerado quer como um evento ou uma proposição, isto é, como uma função predicativa combinada com uma identificação, é uma abstracção que depende do todo concreto que é a unidade dialéctica de evento e significação na frase. Esta constituição dialéctica do discurso poderia passar-se por alto numa abordagem psicológica ou existencial, que se concentraria no efeito recíproco das funções, na polaridade da identificação e da predicação universal. A tarefa de uma teoria concreta do discurso consiste em tomar tal dialéctica como sua directriz. Qualquer ênfase no conceito abstracto de um evento de fala justifica-se apenas como um modo de prostesto contra uma redução anterior mais abstracta da linguagem, a redução dos aspectos estruturais da linguagem como langue, pois a noção de fala, enquanto acontecimento, fornece a chave para a transição de uma linguística do código para uma linguística da mensagem. Recorda-nos que o discurso se realiza temporalmente e num momento presente, ao passo que o sistema da língua é virtual e fora do tempo. Mas, este traço aparece somente no movimento de actualização da língua para o discurso. Por conseguinte, toda a apologia da fala como evento é significativa se e somente se torna visível a relação de actualização, graças à qual a nossa competência linguística se actualiza na performance. Mas esta mesma apologia torna-se abusiva logo que o carácter de evento se estende da problemática da actualização, onde é válido, a outra problemática, a da compreensão. Se todo o discurso se- actualiza como um evento, todo o dis'-- ~ _curse: é co,!!pree!}d.!!!.ocomo significação. ~ão ou sentido desl no aqui "o conteu o Qroposic.iQnal,_ que iustamente descrevi como-síntese de duas funções: a.identífica ãü a prediciÇão. NãOé" à evento, enquantõ t;an;itório, que queremos compreender, mas a sua significação - o entrelaçamento do~ nome e do verbo, para falar como Platão enquanto dura.
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Ao dizer isto, não estou a dar um passo atrás da linguística da fala (ou discurso) para a linguística da língua (como Zangue). É na linguística do discurso que o evento e a significação se articulam. A supressão e superação do evento na significação é uma característica do próprio discurso. Atesta a intencionalidade da linguagem, a relação de noese e noema dentro dela. Se a linguagem é um meinen, um intentar, isso deve-se precisamente à Aujhebung, pela qual o evento é cancelado como algo de meramente transitório e retido como o mesmo significado. Antes de tirar a principal consequência da interpretação dialéctica do evento de fala para o nosso empreendimento hermenêutico, elaboremos de modo mais completo e também mais concreto a própria dialéctica, na base de alguns corolários importantes do nosso axioma: isto é se todo ~ ~iscurso se actualiza como um ~veri~o, é compreendido como significação.
o Significado A Auto-referência
do Locutor e Significado da Enunciação do Discurso
o conceito de significação admite duas interpretações que reflectem a dialéctica principal entre evento e sentido. Significar é o que o falante quer dizer, isto é, o que intenta dizer e o que a frase denota, isto é, o que a conjunção entre a função de identificação e a função predicativa produz. Por outras palavras, a significação é noética e noemática. Podemos conectar a referência do discurso ao seu falante com o lado eventual da dialéctica. O evento é alguém falando. Neste sentido o sistema ou código é anónimo, na medida em que é meramente virtual. As línguas não falam, só as pessoas. Mas o lado proposicional da auto-referência do discurso não deve descurar-se, se é que o significado do locutor utterer's meaning, para usar um termo de Paul Grice, se não deve reduzir a uma simples intenção psicológica. O significado mental em mais nenhum lado se pode encontrar a não ser no próprio discurso. O significado do locutor tem a sua marca no sentido da enunciação. Como? A linguística do discurso, que chamamos semântica, 24
para a distinguir da semiótica, fornece a resposta. A estrutura interna da frase refere-se ao seu falante através de procedimentos gramaticais, que os linguistas chamam "conectores" (shifters). Os pronomes pessoais, por exemplo, não têm significado objectivo. "Eu" não é um conceito. É impossível substituir-lhe uma expressão universal como "aquele que está agora a falar". A sua única função é referir toda a frase ao sujeito do evento da fala. Tem um novo significado sempre que é usado e sempre se refere a um sujeito singular. "Eu" é aquele que, ao falar, aplica a si mesmo a palavra "eu", que aparece na frase como um sujeito lógico. Há outros conectores, outros suportes gramaticais da referência do discurso ao seu falante. Incluem os tempos do verbo, na medida em que se centram em torno do presente e, por conseguinte, se referem ao "agora" do evento da fala e do falante. A mesma coisa se verifica com os advérbios de tempo e de espaço e com os demonstrativos que podem considerar-se como particulares egocêntricos. Por conseguinte, o discurso tem muitos modos substituíveis de se referir ao falante. Mediante a atenção aos dispositivos gramaticais da auto-referência do discurso, obtemos duas vantagens. Por um lado, conseguimos um novo critério da diferença entre discurso e códigos linguísticos. Por outro, somos capazes de fornecer uma definição não psicológica, porque puramente semântica, do significado do locutor. Nenhuma entidade mental precisa de ser hipotetizada ou hipostasiada. O sentido da enunciação aponta para o significado do locutor graças à auto-referência do discurso a si mesmo enquanto acontecimento. Esta abordagem semântica é reforçada por outras duas contribuições à mesma dialéctica do evento e da proposição. Actos Locucionários e l/ocucionários A primeira é a bem conhecida análise linguística (no sentido anglo-americano do termo) do "àcto de linguagem". J. L. Austin foi o primeiro a notar que os "performativos" -como promessas - implicam um empenhamento específico do falante, que faz o que diz ao dizê-lo. Ao dizer "prometo", ele promete efectivamente, isto é, coloca-se sob a obrigação de fazer o que diz que há-de fazer. O "fazer" do dizer pode 25
comparar-se ao pólo acontecimental na dialéctica do evento e da significação. Mas este "fazer" segue também regras semânticas que são exibidas pela estrutura da frase: o verbo deve ser o da primeira pessoa do indicativo. Aqui também uma "gramática" específica suporta a força performativa do discurso. Os performativos são apenas casos particulares de uma característica geral exibida por toda a classe de actos da linguagem, quer sejam ordens, desejos, perguntas, advertências ou asserções. Todas elas, além de dizerem algo (o acto locutionário), fazem algo ao dizer (o acto ilocucionário) e produzem efeitos por o dizerem (o acto perlocucionário). O acto ilocucionáro é o que distingue uma promessa de uma ordem, de um desejo ou de uma asserção. E a "força" do acto ilocucionário apresenta a mesma dialéctica de evento e significação. Em cada caso, uma "gramática" específica corresponde a uma certa intenção para a qual o acto ilocucionário exprime a "força" distintiva. O que se pode expressar em termos psicológicos como acreditar, querer ou desejar, é investido de uma existência semântica graças à correlação que existe entre estes dispositivos gramaticais e o acto ilocucionário.
o Acto
lnterlocucionário
A outra contribuição para a dialéctica do evento e do conteúdo proposicional é fornecida pelo que se poderia chamar o acto interlocucionário, ou acto alocucionário, para preservar a simetria com o aspecto ilocucionário do acto da fala. Um aspecto importante do discurso é que ele é dirigido a alguém. Há outro falante que é o endereçado do discurso. A presença do par, locutor e ouvinte, constitui a linguagem como comunicação. O estudo da linguagem a partir do ponto de vista da comunicação não começa, no entanto, com a sociologia da comunicação. Como Platão afirma, o diálogo é uma estrutura essencial do discursso. Perguntar e responder sustentam o movimento e a dinâmica do falar e, em certo sentido não constituem um modo de discurso entre outros. Cada acto ilocucionário é uma espécie de pergunta. Asserir alguma coisa é esperar acordo, tal como dar uma ordem é esperar obediência. Mesmo o solilóquio - o discurso solitá-
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rio - é um diálogo consigo mesmo ou, para citar mais uma vez Platão, a dianoia é o diálogo da alma consigo mesma. Alguns linguistas tentaram reformular todas as funções da linguagem como variáveis dentro de um modelo omni-englobante para o qual a chave é a comunicação. Roman Jakobson, por exemplo, parte da tríplice relação entre falante, ouvinte e mensagem e acrescenta, em seguida, três outros factores complementares, que enriquecem o seu modelo. São eles, código, contacto e contexto. Com base neste sistema de seis factores, estabelece um esquema de seis funções. Ao locutor corresponde a função emotiva, ao ouvinte a conativa, à mensagem a função poética. O código designa a função metalinguística, ao passo que o contacto e contexto são os suportes das funções fática e referencial. Este modelo é interessante porque: (1) descreve directamente o discurso e não um resíduo da língua; (2) descreve uma estrutura do discurso, e não apenas um evento irracional, e (3) subordina a função do código à operação conectora da comunicação. Mas por sua vez, este modelo exige uma investigação filosófica que possa ser proporcionada pela dialéctica de evento e significação. Para o linguista, a comunicação é um facto e mesmo até o facto mais óbvio. As pessoas, efectivamente, falam umas às outras. Mas, para uma investigação existencial, a comunicação é um enigma e até mesmo um milagre. Porquê? Porque o estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialógica do discurso, surge como um modo de ultrapassar ou de superar a solidão fundamental de cada ser humano. Por solidão não quero indicar o facto de, muitas vezes, nos sentirmos isolados como numa multidão, ou de vivermos e morrermos sós, mas, num sentido mais radical, de que o que é experienciado por uma pessoa não se pode transferir totalmente como tal e tal experiência para mais ninguém. A minha experiência não pode tornar-se directamente a vossa experiência. Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se como tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida,
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permanece privada, mas o seu sentido, a sua significaç~o torna-se pública. A comunicação é, deste modo, a superaçao da radical não comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida. Este novo aspecto da dialéctica de evento e significação merece atenção. O evento não é apenas a experiência enquanto expressa e comunicada, mas também a própria troca intersubjectiva, o acontecer do diálogo. A instância do di~curso .é a instância do diálogo. O diálogo é um evento que liga dOIS eventos, o do locutor e o do ouvinte. É em relação ao evento dialógico que a compreensão como significação é homógenea. Daí a questão: que aspectos do próprio discurso são significativamente comunicados no evento do diálogo? Uma primeira resposta é óbvia. O que se pode comunicar é, antes de mais, o conteúdo proposicional do discurso; e retrogradamos assim para o nosso critério principal - o dIScurso como evento mais o sentido. Porque o sentido de uma frase é, por assim dizer, "externo" à frase, pode transferir-se; a exterioridade do discurso a si mesmo - que é sinónima da autotranscendência do evento na sua significação -abre o discurso ao outro. A mensagem tem o fundamento da sua comunicabilidade na estrutura da sua significação. Isto implica que comunicamos a síntese da' função de identificação (da qual o sujeito lógico é o suporte e a função predicativa (que é potencialmente universal). Ao falarmos a alguém, ~pont~~os para a única coisa que queremos dizer graças aos dlSpOSIt1VOS públicos dos nomes próprios, demonstrativos e descrições definidas. Ajudo o outro a identificar o mesmo elemento para o qual aponto, graças aos dispositivos gramaticais que fornecem uma experiência singular com uma dimensão pública. O mesmo se verifica com a dimensão universal do predicado, comunicada pela dimensão genérica das entidades lexicais. Naturalmente, este primeiro nível de compreensão mútua não se dá sem algum mal-entendido. As nossas palavras na sua maioria são polissémicas; têm mais de um significado. Mas a função contextual do discurso é, por assim dizer, filtrar a polissemia das nossas palavras e reduzir a pluralidade das interpretações possíveis, a ambiguidade do discurso que resulta da polissemia não filtrada das palavras. E a função do diálogo é iniciar esta função de filtragem do contexto. O contextual é o diálogo. É neste sentido preciso que o papel con-
textual do diálogo reduz o campo do mal-entendido a propósito do conteúdo proposicional. E consegue, em parte, superar a não comunicabilidade da experiência. N o entanto, o conteúdo proposicional é apenas o correlado do acto locucionário. E que dizer da comunicabilidade dos outros aspectos do acto da linguagem, especialmente o acto ilocucionário? É aqui que se revela mais complexa a dialéctica do acto e da estrutura, do evento e da significação. Como pode o carácter do discurso, que é ou constatativo ou performativo, ser um acto de asserir alguma coisa ou de ordenar, desejar, prometer e admoestar, ser comunicado e compreendido? Mais radicalmente, podemos nós comunicar o acto de linguagem enquanto acto ilocucionário? Sem dúvida, é mais fácil confundir um acto ilocucionário com outro acto ilocucionário do que entender mal um acto proposicional. A principal razão é que os factos não linguísticos se encontram entrelaçados com as marcas linguísticas, e estes factores - que incluem fisionomia, gestos e entoação da voz - são mais difíceis de interpretar porque não se fundem em unidades discretas, e os seus códigos são mais instáveis e a sua mensagem mais fácil de ocultar ou falsificar. No entanto o acto ilocucionário não está desprovido de marcas linguísticas, as quais incluem o uso dos modos gramaticais como o indicativo, o conjuntivo, o imperativo e o optativo, bem corno so tempos dos verbos e os termos adverbiais codificados ou outros dispositivos perifrásticos equivalentes. A escrita não só preserva as marcas linguísticas da enunciação oral, mas também acrescenta sinais distintivos suplementares como os sinais de citação, os pontos de exclamação e de interrogação, para indicar as expressões fisionómicas e gestuais, que desaparecem quando o locutor se torna um escritor. Por conseguinte, os actos ilocucionários podem, de muitos modos, comunicar-se ao ponto de a sua "gramática" fornecer o evento com uma estrutura pública. Sinto-me inclinado a dizer que o acto perlocucionário -o que fazemos por meio do acto de falar - assustar, seduzir, convencer, etc. - é o aspecto menos comunicável do acto de ,linguagem, porquanto o não linguístico tem prioridade sobre o linguístico em tais actos. A função perlocucionária é, pois, a menos comunicável porque é menos um acto intencional, exigindo uma intenção de reconhecimento por parte do
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ouvinte, do que uma espécie de "estímulo", que gera uma "resposta" num sentido comportamental. A função perlocucionária ajuda-nos antes a identificar a fronteira entre o carácter de acto e o carácter de reflexo da linguagem.
logos do discurso. De qualquer modo, a solidão da vida é aí iluminada por um momento pela luz comum do discurso.
Significação como "Sentido" e "Referência" Os actos locucionários e ilocucionários são actos - e, por conseguinte, eventos - na medida em que a sua intenção implica a intenção de serem reconhecidos pelo que são: uma identificação singular, predicação universal, enunciado, ordem, desejo, promessa, etc. (4). Este papel de reconhecimento permite-nos dizer que a intenção de dizer é, até certo ponto, também comunicável. A intenção tem efectivamente um aspecto psicológico que é experimentado enquanto tal só pelo locutor. Na promessa, por exemplo, existe um compromisso; numa asserção, uma crença; num desejo, uma carência; etc., que constituem a condição psicológica do acto de linguagem, se seguirmos a análise de John Searle (5). Mas estes "actos mentais" (Peter Geach) não são radicalmente incomunicáveis. A sua intenção implica a intenção de serem reconhecidos, por conseguinte, a intenção da intenção do outro. Esta intenção de ser identificável, reconhecido como tal pelo outro, é parte da própria intenção. No vocabulário de Husserl, poderemos dizer que é o noético no psíquico. O critério do noético é intenção da comunicabilidade, a expectação do reconhecimento no próprio acto intencional. O no ético é a alma do discurso enquanto diálogo. Por conseguinte, a diferença entre o ilocucionário e o perlocucionário nada mais é do que a presença, no primeiro, e a ausência, no último, da intenção de produzir no ouvinte um certo acto mental, mediante o qual ele reconhecerá a minha intenção. Esta reciprocidade de intenções é o evento do diálogo. O suporte deste evento é a "gramática" do reconhecimento incluída na significação intentada. Para concluir a discussão da dialéctica de evento e significação, podemos dizer que a própria linguagem é o processo pelo qual a experiência privada se faz pública. A linguagem é a exteriorização graças à qual uma impressão é transcendida e se torna uma expressão ou, por outras palavras, a transformação do psíquico em noético. A exteriorização e a comunicabilidade são uma só e mesma coisa, porque nada mais são do que a elevação de uma parte da nossa vida ao 30
Nas duas secções precedentes, a dialéctica de evento e significação foi desenvolvida como uma dialéctica interior da significação do discurso. Significar é o que o locutor faz, mas é também o que a frase faz. A significação da enunciação na acepção do conteúdo proposicional - é o lado "objectivo" deste significado. O significado do locutor - no tríplice sentido da auto-referência da frase, da dimensão ilocucionária do acto linguístico e da intenção de reconhecimento pelo ouvinte - é o lado "subjectivo" da significação. Esta dialética subjectiva-objectiva não esgota o significado e, por conseguinte, não exaure a estrutura do discurso. O lado "objectivo" do discurso pode tomar-se de dois modos diferentes. Podemos significar o "quê" do discurso ou o "acerca do quê" do discurso. O "quê" do discurso é o seu "sentido", o "acerca de quê" é a sua referência. A distinção entre o sentido e referência foi introduzida na filosofia moderna por Gottlob Frege, no seu famoso artigo" Üeber Sinn und Bedeutung" que se traduziu para inglês como "On sense and Reference (6). É uma distinção que se pode conectar directamente com a nossa distinção inicial entre semiótica e semântica. Só o nível da frase nos permite distinguir o que é dito e aquilo acerca de que se diz. No sistema da língua, digamos enquanto léxico, não existe o problema da referência; os signos apenas se referem a outros signos dentro do sistema. Com a frase, porém, a linguagem dirige-se para além dela. Enquanto o sentido é imanente ao discurso, e objectivo no sentido de ideal, a referência exprime o movimento em que a linguagem se transcende a si mesma. Por outras palavras, o sentido correlaciona a função de identificação e a função predicativa no interior da frase, e a referência relaciona a linguagem ao mundo. É um outro nome para a pretensão do discurso a ser verdadeiro. O facto decisivo, aqui, é que a linguagem só tem uma referência quando se usa. Como Strawson mostrou, na sua famosa resposta ao artigo de Russell, "On Denoting", a 31
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mesma frase, isto é, o mesmo sentido, pode ou não referir-se, dependendo das circunstâncias ou da situação de um acto de discurso (7). Nenhuma característica interna, independente do uso de uma frase, constitui um critério fidedigno da denotação. Por conseguinte, a dialéctica de sentido e referência não é de todo irrelacionada com a dialéctica anterior de evento e significação. Referir é o uso que a frase faz ll1!ma ~erta situação e em conformidade com um certo uso. E, po~s, o que o locutor faz quando aplica as suas palavras à reahdade. Que alguém se refira a algo num certo tempo é um acontecimento, um evento linguístico. Mas este evento recebe a sua estrutura do significado enquanto sentido. O locutor re.fere-se a al?o n~ base de ou mediante a estrutura ideal do sentido. O sentido e, por assim dizer, atravessado pela intenção de ref~rê~cia ~o locutor. Deste modo, a dialéctica de evento e significação recebe um novo desenvolvimento da dialéctica do sentido e da referência. Mas a dialéctica de sentido e referência é tão original que pode tomar-se como uma directriz independente. S.Óesta dialéctica diz alguma coisa acerca da relação entre a linguagem e a condição ontológica do ser-no-mundo. A linguagem não é um mundo próprio. Nem sequer é um mundo. Mas, porque estamos no mundo, porque somos afectados por situações e porque nos orientamos mediante a compreenção em tais situações, temos algo a dizer, temos a experiência para trazer à linguagem. A noção de trazer a experiência é a condição ontológica da referência, uma condição ontológica reflectida dentro da linguagem como um postulado que não tem justificação imanente; o postulado segundo o qual pressupomos a existência de coisas singulares que identificamos. Pressupomos que algo deve existir para que algo se possa identificar. A postulação da existência como base de identificação é o que Frege, em última análise, quis dizer quando afirmou que não nos satisfazemos apenas com o sentido, mas pressupomos uma referência (8). E esta postulação é tão necessária que devemos acrescentar uma prescrição específica, se desejamos referir-nos a entidades ficcionais como as personalidades de uma novela ou de uma peça de teatro. Esta regra adicional de suspensão confirma que a função de identificação singular suscita de um modo originário uma questão legítima de existência.
~ possível, mesmo no estádio inicial da nossa indagação, antecipar algumas implicações da análise precedente para a nossa teona da mterpretação.
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Mas .este apontar intencional para o extralinguístico basear-se-Ia num mero postulado e permaneceria um salto discutível para além da linguagem se a exteriorização não f~s~e a contrapartida de um movimento prévio e mais originano, que começa na experiência do ser-no-mundo e avança desde a s~a condição ontológica para a sua expressão na linguagem. E porque existe primeiramente algo a dizer, porque temos um~ experiência a trazer à linguagem que, inversa?Ien~e, a lmgua~em não se dirige apenas para significados ideais, mas tambem se refere ao que é. Como disse, esta dialéctica é tão fundamental e tão originária que. ela poderia dominar toda a teoria da linguagem enq~an~o .discurso e fornecer-lhe mesmo uma reformulação d~ dialéctica nuclear de evento e significação. Se a linguagem nao ~os~~fu~damentalmente referencial, seria ou poderia ela ser significativa? Como poderíamos saber que um signo está em vez de ~lguma coisa, se não recebesse a sua direcção para algo em cujo lugar está em virtude do seu uso no discurso? Por fim, a semiótica aparece como uma mera abstracção da semân~ica. E a definição semiótica do signo enquanto diferença I~t~r~a entre o significante e o significado pressupõe a sua definição semântica como referência à coisa, em cujo lugar está. Assim, a definição mais concreta de semântica é a teoria que relaciona a constituição interna ou imanente do sentido à intenção exterior ou transcendente da referência. A significação universal do problema da referência é tão am~la que mesmo o significado do locutor se tem de exprimir na linguagem da referência enquanto auto-referência do discurso, isto é, como a designação do seu locutor pela estrutura do discurso. O discurso refere-se ao seu locutor ao mesmo tempo que se refere ao mundo. Esta correlação não é fortuita porque ultimamente é o locutor que, ao falar, se refere ao mundo. O discurso na acção e no uso tem uma referência retrógrada ou anterretrógrada ao locutor e ao mundo. Tal é o critério último da linguagem como discurso. Algumas Implicações Hermenêuticas
Dizem sobretudo respeito ao uso e ao abuso do conceito de evento linguístico na tradição romântica da hermenêutica. A hermenêutica, tal como deriva de Schleiermacher e Dilthey, tendeu a identificar a interpretação com a categoria de "compreensão" e a definir a compreensão como o reconhecimento da intenção de um autor do ponto de vista dos endereçados primitivos, na situação original do discurso. A prioridade concedida à intenção do autor e ao auditório original tendia, por seu turno, a fazer do diálogo o modelo de toda a situação de compreensão, por conseguinte, a impor o enquadramento da intersubjectividade sobre a hermenêutica. Compreender um texto é, pois, apenas um caso particular da situação dialógica em que alguém responde a mais alguém. Esta concepção psicologizante da hermenêutica teve uma grande influência na teologia cristã. Alimentou as teologias da Palavra-Evento, para as quais o acontecimento por excelência é um evento linguístico e este evento linguístico é o querigma (kerygma), a pregação do Evangelho. O significado do evento original dá testemunho de si mesmo no acontecimento presente pelo qual o aplicamos a nós mesmos num acto de fé. Esforço-me aqui por impugnar os pressupostos desta hermenêutica a partir de uma filosofia do discurso a fim de libertar a hermenêutica dos seus preconceitos psicologizantes e existenciais. Mas o meu objectivo não é opor a esta herrnenêutica, baseada na categoria do envento linguístico, uma hermenêutica que seria apenas o seu oposto, como seria uma análise estrutural do conteúdo proposicional dos textos. Uma tal hermenêutica sofreria da mesma unilateralidade não dialógica. Os pressupostos de uma hermenêutica psicologizante - como os da sua hermenêutica antagónica - provêm de um duplo mal-entendido que leva, por sua vez, a atribuir uma tarefa errónea à interpretação, uma tarefa que se exprime bem no famoso slógan "compreender um autor melhor do que ele a si mesmo se compreendeu". Por conseguinte, o que está em jogo nesta discussão é a definição correcta da tarefa hermenêutica. Não pretendo dizer que o presente ensaio baste por si mesmo para eliminar todo o mal-entendido. Sem uma investigação específica da escrita, uma teoria do discurso ainda
não é uma teoria do texto. Mas . um texto escrito é uma f ' se Co~segUIrmos mostrar que forma de inscrição, então orma de. d:scurso, discurso sob a dIScurso são também d' as condIçoes da possibilidade do d· as o texto C ISCUssaodestas condições .: orno mostrou a nossa está ~ancelada, antes se e~c~ noçao de ev~nto linguístico não polandades dialécticas co d ntra submetIda a uma série de e, si?Dificação e de sentid~ ee~:d~s ~o dU~lo título de evento lécticas permitem-nos antecí erencIa. TaIS polaridades diae diálogo não se devem ex ct~r que os conceitos de intenção ~ntes libertar-se da unilater~l?~r:a dhermenêutica, mas devem tico de discurso. I a e e um conceito não dialéc, .Deste modo , o presente ensaio' _ ~ serre, pelo menos verdadeir ' e, se na? o cerne de toda tido forte da palavra. amente o ensaio inicial, no sen-
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