Manual de
Constitucional Roberto B. Dias da Silva
Â
Manole
MANUAL DE D IR E IT O CONSTITUCIONAL
MANUAL DE D IR E IT O CONSTITUCIONAL
R
o b e r t o
B.
D
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S
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Advogado, o rien tad o r no Escritório Experim ental da OAB/SP, m estre e d o u to ra n d o em Direito do Estado pela PUC/SP, professor de Direito Constitucional do curso de graduação e especialização da PUC/SP, co o rd en a d o r do Núcleo de M onografia Jurídica Prof. Paulo Freire c do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional da m esm a Universidade.
Manole
Copyright © 2007 Editora M anole Ltda., p o r meio de contrato com o am or. Editoração Eletrônica Dreampix Capa E duardo Bertolini Im ag em da capa Claude M o n e t/ visipix.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Silva, Roberto Baptista Dias da M anual de direito constitucional / Roberto Baptista Dias da Silva. Barueri, SP : Manole, 2007. Bibliografia. ISBN 978-85-204-2464-3 1. Direito constitucional I. Título.
06-7657_______________________________________________________________ CDU-342 índices para catálogo sistemático: 1. Direito constitucional 342 Todos os direitos reservados. N en h u m a parte deste livro poderá ser reproduzida, por q u alq u er processo, sem a perm issão expressa dos editores. É proibida a reprodução p o r xerox. Ia edição brasileira - 2007 Direitos adquiridos pela: Editora M anole Ltda. Avenida Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Fone: (1 1 ) 4 1 9 6 - 6 0 0 0 - Fax: (1 1 )4 1 9 6 -6 0 2 1 w w w . m anole. co m .b r i n fo @m a nol e .co m .b r Impresso no Brasil Printed in Brazil
Para Leda Pereira Mota, m inha professora e amiga, com saudade. Para Paula, m inha m ulher e companheira, com amor.
A p r e s e n t a ç ã o
Em m inha m em ória pulsam, com imenso carinho e profunda saudade, as tantas e tantas reuniões de assistentes e m onitores da Professora Leda Pereira Mota, professora e m estra de todos nós, na Faculdade de Direito da PUC/SP, nos idos de 1980. Discutíamos Direito Constitucional a partir de debates abertos, instigantes e polêmicos. Cada qual desenvolvia a sua argumentação, com paixão e entrega, nas asas do espírito livre, liberto, desarmado e criativo. Aprendíamos pela arte do diálogo, pelo respeito ao outro, pela alegria do convívio e pelo fascínio do pensamento. Este ritual era o mais sedutor e inspirador convite ao culto do Direito Constitucional. À época, integravam a equipe da querida e sempre profes sora e amiga Leda o autor, meu estimado amigo Roberto Baptista Dias da Silva, Oscar Vilhena Vieira, Celso Spitzcovsky, Nelson Saule, Adriana Ancona de Faria, Roberto Parahyba, Mônica de Melo, Luciana Temer, Pedro Lenza, dentre tantos(as) outros(as) seguidores(as) e discípulos(as).
V III
m a n u a l de d ir eit o c o n s t it u c io n a l
Essa foi a nossa m elhor escola. E é justam ente o mais puro legado dessa escola que marca o livro M anual de direito constitucional, que tenho a ho n ra e a felicidade de apresentar. C om posta por oito capítulos, a obra dedica-se aos temas estruturantes e centrais do Direito Constitucional, com preendendo o Poder Constituinte; a Constituição; a Interpretação Constitucional; a Eficácia e a Aplicabilidade das N orm as Constitucionais; o Controle de Constitucionalidade; as Formas de Estado; a Separação dos Poderes; e os Di reitos e Garantias Fundamentais. Cada qual desses temas é abordado de forma clara, consistente, crítica e didática, sempre de m odo a contextualizar o Direito C onstitu cional na vida, a partir de exemplos concretos, de decisões judiciais e de questionamentos contemporâneos. A tradução da obra é a feição de um Direito Constitucional dinâmico, em construção, aberto e emancipatório. O livro louva a vocação da Constituição Cidadã de 1988, marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos hum anos no Brasil. Capta a m udança de paradigm a decorrente da n o va ordem constitucional, ao rom per com a lente ex parteprincipe, radi cada no Estado e nos deveres dos súditos, inaugurando a lente ex parte populi, radicada na cidadania e nos direitos dos cidadãos, com o leciona N orberto Bobbio. Emerge um Direito Constitucional que consagra, com o ponto de partida e de chegada de qualquer leitura interpretativa do Direito, a prevalência da dignidade hum ana, vetor ético a nutrir toda ordem jurídica. Ao aliar densidade teórica e didatismo, o livro reflete as qualidades de seu autor, excelente professor de Direito Constitucional da PUC/SP, mestre por aquela Universidade, com petente advogado publicista e combativo defensor de direitos fundamentais. Desde 1988, tenho tido o privilégio de acom panhar a sua trajetória, sua vocação acadêmica, sua fibra na advocacia, sua firmeza ética, sua admirável generosidade e sua excepcional qualidade hum ana. Para Gadamer, o diálogo tem um a força transformadora: onde o diálogo teve êxito ficou algo, para nós e em nós, que nos transformou. O diálogo silencioso com a obra de Roberto traz essa força transforma
APRESENTAÇÃO
dora, ao iluminar a consciência e o sentimento constitucional, contri buindo para um a cultura constitucionalista democrática e emancipatória.
F lá v ia Piovesan Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos H u m an o s e Direito Constitucional; Professora de Direitos H u m an o s dos Programas de pós-graduação da PUC/SP, da PUC/PR e da Universidade Pablo de Olavide (Espanha); Procuradora do Estado de São Paulo; Visiting fellow do Harvard H u m an Rights Program (1995 e 2000); Visiting fellow do C entre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); m e m b ro da Associação dos Constitucionalistas Democráticos e m e m b ro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa H um ana.
N o ta
do
a u t o r
Este M anual de direito constitucional nasceu das a n o ta ções feitas, nos últimos anos, para as aulas de Direito C ons titucional, m inistradas principalm ente na PUC/SP. Nasceu, tam bém , da inesquecível experiência de trabalhar com a professora Leda Pereira Mota, que tinha paixão por ensinar Direito Constitucional e o d om de fazer seus alunos e assis tentes se entusiasm arem pelo estudo dessa matéria, a ponto de grande parte deles ser, hoje, professores em várias u n i versidades do Brasil e do exterior. Trata-se de um livro com pretensão didática que, para sua elaboração, contou com a ajuda involuntária de meus alunos, sem pre questionadores, saudavelmente curiosos e intelectualmente instigantes. Assim, credito os possíveis m éritos desse trabalho a eles, que não podem , obviamente, ser responsabilizados por eventuais imprecisões. Nesta obra, procurei abordar, de form a direta, pontos básicos da matéria, com o o Poder Constituinte, o conceito de Constituição, a interpretação constitucional, a eficácia e
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
aplicabilidade das norm as constitucionais, o controle da constitucionalidade, as formas de Estado, especialmente a federativa, a separação dos Poderes e os direitos e garantias fundamentais. Contudo, alguns pontos importantes, como os direitos fundamentais em espécie, não foram examinados. Mas espero poder abordá-los em um a próxima oportunidade. Procurei iniciar a m aioria dos capítulos com exemplos ou ques tionam entos, com o forma de rem eter o leitor a situações factuais e tentar dem onstrar, desde logo, que o Direito Constitucional está p re sente no nosso dia-a-dia, fazendo parte da nossa realidade cotidiana. Isso não excluiu a análise, no decorrer dos capítulos, da ju risp ru d ê n cia dos tribunais brasileiros sobre as questões examinadas, em p arti cular do Suprem o Tribunal Federal, e da d o u trin a nacional e estran geira acerca dos pontos investigados. Não posso deixar de anotar, ainda, a generosidade do convite que me foi feito pela Editora Manole, por interm édio da Luísa Lima, para escrever este livro, bem com o a dedicação de todo o pessoal da editoria jurídica, em especial do Rafael Elias Teixeira. E, por fim, gostaria de agradecer ao Darlan Barroso, amigo leal, que m e incentivou a publicar este trabalho.
Roberto B. Dias da Silva
S u m á r io
1.
2.
PODER CONSTITUINTE ............................................... Dois exemplos históricos .......................................... O Timor Leste ............................................... A última redemocratização no Brasil ......... Conceito de poder constituinte................................ O poder constituinte originário.................. O poder constituinte reformador ou a competência de reforma constitucional .......
1 1 1 2 3 4 7
CONSTITUIÇÃO ............................................................... 17 Questões iniciais........................................................ 17 Breve histórico............................................................ 18 Algumas concepções de Constituição ...................... 19 A noção sociológica de Constituição segundo Ferdinand Lassalle.......................... 19 A concepção política de Constituição adotada por Carl S ch m itt.............................20 O conceito jurídico de Constituição conforme Hans Kelsen..................................21
XI v
m a n u a l de d ir eit o c o n s t it u c io n a l
Constituição como norma fundamental no entender de Eduardo Garcia de Enterría ........... As classificações....................................................................... As Constituições normativas, nominais e semânticas. A Constituição material e a Constituição formal.... As Constituições outorgadas e as Constituições promulgadas................................................................. As Constituições escritas e as Constituições costumeiras................................................................... As Constituições analíticas e as Constituições sintéticas....................................................................... As Constituições rígidas, semi-rígidas e flexíveis..... 3.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL................................. A distinção entre regras e princípios .................................... Princípios constitucionais como vetores de interpretação.... Os métodos clássicos de interpretação.................................. A interpretação literal ............................................... A interpretação histórica .......................................... A interpretação teleológica....................................... A interpretação sistemática ...................................... A interpretação evolutiva ......................................... Interpretação extensiva e interpretação estrita ....... Especificidades da interpretação das normas constitucionais......................................................................... A inicialidade fundante das normas constitucionais .. O conteúdo político das normas constitucionais .... A estrutura da linguagem normativo-constitucional e os conceitos jurídicos vagos e ambíguos .............. Princípios de interpretação constitucional........................... Os princípios da unidade da Constituição e da harmonização..................................................... O princípio da presunção da constitucionalidade das leis.......................................................................... A interpretação conforme a Constituição ................
22 23 23 24 24 24 25 25 29 33 33 35 36 37 40 42 44 45 48 48 50 51 55 55 62 64
SUMÁRIO
O princípio da razoabilidade .................................... 72 4.
5.
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS...................................................................... Um exemplo ............................................................................ Diferentes graus de eficácia das normas constitucionais........................................................... A teoria de José Afonso da Silva............................................. Crítica à teoria de José Afonso da Silva ................................
77 77 78 79 82
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE ............................ 89 Um exemplo ............................................................................ 89 Conceito de inconstitucionalidade......................................... 92 A inconstitucionalidade por ação ............................. 92 A lei ainda constitucional........................................... 94 A inconstitucionalidade por omissão ....................... 95 Pressupostos para a existência do controle da constitucionalidade............................................................. 97 A rigidez constitucional e o controle da constitucionalidade................................................ 98 O órgão encarregado de realizar o controle da constitucionalidade................................................ 98 O controle preventivo da constitucionalidade ...................... 100 O controle repressivo da constitucionalidade ....................... 102 O controle difuso da constitucionalidade ............................. 102 A cláusula de reserva de plenário.................................104 Os efeitos da decisão no controle difuso.................... 105 A competência do Senado no controle difuso da constitucionalidade.................................................. 107 O mandado de injunção...............................................110 O controle concentrado da constitucionalidade................... 119 A ação direta de inconstitucionalidade...................... 120 A ação declaratória de constitucionalidade............... 132 Efeitos das decisões nas ações diretas e nas ações declaratórias: sinais invertidos.................................... 137
XV
XVI
m a n u a l de d ir eit o c o n s t it u c io n a l
A argüição de descumprimento de preceito fundamental..................................................................139 A ação direta de inconstitucionalidade por omissão... 147 A ação direta de inconstitucionalidade interventiva.... 151 6.
FORMAS DE ESTADO ......157 Estado u nitário .........................................................................159 Federação...................................................................................161 Um exem plo................................................................. 161 Características da federação ....................................... 162 Requisitos para a manutenção da federação ............ 164 Breve histórico ............................................................. 165 Critérios de repartição de competências...................167 União ............................................................................ 168 Estados federados..........................................................177 Municípios..................................................................... 186 Distrito Federal............................................................. 191 Territórios...................................................................... 194 Intervenção federal ......................................................195 A intervenção nos municípios ................................... 199
7.
SEPARAÇÃO DOS PODERES......................................................... 201 Um exemplo ............................................................................. 201 Os freios e contrapesos ............................................................202 As funções típicas e atípicas.................................................... 205 Poder Legislativo ......................................................................207 Estrutura e atribuições do Poder Legislativo ........... 208 Imunidades parlamentares......................................... 211 Impedimentos e incompatibilidades ........................ 219 Funcionamento do Poder Legislativo........................222 Processo legislativo ..................................................... 238 Espécies normativas.................................................... 247 Poder Executivo........................................................................263 Funções.......................................................................... 263 Eleição do presidente da República........................... 266
SUMÁRIO
Impedimento e vacância............................................... 268 Responsabilidade do presidente da República........... 269 Poder ludiciário.........................................................................277 Funções típicas e atípicas..............................................277 Autonomia administrativa e financeira...................... 279 A súmula vinculante..................................................... 280 O Conselho Nacional de Justiça...................................282 Garantias da magistratura............................................ 285 Impedimentos impostos aos juizes..............................288 8.
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ..............................289 As gerações dos direitos fundamentais ...................................290 Direitos e garantias ...................................................................293 Aplicabilidade............................................................................293 Extensão..................................................................................... 295 Destinatários..............................................................................300 Suspensão .................................................................................. 301 Habeas corpus ............................................................................ 301 Conceito e histórico......................................................301 Habeas corpus preventivo ou repressivo .................... 304 O paciente, o impetrante e o impetrado ................... 306 Impossibilidade de supressão......................................309 Habeas d a ta ................................................................................ 311 Surgimento e conceito..................................................311 Objetivos........................................................................312 Legitimidade ativa........................................................ 315 Legitimidade passiva.................................................... 315 Requerimento administrativo prévio ........................ 317 Habeas data e dados sigilosos......................................318 Mandado de segurança ........................................................... 319 Surgimento e conceito................................................. 319 Direito líquido e certo ..................................................321 Cabim ento.....................................................................322 Impetrante e impetrado .............................................. 325 Prazo para impetração................................................. 327
X V II
X V III
MANUAI DF DIREITO CONSTITUCIONAL
L im inar......................................................................... 328 Natureza da decisão .....................................................329 Honorários advocatícios..............................................330 Mandado de segurança coletivo..............................................330 Surgimento, conceito e finalidade.............................. 330 Espécie do gênero mandado de segurança................ 331 O b je to ............................................................................332 Legitimidade ativa........................................................ 332 Coisa julgada ................................................................ 337 Ação popular............................................................................. 339 Conceito ....................................................................... 339 Instrumento de democracria d ire ta ........................... 339 Finalidades.................................................................... 340 Legitimidade ativa........................................................ 343 Sujeitos passivos...........................................................346 Coisa julgada................................................................. 346 Custas judiciais e ônus dasucumbência..................... 347 BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 349 ÍNDICE REMISSIVO........................................................................ 363
Po der
c o n s t i t u i n t e
1
DOIS E X E M P L O S H I S T Ó R I C O S TIM O R LESTE
O T im or Leste esteve, d u ran te quatro séculos, sob o d o m ínio português. Em 1975, o território deixou de ser um a colônia portuguesa e foi anexado à Indonésia, que sempre reprim iu com violência as tentativas de independência. Em 1999, a Organização das Nações Unidas — O N U — criou a Força Internacional para o T im or Leste, liderada pela Austrália. As tropas desembarcaram no território naquele m esm o ano e, após um referendo favorável à independência, o parlam ento indonésio hom ologou o fim da anexação do T im or Leste. Em 2001, ainda sob a Adm inistração de Transição das Nações Unidas no T im or Leste, chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Melo, ocorreram as primeiras eleições livres após a independência. Na ocasião, foram eleitos os representantes da Assembléia Constituinte e, em abril do ano seguinte, foi eleito
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presidente o antigo líder do Conselho Nacional da Resistência Timorense Xanana Gusmão. Houve, então, no início do século XXI, o surgim ento de um a nova nação, a criação de um novo Estado soberano com a edição de u m a Constituição, fruto da manifestação do poder constituinte. ■I A ÚLTIMA R E D E M O C R A T IZ A Ç Ã O NO B R A S IL
Depois do golpe militar de 1964, o país passou a viver um período de violência,1 típico das ditaduras, com a disseminação das persegui ções políticas, a imposição da tortura com o um instrum ento do Estado e a censura como tentativa de evitar que a população tivesse conheci m ento das atrocidades perpetradas pelo regime autoritário. Vinte anos mais tarde, passado o período mais crítico da repressão política, a população saiu às ruas para exigir eleições diretas para presi dente da República. Foi o m ovim ento das Diretas Já. Com a derrota no Congresso Nacional da em enda que previa a eleição direta do presidente — que passou a ser conhecida como Emenda Dante de Oliveira — , o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo N e ves para a presidência, que derrotou o candidato apoiado pelos repre sentantes do regime militar, Paulo Maluf. Tancredo m orreu antes da posse e José Sarney assumiu a chefia do Poder Executivo. No fim de 1985 começou a discussão sobre a elaboração de um a nova Constituição. Alguns defendiam a criação de uma Assembléia Constituin te, cujos membros deveriam ser eleitos, exclusivamente, para redigir a nova Constituição, dissolvendo-se imediatamente após o fim de seus tra balhos. Outros queriam que deputados e senadores fossem eleitos, sob o regime da Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, para que, inicialmente, elaborassem a nova Constituição e, em seguida, continuas sem no exercício da função parlamentar, como membros do poder cons tituído, cum prindo o mandato de deputado ou senador. Sem dúvida, um a Assembléia Constituinte exclusiva seria mais legí tima,2 um a vez que seus m em bros estariam somente comprometidos 1 Gaspari, Hélio. A ditadura escancarada. 2 Sobre a questão da legitimidade, conferir Ferraz J únior , Tércio Sampaio. Constituinte: assembléia, processo, poder, p. 23.
PODER CONSTITUINTE
com a elaboração da Constituição. Já com um a Constituinte congressual, os partidos e candidatos voltariam seus interesses e suas campanhas não só aos projetos, programas e idéias para a elaboração da Constitui ção, mas tam bém às promessas e questões menores inerentes à eleição de m em bros de um Congresso constituído. C om o se não bastasse, um Congresso com poderes constituintes partiria do pressuposto de não discutir todas as questões relativas a u m a Assembléia Constituinte, como, por exemplo, a estrutura do p ró prio Poder Legislativo e a m anutenção da Federação.3 C o n tu d o , apesar da nítida ru p tu ra com o regime autoritário e o claro apoio da sociedade civil à convocação de u m a Assembléia Constituinte exclusiva e autônom a, a maioria parlamentar, com o apoio do governo de então,4 o p to u por u m Congresso com poderes consti tuintes.5 Os parlamentares se reuniram e elaboraram a Constituição de 1988 sem as am arras impostas pela Carta Constitucional do regime militar. Expressou-se, no caso, o poder constituinte.
C O N C E I T O DE PODER C O N S T I T U I N T E
O poder constituinte é aquele que cria um a nova Constituição ou altera, modifica, atualiza a Constituição já existente. Portanto, a idéia de poder constituinte é de criação de n o rm a constitucional, quer para alterar o texto da Constituição em vigor, quer para gerar um a nova 3 Quanto às críticas à adoção de uma Constituinte congressual, verificar B onavides, Paulo. Constituinte e Constituição: a democracia, o federalismo e a crise contemporânea, p. 45-52; G rau , Eros Roberto. A Constituinte e a Constituição que teremos, p. 28-33; Faoro , Raymundo. "Constituinte ou Congresso com poderes constituintes". In: Constituição e Constituinte (Cader nos Apamagis, 6), p. 11-28; Ferraz J únior, Tércio Sampaio. Ob. cit. p. 51-8. 4Como menciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o próprio Tancredo Neves, em outubro de 1984, afirmou que não via problema em ter um Congresso Nacional com poderes consti tuintes (F erraz J únior , Tércio Sampaio. Ob. cit. p. 54). 5 A convocação ocorreu com a aprovação da Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985.Oart. 1°da referida emenda tinha a seguinte redação: "Art. 1°Os Mem bros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em As sembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1o de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional".
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ordem constitucional, dando outra estrutura fundam ental ao ordena m ento jurídico. Assim, pode-se dividir o poder constituinte em duas espécies, o originário — que é o poder constituinte propriam ente dito — e o reformador, que, na verdade, se caracteriza com o um a competência de reforma da Constituição existente, com o será visto adiante.6 M
O PODER C O N S T IT U IN T E O R IG IN Á R IO
O abade Joseph Emmanuel Sieyès, em 1788, elaborou o famoso texto intitulado Q uest-ce que le Tiers État?,7 em que propõe, na França, a igualdade de direitos entre a nobreza, o clero e o Terceiro Estado, além cie distinguir o poder constituinte do poder constituído. Em sua obra, Sieyès defende que a nação tenha a autoridade de estabelecer a ordem jurídica, exercendo, assim, o poder constituinte originário:8 Em toda nação livre — e toda nação deve ser livre — só há uma forma de acabar com as diferenças, que se produzem com respeito à Consti tuição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria nação. Se pre cisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem direito de fazê-la.
Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Essa conclusão decorre da formulação de três perguntas, que são respondidas por Sieyès objetivamente: 1) o que é o Terceiro Estado?
6 Há, também, o poder constituinte decorrente. Esse poder é dado pela Constituição Federal para que cada estado-membro elabore sua própria Constituição. Tal assunto será abordado quando da análise dos estados-membros. 7Existe tradução para o português: A Constituinte burguesa. Qu'est-ce que le Tiers État? Trad. Norma Azevedo. Na nota explicativa a essa edição brasileira, Aurélio Wander Bas tos lembra que, em 1302, Felipe IV, o Belo, "criou os Estados Gerais, compostos de repre sentantes do clero, dos nobres (que de certa forma já se reuniam a chamado do rei para tratar de questões importantes) e dos comuns (mercadores citadinos que haviam adquirido bastante força e dispunham de vultosos recursos financeiros), denominados de Terceiro Esta do ou estado plano". 8Ob. cit. p. 45 e 48.
PODER CONSTITUINTE
Tudo. 2) O que tem sido ele, até agora, na ordem política? Nada. 3) O que é que ele pede? Ser alguma coisa. Segundo Sieyès, o Terceiro Estado abrangeria “tud o o que pertence à nação”, mas ele não teria, até aquele m om ento, verdadeiros represen tantes nos Estados Gerais. Assim, pede que os representantes do Tercei ro Estado, escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente per tençam ao Terceiro Estado, sejam em n ú m ero igual ao da nobreza e do clero e, p o r fim, que os Estados Gerais votem não por ordens, mas por cabeças. Com essas idéias, germ inam as concepções atuais de poder consti tuinte originário, o qual, em linhas gerais, é aquele que cria um a nova Constituição, dando início a um a nova ordem jurídica. O poder constituinte originário, no Brasil, manifestou-se para fun dar novas ordens constitucionais com o advento das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. Todas essas Constituições foram o resultado, o p ro d u to da manifestação do p o d er constituinte originário. No caso específico da última Constituição brasileira, a de 1988, cum pre lem brar que foi convocada a Assembléia Nacional Consti tuinte — que na verdade foi um a Constituinte congressual, com o visto acima — para criá-la, rom pendo com o ordenam ento autoritário anterior e fazendo surgir, p o r meio de um a transição, um a C onstitui ção em consonância com o regime democrático que havia despontado novam ente no Brasil. Didaticamente, o poder constituinte originário pode ser dividido em dois tipos: o poder constituinte originário histórico e o poder cons tituinte originário revolucionário.9 O poder constituinte originário histórico é aquele que se manifes ta para criar a prim eira Constituição de u m Estado. No Brasil, isso ocorreu com o advento da Constituição do Império, de 1824. No iní cio do século XXI, essa espécie de poder constituinte se manifestou no T im or Leste, quando houve a independência daquele país e a convo cação de um a Assembléia Constituinte para criar a prim eira C onstitui
9 M ota, Leda Pereira & S pitzcovskv , Celso.
Curso de Direito Constitucional,
p. 19 e 20.
MANUAL OE DIREITO CONSTITUCIONAL
ção daquele Estado, com o m encionado no exemplo do início deste capítulo. Por seu turno, o poder constituinte revolucionário se manifesta para rom per com a ordem constitucional já existente e criar um a nova, com outro fundam ento, com o intuito de dar outra conformação ao Estado, aos órgãos e instituições que o com põem , estabelecendo a m aneira com o os poderes deverão se relacionar, quem é o titular do poder e quais são os direitos e as garantias dos cidadãos. Foi o que ocorreu com o Fim do regime militar e a convocação da Constituinte que produziu a Constituição brasileira de 1988.
As características do poder constituinte originário As características fundam entais do poder constituinte originário são a inicialidade e a ilimitação jurídica. O poder constituinte originário é considerado inicial porque, com ele, surge um a nova ordem constitucional, inicia-se um novo ordena m ento jurídico, deixando para trás aquele que existia, criando um a nova Constituição e rom pendo com a anterior. O poder constituinte originário é ilimitado juridicamente, visto que tem a função e a liberdade de gerar novas regras constitucionais da maneira que bem entender, com o conteúdo que decidir mais conve niente, sem n en h u m condicionam ento jurídico. Em outras palavras, não há nenhum a regra jurídico-formal que diga qual será o conteúdo da nova Constituição a ser criada em razão da manifestação do poder constituinte originário. Mas, dizer que não há limitações jurídicas não significa que não existam limitações de outros tipos, como, por exem plo, de ordem ética, moral, religiosa, social e política. Q uanto ao titular do poder constituinte, Nelson Saldanha explica o seguinte:10 Trata-se de saber a que entidade política compete a faculdade de dar à nação a Constituição. 0 titular do poder constituinte há de ser, antes de tudo, correspondente — ao menos em sentido formal — ao da sobera-
10 Saldanha , Nelson. O
poder constituinte, p. 73.
PODER CONSTITUINTE nia. Se por um lado, com efeito, ambos poderes se distinguem e não cabem a um mesmo sujeito num sentido exato, pois a soberania é um poder genérico pertencente à nação-Estado e o constituinte é um poder específico referente a uma função determinada, por outro lado não pode deixar de haver uma solidariedade ou uma simetria na radicação de uma e de outro. Porque o poder constituinte assenta no pressuposto da so berania. Num país que adota o regime democrático representativo, portanto, o ti tular do poder constituinte originário é o povo, sendo que esse poder deve ser exercido por meio dos representantes eleitos, chamados de par lamentares constituintes.11
■I O PODER C O N S T IT U IN T E R EF O R M A D O R OU A C O M P E T Ê N C IA DE R E FO R M A C O N S T I T U C I O N A L
O poder constituinte reform ador é aquele que altera a Consti tuição existente, já que as Constituições, apesar da pretensão de se per petuar, reconhecem a necessidade de atualização. O poder constituinte reform ador manifesta-se, então, para m o d i ficar, atualizar, reform ar o texto constitucional. Tais reformas, a rigor, acontecem pontualm ente, incluindo, revogando ou alterando disposi tivos constitucionais. O principal instrum ento utilizado para levar a cabo a reforma da Constituição é a cham ada em enda à Constituição, ou seja, é por meio dessa espécie norm ativa que o poder constituinte reform ador se m an i festa. E essa manifestação é levada a efeito pelo Congresso Nacional, nos term os do art. 60, § 2o, da Constituição Federal. Por esse motivo é que, do ponto de vista técnico, é mais adequado cham ar o poder constituinte reform ador de competência reformadora ou de po d er de reforma. Em outras palavras, esse po d er som ente pode ser cham ado de constituinte porq ue cria n o rm a constitucional. Mas, na realidade, ele é exercido p o r um órgão constituído — no caso brasileiro, o Congresso Nacional — para alterar a C onstituição
Sobre a titularidade e o exercício do poder constituinte, verificar T em er , Michel. Ele mentos de direito constitucional, p. 31 e 32. 11
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dentro dos limites im postos p o r ela mesma. Sendo assim, trata-se de um a com petência reform adora, e não de um p o d er constituinte p ro priam ente dito. A outra m aneira de alterar a Constituição está prevista no § 3o do art. 5o da Constituição Federal, incluído pela Emenda n. 45/2004. A redação de tal dispositivo é a seguinte: § 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Portanto, os tratados e convenções internacionais, desde que ap ro vados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos m em bros, ou seja, pelo m esm o p ro cedimento de aprovação da em enda à Constituição (art. 60, § 2o), modificam o texto constitucional. /As características
e o instrumento para manifestação do poder constituinte reformador
O poder constituinte reform ador se caracteriza por ser derivado, subordinado e limitado. Diz-se que ele é derivado porque advém da própria Constituição que será alterada. Assim, é a própria Constituição que dirá com o o p o der constituinte reform ador irá se manifestar, o que ele poderá alterar e quando isso poderá ocorrer. O poder constituinte reform ador é tam bém considerado subordi nado porque as alterações constitucionais se subordinam às regras, às condições e aos limites impostos pela própria Constituição a ser refor mada, ou seja, a própria Constituição dita os limites para sua manifes tação. O instrum ento colocado à disposição do poder constituinte refor m ador para levar a efeito seu objetivo, qual seja, a modificação da Constituição, é a emenda. É p o r meio dessa espécie norm ativa que se altera a Constituição.
PODER CONSTITUINTE
Os limites à manifestação do poder constituinte reform ador são de ordem formal, circunstancial e material.
Os limites formais ao poder constituinte reformador Os limites formais ao poder constituinte reformador são aqueles relativos ao procedimento exigido pela Constituição para que ocorra sua própria alteração. Assim, a modificação da Constituição somente poderá acontecer se forem obedecidos os procedimentos, os ritos, as formas previstas na própria Lei Maior. Essas limitações formais à manifestação do poder constituinte reformador encontram-se no art. 6 0 , 1 a III, e §§ 2o, 3o e 5o, bem como no art. 5o, § 3o, da Constituição Federal. Sendo assim, a Constituição som ente pode ser em endada m edian te proposta do presidente da República, de um terço, no m ínim o, dos m em bros da Câm ara dos Deputados ou do Senado Federal, ou de mais da m etade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada um a delas, pela maioria relativa de seus m e m bros (art. 6 0 , 1 a III). Feita a proposta por um a das formas anteriorm ente mencionadas, ela será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional — C âm ara dos Deputados e Senado Federal — , em dois turnos, con siderando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos m em bros (art. 60, § 2o). A promulgação da em enda deve ser feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo núm ero de o r dem (art. 60, § 3o). Assim, as em endas à Constituição não seguem para o presidente da República para sanção ou veto, tam pouco para p ro mulgação. Finalmente, a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, § 5o), ou seja, só poderá ser novamente propos ta a partir da reunião anual seguinte (art. 57, da Constituição Federal).
Os limites circunstanciais ao poder constituinte reformador Os limites circunstanciais ao poder constituinte reform ador são aqueles previstos no art. 60, § I o, da Constituição Federal, e dizem
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respeito ao fato de que a Constituição Federal não poderá ser em enda da na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Esses limites são im postos porque o C onstituinte entendeu que a Constituição — n o rm a jurídica que se encontra no top o do o rd en a m ento jurídico, d an d o fu n d am en to de validade a todas as outras re gras — não deverá ser alterada q u an d o o país estiver enfrentando algum a instabilidade significativa, alguma turbulência natural, insti tucional ou de ordem pública que possa co m p ro m eter a serenidade exigível para desem penhar função tão relevante q u an to m odificar a Constituição. A questão que surge é a de saber se, por exemplo, a decretação de intervenção federal em u m estado obstaria a discussão do projeto de em enda à Constituição ou somente impediria sua respectiva p ro m u l gação. Esse problem a foi enfrentado pelo presidente Fernando H enrique Cardoso em 1997. Naquele ano, o estado de Alagoas passava por aguda crise que poderia autorizar a decretação de intervenção federal. Na m esm a época, vários projetos de em enda à Constituição tinham sido propostos, com o os das reformas administrativa e da previdência, bem com o aquele que perm itiria a reeleição dos governantes. Instalou-se, então, a polêmica: se houvesse a decretação da inter venção federal, as emendas deveriam deixar de tram itar ou poderiam ser discutidas e votadas, mas teriam de aguardar o restabelecimento da norm alidade para que fossem promulgadas?12 Tal dúvida surgiu em razão da redação do art. 60, § Io, da Consti tuição Federal, que textualmente prevê o seguinte: “A Constituição não será em endada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”. De fato, a alteração formal da Constituição ocorre com a prom ul gação da emenda. Contudo, fazendo um a interpretação teleológica do referido dispositivo constitucional, só se pode concluir que a intenção da
12 Sobre a polêmica, verificar, por exemplo, o jornal Folha de S.Paulo dos dias 29.05.1997 (p. 1-4) e 21.07.1997 (p. 1 e 2).
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regra é impedir a modificação do texto constitucional durante períodos de instabilidade institucional. Se é verdade que a m udança da Constitui ção ocorre, formalmente, com a promulgação da emenda, a alteração do texto constitucional é gestada, concebida, produzida durante a tram ita ção. Portanto, não parece lógico permitir que, durante a intervenção fe deral, as emendas sejam discutidas e votadas para que, então, aguardem o térm ino do período de instabilidade e, assim, possam formalmente ingressar no m un do jurídico por meio da promulgação. Dessa forma, a decretação da intervenção federal, do estado de sí tio ou do estado de defesa deve suspender, imediatamente, a tram ita ção dos projetos de em enda à Constituição, até que a norm alidade institucional se restaure.
Os limites materiais ao poder constituinte reformador Os limites materiais ao poder constituinte reform ador dizem res peito aos assuntos, aos temas, às matérias que não poderão ser objeto de modificação por meio de emenda. Essas matérias form am o núcleo imutável, a parte intangível da Constituição. As limitações materiais ao poder constituinte reform ador são as chamadas cláusulas pétreas, previstas nos incs. I a IV do § 4o do art. 60 da Constituição Federal. Por força dessas disposições, não podem ser objeto de deliberação as propostas de em enda à Constituição ten dentes a abolir a form a federativa de Estado; o voto direto, secreto, pe riódico e universal; a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais. Os limites im plícitos ao poder de reforma
Os limites materiais, formais e circunstanciais são os cham ados li mites explícitos ao poder de reforma, visto que estão expressamente previstos na Constituição. Questiona-se a existência de limites implícitos ao poder consti tuinte reformador. A pergunta é a seguinte: haveria outros limites além daqueles explicitamente previstos na Constituição? Segundo Nelson de Sousa Sampaio, os limites implícitos ao poder de reforma derivariam dos limites expressos e abarcariam as disposi
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ções “concernentes ao titular do poder constituinte”, as “referentes ao titular do poder reform ador” e aquelas “relativas ao processo da p ró pria em enda ou revisão constitucional”.13 O p o d er refo rm ad o r não poderia alterar o titular do p o d er cons tituinte originário, pois “não pode dispor sobre o que não lhe p erte n ce”.14 Assim, não se deveria pensar em transferir do povo para quem quer que seja a titularidade inalienável do poder constituinte origi nário. O poder de reforma tam bém não poderia alterar o titular do p ró prio poder reformador, “pois este não pode renunciar a sua com pe tência a favor de n en h u m outro órgão. Não pode, igualmente, delegar as suas atribuições, pois estas lhe foram conferidas para que ele p ró prio as exercite”.15 Realmente, não faria sentido pensar que o poder de reforma constitucional pudesse tirar das mãos do Congresso Nacional a competência de alteração da Constituição, passando-a, por exemplo, para o presidente da República. Além disso, na m esma linha de raciocínio exposta p o r Nelson de Sousa Sampaio, Michel Tem er16 lista alguns limites implícitos ao poder de reforma constitucional, com o aquele “atinente ao procedim ento de criação da n orm a constitucional, em nível derivado”, pois o órgão en carregado de reform ar a Constituição não pode modificar o critério de rigidez estabelecido pelo constituinte originário, to rn an d o mais fácil a alteração constitucional. Também seriam implícitas “as vedações à supressão do próprio arti go que impõe expressamente aquelas proibições”.17 Segundo esse enten
' 3 Sam paio , Nelson de Sousa.
O poder de reforma constitucional, p. 95.
M oraes , Alexan
dre de. Direito constitucional, p. 589. 14 Sam paio , Nelson de Sousa. O poder de reforma constitucional cit. p. 97. 15S ampaio , Nelson de Sousa. O poder de reforma constitucional cit. p. 103. Este autor lembra dois "exemplos de transferência e, por vezes, de delegação do poder reformador": a "Lei alemã de 24 de março de 1933, que concedeu plenos poderes a Hitler, e a Lei francesa de 10 de julho de 1940, que fez o mesmo em relação ao Marechal Petain". Segundo Nelson de Sousa Sampaio, na "verdade, essas leis foram mais longe, pois tanto o Reichstag como a Assemblée Nationale transferiram ou delegaram, por meio de aparente reforma constitucio nal, o que não lhes pertencia, ou seja, o próprio poder constituinte". 16T em er , Michel. Elementos cit. p. 36. 17T em er , Michel. Elementos cit. p. 36. Moraes, Alexandre. Direito constitucional cit. p. 589.
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dimento, seria descabida a possibilidade de um a emenda constitucional suprimir, por exemplo, o § 4o do art. 60 da Constituição Federal, que consagra as cláusulas pétreas. Se tal dispositivo, que protege outras norm as constitucionais, pudesse ser eliminado da Constituição, nu m segundo m om ento as próprias regras que eram protegidas poderiam ser abolidas,18 viabilizando um a verdadeira fraude à Constituição. Portanto, conforme essa compreensão, um limite implícito ao poder constituinte reformador seria aquele relativo à m udança do titular do poder constituinte originário; outro seria o referente à alteração do titu lar do poder de reforma; e, por fim, haveria aquele que diria respeito à impossibilidade de supressão dos próprios limites explícitos. Em relação aos dois prim eiros limites implícitos — ou seja, a im possibilidade de, p o r em enda constitucional, alterar o titular do poder constituinte originário e o titular do poder de reforma — , os argu m entos são consistentes e convincentes. C ontudo, a chamada dupla reforma — isto é, a possibilidade de alteração das disposições constitucionais protetoras para, n um segun do m om ento, levar a efeito a modificação das cláusulas que eram p ro tegidas — não deveria ser incluída, acriticamente, com o um a vedação implícita ao poder constituinte reformador. Diversamente do que se costum a afirmar, a possibilidade de dupla reforma não fraudaria a Constituição, mas simplesmente estabeleceria graus diferentes de rigidez constitucional. As disposições constitucio nais não protegidas pelas cláusulas pétreas som ente poderiam ser m o dificadas pelo quorum de três quintos dos votos das duas Casas Le gislativas, em dois turnos (art. 60, § 2o). Já as disposições protegidas pelas cláusulas pétreas exigiriam o dobro de dificuldade para ser alte
18 Em Portugal, admitiu-se a possibilidade de supressão de algumas cláusulas pétreas para, anos depois, alterar-se as regras que inicialmente não podiam ser modificadas. Acerca desses fatos, verificar M oreira , Vital. "Constituição e democracia na experiência portuguesa". In: Cons tituição e democracia, p. 265 e 266. A defesa da "dupla revisão" pode ser encontrada em M iranda , Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II - Constituição e inconstitucionali dade, p. 206 e segs. Admitindo a "dupla reforma", entre nós, conferir Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. O poder constituinte, p. 177. Argumentos contrários à tese do "duplo processo de revisão" podem ser encontrados em C anotiiho , José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 945 e 946.
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radas: prim eiro seria necessário desfazer a proteção para, nu m segun do m om ento, modificar o que era protegido. C ontudo, tal análise não pode se fundar simplesmente na questão formal de alteração da Constituição, sob pena de adm itir o surgim en to de regimes autoritários com base em procedim entos constitucio nalmente aceitos.19 A aceitação da dupla reforma e, em última análise, da inexistência de cláusulas pétreas, mas somente de graus diferentes de rigidez cons titucional, deve levar em conta as críticas às disposições intangíveis da Constituição, que serão analisadas a seguir, atentando-se para as ques tões que moral e legitimamente possam ser instituídas com o constitu cionalmente imodificáveis.20 Algumas críticas às cláusulas pétreas
Karl Loewenstein afirm a que, em geral, as disposições de intangibilidade incorporadas a um a Constituição indicam , em tem pos de norm alidade, um a advertência útil frente a m aiorias parlam entares desejosas de em endas constitucionais, mas não se pode dizer que os preceitos protegidos ficam im unizados a toda reform a, pois, em ép o cas de crises, tais disposições são “tão-só pedaços de papel varridos ao vento da realidade política”.21 Jorge Reinaldo Vanossi,22 no m esm o sentido, mas de m aneira mais contundente, ataca as cláusulas pétreas ao afirmar que essas proibições ocasionam, paradoxalm ente, o efeito político de privar o poder cons tituinte reform ador de sua função essencial, que é a de evitar o surgi m ento do poder constituinte revolucionário. Tais vedações, além disso, não conseguem se m an ter intactas além dos tem pos de norm alidade e estabilidade, fracassando nos tem pos de crises. A previsão das cláu 19 Não se pretende, com isso, afirmar que regimes autoritários deixariam de surgir em razão das previsões constitucionais imutáveis, chamadas de cláusulas pétreas. 20Como, por exemplo, a preservação da democracia e da dignidade da pessoa humana, como defende por V ieira , Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 224 e segs. 21 Loewenstein , Karl. Teoria de Ia constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte, p. 192. 22Vanossi, Jorge Reinaldo. Teoria constitucional. Vol. I — Teoria constituyente: poder constituyente fundacional, revolucionário, reformador, p. 188 e segs.
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sulas pétreas, m enos do que um problem a jurídico, trata de crenças e, portanto, pode servir de fundam ento para que a geração dos consti tuintes originários pretenda atar para sempre as m ãos dos futuros constituintes reformadores. Depois desses e de outros argumentos, Vanossi defende a inexistên cia de cláusulas pétreas implícitas, ou seja, de conteúdos constitucionais pretensamente irreformáveis por suposto ataque ao “espírito” da Cons tituição escrita. E, por fim, afirma que as cláusulas pétreas explícitas são inúteis, visto que não alcançam os objetivos a que se pretendem. Oscar Vilhena Vieira,23 ao tratar das cláusulas pétreas, abordando a relação entre democracia e Constituição, tam bém afirma que a “p os sibilidade de autovinculação e de restrição da vontade m ajoritária das gerações futuras” é “problemática se vista da perspectiva democrática”. Mas esse autor chega a conclusões diferentes das atingidas por Va nossi ao argumentar, com acerto, que os direitos que puderem ser m oralm ente reivindicados e racionalmente justificados, (...) enquanto elementos essenciais à proteção da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de decisão entre seres racionais, iguais e livres, devem ser protegidos como superconstitucionais.24
“ V ieira , Oscar Vilhena.
A Constituição e sua reserva de justiça cit. p. 22.
24V ieira, Oscar Vilhena. Ob. cit. p. 245.
C o n stitu iç ã o
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QUESTÕES IN I C I A I S
Todos os Estados têm Constituição? Todo ordenam ento estatal é regido p o r um conjunto de princípios de organiza ção?1A Constituição é um grupo de regras que regula apenas o Estado ou é um conjunto de norm as que regula o Estado e a sociedade? As Constituições devem ser concebidas com o meros “estatutos organizatórios”, com o “instrum entos de go verno” ou devem determ inar tarefas, estabelecer program as e definir fins?2 Essas questões serão respondidas, de m odo diluído e não sistematizado, neste capítulo.
1Essa pergunta decorre da asserção feita por V ergottini, Giuseppe de. "Constituição". In: B obbio , Norberto; M atteucci, Nicola & Pasquino , Gianfranco. Dicionário de política, p. 258. 2 Essas questões são postas por C anotiiho , José Joaquim Gomes. Constituição dirigente
e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, p. 12.
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BREVE H I S T O R I C O
Todos os Estados têm Constituição. Mas, somente a partir do fim do século XVIII começa a surgir a sistematização das norm as consti tucionais em um único docum ento formal. Naquela ocasião, com o esfacelamento do Estado absoluto e a eclosão das revoluções francesa e americana, aparecem alguns mecanismos de limitação do poder: a própria existência de um docum ento escrito que previsse a divisão das funções entre diferentes órgãos do Estado, além do reconhecimento de u m a série de direitos e garantias fundam entais voltados a inibir os abusos dos titulares dos referidos órgãos. Essa noção acabou consagrada na Declaração dos Direitos do H o m em e do Cidadão, de 1789, ao estabelecer, em seu art. 16, que não se tem Constituição quando não estiver determ inada a separação das funções do Estado e assegurada a garantia dos direitos fundam entais.3 Essa concepção de Constituição, típica do liberalismo, revela-se com o garantidora das liberdades fundamentais, m ostrando-se como anteparo à atuação estatal. Com o passar do tempo, surgem novas demandas sociais, especial mente voltadas a exigir que o Estado aja no sentido de viabilizar um a maior igualdade entre as pessoas. Assim é que, nas primeiras décadas do século XX — como, por exemplo, com a Constituição mexicana, de 1917, e com a Constituição de Weimar, de 1919 — , as Constituições não só pas sam a prever o que o Estado não deve fazer, mas também começam esta belecer os deveres estatais, ou seja, aquilo que deve ser cumprido pelo Estado de maneira a permitir que as pessoas possam usufruir, por exem plo, dos direitos à educação, à saúde e à previdência. Portanto, a Constituição deixa de ser apenas um conjunto de regras voltadas a inibir a ação estatal — estabelecendo competências e ordenando os poderes do Estado — e passa a im por ao Estado a p ráti ca de determ inados atos tendentes a viabilizar o exercício de certos direitos. 3 Esta era a redação do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789: "Toda a sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem deter minada a separação dos poderes não tem Constituição".
CONSTITUIÇÃO
Mais do que isso, as Constituições passam a estabelecer programas a ser alcançados pelo Estado. No sentido normativo, as Constituições deixam de ser “apenas um estatuto confirm ante ou garantidor do exis tente’” para se transform ar em “esboço de um a via”, em algo que se deseja atingir.4
A L G U M A S C O N C E P Ç Õ E S DE C O N S T I T U I Ç Ã O ■I A N O Ç Ã O S O C IO L Ó G IC A DE C O N S T IT U IÇ Ã O SEGUNDO FERD IN AN D LASSALLE
Do p on to de vista sociológico, Ferdinand Lassalle afirma que a Constituição é, em essência, a som atória dos fatores reais de poder que regem um a nação.5 Para esse autor, todos os países sempre pos suíram e possuem u m a Constituição real e efetiva, “pois não é possí vel im aginar u m a nação onde não existam os fatores reais de poder, quaisquer que eles sejam”.6 Se os fatores reais de poder forem escritos em um a folha de papel, forem incorporados a um papel, ou seja, se eles adquirem expressão escri ta, não serão mais simples fatores reais de poder, mas verdadeiro direito.7 Ainda segundo Lassalle, um a Constituição escrita é “boa e d u rad o u ra” quando “corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fa tores do poder que regem o país”. No entanto, o autor adverte: Onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevi tavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.8
4 C anotilho , José Joaquim Gomes. Ob. cit. p. 152 e 153. 5Lassalle , Ferdinand.
A essência da Constituição, p. 17.
6 Lassalle , Ferdinand. Ob. cit.
p. 25. 7 Lassalle , Ferdinand. Ob. cit. p. 17 e 18. 8 Lassalle , Ferdinand. Ob. cit. p. 33. KonradHesse discordadessaposição adotada por Lassalle: "A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, talcomocaracteri zada por Lassalle. Ela não se afigura 'impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de poder', tal como ensinado por Georg Jellinek e como, hodiernamente, divulgado por um
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Além da espirituosa distinção entre a “constituição real” e a “folha de papel”, ou seja, a Constituição escrita, Lassalle aventa um a suposição: se um grande incêndio queimasse todas as Constituições escritas de um país, o que aconteceria? Na verdade, um a vez que a Constituição do país é a soma dos fatores reais de poder que regem a nação, nada mudaria, pois tais fatores não seriam queim ados no incêndio. ■I A C O N C E P Ç Ã O P O L ÍT IC A DE C O N S T IT U IÇ Ã O AD O TADA POR C A R L S C H M IT T
Depois de reconhecer que a palavra “constituição” admite u m a di versidade de sentidos e após afirmar que, em um a acepção geral, toda e qualquer pessoa ou objeto, ou m esm o qualquer associação, tem um a Constituição, Carl Schmitt diz que, n um sentido específico, deve-se limitar a palavra “constituição” à Constituição do Estado, ou seja, da unidade política de um povo.9 E para ele, só é possível alcançar um conceito de Constituição q u a n do se distinguem Constituição e lei constitucional. Segundo as idéias decisionistas defendidas por Carl Schimitt:10 La distinción entre Constitución y ley constitucional es sólo posible, sin embargo, porque Ia esencia de Ia Constitución no está contenida en una ley o en una norma. En el fondo de toda normación reside una decisión política dei titular dei poder constituyente, es decir, dei Pueblo en Ia De mocracia y dei Monarca en Ia Monarquia autêntica.
naturalismo e sociologismo que se pretende cético. A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força nor mativa da Constituição". (Hesse, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Fer reira Mendes, p. 25.) 9 Schmitt, Carl. Teoria de Ia Constitución. Trad. Francisco Ayala, p. 29. S chmitt, Carl. Ob. cit. p. 47. Em tradução livre: "A distinção entre Constituição e lei constitucional só é possível, no entanto, porque a essência da Constituição não está contida numa lei ou numa norma. No fundo de toda normatização reside uma decisão política do titular do poder constituinte, é dizer, do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica."
CONSTITUIÇÃO
Levando em conta a distinção entre Constituição e lei constitucional feita por Carl Schmitt, pode-se dizer que aquela é a decisão política fun damental do titular do poder constituinte, enquanto esta necessita, para sua validade, de uma decisão política prévia, adotada por um poder ou autoridade politicamente existente, ou seja, da própria Constituição." José Afonso da Silva, ao analisar a obra de Carl Schmitt, explica o seguinte:12 Em sentido positivo, a constituição é considerada como decisão politica
fundamental, decisão concreta de conjunto sobre o modo e forma de exis tência da unidade política, só sendo possível um conceito de constituição quando se distinguem constituição e lei constitucional. Só entram no con ceito de constituição aqueles dispositivos constitucionais de grande rele vância política, que dizem respeito à própria existência política concreta da nação: estrutura e órgãos do Estado, direitos dos cidadãos, vida demo crática etc.; os outros, que não contêm essa importância, embora figurem no texto constitucional, são simples leis constitucionais.
Esse, para Schmitt, é o único e verdadeiro conceito de Constituição, e aí se revela, inequivocamente, um aspecto do sociologismo jurídicoconstitucional. Assim, a Constituição, para Carl Schmitt, é a decisão política fu n dam ental que tratará da estrutura do Estado, das relações de poder e dos direitos fundam entais dos cidadãos, conceito este que coincide com o de Constituição material, com o se verá mais adiante. ■I O C O N C E IT O J U R ÍD IC O DE C O N S T IT U IÇ Ã O C O N F O R M E H A N S KE LS E N
Do p o n to de vista jurídico, a C onstituição p o d e ser conceituada com o o co n ju n to de regras positivas que disciplinam e configuram
11 S chmitt, Carl. Ob. cit. p. 46. Conferir uma análise sobre essa passagem da obra de
Carl Schmitt em R evorio , Francisco Javier Díaz. Valores superiores e interpretación constitudonal, p. 273. 12 Silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 28. Verificar, tam bém T em er , Michel. Ob. cit. p. 17 e 18.
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o Estado e que estabelecem os direitos fu n d am en tais dos cidadãos. Esse co n ju n to de regras se encontra no topo do o rd e n a m e n to ju ríd i co e dá fu n d a m e n to de validade a todas as dem ais n o rm a s jurídicas, estabelecendo o co nteúd o destas e a form a com o elas deverão ser criadas. Ao tratar da teoria pura do direito, Kelsen13 expõe que: (...) ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determi nada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fun damental — pressuposta. A norma fundamental — hipotética, nestes ter mos — é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado.
C o m o se nota, Kelsen afirm a que a Constituição é, d entro do cam po do direito posto, aquela que se encontra no vértice do ordena m ento jurídico, fazendo com que as demais regras sejam criadas em conform idade com ela. ■I C O N S T IT U IÇ Ã O CO M O N O R M A F U N D A M E N T A L NO E N T E N D E R DE ED U A R DO G A R C ÍA DE E N T E R R ÍA
O conceito de Constituição com o n o rm a fundam ental desenvolvi do por Eduardo Garcia de Enterría parece o mais abrangente e ade quado à realidade jurídico-constitucional atual. Esse autor explica que a Constituição, por um a parte, configura e ordena os poderes do Estado construídos por ela. De outra parte, a
13 K elsen , Hans.
Teoria pura do direito, p. 247.
CONSTITUIÇÃO
Constituição estabelece os limites do exercício do poder e o âm bito de liberdades e direitos fundam entais, assim com o os objetivos positivos e as prestações que o poder deve cu m prir em benefício da co m u n i dade. Em todos esses conteúdos a Constituição se m ostra como um sistema preceptivo que em ana do povo com o titular da soberania, em sua função constituinte, preceitos dirigidos tanto aos diversos órgãos do poder estabelecidos pela própria Constituição com o aos cidadãos.14
AS C L A S S I F I C A Ç Õ E S ■I AS C O N S T IT U IÇ Õ E S NORMATIVAS, N O M IN A IS E S E M Â N T IC A S
Karl Loewenstein,15 ao realizar u m a classificação ontológica ou existencial das Constituições, identifica as Constituições normativas, as Constituições nom inais e as Constituições semânticas e afirma que, para entendê-las, não se pode partir do texto normativo, mas é im pres cindível adentrar na realidade do processo de poder. Segundo esse autor, para que um a Constituição seja viva, terá de ser observada lealmente por todos os interessados e terá de estar inte grada na sociedade estatal, e esta nela. Deverá ocorrer um a simbiose entre a Constituição e a com unidade. Só nesse caso é possível falar em um a Constituição normativa. Suas norm as d o m in am o processo polí tico ou, ao revés, o processo do poder se adapta às norm as da Consti tuição e se subm ete a elas. Por outro lado, um a Constituição poderá ser juridicam ente válida, mas, se a dinâmica do processo político não se adapta a suas normas, a Constituição carecerá de realidade existencial, devendo ser classifica da com o Constituição nominal. E, p o r fim, a C onstituição sem ântica, apesar de plenam ente apli cada, é aquela cuja realidade ontológica não é senão a form alização da existente situação do p o d er político em benefício exclusivo dos detentores do po d er de fato, que dispõem do aparato coercitivo do Estado. Nesse caso, em vez de servir com o lim itação ao poder, a 1,1G arcia de Enterr(a , Eduardo.
La Constitución como norma y el tribunal constitucional, p. 49.
15 Loewenstein , Karl. Ob. cit. p. 216-22.
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C onstituição m ostra-se com o o in stru m e n to para estabilizar e eternizar a intervenção daqueles que d o m in a m , de fato, o po d er político. M
A C O N S T IT U IÇ Ã O M AT E R IA L E A C O N S T IT U IÇ Ã O F O R M A L
A C onstituição m aterial é o co n ju n to de regras que trata das m atérias, dos assuntos, dos tem as constitucionais, isto é, da e s tru tu ra do Estado, das relações de p o d er e dos direitos fun dam en tais das pessoas.16 Por outro lado, Constituição formal é o conjunto de regras que assume a forma de norm a constitucional. Assim, os comandos jurídicos inseridos no texto constitucional escrito, por meio de um procedimento diferente daquele adotado para a criação das demais normas jurídicas, compõem o que se convencionou chamar de Constituição formal. ■I AS C O N S T IT U IÇ Õ E S O U T O R G A D AS E AS C O N S T IT U IÇ Õ E S P R O M U L G A D A S
Q u anto à origem, as Constituições podem ser classificadas em o u torgadas ou promulgadas. As outorgadas são as impostas autoritariam ente por quem não re cebeu poderes do povo para tanto, como, por exemplo, a Constituição brasileira de 1937. Já as promulgadas são as Constituições que surgem com o resulta do de um processo democrático de elaboração, com o a Constituição brasileira de 1988.
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AS C O N S T IT U IÇ Õ E S ESCRITAS E AS C O N S T IT U IÇ Õ E S C O S T U M E IR A S
Quanto à forma, as Constituições podem ser escritas ou costumeiras. '6Quando se abordou o conceito político de Constituição desenvolvido por Carl Schmitt, já seria possível identificar o conceito de Constituição material, na medida em que esse autor afirma que a Constituição é a decisão política fundamental que trata da estrutura do Estado, das relações de poder e dos direitos fundamentais dos cidadãos, definição esta que coincide com a de Constituição material.
CONSTITUIÇÃO
As Constituições costum eiras são form adas paulatinam ente por m eio de costumes, decisões judiciais e do cum entos esparsos, sendo que suas regras não se condensam em u m único texto escrito formal, apesar de ser consideradas n o rm as que e stru tu ram o Estado e estabe lecem os direitos e garantias fundam entais dos cidadãos. A Inglater ra é u m exemplo típico de u m Estado regido p o r u m a Constituição costumeira. Por outro lado, as Constituições escritas são as que contemplam, em um único texto escrito, as norm as que estruturam o Estado e fixam os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos. Atualmente, a grande maioria dos Estados é regida por esse tipo de Constituição, como acon tece, por exemplo, no Brasil, na Espanha, em Portugal e no Chile. ■I AS C O N S T IT U IÇ Õ E S A N A L ÍT I C A S E AS C O N S T IT U IÇ Õ E S S IN T É T IC A S
Q uanto à extensão, as Constituições podem ser classificadas com o sintéticas ou analíticas. As Constituições sintéticas contêm poucos artigos, sendo as matérias constitucionais reguladas por um n úm ero reduzido de dis posições normativas. Em função desse motivo, a atividade interpretativa dessas Constituições permite, de maneira mais acentuada, a atuali zação dos entendim entos sobre os assuntos por elas tratados. C om o exemplo de Constituição sintética há a Constituição dos Estados U ni dos da América. As Constituições analíticas — com o a Constituição brasileira de 1988 — tratam dos temas constitucionais de maneira minuciosa e detalhada, sendo compostas, portanto, de vários artigos. H
AS C O N S T IT U IÇ Õ E S RÍGIDAS, S E M I-R ÍG ID A S E F L E X ÍV E IS
Q uanto à alterabilidade ou modificação, as Constituições podem ser rígidas, semi-rígidas ou flexíveis. Constituição rígida é aquela que prevê para a sua alteração um procedim ento mais difícil, mais árduo, mais rigoroso do que o previs to para a criação ou alteração das demais regras do ordenam ento ju
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rídico. É o caso da Constituição brasileira de 1988, com o se pode cons tatar ao interpretar seus arts. 47,60, § 2o, 65 e 69.17 Nas palavras de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:18 (...) no sistema das Constituições rígidas, a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-la. O poder legislativo, como os outros poderes, lhe são subalternos, tendo as suas fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas normas. Além do governo, as Consti tuições rígidas limitam ainda o povo organizado politicamente, isto é, o cor po eleitoral, influenciado pelas agitações populares momentâneas.
C onstituição flexível é aquela que perm ite sua alteração pelo m esm o procedim ento previsto para criar ou alterar a legislação o rd i nária. Nesse caso, nenhum a distinção se faz entre lei constitucional e lei ordinária, quer quanto à formação, quer quanto à validade delas. Os órgãos responsáveis pela edição da legislação ordinária estabelecem, por idênticos processos, aquela que tem caráter constitucional. O parlam en to pode tudo fazer.19
17 "Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros." "Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I — de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II — do Presidente da República; III — de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. (...) § 2o A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros." "Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar." "Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta." 18 B andeira de M ello, Oswaldo Aranha. A teoria das Constituições rígidas, p. 48. 19 B andeira de M ello , Oswaldo Aranha. Ob. cit. p. 51. Esse autor explica que o sistema de Constituição flexível é o adotado na Inglaterra e lembra que também foi aquele escolhi do na Itália, sob o Estatuto do Império de 1848, bem como o aceito pela União das Repúbli cas Socialistas Soviéticas, cuja Constituição podia "ser alterada pelo Congresso Federal, sem formalidade especial e sem a necessidade da existência de uma maioria qualificada" (p. 54). Jorge Miranda, em Manual de Direito Constitucional (p. 144), cita também as Constituições neozelandesa e israelita como flexíveis.
CONSTITUIÇÃO
E Constituição semi-rígida é aquela que parte de suas regras re quer um procedim ento de alteração mais difícil do que o exigido para modificar a legislação ordinária — com o ocorre com as Constituições rígidas — e, em relação a outros dispositivos, prevê o m esm o procedi m ento de alteração para modificar a legislação ordinária — com o nos casos das Constituições flexíveis. A Constituição brasileira de 1824 era semi-rígida por força da regra contida em seu art. 178, que estabelecia que certas norm as deve riam ser alteradas por um procedimento difícil enquanto outras deveriam ser modificadas pelo m esm o rito previsto para a alteração da legislação ordinária.20 Do p on to de vista jurídico-formal, a superioridade hierárquica da Constituição em relação às demais norm as do ordenam ento jurídico decorre da rigidez constitucional. Em países que adotam o sistema de Constituição flexível, apesar de se poder identificar, sob a ótica socio lógica, um a supremacia material da Constituição, não há um a superio ridade formal do texto constitucional.21 Isso ocorre na m edida em que as leis ordinárias contrárias à Constituição revogarão as disposições constitucionais e não serão consideradas inconstitucionais, já que as norm as constitucionais são alteradas pelo m esm o procedim ento pre visto para criar ou alterar a legislação ordinária. C om o se percebe, a classificação das Constituições em rígidas e flexíveis não pretende designar a diferença entre Constituições im u tá veis e aquelas passíveis de modificação. Tanto as Constituições rígidas com o as flexíveis são mutáveis. C ontudo, as rígidas exigem um p ro cedimento mais difícil de alteração do que o previsto para a criação da legislação ordinária. Por outro lado, as Constituições flexíveis prevêem para a sua modificação o m esm o procedim ento adotado para a altera ção da legislação ordinária.
20 O art. 178 da Constituição brasileira do Império tinha a seguinte redação: "Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Políti cos, e aos Direitos Políticos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias". 21 S ilva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 47 e 48.
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Também não se pode confundir a rigidez constitucional com a es tabilidade da Constituição nem a flexibilidade com a instabilidade. Basta lem brar alguns exemplos. As Constituições do período republi cano brasileiro foram todas rígidas e, nem por isso, podem ser classifi cadas com o estáveis. Houve Constituição que d u ro u apenas três anos, como a de 1934, e as que d u raram mais tem po, com o a de 1988, foram freqüentemente emendadas. Nos Estados Unidos da América, apesar da rigidez constitucional, a m esm a Constituição está vigente há mais de dois séculos. E, por fim, na Inglaterra, a adoção de um a C onstitui ção flexível não causa n en h u m a instabilidade.
A
INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL
3
O processo interpretativo busca alcançar u m resultado que é o de e n te n d e r1 o sentido dos vocábulos, das expres sões, dos sinais, revelando seu conteúdo e desvendando seu alcance. A interpretação jurídica, portanto, consiste em entender o sentido, o alcance e o conteúdo da n o rm a por meio de um a atividade de mediação entre o texto da regra e sua aplicação,2 m o m en to final do processo interpretativo, em que se dá a concretização do com ando p o r sua efetiva incidência sobre a realidade de fato.3
' Essa noção é encontrada em B etti, Emílio. La interpretación de Ias leyesyactos jurídicos. Trad. José Luis de los Mozos, p. 29. Diz o autor: "0 processo interpretativo, em geral, responde ao problema epistemológico do entender". 2 A idéia da interpretação como atividade de mediação é explorada por Larenz , Karl. Me todologia da ciência do direito, p. 375 e segs. 3 Barroso , L uís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, p. 97.
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No entanto, não se pode falar em um a única interpretação corre ta e definitiva, com o bem adverte Jerzy Wróbleswski.4 Se, p o r um lado, o intérprete não deve se ater a u m a in terp re tação apenas para aquele caso concreto posto à sua apreciação — mas precisa atentar para a possibilidade de o resultado de seu tra b a lho valer para todos os outros casos similares — ,3 p o r outro, a p e r m an en te m utação das relações e dos valores sociais exige a atenção do intérprete para os condicionantes de sua época. Nesse sentido, Karl Larenz observa: Se bem que toda e qualquer interpretação, devida a um tribunal ou à ciência do Direito, encerre necessariamente a pretensão de ser uma inter pretação "correta", no sentido de conhecimento adequado, apoiado em razões compreensíveis, não existe, no entanto, uma interpretação "abso lutamente correta", no sentido de que seja tanto definitiva, como válida para todas as épocas. Nunca é definitiva, porque a variedade inabarcável e a permanente mutação das relações da vida colocam aquele que aplica a norma constantemente perante novas questões. Tampouco pode ser válida em definitivo, porque a interpretação, como ainda haveremos de ver, tem sempre uma referência de sentido à totalidade do ordenamento jurídico respectivo e às pautas de valoração que lhe são subjacentes. (...) Toda a interpretação da lei está, até certo ponto, condicionada pela época. Com isto não se pretende dizer que o intérprete deve seguir a par e passo cada tendência da época ou da moda.6
d Esse autor explica (in: Constitución y teoria general de Ia interpretación jurídica, p. 91): "Não há mais razões teóricas para sustentar a tese da única interpretação correta no domínio das regras constitucionais". Na mesma obra (p. 89), ele expõe que "aplicar o termo 'ver dadeiro' a decisões interpretativas leva a conseqüências bastante desconcertantes ou... expressa uma ideologia da interpretação. Parece melhor, então, falar somente de decisões interpretativas justificadas por argumentos concretos e perguntar sobre as razões para aceitálos e apresentar a cadeia de justificativas até onde seja pragmaticamente necessário e pos sível, dentro de um marco de discurso jurídico concreto". 5 Nelson Nery Júnior (in: Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 34), ao analisar a cláusula do due process oflaw, argumenta que a Suprema Corte norte-americana, além de julgar o caso concreto, quando realiza a interpretação constitucional, fixa padrões para casos semelhantes futuros, interpretação esta que não é observada pelo Supremo Tri bunal Federal brasileiro. 6 Metodologia da ciência do direito, p. 378 e 379.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A interpretação constitucional não deixa de ser um a espécie de interpretação jurídica,7 na m edida em que se interpretam norm as jurídicas, que ordenam a vida estatal e tam bém estabelecem as bases da vida não estatal, conform e a concepção de Constituição form ulada por Konrad Hesse.8 E, segundo esse autor, a missão da interpretação é a de encontrar o resultado constitucionalmente “correto” por meio de um procedim ento racional e controlável, de m odo a dar certeza e previsi bilidade jurídicas.9 Para isso, o intérprete deve se valer dos m étodos clássicos de inter pretação das norm as jurídicas tom adas em um a acepção ampla, mas não pode perder de vista que a Constituição possui peculiaridades10 que acabam p o r im por ao intérprete a necessidade de dar um passo além para alcançar o sentido da n o rm a constitucional. Assim, para explicar, precisar, acertar, especificar o sentido da norm a, o intérprete constitucional deve levar em conta, além dos critérios e m étodos de interpretação dos demais com andos jurídicos, as peculiaridades da Constituição.11
; Verificar M iranda , Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II — Constituição e Inconstitucionalidade, p. 257, que diz que a "interpretação constitucional não é de natureza diferente da que se opera noutras áreas". 8 Segundo esse autor, a "Constituição é a ordem jurídica fundamental da Comunidade. A Constituição fixa os princípios regentes aos quais se deve formar a unidade política e se devem assumir as tarefas do Estado. Contém os procedimentos para resolver os conflitos no interior da Comunidade. Regula a organização e o procedimento de formação da unidade política e a atua ção estatal. Cria as bases e determina os princípios da ordem jurídica em seu conjunto". In: "Concepto e cualidad de Ia Constitución". In: Escritos de derecho constitucional (Selección), p. 16 e 17. 9 H esse , Konrad. "La interpretación constitucional". In: Escritos de derecho constitucio nal (Selección), p. 37. 10 Conferir Stern, Klaus. Derecho dei Estado de Ia Republica Federal A/emana, p. 280 e segs. Diz esse autor: "Estes métodos de interpretação hão de ser combinados. Nenhum méto do de interpretação deve ser absolutizado" (p. 284). Mais adiante, depois de analisar as pecu liaridades das normas constitucionais, como, por exemplo, seu caráter amplo, indeterminado, incompleto (p. 285), afirma: "Se se observam as peculiaridades recém-mencionadas, se com preende imediatamente que a interpretação das normas constitucionais não pode equipararse com a interpretação das demais normas jurídicas" (p. 290). 11 Nese sentido, verificar Li B assi, Antonino Pensovecchio. L'interpretazione delle norme costituzionali: natura, metodo, difficoltà e Umiti, p. 26 e 27. Ao tratar da necessidade de sem
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Ao discorrer sobre o sentim ento constitucional, Karl Loewenstein insiste no fato de que toda C on stitu ição escrita, com o toda o bra h u m a n a , é, em si, incom pleta, p rin cip alm en te p o rq u e cada C o nstituição não é m ais do que u m co m p ro m isso entre as forças sociais e g ru p o s pluralistas que p articip am de sua c o n fo rm a ç ã o .12 Esses elem entos — a natureza jurídica das n o rm a s c o n stitu cionais, o abrigo pela C on stitu ição dos p rin cíp io s fu n d am en tais de regência da sociedade e do Estado, b em co m o a in co m p letu d e do Texto M aior — dificultam o trab alh o do in térp rete que se vê diante de um texto n o rm ativ o im perativo, mas que, no mais das vezes, co n tem p la expressões am plas, vagas, in d eterm in ad as e in co m p le ta s.13 P ortanto, o processo interpretativo se revela com o u m cam in h o imprescindível a ser p erco rrid o para alcançar o sentido da n o rm a constitucional — levando-se em conta os m étodos tradicionais de interpretação das n o rm as jurídicas, mas não p erd en d o de vista as peculiaridades da C onstituição, que acabarão p o r cond uzir o in té r prete a outras noções, o u tro s problem as e o u tras soluções — e, assim, aplicá-la de form a correta, através de um procedim ento racional e controlável, atu alizan d o -a.14
pre se ter presente a exata natureza e a verdadeira finalidade da atividade interpretativa, esse autor assevera: "A interpretação constitucional portanto, tendo por objeto a norma jurídica, persegue a mesma finalidade e apresenta os mesmos fundamentos característicos de todas as outras interpretações jurídicas. Ela persegue o objetivo de acertar, precisar, explicar, especi ficar o sentido e o resultado das disposições constitucionais, identificando as diversas normas constitucionais e permitindo sua correta aplicação. E deve ser realizada com observância dos fundamentais critérios de interpretação jurídica, ainda que estes se integrem com outros critérios". 12 Loewenstein , Karl. Teoria de Ia Constitución cit. p. 199. ’3 Essa dificuldade é exposta, por exemplo, por G arcia , Enrique Alonso. La interpretación de Ia Constitución, p. 1 e 2. 14 Sobre a interpretação também como instrumento de mutação constitucional, conferir Ferraz , Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. Série Jurídica Max Limonad n. 1.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A D IS T IN Ç Ã O ENTRE REGRAS E P R I N C Í P IO S
A Constituição é form ada por regras e princípios.15 Portanto, as norm as constitucionais ou são regras ou são princípios.16 Ronald Dworkin afirma que a diferença entre regras e princípios é de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneira do “tudo ou nada”, pois podem ser válidas e se aplicar integralmente ou ser inválidas e, portanto, inaplicáveis. Por outro lado, os princípios possuem a dimensão do peso ou importância e, quando colidem, o intérprete deve levar em conta a força relativa de cada princípio que está em jogo, no caso concreto.17 Para Robert Alexy, a diferença entre regras e princípios é qualitati va, e não de grau. Enquanto os princípios “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível”, ou seja, são mandamentos de otimização que se caracterizam pelo fato de poder ser cumpridos em graus diferentes, as regras são normas que somente podem ser cum pri das ou não.18As regras, então, expressam direitos e deveres definitivos, ou seja, se são válidas, devem realizar precisamente aquilo que determinam. Por outro lado, os princípios expressam direitos e deveres prima fa d e e, portanto, quando em colisão com outros princípios, deverão ser sopesa dos, revelando-se, no caso concreto, mais ou menos amplos.
PR INCÍPIOS C O N STITU C IO N A IS COMO V ETORES DE I N T E R P R E T A Ç Ã O
Outra concepção sobre os princípios leva em conta que tal expressão remete aos termos começo, início, ponto de partida, origem, base, fundamento.
15 Para uma visão crítica da distinção entre regras e princípios, conferir S ilva, Virgílio Afonso da. "Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção''. In: Revista Lati no-Americana de Estudos Constitucionais, n. I, p. 605-30. 16 Para uma análise acurada sobre a eficácia jurídica dos princípios constitucionais, espe cialmente o da dignidade da pessoa humana, conferir B arcellos, Ana Paula de. A eficácia jurí
dica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. ' 7 Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira, p. 39 e 42. 18 A lexy, Robert. Teoria de íos derechos fundamentales, p. 86 e 87.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
Os princípios constitucionais, nesse sentido, são considerados norm as jurídicas que se caracterizam com o com andos nucleares do sistema normativo, indicando o cam inho a ser seguido pelo intérprete, m o rm en te quando defronte de um a n o rm a polissêmica.19 Essa é a idéia exposta p o r Jorge M iran d a, que, após afirm ar que os prin cípio s não se colocam acim a ou além do direito, m as fazem p arte do o rd e n a m e n to jurídico, explica quais as funções que eles d esem penham : A ação mediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcio narem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exato dos preceitos constitucionais tem de ser encontrado na conjugação com os princípios e a integração há de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou explicitáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente.20
Os princípios, além disso, m ostram -se com o norm as de natureza aberta, visto que, expressos em um a ou poucas palavras, acabam por com portar um rol bastante extenso de significados que se irradiam por todo o ordenam ento jurídico, apon tan do o cam inho a ser seguido pelo intérprete.21 Assim, segundo essa concepção, pode-se afirmar que os princípios são vetores de interpretação, na m edida em que se revelam com o ali cerces do ordenam ento jurídico, dando coerência ao sistema, e, em função de sua natureza aberta, seus enunciados favorecem a realização do trabalho interpretativo, especialmente o evolutivo.
19Sobre o termo "princípio" e a idéia de princípio jurídico, conferir C arrazza , Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, p. 30 e 38; B andeira de M ello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 629 e 630. 20 Ob. cit. p. 226 e 227. 2 ' Denninger, Erhardo. " Princípios constitucionales y derechos fundamentales como 'normas abiertas'". In: División de poderes e interpretación: hacia una teoria de Ia praxis constitucional. Antonio López Pina (edición y prólogo), p. 179 e 180.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
OS MÉTODOS CLÁSSICOS DE INTERPRETAÇAO
Os métodos de interpretação são pontos de vistas que devem ser vir de guia para o intérprete dem onstrar de m o d o seguro com o atin gir o resultado interpretativo que lhe parece mais adequado. Tais métodos — descritos classicamente como elementos g ram a tical, lógico, histórico e sistemático — não devem ser tom ados iso ladamente. Ao revés, o intérprete deve se valer deles em conjunto para alcançar seu objetivo com m aior precisão e de form a comprovável.22 Os métodos não são a interpretação, não se confundem com ela. São os instrumentos para que, do texto, se descubra a norm a. São, portanto, meios para alcançar um fim. Mas, ao mesmo tempo, revelam-se como limites à busca de um a solução para o problema interpretativo que se apresenta, pois, se o intérprete deve se valer deles para alcançar o resul tado que lhe parece mais adequado, deles não pode se desviar, sob pena de inviabilizar o controle sobre o caminho percorrido para chegar à so lução interpretativa, por mais que se possa dizer que os referidos meios não são mais do que meros artifícios para justificar um a decisão a que anteriormente já se havia chegado, em caráter definitivo.23 22 Luis Recaséns Siches (in: Nueva filosofia de Ia interpretación dei derecho, p. 178 e segs.) aborda a questão da superação da pluralidade de métodos de interpretação e trata como "pseudoproblema" a escolha de um critério para eleger um ou outro método interpretativo. A superação desses pontos, segundo esse autor, deve ocorrer por meio da lógica do razoável ou do humano. E afirma o seguinte (ob. cit. p. 183): "Frente a uma determinada situação singular não podemos saber, de antemão, e dizer, antes de ter realizado uma análise a fundo dessa situação, qual seja o método interpretativo aconselhável. Pelo contrário, para formar uma idéia sobre o pro cedimento de interpretação que devemos aplicar a um caso concreto, é preciso que antes te nhamos logrado formar o juízo que consideramos correto, é necessário que tenhamos antecipa do mentalmente a decisão que estimamos justa. E, então, e só a posteriori, ou seja, depois de termos formado esse juízo, quando descobrimos qual é o procedimento mental que nos condu ziu a dito juízo. O método correto é o que, nesse caso, nos levou à solução que consideramos sa tisfatória". A solução satisfatória é aquela que o ordenamento jurídico considera como sentido de justiça, solução esta alcançada por intermédio de um procedimento razoável (ob. cit. p. 184). 23 Conferir Zagrebelsky, Gustavo. "La Corte Constitucional y Ia intepretación de Ia Constitución". In: División de poderes e interpretación: hacia una teoria de Ia praxis constitucional. Antonio López Pina (edición y prólogo), p. 168. Recaséns Siches (in: ob. cit. p. 180 e 181), citando o juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos da América Benjamin Cardozo, explica: "em termos de maior sinceridade, o que fazia primeiro era buscar essa solução justa, a mais justa entre todas as possíveis; e, depois, se preocupava em ver qual, entre aqueles quatro métodos, podia servir para justificar essa decisão que já previamente havia tomado in mente”.
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■■ A IN T E R P R E T A Ç Ã O L IT E R A L
Um a vez que a n o rm a jurídica é enunciada em u m texto, por pa lavras, toda interpretação deve ter com o ponto de partida o m étodo literal, que se volta para o sentido literal dos termos, examinados isola dam ente ou no contexto em que estão inseridos. Todavia, ao m esm o tem po em que a interpretação deve ser inicia da com o m étodo literal, este tam bém é u m limite rígido im posto ao intérprete, pois, se a interpretação não se situar no âm bito possível do sentido literal do texto normativo, já não se pode falar em interpre tação, mas modificação do sentido.24 Q u anto às palavras empregadas pelo constituinte, elas devem ser entendidas em seu sentido com um , utilizado na vida cotidiana, exceto se claramente foram adotadas em seu sentido técnico.25 Isso se deve ao fato de que a Constituição, além de um texto jurídi co, é um docum ento voltado para o exercício da cidadania, e, p o rta n to, sua linguagem deve ser acessível a todos, de form a clara, precisa, sintética, concisa.26 Mas a concisão, sem dúvida, perm ite um a m aior discricionariedade do intérprete que, no mais das vezes, se vê diante de expressões m uito amplas, vagas e imprecisas. Além disso, não se deve interpretar a n o rm a constitucional su p o n do que um term o foi utilizado de form a supérflua ou desnecessária, com o observa Linares Quintana:
?<1 Larenz , Karl. Ob. cit. p. 387. 35
Conferir, no sentido do texto: C arpizo , Jorge & Fix-Zam udio , Héctor. "Algunas reflec-
ciones sobre Ia intepretación constitucional en el ordenamiento m exicano". In:
tación constitucional,
La interpre-
p. 47; C unha Ferraz , Anna Cândida da. Ob. cit. p. 37; B astos , Celso
Ribeiro & B rito, Carlos Ayres.
Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais,
p. 19
e 20, lembrando passagem de Geraldo Ataliba. Quando se trata do critério literal de inter pretação das leis (não da norma constitucional), a regra se inverte, ou seja, a doutrina entende que, nessa hipótese, deve prevalecer o termo técnico em vez do significado vulgar do vocábulo. Verificar, neste último sentido: F errara , Francesco.
leis,
Interpretação e aplicação das
p. 139. 26 Linares Q uintana , Segundo V.
doctrina y Ia jurisprudência,
Regias para Ia interpretación constitucional según Ia
p. 65 e segs. Esse autor afirma que clareza e concisão são as duas
exigências fundamentais que devem satisfazer o estilo constitucional. No entanto, não é isso que se tem visto nas Constituições brasileiras, ao longo da história.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL As palavras que a Constituição emprega devem ser entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que resulte claramente de seu texto que o Constituinte quis referir-se a seu sentido legal técnico; e em nenhum caso há de se supor que um termo constitucional é supérfluo ou está a mais, senão que sua utilização obedeceu a um desígnio preconcebido dos autores da Lei Suprema.27
Mas o intérprete não deve se apegar excessivamente ao texto, deixando de lado o espírito da norm a, sob pena de cometer patentes equívocos.28 Aliás, a jurisprudência tam bém não tem prestigiado a interpre tação puram ente literal.29 Em razão disso é que o intérprete não deve eleger um único m éto do para buscar um a solução interpretativa ao problem a que se lhe apresenta. Deve, sim, partir da interpretação literal e tê-la com o limite, mas superá-la, valendo-se dos outros m étodos à sua disposição. ■I A IN TE R P R E T A Ç Ã O H IS T Ó R IC A
O m étodo histórico de interpretação leva em consideração a occasio legis, os trabalhos preparatórios de elaboração da regra e os prece
21
Linares Q uintana, Segundo V. Ob. cit. p. 65. Essa afirm ação de Linares Q uintana se ba
seia nas idéias de Black, Henry Cam pbell.
ofthe law,
Handbook of the construction and interpretation
p. 33, § 16. Também nesse sentido: Ferrara, Francesco. Ob. cit. p. 140; Barroso,
Luís Roberto. Ob. cit. p. 119 e segs.
28 Nesse sentido, Barroso, Luís Roberto. Ob. cit. p. 120. Anna Cândida da Cunha Fer raz (in: ob. cit. p. 40) também formula advertência parecida: "É claro, porém, que a interpre tação constitucional, enquanto aplica o método gramatical, tem alcance limitado, já que a letra expressa do texto, em que pesem as possíveis controvérsias, é critério bastante objetivo para conduzir a interpretação (...)". 29 Verificar, por exemplo, as seguintes decisões: (a) STF, Sessão 1,1a Turma, Ag. Reg. 200.733, rel. Min. Moreira Alves, j. 30.09.1997, DJ 14.11.1997, p. 58.780; (b) STF, Tribunal Pleno, RE 67.843, rel. Min. Luiz Gallotti, j. 20.05.1970, m.v.; (c) STF, Tribunal Pleno, ação dire ta de inconstitucionalidade, Medida Cautelar n. 1.428, rel. Min. Maurício Correa, j. 01.04.1996, DJ 10.95.1996, p. 15.131; (d) STJ, Mandado de Segurança n. 24.65/93-DF, rel. Min. Luiz Vicen te Cernicchiaro, DJ 06.12.1993, p. 26.632, v.u.; (e) STJ, 4a Turma, REsp 2.003/90-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJ 09.10.1990, p. 10.898, v.u.; (f) Tribunal de Justiça de São Paulo, Ap. 144.636-1, rel. Des. José Osório, j. 21.08.1991; (g) Tribunal de Justiça de São Paulo, Embargos Infringentes n. 129.834-1, rel. Des. Fonseca Tavares, j. 05.02.1992.
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dentes legislativos e, por esses meios, procura revelar a vontade históri ca do legislador, de forma a contribuir para entender o alcance da n o r m a objeto da interpretação. A occasio legis, nas palavras de Francesco Ferrara, consiste na “circuns tância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei”.30 Assim é que, por exemplo, a occasio legis da criação do habeas dataM foi, sem dúvida, o térm ino do período em que o Brasil foi subm etido à ditadura militar, quando os órgãos de informação coletavam dados sobre a convicção política, filosófica, além da conduta pessoal dos indivíduos, m antendo tais informações sob sigilo, mas utilizando-as para restringir direitos e im por sanções.32 Por sua vez, a occasio legis relativa à criação do m an d ad o de injunção foi a de com bater a “síndrom e da ineficácia” das norm as constitucionais. Mais relevante do que a occasio legis, no entanto, é a ratio legis, que consiste no fundam ento racional objetivo da norm a. Se a occasio legis será sempre a mesma, a ratio legis, que é o fundam ento racional da norm a, sua “força vivente móvel”, pode se alterar com o tempo. Sem a m udança formal do texto normativo, o sentido da regra pode se m o d i ficar, aplicando-se a novos casos e propiciando a cham ada interpreta ção evolutiva.33 Por sua vez, os trabalhos preparatórios consistem em discussões e debates nas comissões parlamentares, em projetos de criação das re gras, relatórios, análises e pareceres dos assessores técnicos, discursos, exposições de motivos, preâmbulos dos textos normativos, ou seja, 30 Interpretação e aplicação das leis, p. 142. Francesco Ferrara ainda dá o seguinte exemplo: "uma lei restritiva da liberdade de reunião pode ser publicada por ocasião e por motivo de perturbações internas: tais circunstâncias constituem a occasio legis, ao passo que o fundamento racional será dado pelo fim de restringir a liberdade". 31 Constituição Federal, art. 5o, LXXII: "conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo". A Lei n. 9.507, de 12.11.1997, ao regular o direito de acesso a informações e disciplinar o rito processual do habeas data, acrescentou que essa garantia pode ser utilizada, também, "para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado ver dadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável" (art. 7o, III). 32 Essas circunstâncias são abordadas por Temer, Michel. Ob. cit. p. 211. 33 F errara , Francesco. Ob. cit. p. 142.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
todos os esforços que foram realizados para a elaboração da norm a e que devem auxiliar a interpretação jurídica.34 Todavia, tais discussões e opiniões não devem vincular o intérpre te, m esm o porque “as idéias normativas dos autores da lei ficam geral m ente aquém das possibilidades de aplicação da n o rm a”.35 Ferrara é enfático ao refutar o valor dos trabalhos preparatórios, pois, segundo ele, tais trabalhos não passam de um a “caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o intérprete pode achar côm oda con firmação para as opiniões próprias”.36 Apesar de pertinentes, as críticas à interpretação histórica não de vem ser levadas ao ponto de excluí-la dos meios disponíveis a se alcan çar o sentido da norm a. Deve-se atentar, no entanto, para o fato de que o objeto da interpretação não é a mens legislatoris, mas a mens legis. É preciso buscar aquilo que na lei aparece objetivamente querido e não aquilo que o legislador quis. Buscando um meio termo, Carlos Maximiliano adverte que se de ve evitar os extremos nessa questão: Relativamente ao elemento histórico propriamente dito, há dois extremos perigosos: o excessivo apreço e o completo repudio, a)
Nem sempre basta olhar para trás, para descobrir a verdade. A massa dos fenômenos cresce dia a dia; de sorte que muitos existem sem equivalente nos tempos pretéritos, e prevalecem outros cujas mutações contínuas atingiram um grau tal que se tornou dificílimo reconhecer as raízes múltiplas de todo definitivo. Cumpre não se aferrar em demasia ao passado o hermeneuta, não insistir muito em interpretar o Direito moderno pelo antigo, expresso em leis, jurisprudência e livros de doutrina ou de prática. Às vezes não foram mantidas
34A idéia de o critério histórico auxiliar a interpretação jurídica pode ser encontrada em Larenz , Karl. Ob. cit. p. 399. Esse entendimento é compartilhado por Ferrara (ob. cit. p. 144), que, apesar de suas críticas à interpretação histórica, reconhece que o "precioso auxílio para a plena inteligência dum texto resulta de se descobrir a sua origem histórica, e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até ao arranjo definitivo o assunto no presente. Fórmulas e princípios que considerados só pelo lado racional parecem verdadeiros enigmas, encontram a chave de solução numa razão histórica, no rememorar de condições e con cepções dum tempo longínquo que lhes deram uma fisionomia especial". 35 Larenz, Karl. Ob. cit. p. 397. 36 Ferrara , Francesco. Ob. cit. p. 146.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL as regras todas (pelo menos com o mesmo espírito e igual extensão); podem também os novos institutos ser incompatíveis com os anteriores e, portanto, não ter com estes ligação alguma; talvez o conhecimento de outras disposi ções valha apenas pelo contraste, sirva para verificar o quanto se mudou de orientação jurídica relativamente ao assunto, b)
Do repúdio sistemático do passado, resulta, por sua vez, um grande mal: o salto nas trevas, o excesso de modernismo, abandono da tradição compatí vel, pelo menos até certo ponto, com as normas em vigor. A conseqüência lógica de tal processo há de ser introduzir, à força, nos textos um espírito ou sentido que aos mesmos é estranho.37
Evitando os extremos seria possível, portanto, perceber a im portân cia da interpretação histórica, que é inquestionável, mas, repita-se, devese atentar para o fato de que o objeto da interpretação não é a mens legislatoris, mas a mens legis, ou seja, é necessário buscar aquilo que na lei aparece como objetivamente querido e não aquilo que o legislador quis. ■I
A IN T ER P R ET A Ç Ã O
T ELE O LÓ G IC A
Ao interpretar um a norm a, o intérprete deve procurar o fim a que ela se destina, encontrando seu espírito, revelando seus objetivos. O bem jurídico que o ordenam ento jurídico pretende proteger e o valor a ser alcançado pela n o rm a devem ser desvendados pelo intérprete. Essa é a gênese do que se denom ina “interpretação teleológica”. Os tribunais brasileiros têm prestigiado a interpretação teleológi ca, com o se pode verificar da decisão transcrita a seguir:38
37 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 140 e 141. 38Outras decisões no mesmo sentido podem ser mencionadas: (a) "Salário-mínimo. Vinculação proibida. A teor do disposto no inc. IV do art. 7o da Constituição Federal, tem-se como proibida a adoção do salário-mínimo como unidade monetária, ou seja, visando à adoção de fator de indexação. Longe fica de configurar preceito contrário à Carta o que re vela o salário-mínimo como base de incidência da percentagem alusiva ao adicional de insalubridade. Exsurge com relevância maior a interpretação teleológica, buscando-se o real obje tivo da Norma Maior" (STF, Sessão 2, 2a Turma, Ag. Reg. 177.959, rel. Min. Marco Aurélio, j. 04.03.1997, DJ 23.05.1997, p. 21.731, v.u., improvido o recurso); (b) STF, Sessão 1, 1a Turma, RE 158.564, rel. Min. Celso de Mello, j. 09.03.1993, DJ 30.04.1993, p. 7.571, v.u., não conhecido o recurso.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Inconstitucionalidade. Incidente. Deslocamento do processo para o órgão especial ou para o pleno. Desnecessidade. Versando a controvérsia sobre ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República — o Supremo Tribunal Federal — descabe o deslo camento previsto no art. 97 do referido Diploma maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica interpretação teleológica do art. 97 em comento, evi tando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, pela vez primeira, a pecha de inconstitucionalidade argüida em relação a um certo ato normativo (STF, Sessão 2, 2a Turma, Ag. Reg. 168.149, DJ 04.08.95, p. 22.520, rel. Min. Marco Aurélio, recurso improvido, v.u.).39
D ando preponderância à interpretação teleológica quando se trata da exegese constitucional, Carlos Maximiliano assevera: Considera-se o direito como uma ciência primariamente normativa ou
finalistica; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, te leológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida.40
No cam po legislativo, a Lei de Introdução ao Código Civil impõe a teleologia" com o critério a ser adotado pelo juiz ao aplicar a norm a, prescrevendo que ele deverá se ater aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem com um .
39 Esse entendimento do STF acabou consagrado pela Lei n. 9.756/98, que incluiu o parágrafo único ao art. 481 do Código de Processo Civil. 40 Ob. cit. p. 151, 152 e 314. 41 Caldas Aulete (in: Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, vol. 5, p. 3.526) explica que a palavra "teleologia" deriva do grego teleos (final) + logos (tratado) e significa: "ciência das causas finais; ciência que admite a existência de uma causa primordial preestabelecida de todos os fenômenos, e a tendência deles para um fim necessário".
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No plano constitucional, as norm as principiológicas,42 especial m ente as conhecidas com o programáticas — que serão analisadas mais adiante — , indicam claramente um objetivo a ser alcançado, um fim a se buscar, vinculando, dessa forma, o legislador ordinário, bem com o todos os demais intérpretes da Constituição, sejam judiciários, administrativos ou doutrinários. M
A IN T ER P R ET A Ç Ã O
SIS T E M Á T IC A
N en h um preceito normativo deve ser interpretado isoladamente, tendo em vista que o direito objetivo não é um aglomerado caótico de norm as, um conjunto aleatório de regras, mas um todo harm ônico, constituído de disposições que se relacionam de form a coordenada ou de m aneira subordinada. A interpretação de um dispositivo isolado pode conduzir o intér prete a equívocos que não ocorreriam se o ordenam ento jurídico fosse tom ado com o um a unidade. Tratando am plam ente sobre esse tema, Pietro Merola Chierchia afirma que, em relação à Constituição, a interpretação sistemática não deve assumir para o intérprete um caráter de simples m étodo de tra balho, mas ser um a característica essencial, no sentido de que a inter pretação, ainda que de um a n o rm a singular, é sempre e necessaria m ente a interpretação do sistema constitucional inteiro. 13 Por sua vez, Luís Roberto Barroso,14 relacionando os métodos de interpretação sistemático e teleológico, no plano constitucional, explica: Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível compreender 42 Por exemplo, o art. 3o da Constituição Federal, no título destinado a estabelecer os "princípios fundamentais", estatui quais são os objetivos do Estado brasileiro: "Art. 3o Cons tituem-se objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". 43 C hierchia , Pietro Merola. Uinterpretazione sistematica delia Costituzione, p. 207. Con ferir também o capítulo final, p. 243 e segs., que aborda especificamente a interpretação sis temática da Constituição. 44 Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitu
cional transformadora.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL integralmente alguma coisa — seja um texto legal, uma história ou uma composição — sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo. A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital.
O m étodo sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado alea tório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harm onicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenam ento jurídico. Por meio dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto norm ativo geral e particular, esta belecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as n o r mas jurídicas.'15 O Suprem o Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm dado prevalência à interpretação sistemática nas questões levadas até eles para decisão,16 com o se pode notar, p o r exemplo, da seguinte ementa: Recurso em habeas corpus. Constitucional. Penal. Pena. Unificação. Limi te. Livramento condicional. CP (Art. 75). O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 anos. O tempo máximo deve ser considerado para todos os efeitos penais. Quando o Código registra o limite das penas, projeta particularidade do sistema para ensejar o retorno à liberdade. Não se pode, por isso, suprimir os institutos que visam a adaptar o condenado à vida social como é exem plo o livramento condicional. Na Itália, cuja legislação contempla o "er-
45 Ob. cit. p. 127. 'I6 (a) STF, Sessão 2, 2a Turma, Recurso em Mandado de Segurança n. 21.992, rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.09.1994, DJ 27.10.1994, p. 29.165, v.u., recurso improvido; (b) STF, Sessão 2, 2a Turma, Recurso em Mandado de Segurança n. 18.899, rel. Min. Aliomar Baleeiro, j. 27.08.1968, 07 11.10.1968; (c) STF, Sessão 2, 2a Turma, Recurso em Habeas Cor pus n. 72.402, rel. Min. Marco Aurélio, j. 06.06.1995, DJ 29.09.1995, p. 31.903, concedido em parte; (d) STJ, 6a Turma, Recurso em Habeas Corpus n. 1.106/91-RJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 16.04.1991, DJ 06.05.1991, p. 5.673, v.u., provimento parcial ao recurso, para reformar a decisão recorrida e, em conseqüência, conceder a ordem de habeas corpus tão-somente para possibilitar que o paciente apele em liberdade.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL gastolo" (prisão perpétua), foi, quanto a ele, promovida argüição de in constitucionalidade. A Corte Constitucional daquele país, todavia, rejei tou-a ao fundamento de admissível, na hipótese, o livramento condicio nal. A Constituição do Brasil veda a pena perpétua (art. 5o, XLVII, b). Interpretação sistemática do direito penal rejeita, por isso, por via infraconstitucional, consagrá-la na prática. O normativo não pode ser pensa do sem a experiência jurídica. Urge raciocinar com o tempo existencial da pena. Esta conclusão não fomenta a criminalidade. O art. 75, § 2°, CP, fornece a solução: sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação (STJ, 6a Turma, Recurso em Habeas Corpus n. 3.808/94-SP, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 26.09.1994, DJ 19.12.1994, p. 35.330, m.v., conhecido e dado provi mento ao recurso).
C o n fo rm e se verá adiante, esse m éto d o clássico de interpretação constitucional tem ín tim a relação com os princípios de in te rp re tação constitucional d en o m in a d o s princípio da unidade da C onsti tuição e princípio da harm onização ou da concordância prática.
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A IN T E R P R E T A Ç Ã O EV O LUTIVA
Em razão de m udanças históricas ou de fatores políticos e sociais, mas sem violar o texto da Constituição, é possível conferir à n orm a novos conteúdos, por meio do que se costuma cham ar de interpreta ção evolutiva. Em outras palavras, a interpretação evolutiva é um p ro cesso informal de alteração constitucional. Com ela, evita-se que a idéia posta pelo constituinte imobilize o futuro e as novas gerações. Por meio da interpretação evolutiva é pos sível m anter a Constituição atual e viva, adaptando seu conteúdo a novas exigências e necessidades, sem contrariar seu texto. Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conce dendo ordem de habeas corpus sob o fu n d am en to de conferir um a interpretação coerente com a evolução histórico-política dos in stitu tos jurídicos: Habeas corpus. Constitucional. Comercial. Prisão civil. Alienação fiduciária. A Constituição da República autoriza a prisão civil por dívida em
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL dois casos: inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimen tícia e do depositário infiel (art. 5o, LXVII). Cumpre, no entanto, distinguir duas situações: a) o depósito e a obrigação principal; b) o depósito e a obrigação acessória. No primeiro caso, o depositário deve restituir a coisa, conforme o convencionado; no segundo, o depósito reforça a obrigação de cumprimento de contrato. A prisão civil é restrita à primeira hipótese. Impossível estendê-la à segunda, sob pena de a restrição ao exercício do direito de liberdade ser utilizada para impor ao devedor honrar dívida civil.
Interpretação coerente com a evolução histórico-polltica dos institutos juridicos (STJ, 6a Turma, Habeas Corpus n. 2.155/93-SP, rel. Min. Anselmo Santiago, rel. do acórdão Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 22.03.1994, DJ 17.10.1994, p. 27.916, RSTJ 67/145, m. v., concederam a ordem de
habeas corpus, vencido o sr. Min. rel.).
Anna Cândida da Cunha Ferraz explica que, sem contrariar o texto li teral da Constituição, se admitem novos conteúdos a ele, tendo em vista “mudanças históricas ou de fatores políticos ou sociais, que não estavam presentes na mente dos constituintes quando elaboraram a Constituição”.47 Portanto, sem se apegar à vontade do legislador, mas levando em conta as circunstâncias que fizeram nascer a lei, bem como aquilo que é objetivamente querido pela regra, o intérprete deve se valer da interpre tação histórica para alcançar o sentido da norm a e, sem modificar seu texto, adaptá-la às novas realidades, em contínua interpretação evolutiva. ■■ IN T E R P R E T A Ç Ã O EX TE N S IV A E IN T E R P R E T A Ç Ã O ESTRITA
Carlos Maximiliano48 expõe que os intérpretes costum am recorrer à interpretação extensiva quando o texto positivado é m uito estreito, contendo expressões inexatas ou inadequadas a traduzir, em sua pleni 47 Ob. cit. p. 45. Antonio Pesovecchio Li Bassi (ob. cit. p. 62-4), no mesmo sentido de Anna Cândida da Cunha Ferraz, afirma que o intérprete da norma constitucional deve aplicar, em seu trabalho, o critério evolutivo, levando em conta a realidade, possibilitando uma con tínua evolução da norma singular em relação ao sistema constitucional. Adverte esse mesmo autor que a norma constitucional, por sua substancial elasticidade, se presta mais facilmente à interpretação evolutiva. ',8 Ob. cit. p. 198 e segs.
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tude, o sentido que se objetivava alcançar. Da interpretação restritiva, ou estrita, valem-se quando o texto expressa mais do que se pretende exprimir. E, p o r fim, a interpretação declarativa ocorre quando se pre tende desvendar o significado da norm a, quando essa se revela obscu ra ou ambígua. Por seu turno, Francesco Ferrara explica que, se não houver coin cidência entre o sentido literal do texto e a vontade da lei, há que se “operar um a retificação do sentido verbal na conform idade e na m edi da do sentido lógico”.49 A imperfeição lingüística pode manifestar-se de duas formas: ou o legis lador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser demasiado genérica, e compreender aparentemente relações que conceitualmente dela são excluídas, ou demasiado restricta, e não abraçar em toda sua amplitude o pensamen to visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso ou por defeito. A interpretação, para corresponder o que está dito ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro há interpretação extensiva.50
Nesse sentido, a interpretação é tom ada com o um a atividade de correção da n o rm a defeituosa, obscura, ambígua. Mostra-se inaplicável, portanto, às regras claras e precisas. Todavia, a idéia de que os term os inequívocos independem de in terpretação deve ser refutada, com o o fez Karl Larenz de form a bas tante objetiva: A afirmação, que se ouve com freqüência, de que os termos inequívocos não carecem de interpretação induz tanto mais em erro, quanto, feita a abstração de números e nomes próprios, a maior parte dos termos da lin guagem corrente, e também da linguagem legal, não são inequívocos. Já
49 Ob. cit. p. 149. 50 Ferrara , Francesco. Ob. cit. p. 149. No mesmo sentido, conferir Linares Q uintana , Se gundo V. Ob. cit. p. 19.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL a constatação de que do sentido literal resulta "inequivocamente" este ou aquele significado é, em regra, o resultado de uma interpretação.51
Buscando o sentido exato do texto da n o rm a, realiza-se a ativida de interpretativa para a aplicação da regra ao caso concreto. Se o efei to dessa atividade for a aplicação do texto norm ativo a um caso em que há dúvida razoável sobre sua aplicação, tem -se a interpretação extensiva. Por o u tro lado, q u an d o se evita a dilatação do alcance n o rm a ti vo, sem supressão de coisa alguma, não se o p tan d o pela aplicação da regra a u m caso em que a referida dúvida existe, tem -se a in terp re tação estrita. “N um caso dilata-se o alcance do preceito; no outro não se res tringe: deixa-se de dilatar.”52 Assim, a cham ada interpretação declarativa, para Carlos Maximiliano, corresponde à denom inada interpretação estrita, pois, esta sim revela a congruência entre o elemento gramatical e o elemento lógico da interpretação.53 Na realidade, as interpretações extensivas e estritas têm a ver mais de perto com a aplicação da norm a, enquanto m om en to final do p ro cesso interpretativo, em que ocorre a concretização do preceito n o rm a tivo, do que com interpretação corretiva do texto legal, m esm o porque, como já aludido por Karl Larenz, se o sentido literal do com ando é, por um lado, o ponto de partida do intérprete, por outro, determina o limi te da interpretação, pois aquilo que está para além do sentido possível não pode valer como conteúdo da lei.54
51 Ob. cit. p. 414 e 415. No sentido do texto, ou seja, que toda norma jurídica precisa ser interpretada, conferir também B arroso , L u ís Roberto. Ob. cit. p. 99 e segs.; M iranda , Jorge. Ob. cit. p. 253; B onavides, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 398 e 399. 52 M aximiliano , Carlos. Ob. cit. p. 201. 53 Francesco Ferrara (in: ob. cit. p. 149-51), ao tratar do resultado da interpretação, explica, de forma diversa da adotada por Carlos Maximiliano, que a "interpretação, para fa zer corresponder o que está dito ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro há interpretação
extensiva". 54 Ob. cit. p. 414 e 415.
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ESPECI F I C I DADES DA I N T E R P R E T A Ç A O DAS N O R M A S C O N S T I T U C I O N A I S
Se a interpretação constitucional não deixa de ser u m a interpre tação jurídica, ela com porta, todavia, especificidades.53 Três pontos influenciam diretamente o trabalho interpretativo. O primeiro deles é o fato de as normas constitucionais serem o funda mento de validade das demais regras do ordenam ento jurídico. O segundo diz respeito ao conteúdo político das disposições da Consti tuição e o terceiro, à peculiar estrutura da linguagem do texto cons titucional, contemplando, no mais das vezes, expressões amplas, am bí guas, indeterminadas.
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I N IC I A L I D A D E F U N D A N T E
DAS N O R M A S C O N S T IT U C IO N A IS
Assumindo o ordenam ento jurídico status de sistema,56 as norm as que o com põem vinculam-se p o r meio de relações de coordenação e subordinação. 55 Jorge Miranda (in: ob. cit. p. 255 e 256) trata essas especificidades como dificulda des ou fatores de perturbação: "Existe, pois, hoje o sentido da importância da interpretação constitucional, mas existe, ao mesmo tempo, a noção das dificuldades ou (doutro ângulo) dos fatores de perturbação que se deparam aos seus obreiros: desde logo, a variedade de normas constitucionais quanto ao objeto e quanto à eficácia (como acaba de se ver) e a incompleição ou a indeterminação de muitas delas; a proximidade dos fatos políticos e (na expressão, que vale a pena aqui repetir, de Mortati), a 'rebeldia' deste perante os quadros puramente lógicos da hermenêutica jurídica; a influência ineliminável da ideologia de cada intérprete; os diferentes critérios por que se movem os órgãos políticos, os órgãos adminis trativos e os órgãos jurisdicionais (sendo os primeiros, porventura, os destinatários mais ca racterísticos da Constituição) e as possíveis atitudes dos respectivos titulares; a origem compromissória de não poucas Constituições, inspiradas em princípios diferentes, quiçá discrepantes (como a Constituição portuguesa de 1976 ou a brasileira de 1988)". 56 Sobre a noção de sistema, conferir Norberto Bobbio (in: Teoria do ordenamento jurídico, p. 71), que explica: "Entendemos por 'sistema' uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídi co constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relaciona mento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação". Conferir ainda a noção de ordenamento jurídico positivo como linguagem em V ila n o v a , Lourival. As estruturas lógicas e
o sistema do direito positivo.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A particularidade da n o rm a constitucional consiste na posição hierarquicamente superior em que ela se encontra no ordenam ento jurídico, dando fundam ento de validade às demais regras do sistema, estabelecendo com o elas deverão ser elaboradas e qual o conteúdo que poderão ou não ter. Em razão disso, a interpretação constitucional não deve buscar referência nas demais norm as do sistema. Deve ocorrer, sim, o contrá rio. O intérprete, ao extrair o sentido de um a regra infraconstitucional, deve partir da Constituição. Por ser a n o rm a constitucional fundante, originária, sua interpre tação deve buscar referência nela própria, valendo-se dos critérios, parâm etros e princípios previstos na própria Constituição.57 Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito com entam essa especifi cidade da interpretação constitucional da seguinte forma: Pois bem, a Constituição é norma que repercute sobre o direito ordinário, sem reciprocidade. Projeta influência sobre os demais modelos jurídicos, mas não é influenciada por estes. Vale dizer, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas a partir da Constituição, com base nela, mas não o contrário. (...) Em palavras outras, o que importa reter é a noção de auto-referência cons
titucional, visto que a interpretação de tais normas não se pode valer de parâmetros, critérios e princípios que não os nelas mesmas substanciados. É uma especificidade exegética, portanto, ressaída da posição singular assumida pelas regras constitucionais, nos quadrantes do ordenamento jurídico.58
A inicialidade fundante das norm as constitucionais, com o se verá, revela-se com o um dos argum entos básicos para desenvolver a teoria 57 José Carlos Vieira de Andrade (in: Os direitos fundamentais na Constituição por tuguesa de 1976, p. 120) denomina essa situação de "solidão constitucional" e expõe: "elas [as normas constitucionais] constituem o topo do ordenamento jurídico, estão acima das restantes normas, desenquadradas delas por força da sua própria superioridade, dependem intimamente da evolução social, política e cultural em cada país, resultam muitas vezes de revoluções ou mutações bruscas — e tudo isso torna difícil a sua referência a uma qualquer continuidade ou tradição dogmática". 58 Ob. cit. p. 13-5.
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da interpretação conform e a Constituição, evitando um a interpre tação da Constituição conforme a lei.59
m
O C O N T E Ú D O P O L ÍT IC O DAS N O R M A S C O N S T IT U C I O N A IS
A Constituição é o docum ento jurídico que rege as relações de p o der em um a sociedade, fixando a maneira de seu exercício, a forma e o sistema de governo, a estrutura dos órgãos do Estado, bem com o os limites de sua atuação, especialmente por meio da previsão dos direi tos fundamentais.60 Assim, a n o rm a constitucional se ocupa da matéria política61 e, portanto, com alto grau ideológico. Exige, assim, que o intérprete se valha de elementos extrajurídicos para viabilizar o alcance exato do sentido da regra.62 Sem dúvida, isso se dá em todos os ram os do direito, mas no plano constitucional essa questão assume m aior intensidade e, conseqüente
59 Todavia, como advertem Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito (in: ob. cit. p. 15), há "normas embutidas na Constituição que reclamam normação ulterior, completante das suas prescrições. E normas cujo comando admite restrição, ou redução, por meio de leis tam bém ulteriormente editadas. Nestes casos, embora cuidando-se de manifestação normativa de um poder simplesmente constituído, o certo é que as prescrições da Lex Maxima são inte gradas pela vontade desse poder ordinário. E por força mesma dessa integração, dá-se uma unidade monolítica de comandos constitucionais e infraconstitucionais, de sorte que a normatividade dos primeiros só se perfaz com a normatividade dos segundos". 60 Essa noção vem desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que previa, em seu art. 16, o seguinte: "Toda sociedade na qual não está assegurada a garan tia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". 61 Anna Cândida da Cunha Ferraz (in: ob. cit. p. 28), quanto a esse ponto, faz a seguinte alusão: "A natureza política da norma constitucional é intrínseca à Constituição, que rege a estrutura fundamental do Estado, atribui competências aos poderes, assegura os direitos humanos, fixa o comportamento dos órgãos estatais e serve, enfim, de pauta à ação dos go vernos. Ao desdobrar tal conteúdo, a Constituição positiva os princípios políticos fundamen tais da organização do Estado". 62 Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito (in: ob. cit. p. 17) asseveram que "é acentua da a repercussão desse elevado teor ideológico de que se impregna a realidade política, no processo de interpretação das normas constitucionais. Estas, para a apreensão do seu mais íntimo e fiel significado, passam a solicitar o aporte complementar de elementos extra-sistemáticos, em certa medida, hospedados muito mais na dinâmica dos fatos que na estática da positivação formal".
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
mente, mais importância, dificultando a tarefa interpretativa.63 Jerzy Wróblewski m enciona essa especificidade atinente à interpretação constitucional: Uma das peculiaridades da interpretação constitucional está em seu ca ráter político (...). O que nos importa é assinalar que a interpretação cons titucional está, de forma usual, mais estreitamente unida a problemas políticos que a interpretação de outras regras de nível hierárquico legal e infralegal. A interpretação de regras constitucionais decide mais sobre problemas politicamente relevantes e está vinculada a mais opções políti cas que a interpretação de outras regras.64
Em contrapartida às dificuldades advindas da própria característi ca ontológica da Constituição e ao fato de esta tratar diretam ente de questões políticas, im po nd o-se com o in stru m en to de regência do poder, o entendim ento acerca do texto constitucional não se m antém estático, mas perm ite que, dinam icam ente, o intérprete possa adaptar a regra às novas realidades e exigências políticas, favorecendo a inter pretação evolutiva. H
A E S TR U T U R A DA LIN G U A G E M N O R M A T I V O - C O N S T I T U C IO N A L E OS C O N C E IT O S J U R ÍD IC O S VAGOS E A M B ÍG U O S
As norm as constitucionais, p o r serem regras fundantes do orde nam ento jurídico, com um ente contem plam disposições de princípios, vazadas em linguagem coloquial e sintética.
63 Para uma visão crítica em relação às dificuldades de interpretação da norma consti tucional em razão de seu caráter político, conferir C allejòn , Maria Luisa Balaguer. Interpretación de la Constitución y ordenamiento jurídico, p. 39-41. Carlos Maximiliano (in: ob. cit. p. 305), por sua vez, afirma que o "Direito Constitucional apóia-se no elemento político, essencialmente instável, a esta particularidade atende, com especial e constante cuidado, o exegeta". 64 Ob. cit. p. 111 e 114. Nesse mesmo sentido, conferir Li B assi, Antonio Pensovecchio. Ob. cit. p. 79, ressaltando as dificuldades de interpretação em razão de a norma constitucional se ocupar de matéria política. Verificar também C hierchia, Pietro Merola. Ob. cit. p. 100-2.
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Com efeito, o fato de a Constituição ser um docum ento que con fere fundam ento de validade a todas as demais norm as im põe que ela aborde os mais variados temas dos mais diversos ram os do direito e da vida social, com o um todo, em poucas palavras. Passa a ser, então, da própria gênese do texto constitucional esta belecer prescrições de natureza “aberta”, situação esta que, aliás, possi bilita a atualização do entendim ento jurídico-constitucional, sem necessidade de alteração formal do texto da norm a. A generalidade das disposições constitucionais permite a compreensão, ao longo do te m po, de situações muitas vezes não contempladas pelo constituinte.65 Nesse sentido, a “abertura” não deve ser tratada com o um mal inevi tável a ser combatido, mas com o u m a condição imprescindível para interpretar a m esm a regra da Constituição através dos tempos, como observa Denninger.66 Todavia, não há com o negar que essa “abertura” dos preceitos constitucionais traz dificuldades a serem superadas pelo intérprete que busca desvendar o sentido da regra, visto que amplia as hipóteses de entendim entos possíveis do dispositivo analisado. E m uitas vezes essas dificuldades surgem quando se está diante de expressões com o relevância, urgência, segurança da sociedade e do Es tado, dignidade da pessoa hum ana, crueldade, opressão, notável saber, reputação ilibada, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, sociedade livre, justa e solidária, desenvolvimento nacional, pobreza, marginalização, progresso da hum anidade.67
65 Linares Quintana (in: ob. cit. p. 42), desenvolvendo essa idéia, expõe: "0 caráter de fundamental e supremo que reveste o Direito da Constituição se traduz, tecnicamente, em normas de grande estabilidade (...), redigidas em um estilo diferente do que as leis ordinárias, tratando-se de preceitos destinados a reger durante largo tempo, de reforma difícil, e cuja generalidade permite compreender, no curso do tempo, situações muitas vezes não contem pladas pelo constituinte". 66 Erhardo Denninger (in: ob. cit. p. 179 e 180 explica que "quanto mais atentamente se considera a natureza 'aberta' dos mais importantes princípios e normas constitucionais, tanto menos aparece como um mal inevitável a ser combatido pela jurisprudência; a 'aber tura' cobra assim o valor de condição elementar para a ação integradora, através do tempo, da Constituição e interpretação constitucional". 67 Essas expressões foram tiradas da Constituição Federal de 1988.
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Tratando das “incertezas significativas”, Luis Alberto Warat classifica-as com o derivadas de ambigüidade ou vagueza, aquela trazendo incertezas conotativas e esta, denotativas. Para ele, a ambigüidade, em geral, “se apresenta quando um m esm o term o tem mais de um signifi cado”. Um term o am bíguo existiria “q u an do sob um m esm o rótulo se agrupam características conotativas basicamente diferentes, impossí veis de precisar, fora do contexto, dada a plurivalência de seus núcleos significativos.”68 A ambigüidade dos term os jurídicos serve de porta de entrada para diversas valorações metajurídicas e fornece um a grande abertura significativa. A vagueza, por sua vez — n u m a referência metafórica m enciona da por Luis Alberto Warat — pode ser explicada com o a natureza dos term os da linguagem que (...) apresenta uma zona de luminosidade (a composta pelos termos onde não existe nenhuma dúvida em relação à sua inclusão na classe); uma zona de obscuridade (a composta pela classe dos objetos ou situações que, com toda certeza, não entram na extensão do termo); e uma zona cinzenta ou de penumbra, onde existem legítimas dúvidas se o fenô meno, objeto ou exemplar é suscetível de ser chamado de um modo ou outro.69
A conclusão de Luis Alberto Warat é que as imprecisões dos ter m os jurídicos não se revelam com o inconvenientes transitórios, mas sua presença se m ostra inevitável toda vez que a linguagem tenha de se referir ao m u n d o real.70
Luis Alberto. El derecho y su lenguaje: elementos para una teoria de Ia comunicación jurídica, p. 123 e 124. 69 Ob. cit. p. 128 e 129. Nesse mesmo sentido, conferir B andeira de M ello, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional, p. 29: "De qualquer deles [conceitos imprecisos] se pode dizer que compreendem uma zona de certeza positiva, dentro da qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria abrigada. As dúvidas só têm cabi da no intervalo entre ambas". 70 Ob. cit. p. 130. 68 W
arat,
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Celso Antônio Bandeira de Mello explica que esses conceitos imprecisos, vagos, fluidos, indeterm inados “têm algum conteúdo determ inável, isto é, certa densidade m ínim a, pois, se não o tivessem, não seriam conceitos e as vozes que os designam sequer seriam palavras.”71 Com precisão, Eros Roberto Grau afirma que, na realidade, não existem conceitos jurídicos indeterminados. Há, sim, ambigüidade ou imprecisão dos “term os” que expressam os conceitos jurídicos. “Porém, não obstante sejam indeterm inados esses termos, expressam signifi cações sempre determináveis. O conceito jurídico, pois, é sempre o signo de uma significação determinada; e de uma apenas significação”72 E a determinação do sentido do conceito deve se dar por intermédio da interpretação, quando da aplicação da regra ao caso concreto. Portanto, a determinação dos term os que expressam o sentido dos conceitos deve ocorrer pela via interpretativa, quando da aplicação da regra que o contempla, levando em consideração o contexto em que a norm a está inserida, visando à dim inuição do cam po de possíveis d ú vidas, “adensando” o pouco de fluidez que resta no conceito.73 71 Discricionariedade cit. p. 28 e 29. No mesmo sentido, conferir M oreira , Vital & C ano tilho , José Joaquim Gomes. Fundamentos da Constituição, p. 56. 72 G rau , Eros Roberto. Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 76. 0 autor distingue, ainda, o papel do Judiciário diante da discricionariedade ou dos conceitos indeterminados, afirmando (p. 74) que "a discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas ou entre indiferentes jurídicos, ao passo que a aplicação de con ceitos indeterminados é um caso de aplicação da lei. A conseqüência mais relevante que se extrai dessa distinção respeita ao papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário diante de ambas as hipóteses. Se não lhe cabe, por um lado, a apreciação da decisão discricionária, por outro lhe cumpre, inquestionavelmente, manifestar-se sobre a aplicação, pela Administração, dos conceitos indeterminados". 73 Conferir B andeira de M ello, Celso Antônio. Discricionariedade cit. p. 30 e 31, que diz: "Além disto, tem-se que admitir, ainda, que uma interpretação destes conceitos fluidos, tam bém chamados de 'indeterminados', se faz contextualmente, ou seja, em função, entre ou tros fatores, do plexo total de normas jurídicas, porque ninguém interpreta uma regra de Direito tomando-a como um segmento absolutamente isolado. (...) Assim, agiria de modo estulto quem pretendesse interpretar algum conceito normativo tomando-o desligadamente do todo contextual de que faz parte. Esse todo contextual termina por adensar um pouco o que haja de fluidez nesse conceito, embora não elimine sempre, necessariamente e de modo completo, o campo de possíveis dúvidas". Essa interpretação que se faz "contextualmente" nada mais é do que a interpretação sistemática, abordada em item anterior deste trabalho. O termo "contexto" é utilizado por J. Baptista Machado (in: Introdução ao direito e ao dis curso legitimador, p. 183) para analisar o elemento sistemático de interpretação: "Este ele-
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PRINCÍPIOS d e i n t e r p r e t a ç a o CONSTITUCIONAL
Os princípios de interpretação constitucional objetivam orientar a atividade do intérprete de form a a apontar as possíveis soluções para os problemas postos à sua apreciação.7'1 A doutrina lista vários princípios de interpretação constitucional. Alguns deles, com o o da unidade da Constituição, o da harm onização (tam bém denom inado princípio da concordância prática), o da pre sunção de constitucionalidade das leis, o da razoabilidade e o da inter pretação conform e a Constituição, serão abordados de form a sistemá tica nos tópicos seguintes. Outros, no entanto, como o da supremacia da Constituição, o da força normativa da Constituição e o princípio da efetividade, foram ou serão tratados de maneira diluída em outros pontos do livro, especialmente nos capítulos relativos à eficácia e à aplicabilidade das normas constitucionais, bem como no item referente à inicialidade fundante dessas regras. ■I OS P R IN C ÍP IO S DA U N ID A D E DA C O N S T IT U IÇ Ã O E DA H A R M O N IZ A Ç Ã O
Ao tratar da interpretação sistemática, restou claro que as norm as não devem ser interpretadas isoladamente, visto que o ordenam ento jurídico não se caracteriza com o u m em aranhado caótico de regras, mas com o um sistema harm ônico. Nesse sentido, o princípio da unidade da Constituição, com o des dobram ento do m étodo sistemático de interpretação, impõe ao intér prete a obrigação de não considerar as norm as constitucionais iso ladamente, mas com o parte integrante de u m sistema unitário. mento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normati vo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos)". 7,1 Para uma análise crítica dos "princípios de interpretação constitucional" e para a tese de que eles não desempenham papel relevante na interpretação da Constituição, conferir Silva, Virgílio Afonso da (org.) "Interpretação constitucional e sincretismo metodológico". In: Silva, Vir gílio Afonso da. Interpretação constitucional, p. 115-43.
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Com ele, portanto, “se quer significar que a constituição deve ser interpretada de form a a evitar contradições (antinomias, antagonis mos) entre suas n orm as”.75 Isso porque todas as prescrições que assum em a forma de norm as constitucionais se encontram em um m esm o patam ar hierárquico, isto é, por fazerem parte da Constituição formal, estão em um m esm o pla no, não existindo relação de subordinação entre elas. Com efeito, a hierarquia formal entre as normas ocorre quando uma delas (a superior) dá fundamento de validade à outra (a inferior). Do ângulo inverso, pode-se dizer que existe relação de subordinação entre duas regras quando uma delas (a inferior) vai buscar na outra (a superior) a maneira como deverá ser criada e o conteúdo que poderá ou não ter. Um a vez que entre as n orm as originariam ente postas na C onsti tuição não há com o vislum brar esse m ecanism o, não se adm ite a hipótese de hierarquia entre regras editadas pelo p o d er constituinte originário.76 As conseqüências desse raciocínio são duas. Primeiro: não existem normas originariamente constitucionais inconstitucionais. A sua acei tação consagraria um a exceção ao princípio da unidade da Constituição. Segundo: havendo aparente conflito entre as regras constitucionais, le vando em conta a Constituição em sua globalidade, deve o intérprete harmonizá-las, evitando o sacrifício total de um a em relação à outra.77
Direito constitucional cit. p. 1.096. Luis Roberto (Interpretação e aplicação da Constituição cit. p. 187) alerta
75 C anotilho , José Joaquim Gomes. 76 B arroso ,
para o fato de que a inexistência de hierarquia formal entre as normas constitucionais não implica dizer que não exista hierarquia axiológica entre elas. Explica o autor, ao se referir às cláusulas pétreas e à imutabilidade dos temas relacionados aos princípios federativo, democrático e republicano: "Porque assim é, deve-se reconhecer a existência, no Texto Cons titucional, de uma hierarquia axiológica, resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios". José Afonso da Silva (in: Curso de direito constitu cional positivo, p. 47 e 48) faz referência à supremacia material e à supremacia formal da Constituição, afirmando que se reconhece "a primeira até nas constituições costumeiras e nas flexíveis. Isso é certo do ponto de vista sociológico, tal como também se lhes admite rigidez sociopolítica. Mas, do ponto de vista jurídico, só é concebível a supremacia formal, que se apóia na regra da rigidez, de que é o primeiro e principal corolário". 11 Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito constitucional cit. p. 1.098.
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A teoria de Bachof
A concepção sobre a existência de norm as constitucionais incons titucionais surge, sistematizada, na aula inaugural proferida por O tto Bachof, em julho de 1951, em Heidelberg.78 Bachof prevê diferentes possibilidades de surgim ento de norm as constitucionais inconstitucionais, dividindo-as em dois grandes g ru pos. O primeiro é relativo à violação da Constituição escrita e o segun do, referente à infringência do direito constitucional não escrito.79 Q uanto à violação da Constituição escrita, seria possível vislum brar, inicialmente, a existência de norm as constitucionais chamadas ilegais, que seriam produzidas quando a própria Constituição estabe lece condições para sua entrada em vigor e tais condições são con tra riadas, p o r exemplo, a exigência de um referendo não realizado. A segunda hipótese aventada por Bachof seria a da inconstitucio nalidade formal ou material de em endas à Constituição. Aquela ocor reria quando o procedim ento previsto para a alteração da Constituição não fosse obedecido, e esta surgiria se fosse violado o núcleo imutável da Constituição (cláusulas pétreas). C um pre ressaltar que tanto a prim eira quanto a segunda hipótese são passíveis de acontecer, levando-se em consideração o ord en am en to jurídico brasileiro. A terceira situação seria a da inconstitucionalidade de norm a cons titucional em razão da infringência de regra constitucional de grau superior, ambas criadas pelo poder constituinte originário. Nesse caso, a n o rm a positivada de im portância m en o r não seria aplicada, prevale cendo a regra de grau superior, com o conteúdo de princípio. Mas, como adverte Luis Roberto Barroso,80 essa hipótese de incons titucionalidade é descartada por Bachof, que admite, sim, a autonom ia
78Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. 79 Otto Bachof adverte que não expôs um rol exaustivo: ob. cit. p. 68-70. Sobre uma análise das hipóteses aventadas por Bachof, conferir Revorio , Francisco Javier Díaz. Valores superiores e interpretación constitucional, p. 270 e segs.; e B arroso , Luis Roberto. Ob. cit. p. 188 e segs. 80 Ob. cit. p. 191, citando B achof, Otto. Ob. cit. p. 57.
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do constituinte para estabelecer exceções às regras por ele m esm o edi tadas. Nesse ponto, a idéia de Bachof cam inha no sentido de privile giar o caráter de unidade da Constituição escrita, im po nd o a concor dância prática entre as regras positivadas que aparentem ente sejam contraditórias. A hipótese seguinte seria a da cessação da vigência sem disposição expressa, que aconteceria quando as norm as constitucionais se tornas sem obsoletas, em função da m udança da situação real, deixando de cu m prir sua função integradora. A última previsão de violação da n orm a constitucional escrita por outra n orm a constitucional seria por infração do direito supralegal positivado na Constituição, que existiria fora, independente e acima da própria regra constitucional positivada. Seria o caso, por exemplo, da previsão expressa na Constituição da garantia de respeito à dignidade h u m an a ou dos direitos relacionados à liberdade, que estariam sendo contrariados p o r outra n orm a form alm ente constitucional. O segundo grande grupo de norm as constitucionais inconstitu cionais aludidas por Bachof seria o daquelas prescrições da C onstitui ção que violassem o direito constitucional material não escrito. E nesse grupo estariam três hipóteses: a da inconstitucionalidade por infração aos princípios constitutivos não escritos, que estabelecem o sentido da Constituição; a da inconstitucionalidade por violação do direito cons titucional consuetudinário; e a da inconstitucionalidade por infringência ao direito supralegal não positivado. Nota-se que a premissa da existência de norm as constitucionais inconstitucionais repousa na idéia de hierarquia entre os preceitos cons titucionais, independentemente de a regra fazer parte ou não da Consti tuição formal. Assim, u m de seus fundam entos seria o jusnaturalismo, que ad m i tiria a superioridade de certas norm as constitucionais e, portanto, a inconstitucionalidade das que lhes fossem contrárias. Loewenstein explica que, no fundo, o im portante é saber: (...) se os direitos fundamentais — ou, melhor, os direitos do homem — são trazidos consigo pelo homem, com seu nascimento, à sociedade estatal, sendo pois invioláveis e inalienáveis, dado seu caráter natural, ou
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL se, pelo contrário, são outorgados pela sociedade estatal em virtude da ordem da comunidade, podendo ser, portanto, limitados e determinados em seu âmbito de aplicação. Aqui está, evidentemente, o problema cen tral dos direitos fundamentais e de sua imunidade contra intervenções constitucionais que ultrapassam a mera proteção ou garantia constitu cional. Mas, mais que de um problema jurídico, trata-se de uma questão de crenças, onde não se pode argumentar racionalmente, ainda quando por necessidades práticas a convivência na comunidade humana está revestida de formas jurídicas.8'
Por outro lado, a inconstitucionalidade de normas constitucionais poderia se basear na violação das decisões políticas fundamentais, confor me as idéias decisionistas defendidas por Carl Schmitt. Por fim, Canotilho analisa as duas hipóteses em que se poderia vis lum b rar a existência de norm as constitucionais inconstitucionais: quando da ocorrência de contradições transcendentes ou de con tra dições positivas.82 As contradições transcendentes, teoricamente admissíveis, seriam aquelas existentes entre o direito constitucional positivo e os valores, critérios ou diretrizes “m aterialm ente inform adores da modelação do direito positivo”. Já as contradições positivas existiriam caso se ad m i tissem norm as de graus hierárquicos distintos dentro da própria C ons tituição escrita, o que é rejeitado pelo referido autor, mas adm itido pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, apesar de reconhe cer a restrita possibilidade de constatação de norm as constitucionais inconstitucionais em Estados de direito democrático-constitucionais.83 Rejeitando a existência de norm as originariamente constitucionais inconstitucionais sob qualquer fundamento, a solução das contradições aparentes entre as norm as constitucionais deve se dar em atenção aos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática ou
81 Ob. cit. p. 193. Conferir também Revorio , Francisco Javier Díaz. Ob. cit. p. 272 e 273. 82 Direito constitucional cit. p. 1.104-6. O autor alerta para o problema de saber quem deve controlar a conformidade da Constituição com o direito supraconstitucional e relembra a complexa questão que envolve o fundamento da ordem constitucional. 83 C anotilho , José Joaquim Gomes. Direito constitucional cit. p. 1.105.
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harmonização entre os seus preceitos, que tem sido a posição tradicio nalmente adotada no Brasil.
A posição do STF sobre a teoria de Bachof O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se m an i festar sobre a questão da existência ou inexistência de norm as consti tucionais inconstitucionais. C om o se verá a seguir, a Constituição brasileira adota o sistema legislativo bicameral, com um aos regimes federativos, em que a Câ m ara dos Deputados compõe-se de representantes do povo e o Senado Federal, de representantes dos estados e do Distrito Federal. Assim, cada ente federativo elege três senadores, enquanto na C âm ara dos Deputados o núm ero total de parlamentares deve ser p ro porcional à população de cada estado e do Distrito Federal, de m odo que n en h u m a unidade federativa tenha m enos de oito ou mais de setenta deputados (art. 45, § I o, da Constituição Federal). A fixação do piso e do teto de representantes do povo na C âm ara dos D eputados acaba p o r criar certas distorções, pois o voto de um eleitor em um a unidade federativa m uito populosa vale m uito m enos do que o de um eleitor de um estado pouco populoso, o que contraria o princípio da isonomia (art. 5o, da Constituição Federal) e a cláusu la do voto “com valor igual para todos” (art. 14, caput, da Lei F unda mental). Tal argum ento não se deve basear em um a idéia preconceituosa em relação aos habitantes dos estados m enos populosos da Federação, pois u m paulista pode estar super-representado se tiver seu domicílio eleitoral no Piauí, assim com o um acreano pode estar sub-representado se residir em Minas Gerais. Com base na contradição entre as aludidas disposições constitu cionais, o então governador do estado do Rio Grande do Sul argüiu a inconstitucionalidade do § I o do art. 45 da Constituição Federal por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 815-3/DF. A tese desenvolvida na referida ação baseou-se na existência de norm as constitucionais inconstitucionais. C ontudo, o Suprem o Tribunal Federal decidiu, p o r unanim idade, em 1996, que o pedido form ulado na referida ação direta de inconsti-
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
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tucionalidade era juridicam ente impossível, pois a tese de que haveria hierarquia entre norm as constitucionais originárias, dando ensejo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras, seria incompatível com o sistema de Constituição rígida. Ademais, a C ons tituição Federal confere ao Suprem o Tribunal Federal a atribuição de im pedir o desrespeito à Constituição com o um todo e não de exercer o papel de fiscal do poder constituinte originário. Com isso, a tese da possível inconstitucionalidade de norm as cons titucionais, criadas pelo poder constituinte originário, foi afastada no Brasil.
A relação entre o princípio da unidade da Constituição e o princípio da harmonização Com o se analisou anteriormente, o princípio da unidade da Cons tituição revela-se como um desdobramento do método sistemático de interpretação e impõe ao intérprete a obrigação de não considerar as norm as constitucionais isoladamente, mas como parte integrante de um sistema unitário. Assim, a Constituição deve ser interpretada de m odo a impedir o surgimento de contradições entre suas normas, pois todas as regras que se encontram no texto formal da Constituição estão n um mesmo patamar hierárquico. Portanto, surgindo aparente conflito entre norm as constitucio nais, o princípio da unidade da Constituição exige do intérprete um trabalho de “otimização” para que se estabeleçam os limites dos bens jurídicos em colisão a fim de que am bos alcancem um a efetividade ótima.8'1 Sobre esse ponto de interseção entre os princípios da unidade da Constituição e da concordância prática, Klaus Stern explica que: (...) uma norma constitucional não deve ser interpretada de forma isola da; a Constituição constitui uma unidade. (...) A idéia da unidade da Cons tituição parte de que a Constituição não é um conglom erado de normas
84
H esse , Konrad. "La interpretación constitucional” . In:
cional cit. p. 47-9.
Escritos de derecho constitu
MANUAL OE DIREITO CONSTITUCIONAL jurídicas justapostas umas às outras, mas que está sustentada por uma concepção, por uma idéia, que intenta ser um todo fechado da ordem da vida da comunidade e do estado. (...) O fim primário da máxima da inter pretação da unidade da Constituição é equilibrar as discrepâncias que possam surgir na aplicação de determinadas normas constitucionais. No caso de normas que entram (aparentemente) em colisão, é necessário recorrer a um exame global, à unidade da Constituição. Sobre esta base, há que buscar uma harmonia do (aparentemente) contraditório. As normas constitucionais que estão em uma relação de tensão recíproca têm que ser "harmonizadas" , ser postas em concordância uma com a outra. Nenhum bem jurídico deve ser considerado como "de categoria superior" à custa de outro valor protegido, a menos que a própria Cons tituição ordene a diferença de classe. Da unidade da Constituição se deduz a tarefa de "otimização" ou "harmonização" das normas consti tucionais, na medida em que se tem que produzir um equilíbrio, que cer tamente impõe limites a uma norma jurídica, mas que não nega por com pleto sua eficácia.85
Portanto, estando o intérprete diante de u m a aparente con tra dição entre norm as constitucionais, deve harm onizar os preceitos de form a a evitar o sacrifício total de um em relação a outro, privilegian do a unidade da Constituição. ■■ O P R IN C ÍP IO DA P R E S U N Ç Ã O DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E DAS LEIS
O princípio da presunção da constitucionalidade das leis tem por fundam ento a cham ada “separação de poderes”,86 mais corretamente denom inada de divisão de funções do Estado. > A idéia da separação das funções a serem exercidas por órgãos distintos e au tô n o m o s do Estado, independentes entre si, aparece sis
85 Ob. cit. p. 291-4. 86 Essa expressão é considerada equivocada pela doutrina, uma vez que o poder é tido como uno e indivisível. Nesse sentido, conferir T em er , Michel. Ob. cit. p. 118 e segs.; e Ba s tos , Celso Ribeiro. Ob. cit. p. 339.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
tem atizada p o r M ontesquieu, que, ao tratar da C onstituição da In glaterra,87 m ostra que existem “em cada Estado três tipos de poder: o p o d er legislativo, o po d er executivo das coisas que dependem do d i reito das gentes e o poder executivo daquelas que d ep en d em do direi to civil”. Para ele, a repartição orgânica do poder garantiria a liberdade. Essa concepção acabou consagrada na Declaração dos Direitos do H o m em e do Cidadão, de 1789, que previa, em seu art. 16, o que passou a ser um dogma: não se tem Constituição quando não estiver determ i nada a separação das funções do Estado. A concepção da repartição das funções volta-se à contenção do poder p o r meio de um sistema — cham ado pelos norte-am ericanos de checks and balances (freios e contrapesos) — de controle de u m órgão do Estado pelo outro. Assim, tipicamente,88 ao Legislativo compete a criação do direito objetivo, ao Executivo, a aplicação desse direito, de ofício, e ao Judiciá rio, a resolução dos conflitos postos à sua apreciação, levando em co n sideração o direito objetivo editado, restaurando a ordem jurídica vio lada ou evitando tal violação. Nesse sentido, cabe ao Judiciário, pela via difusa e pela via concen trada,89 realizar o controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. C om efeito, a presunção da constitucionalidade das leis é relati va, ou seja, subsiste até que haja declaração em contrário pelo órgão jurisdicional.
87 M ontesquieu . "Capítulo VI". In: O
espirito das leis. 1T livro, p. 171 e segs. Antes dele,
as formulações sobre as funções do Estado já tinham sido expostas por Aristóteles e John Locke. 88 A separação de funções implica admitir que os órgãos do Estado exercem funções típicas e outras atípicas, viabilizando a harmonia e independência entre eles, como consagra do no art. 2° da Constituição Federal, assim redigido: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". 89 Pode-se considerar função típica do Judiciário realizar o controle da constitucionali dade pela via difusa ou incidental, e função atípica o controle concentrado, uma vez que, nes ta última hipótese, estará havendo, na realidade, atuação do Judiciário como legislador ne gativo, retirando do ordenamento jurídico a norma declarada inconstitucional.
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É o que m ostra Luis Roberto Barroso na passagem que a seguir se transcreve: A presunção de constitucionalidade das leis encerra, naturalmente, uma pre sunção iuris tantum, que pode ser infirmada pela declaração em sentido con trário do órgão jurisdicional competente. 0 princípio desempenha uma fun ção pragmática indispensável na manutenção da imperatividade das normas jurídicas e, por via de conseqüência, na harmonia do sistema. O descumprimento ou não-aplicação da lei, sob o fundamento de inconstitucionalidade, antes que o vício haja sido proclamado pelo órgão competente, sujeita a vontade insubmissa às sanções prescritas pelo ordenamento. Antes da deci são judicial, quem subtrair-se à lei o fará por sua conta e risco.90
a)
b)
Os desdobram entos desse princípio conduzem a duas assertivas:91 a declaração da inconstitucionalidade deve ocorrer somente na hipótese de se revelar evidente o vício, caso contrário, havendo d ú vida, deve-se considerar a n o rm a com o válida; e sendo possível interpretar a lei de acordo com a Constituição, apesar de o mesmo texto legal comportar outras interpretações incompa tíveis com a regra constitucional, deve o intérprete optar pela exegese que privilegie a validade da norm a hierarquicamente inferior.
Essa segunda hipótese é denom inada de interpretação conforme a Constituição e será objeto do próxim o item. ■I A IN T E R P R E T A Ç Ã O C O N F O R M E A C O N S T IT U IÇ Ã O
A expressão interpretação conforme a Constituição com porta vários sentidos — iniciando com a discussão sobre se é um m étodo de inter pretação das norm as constitucionais, das leis ou de ambas e passando
90 Ob. cit. p. 164 e 165. 91 Nesse sentido, conferir M aximiliano , Carlos. Ob. cit. p. 307 e 308; Barroso , Luis Rober to. Ob. cit. p. 165; Linares Q uintana, Segundo V. Ob. cit. p. 136 e segs.; FIa m o s , Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vicio e sanção. São Paulo, Saraiva, 1994, p. 203-6.
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até m esm o ao questionam ento de não se referir a um m étodo ou princípio de interpretação, mas a um instrum ento de controle da cons titucionalidade das leis e dos atos normativos. Essa foi a posição assumida pelo Suprem o Tribunal Federal na Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417, cujo julgam ento se deu em 9 de dezem bro de 1987 e teve com o relator o m inistro Moreira Alves:92 Representação de Inconstitucionalidade do § 3o do art. 65 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, introduzido pela Lei n. 54/86. O princípio da inter
pretação conforme a Constituição (Verfassungskonforme Auslegung) é princí pio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação. A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o Supremo Tribunal Federal, em sua função de Corte Consti tucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo poder legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para com
patibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpre tação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo (Tribunal Pleno, v.u., DJ 15.04.1988, p. 8.397).
Por sua vez, Paulo Bonavides — após afirmar que, se a interpre tação das leis conforme a Constituição “já não tom ou foros de m étodo autônom o na hermenêutica contem porânea”, constitui, sem dúvida, “um princípio largamente consagrado em vários sistemas constitu cionais” — entende que em “rigor não se trata de um princípio de
92 Jorge Miranda (in: ob. cit. p. 264) também faz referência a essa questão, dizendo que a interpretação conforme a Constituição é mais do que a aplicação de uma regra de inter pretação. "Além da acepção genérica acabada de indicar — se bem que com base nela — existe uma acepção específica. Não é já uma regra de interpretação, mas um método de fis calização da constitucionalidade."
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interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição”.93 Com efeito, Konrad Hesse assinala que: (...) a "interpretação conforme" não coloca somente a questão do con teúdo da lei submetida ao controle, mas também a relativa ao conteúdo da Constituição, segundo a qual dita lei há de ser medida. Exige, pois, tanto interpretação da lei como interpretação da Constituição.94
Para José Joaquim Gomes Canotilho, a expressão interpretação con form e a Constituição pode ser tom ada com o regra determ inante para se decidir entre vários resultados possíveis de interpretação; como meio de limitação do controle da constitucionalidade das leis; ou, ainda, com o instrum ento herm enêutico de conhecim ento das norm as constitucionais.95 Segundo ele, desses três sentidos derivam outras conseqüências: quando se puderem extrair de um a lei vários significa dos, impõe-se a escolha daquele que perm ita a concordância da lei com as regras constitucionais; enquanto puder ser interpretada de acordo com a Constituição, a lei não deve ser declarada inconstitucional; e deve-se valer das norm as constitucionais para determ inar o conteúdo intrínseco das leis.96 A aceitação acrítica desses argum entos poderia fazer com que se considerasse a interpretação conforme a Constituição u m simples m étodo de conservação das norm as, conferindo prevalência à vontade do legislador ao confiar-se no resultado de seus atos, acabando p o r transform ar tal interpretação em “alavanca metódica da legalização da lei fundam ental”.97 Mais do que um princípio de conservação das norm as, a interpre tação conform e a Constituição deve ser entendida com o u m princípio
93 Curso de direito constitucional, p. 473 e 474. 94 "La interpretación constitucional" cit. p. 57. 95 C a n o t ilh o , José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, p. 404. 96 Constituição dirigente cit. p. 405. 97 Constituição dirigente cit. p. 405.
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de prevalência normativo-vertical e de integração hierárquico-normativci,98 m étodo herm enêutico da Constituição e da lei que, auxiliando o m ecanismo de controle da constitucionalidade, im põe — entre algu mas interpretações possíveis da n o rm a infraconstitucional — a exegese compatível com os preceitos constitucionais.99 |
Os pressupostos para a interpretação conforme a Constituição
O prim eiro pressuposto para realizar a interpretação conform e a Constituição é estar diante de um a Constituição rígida. C um pre lem brar que Constituição rígida se caracteriza por prever para sua alteração um procedim ento mais dificultoso do que o esta belecido para a criação ou a alteração da legislação ordinária. E é exa tam ente em razão disso que se tem a superioridade das norm as cons titucionais em relação às demais regras do ordenam ento jurídico. Se a interpretação conforme a Constituição é um princípio de prevalência normativo-vertical, verdadeiro instrum ento para auxiliar no controle da constitucionalidade, ela só pode existir diante da supe rioridade da Constituição em relação às demais norm as, o que, por sua vez, só ocorrerá com a existência de um a Constituição rígida.100 Mas de nada serviria a existência de um a Constituição rígida se não houvesse um órgão encarregado de realizar o controle da constitu cionalidade das leis e dos atos normativos. Assim, é tam bém pressu posto para a interpretação conforme a Constituição a previsão de um órgão controlador da constitucionalidade das leis. O utro pressuposto para levar a efeito a interpretação conform e a Constituição é a existência de norm as polissêmicas101 ou plurissigni98 C anotilho , José Joaquim Gomes.
Constituição dirigente cit.
p. 406. 99 Para uma hipótese de interpretação de dispositivos do Estatuto da Criança e do Ado lescente conforme a Constituição, conferir D ias da S ilva, Roberto Baptista. A remissão para
exclusão do processo como direito dos adolescentes: uma interpretação conforme a Consti tuição. 100 Conferir, nesse sentido, B onavides, Paulo. Ob. cit. p. 474. 101 Luis Alberto Warat (in: ob. cit. p. 125 e segs.) classifica os termos (e não as normas) polissêmicos como uma das espécies de expressões vagas. O autor (p. 124) expõe: "A polissemia se apresenta quando um significante tem regularmente associados múltiplos sentidos, com os quais se podem estabelecer certos enlaces psicológicos entre eles. Nestes casos, existe uma incerteza no grau de proximidade das significações. Haverá um significado cen tral originário e outros múltiplos com derivações metafóricas".
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fícativas. Só é possível falar em interpretação conform e a Constituição quando houver um espaço de decisão, um espaço de interpretação “aberto a várias propostas interpretativas, um as em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela”.102 C onform e explicitado por Luís Roberto Barroso, na (...) interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatí vel com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilida des de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constitui ção. Note-se que o texto legal permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal.103
Exemplos dessa situação — em que, diante de diversas possibili dades de interpretação, o Judiciário exclui as incompatíveis com a Constituição e im põe as compatíveis — podem ser verificados na j u risprudência do Suprem o Tribunal Federal.10'1
Os limites da interpretação conforme a Constituição C om o um corolário do pressuposto da interpretação conform e a Constituição — segundo o qual esta não seria legítima se não houvesse um espaço de decisão — surge um dos limites a esse m étodo interpre tativo. Nos casos em que houver apenas u m significado para a n o rm a a ser interpretada não se m ostra possível a interpretação conforme a Constituição.
102 Canotilho, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional cit.
p. 1.100.
103 Ob. cit. p. 175. 1
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Isso quer dizer que não cabe ao intérprete, por meio da interpretação conforme a Constituição, pretender alterar o texto da norma, “torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador.”105 O Suprem o Tribunal Federal já se manifestou acolhendo esse en tendim ento:106 Impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme a Consti tuição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admi te, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como su cede no caso presente.
Portanto, quando não se conseguir alcançar um sentido para a norma que seja harmônico com a Constituição, deve-se rejeitar a regra em razão de sua inconstitucionalidade, não se admitindo a interpretação contra legem'07 ou que não confira ao preceito legal qualquer função útil.108 Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, é evidente que: (...) a interpretação conforme à Constituição encontra limites na própria expressão literal do texto gislador
(Gesetzeswortlaut) e no escopo visado pelo le
(Zweck). Há de se respeitar o significado possível da proposição
normativa, não se admitindo uma interpretação que violente a estrutura verbal do preceito.109
105 B arroso , L u ís Roberto. Ob. cit. p. 178. Na decisão do Supremo Tribunal Federal na
Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417, restou consignado que: "A aplicação desse princípio [da interpretação conforme a Constituição] sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o Supremo Tribunal Federal, em sua função de Corte Constitucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo poder legislati vo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constitui ção contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo". 106 Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.344, rel. Min. Moreira Alves, j. 18.12.1995. 107 Conferir, no sentido do texto, H esse , Konrad. "La interpretación constitucional" cit. p. 54; C anotilho , José Joaquim Gomes. Direito constitucional cit. p. 1.099 e 1.100; B arroso , Luís Roberto. Ob. cit. p. 178; B onavides, Paulo. Ob. cit. p. 476 e 479. 108 Barroso , Luís Roberto. Ob. cit. p. 178. ,os M endes , Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políti cos, p. 287.
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Isso se deve ao fato de que, ao fazer a interpretação conform e a Constituição, o Judiciário não deve assumir a posição de legislador positivo, mas, no máximo, de legislador negativo. Não deve, alterando a lei, se substituir ao legislador.110 Nesse sentido, na prática, a interpretação conform e a Constituição eqüivale à declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, com o explica Gilmar Ferreira Mendes: Convém notar que, embora do ponto de vista prático afigure-se irrelevante, senão impossível, diferençar a interpretação conforme à Constituição da de
claração de inconstitucionalidade sem redução de texto, parte da doutrina alemã insiste no discrímen. Afirma-se que, enquanto a interpretação confor me à Constituição traduziria a pronúncia de inconstitucionalidade de uma ou algumas possibilidades de interpretação, a declaração de inconstitudonalidade sem redução de texto limitaria as hipóteses de aplicação do texto, sem afe tar, estruturalmente, a sua expressão literal.111
C om efeito, a interpretação conforme a Constituição deve traba lhar a favor do princípio consagrador da separação dos poderes — considerado cláusula pétrea pelo art. 60, § 4o, III, da Constituição Federal — , jamais contra ele. Sob a ótica da interpretação conforme a Constituição, quem é cha m ado a concretizar a Constituição é o Poder Legislativo, não o ju d i ciário, pois o que se pretende é m anter a validade da lei segundo um a determ inada interpretação que se revela em consonância com a C ons tituição, excluindo as demais possibilidades de interpretação que se m ostram incompatíveis com o texto constitucional. Permite-se, portanto, que o Judiciário somente declare a inconsti tucionalidade da lei quando esta for evidentemente incompatível com o texto constitucional,112 devendo preservá-la quando for possível in terpretá-la em harm onia com a Constituição. Com isso, sem dúvida está se dando preeminência ao Legislativo com o órgão encarregado de, em prim eiro plano, concretizar a Constituição. " ° B onavidés , Paulo. Ob. cit. p. 479.
Ob. cit. p. 286. 112 Nesse ponto é possível verificar a estreita relação entre o princípio ora analisado e o princípio da presunção da constitucionalidade das leis, abordado anteriormente.
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Mas essa orientação no sentido de preservar a norm a que puder ser interpretada de acordo com a Constituição pode levar o intérprete a perder de vista os limites que se lhe im põem , to rn an d o esse m étodo que, a princípio, trabalha a favor da separação dos poderes, um a ativi dade que infrinja a independência e h arm onia entre eles. O utro risco que se corre é o de transform ar a interpretação con forme a Constituição n u m a interpretação da Constituição conform e a lei. Primeiro porque se estaria to m an d o com o parâm etro de interpre tação a n o rm a hierarquicamente inferior no ordenam ento jurídico, o que é inconcebível. Segundo porque se parte de u m a idéia segundo a qual, mais do que um espaço norm ativo aberto, a Constituição seria um espaço neutro, sujeito a sutis alterações pelo legislador infraconstitucional. E, por fim: (...) não deve afastar-se o perigo de a interpretação da constituição de acordo com as leis ser uma interpretação inconstitucional, quer porque o sentido das leis passadas ganhou um significado completamente diferen te na constituição, quer porque as leis novas podem elas próprias ter in troduzido alterações de sentido inconstitucionais. Teríamos, assim, a lega
lidade da constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis."3
Essa orientação no sentido de rejeitar a interpretação da C o nsti tuição conform e a lei em vez de interpretar a lei conform e a C o n s tituição tam b ém já foi objeto de apreciação pelo Suprem o Tribunal Federal.114 Portanto, se por um lado, com o visto, é conferida ao Legislativo a hegemonia quanto à concretização da Constituição, não se retira, de forma alguma, do Judiciário o poder-dever de declarar a inconstitu cionalidade da n o rm a que se mostre incompatível com a Constituição, preservando-a quando se revelar viável interpretá-la conform e o texto constitucional. 113 C anotilho , José Joaquim Gomes.
Direito constitucional cit. p. 1.106 e 1.107. Conferir
também B onavides , Paulo. Ob. cit. p. 475 e 476. 114 Ag. Reg. em Petição n. 423-SP, Tribunal Pleno, rel. do acórdão Min. Sepúlveda Per tence, rel. Min. Celso de Mello, j. 26.04.1991, provido, m.v., DJ 13.03.1992, p. 2.921, RTJ 136/1.034.
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■■ O P R IN C ÍP IO DA RAZOA BI LI DADE
O princípio da razoabilidade deriva da cláusula do due process o f la w " 5 que, por sua vez, se desenvolveu a partir da fórmula law o f lhe landy consagrada na Magna Carta, de 1215, docum ento outorgado pelo rei João “Sem Terra” para satisfazer as reivindicações dos barões feudais que buscavam limitar as ações reais. Depois de contem plado pelas em endas 5a e 14 à Constituição norte-am ericana,116 o princípio do devido processo legal passou a se espraiar pelos ordenam entos jurídicos de outros países.117 O princípio do devido processo legal se m ostrou inicialmente com o um a garantia processual (procedural due process), que assegura va o direito ao contraditório, à ampla defesa,118 bem com o o direito de ninguém ser julgado, senão por um juízo pré-constituído e com pe tente para analisar o caso,119 e somente por fato definido anteriorm en te com o crime, e com pena previamente estabelecida em lei.120 Tam-
1,5 Sobre a relação entre o princípio do devido processo legal e o princípio da razoabi lidade, verificar C astro , Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legdíed rdzoabiliddde das leis na nova Constituição do Brasil; B arroso , Luis Roberto. Ob. cit. p. 198 e segs.; N ery J únior , Nelson. Ob. cit. p. 35 e segs. 116 A 5a emenda, de 1791, tem a seguinte redação: "Ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal". A 14a emenda, de 1868, ampliou a previsão para os estados integrantes da Federação norte-americana ao estabelecer: "N e nhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal". 1,7 A previsão na Constituição Federal brasileira encontra-se no art. 5o, LIV, assim redigi do: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Notese que não há referência à vida nesse dispositivo, visto que nem obedecendo-se o devido processo legal a vida pode ser suprimida do indivíduo, tendo em vista a impossibilidade jurídi ca de se adotar a pena de morte. Nesse sentido, conferir C astro , Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit. p. 378. Esse autor relata como se deu o surgimento da disposição constitucional sobre o devido processo legal no processo constituinte de 1987/1988. 118 A Constituição Federal de 1988 prevê expressamente em seu art. 5o, LV: "aos liti gantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". 1,9 Os incs. XXXVII e Ull do art. 5o da Constituição Federal estabelecem a garantia do juiz natural, e estão redigidos da seguinte forma, respectivamente: "não haverá juízo ou tri bunal de exceção" e "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". 120 A Constituição Federal prescreve, no art. 5o, XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
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bém com o decorrência do procedural due process surge o direito de a pessoa ser assistida por um advogado e ter acesso ao Judiciário, m esm o sem possuir recursos financeiros para tan to .121 O sentido processual do devido processo legal aparece, de início, vinculado às garantias do processo penal e estende-se à jurisdição civil para, posteriorm ente, alcançar os procedim entos administrativos.122 Por outro lado, o devido processo legal substancial (substantive due process), nas palavras de Luis Roberto Barroso, é aquela cláusula que: (...) enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-ã admitir a limitação a al gum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se en contram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.123
Analisando sua evolução histórica, no âm bito norte-am ericano, Luis Roberto Barroso, Raquel Denize S tum m e Carlos Roberto de Siqueira Castro identificam as fases atravessadas pelo devido processo legal substancial.124 A prim eira delas, marcada pela ascensão e consolidação do princí pio do substantive due process, tem início no fim do século XIX e se estende até a década de 1930 e se caracteriza com o um a reação ao intervencionismo estatal na ordem econômica. Nessa etapa, a Suprema 121 Essas são as previsões contidas no art. 133 da Constituição Federal ("O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei"), assim como as expressas no art. 5o, XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito") e LXXIV ("o Esta do prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos"). 122 Conferir C astro , Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit. p. 34 e segs.; B arroso , Luis Ro berto. Ob. cit. p. 199 e 200; St u m m , Raquel Denize. Ob. cit. p. 150 e segs.; Figueiredo , Lúcia Valle. "O Estado de direito e devido processo legal". In: Revista Trimestral de Direito Público, vol. 15, p. 37. 123 Ob. cit. p. 200 e 201. 124 B arroso , Luis Roberto. Ob. cit. p. 199-204. S tum m , Raquel Denize. Princípio da pro porcionalidade no direito constitucional brasileiro, p. 148 e segs.; C astro , Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit. p. 7 e segs.
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Corte norte-am ericana encampa o ideal liberal, segundo o qual o de senvolvimento deve ocorrer com a m en or ingerência possível do Poder Público nos negócios privados. A segunda fase começa com a ampliação da legislação social e de intervenção no dom ínio econômico levada a efeito com a eleição do presidente Franklin Roosevelt, e o conseqüente desprestígio do devido processo legal pela Suprema Corte, que passa a se abster de examinar o mérito das norm as de cun ho econômico. E na terceira fase, que se inicia na década de 1950, o substantive due process renasce a partir da distinção entre liberdades econômicas e nãoeconômicas. Naquele dom ínio (o das liberdades econômicas), o Judi ciário deveria respeitar a atitude dos outros poderes. No dom ínio das liberdades pessoais (ou não-econômicas) — como a liberdade de ex pressão e de religião, bem como o direito à privacidade e de participação política — , a intervenção do Judiciário continuava indispensável. O devido processo legal firma-se, então, com o fundam ento para o exame pelo Judiciário do mérito dos atos do Poder Público, im pondo a redefinição da noção de discricionariedade.125 E, nesse sentido, cria as condições para o surgim ento do princípio da razoabilidade, que, nos dizeres de Linares Q uintana, consiste no seguinte: Para determinar e decidir sobre a conformidade e adequação dos atos do Estado com a Constituição Nacional, esta, em sua letra e em seu espírito, impõe a regra da razoabilidade. Toda atividade estatal, para ser constitu cional, deve ser razoável. O razoável é o oposto ao arbitrário, e significa conforme a razão, justo, moderado, prudente, tudo o que pode ser resumi do em conformidade com o que dita o senso comum. O Congresso, o Po der Executivo e os Juizes, quando atuam no exercício de suas funções es pecíficas, devem fazê-lo de maneira razoável. Todo ato governativo deve resistir à prova da razoabilidade. A lei que altera e, com maior razão, a que suprime o Direito cujo exercício pretende regulamentar, incorre em irrazoabilidade ou arbitrariedade, enquanto imponha limitações a este que não sejam proporcionais às circunstâncias que as motivam e aos fins a que se propõe alcançar com elas.126
125 B arroso , L u ís Roberto. Ob. cit. p. 200. ,26 Linares Q uintana , Segundo V. Ob. cit. p. 122 e 123.
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Buscando delimitar de form a mais precisa o conceito de razoabili dade, Luis Roberto Barroso faz referência a três requisitos que devem ser preenchidos para aferir a razoabilidade de um determ inado ato do Poder Público.127 Primeiro, deve haver a razoabilidade interna, dentro da lei, ou seja, é imprescindível a existência de u m a relação racional e proporcional entre os motivos, os meios e os fins da lei. Em paralelo, deve-se atentar para a razoabilidade externa, isto é, se há adequação da lei aos meios e fins contem plados pela Constituição, pois, se a lei for contrária aos va lores expressos ou implícitos da n o rm a constitucional — ainda que seja razoável do ponto de vista interno — , não será válida. O segundo elemento — desenvolvido na Alemanha — impõe que a medida a ser tom ada pelo Poder Público seja necessária. Esse requi sito consiste na exigência de que os meios utilizados para atingir o fim pretendido sejam os m enos onerosos para os destinatários da norm a. É a cham ada proibição do excesso ou princípio da m enor ingerência possível, ou da proporcionalidade.128 O terceiro e últim o requisito — tam bém derivado da doutrina ale m ã — , o da proporcionalidade em sentido estrito, exige a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido pela m edida adotada pelo Poder Público, buscando constatar se é justificável a interferência na esfera de direitos dos cidadãos, levando-se em consideração a relação custo-benefício. E conclui Luis Roberto Barroso: “a aferição da razoabilidade im porta em um juízo de mérito sobre os atos editados pelo Legislativo, o que interfere com o delineam ento mais com um ente aceito da discricionariedade do legislador”.129
,27 B arroso , Luis Roberto. Ob. cit. p. 204 e segs.
128 José Joaquim Gomes Canotilho (in: Direito constitucional cit. p. 259-65) explica que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível e faz a distinção entre necessidade material, exigibilidade espacial, temporal e pessoal. Conferir também M endes , Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 38 e segs. 129 Ob. cit. p. 210 e 211. Luis Roberto Barroso (in: ob. cit. p. 213) alerta também para o fato de que o princípio da razoabilidade, no Brasil, não tem alcançado grande expressão, sobretudo em virtude do exagerado apego aos dogmas da separação de poderes, que im pediriam o controle jurisdicional do mérito dos atos do Poder Público.
E fic á c ia
e
APLICABILIDADE DAS
NORMAS
CONSTITUCIONAIS
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UM E X E M P L O
O art. 37 da Constituição Federal, ao tratar das disposi ções gerais da administração pública, estabelece, em seu inc. VII, em relação ao servidor público civil, que o direito de greve será exercido nos term os e nos limites definidos em lei específica. O estudo sobre a eficácia e aplicabilidade das n o rm a s constitucionais ap o n tará, nesse caso, se o servidor público, e n q u a n to não for p ro m u lgada a lei prevista no referido in ciso, pode ou não exercer o direito de greve. Em outras p a lavras: se a referida n o rm a constitucional for interpretada com o de “eficácia contida”, significará que o servidor p ú b li co poderá exercer o direito de greve en q u an to não advier a edição da lei; con tud o, se a regra constitucional for e n te n dida com o de “eficácia lim itada”, o servidor público so m ente poderá exercer o direito de greve q u a n d o surgir a aludida lei.
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MANUAL OE DIREITO CONSTITUCIONAL
Com isso, percebe-se que classificar um a norm a como, p o r exem plo, de eficácia contida ou de eficácia limitada trará conseqüências práticas m uitas vezes antagônicas.1
D I F E R E N T E S G R A U S DE E F I C A C I A DAS N O R M A S C O N S T I T U C I O N A I S
O fato de os enunciados das norm as constitucionais terem n a tu reza aberta influencia diretam ente na eficácia e aplicabilidade dessas disposições jurídicas. José Afonso da Silva, tratando da evolução das teorias acerca da eficácia das normas constitucionais, observa que a jurisprudência am e ricana pretendeu distinguir as norm as constitucionais em prescrições m andatórias (m andatory provisions) e prescrições diretorias (diretory provisions). As primeiras seriam aquelas cláusulas constitucionais essenciais, cuja observância é obrigatória e inescusável. Já as outras — as diretorias — teriam caráter regulamentar, “podendo o legislador com um dispor de outro m odo, sem que isso importasse na inconsti tucionalidade de seu ato”.2 Assim, chegava-se à conclusão de que algumas norm as constitu cionais eram de cum prim ento obrigatório enquanto outras não o eram, o que não condiz com a natureza dessas disposições que, com o visto, são norm as jurídicas e, portanto, de caráter obrigatório. 1As decisões do Supremo Tribunal Federal, há mais de uma década, têm caminhado no sentido de interpretar o art. 37, VII, da Constituição, como uma norma de eficácia limitada. Nossa Suprema Corte vem entendendo que o advento da lei constitui requisito de aplicabili dade do art. 37, VII, da Constituição Federal. O direito público subjetivo de greve, outorga do aos servidores civis, só se revelaria possível depois da edição da lei especial reclamada pela Constituição. "A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta — ante a ausência de auto-aplicabildiade da norma constante do art. 37, VII, da Cons tituição — para justificar o seu imediato exercício." (Mandado de Injunção n. 20-4/DF e, no mesmo sentido. Ml 485-4/MT, 585-9/TO e 438/GO). 2 S ilva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 66 e segs., espe cialmente p. 71. Sobre esse tema, conferir também: T eixeira , José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional, p. 295 e segs; D iniz, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos; Bastos , Celso Ribeiro & B rito, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das normas consti
tucionais.
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Q uanto à aplicabilidade das norm as constitucionais, José Afonso da Silva, baseado nas lições de Ruy Barbosa, expõe que a doutrina e a jurisprudência dos Estados Unidos da América apresentaram a classi ficação das regras com o self-executing provisions e not-self-executing provisions, ou seja, com o norm as auto-executáveis ou auto-aplicáveis e norm as não auto-executáveis ou não auto-aplicáveis. A distinção surgiu da verificação de que as constituições consubstanciam normas, princípios e regras de caráter geral, a serem convenientemente desenvolvidas e aplicadas pelo legislador ordinário, já que não podem, nem devem, descer às minúcias de sua aplicação.3
As norm as auto-executáveis, portanto, seriam aquelas desde logo aplicáveis, visto que se encontrariam revestidas de plena eficácia jurídi ca, regulando diretamente as matérias, os com portam entos, as situa ções que m encionam . Por outro lado, as norm as não auto-executáveis seriam as que dependeriam de leis infraconstitucionais para ser apli cadas, isto é, seriam destituídas de imperatividade, ineficazes. Todavia, os questionamentos continuaram os mesmos: essa classifi cação não pode ser aceita, face à juridicidade de todas as norm as cons titucionais.
A T E O R I A DE JOSE A F O N S O DA SILVA
Baseado na doutrina italiana, especialmente na obra de Vezio Crisafulli, José Afonso da Silva sugere a divisão dos comandos constitu cionais em: (1) norm as de eficácia plena, aplicabilidade direta, imediata e integral; (2) norm as de eficácia contida e aplicabilidade direta, imedia ta, mas possivelmente não integral; e (3) norm as de eficácia limitada, aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, declaratórias de princípios institutivos ou declaratórias de princípios programáticos.
3 Silva, José Afonso da. Ob. cit. p. 73.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
As norm as de eficácia plena seriam aquelas que, “desde a entrada em vigor da Constituição, produzem ou têm possibilidade de p ro d u zir todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, c o m p o rta m entos e situações, que o legislador constituinte, direta e norm ativamente, quis regular”.'' O u seja, são aquelas que possuem todos os elementos para, desde logo, produzir todos os efeitos pretendidos pelo constituinte. Já as normas de eficácia contida seriam caracterizadas por também ter condições de produzir todos os seus efeitos desde logo — como as de eficácia plena — , mas possibilitariam a restrição de sua incidência por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados.5 Por fim, as norm as de eficácia limitada seriam aquelas dependen tes da edição de norm as futuras, pelo legislador ordinário, para que, integrando-lhes a eficácia, lhes conferissem aplicabilidade integral. Seriam elas subdivididas em duas espécies: a)
a primeira, referente às norm as de princípio institutivo, seria as que revelam um esquema, princípios organizatórios de um órgão, de um instituto, de um a entidade. Sua completa aplicabilidade de penderia da edição da legislação integradora, mas, desde logo, revogaria as norm as anteriores incompatíveis com essas norm as
4 S ilva, José Afonso da. Ob. cit. p. 101. Seria, por exemplo, a previsão do art. 44 da Cons
tituição que estabelece que "o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal". Ou o art. 5o, XX, que prescreve que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado". 5 Silva, José Afonso da. Ob. cit. p. 116. Exemplos de normas de eficácia contida que pre vêem restrição por meio de lei: art. 5o, XIII e LVIII, que estabelecem, respectivamente: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" e "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei". Exemplo de norma de eficácia contida cujos conceitos gerais nela enunciados dão margem a restrições de sua aplicabilidade: art. 5o, XXXIII, "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". Com isso, parece que a termi nologia mais apropriada seria "normas de eficácia redutível ou restringível", como explica T emer , Michel. Elementos de direito constitucional, p. 24.
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
b)
constitucionais e determ inaria a conformação da legislação poste rior a seus enunciados;6 a segunda espécie seria as norm as de eficácia limitada declaratórias de princípio programático.7 Essas norm as — que, na realidade, dariam o tom às Constituições sociais constitutivas, no m om ento em que se passa do Estado liberal m ínim o para o Estado social intervencionista8 — estão voltadas ao cum prim ento de objetivos, ao desenvolvimento de programas por parte do Estado.
Elas teriam eficácia jurídica imediata, direta e vinculante somente nos seguintes termos: estabelecem u m dever para o legislador ordi nário; condicionam a legislação futura, sob pena de inconstitucionali dade; inform am a concepção de Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica; constituem sentido teleológico para a interpreta ção, integração e aplicação das norm as jurídicas;9 condicionam a ativi José Afonso da. Ob. cit. p. 121 e segs. Exemplo: art. 131: "A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídi co do Poder Executivo". 7 Por exemplo, as regras previstas no art. 3o: "Constituem objetivos fundamentais da Repú blica Federativa do Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualda des sociais e regionais; IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". E também o art. 218: "O Estado pro moverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas". 8 Conferir a respeito desse tema: Pio vesan , Flávia. Proteção judicial contra omissões legisla tivas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, p. 29 e segs.; e S ilv a , José Afonso da. Ob. cit. p. 129 e segs. Na realidade, Estado mínimo é uma designação refe rente ao mínimo de intervenção tolerada (liberalismo social) frente à crescente (social-democracia) e à máxima (socialismo) intervenção estatal. Para o liberal, o Estado é um "mal necessário", que se presta a fazer uso da força legítima, respaldada na lei, para garantir a liberdade. Por isso, diz-se que a liberdade para o liberal é a liberdade negativa: impedimentos para todos (igualdade jurídico-política), frente à liberdade. 9 José Afonso da Silva menciona: "A caracterização das normas programáticas como princípios gerais informadores do regime político e de sua ordem jurídica dá-lhes importân cia fundamental, como orientação axiológica para a compreensão do sistema jurídico nacio nal. O significado disso consubstancia-se no reconhecimento de que têm elas uma eficácia interpretativa que ultrapassa, nesse ponto, a outras do sistema constitucional ou legal, por quanto apontam os fins sociais e as exigências do bem comum, que constituem vetores da aplicação da lei" (in: S ilva, José Afonso da. Ob. cit. p. 157). 6 S ilv a ,
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dade discricionária da adm inistração e do Judiciário; criam situações jurídicas subjetivas de vantagem ou desvantagem.10 C um pre salientar que, segundo essa teoria, desenvolvida por José Afonso da Silva, essas norm as, chamadas de programáticas, produzi riam direitos subjetivos somente em seu aspecto negativo, não os ge rando no aspecto positivo, isto é, confeririam direito subjetivo às pes soas no sentido de que elas poderiam exigir, desde logo, um a abstenção do Estado, jamais um a ação."
CRÍTICA À TEORIA DE JOSÉ A F O N S O DA SILVA
Apesar do avanço no sentido de conferir mais eficácia às norm as constitucionais, principalmente às de princípio programático, alguns autores, com acerto, foram além das proposições de José Afonso da Silva, m esm o antes da prom ulgação da Constituição Federal de 1988. Celso Antônio Bandeira de Mello, ao analisar a aplicabilidade das norm as constitucionais sobre eficácia social, ainda sob a égide da C ons tituição de 1967, com a Em enda n. 1, de 1969, expressava a inviabili dade de conceber a dependência de aplicação do com ando constitu cional à edição de regra infraconstitucional nos seguintes termos: Outrossim, pretender que a invocação de uma garantia constitucional depende de lei ou, ainda mais grave, de decreto, implicaria reconhecer maior força à lei e ao decreto que à Constituição — o que seria um dislate. E pretender que a definição legal existente ou a fixação específica do salário-mínimo é irrecusável corresponderia ao despautério de atri buir ao Legislativo e ao Executivo o monopólio da interpretação das normas constitucionais, quando sequer lhes pertence, como função, a tarefa interpretativa. A interpretação que o Legislativo faz da Lei Maior é simples condição do exercício de sua missão própria: legislar dentro dos termos permitidos. ,0 S ilva, " S ilva,
José Afonso da. José Afonso da.
Ob. cit. p. 164. Ob. cit.
p.
177 e 178.
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS Nisto não se diferencia da interpretação das leis que o Executivo necessi ta fazer para cumpri-las. Porém, nem um nem outro tem a função jurídi
ca de interpretar normas. A interpretação que fazem é itinerário lógico irremissível para o cumprimento de outras funções. Diferentemente, o único a quem assiste — e monopolisticamente — a função de interpre tar normas, para aplicá-las aos casos concretos, é o Poder Judiciário. Por tudo isto, é irrecusável o direito dos cidadãos a postularem jurisdicionalmente os direitos que decorrem das normas constitucionais regula doras da Justiça Social, captando de suas disposições, conforme o caso, a) ou a garantia do exercício de poderes — como, por exemplo, os relati vos ao "direito" de greve — ou b) a satisfação de uma utilidade concre ta a ser satisfeita pela prestação de outrem — como o salário-mínimo ou o salário-família, exempli gratia — ou c) a vedação de comportamentos discrepantes dos vetores constitucionais — como a anulação de atos agres sivos à função social da propriedade ou à expansão das oportunidades de emprego produtivo.’2
Eros Roberto Grau, após afirmar o caráter reacionário da constru ção das norm as programáticas - que no máximo instituiriam prom es sas, cujo cum prim ento dependeria da ação do legislador ordinário, tendo como eficácia somente a contraposição a atos ou normas com elas incompatíveis - , analisa a jurisprudência alemã e explica: 0 Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, em acórdão de 29.1.69, firmou — a propósito de questão cuja consideração, nesta oportunidade, não vem a pelo — o entendimento que nos seguintes ter mos se enuncia, parcialmente na síntese de Rolando E. Pina: a)
quando a teoria sobre normas constitucionais programáticas pretende que na ausência de lei expressamente reguladora da norma esta não te nha eficácia, desenvolve uma estratégia mal expressada de não vigência (da norma constitucional), visto que, a fim de justificar-se uma orientação de política legislativa — que levou à omissão do legislativo — vulnera-se a hierarquia máxima normativa da Constituição;
12
B andeira
de
M ello , Celso Antônio. "Eficácia das normas constitucionais sobre justiça
social". In: Revista de Direito Público, v. 57-58, p. 254.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL b)
o argumento de que a norma programática só opera seus efeitos quando editada a lei ordinária que a implemente implica, em última instância, a transferência de função constituinte ao Poder Legislativo, eis que a omissão deste retiraria de vigência, até a sua ação, o preceito constitucional;
c)
não dependendo, a vigência da norma constitucional programática, da ação do Poder Legislativo, quando — atribuível a este a edição de lei ordinária — dentro de um prazo razoável, não resultar implementado o preceito, sua mora implica em violação da ordem constitucional;
d)
neste caso, tal mora pode ser declarada inconstitucional pelo Poder Judi ciário, competindo a este ajustar a solução do caso sub judice ao preceito constitucional não implementado pelo legislador, sem prejuízo de que o Legislativo, no futuro, exerça suas atribuições constitucionais.13
Eros Roberto Grau aponta, ainda, para o fato de que a criação de norm as programáticas, mais do que erigir um obstáculo à funcionali dade do direito, desfaz o poder de reivindicação das forças sociais, pois, se parte do que foi reivindicado encontra-se contem plada na Constituição, a acomodação do povo se dá naturalm ente, “alentado e entorpecido pela perspectiva de que esses m esm os direitos ‘um dia venham a ser realizados’”, sem ter em conta a inocuidade da previsão desses “direitos sem garantias”.1'1 Essa visão exposta por Eros Grau, apesar de correta, mostra-se reducionista, pois, pacificando-se o povo pela seletividade das d em an das, o n ão -cu m p rim en to das disposições que as contem plaram e o surgim ento de novas dem andas podem gerar mudanças, um a vez que o futuro não é garantido pela Constituição.
13
Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 127. Conferir, no mesmo Eduardo Garcia de & FernAndez, Tomás-Ramón. Curso de direito adminis
G rau , Eros Roberto.
sentido, EnterrIa , trativo, p. 121. Esses autores dizem: "Importa agora precisar que tanto o Tribunal Constitu cional ao julgar as leis (como no exercício do restante de suas competências), como os juizes e tribunais ordinários, como todos os sujeitos públicos ou privados, enquanto vinculados pela Constituição e chamados à sua aplicação na medida que temos fixado, devem aplicar a totali dade de seus preceitos, sem possibilidade alguma de distinguir entre artigos de aplicação direta e outros meramente programáticos, que careceriam de valor normativo". 1,1 G rau , Eros Roberto. Direitos, conceitos e normas jurídicas cit. p. 125.
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Mas, buscando rom per com o ciclo das previsões de direitos sem garantias, a Constituinte de 1988 criou vários mecanismos para suprir as omissões inconstitucionais, quer com o m an d ad o de injunção,15 quer por meio da ação direta de inconstitucionalidade por om issão,16 quer, ainda, pela iniciativa popular de lei.17 No entanto, até o m om ento os problemas persistem, visto que tais mecanismos não tiveram força suficiente para rom per com o referido ciclo. Em outras palavras, os aludidos instrumentos criados pela Consti tuinte não abriram caminho para term inar com as previsões de direitos sem garantias, como se verá, com mais vagar, em capítulos posteriores. Realmente, a C onstituinte m ostrou-se acanhada ao dispor sobre os efeitos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Q u a n to ao m an d ad o de injunção, a orientação predom inante no Suprem o Tribunal Federal, apesar de alguns avanços recentes, tem sido no sen tido de conferir-lhe os m esm os efeitos da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ou seja, declarar a om is são incompatível com a Constituição e dar ciência do fato ao poder omisso para que este adote as providências necessárias.18 Por fim, a iniciativa popular de lei, em razão da dificuldade de preenchim ento de seus requisitos, tam bém tem se m ostrado inócua para a solução das questões anteriorm ente expostas. Resta a previsão do § Io do art. 5o da Constituição Federal, que trata da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias 15Art. 5o, LXXI, da Constituição Federal: "conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania". 16Art. 103, § 2°, da Constituição Federal: "Declarada a inconstitucionalidade por omis são de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder compe tente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias". 17 Art. 61, § 2o, da Constituição Federal: "A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles". 18 Sobre esse tema, conferir M oraes , Alexandre de. Direito constitucional, 5a ed, p. 168 e segs., em que se pode encontrar as atuais posições adotadas pelo Supremo Tribunal Fede ral. Conferir, também, a análise crítica de Piovesan , Flávia. Proteção judicial cit. e de B arroso , Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, p. 232 e segs.
MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
fundamentais e se encontra assim enunciada: “§ Io As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Segundo esse parágrafo, as norm as definidoras dos direitos e garan tias fundamentais ou seriam de eficácia plena ou de eficácia contida, jamais de eficácia limitada, pois essas teriam aplicabilidade mediata. Esse dispositivo teve o objetivo de proporcionar a máxima efetivi dade das disposições constitucionais sobre direitos e garantias funda mentais e, apesar de previsto com o um parágrafo do art. 5o da Consti tuição Federal, sem dúvida, não se refere somente aos direitos e garantias fundamentais aí estabelecidos. Até m esm o por força do estatuído no § 2o do mesmo artigo, outros direitos e garantias fundamentais espalha dos pelo texto constitucional, bem como os decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, devem ter aplicabilidade imediata.19 Ocorre que essa disposição, por si só, não tem o condão de con ferir aplicabilidade imediata às norm as relativas aos direitos e garan tias fundamentais, até m esm o em razão de outras disposições expres sas da própria Constituição.20 Mas, sem dúvida, é u m dispositivo que
19 Art. 5o, § 2o, da Constituição Federal: "Os direitos e garantias expressos nesta Cons tituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". A respeito da incorporação automática dos tratados internacionais de direitos humanos à ordem constitu cional brasileira, verificar P io ve sa n , Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional inter nacional, p. 103-27. m Ora, como conciliar, por exemplo, o inc. XUI do art. 5o do texto constitucional, que prevê que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei", com o estabelecido no inc. XXXIX do mesmo artigo, assim enunciado: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal"? Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky (in: Direito constitucional, p. 461 e 462) afirmam que a solução pode ria se dar com uma leitura atenta do dispositivo constitucional (art. 5o, § 1o), que prescreve a aplicabilidade imediata às normas definidoras dos direitos e garantias individuais. Também tratando do § 1o do referido art. 5o, Raquel Denize Stumm (in: Principio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, p. 21 e 22) expõe: "Almeja-se conhecer o que efetivamente reconhece a Constituição como norma jurídica superior, quer dizer, com condições de produzir efeitos jurídicos imediatos. Essa forma de conceber a Constituição passa a ser obrigatória no Brasil a partir do preceituado no art. 5o, § 1o da Constituição Federal de 1988, que reconhece não mais apenas as normas infraconstitucionais como jurídicas, mas também, e nesse ponto pretende não deixar dúvidas, as normas constitucionais possuem valor jurídico imediato e, por conseguinte, o alcance de seu conteúdo aparecerá em cada caso concreto".
EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
aponta a voluntas legis e trabalha a favor do princípio da máxima efe tividade das norm as constitucionais.21
21 Conferir, sobre o princípio da máxima efetividade, C anotilho , José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.097. Para ele, esse "princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formu lado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relaçáo a todas e quaisquer normas constitu cionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvi das deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamen tais)". Verificar também a exposição mais extensa de B arroso , Lu ís Roberto, p. 219 e segs.
C o n tr o le
d a
CONSTITUCIONALIDADE
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O controle da constitucionalidade é o co njunto de m e canismos previsto na Constituição para preservar sua força norm ativa e sua hierarquia em relação aos demais atos do o rd en am en to jurídico. Assim, por meio do controle da constitucionalidade, bus ca-se evitar que leis e atos normativos incompatíveis com a Constituição sejam criados ou perm aneçam existindo no ordenam ento jurídico. Procura-se, além disso, im por ao ó r gão omisso a prática do ato exigido pela Constituição. C om o se nota, para com preender o controle da constitu cionalidade é imprescindível, desde logo, entender o conceito de inconstitucionalidade.
UM E X E M P L O
No Brasil, há vários anos, discute-se a possibilidade de realização de aborto quando a m ulher grávida depara com a m á-form ação do feto, que inviabiliza a vida extra-uterina. 89
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C om o noticia o professor José Afonso da Silva,1 durante a última Constituinte, houve três tendências sobre a questão do aborto: Uma queria assegurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, insepa rável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mu lher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto.
Com efeito, a Constituição Federal, no caput do art. 5o, estabelece que, entre outros direitos, é inviolável o direito à vida e à liberdade, mas deixou para a legislação ordinária a possibilidade de criminalizar o aborto. O art. 2o do Código Civil de 2002 prevê que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Por sua vez, a Parte Especial do Código Penal, decretada durante o Estado Novo, pune a prática do aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, bem como o aborto provocado por terceiro, com ou sem a anuência dela. Já o art. 128 do Código Penal prevê que não se pune o aborto p ra ticado p o r médico se não há o utro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez é resultante de estupro e o aborto é precedido de consen tim ento da gestante. Nota-se que não há permissão legal expressa para a prática de ab or to na hipótese de se constatar a má-formação do feto. Mas a jurispru dência, apesar de alguma divergência, passou a adm itir tal prática, nos últimos anos. Algumas decisões judiciais, realizando um a interpretação evoluti va da n o rm a jurídica, consideram que, por ocasião da prom ulgação do Código Penal, em 1940, não existiam os recursos técnicos que atual m ente perm item a detecção de anomalias fetais severas. Assim, não se poderia prever, naquela ocasião, a m á-form ação do feto entre as causas de exclusão de ilicitude do aborto. ' Curso de direito constitucional positivo, p. 206.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Alguns juizes tam bém passaram a fazer um a interpretação extensi va do art. 128,1, do Código Penal, para adm itir a exclusão da ilicitude do aborto não só quando realizado para salvar a vida da gestante, mas q u a n d o se m o stra r necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. C om o decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo,2 se a lei admite o aborto para preservar os sentimentos da mãe, no caso de gravidez resultante de estupro — m esm o quando o feto é sadio e perfeito — , por m aior razão deve-se autorizar a interrupção da gravidez quando constatada um a grave m á-form ação fetal. Com isso, evita-se o sofri m ento físico e psicológico não só da gestante, mas tam bém dos outros m em bros da família. Ademais, o art. 5o, caput, da Constituição Federal procura garantir a inviolabilidade do direito à vida, mas, constatada a inviabilidade de vida extra-uterina do feto, não há que se falar em preservação de tal direito. Aliás, o art. I o, III, da Constituição tam bém prevê que um dos fundam entos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pes soa hum ana. E não parece digno exigir que um a m ulher grávida, sa bendo que dará à luz um natim orto, não possa ter a liberdade de optar pela interrupção da gravidez. Aliás, em países onde existem restrições legais à interrupção da gra videz, os abortos provocados têm sido apontados como uma das princi pais causas de mortalidade materna. Tais restrições levam mulheres de alta renda a clínicas particulares, que utilizam técnicas modernas de in terrupção da gravidez, ao passo que induzem mulheres de baixa renda a recorrer a práticas de alto risco à saúde, como procurar um “aborteiro” ou se automedicar com drogas abortivas de eficácia não comprovada e, muitas vezes, vendidas em farmácias, sem prescrição médica. Contudo, houve casos, espalhados por vários estados brasilei ros, em que o Judiciário não adm itiu a interrupção da gravidez, mesmo constatada a inviabilidade de vida extra-uterina do feto. A pergunta que surge é a seguinte: existe um m ecanism o jurídico capaz de acabar com as decisões contraditórias em todo o território
2 Mandado de Segurança n. 329.564-3/3-00, rel. Des. David Haddad, j. 20.11.2000.
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nacional sobre a possibilidade ou não de interrom per a gravidez q u a n do constatada a inviabilidade de vida extra-uterina? Em ju n h o de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) propôs um a ação perante o S uprem o Tribunal Fe deral d en o m in ad a argüição de d escum prim ento de preceito fu n d a m ental (ADFP) com o intuito de fazer cessar a divergência de deci sões judiciais sobre a possibilidade de gestantes de fetos anencefálicos (ausência total ou parcial do cérebro) interro m p erem a gravidez. Em abril de 2005, o Supremo Tribunal Federal admitiu, por 7 votos a 4, que a ADPF proposta pela CNTS sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos é um meio hábil para solucionar a divergência de jurisprudência. Essa ação judicial, a argüição de d escum p rim ento de preceito fundam ental, m ostra-se com o um dos m ecanism os de controle da constitucionalidade adm itidos pelo o rd en am en to jurídico brasileiro, m ecanism os estes que serão analisados neste capítulo.
C O N C E I T O DE I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
A Constituição rígida encontra-se no topo do ordenamento jurídico, dando fundamento de validade a todas as demais normas. Ou seja, a Consti tuição impõe o conteúdo que as outras normas terão e qual deverá ser o pro cedimento adotado para a elaboração das regras hierarquicamente inferiores. A inconstitucionalidade surge, então, quando se constata a in co m patibilidade entre as disposições constitucionais e os atos ou omissões infraconstitucionais. ■I A I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E POR AÇÃO
A inconstitucionalidade por ação ocorre quando um a lei ou um ato norm ativo é criado em desacordo com a Constituição.3 3 O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Injunção n. 542/SP, relatado pelo ministro Celso de Mello e julgado em 29 de agosto de 2001, afirmou que a "situação de inconstitu cionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, seja quando este vem a fazer o que o estatuto constitucional não lhe permite, seja, ainda, quando vem a editar nor mas em desacordo, formal ou material, com o que dispõe a Constituição. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação".
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Q uando o conteúdo da regra é incompatível com os dispositivos constitucionais, estará caracterizada a inconstitucionalidade material.4 Nas palavras de Gilmar Mendes:5 (...) inconstitucionalidade material envolve o próprio conteúdo do ato im pugnado, abrangendo náo apenas eventual contradição entre a norma constitucional e o ato legislativo ordinário, mas também o chamado des vio ou excesso de poder legislativo. A primeira espécie supõe o confron to entre comandos normativos, resultantes da adoção de prescrições contrárias aos princípios constitucionais. A inconstitucionalidade decor rente do desvio de poder está marcada pela incompatibilidade entre os objetivos da lei e os fins constitucionalmente consagrados, ou pela vio lação ao princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso.
Por outro lado, quando a Constituição prevê que, para a criação de um a certa espécie normativa, deve-se obedecer a um determ inado procedimento, e esse rito não é seguido, essa forma não é obedecida, estará configurada a inconstitucionalidade formal.6 Há, ainda, a inconstitucionalidade orgânica, que ocorre q u a n do o legislador ordinário viola as norm as de competência.7 Assim, se a “ Verificar, por exemplo, o Ag. Reg. no RE n. 244.048/SP, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 27 de abril de 2004 e relatado pelo ministro Celso de Mello. Nesse caso, o tribunal decidiu que a Lei n. 11.722/95, do município de São Paulo, transgrediu a garantia da irredutibilidade de vencimentos, inscrita no art. 37, XV, da Constituição da República, incidindo tal diploma legal, dessa maneira, em inconstitucionalidade material. 5 M endes, Gilmar Ferreira. Controle da constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 36 e 37. 6 O Supremo Tribunal Federal, na ADIn 2.892/ES, julgada em 19 de fevereiro de 2004 e que teve como relator o ministro Carlos Velloso, decidiu que é do chefe do Poder Executi vo a iniciativa de projeto de lei que trata de servidor público; portanto, projeto dessa natureza iniciado por outra pessoa padece do vício de inconstitucionalidade formal. 7 Sobre essa classificação, verificar C anotilho , José Joaquim Gomes & M oreira , Vital. Fundamentos da Constituição, p. 267. Entre nós, conferir Ra m o s , Elival da Silva. A inconsti tucionalidade das leis: vício e sanção, p. 149 e segs. O Supremo Tribunal Federal, de modo mais freqüente, tem entendido que a inconstitucionalidade orgânica é, na verdade, inconsti tucionalidade formal e, em outros momentos, menos comuns, decide que se trata de incons titucionalidade material. Na ADIn 2.257/SP, julgada em 6 de abril de 2005 e relatada pelo ministro Eros Grau, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 26 da Lei Complementar n. 851/98, do estado de São Paulo, padecia do vício de inconstitucionalidade formal pois tratava de matéria que, segundo o art. 2 2 ,1, compete à União legislar. Já na ADIn 2.328/SP,
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Constituição Federal diz que compete privativamente à União legislar sobre determ inado assunto e um m unicípio edita um a lei sobre o te ma, ocorrerá um a inconstitucionalidade orgânica. Portanto, o fenôm eno da inconstitucionalidade por ação afeta a validade das regras infraconstitucionais. Assim, se um a lei ordinária, por exemplo, contraria disposições constitucionais, ela deverá sofrer a pecha de inconstitucional e será considerada inválida. M
A LEI A I N D A C O N S T I T U C I O N A L
O Supremo Tribunal Federal tem admitido, pelo menos desde 1994, quando do julgamento do habeas corpus n. 70.514/RS, relatado pelo ministro Sydney Sanches, a possibilidade de que circunstâncias fáticas caracterizem a consonância, num determinado m om ento, de um a n o r ma infraconstitucional com a Constituição. Mas, n um outro momento, havendo a m udança das situações de fato, a mesma regra pode se tornar inconstitucional. Em 23 de m arço de 1994, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o referido habeas corpus, entendeu que não deveria ser reconhecida: (...) a inconstitucionalidade do § 5o do art. 1o da Lei n. 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n. 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de orga nização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública.
Na m esm a decisão restou consignada a possibilidade de o T ribu nal vir a declarar a inconstitucionalidade da referida lei, em outra o p o rtu n id ad e, se as circunstâncias de fato revelarem que as defenso rias públicas dos estados alcançaram o nível de organização do M i
relatada pelo ministro Maurício Corrêa e julgada em 17 de março de 2004, o mesmo tribunal decidiu que uma lei do Estado de São Paulo que dispunha sobre fiscalização eletrônica e multa era materialmente inconstitucional por invadir competência da União para legislar sobre trânsito em transporte (art. 22, XI).
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
nistério Público respectivo, que é a parte adversa no processo de ação penal pública.8 Com isso, houve o reconhecimento de que podem existir leis ainda constitucionais. H
A I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E POR O M IS S Ã O
Já a inconstitucionalidade por omissão ocorre quando a Constitui ção determina que um certo ato deva ser praticado e a pessoa ou órgão encarregado de agir, nos termos da Constituição, deixa de fazê-lo. O u se ja, não é feito aquilo a que se estava obrigado constitucionalmente.9 Com o afirma Canotilho,10trata-se da violação da Constituição pelo “silêncio legislativo” Segundo esse jurista, as omissões legislativas p o dem resultar da violação de preceitos constitucionais concretamente impositivos" ou do descum prim ento das ordens de legislar.'2 Mas ta m bém é possível a configuração da omissão inconstitucional quando não se dá a atuação de normas-fim ou normas-tarefa'* ou “quando a consti tuição consagra norm as sem suficiente densidade para se tornarem norm as exeqüíveis por si mesmas, reenviando implicitamente para o legislador a tarefa de lhe dar exeqüibilidade prática”.14 Nos primeiros
8 Para uma análise detalhada da decisão citada, conferir M endes, Gilmar Ferreira. Jurisdi ção constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, p. 295-301. 9 No Mandado de Injunção n. 542/SP, relatado pelo ministro Celso de Mello e julgado em 29 de agosto de 2001, o Supremo Tribunal Federal afirmou que se o Estado "deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a própria Carta Polftica lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional". Desse non facere ou non praestare resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total (quando é nenhuma a providência ado tada) ou parcial (quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público). 10 C anotilho , José Joaquim Gomes. Direito constitucional cit. p. 917 e 918. 11 Por exemplo, a previsão do art. 208 da Constituição Federal, que prevê o dever de o Estado garantir a educação. 17O art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias mostra-se como um des ses casos: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Consti tuição, elaborará código de defesa do consumidor". 13 Por exemplo, as previsões do art. 3o da Constituição Federal. Nesse artigo constam os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. 14 Por exemplo, a previsão constitucional no sentido de que a lei punirá qualquer dis criminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5o, XLI).
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casos, a inconstitucionalidade pode ensejar ação de inconstituciona lidade por omissão, mas, nos últimos, a concretização constitucional dependeria “essencialmente da luta política e dos instrum entos d em o cráticos”. H á ainda a possibilidade de caracterização de omissões legislativas parciais. Essas hipóteses ocorrem quando o legislador cum pre incom pletamente o dever constitucional de produzir norm as que concre tizem as norm as constitucionais.15 O Suprem o Tribunal Federal, em 3 de novem bro de 2004, ao de cidir a Q uestão de O rdem na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.442/DF, relatada pelo m inistro Celso de Mello, reconheceu a in constitucionalidade p o r omissão parcial da m edida provisória que fixava o salário-m ínim o em valor m u ito inferior ao exigido pelo art. 7o, IV, da C onstituição Federal. Seguem trechos da em enta do referi do acórdão: Salário-mínimo. Valor insuficiente. Situação de inconstitucionalidade por omissão parcial. A insuficiência do valor correspondente ao saláriomínimo — definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família — configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração digna (CF, art. 7o, IV), estará realizando, de modo imperfeito, porque incompleto, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica. A omissão do Estado — que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional — qualifica-se como com portamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, me diante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, tam bém compromete a eficácia da declaração constitucional de direitos e
'5 Conferir, nesse sentido, C anotilho , José Joaquim Gomes. Ob. cit. p. 919; e M endes , Gilmar Ferreira. Controle da constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos cit. p. 60-3.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. As si tuações configuradoras de omissão inconstitucional, ainda que se cuide de omissão parcial, refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado — além de gerar a erosão da própria consciência constitucional — qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança ilegítima da Constituição, expon do-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário. Precedentes: RTJ 162/877-879, rel. Min. Celso de Mello - RTJ 185/794-796, rel. Min. Celso de Mello. (...) Ação direta de inconstitucionalidade e revogação superveniente do ato estatal impugnado. A revogação superveniente do ato estatal impugnado faz instaurar situação de prejudicialidade que provoca a extinção anômala do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, eis que a ab-rogação do diploma normativo questionado opera, quanto a este, a sua exclusão do sistema de direi to positivo, causando, desse modo, a perda ulterior de objeto da pró pria ação direta, independentemente da ocorrência, ou não, de efeitos residuais concretos. Precedentes.
C om isso, é possível dizer que a inconstitucionalidade p o r o m is são ocorre q u an d o o legislador não cum pre ou cum pre de m o d o in com pleto o dever constitucional a ele dirigido de elaborar norm as jurídicas. Nesse caso, o fenôm eno da inconstitucionalidade atinge a eficácia das norm as constitucionais, diferentemente do que ocorre na hipótese da inconstitucionalidade por ação.
P R E S S U P O S T O S PARA A E X I S T Ê N C I A DO C O N T R O L E DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
Os pressupostos para a efetivação do controle da constitucionali dade são a existência de um a Constituição rígida e a previsão de um órgão encarregado de realizá-lo.
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■ü A RIGIDEZ C O N S T I T U C I O N A L E O C O N T R O L E DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
C onform e já se verificou, Constituição rígida é aquela que prevê para a sua alteração um procedim ento mais difícil, mais árduo do que o previsto para a criação ou alteração da legislação ordinária. E, do ponto de vista lógico-formal, só é possível falar em hierarquia da Cons tituição em relação às demais regras do ordenam ento jurídico quando se está diante da rigidez constitucional.16 Assim, quando há hierarquia formal entre a Constituição e as de mais norm as do ordenam ento é que podem surgir inconstitucionalidades. E somente quando se vislumbrar a possibilidade de ocorrência de inconstitucionalidades é que tem sentido falar em controle da cons titucionalidade. Portanto, o controle da constitucionalidade não existe em países que adotam constituições flexíveis, mas som ente naqueles que têm constituições rígidas. H
O ÓRGÃO E N C A R R E G A D O DE REALIZAR O C O N T R O L E DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
O outro pressuposto para que ocorra o controle da constituciona lidade é a existência de um órgão encarregado para realizar a aprecia ção das possíveis inconstitucionalidades.
0 controle judicial ou jurisdicional Q u an do a Constituição confere ao Poder Judiciário a função de realizar o controle da constitucionalidade, ou seja, de dizer se os atos ou omissões do Poder Público estão em desacordo ou em consonância com a Constituição, afirma-se que o controle adotado é judicial ou jurisdicional. O sistema jurisdicional foi adotado pelos Estados Unidos da A m é rica e se espalhou por m uitas ex-colônias inglesas, com o o Canadá, a Austrália e a índia, conform e noticia M auro Capelletti.17 16Conferir, nesse sentido, Ra m o s , Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vicio e sanção, p. 54-60. 17 C apelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito com parado, p. 68.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
No Brasil, o órgão encarregado de realizar o controle da constitu cionalidade das leis e dos atos norm ativos é o Poder Judiciário, ou seja, nos term os da Constituição Federal brasileira, todos os juizes e trib u nais são competentes para exercer o controle da constitucionalidade, sendo que essa função, em última análise, é realizada pelo Supremo Tribunal Federal. Por esse motivo, diz-se que, no Brasil atual, o controle da consti tucionalidade é judicial. Todavia, cum pre esclarecer que o Judiciário é órgão competente para exercer o controle da constitucionalidade quando a n o rm a já se encontra no m u n d o jurídico, ou seja, quando o controle é repressivo. Por outro lado, antes de a n o rm a entrar em vigor, tam bém é possível exercer o controle da constitucionalidade — com o se verá adiante — , sendo que, nessa hipótese, o controle será realizado pelo Legislativo e pelo Executivo. |
0 controle político
Q u an d o o controle da constitucionalidade não é dado pela C ons tituição aos órgãos do Poder Judiciário, costuma-se dizer que o sistema adotado é o do controle político. M auro Capelletti lembra que um controle de caráter não jurisdicional, mas puram ente político, foi adotado pelo México, em 1836, quando se conferiu ao Supremo Poder Conservador — inspirado no Sénat Conservateur da Constituição francesa de 1799 — a com petên cia de realizar o controle da constitucionalidade.18 O m esm o au to r lem bra a adoção do controle político da consti tucionalidade pela C onstituição de 1936 da antiga União Soviética, que conferia ao Soviet S uprem o — similar ao P arlam ento dos países ocidentais — a com petência de exercer o controle da con stitu cio nalidade.
18 Ob. cit. p. 26.
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O CONTROLE PREVENTIVO DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
Tratando do m o m en to em que é exercido, o controle da constitu cionalidade pode ser classificado com o prévio ou repressivo. O controle prévio — tam bém cham ado de preventivo — é reali zado antes de o ato norm ativo entrar em vigor, antes de a n o rm a exis tir no m u n d o jurídico, ou seja, na fase em que ainda não se tem a lei, mas simplesmente um projeto de lei. Um exemplo de controle preventivo — e tam bém político — da constitucionalidade no direito com parado é o adotado na França.19 A Constituição francesa de 1958 prevê, em seu art. 56, que o Conselho C onstitucional seja com posto de nove m em bros, para u m m an d ato de nove anos. Cada terço dos m em b ro s do referido C onse lho deve ser renovado em períodos de três anos, sendo três m em bros nom eados pelo presidente da República, três pelo presidente da As sembléia Nacional e três pelo presidente do Senado. Além desses m em bros, todos os ex-presidentes da França com põem , de form a vitalícia, o Conselho Constitucional. A C onstituição francesa estabe lece que o aludido Conselho, entre outras funções, deverá se p ro n u n ciar sobre a conform idade das leis orgânicas e dos regulam entos das assembléias parlamentares com a Constituição, antes de entrarem em vigor (art. 61). A decisão do Conselho C onstitucional sobre a incons titucionalidade de um a determ inada disposição, além de im pedir a prom ulgação e a entrad a em vigor da regra inconstitucional, é de observância obrigatória a todas as autoridades adm inistrativas e jurisdicionais (art. 62). O Chile tam bém adota um sistema de controle preventivo da cons titucionalidade. O art. 81 da Constituição chilena de 1980 prevê que o Tribunal Constitucional será com posto de sete m em bros, sendo três da Corte Suprema, eleitos por esta; um advogado designado pelo presi
19
Sobre esse exemplo, conferir C apelletti, Mauro. Ob. cit. p. 27-9. Verificar, também, M oraes , Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais: garantia suprema da Constituição, p. 136 e segs.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
dente da República; dois advogados eleitos pelo Conselho de Segurança Nacional e um advogado eleito pelo Senado. Entre as atribuições do Tri bunal Constitucional estão: exercer o controle da constitucionalidade das leis orgânicas constitucionais antes de sua promulgação e resolver as questões sobre a constitucionalidade que sejam suscitadas durante a tra mitação dos projetos de lei ou de reforma constitucional, bem como dos tratados submetidos à aprovação do Congresso (art. 82). Em Portugal, os arts. 278 e 279 da Constituição prevêem a fiscali zação preventiva da constitucionalidade. A questão da inconstituciona lidade pode ser levada ao Tribunal Constitucional pelo presidente da República, pelos ministros da República, pelo primeiro-ministro, por um quinto dos deputados da Assembléia da República, dependendo, em cada caso, do tipo de norm a questionada. Em linhas gerais, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norm a constante de qualquer decreto ou acor do internacional, o diploma deverá ser vetado pelo presidente da Re pública ou pelo ministro da República, conforme os casos, e devolvido ao órgão que o tiver aprovado. Assim, o órgão que o aprovou terá a oportunidade de expurgar a norm a julgada inconstitucional. No Brasil, quando o projeto de lei está tram itando no Congresso Nacional, tanto na Câm ara dos Deputados quanto no Senado existe u m a comissão encarregada de analisar se esse projeto é compatível ou não com a Constituição. Todos os projetos devem passar por essas comissões, subm etendo-se ao controle prévio da constitucionalidade. Atualmente, no Senado, essa comissão chama-se Comissão de C onsti tuição, Justiça e Cidadania. Na C âm ara dos Deputados, o nom e é Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Ainda há um segundo m o m en to em que deve ocorrer o controle preventivo da constitucionalidade no Brasil. Depois de o projeto de lei ser aprovado em ambas as Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), ele é encam inhado ao presidente da República que, concordando com o projeto, o sancionará e, no caso de discordar, de verá vetá-lo. Um a das hipóteses previstas no § Io do art. 66 da Consti tuição Federal é a de o presidente da República vetar o projeto por entendê-lo inconstitucional. É o cham ado veto jurídico.
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O CONTROLE REPRESSIVO DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
O controle repressivo — ou a posteriori — da constitucionalida de se dá após o ato norm ativo infraconstitucional ingressar no m u n do jurídico. Nesse caso, o controle, no Brasil, é realizado pelo Poder Judiciário. Somente em situações excepcionais o controle repressivo fica a cargo do Poder Legislativo, com o na hipótese do art. 49, V, da Consti tuição Federal, que estabelece a competência do Congresso Nacional de sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. O controle repressivo realizado pelo Poder Judiciário, no Brasil, pode ser difuso (tam bém cham ado de controle concreto, incidental, pela via de exceção ou pela via de defesa) ou concentrado (tam bém denom inado de controle abstrato ou pela via de ação direta).
O CONTROLE DIFUSO DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
O controle difuso surge da idéia de que todo e qualquer órgão do Poder Judiciário pode realizar o controle da constitucionalidade, u m a vez que é próprio da atividade jurisdicional interpretar e aplicar as regras jurídicas, devendo, antes de mais nada, analisar se as norm as infraconstitucionais são compatíveis ou não com as disposições cons titucionais. Esse tipo de controle da constitucionalidade nasceu nos Estados Unidos da América, em 1803, com o julgam ento do caso M adison con tra Marbury. C ontudo, a justificativa para a adoção desse tipo de controle pode ser encontrada anos antes nas exposições de Alexander H am ilton,20 em um dos artigos federalistas: 20
M adison , James
Borges, p. 480, art. LXXVIII.
et a i Os artigos federalistas: 1787-1788. Trad. Maria Luiza X. de A.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
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A completa independência dos tribunais de justiça é peculiarmente essen cial numa Constituição limitada. Por Constituição limitada, entendo uma que contenha certas exceções especificadas ao poder legislativo, como, por exemplo, a de que ele não aprovará decretos de perda de direitos ci vis, leis
ex post facto, ou coisas semelhantes. Na prática, limitações desse
tipo não podem ser preservadas senão por meio dos tribunais de justiça, cuja missão deverá ser declarar nulos todos os atos contrários ao sentido manifesto da Constituição. Sem isto, todas as restrições a direitos ou privi légios particulares eqüivaleriam a nada.
Na via difusa, o controle da constitucionalidade ocorre incidentalm ente em qualquer processo judicial, motivo pelo qual tam bém é cha m ado de controle incidental ou incidenter ta n tu m .21 No litígio, a questão sobre a inconstitucionalidade da n o rm a não é o objeto central da lide. Ao contrário, a parte litigante, para alcan çar o seu direito, requer que u m a d eterm in ad a regra jurídica não seja aplicada ao seu caso concreto p o r entendê-la inconstitucional. Por essa razão esse tipo de controle tam b ém é cham ado de controle pela via de defesa. O Judiciário, então, ao in terp retar as regras aplicáveis ao caso sub judice, pode considerar a n o rm a jurídica incom patível com a C onstituição, declarando-a inconstitucional e não a aplicando ao caso concreto, d a n d o prevalência às disposições constitucionais. Por esse m otivo esse controle ta m b é m é cham ado de controle pela via de exceção. Em síntese, por m eio de qualquer ação judicial, o Poder Judiciá rio, no caso concreto, para resolver o litígio, pode declarar a inconsti tucionalidade de qualquer lei federal, estadual ou municipal, editadas antes ou depois da Constituição vigente.
21 Em Portugal, o art. 280 da Constituição prevê a fiscalização concreta da constitu cionalidade pelo Tribunal Constitucional. 0 item 1 de tal artigo estabelece o seguinte: "1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade; b) Que apli quem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo".
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
■I A C L Á U S U L A DE RESERVA DE P L E N Á R IO
O art. 97 da Constituição Federal estabelece a cham ada cláusula de reserva de plenário ao determ inar que som ente pelo voto da maioria absoluta de seus m em bros (ou dos m em bros do respectivo órgão espe cial) poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato norm ativo do Poder Público. Com isso, a Constituição prevê que a decisão declaratória da in constitucionalidade de um a lei ou de um ato norm ativo som ente terá eficácia se for tom ada pela maioria absoluta dos m em bros do tribunal ou de seu órgão especial. C ontudo, a Lei n. 9756/98 incluiu o parágrafo único ao art. 481 do Código de Processo Civil, prevendo que os “órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciam ento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. Portanto, a questão sobre a inconstitucionalidade de um a deter m inada lei, argüida n u m caso concreto, não precisa ser submetida pela C âm ara ou pela Turm a do Tribunal ao plenário ou ao órgão especial se já tiver ocorrido a decisão, em outro caso concreto, sobre a incons titucionalidade da regra pelo plenário do Supremo Tribunal Federal ou do próprio tribunal em que está tram itan do o processo.22 Convém esclarecer que o art. 93, XI, da Constituição Federal estabe lece que “nos tribunais com núm ero superior a vinte e cinco julgadores poderá ser constituído órgão especial, com o m ínim o de onze e o máxi m o de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições adm inis trativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno”. Essas previsões, no entanto, não im pedem que os juízos m onocráticos profiram decisões sobre a inconstitucionalidade das regras. Por m eio de recursos judiciais, a questão sobre a inconstitucio nalidade da regra pode chegar à apreciação do Suprem o Tribunal Fe 77
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, ao julgar, em 19 de abril de 2005, o Ag. Reg. no RE n. 440.458/RS, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, decidiu sobre a aplica bilidade da exceção prevista no art. 481, parágrafo único, do Código de Processo Civil, que dispensa a submissão ao plenário, ou ao órgão especial, da argüição de inconstitucionali dade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Fede ral sobre a questão.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
deral, que, co nfirm and o a inconstitucionalidade da lei ou do ato n o r mativo, profere decisão que continua valendo som ente para as partes litigantes. H
OS EFEITOS DA DECISÃO NO C O N TR O LE DIFUSO
A declaração de inconstitucionalidade no controle difuso tem efei tos som ente entre as partes litigantes (efeitos inter partes), ou seja, a regra continua valendo para todas as demais pessoas que não partici param do litígio. A decisão judicial sobre a inconstitucionalidade da n o rm a apenas exime os litigantes de cu m p rir a regra infraconstitucional porque tal disposição norm ativa está em desacordo com a C ons tituição. A decisão proferida na via de exceção ou defesa tem efeitos ex tunc, ou seja, prod uz efeitos retroativos, afastando a aplicação, no caso con creto, da regra declarada inconstitucional desde a edição da norm a. Todavia, excepcionalmente, o Suprem o Tribunal Federal tem co n ferido efeitos ex nunc (não-retroativos) e até m esm o pro futuro, ou se ja, a partir de um m om ento fixado para frente, ao declarar a inconsti tucionalidade de um a regra em um caso concreto. Um exemplo de decisão de inconstitucionalidade com efeito pro futuro ocorreu quando do julgam ento do Recurso Extraordinário n. 266.994/SP, em 31 de março de 2004, relatado pelo ministro Maurício Corrêa. Na ocasião, o Suprem o Tribunal Federal decidiu o seguinte: Recurso extraordinário. Municípios. Câmara de vereadores. Composição. Autonomia Municipal. Limites constitucionais. Número de vereadores pro porcional à população. CF, art. 29, IV. Aplicação de controle aritmético rígi do. Invocação dos princípios da isonomia e da razoabilidade. Incom patibilidade
entre
a
população
e
o
número
de
vereadores.
Inconstitucionalidade, incidenter tamtum, da norma municipal. Efeitos para o futuro. Situação excepcional. 1 - O art. 29, IV, da Constituição Fe deral exige que o número de vereadores seja proporcional à população dos municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas
a, b e c. 2 - Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, art. 29), é tornar sem sentido a pre
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL visão constitucional expressa da proporcionalidade. 3 - Situação real e contemporânea em que municípios menos populosos têm mais verea dores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. A ausência de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos le gislativos municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4 - Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente. 5 - Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer lesão aos demais princípios constitucionais nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, art. 37). 6 - Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a pro porcionalidade da representação política em face do número de habi tantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de com posição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF, arts. 27 e 45, § 1o). Inconstitucionalidade. 7 - Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria em grave ameaça a todo o sistema legis lativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionali dade. Recurso extraordinário não conhecido.
No caso, se os efeitos da decisão fossem retroativos, jam ais aq u e le n ú m e ro de vereadores poderia ter com posto a C âm ara Municipal. Assim, todos os atos legislativos produzidos d u ra n te o período em que o n ú m e ro de vereadores foi superior ao adm itido co n stitu cionalm ente poderiam ser questionados. Portanto, a única solução viável para preservar a segurança jurídica seria a de im p o r a redução do n ú m e ro de parlam entares apenas para a próxim a legislatura. Com isso, o Suprem o Tribunal Federal fixou que a decisão proferida na via difusa teria efeitos pro futuro, isto é, som ente a p artir das eleições seguintes.
CONTROLE OA CONSTITUCIONALIDADE
Logo, as decisões sobre a inconstitucionalidade de um a regra, no controle difuso, produzem , com um ente, efeitos retroativos (ex tunc). Mas, tendo em vista relevantes interesses sociais ou motivos de segu rança jurídica, a decisão pode ter efeitos ex nunc ou pro futuro. H
A C O M PETÊ N C IA DO SENADO NO C O N TR O LE DIFUSO DA C O N S T IT U C IO N A L ID A D E
O art. 52, X, da Constituição Federal prevê a possibilidade de o Senado Federal — no caso em que ocorreu o controle difuso da cons titucionalidade — “suspender a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Suprem o Tribunal Federal”. Tal previsão rem onta à Constituição de 1934, mas deixou de ter grande im portância prática depois da introdução, no Brasil, do sistema de controle concentrado da constitucionalidade, por meio da Emenda Constitucional n. 16, de 1965. C om o se verá mais adiante, por meio do controle concentrado a decisão do Suprem o Tribunal Federal produz efeitos erga omnes. De qualquer maneira, por força do disposto no art. 52, X, da atual Constituição brasileira, o Senado Federal tem a prerrogativa de sus pender a execução da lei declarada inconstitucional, na via difusa, pelo Supremo Tribunal Federal. Com isso, a decisão do Suprem o Tribunal Federal, que valia somente para as partes litigantes (efeitos inter par tes), passa a valer para todos (efeitos erga omnes) a partir da publicação da resolução do Senado. Portanto, a lei, que deixou de ser aplicável ao caso concreto, em razão da decisão judicial que declarou sua inconsti tucionalidade, passa a não ser aplicável a todas as outras pessoas, em função da resolução do Senado. Tal competência do Senado somente é exercida quando a decisão do Supremo Tribunal Federal é proferida na via incidental, pois, q u a n do este tribunal declara a inconstitucionalidade de um a lei ou de um ato normativo, na via de ação direta, os efeitos da decisão judicial atin girão a todos (erga omnes). Isso é o m esm o que dizer que a decisão judicial fará com que a lei não valha mais para ninguém. Ora, se a lei declarada inconstitucional, na via concentrada, deixa de produzir efei
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tos para todas as pessoas, não faz sentido o Senado suspender os efeitos dela. Sem dúvida, não há que suspender os efeitos de um a lei que já não pro du z mais efeitos. C um pre esclarecer que o Senado não é obrigado a suspender a eficácia da lei declarada inconstitucional, na via difusa, pelo Supremo Tribunal Federal. O u seja, ele não atua de m odo vinculado, mas de m aneira discricionária, segundo critérios políticos de conveniência e oportunidade.23Ademais, o Senado pode exercer essa competência que a Constituição lhe confere de m aneira privativa a qualquer tempo, sem prazo definido, desde que o faça depois e nos limites da decisão do Supremo Tribunal Federal que declarar, incidentalmente, a inconstitu cionalidade da norm a. Apesar de o art. 52, X, da Constituição tratar de “lei declarada inconstitucional”, deve-se adm itir a possibilidade de o Senado Federal suspender a execução de todos os atos normativos federais, estaduais ou municipais declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Suprem o Tribunal Federal.24 Questão polêmica é saber se a suspensão, pelo Senado, da lei de clarada inconstitucional pelo Suprem o Tribunal Federal produz efeitos ex tunc (retroativos) ou ex nunc (sem efeitos retroativos). Pela dicção do art. 52, X, seria pertinente defender que a decisão do Senado, por ter o objetivo de “suspender” a execução da lei declarada inconstitucional, deveria produzir efeitos ex nunc. Aliás, essa é posição adotada, por exemplo, por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,25 José
33 Nesse sentido, conferir o voto do ministro Victor Nunes no Mandado de Segurança n. 16.512/DF, julgado em 25 de maio de 1966 e relatado pelo ministro Oswaldo Trigueiro. Verificar, ainda, análise minuciosa do referido acórdão feita por M endes, Gilmar Ferreira. Ob. cit. p. 214 e segs. 2"' Nesse sentido, conferir Barroso , Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise critica da jurisprudência, p. 91. Também defende essa posição M endes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional, p. 393. 25 B andeira de M ello, Oswaldo Aranha. Ob. cit. p. 211. Esse autor afirma que a "sus pensão da lei corresponde à revogação da lei, como salientado. Devem, portanto, ser respeitadas as situações anteriores definitivamente constituídas, porquanto a revogação tem efeito ex nunc. Não alcança os atos jurídicos formalmente perfeitos, praticados no passado, e os fatos consumados, ante sua irretroatividade, e mesmo os efeitos futuros dos direitos re
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Afonso da Silva26 e Regina Maria Macedo Nery Ferrari.27 C ontudo, Luis Roberto Barroso defende a “atribuição de efeitos ex turtc à suspensão do ato norm ativo pelo Senado”.28 Segundo esse autor: (...) com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental, ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mes mos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção. Também não parece razoável e lógica, com a vênia devida aos ilustres autores que professam entendimento diverso, a ne gativa de efeitos retroativos à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que reconheça a inconstitucionalidade de uma lei. Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados do art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!
C ontudo, a solução mais adequada parece ser a de conferir ao Se nado Federal a possibilidade de suspender, com efeitos retroativos ou não, a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tri
gularmente adquiridos. O Senado federal apenas cassa a lei, que deixa de obrigar, e, assim, perde a sua executoriedade porque, dessa data em diante, a revoga simplesmente". 26 S ilv a , José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 56. Esse autor expli ca o seguinte: "O problema deve ser decidido, pois, considerando-se dois aspectos. No que tange ao caso concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei continua eficaz e aplicável, até que o Senado suspenda sua executoriedade; essa manifestação do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só tem efeitos, daí por diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos". 27 Ferrari, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, p. 205. Essa autora afirma que "só a partir dessa suspensão é que a lei perde a eficácia, o que nos leva a admitir seu caráter constitutivo. A lei até tal momento existiu e, portanto, obrigou, criou direitos, deveres, com toda sua carga de obrigatoriedade, e só a partir do ato do Sena do é que ela vai passar a não obrigar mais". 28 B arroso , Luís Roberto. O controle da constitucionalidade cit. p. 91 e 92.
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bunal Federal. Ora, o Senado tem a competência privativa de realizar tal suspensão em qualquer m om en to posterior à decisão do Supremo Tribunal. Aliás, o Senado tem a possibilidade de até m esm o não sus pender a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tri bunal. Portanto, parece lógico que o Senado, diante de um a situação concreta, possa optar por suspender a execução da lei declarada in constitucional, com efeitos retroativos (ex tunc) ou — diante de situa ções que possam acarretar insegurança jurídica ou se o exigir o interes se social — optar por suspender a execução da lei com efeitos ex nunc, como pode fazer, aliás, o próprio Suprem o Tribunal Federal. ■I
O M A N D A D O DE IN J U N Ç Ã O
Previsão co nstitucional e requisitos No Brasil, o m andado de injunção surge com o um m ecanism o de controle difuso da constitucionalidade p o r omissão. A Constituição de 1988, a prim eira do ordenam ento constitu cional brasileiro a prever o m andado de injunção, estabelece, em seu art. 5o, LXXI, o seguinte: LXXI — conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liber dades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Assim, percebe-se que os requisitos para a im petração dessa ação são basicamente quatro: (a) a previsão de um direito previsto na C ons tituição; (b) a inexistência de n o rm a regulam entadora do dispositivo constitucional que prevê o direito; (c) a inviabilidade do exercício do direito estabelecido na Constituição; (d) o nexo de causalidade entre a inviabilidade do exercício do direito constitucionalmente estatuído e a falta de n o rm a que regulamente a regra constitucional. Portanto, o m andado de injunção é cabível quando a falta de n o r m a infraconstitucional torna inviável o exercício dos direitos e liber dades previstos na Constituição.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Assim, não cabe m andado de injunção “se o preceito constitucio nal é de eficácia imediata”,29 pois, nesse caso, prescinde-se de norm a regulam entadora para tornar viável o exercício do direito previsto constitucionalmente. Tampouco se adm ite a impetração para to rn ar viável o exercício de direitos previstos em lei e sob a alegação de que falta norm a regula m entadora de dispositivos legais.30 Também não se pode falar em m an d ad o de injunção quando já há n orm a infraconstitucional regulam entando o dispositivo da Consti tuição Federal.31 Além disso, o m andado de injunção não se presta a alterar lei já existente,32 pois escapa do âm bito de suas finalidades corrigir eventuais inconstitucionalidades33 formais ou materiais de norm as regulamentadoras da Constituição. C om o já decidiu o Suprem o Tribunal Federal, se existe n o rm a na própria Constituição — mais precisamente no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, regulando, provisoriamente, dispositivo do corpo perm anente da Constituição Federal — , mostra-se descabido o m andado de injunção.3'1 | Objetivos Por meio do m andado de injunção, pretende-se viabilizar, nu m caso concreto, o exercício de um direito previsto na Constituição que, 29 Mandado de Injunção n. 211/DF, rel. Min. Octávio Gallotti, rel. do acórdão Min. Marco Aurélio, j. 10.11.1993. 30 Mandado de Injunção n. 296/DF, rel. Min. Néri da Silveira, j. 28.11.1991. 31 Mandado de Injunção n. 183/RS, rel. Min. Moreira Alves, j. 30.10.1991; e Mandado de Injunção n. 263/DF, rel. Min. Célio Borja, j. 10.11.1993. No Mandado de Injunção n. 144/SP, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence e julgado em 3 de agosto de 1992, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "não há interesse processual necessário à impetração de mandado de injunção, se o exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa constitu cional da requerente não está inviabilizado pela falta de norma infraconstitucional, dada a recepção de direito ordinário anterior". 32 Ag. Reg. no Mandado de Injunção n. 81/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 20.04.1990; e Ag. Reg. no Mandado de Injunção n. 79/DF, rel. Min. Octávio Gallotti, j. 02.08.1990. 33 Mandado de Injunção n. 58/RS, rel. Min. Carlos Velloso, j. 14.12.1990; e Mandado de Injunção n. 605/RJ, rel. Min. limar Galvão, j. 30.08.2001. 34 Mandado de Injunção n. 628/RJ, rel. Min. Sydney Sanches, j. 19.08.2002.
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por falta de n o rm a regulamentadora, o im petrante não consegue praticar. C ontudo, até agora não tem sido esse o en ten d im en to p re d o m i nante do Suprem o Tribunal Federal, que, na m aioria das vezes, ao julgar procedente o pedido form ulado em m an d ad o s de injunção, reconhece a m ora do órgão encarregado de regulam entar o disposi tivo constitucional e defere o “writ para que tal situação seja c o m u nicada ao referido órgão” 35 |
Efeitos da decisão
Flávia Piovesan identifica três correntes doutrinárias que buscam explicar os efeitos da decisão proferida no m andado de injunção. Segundo essa autora, ao conceder o m andado de injunção, cabe ao Po der Judiciário: a) elaborar a norma regulamentadora faltante, suprindo, deste modo, a omissão do legislador; b) declarar inconstitucional a omissão e dar ciên cia ao órgão competente para a adoção das providências necessárias à realização da norma constitucional; e c) tornar viável, no caso concreto, o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional que se encontrar obstado por faltar norma regulamentadora.36
Admitir que o Poder Judiciário, ao conceder o m an d ad o de in ju n ção, elabore a n o rm a regulam entadora faltante, suprim indo a omissão 35 Mandado de Injunção n. 585/TO, rel. Min. limar Galvão, j. 15.05.2002. Em casos iso lados o entendimento não tem sido esse, como se pode verificar das decisões proferidas no Mandado de Injunção n. 283/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.03.1991; e no Manda do de Injunção n. 562/RS, rel. Min. Carlos Velloso, rel. do acórdão Min. Ellen Gracie, j. 20.02.2003. Neste último caso, parte da ementa do acórdão tem o seguinte teor: "Reconhe cimento da mora legislativa do Congresso Nacional em editar a norma prevista no parágrafo 3o do art. 8o do ADCT, assegurando-se, aos impetrantes, o exercício da ação de reparação patrimonial, nos termos do direito comum ou ordinário, sem prejuízo de que se venham, no futuro, a beneficiar de tudo quanto, na lei a ser editada, lhes possa ser mais favorável que o disposto na decisão judicial. O pleito deverá ser veiculado diretamente mediante ação de li quidação, dando-se como certos os fatos constitutivos do direito, limitada, portanto, a ativi dade judicial à fixação do 'quantum' devido". 35 P iovesan , Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de incons titucionalidade por omissão e mandado de injunção, p. 148.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
do legislador,37 afronta o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2o da Constituição Federal. Aceitar que o m andado de injunção se presta, simplesmente, a de clarar inconstitucional a omissão e a dar ciência ao órgão omisso para adotar as providências necessárias à realização da n o rm a constitu cional, sem possibilidade de imposição de sanção a este, significa reco nhecer a dois instrum entos constitucionais distintos — o m andado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão38— os mesmos efeitos, o que, do ponto de vista da interpretação constitu cional, não parece razoável e, portanto, admissível.39 Ademais, concordar com a argumentação de que o mandado de in junção é um instrumento desprovido de força para viabilizar o exercício do direito previsto na Constituição é o mesmo que negar a esse instrumento a natureza de ação constitucional, o que também não se pode admitir. Nas palavras de Luís Roberto Barroso, o provimento judicial, no m andado de injunção, tem “natureza constitutiva, devendo o juiz criar a n orm a regulamentadora para o caso concreto, com eficácia inter partes, e aplicá-la, atendendo, quando seja o caso, à pretensão veiculada”.'10 Assim, o m andado de injunção deve ser entendido como um a ação constitucional voltada a to rn ar viável, no caso concreto, o exercício do
37 Essa é a posição, por exemplo, de G reco Filho, Vicente. Tutela constitucional das liber dades, p. 182-4. Esse autor afirma o seguinte: "Uma solução intermediária seria a de se admitir que, procedente o pedido, o tribunal poderia determinar prazo para que a norma fosse elaborada sob pena de, passado esse lapso temporal, ser devolvida ao Judiciário a atribuição de fazê-la. É certo que, passado o prazo, retornar-se-ia à segunda alternativa, ou seja, o tribunal é que deveria fazer a norma. A solução adequada, portanto, parece a primeira, admitida a alternativa de, antes, ser dada a oportunidade para que o poder com petente elabore a norma. Se este não a fizer o Judiciário a fará para que possa ser exercido o direito constitucional". 38O art. 103, § 2o, da Constituição, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevê o seguinte: "§ 2o Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias". 39 Nas palavras de Luis Roberto Barroso (in: O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 106), essa interpretação seria inadmissível porque aceitaria a existência de "dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão omisso do Poder Público, e ne nhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional pleiteado". 40 Barroso , Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 104.
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direito previsto constitucionalmente e que se encontra obstado p o r falta de n o rm a regulamentadora.'" C ontudo, não tem sido essa a posição do Supremo Tribunal Fede ral, com o se nota de parte da em enta do acórdão proferido na Q ues tão de O rdem no M andado de Injunção n. 107/DF (rel. Min. Moreira Alves, j. 23.11.1989): Em face dos textos da Constituição Federal relativos ao mandado de in junção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou prerrogati va a que alude o art. 5o, LXXI, dos quais o exercício está inviabilizado pela falta de norma regulamentadora, e ação que visa a obter do Poder Judiciá rio a declaração de inconstitucionalidade dessa omissão se estiver caracte rizada a mora em regulamentar por parte do Poder, órgão, entidade ou autoridade de que ela dependa, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para que adote as providências necessárias, à semelhan ça do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2o, da Carta Magna), e de que se determine, se se tratar de direito constitucional oponível contra o Estado, a suspensão dos processos judiciais ou administrativos de que possa advir para o impetrante dano que não ocorreria se não houvesse a omissão inconstitucional.
Em outra ocasião, o Suprem o Tribunal Federal deferiu o m a n d a do de injunção para: a) declarar em m ora o legislador ordinário; b) com unicar ao órgão responsável pela elaboração da lei que a omissão dele fere a Constituição; c) assinar prazo para a edição da lei infraconstitucional; e d) se ultrapassado o prazo fixado, sem a promulgação da lei, reconhecer ao im petrante a faculdade de obter, pela via processual adequada, o direito previsto na norm a constitucional.42 Nesse m esm o sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu fixar um prazo para que o órgão omisso editasse a lei exigida pela Consti41 Esse é o entendimento, por exemplo, de P iovesan , Flávia. Proteção judicial cit. p. 157 e segs.; T em er , Michel. Elementos de direito constitucional cit. p. 205; S ilva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit. p. 450. 42 Isso ocorreu, por exemplo, no julgamento do Mandado de Injunção n. 283/DF, ocorrido em 20 de março de 1991 (rel. Min. Sepúlveda Pertence): "Mandado de injunção. Mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
tuição e, persistindo a omissão, perm itir que o im petrante goze do direito constitucionalmente previsto: Mandado de injunção. Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no § 7o do art. 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no art. 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na re gulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se im põem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do art. 195, § 7o, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que
contra a União, outorgado pelo art. 8o, § 3o, ADCT: deferimento parcial, com estabeleci mento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença líquida de indenização por per das e danos. 1 - O STF admite — não obstante a natureza mandamental do mandado de injunção (Ml 107 — QO) — que, no pedido constitutivo ou condenatório, formulado pelo impetrante, mas, de atendimento impossível, se contém o pedido, de atendimento possível, de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão compe tente para que a supra (cf. Mandados de Injunção ns. 168, 107 e 232). 2 - A norma consti tucional invocada (ADCT, art. 8o, § 3o — 'Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Minis tério da Aeronáutica n. S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e n. S-285-GM5 será concedi da reparação econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição'), venci do o prazo nela previsto, legitima o beneficiário da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada a existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício obstado pela omissão legislativa denunciada. (...) 4 - Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8o, § 3o, ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e à Presidência da República; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultra passado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a facul dade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de conde nação a reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável".
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C on tud o, com o se afirm ou, o Poder Judiciário, ao reconhecer a inexistência de n o rm a infraconstitucional, deveria, im ediatam ente e som ente para o caso concreto, to rn ar viável o exercício do direito previsto constitucionalm ente e pleiteado pelo im petrante do m a n d a do de injunção.
Sujeitos otivo e passivo A legitimidade ativa para im petrar o m andado de injunção é de toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha um direito previs to constitucionalm ente11 e não consiga exercê-lo por falta de n orm a regulam entadora infraconstitucional.15 Com acerto, o Suprem o Tribunal Federal, por aplicação analógica do art. 5o, LXX, da Constituição Federal,16 tem adm itido a impetração de m andado de injunção coletivo, pelos sindicatos e pelas entidades de classe, “com a finalidade de viabilizar, em favor dos m em bros ou as
43 Mandado de Injunção n. 232/RJ, rel. Min. Moreira Alves, j. 02.08.1991. O art. 195, § 7o, da Constituição, mencionado na referida decisão, prevê o seguinte: "§ 7o São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei". O art. 59 do Ato das Disposições Constitucio nais Transitórias estabelece o seguinte: "Art. 59. Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e de benefício serão apresentados no prazo máxi mo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis me ses para apreciá-los. Parágrafo único. Aprovados pelo Congresso Nacional, os planos serão implantados progressivamente nos dezoito meses seguintes." 44 No Mandado de Injunção n. 685/DF, julgado em 13 de outubro de 2004 (rel. Min. Marco Aurélio, rel. do acórdão Min. Joaquim Barbosa), o Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte: "Ilegitimidade ativa. Inexistência na Constituição Federal de norma outorgando direito ou benefício ao impetrante". 45 No Ag. Reg. no Mandado de Injunção n. 595/MA (rel. Min. Carlos Velloso, j. 17.03.1999), a Suprema Corte firmou o entendimento de que "somente tem legitimidade ativa para a ação o titular do direito ou liberdade constitucional, ou de prerrogativa inerente à nacionalidade, à soberania e à cidadania, cujo exercício esteja inviabilizado pela ausência da norma infraconstitucional regulamentadora". 46 Mandado de Injunção n. 361/RJ, rel. Min. Néri da Silveira, rel. do acórdão Min. Sepúlveda Pertence, j. 08.04.1994.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
sociados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição”.47 Q uanto à legitimidade passiva, o Suprem o Tribunal Federal fir m o u o entendim ento de que o caráter essencialmente m andam ental da ação injuncional impõe que se (...) defina, como passivamente legitimado ad causam, na relação proces sual instaurada, o órgão público inadimplente, em situação de inércia in constitucional, ao qual é imputável a omissão causalmente inviabilizadora do exercício de direito, liberdade e prerrogativa de índole constitucional.48
C ontudo, essa não parece ser a m elhor solução, principalmente quando se admite que o m andado de injunção existe para to rn ar viá vel, no caso concreto, o exercício do direito previsto constitucional mente, ou seja, que tal ação constitucional se presta a tornar efetivo o direito subjetivo do im petrante, e não a obter a declaração da incons titucionalidade por omissão de um determ inado órgão. Sendo assim, deve figurar no pólo passivo da ação a pessoa que eventualmente será atingida pelos efeitos da decisão e suportará o ônus da concessão da ordem de injunção, ou seja, aquela pessoa que even tualmente deverá satisfazer a pretensão formulada pelo impetrante.49 | Competência A Constituição Federal fixa a competência para o julgam ento do m andado de injunção levando em conta o órgão encarregado de p ro duzir a norm a regulam entadora e concentrando a apreciação dessa ação constitucional nos tribunais, com o se nota do disposto no art. 102,1, q, e II, a (Supremo Tribunal Federal); no art. 105,1, h (Superior
47 STF, Mandado de Injunção n. 20/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 19.05.1994. No mesmo sentido, entre outros: Mandado de Injunção n. 472/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 06.09.1995; Mandado de Injunção n. 102/PE, rel. Min. Marco Aurélio (rel. do acórdão Min. Carlos Velloso), j. 12.02.1998; Mandado de Injunção n. 73/DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 07.10.1994. 48 Mandado de Injunção n. 284/DF, rel. Min. Marco Aurélio, rel. do acórdão Min. Celso de Mello, j. 22.11.1992. 49 Nesse sentido, Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas cit. p. 145-7. Conferir também Barroso, L u ís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 95-7.
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Tribunal de Justiça); e no art. 121, § 4o, V (Tribunais Regionais Elei torais).
A proposta de extinção do mandado de injunção Luís Roberto Barroso50 propõe a adoção de em en da constitucio nal para revogar o inc. LXXI do art. 5o da C onstituição Federal, bem com o para alterar a redação do § I o do m esm o artigo, para constar o seguinte: § 1o As normas definidoras de direitos subjetivos constitucionais têm apli cação direta e imediata. Na falta de norma regulamentadora necessária ao seu pleno exercício, formulará o juiz competente a regra que regerá o caso concreto submetido à sua apreciação, com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito.
Se levada a cabo a alteração da Constituição nesses termos, será ado tada um a fórmula mais simples e racional para viabilizar o exercício de direitos previstos constitucionalmente, mas que se mostram de difícil implementação em razão da inércia do legislador infraconstitucional. Aliás, com o o juiz não pode se furtar a julgar sob a alegação de inexistência de n o rm a,51 nada mais razoável do que exigir de todos os órgãos do Poder Judiciário que, diante de um a previsão constitucional, decida o caso concreto com base em tais disposições, m esm o não exis tindo n orm a infraconstitucional regulamentadora. Desse m odo, será preservada a força norm ativa da Constituição, privilegiando o princípio da m áxima efetividade das disposições cons titucionais.
50 B arroso , Luís Roberto.
O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 111.
51 O art. 126 do Código de Processo Civil estabelece o seguinte: "Art. 126. 0 juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costu mes e aos princípios gerais de direito". O art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil prevê: "Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os cos tumes e os princípios gerais de direito".
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O CONTROLE CONCENTRADO DA C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
O controle concentrado da constitucionalidade surge com a C ons tituição austríaca de Io de outubro de 1920. Essa Constituição criou u m Tribunal Constitucional, a partir das idéias de Hans Kelsen, con centrando nele a competência exclusiva para resolver as questões cons titucionais. Naquela ocasião, a Constituição da Áustria tam bém previu que o controle da constitucionalidade deveria ser feito por meio de um pedido específico.52 No Brasil, o controle concentrado da constitucionalidade surgiu com a Emenda Constitucional n. 16/65, sendo que, atualmente, nos ter mos do art. 102,1, a, da Constituição Federal de 1988, compete ao Supre m o Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. O objetivo principal do controle da constitucionalidade pela via de ação direta (controle concentrado) é obter do Supremo Tribunal Fede ral a declaração da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, independentem ente da existência de um caso concreto a ser analisado. Por essa razão, o controle concentrado da constitucionalidade tam bém é conhecido com o controle abstrato. Por meio desse tipo de controle, busca-se, então, garantir a segurança das relações jurídicas, que não devem ser fundam entadas em regras inconstitucionais. 52 Para uma análise mais detalhada, conferir C apelletti, Mauro. Ob. cit. p. 104 e segs. Para um exame da difusão da Justiça constitucional no mundo, conferir Zagrevelsky , Gustavo. La giustizia costituzionate, p. 33-7. Em Portugal, o art. 281 da Constituição prevê a fiscalização abstrata da constitucionalidade. O item 1 de tal artigo estabelece que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, sendo que podem requerer a declaração de inconstitucionalidade, nos termos do item 2 do referido artigo, o presidente da República; o presidente da Assembléia da República; o primeiroministro; o provedor de Justiça; o procurador-geral da República; um décimo dos deputados da Assembléia da República; os ministros da República; e as Assembléias Legislativas regionais, os presidentes das Assembléias Legislativas regionais, os presidentes dos governos regionais ou um décimo dos deputados da respectiva Assembléia Legislativa regional, quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autônomas. E o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionali dade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos (item 3 do art. 281 da Constituição portuguesa).
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A Constituição Federal, ao prever o controle concentrado da cons titucionalidade, considera possível, basicamente, a propositura das seguintes ações: ação direta de inconstitucionalidade genérica (art. 102,1, a); ação declaratória de constitucionalidade (art. 1 0 2 ,1, a, parte final, acrescida pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993); argüição de descum prim ento de preceito fundam ental (art. 102, § Io); ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2o); e ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III). ■i A AÇÃO DIRETA DE I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E
| Competência Com pete ao Suprem o Tribunal Federal julgar a ação direta de in constitucionalidade de lei ou ato norm ativo federal ou estadual, como estabelece o art. 102, I, a, da Constituição Federal. Essa é a previsão constitucional sobre o órgão com petente para exercer o controle con centrado da constitucionalidade por meio da ação direta de inconsti tucionalidade. Com o se percebe, a Constituição concentra no Supremo Tribunal Federal a competência para julgar a ação direta de inconstitucionali dade. Essa ação é julgada originária e exclusivamente pelo Supremo Tri bunal Federal. Por essa razão se diz que o controle da constitucionali dade, nesse caso, é concentrado, exercido pela via de ação direta. | Objeto Podem ser objeto do controle da constitucionalidade pela via da ação direta de inconstitucionalidade as leis ou atos norm ativos fede rais, estaduais e distritais (neste caso, somente na hipótese em que o Distrito Federal estiver exercendo a competência equivalente à dos estados-membros). As leis ou atos norm ativos que podem ser objeto do controle da constitucionalidade pela via de ação direta são as espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição Federal, ou seja, as em endas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis dele gadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Também podem ser objeto desse tipo de controle outros atos que te nham autêntico conteúdo normativo, com o algumas resoluções do Conselho Nacional de Justiça, os atos norm ativos editados p o r pessoas jurídicas de direito público criadas pela União e os regimentos dos tri bunais superiores.53 C om o m encionado anteriorm ente, tam bém podem se submeter ao controle concentrado perante o Suprem o Tribunal Federal as leis estaduais, inclusive os regimentos internos dos tribunais estaduais, os atos normativos expedidos por pessoas jurídicas de direito público estadual e até m esm o as disposições das Constituições estaduais, que “devem ser compatíveis com os princípios específicos e regras gerais constantes do texto constitucional”,5'1conform e previsão dos arts. 25 e 34, VII, da Constituição Federal. Por outro lado, não se adm ite o controle da constitucionalidade pela via de ação direta das leis ou atos normativos já revogados ou a n teriores à Constituição vigente. Essa foi a posição adotada pelo Supre m o Tribunal Federal na ADIn n. 2, julgada em 6 de fevereiro de 1992 e relatada pelo ministro Paulo Brossard, que manteve a tese tradicional sobre a matéria, consolidada durante a vigência da Constituição de 1967, com a Em enda Constitucional n. 1/69: Constituição. Lei anterior que a contrarie. Revogação. Inconstitucionali dade superveniente. Impossibilidade. 1 - A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a des respeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucio nalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição
53 Nesse sentido, M endes , Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional cit. p. 160. Na Itália, por exemplo, o art. 134 da Constituição prevê que a "Corte Constitucional decidirá as con trovérsias relativas à legitimidade constitucional das leis e dos atos, com força de lei, do Esta do e das Regiões; os conflitos de competência entre os poderes do Estado e aqueles que sur jam entre o Estado e as Regiões, e entre as Regiões entre si; e as acusações promovidas contra o presidente da República, conforme as normas da Constituição". Para uma análise sobre o juízo de constitucionalidade das leis no sistema italiano, conferir Z agrevelsky , Gustavo. La giustizia costituzionale cit. p. 101 e segs. 54 M endes, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional cit. p. 160.
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MANUAI 1)1 DIREITO CONSTITUCIONAL vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconsti tucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador pode ria infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordiná ria. 2 - Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüente nária. 3 - Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido.
Portanto, em relação ao direito pré-constitucional, não há que falar em cabim ento de ação direta de inconstitucionalidade, pois, com o advento da nova Constituição, ou a norm a infraconstitucional foi recepcionada e, portanto, continua vigente, ou contraria os dispositi vos da Constituição atual e, então, foi revogada. Trata-se de mera ques tão de direito intertemporal. Também os atos normativos e as leis municipais não podem ser objeto de controle da constitucionalidade pela via de ação direta em face da Constituição Federal. Aliás, tam bém não cabe ação direta de inconstitucionalidade de lei do Distrito Federal quando do exercício de competência para legislar sobre m atéria reservada aos municípios, nos term os do art. 32, § I o, da Constituição Federal. C ontudo, as leis municipais podem ser objeto de controle concen trado da constitucionalidade, perante o Tribunal de justiça do respec tivo estado-m em bro, caso violem a Constituição estadual, conform e previsão contida no art. 125, § 2o, da Constituição Federal. |
Legitimidade ativa
O art. 103 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda n. 45/2004, estabelece que são legitimados a pro p o r a ação d i reta de inconstitucionalidade o presidente da República; a Mesa do Se nado Federal; a Mesa da C âm ara dos Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câm ara Legislativa do Distrito Federal; o governador de estado ou do Distrito Federal; o procurador-geral da República; o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil; o partido políti
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co com representação no Congresso Nacional; a confederação sindical ou a entidade de classe de âmbito nacional. O Suprem o Tribunal Federal tem adm itido que o presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da C âm ara dos D eputa dos, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil55 e o partido político com representação no Congresso Nacional56 têm legitimação ativa universal ou seja, esses entes podem propor ação direta de inconstitucionalidade sobre qual quer assunto, para questionar a constitucionalidade de lei ou ato n o r mativo que aborde qualquer tema. Por outro lado, as Mesas das Assembléias Legislativas ou da C â m ara Legislativa do Distrito Federal, os governadores de estado ou do Distrito Federal e as confederações sindicais ou as entidades de classe de âm bito nacional devem dem onstrar a existência de relação de p er tinência entre seus interesses e o objeto da ação direta de inconstitu cionalidade que pretendem propor. Essa construção jurisprudencial do Suprem o Tribunal Federal pode ser notada na decisão proferida na Medida Cautelar na Ação 55 Conferir, por exemplo, a Medida Cautelar na ADIn n. 949/DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, em 22 de setembro de 1993, e relatada pelo ministro Sydney Sanches. % Basta que o partido político tenha um membro na Câmara dos Deputados ou no Sena do Federal. Sobre a legitimidade ativa universal dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, verificar, entre outras, as seguintes decisões do Supremo Tribunal Federal: Medida Cautelar na ADIn n. 1.407/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 07.03.1996; Medida Caute lar na ADIn n. 1.963/PR, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 18.03.1999; Medida Cautelar na ADIn n. 1.096/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 16.03.1995. Contudo, se o partido político, no curso do processo, vier a perder a representação parlamentar no Congresso Nacional, sua legitimidade ativa estará descaracterizada, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, no Ag. Reg. na ADIn n. 2.822/SP, rel. Min. Sydney Sanches, j. 23.04.2003. Nesse mesmo sentido, conferir, entre ou tras, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em 3 de abril de 2003, no Ag. Reg. na ADIn n. 2.035/RJ, relatado pela ministra Ellen Gracie: "Agravo regimental. Ação direta de in constitucionalidade. Partido político. Ausência de representação no Congresso Nacional. Perda superveniente da legitimidade ativa ad causam. Prejuízo do pedido formulado. Reafirmou o Plenário desta Corte que a perda superveniente da representação parlamentar no Congresso Nacional provoca a descaracterização da legitimidade ativa do partido político, mesmo que sa tisfeita, no momento do ajuizamento da ação, a exigência prevista no art. 103, VIII da Consti tuição Federal. Precedentes: Agravos nas ADIs ns. 2.202, 2.465, 2.723, 2.837 e 2.346, todos de relatoria do eminente ministro Celso de Mello. Agravo improvido." Contudo, também em 2003, o STF entendeu que a legitimidade de partido político não é afetada pela perda super veniente de sua representação parlamentar "quando já iniciado o julgamento" (ADIn n. 2.054/DF, rel. Min. limar Galvão, rel. para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, j. 02.04.2003).
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Direta de Inconstitucionalidade n. 1.519/AL (rel. iMin. Carlos Velloso, j. 06.11.1996), em que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) questionava a constitucionalidade de um a lei do estado de Alagoas que regulamentava a cobrança dos usuários de ener gia elétrica e de água. A em enta do acórdão tem o seguinte teor: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Legitimidade ativa: Pertinência temática. 1 - A legitimidade ativa da confederação sindical, entidade de classe de âmbito nacional, Mesas das Assembléias Legislativas e governadores, para a ação direta de inconstitucionalidade, vincula-se ao objeto da ação, pelo que deve haver pertinência da norma impugnada com os objetivos do autor da ação. 2 - Precedentes do STF: ADIn 305-RN (RTJ 153/428); ADIn 1.151-MG (DJ 19.05.1995); ADIn 1.096-RS (LEX-J5TF, 211/54). 3 - Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.
C um pre ressaltar que u m governador de estado pode p ro p o r ação direta de inconstitucionalidade de um a lei editada p o r outro estado, desde que dem onstre a existência da pertinência temática, com o de cidiu o Suprem o Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucio nalidade n. 2.656/SP, relatada pelo m inistro M aurício Corrêa e julga da em 8 de m aio de 2003. Parte da em enta tem o seguinte conteúdo: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei paulista. Proibição de importação, extração, beneficiamento, comercialização, fabricação e instalação de pro dutos contendo qualquer tipo de amianto. Governador do estado de Goiás. Legitimidade ativa. Invasão da competência da União. 1 - Lei editada pelo Governo do estado de São Paulo. Ação direta de inconstitucionalidade pro posta pelo governador do estado de Goiás. Amianto crisotila. Restrições à sua comercialização imposta pela legislação paulista, com evidentes reflexos na economia de Goiás, estado onde está localizada a maior reserva natural do minério. Legitimidade ativa do governador de Goiás para iniciar o proces so de controle concentrado de constitucionalidade e pertinência temática.
Assim, se não estiver presente o requisito da pertinência temática, não se configura a legitimidade dessas pessoas para pro p o r a ação dire ta de inconstitucionalidade.
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Em relação às confederações sindicais, cum pre m encionar que o Supremo Tribunal Federal, adotando a conceituação derivada da C o n solidação das Leis do Trabalho, tem entendido que este é u m “term o técnico de sentido específico, a traduzir justam ente os órgãos sindicais, nas suas respectivas áreas de profissões e de categorias econômicas, que podem representá-las, no âm bito nacional”.57 O m esm o tribunal entendeu que a caracterização de um a entidade de classe de âm bito nacional decorre das “aspirações com uns de seus associados, os interesses próprios e a transregionalização”.58 Também se pacificou no Supremo Tribunal Federal o entendim en to de que “não se qualificam com o entidades de classe aquelas que, congregando pessoas jurídicas, apresentam-se com o verdadeiras asso ciações de associações”.59 Assim, as pessoas jurídicas que representam categorias profissionais diversas não se enquadram no conceito de en tidade de classe de âm bito nacional.60 Da m esma forma, não tem legiti midade ad causam a “associação que reúne empresas, sociedades de com panhias abertas, pessoas jurídicas de direito privado”, pois para se configurar com o “entidade de classe de âm bito nacional” é necessária a “unidade, em caráter perm anente, de interesses daqueles que em pre endem atividade profissional idêntica”.61 Igualmente, não tem legitimidade para pro p o r ação direta de in constitucionalidade um a associação que reúne “pessoas ligadas, ape nas, pelo interesse contingente de estarem na m esm a posição jurídica de partes”, mas “sem integrar a m esm a categoria econômica ou profis sional”, como, por exemplo, u m a associação de inquilinos.62
57ADIn n. 275/DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 23.05.1990. 58 Medida Cautelar em ADIn n. 146/RS, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 24.09.1990. 59 Questão de Ordem na ADIn n. 79/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 13.04.1992. 60 Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Central Única dos Trabalha dores (CUT) e a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) não têm legitimidade para pro por ação direta de inconstitucionalidade. Nesse sentido, Medida Cautelar na ADIn n. 271/DF, rel. Min. Moreira Alves, j. 24.09.1992; e Medida Cautelar na ADIn n. 928/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 01.09.1993. 61 ADIn n. 42/DF, rel. Min. Paulo Brossard, j. 24.09.1992. 62 Questão de Ordem na ADIn n. 900/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 23.09.1993. Nessa ação foi decidido que a Associação Brasileira de Inquilinos não tinha legitimidade ad causam para propor ação direta de inconstitucionalidade.
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O Supremo Tribunal Federal tam bém decidiu que a União N a cional dos Estudantes (UNE) não se enquadra no conceito de entidade de classe de âmbito nacional, pois a expressão classe tem seu conteúdo diretamente dirigido à idéia de profissão, devendo ser entendida como categoria profissional e não classe social.63 Por fim, para caracterizar a entidade de classe com o sendo de â m bito nacional, não basta que esta o declare em seus estatutos. É im prescindível que, por analogia, tenha representação em, ao menos, nove estados da Federação, com o se exige dos partidos políticos.64
O procurador-geral da República e o advogado-geral da União O procurador-geral da República, quando não for o autor da ação direta de inconstitucionalidade, deve ser ouvido antes do julgamento da ação pelo Suprem o Tribunal Federal, com o prevê o art. 102, § I o, da Constituição Federal. E o advogado-geral da União, nas ações diretas de inconstitucio nalidade de lei ou ato norm ativo federal ou estadual, deve ser citado para realizar a defesa do ato ou do texto im pugnado, nos term os do art. 103, § 3o, da Constituição Federal. O S up rem o T ribunal Federal firm o u o e n te n d im e n to de que a C o nstituição Federal exige que o advogado-geral da União faça a defesa do ato im p u g n a d o em ação direta de inconstitucionalidade, sendo inadmissível que ele ataque a n o rm a que está sendo q u es tio n a d a .65 |
Efeitos da decisão
O art. 102, § 2o, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda n. 45/2004, estabelece que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Suprem o Tribunal Federal, nas ações diretas de incons titucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à adm inistração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 63 Medida Cautelar em ADIn n. 894/DF, rel. Min. Néri da Silveira, j. 18.11.1993. 64 ADIn n. 348/SP, rel. Min. Sydney Sanches, j. 04.04.1991. 65 ADIn n. 242/RJ, rel. Min. Paulo Brossard, j. 20.10.1994.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Na ação direta de inconstitucionalidade, a regra é que a decisão do Supremo Tribunal Federal que declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato norm ativo tem efeitos para todos (erga omnes) e ex tunc (re troativos).66 Basta a decisão do Suprem o Tribunal Federal para que a lei ou o ato norm ativo declarado inconstitucional não tenha mais validade e seja retirado do ordenam ento jurídico, não valendo mais para n in guém. Nesses termos, o Suprem o Tribunal Federal age com o verdadei ro “legislador negativo”. Note-se que, na via de ação direta, o Senado Federal pode partici par do controle da constitucionalidade com o autor da ação (art. 103, II), mas não atua após a decisão do Supremo, com base no art. 52, X, da Constituição Federal, com o se dá na via difusa.67 Convém lembrar, ainda, que a Lei n. 9.868/99 — que dispõe sobre o processo e julgam ento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Suprem o Tribunal Federal — estabelece, em seu art. 27, que, ao “declarar a inconstitu cionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segu rança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus m em bros, res tringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficá cia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro m o m en to que venha a ser fixado”. Assim, a regra geral é a de que a decisão do Supremo Tribunal Fe deral que declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, na via de ação direta, tem efeitos ex tunc, isto é, retroativos e, p o rta n to, repristinatórios. Todavia, respeitados os requisitos previstos no art. 66 Nesse sentido, conferir os embargos de declaração na ADIn n. 483/PR, rel. Min. limar Galvão, j. 22.08.2001. 67 Como lembra Gilmar Mendes, foi "somente em 19 de junho de 1977, que o presi dente do Supremo Tribunal Federal, ministro Thompson Flores, determinou que as comuni cações ao Senado Federal, para os fins do art. 42, VII, da Constituição de 1967/1969, se restringissem às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum. Assim, passou o Tribunal a admitir que as decisões de inconstitucionalidade proferidas nos proces sos de controle abstrato de normas tinham eficácia erga omnes, deixando, assim, de subme tê-las ao Senado Federal" (in: Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil, p. 27).
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27 da Lei n. 9.868/99, os efeitos da decisão poderão ser ex nunc, a p a r tir do trânsito em julgado, ou a partir de outro m o m en to a ser fixado pelo próprio Suprem o Tribunal Federal, ou seja, pro fu tu ro .68 Se o efeito vinculante das decisões proferidas pelo Suprem o Tri bunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade, for desres peitado, a Constituição Federal prevê o cabimento de reclamação ao próprio Suprem o Tribunal Federal (art. 102,1, /). A reclamação, portanto, é o meio processual adequado a “resguar dar e a fazer prevalecer, no que concerne à Suprema Corte, a integri dade, a autoridade e a eficácia subordinante dos com andos que em er gem de seus atos decisórios”, com o se nota de parte da em enta do acórdão proferido no Agravo Regimental na Reclamação n. 2 .143/SP (rel. Min. Celso de Mello, j. 12.03.2003): O desrespeito à eficácia vinculante, derivada de decisão emanada do Plenário da Suprema Corte, autoriza o uso da reclamação. O descumprimento, por quaisquer juizes ou tribunais, de decisões proferidas com efeito vinculante, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionali dade, autoriza a utilização da via reclamatória, também vocacionada, em sua específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer, no que concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia subor dinante dos comandos que emergem de seus atos decisórios. Precedente: Rel 1,722/RJ, rel. Min. Celso de Mello.
A legitimidade para formular a reclamação é de toda e qualquer pes soa que for afetada, em sua esfera jurídica, por decisões contrárias ao
68 Carlos Roberto de Siqueira Castro identifica essa propensão no direito comparado ao afirmar que "a tendência hodierna aponta no sentido de atribuição de operatividade prospectiva, ou ex nunc, às decisões das Cortes dotadas de jurisdição constitucional que procla mam a invalidade das leis. Tal se dá, na generalidade dos exemplos recolhidos, mediante a adoção, tout court, do efeito pro futuro ou, então, através da outorga de discrição jurisdicio nal, a fim de que o Tribunal competente, sopesando prudentemente a natureza da lei invali dada e o conjunto das circunstâncias constituídas à sua sombra, fixe, caso a caso, a direção e a amplitude dos efeitos temporais da decisão" (in: "Da declaração de inconstitucionalidade e seus efeitos". In: Revista Ibero-Americana de Direito Público, ano 1, n. 1, p. 45).
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entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, com caráter vinculante, como se percebe de outro trecho da ementa anteriormente citada: Legitimidade ativa para a reclamação na hipótese de inobservância do efei to vinculante. Assiste plena legitimidade ativa, em sede de reclamação, àquele — particular ou não — que venha a ser afetado, em sua esfera jurídica, por decisões de outros magistrados ou tribunais que se revelem contrárias ao entendimento fixado, em caráter vinculante, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos processos objetivos de controle nor mativo abstrato instaurados mediante ajuizamento, quer de ação direta de inconstitucionalidade, quer de ação declaratória de constitucionalidade. Precedente.
Assim, a legitimidade ativa para a reclamação não deve se restrin gir às pessoas legitimadas a p ro p o r ação direta de inconstitucionali dade, previstas no art. 103, m esm o porque, se a decisão prolatada na ação direta de inconstitucionalidade, além de efeito vinculante, tem eficácia contra todos, qualquer pessoa que se sentir prejudicada pelo desrespeito à decisão da Suprema Corte poderá form ular reclamação para garantir a autoridade do julgado do Suprem o Tribunal.69
A declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução do texto Ao tratar da interpretação conforme a Constituição, José Joaquim Gomes Canotilho afirma que, quando for possível extrair vários sig nificados de u m a lei, se im põe a escolha daquele que perm ita a co n cordância da lei com as regras constitucionais. Ademais, enquanto puder ser interpretada de acordo com a Constituição, a lei não deve ser declarada inconstitucional. O intérprete deve se valer das norm as cons titucionais para determ inar o conteúdo intrínseco das leis.70
69 Esse não é o entendimento de M oraes , Alexandre de. Direito constitucional, 17. ed., p. 682 e 683. Esse autor afirma, com base em decisão do Supremo Tribunal Federal proferi da em 1997, que os legitimados a formular reclamação são os mesmos que têm legitimidade para ingressar com ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, somente aqueles previstos no art. 103 da Constituição Federal. ,0 Constituição dirigente cit. p. 405.
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C om o afirmado anteriorm ente, a interpretação conform e a C ons tituição é um m étodo de herm enêutica da Constituição e da lei que, auxiliando o mecanismo de controle da constitucionalidade, im põe — dentre algumas interpretações possíveis da n o rm a infraconstitucional — a exegese compatível com os preceitos constitucionais.71 Assim, do ponto de vista prático, a interpretação conforme a C ons tituição eqüivale à declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, com o explica Gilm ar Ferreira Mendes.72 Permite-se, portanto, que o Judiciário somente declare a inconsti tucionalidade da lei quando esta for evidentemente incompatível com o texto constitucional, devendo preservá-la quando for possível interpretá-la em harm onia com a Constituição. E, diante de duas ou mais interpretações possíveis da n orm a infraconstitucional, o Poder Judiciário poderá declarar a inconstitu cionalidade daquela que se revelar incompatível com a Constituição e determ inar a prevalência da interpretação que se m ostrar conform e a Constituição. Nesse caso, será declarada a inconstitucionalidade sem a redução do texto normativo, pois este será m antido no o rd en am en to jurídico, mas adm itindo somente a interpretação que com patibi lizar com a Constituição. Tal situação aconteceu, por exemplo, em 8 de m aio de 2003, quando do julgam ento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.652/DF, relatada pelo m inistro M aurício Corrêa: Ação direta de inconstitucionalidade. Impugnação ao parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil, na redação dada pela Lei n.
71 Para uma hipótese de interpretação de dispositivos do Estatuto da Criança e do Ado lescente conforme a Constituição, conferir D ias da Silva, Roberto Baptista. A remissão para
exclusão do processo como direito dos adolescentes: uma interpretação conforme a Consti tuição. 72 Mendes, Gilmar Ferreira. Controle da constitucionalidade: aspectos jurídicos e políti cos cit. p. 286. Esse autor afirma que parte da doutrina alemã insiste na diferenciação. "Afirma-se que, enquanto a interpretação conforme ã Constituição traduziria a pronúncia de inconstitucionalidade de uma ou algumas possibilidades de interpretação, a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto limitaria as hipóteses de aplicação do texto, sem afetar, estruturalmente, a sua expressão literal."
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10.358/2001. Procedência do pedido. 1 - Impugnação ao parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil, na parte em que ressalva "os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB" da imposição de multa por obstrução à Justiça. Discriminação em rela ção aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade no exercício da profissão. Interpretação ade quada, para afastar o injustificado discrímen. 2 - Ação direta de incons titucionalidade julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos.73
Vale lem brar que o art. 28, parágrafo único da Lei n. 9.869/99 prevê que a “declaração de constitucionalidade ou de inconstitucio nalidade, inclusive a interpretação conform e a Constituição e a decla ração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, tem efi cácia contra todos e efeito vinculante”.
Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade É possível a concessão de m edida cautelar em ação direta de in constitucionalidade, desde que presentes os requisitos da plausibili73 O art. 14 do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei n. 10.358/2001, tem o seguinte teor: "Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I — expor os fatos em juízo conforme a verdade; II — pro ceder com lealdade e boa-fé; III — não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV — não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; V — cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusiva mente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inc. V deste artigo constitui ato aten tatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado".
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dade jurídica da ação (fu m u s boni iuris) e do risco da dem ora da prestação jurisdicional ao final (periculum in mora).74 Os efeitos da decisão proferida em m edida cautelar são contra to dos (erga omnes) e ex nunc (não-retroativos). C ontudo, o Supremo Tribunal Federal pode conceder eficácia retroativa à decisão tom ada em medida cautelar, com o admite o art. 11, § Io, da Lei n. 9.868/99.75 Por fim, é im portante m encionar o efeito repristinatório da co n cessão da m edida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade. Realmente, o § 2o do art. 11 da Lei n. 9.868/99 prevê que a “concessão da m edida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário”. ■1 A AÇÃO D E C L A R A T Ó R IA DE C O N S T I T U C I O N A L I D A D E (A D E C O N OU ADC)
A ação declaratória de constitucionalidade surgiu no direito bra sileiro em 1993, por meio da Emenda Constitucional n. 3.76 Essa em en da à Constituição, entre outros dispositivos, alterou a letra a do inc. I do art. 102 e acrescentou o § 2o a esse mesmo artigo, além de ter acrescen tado o § 4o ao art. 103. Recentemente, a Emenda Constitucional n. 45/2004 alterou o § 2o do art. 102 e revogou o § 4o do art. 103.77 74 Medida Cautelar na ADIn n. 1.042/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 16.03.2003. 75 O Supremo Tribunal Federal, em várias oportunidades, concedeu eficácia retroativa a decisões proferidas em medidas cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade, inclusi ve antes do advento da Lei n. 9.869/99. Verificar, por exemplo, a Medida Cautelar na ADIn n. 596/RJ, rel. Min. Moreira Alves, j. 11.10.1991; a Medida Cautelar na ADIn n. 2.856/ES, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 24.09.2004; e a Medida Cautelar na ADIn n. 2.556/DF, rel. Min. Mo reira Alves, j. 09.10.2002. 70 A Emenda n. 3/93, na parte em que incluiu a previsão da ação declaratória de cons titucionalidade, foi inicialmente bastante criticada. Conferir Figueiredo, Marcelo. "Ação decla ratória de constitucionalidade - inovação infeliz e inconstitucional". In: Martins, Ives Gandra da Silva & Mendes, Gilmar Ferreira (coord.). Ação declaratória de constitucionalidade, p. 155-81. O problema da inconstitucionalidade da Emenda n. 3/93, nesse trecho, foi superado com o jul gamento da Questão de Ordem na ADC n. 1/DF, julgada em 27 de outubro de 1993 e relata da pelo ministro Moreira Alves. A ementa de tal acórdão tem o seguinte teor: "Ação declaratória de constitucionalidade. Incidente de inconstitucionalidade da Emenda Constitu cional n. 3/93, no tocante à instituição dessa ação. Questão de ordem. Tramitação da ação declaratória de constitucionalidade. Incidente que se julga no sentido da constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 3, de 1993, no tocante à ação declaratória de constitucionalidade". 77 "Art. 102. (...] § 2° As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
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Objetivos
Com a ação declaratória de constitucionalidade pretende-se alcan çar a declaração da constitucionalidade de lei ou ato norm ativo fede ral. Em outras palavras, busca-se obter do Suprem o Tribunal Federal u m a declaração de que um a lei federal ou um ato norm ativo federal é compatível com a Constituição. Tendo em vista que, por meio do controle difuso da constitucio nalidade, decisões judiciais divergentes podem surgir acerca da conso nância de determ inada regra jurídica com a Constituição, surge a ação declaratória de constitucionalidade para dar segurança jurídica por meio de um pronunciam ento definitivo do Suprem o Tribunal Federal acerca da constitucionalidade ou não da regra em questão. C om o se sabe, as regras jurídicas infraconstitucionais presum em se compatíveis com a Constituição. Todavia, essa presunção de consti tucionalidade das leis e dos atos normativos é relativa, ou seja, admite decisão em contrário. Tanto é que, no Brasil, o Poder Judiciário pode declarar a inconstitucionalidade de um a regra, que, até então, era co n siderada constitucional. Assim, com o adverte Alexandre de Moraes,78 a ação declaratória de constitucionalidade surge exatamente para tornar essa presunção rela tiva de constitucionalidade em presunção absoluta, em razão de seus efeitos vinculantes (§ 2o do art. 102 da Constituição Federal). Por m eio dessa ação, co m o já se afirm ou, busca-se obter do S uprem o Tribunal Federal a declaração definitiva e vinculante sobre a constitucionalidade de u m a regra federal que vem sendo ques tio n ad a p o r o u tro s órgãos do Poder Judiciário. C om isso, privilegiase a u nifo rm id ad e das decisões judiciais e a segurança das relações jurídicas.
Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitu cionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal." 78 M oraes , Alexandre de. Direito constitucional, 17. ed., p. 689 e 690.
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m a n u a l de d ir eit o c o n s t it u c io n a l
Competência e legitimidade ativa Nos term os da parte final da alínea a do inc. I do art. 102 da C ons tituição Federal, compete ao Suprem o Tribunal Federal julgar a ação declaratória de constitucionalidade. O art. 103 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, prevê que as pessoas legitimadas a propor ação declaratória de constitucionalidade são as mesmas que têm legitimidade ad causam para a ação direta de inconstitucionali dade: o presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câm ara dos Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câ m ara Legislativa do Distrito Federal; o governador de estado ou do Distrito Federal; o procurador-geral da República; o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil; o partido político com represen tação no Congresso Nacional; a confederação sindical ou entidade de classe de âm bito nacional. Assim com o acontece na ação direta de inconstitucionalidade, o presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câm ara dos Deputados, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil e o partido político com represen tação no Congresso Nacional têm legitimação ativa universal, ou seja, podem propor a ação declaratória de constitucionalidade sobre qual quer assunto. Por o u tro lado, as Mesas das Assembléias Legislativas ou da C â m ara Legislativa do Distrito Federal, os governadores de estado ou do Distrito Federal e as confederações sindicais ou as entidades de classe de âm bito nacional devem d em o n stra r a existência de relação de pertinência entre seus interesses e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade que pretendem propor. Portanto, se não esti ver presente o requisito da pertinência temática, não se configura a legitimidade dessas pessoas para p ro p o r a ação declaratória de cons titucionalidade. |
Objeto
O objeto da ação declaratória de constitucionalidade é a lei ou o ato norm ativo federal.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
Para a propositura da ação declaratória de constitucionalidade é imprescindível que o autor demonstre, com sua inicial, a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição n o rm a tiva objeto da ação (art. 14, III, da Lei n. 9.868/99). |
Efeitos da decisão
A decisão definitiva de mérito proferida pelo Suprem o Tribunal Federal na ação declaratória de constitucionalidade produz eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder judiciário e à adm inistração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, conforme previsão contida no § 2o do art. 102 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Portanto, ao julgar procedente o pedido, o Suprem o Tribunal Fe deral proferirá decisão declarando que a lei ou o ato norm ativo fede ral objeto da ação é compatível com a Constituição, sendo certo que essa decisão produzirá efeitos ex tunc, erga omnes e vinculantes a todos os órgãos do Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário. Assim, todos deverão cu m prir a lei ou o ato norm ativo federal, não podend o deixar de fazê-lo sob o argum ento de que tal lei ou ato n o r mativo seria inconstitucional. Se o efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tri bunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade, for des respeitado, qualquer pessoa que tiver sua esfera jurídica prejudicada poderá form ular reclamação ao próprio Suprem o Tribunal, com vistas a garantir a autoridade da decisão proferida pela Suprema Corte (art. 102 , 1,/).
Medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade A Lei n. 9.868/99, no art. 21, prevê expressamente que: O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juizes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplica
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL ção da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento defi nitivo.
Os requisitos para a concessão da m edida cautelar são a plausibilidade na argüição da constitucionalidade (fu m u s boni iuris) e o risco da dem ora da prestação jurisdicional final (periculum in mora). O deferimento de m edida cautelar nesse tipo de ação tem sido adm itido pelo Suprem o Tribunal Federal, com o se verifica, por exem plo, da decisão proferida, em 26 de agosto de 2001, na Medida C aute lar na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 9/DF, relatada pelo m inistro Néri da Silveira (rel. do acórdão Min. Ellen Gracie). É im portante m encionar que o § 2o do art. 102 da Constituição Federal determina que somente as “decisões definitivas de mérito” de veriam produzir eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Todavia, o Suprem o Tribunal Federal fixou a posição de que, sendo o p o d er de acautelar im anente ao de julgar, é possível que a concessão de m edida cautelar em ação declaratória de constitucio nalidade ta m b ém produza, desde logo, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante que a C onstituição confere som ente à sentença definitiva de mérito. Essa foi a posição adotada, p o r exemplo, na Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 8/DF, relatada pelo m i nistro Celso de Mello e julgada em 13 de o utubro de 1999. Parte da em enta desse acórdão tem o seguinte teor: Ação declaratória de constitucionalidade. Outorga de medida cautelar com efeito vinculante. Possibilidade. O Supremo Tribunal Federal dispõe de competência para exercer, em sede de ação declaratória de constitu cionalidade, o poder geral de cautela de que se acham investidos todos os órgãos judiciários, independentemente de expressa previsão constitu cional. A prática da jurisdição cautelar, nesse contexto, acha-se essen cialmente vocacionada a conferir tutela efetiva e garantia plena ao resul tado que deverá emanar da decisão final a ser proferida no processo objetivo de controle abstrato. Precedente. O provimento cautelar deferi
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do, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ação declaratória de cons titucionalidade, além de produzir eficácia erga omnes, reveste-se de efeito vinculante, relativamente ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário. Precedente. A eficácia vinculante, que qualifica tal decisão — precisamente por derivar do vínculo subordinante que lhe é inerente — , legitima o uso da reclamação, se e quando a integridade e a autoridade desse julgamento forem desrespeitadas.
Na Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 4/DF, relatada pelo m inistro Sydney Sanches e julgada em 11 de fevereiro de 1998, o Suprem o Tribunal Federal já havia se pronuncia do sobre a possibilidade de concessão da medida cautelar com os m es mos efeitos da decisão definitiva de mérito.
Mà
EFEITOS DAS DECISÕES NAS AÇÕES DIRETAS E NAS AÇÕES DECLARATÓRIAS: SINAIS INVERTIDOS
C om o explica Luís Roberto Barroso, “a Lei n. 9.868/99 trata a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucio nalidade com o duas faces de um a m esm a unidade conceituai, com o se fossem ações em tu d o idênticas, apenas com ‘sinal trocado”’. Desse m odo, pela lógica da lei, julgar um a ação direta im proce dente eqüivale a declarar que a lei é constitucional; e julgar um a ação declaratória im procedente equipara-se a declarar a inconstitucionali dade da lei (desde que, naturalm ente, obtido o quorum de maioria absoluta).79 O art. 24 da Lei n. 9.868/99 estabelece que, “proclamada a consti tucionalidade, julgar-se-á im procedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou im procedente eventual ação declaratória”. C om o se nota, a despeito das diferenças anteriorm ente apontadas entre a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de
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B arroso , L uís Roberto.
O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p.
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constitucionalidade, a decisão proferida em um a delas atinge resulta do oposto ao alcançado na outra ação. Assim, as decisões nessas ações constitucionais têm o que se p o d e ria cham ar de sinais invertidos ou trocados: a declaração da constitu cionalidade acarretará a improcedência da ação direta e a procedência de eventual ação declaratória; por outro lado, proclam ada a inconsti tucionalidade, será julgada procedente a ação direta e im procedente eventual ação declaratória.80 Com isso, pode-se afirmar que, declarada a inconstitucionalidade de um a lei — seja em razão de o Suprem o Tribunal Federal ter julga do procedente a ação direta, seja porque se julgou im procedente a ação declaratória de constitucionalidade — , a n o rm a é retirada do ordena m ento jurídico e não poderá mais ser validamente aplicada. Por o u tro lado, declarada a constitucionalidade da lei — em razão de se julgar im procedente o pedido de u m a ação direta de inconstitucionalidade ou procedente o de u m a ação declaratória de constitucionalidade — , nada im pede que a m esm a lei seja su b m eti da novam ente à apreciação do Suprem o Tribunal Federal, pela via concentrada e abstrata da constitucionalidade, se surgirem novos ar gumentos, novos fatos, m udanças formais ou informais da C onstitui ção ou “transform ação na realidade que m odifiquem o im pacto ou a percepção da lei”.81
80 Em Portugal, como afirma Jorge Miranda (in: Manual de direito constitucional cit. Tomo II. p. 483), "nenhuma relevância possuem as sentenças de rejeição da inconstitucionali dade". José Joaquim Gomes Canotilho (in: Direito constitucional cit. p. 907), na mesma linha de raciocínio, também explica como é entendida essa questão em Portugal: "A decisão do Tri bunal Constitucional pode ser uma sentença de 'rejeição' ou de 'não acolhimento' do pedido de declaração de inconstitucionalidade. A Constituição regula expressamente os efeitos das sentenças de 'acolhimento', mas não contém preceito algum sobre os efeitos das sentenças de rejeição da inconstitucionalidade. Do articulado constitucional não se deduzem elementos suficientes para a configuração, como caso julgado, da sentença de rejeição. Não há, pois, que equiparar as decisões do Tribunal Constitucional que declarem a inconstitucionalidade da norma com as decisões que a não declaram. Estas não têm, por conseguinte, efeito preclusivo, pois não impedem que o mesmo ou outro requerente venha de novo a solicitar ao TC a apreciação da constitucionalidade da norma anteriormente não declarada inconstitucional". 81 Nesse sentido, conferir Barroso , Lu ís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 152, 153, 186 e 187.
CONTROLE OA CONSTITUCIONALIDADE
C ontudo, vale relembrar que a decisão do Supremo Tribunal Fe deral que declara a constitucionalidade de um a norm a produz eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, § 2o, da Constituição), até que venha a ser revogada ou submetida novamente à apreciação do Supre m o Tribunal Federal, ocasião em que, analisando novos argumentos, este órgão do Judiciário, pela via abstrata de controle da constitucio nalidade, pode declarar a n orm a inconstitucional, tam bém com eficá cia erga omnes e efeito vinculante. M
A A R G Ü IÇ Ã O DE DESCUM PR I MENTO DE PR E C EITO F U N D A M E N T A L (ADFP)
O § I o do art. 102 da Constituição Federal prevê que a “argüição de descum prim ento de preceito fundamental, decorrente desta Constitui ção, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na forma da lei”. A Lei n. 9.882/99 disciplina o processo e o julgamento de tal ação constitucional. Seu art. Io, caput, prevê que a argüição “será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. O art. I o, parágrafo único, I, da mesma lei estabelece que tam bém caberá argüição de descum prim ento de preceito fundam ental “quando for relevante o fundam ento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato norm ativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.
Competência e legitimidade ativa C om o determ ina a própria Constituição Federal (art. 102, § Io), o órgão com petente para julgar a argüição de descum prim ento de pre ceito fundam ental é o Supremo Tribunal Federal. O art. 2o da Lei n. 9.882/99, p o r sua vez, estabelece que podem p ro p o r argüição de d escu m p rim en to de preceito fundam ental “os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade”, ou seja, aqueles previstos no art. 103 da C onstituição Federal, com a redação dada pela E m enda C onstitucional n. 45/2004. São eles: o presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da C âm ara dos D e
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putados; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da C âm ara Legislativa do Distrito Federal; o governador de estado ou do Distrito Federal; procurador-geral da República; o Conselho Federal da O rd em dos Advogados do Brasil; o partido político com representação no C o n gresso Nacional; a confederação sindical ou a entidade de classe de âm bito nacional. Também em relação à argüição de descum prim ento de preceito fundam ental, o presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câm ara dos Deputados, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional têm legitimação ativa universal, podem propor ADPF sobre qualquer assunto. Já as Mesas das Assembléias Legislativas ou da C âm ara Legislativa do Dis trito Federal, os governadores de estado ou do Distrito Federal e as confederações sindicais ou as entidades de classe de âm bito nacional devem dem onstrar a existência de relação de pertinência entre seus interesses e o objeto da argüição de descum prim ento de preceito fu n dam ental que pretendem propor. A previsão de que a ADPF poderia ser proposta p o r “qualquer pes soa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público” foi vetada, fazendo com que a legitimidade ativa para a ADPF ficasse restrita aos que podem pro p o r ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, aos p re vistos no art. 103 da Constituição Federal. |
Preceito fundamental
A Lei n. 9.882/99 não conceituou “preceito fundam ental”, razão pela qual tal definição ficou a cargo da d o u trin a e da jurisprudência.82 Na Medida Cautelar em Argüição de D escum prim ento de Preceito Fundamenta] n. 33/PA, o relator, m inistro Gilmar Mendes, em 20 de
82 Daniel Sarmento afirma que "o legislador agiu bem ao não arrolar taxativamente quais, dentre os dispositivos constitucionais, devem ser considerados como preceitos funda mentais", pois, assim, conferiu maior maleabilidade à jurisprudência (in: "Apontamentos sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental". In: Tavares , André Ramos & Rothenburg , Walter Claudius (org.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei n. 9.882/99, p. 91).
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
o utubro de 2003, após reconhecer que é “m uito difícil indicar, a priori, os preceitos fundam entais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e o julgam ento da argüição de descumprim ento ”, afirm ou que: (...) ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da or dem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5o, dentre ou tros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da Constituição, quais sejam, a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico.
Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados “princípios sensíveis”, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos estados-m em bros (art. 34, VII). Portanto, segundo esse entendimento, ao menos os preceitos p ro tegidos pela imutabilidade e os chamados princípios sensíveis seriam, desde logo, reconhecidos como fundamentais. O utras disposições cons titucionais seriam analisadas caso a caso. Luís Roberto Barroso inclui, desde logo, no rol dos preceitos fu n damentais passíveis de defesa pela ADPF, além daqueles m encionados por Gilmar Mendes, os previstos nos arts. I o a 4o da Constituição Fe deral e todos os direitos fundamentais, o que abarcaria, genericamen te, os individuais, coletivos, políticos e sociais.85 A posição que parece mais adequada à solução da controvérsia sobre o conteúdo da expressão “preceito fundam ental” parece estar com Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky,84 que defendem a possi bilidade de ajuizamento da ADPF “naquelas situações caracterizadoras de descum prim ento de norm as m aterialm ente constitucionais”, ou
Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 222. André Ramos Tavares (in: Tratado da argüição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 138 e segs.) também enumera os mesmos "preceitos fundamen tais" como passíveis de defesa por meio da ADPF, mas afirma que tal conceituação deve ser deixada ao poder discricionário do legislador e fiscalizada pelo Tribunal Constitucional. 84 M ota , Leda Pereira & S pitzcovsky, Celso. Curso de direito constitucional, p. 96. 83 B a r r o s o , L u ís
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MANUAL 1)1 DIREITO CONSTITUCIONAL
seja, aquelas que tratam da estrutura do Estado, das relações de poder e dos direitos fundam entais das pessoas. |
Cláusula de subsidiariedade
O art. 4o, §1° da Lei n. 9.882/99 assenta que “não será adm itida argüição de descum prim ento de preceito fundam ental q u and o houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Essa disposição legal confere a marca da subsidiariedade à ADPF. Assim, se houver qualquer meio hábil para sanar a lesividade ao pre ceito fundamental, não será cabível a ADPF. Portanto, se for possível pro por, p o r exemplo, ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade, não será o caso de se admitir a ADPF. C ontudo, com o advertiu o m inistro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar em Argüição de D escum prim ento de Preceito Fundam ental n. 33/PA: (...) a simples existência de ações ou de outros recursos processuais — vias processuais ordinárias — não poderá servir de óbice ã formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multi plicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição con centrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia.
Conclui-se que a possibilidade de se m ostrar viável a utilização, em cada caso concreto, de o utro meio eficaz de sanar a lesividade ao preceito fundam ental não impede — ao contrário, estimula — o emprego da ADPF, com o intuito de resolver de maneira abrangente e definitiva a controvérsia, pela via concentrada do controle da consti tucionalidade. |
Objeto
Na Questão de O rdem da Argüição de D escum prim ento de Pre ceito Fundam ental n. 1/7-RJ, o relator m inistro Néri da Silveira, em 3 de fevereiro de 2000, após afirm ar que a ADPF é um dos “in stru m e n tos de defesa da Constituição, em controle concentrado”, asseverou que essa ação se distingue da ação direta de inconstitucionalidade e da
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
ação declaratória de constitucionalidade, na m edida em que, na ADPF: (...) a lesão à Constituição, em um ou mais de seus preceitos fundamentais, que se pretende reparar ou evitar, pode resultar de ato não-normativo do Poder Público, sendo também cabível quando relevante for o fundamento de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.85
Assim, a argüição de descum prim ento de preceito fundam ental pode ter por objeto ato do Poder Público federal, estadual, distrital ou municipal, norm ativo ou não, pré ou pós-constitucional.86 A ADPF surge, então, para preencher as lacunas até então exis tentes nos m ecanismos brasileiros de controle concentrado da consti tucionalidade. É que, por meio dessa ação, passou a ser viável a solução, direta m ente pelo Suprem o Tribunal Federal — com eficácia erga omnes e efeito vinculante — , de controvérsias relevantes atinentes ao direito pré-constitucional. Também por meio da ADPF viabilizou-se o ques tionam ento dos atos não-norm ativos federais ou estaduais e aos atos norm ativos e não-norm ativos do Poder Público municipal violadores de preceitos fundam entais.87
85 Essa posição foi reiterada na Medida Cautelar em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 33/PA, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20.10.2003. 86 Como afirma Elival da Silva Ramos, quanto à ADPF que tem por "objeto ato legisla tivo revogado, há que se atentar para requisito específico de admissibilidade da demanda, qual seja, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado" (in: "Argüição de descumprimento de pre ceito fundamental: delineamento do instituto". In: Tavares , André Ramos & R othenburg , Walter Claudius (org.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei n. 9.882/99, p. 122). 87Como afirma, de modo acertado, Gilmar Ferreira Mendes, ao "contrário do imaginado por alguns, não será necessário que o Supremo Tribunal Federal aprecie as questões constitu cionais relativas ao direito de todos os municípios. Nos casos relevantes, bastará que decida uma questáo-padrão com força vinculante. Se entendermos, como parece recomendável, que o efeito vinculante abrange também os fundamentos determinantes da decisão, poderemos dizer, com tranqüilidade, que não apenas a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade no município 'A', mas toda e qualquer lei municipal de idêntico teor não mais poderão ser
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Com efeito, até o advento da ADPF, todas essas questões não p o diam ser objeto do controle concentrado da constitucionalidade, ou seja, não poderiam ser levadas diretam ente ao Suprem o Tribunal Fe deral, pois a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade não com portavam , com o não co m po rtam , a veiculação de tais controvérsias. |
Espécies de ADPF
É possível identificar duas espécies de argüição de descum prim en to de preceito fundam ental: a au tô n o m a e a incidental. A argüição au tô no m a está prevista no art. I o, caput, da Lei n. 9.882/99, e a argüição incidental, no inc. I do parágrafo único do m es m o art. Io. Assim, a argüição autônom a decorre da previsão legal segundo a qual a ADPF “será proposta perante o Supremo Tribunal Federal e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundam ental, resultante de ato do Poder Público”. É um caso, portanto, de controle concentra do da constitucionalidade. lá a argüição incidental88 é cabível na hipótese de ser “relevante o fu n d am en to da controvérsia constitucional sobre lei ou ato n o r m a tivo federal, estadual ou m unicipal, incluídos os anteriores à C o nsti tuição”. Esse tipo de argüição resulta, tam b ém , das previsões do § 3o do art. 5o e do § I o do art. 6o da Lei n. 9.882/99,89 que sugerem a p o s sibilidade de argüição originada em um processo em que se busca
aplicadas" (M endes, Gilmar Ferreira. "Argüição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto". In: Tavares, André Ramos & Rothenburg , Walter Claudius (org.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental cit. p. 142). 88 Alexandre de Moraes (in: Direito constitucional, 17. ed., p. 702) chama esse tipo de argüição de ''ADPF por equiparação"; Luís Roberto Barroso (in: O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 220) utiliza a expressão "ADPF incidental", apesar de criticá-la. E André Ramos Tavares (in: Tratado da argüição de descumprimento de preceito fundamental cit. p. 393 e segs.) utiliza as expressões "ADPF incidental" e "ADPF paralela". 89 Lei n. 9.882/99: "Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absolu ta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimen to de preceito fundamental. § 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno. § 2o O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questio
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um a manifestação prévia cio Suprem o Tribunal Federal sobre a ques tão constitucional. Essa distinção foi explicitamente adm itida pelo Suprem o Tribunal Federal, na Questão de O rdem na Argüição de D escum prim ento de Preceito Fundamental n. 3/CE (rel. Min. Sydney Sanches, j. 18.05.2000), com o se percebe de parte da ementa: 1 - A Constituição Federal de 05.10.1988, no parágrafo único do art. 102, estabeleceu: a argüição de descumprimento de preceito fundamen tal decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. Esse texto foi reproduzido como § 1o do mesmo artigo, por força da Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993. 2 - A Lei n. 9.882, de 03.12.1999, cumprindo a norma constitucional, dispôs sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de pre ceito fundamental. No art. 1o estatuiu: "Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supre mo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Trata-se, nesse caso, de argüição autônoma, com caráter de verdadeira ação, na qual se po de impugnar ato de qualquer dos Poderes Públicos, no âmbito federal, estadual ou municipal, desde que para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental da Constituição. 3 - Outra hipótese é regulada no pará grafo único do mesmo art. 1o da Lei n. 9.882/99, in verbis: "Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito funda mental: I — quando for relevante o fundamento da controvérsia cons
nado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias. § 3o A liminar poderá consistir na determinação de que juizes e tribu nais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada. (...) Art. 6o Apreciado o pedi do de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. § 2o Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo".
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL titucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição". 4 - Cuida-se aí, não de uma ação autônoma, qual a prevista no caput do art. 1o da Lei, mas de uma ação incidental, que pressupõe a existência de controvérsia constitucio nal relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
Vale frisar que o veto presidencial ao inc. II do art. 2o da Lei n. 9.882/99 — que previa a possibilidade de a ADPF ser proposta por “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público” — fez com que a legitimidade ativa para a ADPF ficasse restrita aos que podem propor ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, aos p re vistos no art. 103 da Constituição Federal. Assim, tanto na hipótese de argüição au tô n o m a quanto no caso de argüição incidental, a ADPF será proposta perante o Supremo Tribu nal Federal — caracterizando-se, portanto, com o instrum ento de co n trole concentrado da constitucionalidade — , tendo com o legitimados a agir exatamente aqueles que podem prom over a ação direta de inconstitucionalidade. C um pre esclarecer ainda que, se a controvérsia objeto da ADPF for judicial, a petição inicial deverá com provar sua existência e apontar sua relevância e a aplicação do preceito fundam ental que se considera violado (art. 3o, V, da Lei n. 9.882/99). |
Efeitos cia decisão
O art. 10, § 3o, da Lei n. 9.882/99 estabelece que a decisão proferi da na argüição de descum prim ento de preceito fundam ental “terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público”. Se o efeito vinculante da decisão proferida pelo Suprem o Tribu nal Federal, na argüição de descum prim ento de preceito fu n d a m e n tal, for desrespeitado, qualquer pessoa que tiver sua esfera jurídica prejudicada poderá form ular reclamação ao p róp rio Suprem o Tribu nal, com o objetivo de garantir a autoridade da decisão tom ada pela Suprem a Corte (art. 1 0 2 ,1, /).
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A ADPF que declarar inconstitucional lei ou ato normativo, via de regra, produzirá efeitos retroativos (ex tunc). Todavia, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excep cional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por m aio ria de dois terços de seus m em bros, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só terá eficácia a partir de seu trânsito em julgado (efeitos não-retroativos, ex nunc) ou de outro m o m en to que venha a ser fixado (pro futuro). Essa é a previsão do art. 11 da Lei n. 9.882/99.
Medida cautelar O deferimento de medida cautelar em argüição de descum prim en to de preceito fundamental é possível, desde que dem onstrados os re quisitos da plausibilidade jurídica da ação (fumus boni iuris) e do risco da dem ora da prestação jurisdicional ao final (periculum in mora). Nos term os do § 3o do art. 5o da Lei n. 9.882/99, a liminar conce dida na ADPF “poderá consistir na determ inação de que juizes e tri bunais suspendam o andam ento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descum prim ento de preceito funda mental, salvo se decorrentes da coisa julgada”. ■I A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO
Decorrido prazo razoável para a edição de norm a exigida pela Cons tituição, sem a efetiva atuação reclamada do órgão responsável por fazêlo, será admitido o controle da constitucionalidade por omissão.90 Assim, depois de quase duas décadas de vigência da atual C onsti tuição, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão é cabível 90 O art. 283 da Constituição portuguesa prevê a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão da seguinte forma: " 1 - A requerimento do Presidente da República, do Prove dor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autônomas, dos pre sidentes das assembléias legislativas regionais, o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exeqüíveis as normas constitucionais. 2 - Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislati vo competente".
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toda vez que se detectar um desrespeito à norm a constitucional por inação do ente encarregado de praticar determ inado ato. |
Competência e legitimidade
Diante de um a inconstitucionalidade por omissão, as pessoas pre vistas no art. 103 da Constituição Federal poderão propor ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com o intuito de tornar efetiva n orm a constitucional, ação essa que compete originariam ente ao Su prem o Tribunal Federal processar e julgar. O m encionado dispositivo constitucional, com a redação dada pe la Em enda Constitucional n. 45/2004, estabelece que as pessoas legiti madas a propor ação direta de inconstitucionalidade por omissão são as mesmas que têm legitimidade ad causam para a ação direta de incons titucionalidade genérica e para a ação declaratória de constitucionali dade: o presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da C âm ara dos Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da C â m ara Legislativa do Distrito Federal; o governador de estado ou do Distrito Federal; o procurador-geral da República; o Conselho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil; o partido político com represen tação no Congresso Nacional; a confederação sindical ou entidade de classe de âm bito nacional. Assim com o acontece na ação direta de inconstitucionalidade ge nérica, o presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da C âm ara dos Deputados, o procurador-geral da República, o C o n selho Federal da O rdem dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional têm legitimação ativa un i versal, ou seja, podem pro p o r a ação declaratória de constitucionali dade sobre qualquer assunto. Já as Mesas das Assembléias Legislativas ou da Câm ara Legislativa do Distrito Federal, os governadores de estado ou do Distrito Federal e as confederações sindicais ou as entidades de classe de âm bito n a cional devem dem onstrar a existência de relação de pertinência entre seus interesses e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão que pretendem propor. Assim, se não estiver presente o requi sito da pertinência temática, não se configura a legitimidade dessas pessoas para p ro p o r a ação.
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A legitimação passiva é do órgão que se encontra em m ora, ou se ja, a pessoa ou o ente que tem a obrigação constitucional de agir, mas se queda inerte, revelando-se inadimplente. |
Efeitos da decisão
O § 2o do art. 103 da Constituição Federal prevê que “declarada a inconstitucionalidade por omissão de m edida para to rn ar efetiva n o rm a constitucional, será dada ciência ao Poder com petente para a adoção das providências necessárias e, em se tratan d o de órgão adm inistrativo, para fazê-lo em trin ta dias”. Reconhecida a inconstitucionalidade por omissão, o Suprem o Tri bunal Federal, então, declarará a m ora e com unicará, formalmente, tal decisão ao órgão inadimplente para que ele tom e as providências ne cessárias ao restabelecimento da obediência à Constituição. Assim, se a om issão for praticada, p o r exem plo, pelo P oder Le gislativo, o S u p re m o T ribunal Federal, d eclara n d o a in c o n s titu c io nalidade p o r om issão p e rp e tra d a p o r esse órgão, dará ciência a ele para q ue ad ote as providências necessárias a san ar o vício om issivo. N ão há, todavia, a possibilidade de im posição de n e n h u m a sanção, ab rin d o , tã o -so m e n te , a possibilidade de indenização para as pessoas lesadas pela om issão, a ser apreciada, caso a caso, pelo ju iz c o m p e te n te .91 Já se a om issão for, p o r exemplo, do presidente da República, o S uprem o Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade p o r om issão levada a efeito p o r ele, dará trin ta dias para que seja p ra ti cado o ato necessário a su p rir a om issão existente. E, no caso de o presidente da República não c u m p rir a determ inação judicial, p o derá incorrer no crim e de responsabilidade previsto no art. 85, VII, da C onstituição Federal, sujeitando-se, nesse exemplo, ao processo de impeachment. C ontudo, o Suprem o Tribunal Federal, na Ação Direta de Incons titucionalidade n. 2.06l/DF, relatada pelo m inistro lim ar Galvão, e ju l gada em 25 de abril de 2001, decidiu que só é possível a fixação do 91
Essa posição é defendida por A raújo , Luiz Alberto David & N unes J únior , Vital Serra no. Curso de direito constitucional, p. 55.
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prazo de trinta dias para o chefe do Poder Executivo atuar de m o d o a respeitar a Constituição quando a atribuição for de natureza adm inis trativa. A em enta da decisão tem o seguinte teor: Ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Art. 37, X, da Consti tuição Federal (redação da EC n. 19, de 4 de junho de 1998). Norma constitucional que impõe ao presidente da República o dever de desen cadear o processo de elaboração da lei anual de revisão geral da remune ração dos servidores da União, prevista no dispositivo constitucional em destaque, na qualidade de titular exclusivo da competência para iniciati va da espécie, na forma prevista no art. 61, § 1o, II, a, da CF. Mora que, no caso, se tem por verificada, quanto à observância do preceito constitu cional, desde junho/1999, quando transcorridos os primeiros doze meses da data da edição da referida EC n. 19/98. Não se compreende, a provi dência, nas atribuições de natureza administrativa do chefe do Poder Executivo, não havendo cogitar, por isso, da aplicação, no caso, da norma do art. 103, § 2o, in fine, que prevê a fixação de prazo para o mister. Pro cedência parcial da ação.
A inadmissibilidade de medida cautelar Em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, não se adm i te a concessão de medida cautelar para antecipar os efeitos da decisão final de mérito. C om o já decidiu o Suprem o Tribunal Federal, “é incompatível com o objeto mediato da referida dem anda a concessão de liminar. Se nem m esm o o provim ento judicial últim o pode implicar o afastamen to da omissão, que se dirá quanto exame prelim inar” (Medida C aute lar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 361/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 0 5 .10.1990).92
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No mesmo sentido, conferir as decisões proferidas na Medida Cautelar na ADIn n. 267/DF, rel. Min. Celso de Melo, j. 25.10.1990, e na ADIn. 1.996/DF, rel. Min. limar Galvão, j. 16.06.1999.
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A AÇÃO DIRETA DE I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E IN T E R V E N T I VA
O art. 1° da Constituição Federal estabelece que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado democrático de direito. O art. 18, por sua vez, prevê que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição. C om o se verá mais adiante, q u and o for estudada a Federação b ra sileira, um princípio básico da form a federativa de Estado é a au to n o mia dos entes federativos. Por essa razão é que o art. 34 da Constituição Federal fixa o princí pio de que a União não intervirá nos estados, exceto nas hipóteses ta xativamente previstas nos incisos desse artigo. Desde que presentes os requisitos previstos constitucionalmente, o presidente da República decreta a intervenção espontaneam ente, a não ser que a Constituição Federal condicione a decretação a alguma outra medida. Duas hipóteses em que se condiciona a decretação estão co n tidas no inc. III do art. 36 da Constituição Federal (com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004), que diz que a intervenção federal dependerá de provimento, pelo Suprem o Tribunal Federal, de representação do procurador-geral da República, no caso do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. A “representação” feita com base no art. 34, VII, é a cham ada ação direta de inconstitu cionalidade interventiva, que será vista a seguir.
Legitimidade ativa e competência Percebe-se, do exposto, que som ente o procurador-geral da Repú blica tem legitimidade para pro p o r a ação direta de inconstitucio nalidade interventiva. O órgão com petente para julgar tal ação é o Supremo Tribunal Federal.
Os princípios sensíveis O inc. VII do art. 34 estatui a possibilidade de intervenção da União nos estados para assegurar a observância dos seguintes princípios
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MANUAL 1)1 DIREITO CONSTITUCIONAL
constitucionais: “a) form a republicana, sistema representativo e regi me dem ocrático; b) direitos da pessoa hum ana; c) au to n o m ia m u n i cipal; d) prestação de contas da adm inistração pública, direta e ind i reta; e) aplicação do m ín im o exigido da receita resultante de im postos estaduais, com preendida a proveniente de transferências, na m a nutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”. Esses princípios previstos no inc. VII do art. 34 da C onstituição Federal são cham ados pela d o u trin a de princípios constitucionais sensíveis, pois a violação deles pelos estados ou pelo Distrito Federal sujeitará tais entes federativos à m edida mais drástica em um Estado federal, qual seja, a intervenção da União na a u to n o m ia política deles. Assim, se o Distrito Federal ou os estados-membros, quando do exercício de suas competências, violarem os princípios sensíveis, p o derão sofrer a intervenção federal. Ocorre que, nesses casos, a União somente poderá intervir se o procurador-geral da República propuser a ação direta de inconstitu cionalidade interventiva perante o Suprem o Tribunal Federal e se este julgá-la procedente. | Finalidades A ação direta de inconstitucionalidade interventiva tem duas fina lidades, um a jurídica e outra política.93 A prim eira finalidade, cham ada de jurídica, consiste em obter do Supremo Tribunal Federal a declaração da inconstitucionalidade da lei ou do ato norm ativo do estado ou do Distrito Federal que teria viola do um dos princípios sensíveis previstos no art. 34, VII, da C onstitui ção Federal. A violação aos princípios sensíveis pode ocorrer, ainda, por om is são do estado ou do Distrito Federal Nesse caso tam bém deve ser admitida a ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Tal hipó tese foi abordada, em 13 de março de 1991, pelo Supremo Tribunal Fe-
93 M oraes , Alexandre de.
Direito constitucional, p. 685.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
deral, no processo de Intervenção Federal n. 114/MT,9'1que teve como relator o ministro Néri da Silveira e cuja ementa é a seguinte: 1 - Intervenção federal. 2 - Representação do procurador-geral da Repú blica pleiteando intervenção federal no estado de Mato Grosso, para as segurar a observância dos "direitos da pessoa humana", em face de fato criminoso praticado com extrema crueldade a indicar a inexistência de "condição mínima", no Estado, "para assegurar o respeito ao primordial direito da pessoa humana, que é o direito à vida". Fato ocorrido em Matupá, localidade distante cerca de 700 km de Cuiabá. 3 - Constituição, arts. 34, VII, b, e 36, III. 4 - Representação que merece conhecida, por seu fundamento: alegação de inobservância pelo estado-membro do princí pio constitucional sensível previsto no art. 34, VII, b, da Constituição de 1988, quanto aos "direitos da pessoa humana". Legitimidade ativa do procurador-geral da República (Constituição, art. 36, III). 5 - Hipótese em que estão em causa "direitos da pessoa humana", em sua compreensão mais ampla, revelando-se impotentes as autoridades policiais locais para manter a segurança de três presos que acabaram subtraídos de sua pro teção, por populares revoltados pelo crime que lhes era imputado, sendo mortos com requintes de crueldade. 6 - Intervenção federal e restrição à autonomia do estado-membro. Princípio federativo. Excepcionalidade da medida interventiva. 7 - No caso concreto, o estado de Mato Grosso, se gundo as informações, está procedendo à apuração do crime. Instaurouse, de imediato, inquérito policial, cujos autos foram encaminhados à autoridade judiciária estadual competente que os devolveu, a pedido do delegado de Polícia, para o prosseguimento das diligências e averiguações. 8 - Embora a extrema gravidade dos fatos e o repúdio que sempre mere cem atos de violência e crueldade, não se trata, porém, de situação con creta que, por si só, possa configurar causa bastante a decretar-se inter venção federal no estado, tendo em conta, também, as providências já adotadas pelas autoridades locais para a apuração do ilícito. 9 - Hipótese em que não é, por igual, de determinar-se que intervenha a Polícia Fede-
94 Essa decisão foi analisada por B a rro so , Luís Roberto. O controle da constitucionali
dade no direito brasileiro cit. p. 257 e segs.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL ral, na apuração dos fatos, em substituição à Polícia Civil de Mato Grosso. Autonomia do estado-membro na organização dos serviços de justiça e segurança, de sua competência (Constituição, arts. 25, § 1o; 125 e 144, § 4o). 10 - Representação conhecida mas julgada improcedente.
A segunda finalidade da ação direta interventiva é política: impor, em razão da declaração da inconstitucionalidade, que o presidente da República, com base no art. 84, X, com binado com o art. 36, III, decrete a intervenção no Distrito Federal ou no estado que violou o art. 34, IV, da Constituição, com vistas a restabelecer o respeito ao princípio sensível atingido. |
Efeitos da decisão
A decretação da intervenção limitar-se-á a suspender a execução do ato im pugnado, se essa medida for suficiente para restabelecer a norm alidade (art. 36, § 3o). C om o afirma Luis Roberto Barroso,95 a decisão na ação direta in terventiva tem caráter m andam ental e não altera, por si só, o ordena m ento jurídico. Do ponto de vista subjetivo, se o pedido for julgado improcedente, “a União fica im pedida de intervir no estado sob o fu n dam ento de que o ato m otivador da ação viola princípio sensível”. Por outro lado, se o pedido for julgado procedente, a União deverá inter vir no ente federado, não havendo, nesse caso, discricionariedade p o r parte do presidente da República, pois seu ato será vinculado, não de pendendo de juízo de conveniência e oportunidade. |
Liminar
A Lei n. 4.337/64, prom ulgada durante a vigência da Constituição de 1946, regula a declaração de inconstitucionalidade na hipótese de violação dos princípios sensíveis. Nessa lei não há previsão de con cessão de m edida cautelar e de liminar no processo de ação direta in terventiva.
95 Barroso, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 260.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
C ontudo, a Lei n. 5.778/72, editada já sob a égide da Constituição de 1967, com Emenda n. 1, de 1969, estabelece expressamente a possi bilidade de o relator da representação suspender lim inarm ente o ato im pugnado, a requerim ento do chefe do Ministério Público estadual. Mas, como afirma, com acerto, Luís Roberto Barroso,96 baseado no entendim ento de Clèmerson Merlin Clève: (...) a natureza e a finalidade da ação direta interventiva não são com patíveis com a possibilidade de concessão de medida liminar. Não há como antecipar qualquer tipo de efeito, como a eventual suspensão do ato impugnado, uma vez que a própria decisão de mérito tem como conse qüência apenas a determinação de que o Chefe do Executivo execute a intervenção.
96B arroso , Luís Roberto. Ob. cit. p. 259.
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F o r m a s
d e
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E sta d o
Form a de Estado, para Jorge M iranda:1 (...) é o modo de o Estado dispor o seu poder em face de ou tros poderes de igual natureza (em termos de coordenação e subordinação) e quanto ao povo e ao território (que ficam su jeitos a um ou a mais de um poder político).
Ao analisar as formas de Estado, será estudada a divisão espacial do poder, ou seja, com o o poder é exercido e repar tido n u m determ inado território. Para tanto, é imprescindível a fixação dos conceitos de centralização e descentralização, bem com o de soberania e autonom ia. A centralização do p o d er ocorre q u a n d o este em ana de u m a só pessoa ou de um único órgão. Por o u tro lado, a
1 M iranda , Jorge.
Teoria do Estado e da Constituição, p.
298 e 299.
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descentralização se caracteriza q u an d o mais de u m a pessoa, mais de u m ente, tem a possibilidade jurídica de exercer o poder. O exercício do poder estatal pode se dar, entre outros modos, por meio da criação de norm as gerais e abstratas e pela execução dos atos, com observâncias das regras gerais e abstratas. Q u an do se diz que um único órgão tem o poder de executar deter m inada regra, está configurada a centralização administrativa. Por outro lado, quando essa execução das norm as gerais e abstratas se dá por mais de um a pessoa, ocorre a descentralização administrativa.2 Na hipótese de um único órgão estatal ter o poder de editar as leis, ou seja, as regras gerais e abstratas, está caracterizada a centralização política. C ontudo, se mais de um órgão, mais de u m a pessoa, mais de u m a entidade tem a possibilidade de editar essas norm as gerais e abstratas, ocorre a descentralização política. A soberania se caracteriza pelo poder incontrastável de m ando inerente ao Estado, é a expressão da unidade de um a ordem jurídica. Assim, do po n to de vista externo, diz-se que um Estado é soberano quando, juridicamente, não há n e n h u m outro poder, órgão ou pessoa que lhe seja superior. Portanto, n en h u m Estado pode ditar, sob a ótica jurídica, o que outro Estado soberano deve ou não fazer. C om o afirma Dalmo de Abreu Dallari,3 a soberania pode ser con cebida de duas maneiras distintas: (...) como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos
2 Celso Antônio Bandeira de Mello (in: Curso de direito administrativo, p. 137 e 138) faz, quanto à atividade administrativa, a distinção entre descentralização e desconcentração: "Diz-se que a atividade administrativa é descentralizada quando é exercida, em uma das formas men cionadas, por pessoa ou pessoas distintas do Estado. Diz-se que a atividade administrativa é cen tralizada quando é exercida pelo próprio Estado, ou seja, pelo conjunto orgânico que lhe com põe a intimidade". Em relação à desconcentração, que pode se dar em relação à matéria, à hierarquia e ao território, o autor afirma o seguinte: "O fenômeno da distribuição interna de plexos de competências, agrupadas em unidades individualizadas, denomina-se desconcentração". 3 Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 84. Conferir também Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 46 e 47.
FORMAS DE ESTADO limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em últi ma instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica.
Por outro lado, a autonom ia é um “poder limitado e circunscrito”, é a “capacidade de agir dentro de um círculo preestabelecido”.4 Ela com porta graduação e se identifica na m edida em que o Estado é an a lisado do ponto de vista interno.5 Assim, quando entes estatais exer cem, com independência, os poderes que lhes são conferidos, diz-se que tais entidades têm autonom ia. Se as atribuições desses órgãos são para inovar a ordem jurídica, por meio de regras gerais e abstratas, dizse que está presente a autonom ia política. Já se as atribuições são ape nas para administrar, ou seja, para executar as regras gerais e abstratas, diz-se que há autonom ia administrativa.
ESTADO U N I T Á R I O
A forma de Estado chamada de Estado unitário se caracteriza pela cen tralização do poder, em que o poder central é o núcleo do poder político.6 Canotilho, analisando a Constituição portuguesa e levando em conta os elementos históricos e do direito comparado, explica que o Estado unitário se caracteriza como aquele que: (...) num determinado território e para a população que nele vive, tem um suporte único para a estatalidade (ou estadualidade). Dizer-se que há um suporte único para a estadualidade significa que: (1) existe uma organi zação política e jurídica — o Estado — à qual se imputa em termos exclu sivos a totalidade das competências típicas estatais (ex.: representação externa, defesa, justiça); (2) conseqüentemente, existe uma só soberania interna e externa, não existindo outras organizações soberanas colocadas em posição de equiordenação (confederação) ou em posição de diferen ciação (estado-membro de um Estado federal); (3) da unitariedade do Estado resulta a imediaticidade das relações jurídicas entre o poder cen
Curso de direito constitucional positivo, p. 483. Michel. Elementos de direito constitucional, p. 60.
4 S ilva, José Afonso da. 5 T em er ,
6 D a lla r i,
Dalmo de Abreu. Ob. cit. p. 255.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL trai e o os cidadãos (não existem "corpos intermediários" a servir de
écran entre o Estado e os cidadãos); (4) do caráter unitário deriva ainda a idéia de indivisibilidade territorial.
Na prática, a centralização política pode ocorrer, mas a centraliza ção administrativa não, tendo em vista que um Estado centralizado política e adm inistrativam ente dificilmente alcançaria seus objetivos. Assim, existem Estados unitários centralizados politicamente, mas descentralizados adm inistrativamente, com o tam bém há Estados des centralizados política e administrativamente. No prim eiro caso, falase, simplesmente, em Estado unitário. No outro, fala-se em Estado unitário descentralizado ou regional. O Estado unitário regional pode ser integral7 ou parcial.8 Neste caso, existem, n u m m esm o Estado, regiões com autonom ia política e regiões so m en te descentralizadas ad m in istrativ am en te. N aquele prim eiro caso, ou seja, do Estado unitário regional integral, todo o ter ritório se divide em regiões autônom as.9 Vale frisar que a descentralização, em u m Estado unitário, se co n cretiza por meio da manifestação da vontade do poder central, que delega parcela do poder para entes descentralizados, autorizando-os a criar leis (descentralização política) ou a executá-las (descentralização administrativa). Todavia, da m esm a forma que o núcleo central transfere parte do poder para outras entidades, ele tem a possibilidade de retirá-la, visto que, ao fazer a delegação do poder, não abre m ão dele, preservando a possibilidade de restaurar a centralização.
7Como, por exemplo, a Espanha e a África do Sul. 8 Como ocorre, por exemplo, na Dinamarca, no Reino Unido e em Portugal. 0 art. 6o da Constituição portuguesa prevê o seguinte: "1 — O Estado é unitário e respeita na sua organi zação e funcionamento o regime autonômico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública. 2 — Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autônomas dotadas de es tatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio". 9 M iranda , Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo III - Estrutura constitucional do Estado, p. 282.
FORMAS DE ESTADO
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FEDERAÇÃO
O term o “federação” traz consigo a idéia de pacto, de aliança.10 A forma federativa de Estado pretende garantir a unidade na diversidade, unindo: (...) entidades heterogêneas em torno de um conjunto de regras comuns, dando-lhe certa homogeneidade. Mas, ao mesmo tempo, pretende que essa unidade preserve a diferenciação entre os elementos componentes da federação, respeitando a identidade cultural e política de cada um.’1
Essa é a form a de Estado atualm ente adotada pelo Brasil, visto que a Constituição de 1988 prevê que a República Federativa do Brasil é form ada pela união indissolúvel dos estados, dos municípios e do Dis trito Federal (art. I o, caput, da Constituição Federal).12 O art. 18 da Constituição, p o r seu turno, estabelece que a “organi zação político-administrativa da República Federativa do Brasil co m preende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autô no m o s”.13 M
UM E X EM PLO
Em 2003, o estado do Paraná editou a Lei n. 14.162, estabelecendo a vedação ao cultivo, à manipulação, à im portação, à industrialização e à comercialização de organismos geneticamente modificados.
10 A palavra "federação" vem do latim foedus, que remete à idéia de associação, união, aliança, ajuste, laço, pacto, como advertem B astos, Celso. A federação e a constituinte, p. 14; Dallari, Dalmo. Ob. cit. p. 256; T emer , Michel. Ob. cit. p. 57; e H orta, Raul Machado. "O fede ralismo no direito constitucional contemporâneo''. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. I, p. 729. ,1 Dallari, Dalmo de Abreu. O Estado federal, p. 51. u É importante notar que, nesse ponto, a Constituição fala em "união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal", utilizando a expressão "união" com a primeira letra minúscula, visto que se pretendeu, aqui, usar o termo como sinônimo de aliança ou pacto. 13 Nesse artigo da Constituição, o termo "União" aparece com letra maiúscula, pois a intenção, aqui, foi a de utilizar a expressão para designar uma das pessoas jurídicas de direi to público que compõem a Federação brasileira.
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O Partido da Frente Liberal (PFL) ajuizou medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 3.035 MC/PR) contra o governa dor e a Assembléia Legislativa do estado do Paraná, alegando, em síntese, violação ao princípio federativo (art. Io da Constituição), além da inva são, pelo estado-membro, de competências dadas pela Constituição Federal à União (art. 2 2 ,1, VII, X e XI, art. 2 4 ,1 e VI, e art. 25). O Suprem o Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo ministro Gilmar Mendes, em 10 de dezembro de 2003, deferiu a cautelar, pois entendeu que “as alegações de inconstitucionalidade, no que toca à potencial ofensa à competência privativa da União e das norm as cons titucionais relativas às matérias de competência legislativa concor rente” eram plausíveis. Tal conclusão se deu depois de o m inistro relator questionar: “p e rante a divisão constitucional de competências legislativas entre União e estados, pode o estado do Paraná editar as norm as impugnadas?” A resposta foi a seguinte: “Nesse exame cautelar, considero plausíveis as alegações de inconstitucionalidade”. Com esse exemplo tenta-se antecipar algumas das características da Federação, bem com o alguns requisitos para a preservação dessa forma de Estado, com o se analisará a seguir. ■I C A R A C T E R ÍS T IC A S DA FED E R AÇ ÃO
A prim eira característica1'1 de um a Federação é a existência da descentralização política fixada na Constituição. Assim, a Constituição é o fundam ento jurídico do Estado federal e é ela que faz a repartição de competências entre o poder central (União) e os demais entes des centralizados (como os estados, no Brasil; as províncias, na Argentina;
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Sobre as características da Federação, conferir, entre outros, B aracho , José Alfredo de
Teoria geral do federalismo, p. 47 e 48; A lmeida , Fernanda Dias Menezes de. Com petências na Constituição de 1988, p. 27-34; S egado , Francisco Fernández. "E l federalismo en América Latina". In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. I, p. 447-76; Oliveira.
B astos , Celso. Ob. cit. p. 21-8; T em er , Michel. Ob. cit. p. 57-69; Dallari, Dalmo de Abreu. Ob. cit. p. 258-60. Para a distinção entre federalismo simétrico e federalismo assimétrico, conferir H orta, Raul M achado. " O federalismo no direito constitucional contem porâneo". In:
Latino-Americana de Estudos Constitucionais cit.
p. 713-40.
Revista
FORMAS DE ESTADO
os cantões, na Suíça), determ inando que mais de um órgão tem o poder de criar norm as gerais e abstratas. Portanto, a Constituição dá poderes para o órgão central (União) editar norm as válidas para todo o território, bem com o confere p o d e res para que os entes regionais (estados-membros) criem as regras gerais e abstratas com validade para a sua respectiva região. Nesse sentido é que se diz que, n u m a Federação, não há hierarquia entre as norm as criadas pela União e pelos estados-membros, porque todos os entes federativos vão buscar fundam ento de validade de suas regras na Constituição Federal. Em outras palavras, a União não dirá o que os estados-m em bros deverão fazer ou deixar de fazer, nem viceversa. Tanto a União com o os estados-m em bros procurarão suas co m petências nas disposições constitucionais.15 O utra característica é a existência de autonom ia das unidades fede radas que com põem a Federação, sendo que somente o Estado federal, como um todo, tem soberania.16 Aliás, num a Federação é imprescindí vel que cada estado-membro possa, respeitadas suas peculiaridades, ter sua própria Constituição, observados os princípios da Constituição Fe deral. Esse é o poder de autoconstituição dos entes regionais. C om a previsão da autonom ia e a divisão de competências, m os tra-se imprescindível que cada esfera de poder político tenha rendas próprias. Portanto, n u m a Federação, além da repartição de com petên cias e, via de conseqüências, de obrigações e encargos, é indispensável a repartição constitucional de rendas para que cada ente federativo possa fazer frente às atribuições conferidas a eles pela Constituição (arts. 153 a 162). A Federação tam bém se caracteriza pela participação das unidades federadas na criação da ordem jurídica nacional, ou seja, os entes des centralizados que exercem, com autonom ia, um a parcela da soberania,
15 Nesse sentido, Dallari, Daimo de Abreu. Elementos cit. p. 259 e 260; M ota, Leda Pereira & S pitzcovsky , Celso. Ob. cit. p. 131. 16Para a defesa, durante o período da última Constituinte brasileira, de um federalismo das regiões, com ênfase na questão nordestina, conferir B onavides, Paulo. Constituinte e cons tituição: a democracia, o federalismo e a crise contemporânea, p. 365-467.
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devem participar da criação da lei que vigorará em todo o território nacional. Isso se dá p o r meio do Senado, que, segundo o art. 46 da Consti tuição Federal, “compõe-se de representantes dos Estados e do Distri to Federal”, sendo certo que “cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores” (§ Io do art. 46). Portanto, cada estado e o Distrito Federal tem, no Senado, o m es m o núm ero de parlamentares. C om o se verá quando do estudo do processo legislativo, as leis federais, para que validamente entrem em vigor, devem ser aprovadas tanto pela C âm ara dos Deputados como pelo Senado (art. 65). Por fim, n u m a Federação não existe o direito de secessão, ou seja, o vínculo entre as unidades federativas é indissolúvel, como, aliás, prevê o art. Io da Constituição Federal de 1988.
m
R E Q U IS IT O S PARA A M A N U T E N Ç Ã O DA FED E R AÇ ÃO
Os requisitos para a m anutenção da Federação são a rigidez cons titucional, a existência de um órgão que tenha a competência de rea lizar o controle da constitucionalidade das leis e dos atos norm ativos,17 bem com o a previsão da intervenção federal.18 A rigidez constitucional determ ina a superioridade hierárquica das norm as constitucionais em relação às demais regras postas no sis tem a jurídico. C om o se viu, se a Constituição for flexível, sua alteração poderá ocorrer p o r meio da criação da legislação ordinária. O u seja, n um sistema de Constituição flexível, as regras constitucionais encon tram-se, do ponto de vista jurídico-formal, no m esm o patam ar hierár quico das leis ordinárias. Portanto, a rigidez constitucional contribui para a m anutenção da Federação.
17Esses dois primeiros requisitos podem ser encontrados em T em er , Michel. Ob. cit. p. 64 e 65. 18 Esse requisito é apontado por S egado , Francisco Fernández. Ob. cit. p. 450, com base na obra de Raul Machado Horta, como uma característica da Federação.
FORMAS DE ESTADO
No caso brasileiro, a form a federativa de Estado faz parte do n ú cleo intangível da Constituição, na m edida em que é apontada como u m a cláusula pétrea (art. 60, § 4o, I, da Constituição Federal). Assim, em relação à Federação, mais do que a rigidez constitucional, o orde nam ento jurídico brasileiro prevê um a super-rigidez. Mas para m anter a Federação tam bém é necessária a existência de um órgão incum bido de exercer o controle da constitucionalidade das leis, pois, do contrário, se u m órgão federativo invade a competência atribuída pela Constituição Federal a outro ente federativo, essa incons titucionalidade não seria solucionada, esfacelando a Federação. Por isso, é imprescindível a existência de um órgão que realize o controle da constitucionalidade das leis exatamente para resolver os conflitos de competência surgidos. Nesse sentido é que se diz que, n u m a Federa ção, não existe conflito insuperável de competência, pois, ao surgir um conflito dessa natureza, existirá um órgão encarregado de dizer qual entidade agiu de acordo com a Constituição e qual a violou. Por fim, a intervenção federal revela-se com o um a técnica para restabelecer a integridade territorial, política, financeira e constitu cional do Estado federal, quando transgredida, com o se pode notar das previsões do art. 34 da Constituição brasileira. ■I
BREVE H IS T Ó R IC O
O prim eiro Estado federativo surgiu nos Estados Unidos da Amé rica. Lá, as treze colônias inglesas, quando se desvencilharam da m e trópole, tornaram -se, em 1776, Estados livres e independentes. As treze colônias, apesar de não terem abdicado da soberania que passaram a exercer, resolveram se unir, em 1781, por meio de um pacto internacional dissolúvel, com vistas a preservar a independência alcan çada. Criou-se, assim, u m a Confederação.19 A Confederação se caracteriza pela aliança de vários Estados sobe ranos, que não abrem m ão de sua liberdade, independência e sobera nia, mas se associam por um pacto internacional. Em razão da m a n u tenção da soberania de cada com ponente da Confederação, que aderiu
>9 D a lla r i,
Dalmo de Abreu. O Estado federal c it. p. 11-4.
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ao tratado internacional, preserva-se a possibilidade de dissolução desse pacto, o que o torna, de certo m odo, frágil. Em v irtu d e das dificuldades para a execução do tra ta d o in te r nacional firm ado pelas colônias e da fragilidade da aliança exis tente, foi fo rm u lad a u m a alternativa com o in tu ito de to rn a r o pacto entre as colônias d u ra d o u ro . E isso se deu p o r m eio da form ação da Federação, ou seja, um pacto indissolúvel entre os participantes, que, na ocasião, em 1787, elab o raram u m a C onstituição prevendo as n o rm a s que regeriam o novo Estado soberano, co nstituído pelos entes (antigas treze colônias) que abriam m ão da soberania que exerciam até então, preservando au to n o m ias legislativas e a d m in is trativas.20 No Brasil, a formação da Federação se deu de m aneira inversa. Com a proclamação da República, em 15 de novem bro de 1889, houve tam bém a transform ação do Estado unitário brasileiro21 em um a Fede ração, criando os estados federados e prevendo a descentralização do poder. A Constituição de 1891 consolidou a Federação brasileira, sendo certo que essa forma de Estado foi m antida pelas demais Constituições brasileiras. Todavia, convém registrar que, com a revolução de 1930, houve a nom eação de interventores para os estados, despojando-os de um a real autonom ia. Com a Constituição de 1934, houve o restabeleci m ento do princípio federativo, mas, com a imposição da Constituição de 1937, a autonom ia dos estados-m em bros foi novam ente afastada e, apesar do ressurgimento da Federação com a Constituição de 1946, a centralização do poder nas mãos da União voltou a ocorrer a partir do golpe militar de 1964. Somente em 1988 o fortalecimento da form a 20 Para compreender os argumentos a favor da formação da Federação, conferir os arti gos escritos, entre 1787 e 1788, por James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, todos com o mesmo pseudônimo: Publius (Os artigos federalistas: 1787-1788). Para uma análise, ainda no final da década de 1990, da União Européia e sua possível evolução para um Esta do federal, conferir Renoux, Thierry S. "O federalismo e a União Européia. A natureza da Comunidade: uma evolução na direção de um Estado Federal? Um federalismo sem Fede ração". In: Barros , Sérgio Resende de & Z ilveti, Fernando Aurélio (coord.). Direito constitu cional: estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, p. 263-87. 21 Na análise de Jorge Miranda (in: Manual cit. p. 282), no Império, após a revisão da Constituição, em 1834, tratava-se de um Estado unitário regional integral.
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federativa de Estado voltou a ocorrer, graças às novas previsões consti tucionais que descentralizaram o poder, dando mais competências e autonom ias aos estados, municípios e Distrito Federal. Analisando a formação histórica da Federação norte-am ericana e a da Federação brasileira é possível com preender porque aquela é m uito mais descentralizada que esta. Isso se deve principalm ente ao fato de que, enquanto nos Estados Unidos da América a Federação surgiu da união entre vários Estados soberanos, que abriram m ão de pequena parcela do poder que detinham para form ar o novo Estado soberano, no Brasil o processo histórico foi inverso: o Estado unitário que existia se transform ou em um a Federação, form ada por entes descentralizados com poucos poderes, em razão de o poder central ter abdicado de pequena parcela de suas competências. No Brasil, a Federação, com o se viu, é form ada pela União, pelos estados-membros, pelos municípios e pelo Distrito Federal, que se aliam por meio de um pacto indissolúvel. Esses serão os pontos anali sados a seguir. ■I CRITÉR IO S DE REPARTIÇÃO DE C O M P E TÊ N C IA S
C om o já m encionado, u m a das características da Federação é a existência da descentralização política fixada na Constituição, ou seja, é a Constituição que reparte as competências entre os entes federativos que, no caso brasileiro, são a União, os estados-membros, os m unicí pios e o Distrito Federal. C om o afirma José Afonso da Silva,22 o (...) princípio geral que norteia a repartição de competência entre as enti dades componentes do Estado federal é o da predom inância do interes
se, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predom inante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predom inante interesse regional, e aos Municí pios concernem os assuntos de interesse local.
22 Silva,
José Afonso
d a.
Curso cit.
p. 4 7 8 .
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Neste prim eiro m om ento, em linhas gerais, pode-se dizer que a Constituição adotou os seguintes critérios para repartir as com petên cias entre os entes federativos: conferiu à União os poderes que en u m erou expressamente (arts. 21 e 22); deu aos municípios as co m petências relativas ao interesse preponderantem ente local (art. 3 0 ,1); e concedeu aos estados-m em bros as competências remanescentes (art. 25, § Io), ou seja, aquelas que não foram outorgadas nem à União nem aos municípios. Contudo, como adverte Fernanda Dias Menezes de Almeida,23 a Constituição Federal de 1988 adotou um sistema complexo de repar tição de competências - que será analisado adiante, com mais detalhe - , prevendo a convivência de: (...) competências privativas, repartidas horizontalmente, com competên cias concorrentes, repartidas verticalmente, abrindo-se espaço também pa ra a participação das ordens parciais na esfera de competências próprias da ordem central, mediante delegação.
No cam po tributário, a Constituição adotou outros critérios para dividir as competências: todos os entes federativos receberam poderes enum erados para instituir e cobrar impostos (União: art. 153; estadosmembros: art. 155; municípios: art. 156), sendo que as competências remanescentes ficaram nas mãos da União (art. 154, I).24 Já a repar tição das receitas tributárias foi definida nos arts. 157 a 162 da Consti tuição. Com isso pretendeu-se viabilizar a autonom ia das pessoas políticas, repartindo as rendas para que cada ente federativo consiga exercer suas competências.
Do po n to de vista externo, a União é a pessoa jurídica de direito público que contrai direitos e obrigações e exerce, soberanamente, a
Fernanda Dias Menezes de. Ob. cit. p. 79. 2,1 B a s t o s , Celso. Estudos e pareceres: direito público, constitucional, administrativo, mu nicipal, p. 194 e seguintes. 23 A lm e id a ,
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função de representante da República Federativa do Brasil. Assim, a União, quando m antém relações de coordenação com outros Estados estrangeiros, exerce a soberania brasileira.25 Os incs. I a IV do art. 21 da Constituição Federal estabelecem as hipóteses em que a União age da m aneira anteriorm ente exposta. Já do ponto de vista interno, a União é um a pessoa jurídica de direito público que, com autonom ia, exerce no território brasileiro as competências que a Constituição lhe confere. Portanto, a Constituição Federal dita o que a União poderá ou não fazer. A União - assim com o os estados-membros, o Distrito Federal e os municípios - , sob a ótica interna do Estado brasileiro, busca na Constituição as suas atribuições para poder exercer, autonom am ente, as funções ali previstas. |
Competências da União
As competências da União podem ser classificadas em dois gran des grupos: as competências relativas à criação das norm as gerais e abstratas, denom inadas competências legislativas; e as competências para executar as leis, para desem penhar variados serviços e tarefas, chamadas de competências materiais, gerais, não-legislativas, adm inis trativas, de execução ou executivas.
Competências executivas privativas As competências executivas privativas são aquelas relativas à exe cução das leis, voltadas ao desem penho de diferentes serviços e tarefas, que a Constituição confere somente à União - sem a participação dos demais entes federativos - e que estão previstas no art. 21. Esse dispositivo constitucional é form ado por vários incisos que contem plam verbos com o manter, declarar, assegurar, permitir, decre tar, autorizar, emitir, administrar, elaborar, explorar, organizar, exercer, conceder, planejar, instituir, estabelecer, executar, verbos esses que in dicam competências administrativas.
to s,
25 Nesse sentido, conferir M o t a , Leda Pereira & Celso. A federação e a constituinte cit. p. 34.
S p it z c o v s k y ,
Celso. Ob. cit. p. 137;
B as
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Assim, compete à União: m anter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais; declarar a guerra e celebrar a paz; assegurar a defesa nacional; e permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacio nal ou nele perm aneçam temporariamente. Tais previsões constitucio nais denotam a natureza da União, quando analisada do ponto de vista externo, ou seja, a natureza de pessoa jurídica de direito público que exerce, soberanamente, a função de representante da República Federa tiva do Brasil. As outras competências previstas no art. 21 dão à União, por exem plo, o poder exclusivo de: autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico; emitir moeda; administrar as reservas cambiais do país; elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; m anter o serviço postal e o correio aéreo nacional; explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, de radiodifusão sonora e de sons e imagens. A Constituição, nesses ca sos, confere à União o poder relativo à execução das leis, voltadas ao exercício, ao cum prim ento, à execução de vários serviços e tarefas.
Competências executivas comuns As competências executivas com uns diferem das competências administrativas anteriorm ente m encionadas pelo fato de a C onstitui ção não as conferir com exclusividade à União, mas de m o d o co n ju n to a todos os entes federativos. Assim é que o art. 23 da Constituição Federal estabelece o rol de competências com uns da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Entre outros deveres, os entes federativos têm, p o r força do disposto no referido artigo, de zelar pela Constituição, pelas leis e pelas instituições democráticas; cuidar da saúde e assistência pública; proteger os docum entos, as obras e outros bens de valor histórico, a r tístico e cultural, os m onu m entos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciên cia; proteger o meio ambiente e com bater a poluição em qualquer de
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suas formas; fom entar a produção agropecuária; promover programas de construção de moradias; combater as causas da pobreza; estabelecer e im plantar política de educação para a segurança do trânsito. Com o todos os entes federativos têm estas competências executivas, o parágrafo único do art. 23, com redação dada pela Emenda à Constituição n. 53/2006, disciplinou da seguinte forma a maneira de atuação de cada um deles: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Assim, as regras de cooperação entre os entes federativos deverão ser estabelecidas por meio de leis complementares, para que, no exer cício das competências executivas com uns, sejam alcançados o equi líbrio do desenvolvimento e o bem-estar em âm bito nacional. Na ausência de leis complementares disciplinando a atuação de cada ente federativo quando do exercício das competências previstas no art. 23 da Constituição Federal, pode-se exigir de todos os entes políticos o cum prim ento das obrigações previstas no dispositivo constitucional. Sobre a competência com um da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, Fernanda Dias Menezes de Almeida26explica: Convocam-se, portanto, todos os entes políticos para uma ação conjun ta e permanente. São eles, por assim dizer, chamados à responsabilidade diante de obrigações que cabem a todos. É como registra Anna Cândida da Cunha Ferraz (1989:67): "Nota-se, no modo de enunciar essas competências (zelar, cuidar, proteger), além do tom imperativo, certo caráter pedagógico. Cuida o texto de lembrar que cada esfera de poder público tem deveres a cumprir para concretizar as atribuições e competências que o constituinte federal lhes confere."
Aliás, tal entendim ento já foi acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento, em 16 de ju n h o de 2005, do Recurso Especial n. 686.208/RJ, relatado pelo ministro Luiz Fux. Parte da em en ta tem o seguinte teor:
26 A lm e id a ,
Fernanda Dias Menezes de. Ob. cit. p. 140.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL Direito administrativo. Responsabilidade civil do estado do Rio de Janeiro. Ausência de fornecimento de medicamento. Rejeição de rim transplantado. Nexo causai. Reexame de provas. Súmula 07/STJ. 1 - Consignado pelo acórdão recorrido que o estado do Rio de Janeiro fora compelido, por decisão judicial, a fornecer ao recorrido a medicação necessária para evitar a rejeição do rim transplantado, restou inequívoca a sua legitimidade ad causam passiva para a ação indenizatória, porquanto,
spontesua estagnou o fornecimento a que restara obrigado judicialmente, ocasionando o ilicito in foco. 2 - Destarte, instado a cumprir a decisão judi cial, a sua omissão configurou inequívoca responsabilidade em face da rejeição do órgão transplantado, ante a ausência do medicamento. 3 - De veras, restou assente na instância local que: "A saúde pública é um serviço de competência comum a todas as esferas da Federação e para a sua me lhor execução foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS)".
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tam bém decidiu no mesmo sentido, como se nota da seguinte passagem da ementa do acórdão proferido, em 4 de agosto de 2005, na Apelação n. 70010656072: O art. 196 da Constituição Federal, ao determinar que a saúde é direito de todos e dever do Estado, refere-se a todos os Entes da Federação, os quais possuem competência comum no cuidado da saúde da população (art. 23, II, da CF).
Portanto, todos os entes federativos - União, estados, Distrito Federal e municípios - têm a responsabilidade conjunta e perm anente de cu m prir as obrigações e concretizar as atribuições previstas consti tucionalm ente no art. 23. Vista a questão por o utro ângulo, pode-se dizer que a pessoa que se sentir lesada em razão do descum prim ento dos deveres previstos no art. 23 da Constituição Federal pode exigir a prática do ato e o c u m p ri m ento da obrigação de qualquer um dos entes políticos ou de todos eles ao m esm o tempo, bem com o eventual indenização em razão da desídia constatada.
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Competências legislativas privativas As com petências legislativas privativas são aquelas que a Constituição confere particularm ente à União e estão previstas em seu art. 22. Nesse artigo consta que com pete privativamente à União legislar, por exemplo, sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, m arítimo, aeronáutico, especial e do trabalho. Também com pete à União legislar, entre outras matérias, sobre desapropriação, águas, energia, informática, telecomunicações, radiodifusão, serviço postal, sistema m onetário, política de crédito, câmbio, seguros, comércio exte rior e interestadual, trânsito e transporte, jazidas e minas, nacionalida de, cidadania e naturalização. O parágrafo único do art. 22 estabelece que “lei com plem entar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”. Assim, a União tem a prerrogativa de editar leis complementares prevendo que os estados e o Distrito Federal possam legislar sobre pontos específicos atinentes às matérias relacionadas no art. 22. A referida lei com plem entar não pode, sob pena de inconstitucionali dade, autorizar que os estados e o Distrito Federal tratem , de m odo amplo, das matérias previstas no art. 22. Em 14 de julho de 2000, por exemplo, foi editada a Lei C o m p le m en tar n. 103, que autorizou - com base no art. 22, parágrafo único, da Constituição - os estados e o Distrito Federal a instituir piso sala rial a que se refere o art. 7o, V, da C onstituição.27 Assim, essa lei co m plem entar editada pela União autorizou os estados e o Distrito Fede ral a legislar sobre u m a questão específica de um a das matérias relacionadas no art. 22, I, da Constituição, qual seja, direito do tr a balho. O utro po n to relevante sobre a previsão contida no parágrafo único do art. 22 é saber se a Constituição Federal impõe que a lei com
27 Esse artigo da Constituição estabelece o seguinte: "Art. 7o São direitos dos trabalha dores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) V — piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho".
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plem entar editada pela União, ao fazer a delegação, autorize todos os estados e o Distrito Federal a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas naquele artigo, ou perm ite que a referida dele gação ocorra a apenas um ou alguns estados. Em atenção ao princípio federativo, que, entre outros pontos, garante a igualdade entre os entes que com põem a Federação, deve-se entender que, se a União utilizar a faculdade prevista no parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, deverá fazê-lo de m odo u n i forme a todos os estados e ao Distrito Federal, não podendo privilegiar um a ou algumas das entidades federativas, sob pena de violar o art. 19, III, da Constituição. Por fim, ainda quanto à previsão do parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, vale a pena destacar que a União, da mesma for m a que pode, por lei com plem entar, realizar a delegação aos estados e ao Distrito Federal de questão específica das matérias relacionadas no próprio art. 22, está autorizada, tam bém , no m om en to em que lhe p a recer mais apropriado, a revogar a referida lei complementar, fazendo retornar às suas mãos a competência que havia transferido a outros entes federativos.
Competências legislativas concorrentes O art. 24 da Constituição Federal estabelece que com pete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre, por exemplo, direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico, orçam ento, juntas comerciais, custas dos serviços foren ses, produção e consum o, floresta, caça, pesca, fauna, proteção ao pa trim ônio histórico, cultural, turístico e paisagístico, responsabilidade por dano ao meio am biente e ao consum idor, educação, cultura, ensi no e desporto, previdência social, proteção e defesa da saúde, assistên cia jurídica e Defensoria pública, proteção e integração social das pes soas portadoras de deficiência, proteção à infância e à juventude, entre outros. Com isso, a Constituição Federal, em relação às matérias listadas no art. 24, “estabeleceu verdadeira situação de condom ínio legislativo” entre a União, os estados-m em bros e o Distrito Federal, com o reco
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nheceu o Supremo Tribunal Federal, com base nas lições de Raul M a chado H orta.28 Os quatro parágrafos do art. 24 disciplinam com o deve ocorrer a atuação dos entes federativos quando do exercício da competência le gislativa concorrente. Se não houvesse esse regramento, poderiam su r gir conflitos insuperáveis de competência, pois, um a vez que não existe hierarquia entre a União, os estados e o Distrito Federal,29 e se eles podem criar regras gerais e abstratas sobre u m m esm o assunto, qual lei deve prevalecer em caso de conflito? Para evitar problemas com o esse é que os parágrafos do art. 24 existem. O § Io do referido dispositivo constitucional prevê que, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União se limitará a estabe lecer norm as gerais. Portanto, sobre os assuntos catalogados no art. 24, a União não pode, sob pena de inconstitucionalidade, descer a m in ú cias ou estabelecer regras detalhadas. Deve somente criar as norm as gerais sobre os referidos temas. Nos term os do § 2o do art. 24, a “competência da União para legis lar sobre norm as gerais não exclui a competência suplem entar dos Estados”. A cham ada competência suplem entar abarca duas espécies de competências: a com plem entar e a supletiva. Assim, os estados e o Distrito Federal, em atenção aos interesses de suas respectivas regiões, poderão criar leis para atender a suas peculia ridades, respeitadas as norm as gerais editadas pela União.30 Nesse caso, haverá o exercício da competência com plem entar.
28 Medida Cautelar na ADIn n. 2.667/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 19.06.2002. Raul Machado Horta também denomina as "competências concorrentes" de "competências mis tas" (conferir "O federalismo no direito constitucional contemporâneo". In: Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais cit. p. 728 e 739). 29 Quanto às autoridades dos entes federativos, em 12 de agosto de 1992, na Questão de Ordem no Inquérito n. 427/DF, relatada pelo ministro Moreira Alves, o Supremo Tribunal Federal deixou assente que "não se pode falar, nem mesmo impropriamente, em hierarquia entre autoridades de graduações diferentes em níveis de governo diversos". 30 Na ADIn n. 2.334/DF, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, em 24 de abril de 2003, o Supremo Tribunal Federal afirmou o seguinte: "Competência concorrente que permite ao Estado regular de forma específica aquilo que a União houver regulado de forma geral (art. 24, V, da Constituição)".
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O Suprem o Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionali dade n. 1.245/RS (rel. Min. Eros Grau), julgada em 6 de abril de 2005, decidiu o seguinte quanto à competência concorrente: Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 2o, 4o e 5o da Lei n. 10.164/94, do estado do Rio Grande do Sul. Pesca artesanal. Inconstitucionalidade formal. 1 - A Constituição do Brasil contemplou a técnica da competên cia legislativa concorrente entre a União, os estados-membros e o Distrito Federal, cabendo à União estabelecer normas gerais e aos estados-membros especificá-las. 2 - É inconstitucional lei estadual que amplia definição estabelecida por texto federal, em matéria de competência concorrente. 3 - Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
Os estados e o Distrito Federal, quanto às matérias previstas no art. 24, além esmiuçar as regras gerais editadas pela União (competência complementar), poderão editar tam bém regras para preencher os vazios e as lacunas deixados por ela, sempre para atender a suas peculiaridades. Nessa hipótese ocorrerá o exercício de competência supletiva.31 Além disso, a Constituição Federal não deixou os estados nem o Distrito Federal de mãos atadas na eventualidade de a União não exer cer sua competência legislativa sobre norm as gerais. Com efeito, o § 3o do art. 24 estatui que, se não existir lei federal sobre norm as gerais, os estados poderão exercer a competência legisla tiva plena - ou seja, criar as regras gerais e específicas sobre a matéria, em suas respectivas regiões - para atender a suas peculiaridades. Por exemplo, se a União não criar as norm as gerais sobre custas dos serviços forenses (art. 24, IV, da Constituição Federal), os estados 31 Na Medida Cautelar na ADIn n. 2.396/MS, relatada pela Ministra Ellen Gracie, em 26 de setembro de 2001, o Supremo Tribunal Federal consignou que o "espaço de possibilidade de regramento pela legislação estadual, em casos de competência concorrente abre-se: (1) toda vez que não haja legislação federal, quando então, mesmo sobre princípios gerais, poderá a legislação estadual dispor; e (2) quando existente legislação federal que fixe os princípios gerais, caiba complementação ou suplementação para o preenchimento de lacu nas, para aquilo que não corresponda à generalidade; ou ainda, para a definição de peculia ridades regionais. Precedentes. 6 - Da legislação estadual, por seu caráter suplementar, se espera que preencha vazios ou lacunas deixados pela legislação federal, não que venha dis por em diametral objeção a esta".
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e o Distrito Federal podem editar as norm as gerais e específicas sobre esse tema, valendo tais regras, obviamente, somente para o território dos estados que exerceram a aludida competência legislativa plena. Apesar disso, a Constituição não impossibilitou que a União, a qualquer m om ento, exerça sua competência sobre norm as gerais, mes m o quando já editadas as regras gerais e específicas pelos estados ou pelo Distrito Federal. Neste caso, o § 4o do art. 24 estabeleceu que a “superveniência de lei federal sobre norm as gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”. Portanto, se depois de o estado ter legislado sobre norm as gerais, a União editar lei sobre o m esm o assunto, com base no § 4o do art. 24, suspende-se a eficácia da lei estadual ou distrital no que for contrária ao disposto da n o rm a criada pela União. Note-se que, nessa hipótese, não há revogação da lei estadual pela lei federal, mas apenas a suspensão da eficácia da lei estadual no que lhe for contrário. Assim, revogada a lei federal sobre as norm as gerais, não ocorrerá repristinação, mas o restabelecimento da eficácia dos dis positivos da lei estadual que estavam suspensos. ■I
ESTADOS FED E R AD O S
Os estados federados, tam bém cham ados de estados-m em bros ou simplesmente estados, são pessoas jurídicas de direito público que com põem a Federação e, com autonom ia, exercem parcela da sobera nia brasileira. Portanto, os estados - assim com o a União (vista do âm bito inter no), os m unicípios e o Distrito Federal - são entidades imprescindíveis à Federação brasileira, que têm capacidade de contrair direitos e o b ri gações, exercendo as competências que a Constituição lhes confere, com autonom ia. A Constituição Federal determ ina que cada estado deve se autoorganizar e autogovernar. Se não fosse assim, os estados não poderiam ser considerados au tônom os e, se não tivessem autonom ia, não se poderia falar em Fede ração, um a vez que a form a federativa de Estado pressupõe a au to n o mia dos entes que a com põem.
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Auto-organização e competências estaduais Os estados-m em bros não são regidos ou organizados por n e n h u m outro ente da Federação, quer seja a União, quer seja outro estadom em bro ou município. O art. 25 da Constituição Federal dá a cada estado-m em bro o poder de criar sua própria Constituição (as Consti tuições estaduais) e suas leis (as leis estaduais). Esses poderes de autoorganização e de auto-regência, quando exercidos, devem levar em conta as peculiaridades de cada região e obedecer aos princípios pre vistos na Constituição Federal. A elaboração da Constituição estadual32 decorre da manifestação do poder constituinte decorrente, que, por derivar da Constituição Federal, sofre limitações. Os limites impostos ao poder constituinte decorrente são de ordem negativa ou positiva. C om o explica Anna Cândida da Cunha Ferraz,33 “na medida em que a Constituição Estadual e as leis que dela tiram seu fundam ento de validade (o direito interno dos Estados) não podem contrariar as disposições da Constituição Federal”, aparecem as cham a das implicações de ordem negativa para o poder constituinte decorrente, que fixam um cam po de proibições que restringem sua atuação. Ade mais, no espaço territorial de sua aplicação, a Constituição estadual e, conseqüentemente, o direito interno de cada estado-m em bro devem refletir “os preceitos, os fins e o espírito da Constituição Federal”. Aí está um a “implicação de ordem positiva: o Poder Constituinte Decorrente deve observar ou assimilar tais preceitos e fins”. Assim, o poder constituinte decorrente deve respeitar as chamadas “norm as centrais federais”34 classificadas com o princípios constitucio nais sensíveis, princípios federais extensíveis e princípios co n stitu cionais estabelecidos.35
32 0 art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias deu poder constituinte às Assembléias Legislativas dos estados-membros: "Art. 11. Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, conta do da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta". 33 F e rra z , Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte dos estados-membros, p. 133. 54 H o r t a , Raul Machado. Direito constitucional, p. 332-6. 35 Conferir M o r a e s , Alexandre de. Direito constitucional, p. 250, baseado nas lições de Raul Machado Horta.
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Os princípios constitucionais sensíveis são aqueles previstos no art. 34, VII, da Constituição: “a) forma republicana, sistema represen tativo e regime democrático; b) direitos da pessoa hum ana; c) au to n o mia municipal; d) prestação de contas da administração pública, dire ta e indireta; e) aplicação do m ín im o exigido da receita resultante de impostos estaduais, com preendida a proveniente de transferências, na m anutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públi cos de saúde”. O desrespeito aos princípios sensíveis pelos estados-m em bros p o de ensejar o ato mais grave em um a Federação, qual seja, a intervenção federal. Os princípios federais extensíveis ou “princípios desta C onstitui ção” são as “norm as centrais com uns à União, Estados, Distrito Fede ral e municípios, portanto, de observância obrigatória no poder de o r ganização do Estado”.36 E os princípios constitucionais estabelecidos são as norm as que organizam a própria Federação e estabelecem regras de observância obrigatória para a auto-organização dos estados-membros, subdivi dindo-se em norm as de competência e norm as de preordenação.37 O elenco de norm as previstas na Constituição Federal e que são de observância obrigatória para os estados-m em bros mostra-se com o um dos motivos que caracterizam nossa Federação com o pouco descen tralizada,38 com o reconheceu o próprio Suprem o Tribunal Federal,
36Conferir M o r a e s , Alexandre de. Direito constitucional cit. p. 250, baseado na classifi cação de Raul Machado Horta (in: Direito constitucional cit. p. 333 e 334). Exemplos de "princípios federais extensíveis", entre muitos outros espalhados pela Constituição Federal: arts. 1o, I a V; 3o, I a IV; 4o, I a X; 6o a 11; 93, I a IX; 95, I a III. 37 H o r t a , Raul Machado. Direito constitucional cit. p. 334 e 335. Esse autor cita como exemplos de normas de competência os seguintes artigos: 23, I a XII; 24, I a XVI; 25; 27, § 3o; 96, I a III; 75, parágrafo único; 98, I e II; 125, § 4o; 144, §§ 4o a 6o; 145, I a III; e 155, I e II. Como exemplos de normas de preordenação, o mesmo autor menciona os seguintes dispositivos da Constituição Federal: arts. 27 e seus §§ 1° e 2o; 28 e seu parágrafo único; 37, I a XXI, §§ 1o a 6o; 39 a 41; 42, §§ 1o e 2o; 75; 95, parágrafo único e incisos; 235, I a XI. 38 Raul Machado Horta (in: Direito constitucional cit. p. 447) parece ter outro entendi mento quando compara a Constituição brasileira atual com as Constituições anteriores. O au tor expõe o seguinte: "O federalismo constitucional de 1988 exprime uma tendência de equi líbrio na atribuição de poderes e competências à União e aos Estados. Afastou-se das
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pouco depois da promulgação da atual Constituição brasileira (M edi da Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 216/PB, rel. Min. Célio Borja, rel. do acórdão Min. Celso de Mello, j. 23.05.1990):39 Ação direta de inconstitucionalidade. Constituição estadual. Processo le gislativo. A questão da observância compulsória, ou não, de seus princípios, pelos estados-membros. Nova concepção de federalismo consagrada na Constituição de 1988. Perfil da Federação brasileira. Extensão do poder constituinte dos estados-membros. Relevo jurídico do tema. Suspensão li minar deferida. O perfil da Federação brasileira, redefinido pela Constituição de 1988, embora aclamado por atribuir maior grau de autonomia aos estadosmembros, é visto com reserva por alguns doutrinadores, que consideram persistir no Brasil um federalismo ainda afetado por excessiva centraliza ção espacial do poder em torno da União Federal. Se é certo que a nova Carta Política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabelecidos, os quais, embo ra disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação - até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem - impõe-se realizar. A questão da necessária observância, ou não, pelos estados-membros, das normas e princípios inerentes ao processo legislativo, provoca a dis
soluções centralizadoras de 1967 e retomou, com mais vigor, soluções que despontaram na Constituição de 1946, para oferecer mecanismos compensatórios, em condições de assegu rar o convívio entre os poderes nacionais-federais da União e os poderes estaduaisautônomos das unidades federadas. As bases do federalismo de equilíbrio estão lançadas na Constituição de 1988". 35 Em 19 de novembro de 1997, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal voltou a decidir que a "Constituição Federal, ao conferir aos Estados a capacidade de auto-organização e de autogoverno, impõe a obrigatória observância aos seus princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador constituinte estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo" (ADIn n. 227/RJ, rel. Min. Maurício Corrêa).
FORMAS DE ESTADO cussão sobre o alcance do poder jurídico da União Federal de impor, ou não, às demais pessoas estatais que integram a estrutura da Federação, o respeito incondicional a padrões heterõnomos por ela própria instituí dos como fatores de compulsória aplicação. Esse tema, que se revela essencial à organização político-administrativa do Estado brasileiro, ainda não foi decidido pelo Supremo Tribunal Fede ral. Da resolução dessa questão central, emergirá a definição do modelo de Federação a ser efetivamente observado nas práticas institucionais. Enquanto não sobrevier esse pronunciamento, impõe-se, como medida de cautela, a suspensão liminar de preceitos inscritos em Constituições estaduais, que não hajam observado os padrões jurídicos federais, de extração constitucional, concernentes ao processo legislativo.
Apesar da reduzida descentralização de nossa Federação, tendo em vista especialmente a necessidade de observância pelos estados-m em bros de extenso rol de princípios sensíveis, extensíveis e estabelecidos, a previsão que garante a cada estado federado o poder de se auto-reger, criando sua Constituição própria e tendo suas leis, configura a cham a da auto-organização estadual. Nos term os do § Io do art. 25 da Constituição Federal, são reser vadas aos estados todas as competências que não lhe sejam vedadas pela Constituição Federal. Essas competências estaduais são chamadas de residuais, pois, em linhas gerais, todas as competências que não foram dadas pela C onsti tuição Federal à União nem aos municípios são conferidas aos estados. Nesse passo, mais um a vez a escassa descentralização da Federação se faz evidente, visto que a Constituição traz um rol imenso de com pe tências da União. Por força disso, as competências dos estados-m em bros ficam esvaziadas. Além das competências residuais, os estados podem exercer as competências delegadas pela União, nos termos do parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, conform e a análise feita anterior mente, no tópico relativo às competências legislativas privativas da União. O art. 24 da Constituição Federal, tam bém estudado, prevê outras competências legislativas dos estados.
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Com efeito, em atenção aos parágrafos do art. 24, os estados p o dem suplem entar a legislação da União, criando regras específicas e detalhadas para atender às peculiaridades de sua região. Mas, se não existirem - em relação às matérias previstas no art. 24 - norm as gerais criadas pela União, os estados podem legislar plenamente, até que sobrevenham as mencionadas regras gerais, quando, então, ficarão suspensas as regras estaduais contrárias à legislação federal. A Constituição Federal tam bém confere aos estados competências executivas com uns, previstas no art. 23, que já foram objeto de análise.
Autogoverno e auto-administração O utro parâm etro da autonom ia dos estados é a do autogoverno, consistente nas previsões da Constituição Federal que garantem a existência dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estaduais. O art. 27 da Constituição Federal estabelece que a quantidade de deputados estaduais que com põe a Assembléia Legislativa deve ser proporcional ao n úm ero de deputados federais que o estado tem na C âm ara dos Deputados. A referida proporção deve obedecer aos seguintes critérios: o n ú m ero de deputados estaduais à Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo do núm ero de deputados federais que o estado m an tém na C âm ara dos Deputados e, atingindo o n úm ero de 36, será acrescido de tantos quantos forem os deputados federais acima de doze. C u m p re lem b rar que o n ú m e ro de d ep u tad o s federais é p r o porcional à população, sendo certo que cada u n id ad e da Federação deve ter no m ín im o oito e n o m áx im o setenta representantes na C âm ara dos D eputados, nos term o s do § I o do art. 45 da C o n s titu i ção Federal. Q uanto ao Poder Executivo, a Constituição Federal, em seu art. 28, fixa a regra de que o governador e o vice-governador serão eleitos para m andato de quatro anos. Será considerado eleito governador o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta dos votos, não c o m p u tados os em branco nem os nulos. Se n e n h u m candidato alcançar maioria absoluta na prim eira votação - que deve ser no prim eiro d o m ingo de outubro do ano anterior ao térm ino do m andato - , será feita
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nova eleição no últim o dom ingo de outubro, concorrendo os dois can didatos mais votados e sendo eleito aquele que obtiver a m aioria dos votos válidos (todos os votos, m enos os em branco e os nulos). Essas regras que consagram os cham ados dois turnos de votação na eleição para o cargo de governador são alcançadas por meio da combinação do art. 28 com o art. 77 da Constituição Federal. Além de estar filiado a um partido político, são condições de elegibilidade do governador: a nacionalidade brasileira, o pleno exer cício dos direitos políticos, o alistam ento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição e a idade m ínim a de 30 anos, conform e art. 14, § 3o, da Constituição Federal. As hipóteses de inelegibilidade podem ser encontradas nos parágrafos desse m esm o artigo, bem com o na Lei C om plem entar n. 64/90, alterada pela Lei C o m p lem en tar n. 81/94. O § 5o do art. 14 da Constituição, com a redação determ inada pela E m enda C onstitucional n. 16/97, consagra, ainda, a possibili dade de reeleição do governador, para um único m an d ato subse qüente. Por Fim, o art. 125 prescreve que os estados organizarão sua Jus tiça, observados os princípios estabelecidos na Constituição Federal. O § Io do referido art. 125 diz que “a com petência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça”. E o § 2o do m esm o artigo, p o r sua vez, estabelece que “cabe aos Estados a instituição da representação de inconstitucionalidade de leis ou atos norm ativos estaduais ou m unicipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”. C om isso, viabiliza-se, no âm bito dos estados-m em bros, o controle concentrado da constitucionalidade de leis estaduais e m unicipais em face da C onsti tuição estadual. Além de outras previsões, a Emenda Constitucional n. 45/2004, com o intuito de facilitar o acesso à Justiça e privilegiar o princípio da celeridade processual, incluiu os §§ 6o e 7o ao art. 125.0 § 6o prevê que o “Tribunal de Justiça poderá funcionar descentralizadamente, consti tuindo Câm aras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo”. Já o § 7o estabelece
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que o “Tribunal de Justiça instalará a justiça itinerante, com a realiza ção de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipam en tos públicos e com unitários” Por fim, os estados têm a capacidade de auto-adm inistração na medida em que, por meios próprios, prestam os serviços que lhes com petem , além de instituir seus tributos e aplicar as rendas deles advindas. |
A formação dos estados
O art. 18, § 3o, da Constituição Federal prevê a possibilidade de formação dos estados da seguinte maneira: Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Fe derais, mediante aprovação da população diretamente interessada, atra vés de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.
A incorporação de dois ou mais estados ocorre q u a n d o eles se fundem para form ar u m novo estado, com u m a nova personalidade jurídica, deixando de existir os antigos entes federativos que se incor poraram . A subdivisão revela-se com o o processo inverso ao da incorpora ção, ou seja, ela se dá quando um estado se divide em dois ou mais estados, extinguindo-se a antiga pessoa política que se dividiu. E o desm em bram ento ocorre quando um a área de um estado se desagrega para form ar um novo estado ou território ou para se ju n ta r à base geográfica de outro estado ou território. No prim eiro caso, há o desm em bram ento-form ação, ocasião em que o estado que sofreu o desm em bram ento preserva sua personalidade jurídica, mas perde p ar te de sua área para que ocorra a formação de um ou mais estados novos. Na segunda hipótese, acontece o desm em bram ento-anexação, em que se verifica um a mera alteração dos limites territoriais dos entes federativos então existentes. O primeiro requisito para a formação de um estado é, na realida de, um pré-requisito, qual seja, a consulta prévia à população direta
FORMAS DE ESTADO
m ente interessada, por meio de plebiscito.40 Na consulta plebiscitaria, por força do art. 7o da Lei n. 9.709/98: (...) entende-se por população diretamente interessada tanto a do ter ritório que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmem bramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popu lar se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da população consultada.41
Realizado o plebiscito, se a população diretam ente interessada re jeitar a formação do novo estado, não se adm itirá a continuidade do processo e estará prejudicada a incorporação, subdivisão ou desm em bram ento. C ontudo, se a população diretam ente interessada, por meio de plebiscito, adm itir a formação do novo estado, o passo seguinte será ouvir as respectivas Assembléias Legislativas, conforme previsão do art. 48, VI, da Constituição Federal. Os órgãos legislativos dos estados envolvidos opinarão sobre a formação do estado, não sendo a manifes tação deles vinculativa. Em seguida, o Congresso Nacional decidirá, de maneira definitiva, sobre a incorporação, subdivisão ou desm em bram ento (art. 48, VI, da Constituição Federal), p o r meio de lei com plem entar. Essa previsão decorre do fato de que, apesar de a população dire tam ente interessada ter autorizado a formação do novo estado, o C o n gresso Nacional, constituído pelos representantes do povo brasileiro (Câmara dos Deputados, art. 45) e de todos os estados e do Distrito
40 A Lei n. 9.709/98 prevê o seguinte: "Art. 2o Plebiscito e referendo são consultas for muladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza cons titucional, legislativa ou administrativa. § 1o O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido". 41 Para uma análise acurada dos mecanismos constitucionais de participação popular, conferir M e l o , Mônica de. Plebiscito, referendo e iniciativa popular: mecanismos constitucio
nais de participação popular.
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Federal (Senado Federal, art. 46), será o órgão responsável por, em última análise, dizer se a incorporação, subdivisão ou desm em bra m ento interessa ao Brasil. ■I
M U N IC ÍP IO S
Os m unicípios são pessoas jurídicas de direito público interno que exercem, au to no m am ente, parcela da soberania brasileira. Esses entes políticos têm o poder de exercer suas com petências nos term os estabelecidos pela Constituição. Ademais, aos m unicípios a C onstitui ção Federal garante as prerrogativas de auto-organização e de autogoverno.
Auto-organização e competências municipais O m unicípio se auto-organiza e é regido por meio da criação de lei orgânica própria, votada em dois turnos e aprovada por dois terços dos m em bros da C âm ara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição do respectivo estado. A lei orgânica municipal pode ser considerada um a “C onstitui ção” do m unicípio dentro daquele âm bito territorial. Além da lei orgânica, o m unicípio tem o poder de editar suas o u tras leis, levando em conta as competências fixadas constitucional mente, em especial as previstas nos incisos do art. 30 da Constituição Federal. A principal competência municipal é a de legislar sobre questões de interesse local (art. 3 0 ,1). A expressão “interesse local” significa interesse predominantem ente local, ou seja, não se trata de interesse exclusiva m ente local, mas aquele que diz respeito mais de perto ao município, como, por exemplo, a limpeza urbana e o transporte público coletivo no município. Os municípios tam bém têm as competências não-legislativas co m uns previstas no art. 23 da Constituição Federal e abordadas anterior m ente quando foram analisadas as competências da União. Além disso, compete aos municípios suplem entar a legislação fe deral e a estadual no que couber (art. 30, II).
FORMAS DE ESTADO
C om o explica Celso Bastos,42 de m odo acertado, a competência suplem entar do m unicípio diz respeito às matérias que o estado “de tenha com o suas, estando elas enunciadas explicitamente na C onsti tuição, ou englobadas na expressão ampla que lhe reserva a chamada competência residual”. O m unicípio tam bém pode exercer a com pe tência supletiva em relação às matérias previstas no art. 24 da C onsti tuição, mas não cabe a esse ente federativo suplem entar a legislação federal prevista no art. 22. Primeiro porque tal dispositivo constitu cional “deixa claro que as matérias nele arroladas são de alçada privati va da União”. Ademais, o parágrafo único desse m esm o artigo autoriza a delegação de questões específicas das referidas matérias apenas aos estados-membros. Se “o estado cu m p riu essa tarefa, já não há mais nada a ser cuidado, e se ele não exerceu a competência a ele delegada, tam bém ao m unicípio não é lícito considerar-se investido de poderes para suplem entar a lei federal diretam ente”. |
Autogoverno e auto-administração
A Constituição Federal estabelece que os municípios têm Legisla tivo e Executivo próprios, garantindo-lhes o autogoverno. O Legislativo municipal é form ado pela C âm ara dos Vereadores, que é com posta de um núm ero de vereadores proporcional à p o p u lação do município, observados os limites previstos no art. 29, IV, da Constituição Federal. Lei estadual que estabelece número de vereadores. Autonomia municipal. Inconstitucionalidade. Precedentes. Argüição de inconstitucionalidade do § 1o, I a X, e do § 2o, todos do art. 67 da Constituição do estado de Goiás. Viola a autonomia dos municípios (art. 29, IV, da CF/1988) lei estadual que fixa número de vereadores ou a forma como essa fixação deve ser fei ta (ADIn 692, rel. Min. Joaquim Barbosa, 07 01.10.2004). Autonomia municipal. Disciplina legal de assunto de interesse local. Lei municipal de Joinville, que proíbe a instalação de nova farmácia a menos
42 Bastos, Celso. Estudos e pareceres cit. p. 190 e 192.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL de 500 metros de estabelecimento da mesma natureza. Extremo a que não pode levar a competência municipal para o zoneamento da cidade, por redundar em reserva de mercado, ainda que relativa, e, conseqüen temente, em afronta aos princípios da livre concorrência, da defesa do consumidor e da liberdade do exercício das atividades econômicas, que informam o modelo de ordem econômica consagrado pela Carta da Re pública (art. 170 e parágrafo único, da CF) (RE 203.909, rel. Min. limar Galvão, D; 06.02.1998).
Q u anto ao Poder Executivo municipal, a Constituição Federal, em seu art. 2 9 , 1 a III, estabelece que o prefeito e o vice-prefeito, m ediante pleito direto, serão eleitos para m andato de quatro anos. Será considerado eleito prefeito o candidato que obtiver a m a io ria dos votos, não com p u tad o s os em branco nem os nulos. Nos m u nicípios com mais de 200 mil eleitores, a eleição ocorrerá em dois tu rn o s se n e n h u m dos candidatos obtiver a m aioria absoluta dos votos válidos na prim eira votação. Assim, nos municípios com mais de 200 mil eleitores, se n enh um candidato alcançar m aioria absoluta na prim eira votação - que deve ser no prim eiro dom ingo de o u tu b ro do ano anterior ao térm ino do m andato - , será feita nova eleição no último dom ingo de outubro, concorrendo os dois candidatos mais votados e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos, ou seja, todos os votos, m enos os em branco e os nulos. As regras que estabelecem a realização de dois turnos de votação na eleição para o cargo de prefeito de m unicípio com mais de 200 mil eleitores estão contidas no art. 29, II, com binado com o art. 77, am bos da Constituição Federal. São condições de elegibilidade do prefeito: a nacionalidade brasi leira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a Filiação partidária e a idade m í nim a de 21 anos, conform e art. 14, § 3o, da Constituição Federal. Por outro lado, as hipóteses de inelegibilidade estão previstas nos pará grafos desse m esm o artigo, bem com o na Lei C om plem entar n. 64/90, alterada pela Lei C om plem entar n. 81/94.
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O § 5o do art. 14 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 16/97, estabelece, também, a possibilidade de reeleição do prefeito para um único período subseqüente. Convém m encionar que o fato de os m unicípios não terem repre sentantes no Senado - com o ocorre com os estados e o Distrito Fede ral, p o r força do disposto no art. 46 da Constituição Federal - , bem com o o de não possuírem Judiciário próprio, não os descaracteriza com o entes federativos essenciais à configuração da Federação brasileira. Finalmente, os m unicípios têm a capacidade de au to -ad m inistração, visto que utilizam meios próprios para prestar os serviços de in teresse local, bem com o instituir seus trib utos e aplicar-lhes as re n das.43 |
A Formação dos municípios
O art. 18, § 4o, da Constituição Federal prevê a possibilidade de formação dos municípios: A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Com plementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.
A incorporação de dois ou mais municípios se dá quando eles se fundem para form ar um novo município, com um a nova personali dade jurídica, deixando de existir os antigos entes federativos que se incorporaram . A subdivisão mostra-se como o processo inverso ao da incorpora ção, isto é, ela ocorre quando um município se divide em dois ou mais municípios, extinguindo-se a antiga pessoa política que se dividiu.
Celso. Estudos e pareceres cit. p. 183. Celso Bastos denomina essa capacidade de "autodeterminação". 43
B a s to s ,
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E o desmembramento sucede quando uma área de um município se separa para formar um novo município ou para se juntar à base territo rial de outro município.44 Na primeira hipótese, há o desmembramentoformação, ocasião em que o município que sofreu o desmembramento preserva sua personalidade jurídica, mas perde parte de sua área para que ocorra a formação de um ou mais municípios novos. No segundo caso, acontece o desmembramento-anexação, em que se verifica um a mera alteração dos limites territoriais dos municípios envolvidos. Inicialmente, é necessária a edição de um a lei complementar federal prevendo o período em que poderá ocorrer a formação de municípios.45 É imprescindível, ainda, a existência de uma lei ordinária federal que pre veja os requisitos e a apresentação dos estudos de viabilidade municipal. Depois de apresentado o estudo de viabilidade municipal é exigi da a consulta prévia46 à população diretamente interessada, por meio de plebiscito.47 Na consulta plebiscitária: 44 O Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido: "Município: desmembramento. A subtração de parte do território de um município substantiva desmembramento, seja quando a porção desmembrada passe a constituir o âmbito espacial de uma nova entidade municipal, seja quando for ela somada ao território de município preexistente" (ADIn n. 2.967, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.03.2004). ',rj O Supremo Tribunal Federal entende que a inexistência da lei complementar exigida pela Constituição Federal impede o desmembramento de município: "Emenda Constitucional n. 15/96. Criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, nos termos da lei esta dual, dentro do período determinado por lei complementar e após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal. Inexistência da lei complementar exigida pela Constituição Federal. Des membramento de município com base somente em lei estadual. Impossibilidade" (ADIn n. 2.702, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 06.02.2004). 4f>Na ADIn n. 1.373, relatada pelo ministro Francisco Rezek (DJ 31.05.1996), o Supre mo Tribunal Federal deixou consignado o seguinte: "Não parece compatível com a Constitui ção Federal o diploma legislativo que cria Município ad referendum de consulta plebiscitária. Precedentes do STF". A/ A Lei n. 9.709/98 prevê que o plebiscito é a consulta formulada ao povo para que deli bere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou adminis trativa. O plebiscito é convocado antes da realização do ato legislativo ou administrativo, caben do ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido (art. 2o, caput e § 1o, da Lei n. 9.709/98). O Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte sobre a consulta prévia em casos de formação de municípios: "Redefinição dos limites territoriais do município de Sali nas da Margarida. Desmembramento de parte de município e incorporação da área separada ao território da municipalidade limítrofe, tudo sem a prévia consulta, mediante plebiscito, das populações de ambas as localidades. Ofensa ao art. 18, § 4o, da Constituição Federal. Pesquisas de opinião, abaixo-assinados e declarações de organizações comunitárias, favoráveis à criação,
FORMAS DE ESTADO (...) entende-se por população diretamente interessada tanto a do ter ritório que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmem bramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popu lar se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da po pulação consultada (art. 7o da Lei n. 9.709/98).
Acontecido o plebiscito, se a população diretamente interessada re jeitar formação do novo município, não se dará continuidade ao p ro cesso e restará prejudicada a incorporação, subdivisão ou desm em bra mento. Contudo, se a população diretamente interessada, por meio de ple biscito, admitir a formação do novo município, o passo seguinte para que isso realmente se efetive será a edição de um a lei ordinária estadual que aprove a incorporação, a subdivisão ou o desmembramento. M
D IS TR ITO F E D E R A L
Já na prim eira Constituição republicana brasileira, prom ulgada em 1891, havia as seguintes previsões sobre o Distrito Federal: Art 2o Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Mu nicípio Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte. Art 3o Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demar cada para nela estabelecer-se a futura Capital federal.
à incorporação ou ao desmembramento de município, não são capazes de suprir o rigor e a le gitimidade do plebiscito exigido pelo § 4o do art. 18 da Carta Magna. O descumprimento da exigência plebiscitaria tem levado este Supremo Tribunal Federal a declarar, por reiteradas vezes, a inconstitucionalidade de leis estaduais 'redefinidoras' dos limites territoriais municipais. Prece dentes: ADIn 2.812, rel. Min. Carlos Velloso, j. em 09.10.2003, ADIn 2.702, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05.11.2003 e ADIn 2.632-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29.08.2003. As questões relativas à idoneidade da lei de criação de município como objeto do controle concen trado e às conseqüências da eficácia limitada da norma inscrita no art. 18, § 4o, da CF, já foram suficientemente equacionadas no julgamento cautelar da ADIn 2.381-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001" (ADIn n. 3.013, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 04.06.2004).
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL Parágrafo único. Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um Estado.
C ontudo, atualmente, apesar de ocorrida a m udança da capital p a ra o Planalto Central, o Distrito Federal não se constituiu em um esta do, como previa a Constituição de 1891. O Distrito Federal, hoje, é um ente federativo peculiar - com o se verá a seguir - , podendo ser definido com o um a pessoa jurídica de direito público interno, que com põe a Federação brasileira e exerce com autonom ia as competências que lhe são dadas pela Constituição Federal. Esse ente federativo - assim com o os outros que já foram anali sados - se auto-organiza e se autogoverna.
Auto-organização e competências distritais O Distrito Federal se auto-organiza e é regido por lei orgânica própria, votada em dois turnos e aprovada por dois terços dos m e m bros da C âm ara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal. A lei orgânica distrital eqüivale a um a Constituição estadual e suas regras incidem no âm bito territorial do Distrito Federal. Além da lei orgânica, o Distrito Federal tem a competência de criar suas outras leis, seguidas as regras fixadas pela Constituição Federal. Nos termos do § Io do art. 32 da Constituição Federal, ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos estados e aos municípios. Assim, o Distrito Federal pode criar regras gerais e abs tratas sobre todas as matérias que não são de competência da União. Para evitar repetição, é possível depreender dos tópicos anteriores as compe tências do Distrito Federal por meio da análise das competências que a Constituição Federal atribui aos estados e aos municípios.
Autogoverno e auto-administração O utro parâm etro da autonom ia do Distrito Federal é o autogover no, referente às previsões contidas na Constituição Federal que assegu ram a existência dos órgãos do poder distrital.
FORMAS DE ESTADO
O § 3o do art. 32 prevê que aos deputados distritais e à Câmara Legislativa aplicam-se as regras do art. 27 da Constituição Federal. As sim, a quantidade de deputados distritais que com põe a C âm ara Legis lativa deve ser proporcional ao núm ero de deputados federais que o Distrito Federal tem na C âm ara dos Deputados. A referida proporção deve obedecer aos seguintes critérios: o n ú mero de deputados distritais à Câm ara Legislativa corresponderá ao tri plo do núm ero de deputados federais que o Distrito Federal m antém na Câmara dos Deputados e, se for atingido o núm ero de 36, será acres cido de tantos quantos forem os deputados federais acima de doze. Convém relem brar que o núm ero de deputados federais é p ro p o r cional à população, sendo que cada unidade da Federação (estados e Distrito Federal) deve ter no m ínim o oito e no m áxim o setenta repre sentantes na C âm ara dos Deputados, conforme disposição do § I o do art. 45 da Constituição Federal. Q u anto ao Poder Executivo, a Constituição Federal, no art. 32, § 2o, prescreve que a eleição do governador e do vice-governador do Distrito Federal coincidirá com a dos governadores e deputados esta duais, para m andato de igual duração, ou seja, de quatro anos. Será considerado eleito governador o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta dos votos, não computados os em branco nem os nulos. Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação - que deve ser no primeiro dom ingo de outubro do ano anterior ao térm ino do m andato - , será feita nova eleição no último domingo de outubro, concorrendo os dois candidatos mais votados e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos, isto é, todos os votos, menos os em branco e os nulos. Essas regras que consagram a eleição do governador do Distrito Federal em dois turnos de votação são alcançadas por meio da inter pretação dos arts. 32, § 2o, e 77, da Constituição Federal. Além de estar filiado a um partido político, são condições de elegi bilidade do governador do Distrito Federal: a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o d o m i cílio eleitoral na circunscrição e a idade m ínim a de 30 anos, conforme o art. 14, § 3o, da Constituição Federal. As inelegibilidades estão con
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templadas nos parágrafos desse m esm o artigo e na Lei C om plem entar n. 64/90, alterada pela Lei C om plem entar n. 81/94. O § 5o do art. 14 da Constituição, com a redação dada pela E m en da Constitucional n. 16/97, estabelece a possibilidade de reeleição do governador do Distrito Federal para um único m andato subseqüente. No tocante ao Poder Judiciário do Distrito Federal, a Constituição prescreve que compete à União organizá-lo e m antê-lo (art. 22, XVII, e art. 48, IX, da Constituição Federal), afetando parcialmente a a u to nom ia desse ente federativo. Ao Distrito Federal é garantida, ainda, a capacidade de auto-adm inistração na medida em que ele, por meios próprios, presta os serviços que lhe competem, bem com o institui seus tributos e aplica as rendas deles advindas. Por fim, sobreleva notar que o caput do art. 32 da Constituição Federal impede a divisão do Distrito Federal em municípios. ■I T E R R IT Ó R IO S
C o m o se nota do disposto no art. 18, caput e § 2o, da C o n stitu i ção Federal, os territórios integram a União, sendo certo que a orga nização político-adm inistrativa da República Federativa do Brasil não com preende, p ortanto , os territórios, u m a vez que ela é form ada som ente pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos m u nicípios. Assim, pode-se dizer que os territórios federais não com põem autonom am ente a Federação brasileira e são apenas descentralizações administrativo-territoriais da própria União. Nas palavras de Michel Temer,15 o território é um ser personalizado que integra a administração descen tralizada da União, ou seja, “é pessoa de direito público, de capacidade administrativa e de nível constitucional, geneticamente ligada à União, tendo nesta a fonte do seu regime jurídico infraconstitucional”. Por esses motivos é que a inexistência de territórios, nos dias de hoje, não afeta a vida da Federação brasileira.
43 Tem er,
Michel. Território federal nas Constituições brasileiras, p. 75 e 76.
FORMAS DE ESTADO
Mas, apesar de, atualmente, não existirem, de fato, territórios fede rais no Brasil - tendo em vista o disposto nos arts. 14 e 15 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que transform aram os então territórios de Roraima e do Amapá em estados federados e reincorporaram o território de Fernando de N oronha ao estado de Pernam buco - , há a possibilidade jurídica de criação dessas entidades. Tanto que o art. 12 do Ato das Disposições Constitucionais Tran sitórias determ inou a criação de u m a Comissão de Estudos Territoriais “com a finalidade de apresentar estudos sobre o território nacional e anteprojetos relativos a novas unidades territoriais, notadam ente da Amazônia Legal e em áreas pendentes de solução”. Todavia, se forem criados novos territórios, eles não terão, com o apresentado, as características que são próprias dos entes federativos, com o a autonom ia para exercer as competências que a Constituição estabelece. Assim é que o art. 33, caput e § 3o, da Constituição Federal, prevê que um a lei federal - e não u m a lei criada pelo próprio território - dis porá sobre a organização administrativa e judiciária dos territórios (Lei n. 8.185/91), bem com o sobre as eleições para a C âm ara Territo rial e sua competência deliberativa. Também no § 3o do art. 33 encontra-se a disposição segundo a qual os territórios federais com mais de 100 mil habitantes, além de governador nom eado pelo presidente da República (art. 84, XIV) e sabatinado pelo Senado Federal (art. 52, III, c), terão órgãos do Poder Judiciário de prim eira e segunda instância, m em bros do Ministério Público e defensores públicos federais. Com isso, conclui-se que os territórios federais não têm au to n o mia e não são essenciais à Federação. Se existirem ou não, a Federação sobreviverá de m aneira intacta. ■i
IN T E R V E N Ç Ã O F E D E R A L
A intervenção federal é um procedim ento que prevê a retirada parcial e tem porária de certas prerrogativas dos estados federados ou do Distrito Federal, com o objetivo de preservar o pacto federativo e restabelecer a norm alidade afetada por um a das situações expressa m ente previstas no art. 34 da Constituição Federal.
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C om o se analisou anteriorm ente, a autonom ia dos entes federati vos é a regra em um estado federal. Em razão disso, a intervenção fede ral é um ato excepcional. Tanto que o art. 34 da Constituição estatui que a União não intervirá nos estados nem no Distrito Federal, exceto nas hipóteses taxativamente previstas em seus incisos e alíneas. Assim, somente nesses casos, a União, em nom e da Federação, tem a possibili dade de suspender, em caráter tem porário e de m odo excepcional, a autonom ia do estado. A decretação da intervenção é realizada sempre pelo presidente da República, que, via de regra, pode fazê-la espontaneam ente - nas hipóteses taxativamente previstas no art. 34, I, II, III e V com base no art. 84, X, da Constituição Federal. O presidente deverá, no entanto, ouvir o Conselho da República (art. 90, I) e o Conselho de Defesa Nacional (art. 91, § Io, II), que opinarão sobre a m edida pretendida, mas sem vincular o ato do presi dente da República, que tem, nesses casos, o poder discricionário de decretar a intervenção no estado-m em bro. No entanto, se o presidente da República exceder os poderes que lhes são conferidos constitucionalmente, im po nd o a intervenção fede ral sem que estejam presentes os pressupostos para a prática de tal ato, cometerá crime de responsabilidade. Os incs. I a III do art. 36 da Constituição criam exceções à regra de que a intervenção é decretada espontaneam ente pelo presidente da República, quando prevêem que a intervenção: a)
b)
c)
na hipótese de ocorrer para garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da Federação (art. 34, IV), dependerá de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; dependerá, no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciá ria, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribu nal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; dependerá de provimento, pelo Suprem o Tribunal Federal, de repre sentação do procurador-geral da República, na hipótese do art. 34, VII (são os casos de violação dos cham ados princípios sensíveis,
FORMAS DE ESTADO
d)
que ensejam a propositura da ação direta de inconstitucionalidade interventiva); dependerá de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de repre sentação do procurador-geral da República, no caso de recusa à exe cução de lei federal.
Nas hipóteses mencionadas acima (que correspondem às previsões dos incs. I a III do art. 36 da Constituição Federal), a decretação da intervenção se manifestará: a)
b)
com o ato discricionário do presidente da República, que analisará a conveniência e oportunidade de decretar a intervenção, no caso de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou im pedido (prim eira parte do inc. I do art. 36); com o ato vinculado do presidente da República, nos casos de requisição dos órgãos do Poder Judiciário (art. 3 6 , 1, parte final, e II) ou de provimento, pelo Suprem o Tribunal Federal, de repre sentação do procurador-geral da República (art. 36, III).
No decreto de intervenção, o presidente da República deverá espe cificar a amplitude, o prazo e as condições de execução da medida. Se for o caso, o decreto nom eará interventor. C om o observa Ricardo Enrique Lewandowski,49 a am plitude cor responde à abrangência da intervenção, ou seja, o estado ou o m unicí pio que atingirá e o Poder ou Poderes sobre os quais incidirá. O prazo “constitui a duração da medida, que poderá ser determ inado ou inde term inado”, ou seja, o decreto pode estabelecer, desde logo, “o term o final da intervenção ou condicioná-la à consecução dos objetivos que se pretende atingir” com ela. “O que não se tolera é a intervenção com prazo ilimitado, decretada em term os genéricos, posto que tal vulneraria a autonom ia da unidade federada objeto da m edida”. E, por fim, “por condições compreende-se o detalham ento da ação interventiva, que inclui os meios” pelos quais ela se concretizará.
49 L e w a n d o w s k i,
ral no Brasil, p. 131.
Ricardo Enrique. Pressupostos materiais e formais da intervenção fede
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Decretada a intervenção, a regra é que os aspectos formais e m ate riais da medida sejam submetidos à apreciação do Congresso Nacional no prazo de 24 horas (§ I o do art. 36), que exercerá o controle político da medida (art. 49, IV). Se o Congresso Nacional não estiver funcio nando, será convocado extraordinariamente no prazo de 24 horas. Excepcionalmente, na hipótese de intervenção em razão da viola ção dos princípios sensíveis (art. 34, VII) ou no caso de a intervenção ocorrer para prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial (art. 34, VI), será dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional se o decreto se limitar a suspender a execução do ato im pugnado e essa m edida bastar ao restabelecimento da normalidade (art. 36, § 3o). Nem sempre é necessária a nom eação de um interventor. C o n tu do, se a nom eação for imprescindível para restabelecer a normalidade, o interventor não ficará “investido de poderes excepcionais, co m petindo-lhe apenas desem penhar as funções regularmente exercidas pelas autoridades que, em caráter tem porário, é cham ado a substi tu ir”.50 C o m o explica Lewandowski, os atos e decisões do interventor poderão causar prejuízos a terceiros, dand o ensejo à responsabili dade civil. Via de regra, a União responderá p o r perdas e danos, na m edida em que o interventor atua com o representante da pessoa política que o nom eou. No entanto, se o interventor agir no exercí cio regular da adm inistração estadual, a obrigação de indenizar incidirá sobre o estad o -m em b ro objeto da intervenção. O “interven tor, com o qualquer agente público, responde regressivamente pelos atos que praticar com dolo ou culpa, nos term os do art. 37, § 6o, da C onstituição”.51 Por fim, cum pre m encionar que, cessados os motivos da inter venção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo im pedim ento legal, como, por exemplo, os casos de térm ino do m a n dato, perda dos direitos políticos e renúncia (art. 36, § 4o).
Ricardo Enrique. Pressupostos materiais e formais da intervenção fede ral no Brasil, p. 135 e 136. 51 L e w a n d o w s k i, Ricardo Enrique. Ob. cit. p. 136. so L e w a n d o w s k i ,
FORMAS DE ESTADO
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A INTERVENÇÃO NOS MUNICÍPIOS
A Constituição Federal prevê, no art. 35, que o estado não intervirá em seus municípios, nem a União nos m unicípios localizados em território federal, exceto quando: (a) deixarem de ser paga, sem m o ti vo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; (b) não forem prestadas contas devidas, na form a da lei; (c) não tiver sido aplicado o m ínim o exigido da receita municipal na m anutenção e de senvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; (d) o Tribunal de justiça der provim ento à representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. Assim, a intervenção no m unicípio é feita pelo estado e mostra-se com o um a atitude excepcional, tendo em vista o princípio da au to n o mia municipal. Realizada a intervenção, há a retirada parcial e te m p o rária de certas prerrogativas do m unicípio afetado, com o objetivo de restabelecer a norm alidade atingida por u m a das situações taxativa m ente previstas no art. 35 da Constituição Federal. A decretação da intervenção do estado no m unicípio é realizada sempre pelo governador, que, via de regra, pode fazê-la espontanea m ente, nas hipóteses previstas no art. 3 5 , 1 a III, da Constituição Fe deral. No entanto, há um a exceção à regra de que a intervenção é ato espontâneo do governador. No caso do art. 35, IV, a intervenção de penderá de provimento, pelo Tribunal de Justiça, de representação para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. Nesse caso, a decretação da intervenção se manifesta com o um ato vinculado, ou seja, não há discricionariedade do governador do estado, que deverá formalizar a intervenção se o Tribunal de Justiça der provim ento à representação formulada. Da m esm a maneira que ocorre na intervenção federal, o decreto do governador, no caso de intervenção do estado no município, deve rá especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução da m e dida. Se for o caso, o decreto nom eará interventor. Decretada a intervenção, a regra é que os aspectos formais e m ate riais da m edida sejam subm etidos à apreciação da Assembléia Legis
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lativa no prazo de 24 horas (§ I o do art. 36). Se esta não estiver funcio nando, será convocada extraordinariam ente no m esm o prazo de 24 horas. Excepcionalmente, na hipótese de intervenção em razão do provi mento, pelo Tribunal de lustiça, de representação para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (art. 35, IV), será dispensada a apreciação pela Assembléia Legislativa se o decreto se limitar a suspender a execução do ato im pugnado e essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade (art. 36, § 3o). Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo im pedim ento legal, com o térm ino do m andato, perda dos direitos políticos e renúncia (art. 36, § 4o). Por fim, é im portante consignar que a União não pode decretar a intervenção em municípios, a não ser que estejam localizados em ter ritórios federais. No M andado de Segurança n. 25.295, o Supremo Tribunal Federal, no primeiro semestre de 2005, por unanim idade, julgou inconstitu cional o Decreto n. 5.392/2005, editado pelo presidente da República, que autorizava o Ministério da Saúde a intervir em hospitais do m u nicípio do Rio de Janeiro. Com isso, os ministros do Supremo Tribunal decidiram que os hos pitais Miguel Couto e Souza Aguiar deveriam voltar a ser geridos pelo município. Isso porque a previsão constitucional é clara: a União so mente poderá intervir nos estados, no Distrito Federal ou em m unicí pios localizados em território federal. Sendo assim, a União não poderia ter decretado a intervenção no município do Rio de Janeiro, mesmo que de m odo disfarçado. Só o estado do Rio de Janeiro poderia fazê-lo, nos estritos casos previstos no art. 35 da Constituição Federal.
S e p a r a ç ã o DOS P O D E R E S
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UM E X E M P L O
Em 4 de abril de 2002, o Supremo Tribunal Federal julgou a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.213/DF, relatada pelo ministro Celso de Mello. Na ocasião, a Corte Constitucional brasileira analisou o abuso presidencial na edição de medidas provisórias e enten deu que é possível realizar o controle jurisdicional dos pres supostos constitucionais de relevância e urgência que condi cionam a criação das referidas espécies normativas. Parte da ementa do acórdão do Suprem o Tribunal Fede ral tem o seguinte teor: A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos presidentes da República, tem desperta do graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar pro fundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo — quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material — investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âm bito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que ne cessariamente deve existir entre os Poderes da República. Cabe, ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são ine rentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, pro vocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes.
C om o se percebe, a Constituição Federal, no art. 62, dá ao presi dente da República — chefe do Poder Executivo — a possibilidade de, respeitados determ inados requisitos, editar medidas provisórias com força de lei. Por seu turno, o Poder Legislativo, nesses casos, em razão da determi nação contida no art. 62, § 5o, da Constituição Federal, antes de deliberar sobre o mérito das medidas provisórias, deverá analisar o atendimento de seus pressupostos constitucionais, como a relevância e a urgência. C ontudo, o abuso na edição de medidas provisórias desequilibra a relação entre os órgãos estatais. Assim, o Poder Judiciário, caso provo cado, deve conter tal excesso. Ao realizar tal contenção, evidenciam-se o funcionam ento do sis tem a de freios e contrapesos e a preservação do princípio da separação dos poderes.
OS F R E I O S E C O N T R A P E S O S
A Constituição, ao reger as relações de poder em um a sociedade, estabelece a estrutura dos órgãos do Estado, bem com o os limites em
SEPARAÇÃO DOS PODERES
que eles devem atuar, especialmente pelo que se convencionou cham ar de separação dos poderes.1 C ontudo, convém lembrar que o poder estatal é uno e indivisível. Portanto, apesar de consagradas as expressões “separação dos poderes” e “tripartição dos poderes”, o mais adequado seria falar em separação ou distribuição das funções estatais, que há tem pos são identificadas. Aristóteles, na Política,2 e, mais tarde, John Locke, no Segundo tra tado do governo civil,3 identificavam as diversas atividades estatais. Mas a idéia da separação das funções estatais a serem exercidas por órgãos distintos, especializados e autônom os, independentes entre si, aparece sistematizada por Montesquieu, em O espírito das leis. Montesquieu, no referido livro, ao tratar da Constituição da Ingla terra, explica o seguinte:4 Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder exe cutivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segun do, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou jul
' A noção da separação dos poderes, como afirmado anteriormente, já era contempla da na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que previa, em seu art. 16, que "toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". 2 A r is t ó te le s . "Capítulo X ". In: A política. 3o livro, p. 127-43. 3 L o c k e , John. "Capítulo XII" do "Segundo tratado sobre o governo civil” . In: Dois trata dos sobre o governo, p. 514-7. 4 M o n te sq u ie u . "Capítulo VI". In: O espírito das leis. 11° livro, p. 171 e 172. Em 1797, Kant também trata dessa questão: "Todo Estado encerra três poderes dentro de si, isto é, a vontade unida geral consiste de três pessoas (trias política): o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador; o poder executivo na pessoa do governante (em consonância com a lei) e o poder judiciário (para outorgar a cada um o que é seu de acordo com a lei) na pessoa do juiz (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria). Estes são como as três proposições num silo gismo prático: a premissa maior, que contém a lei daquela vontade; a premissa menor, que contem o comando para se conduzir de acordo com a lei, ou seja o princípio de subordinação à lei, e a conclusão, que contém o veredito (sentença), o que é formulado como direito no caso em pauta" (Kant, Immanuel. A metafísica dos costumes: a doutrina do direito, p. 155 e 156).
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL ga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.
Mas o avanço das idéias de M ontesquieu está na sugestão de repar tir organicamente o poder com o form a de garantir a liberdade.5Assim, além de propor a distribuição das atividades estatais a órgãos distintos e independentes entre si, M ontesquieu apresenta a idéia da contenção do poder de cada órgão por meio do exercício do poder dos outros órgãos estatais:6 Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirâni cas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos princi pais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.
Esta concepção, que acabou consagrada no art. 16 da Declaração dos Direitos do H om em e do Cidadão, de 1789, prevê, simultaneamente, a autonomia dos órgãos estatais e o inter-relacionamento de suas ativi dades, de m odo que se possa ter o controle do poder pelo próprio poder. Se, por um lado, o Legislativo tem a função de criar regras gerais e abstratas — não destinadas a um a única pessoa nem a um determ ina do fato — , a aplicação concreta dessas regras fica a cargo do Executivo. 5 Com base nas lições de Montesquieu, James Madison afirma que o "acúmulo de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, nas mesmas mãos, seja de uma pessoa, de algu mas ou de muitas, seja hereditário, autodesignado ou eletivo, pode ser justamente considerado a própria definição de tirania" (Os artigos federalistas, p. 331 e 332, art. XLVII). 6 M o n te s q u ie u . O espírito das leis cit. p. 172.
SEPARAÇÃO DOS PODERES
Ocorrendo o abuso por qualquer um desses órgãos, o Judiciário pode ser provocado para desfazer o erro ou conter o abuso. Esse mecanismo de repartição das funções voltado à contenção do poder passou a ser conhecido com o sistema de freios e contrapesos,7 cham ado de checks and balances pelos norte-americanos.
AS F U N Ç Õ E S T Í P I C A S E A T Í P I C A S
A distribuição das atividades estatais implica admitir que os órgãos do Estado exercem funções típicas e outras atípicas, viabilizando a har monia e independência entre eles, como consagrado pelo art. 2o da Cons tituição Federal, assim redigido: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Assim, tipicamente, ao legislativo com pete a criação do direito objetivo, ao Executivo, a aplicação desse direito, de ofício, e ao Judiciá rio, a resolução dos conflitos postos à sua apreciação, levando em co n sideração o direito objetivo editado, restaurando a ordem jurídica ata cada ou evitando tal violação. As funções típicas, portanto, são aquelas exercidas p redom inante m ente por um determ inado órgão, “são as que guardam um a relação de identidade com o Poder por que são desem penhadas”.*5 De forma 7 "0 sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à idéia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa cons trução doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos. Segundo essa teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, consistem na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar ou preju dicar a uma pessoa ou a um grupo em particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. 0 execu tivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competências." (D a l l a r i , Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 220 e 221) 8 A r a ú jo , Luiz Alberto David & Jú n io r , Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitu cional, p. 275.
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singela, pode-se dizer que, tipicamente, o Poder Executivo adm inistra e executa, o Poder Legislativo legisla e o Poder Judiciário julga. Atipicamente, cada um dos órgãos estatais exerce as funções que são típicas dos outros. Assim, atipicamente, o Poder Legislativo execu ta e julga, o Poder Executivo legisla e julga e o Poder Judiciário adm i nistra e legisla. Q uando as funções atípicas são essenciais à independência do p o der, ou seja, imprescindíveis ao exercício das funções típicas, a Consti tuição Federal não precisa, obrigatoriamente, contemplá-las expressa mente, pois decorrem da própria cláusula da separação dos poderes, prevista em seu art. 2o. Contudo, as demais funções atípicas que não se revelam essenciais à garantia da independência e harm onia entre os poderes precisam estar expressamente previstas na Constituição.9 Aliás, somente por meio da existência das funções atípicas é que se m ostra possível imaginar a independência e harm onia entre os órgãos estatais. Basta pensar que não haveria independência ou harm onia entre os poderes se o Judiciário, para prover os cargos necessários à administração da Justiçalu — funções de natureza executiva — tivesse de se valer da boa vontade do Poder Executivo. Q ualquer decisão do Poder Judiciário que pudesse desagradar o Executivo seria evitada, sob pena de, a qualquer m om ento, o Poder Executivo se negar a realizar as contratações necessárias ao exercício da função jurisdicional.
9A realização de licitações, pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário, para a aqui sição de materiais essenciais ao exercício, respectivamente, das funções legislativas e jurisdicionais, apesar da natureza administrativa da atividade, não precisa estar expressamente contemplada na Constituição Federal, uma vez que se trata de algo essencial ao desempe nho das funções típicas dos mencionados órgãos estatais. Todavia, o presidente da Repúbli ca somente pode editar medida provisória com força de lei porque essa competência está expressamente prevista na Constituição. Neste último caso, apesar de ser uma função de natureza legislativa exercida atipicamente pelo Poder Executivo, não se trata de algo essen cial ao exercício dessas funções típicas desse órgão estatal. Nesse sentido, conferir Araújo, Luiz Alberto David & Júnior, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional cit. p. 275. 10O art. 96, I, c e e, da Constituição, prevê que compete aos tribunais prover, na forma prevista na Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição e prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, os cargos necessários à administração da Justiça.
SEPARAÇÃO DOS PODERES
PODER LEG ISLATIVO C om o se afirm ou anteriorm ente, compete ao Legislativo, tipica mente, criar o direito objetivo e fiscalizar." Atipicamente, o Poder Le gislativo julga e realiza atividades administrativas. A título de exemplo, pode-se lem brar que o Poder Legislativo tem a competência de elaborar as leis complementares e ordinárias, nos term os dos arts. 59, II e III, 61 e 63 a 69 da Constituição Federal. A competência de fiscalizar conferida ao Parlamento pela Consti tuição Federal — em especial nos arts. 49, IX e X, 58, § 3o, e 70 a 7512 — tam bém pode ser considerada um a função típica do Poder Legisla tivo, com o se depreende da seguinte passagem da decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em 7 de abril de 1994, no Habeas Corpus n. 71.039/RJ, cujo relator foi o m inistro Paulo Brossard: 0 poder investigatório é auxiliar necessário do poder de legislar; conditio
sine qua non de seu exercício regular. Podem ser objeto de investigação todos os assuntos que estejam na competência legislativa ou fiscalizatória do Congresso. (...) Os poderes congressuais, de legislar e fiscalizar, hão de estar investidos dos meios apropriados e eficazes ao seu normal desem penho. O poder de fiscalizar, expresso no inc. X do art. 49 da Cons tituição, não pode ficar condicionado a arrimo que lhe venha a dar outro
Nesse sentido, conferir M o r a e s , Alexandre de. Direito constitucional, p. 379. u "Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) IX — julgar anual mente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a exe cução dos planos de governo; X — fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta." "Art. 58. § 3o As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autori dades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, median te requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores." "Art. 70. A fiscalização con tábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da adminis tração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das sub venções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder." "Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União." 11
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL Poder, ainda que, em certas circunstâncias, ele possa vir a ser necessário. A comissão parlam entar de inquérito se destina a apurar fatos relaciona dos com o a administração, Constituição, art. 49, X, com a finalidade de conhecer situações que possam ou devam ser disciplinadas em lei, ou ain da para verificar os efeitos de determ inada legislação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Não se destina a apurar crimes nem a puni-los, da com petência dos Poderes Executivo e Judiciário.
Exercendo um a função atípica, o Poder Legislativo, por exemplo, julga o presidente da República nos crimes de responsabilidade (art. 52, I, e parágrafo único, da Constituição Federal). Adm inistrar ta m bém é função atípica do Legislativo, com o ocorre na hipótese prevista no art. 51, IV, da Constituição Federal, que confere à C âm ara dos De putados a competência de dispor sobre sua organização, funciona mento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, em pre gos e funções de seus serviços. ■I
E S T R U T U R A E A T R IB U IÇ Õ E S DO PODER LE G IS LA TIV O
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Bicameralismo do tipo federal
O Poder Legislativo brasileiro tem um a estrutura bicameral, ou seja, é com posto de duas Casas Legislativas.13 Assim é que o art. 44, caput, da Constituição Federal estabelece que o Congresso Nacional é form ado pela C âm ara dos Deputados e pelo Senado Federal. A Câm ara dos Deputados é com posta “de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território '3 Sobre o surgimento do bicameralismo e sua adoção tanto em estados federais co mo unitários, conferir Di R u f f ia , Paolo Biscaretti. Direito constitucional: instituições de direi to público, p. 253 e segs. Esse autor, depois de afirmar que poucos "princípios de técnica constitucional conseguiram — entre os Estados de democracia clássica — uma afirmação tão plena e difundida como a alcançada pelo chamado bicameralismo, isto é, pela existên cia, em cada um deles, de duas Câmaras legislativas (uma das quais, pelo menos, com caráter representativo)", explica que a difusão do bicameralismo resulta de particulares necessidades práticas, como no caso dos Estados federais, ou inspira-se em motivos racionais e de oportunidade, como nos Estados unitários.
SEPARAÇÃO DOS PODERES
e no Distrito Federal” (art. 45, caput). O núm ero de deputados e a representação por estado e pelo Distrito Federal devem ser p ro p o r cionais à população, mas n en h u m a das unidades da Federação pode ter m enos de oito ou mais de setenta deputados (art. 45, § I o). Os terri tórios federais, caso voltem a ser criados, terão, cada um , quatro d e p u tados (art. 45, § 2o). Apesar das distorções acarretadas pelo m ecanism o de represen tação previsto no § 2o do art. 45 da Constituição Federal — que impõe o m ínim o de oito e o m áxim o de setenta deputados, levando em conta as unidades federativas m enos e mais populosas, respectivamente — , procurou-se prestigiar, p o r meio da C âm ara dos Deputados, o princí pio democrático traduzido pelo aforismo “um a pessoa, um voto”. O Senado Federal, por outro lado, compõe-se de representantes dos estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário, sendo certo que cada um a dessas unidades federativas deve eleger três senadores, com mandato de oito anos (art. 46, caput e § Io). Por meio dessa Casa Legislativa, buscou-se prestigiar o princípio fede rativo, de modo que cada entidade que compõe a Federação tem o mesmo número de representantes no Senado, participando, assim, de m odo iguali tário da formação da lei que — num Estado de direito que adota a dem o cracia representativa — traduziria a vontade geral. Por essa razão é que se pode chamar de federativo o sistema bicameral adotado no Brasil.14
Atribuições do Poder Legislativo O Congresso Nacional — form ado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal — dispõe sobre todas as matérias de competência da União, nos termos do art. 48 da Constituição Federal. Com isso, o Congresso Nacional tem o poder de criar as espécies normativas neces sárias para regulamentar os temas que a Constituição conferiu à União, com a participação do presidente da República, que, além de propor projetos de lei sobre esses assuntos, tem o poder de sancionar ou vetar os projetos aprovados pelo Legislativo. '4 Sobre o sistema bicameral e o federalismo de equilíbrio, o federalismo hegemônico e a evolução constitucional brasileira, até a Constituição de 1946, conferir R u s s o m a n o , Rosah. O princípio do federalismo na Constituição brasileira, p. 111 e segs.
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C ontudo, o chefe do Poder Executivo não participa da elaboração das espécies normativas que tratam das matérias de competência ex clusiva do Congresso Nacional (art. 49), privativas da C âm ara dos D e putados (art. 51) e privativas do Senado Federal (art. 52). Esses temas são veiculados por meio de resoluções ou decretos legislativos, espécies normativas que serão estudadas mais adiante. Assim, o Congresso Nacional, além das atribuições previstas no art. 48, tam bém tem competências exclusivas, previstas no art. 49, que são exercidas sem que ocorra a participação do presidente da Repúbli ca, competências essas na fase de sanção ou veto e promulgação do ato normativo. Entre outras, as com petências exclusivas do Congresso Nacional são a de resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou com prom issos gravosos ao p atrim ô n io nacional; autorizar o presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a perm itir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele perm aneçam tem porariam ente; autorizar o presidente e o vice-presidente da República a se ausentar do país, q u an d o a ausência exceder a quinze dias; aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio ou sus pender qualquer u m a dessas medidas; sustar os atos norm ativos do Poder Executivo que exorbitem do p o d er regulam entar ou dos limites de delegação legislativa; m u d a r tem p orariam en te sua sede; fixar su b sídio para os deputados federais, senadores, presidente e vice-presi dente da República; julgar anualm ente as contas prestadas pelo presi dente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo; fiscalizar e controlar, diretam ente, ou p o r qual quer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da adm inistração indireta. As competências privativas da Câm ara dos D eputados (art. 51) com preendem a autorização para a instauração de processo contra o presidente, o vice-presidente da República e os ministros de Estado; a tom ada de contas do presidente da República, quando não apresenta das ao Congresso Nacional; a elaboração de seu regimento interno; a disposição sobre sua organização, funcionam ento, polícia, criação, transformação ou extinção de cargos, empregos e funções de seus ser
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viços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração; e a eleição dos m em bros do Conselho da República. Por fim, compete ao Senado Federal (art. 52), por exemplo: (...) I - processar e julgar o Presidente e o Vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabili dade; III - aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: a) magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição;
b) Ministros do Tribunal de Contas da União indicados pelo Presidente da República; c) Governador de Território; d) Presidente e diretores do Banco Central; e) Procurador-Geral da República; (...) V - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos municípios; (...) X - suspender a exe cução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal; (...) XII - elaborar seu regimento interno; XIII - dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, cri ação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamen tárias; XIV - eleger os membros do Conselho da República (...).
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IMUN IDADES P A R LA M E N TA R E S
As im unidades parlam entares são prerrogativas irrenunciáveis que a Constituição confere aos m em bros do Poder Legislativo, para que eles possam exercer suas funções com autonom ia e independência.15 Essas prerrogativas não decorrem de um privilégio pessoal dos parlamentares, mas são garantias que dizem respeito às funções exer-
15 Nas palavras de Raul Machado Horta, as "imunidades parlamentares estão univer salmente vinculadas à proteção do Poder Legislativo e ao exercício independente do manda to representativo" (in: Direito constitucional, p. 591).
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cidas pelos deputados e senadores. Por esse motivo é que tais garantias são irrenunciáveis, ou seja, os parlamentares não podem abrir mão delas, com o decidiu o Suprem o Tribunal Federal:16 O instituto da imunidade parlamentar atua, no contexto normativo deli neado por nossa Constituição, como condição e garantia de independên cia do Poder Legislativo, seu real destinatário, em face dos outros poderes do Estado. Estende-se ao congressista, embora não constitua uma prerro gativa de ordem subjetiva deste. Trata-se de prerrogativa de caráter insti tucional, inerente ao Poder Legislativo, que só é conferida ao parlamen tar ratione muneris, em função do cargo e do mandato que exerce. E por essa razão que não se reconhece ao congressista, em tema de imunidade parlamentar, a faculdade de a ela renunciar. Trata-se de garantia institu cional deferida ao Congresso Nacional. O congressista, isoladamente con siderado, não tem, sobre ela, qualquer poder de disposição.
As im unidades parlamentares são de dois tipos: as materiais e as formais, sendo certo que as disposições constitucionais sobre essas questões foram significativamente alteradas pela Em enda C onstitu cional n. 35, de 20 de dezembro de 2001.
As inviolabilidades parlamentares ou imunidades materiais As im unidades materiais, previstas no caput do art. 53, consistem na inviolabilidade, penal e civil, dos deputados e senadores por quais quer de suas opiniões, palavras e votos. Assim, os parlamentares — sem receio de sofrer qualquer proces so no cam po cível ou punição criminal — podem exercer as funções de representação política com independência. Com efeito, por meio de opiniões, palavras e votos, os parlamentares não cometem n e n h u m a infração, quer na esfera cível, quer na esfera criminal. Todavia, as im unidades materiais são invocáveis somente nas hipóteses em que as palavras, as opiniões e os votos são emitidos em
16STF, Inquérito n. 51 O/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 01.02.1991.
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atividades relacionadas ao m andato, no recinto do Parlamento ou fora dele, com o já decidiu o Suprem o Tribunal Federal:17 Imunidade parlamentar material: extensão. 1 - Malgrado a inviolabilidade alcance hoje "quaisquer opiniões, palavras e votos" do congressista, ainda quando proferidas fora do exercício formal do mandato, não cobre as ofensas que, pelo conteúdo e o contexto em que perpetradas, sejam de todo alheias à condição de Deputado ou Senador do agente (Inq. 1.710, Sanches; Inq. 1.344, Pertence). 2 - Não cobre, pois, a inviolabilidade par lamentar a alegada ofensa a propósito de quizílias intrapartidárias ende reçadas pelo Presidente da agremiação — que não é necessariamente um congressista — contra correligionário seu.
Mas, se p o r um lado, o p a rlam en tar não com ete contravenção penal, crim e ou n e n h u m a infração cível p o r m eio de palavras, opiniões e votos, p o r o u tro , se o d ep u tad o ou senador abusar dessa prerrogativa, p o d erá ser caracterizada u m a atitude incom patível com o decoro parlam entar. C om isso, o p a rlam en tar estará sujeito à p erd a do m an d ato , com base no art. 55, II, e § Io, da C onstituição Federal. | As
imunidades formais
As im unidades formais são garantias que dizem respeito à prisão do parlam entar e aos processos judiciais a que ele poderá se sujeitar, ou seja, são as prerrogativas conferidas pela Constituição aos parla mentares quanto à prisão deles ou aos processos judiciais que a eles se pretende impor.
As imunidades formais em relação à prisão Desde a expedição do diploma — m om ento em que a Justiça Eleitoral form alm ente declara que o parlam entar foi eleito e, portanto, antes da posse - , os m em bros do Congresso Nacional não poderão ser
’7 STF, Inquérito n. 1.905/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.04.2004.
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m a n u a l de d ireito c o n s t it u c io n a l
presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (art. 53, § 2o, prim eira parte). No caso de prisão em flagrante de crime inafiançável, os autos devem ser remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva (Câm ara dos Deputados, se se tratar de um deputado federal, ou Senado, em se tratando de um senador), para que, pelo voto da maioria de seus m em bros, se resolva sobre a prisão, com o prevê a parte final do § 2o do art. 53 da Constituição Federal. Assim é que esse tipo de imunidade formal garante, como assentou o Supremo Tribunal Federal,18 um “estado de relativa incoercibilidade pessoal dos congressistas (freedom from arrest), que só poderão sofrer prisão provisória ou cautelar n u m a única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável”. Contudo, “a garantia jurídicoinstitucional da im unidade parlamentar formal não obsta, observado o due process of law, a execução de penas privativas da liberdade definiti vamente impostas ao m em bro do Congresso Nacional”. As
imunidades formais em relação aos processos criminais
Q uanto aos crimes cometidos por parlam entar antes da diplomação, não há n en h u m a im unidade, podendo ele ser processado, n o r malmente, com o qualquer cidadão. Todavia, se o crime ocorrer após a diplomação, o Supremo Tribu nal Federal, depois de receber a denúncia contra o deputado ou o se nador, dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até decisão final, sustar o andam ento da ação (art. 53, § 3o). Portanto, o parlam entar somente ficará livre do processo, te m p o rariamente, se a Casa a que ele pertence decidir, pelo q u ó ru m de m aio ria absoluta, que o Suprem o Tribunal Federal não deva processá-lo enquanto d u rar o mandato. Terminado o m andato, m esm o que o p ro cesso tenha sido sustado pelo Parlamento, o Judiciário estará livre para processar o parlamentar.
18 STF, Inquérito n. 51 O/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 01.02.1991.
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Essa situação não ocorre nas hipóteses de im unidades materiais — segundo as quais o parlam entar é inviolável por quaisquer de suas palavras, opiniões e votos — , pois nesses casos não ocorreu crime al gum ou infração alguma. Portanto, durante o m andato ou m esm o de pois de seu térm ino, o parlam entar não será processado pelas palavras, opiniões e votos que proferiu. Voltando às im unidades formais, vale lem brar que o pedido de sustação do processo deverá ser apreciado pela Casa Legislativa no prazo improrrogável de 45 dias, contados do seu recebimento pela Mesa Diretora (art. 53, § 4o). “A sustação do processo suspende a pres crição, enquanto durar o m an dato” (art. 53, § 5o). Essa nova disciplina sobre as im unidades formais fez com que o silêncio do Legislativo passasse a ser entendido com o permissão para se dar continuidade ao processo contra o parlam entar perante o Su prem o Tribunal Federal, diferentemente do que acontecia antes do advento da Em enda Constitucional n. 35/2001. Com efeito, antes da alteração constitucional, o parlam entar só poderia ser processado — por crime cometido antes ou depois da diplomação — se houvesse autorização expressa da Casa Legislativa a que ele pertencia. Assim, se o Legislativo não se manifestasse sobre a solicitação do Supremo Tribunal Federal para processar o parlamentar, este não poderia ser processado. E essa era exatamente a situação mais com um : o Parlamento não apreciava o pedido do Judiciário e o p ro cesso não se desenvolvia. Enfim, o silêncio da Casa Legislativa signifi cava que o Supremo Tribunal Federal não tinha autorização para p ro cessar o parlam entar denunciado. C um pre esclarecer que a Em enda n. 35/2001 não alterou o enten dim ento acerca da possibilidade de o parlam entar ser investigado, independentem ente da autorização da Casa a que pertença. Antes da alteração constitucional, era perm itida a investigação do parlam entar sem autorização legislativa e esse ponto não foi modificado pela em en da constitucional mencionada. Por fim, é im portante consignar que as im unidades parlamentares subsistem “durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas m e diante o voto de dois terços dos m em bros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da m edida” (art. 53, § 8o).
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A prerrogativa de foro
Desde a expedição do diploma, os deputados e senadores serão submetidos a julgam ento perante o Supremo Tribunal Federal (art. 53, § I o), situação esta que caracteriza um a prerrogativa de foro em razão da função exercida pelo parlamentar. Em 3 de abril de 1964, o Supremo Tribunal Federal havia aprova do a Súmula n. 394, com a seguinte redação: “Com etido crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogati va da função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Assim, desde que o crime tivesse sido praticado durante o período de exercício do m andato parlamentar, a competência para processar e julgar a causa era do Supremo Tribunal Federal, m esm o que o proces so tivesse iniciado após o térm ino do mandato. Todavia, em 25 de agosto de 1999, o Suprem o Tribunal Federal cancelou a referida súmula e passou a entender que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do m andato, e não a proteger quem o exerce e, m enos ainda, quem deixa de exercê-lo. Assim, o en tend im en to passou a ser o de que o Suprem o Tribunal Federal tem competência para processar e julgar os crimes cometidos p o r parlamentares apenas enquanto estiver em curso o m andato. Encerrado o m andato, os autos devem ser encam inhados ao juízo com um , preservando os atos prati cados até então. O cancelamento da Súmula n. 394 ocorreu quando do julgam en to da Questão de O rdem no Inquérito n. 687/SP, relatada pelo ministro Sydney Sanches e cuja em enta tem o seguinte teor: Direito constitucional e processual penal. Processo criminal contra ex-deputado federal. Competência originária. Inexistência de foro privilegiado. Competência de Juízo de 1o grau. Não mais do Supremo Tribunal Fede ral. Cancelamento da Súmula n. 394. 1 - Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis ns. 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula n. 394, segundo a qual, "cometido o crime durante o exercí cio funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de fun-
SEPARAÇÃO DOS PODERES ção, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício". 2 - A tese consubstanciada nessa súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, b, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar "os membros do Congresso Nacional", nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-presidente, o ex-vice-presidente, o ex-procurador-geral da República, nem os ex-minis tros de Estado (art. 102, I, b e c). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatá rios, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do manda to. Dir-se-á que a tese da Súmula n. 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tan tos anos, foi aceita pelo Tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercí cio do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Cor te Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou manda tos. 3 - Questão de ordem suscitada pelo relator, propondo cancelamen to da Súmula n. 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1o grau para o processo e julgamento de ação penal contra exdeputado federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unâni me do Plenário. 4 - Ressalva, também unânime, de todos os atos pratica dos e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula n. 394, enquanto vigorou.
Por meio da Lei n. 10.628, de 24 de dezembro de 2002, houve a tentativa de restabelecer o entendim ento da Súmula n. 394 do Supre-
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mo Tribunal Federal. A referida lei incluiu o § I o ao art. 84 do Código de Processo Penal para estabelecer que a “competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”. C ontudo, em 15 de setembro de 2005, o Supremo Tribunal Fede ral, por sete votos a três, julgou procedentes os pedidos das Ações Dire tas de Inconstitucionalidade ns. 2.729 e 2.860, que atacavam o referido dispositivo legal, restabelecendo o entendim ento de que a com petên cia do Suprem o Tribunal Federal para processar e julgar os crimes cometidos por parlamentares se m antém apenas enquanto estiver em curso o m andato.
Imunidade parlamentar e congressista nomeado ministro de Estado Ainda sob a égide da Constituição de 1946, houve a aprovação, em 13 de dezembro de 1963, do Enunciado n. 4 da súm ula do Supremo Tribunal Federal, cuja redação era a seguinte: “Não perde a im unidade parlam entar o congressista nom eado Ministro de Estado”. A Constituição de 1946 previa, no art. 44, que os deputados e senadores eram invioláveis no exercício do m andato, por suas opiniões, palavras e votos. No art. 51 constava a regra segundo a qual o deputa do ou senador investido na função de ministro de Estado não perdia o mandato. Tais norm as, atualmente, repetem-se, com pequenas variações redacionais, nos arts. 53, caput, e 5 6 , 1, da Constituição Federal de 1988. C ontudo, a Súmula n. 4 do Suprem o Tribunal Federal foi cancela da, em 26 de agosto de 1981, quando do julgam ento do Inquérito n. 104/RS, relatado pelo m inistro Djaci Falcão: Queixa contra deputado federal, investido na função de ministro de Esta do, imputando-lhe crime de difamação (art. 139 do Código Penal). O deputado que exerce a função de ministro de Estado não perde o man dato, porém não pode invocar a prerrogativa da imunidade, material ou processual, pelo cometimento de crime no exercício da nova função. Inteligência do art. 32, § 1o, da Constituição, na redação dada pela Emen da n. 11/78. Rejeição da preliminar suscitada pela Procuradoria-Geral da
SEPARAÇÃO DOS PODERES República e cancelamento da Súmula n. 4 (§ 1o do art. 102, do Regimen to Interno do Supremo Tribunal Federal). Decisão tomada por maioria absoluta de votos. Rejeição da queixa, por unanimidade de votos, eis que a simples revelação de débito para com entidade pública não traduz, em tese, crime contra a honra.
Se é verdade que o deputado ou senador investido no cargo de ministro de Estado não perde o m andato parlamentar, tam bém é cor reto afirmar que, durante o exercício da função de natureza executiva, com o auxiliar do presidente da República, o ministro de Estado não está exercendo atividade parlam entar e, via de conseqüência, não pode estar protegido pelas im unidades parlamentares. Portanto, o deputado ou senador investido no cargo de ministro de Estado, apesar de não perder o m an dato parlam entar por esse m o ti vo, não carrega consigo as im unidades parlamentares. M
IM P E D IM E N T O S E IN C O M P A T I B IL ID A D E S
Buscando garantir o exercício parlam entar com independência e autonom ia e procurando evitar que os congressistas, em razão de suas funções, aufiram vantagens indevidas, os arts. 54 e 55 da Constituição Federal im pedem que os deputados e senadores pratiquem determ ina dos atos ou exerçam certas atividades, im po n do a respectiva pena em caso de as vedações constitucionais serem descumpridas. Assim, os deputados e senadores não podem , desde a expedição do diploma, Firmar ou m anter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de econom ia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniform es (art. 5 4 , 1, a). C om isso, a C onstituição pro cu ra evitar que vantagens indevi das sejam obtidas pelos parlam entares em d e trim en to do interesse público. Todavia, a Constituição permite que o parlam entar contrate com as referidas entidades, desde que o contrato obedeça a cláusulas u n i formes. Se não fosse assim, o congressista estaria im pedido de ter aces so, por exemplo, a serviços de saneam ento básico, energia e telefonia, bem com o não poderia utilizar-se de certos transportes públicos.
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Desde a expedição do diploma, os deputados e senadores tam bém não poderão aceitar ou exercer cargo, função ou emprego rem unerado — e desde a posse não poderão ocupar cargo ou função — ju n to a pes soas jurídicas de direito público ou em autarquias, empresas públicas, sociedades de econom ia mista e empresas concessionárias de serviço público (art. 5 4 ,1, b, e II, b). Desde a posse, os p arlam en tares não poderão, sob pena de perda do m an d a to , ser titulares de mais de u m cargo ou m a n d a to público eletivo, nem ser p ro p rietário s, con tro lad ores ou diretores de em presa que goze de favor decorren te de c o n tra to com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função re m u n e ra d a (art. 54, II, a e d). No entanto, não perderá o m andato o deputado ou o senador in vestido no cargo de m inistro de Estado, governador de território, secretário de estado, do Distrito Federal, de território, de prefeitura de capital ou chefe de missão diplomática tem porária, conform e previsão contida no inc. I do art. 56 da Constituição Federal. Os deputados e senadores — tam bém desde a posse — não p o derão patrocinar causa em que seja interessada pessoa jurídica de direi to público, autarquia, empresa pública, sociedade de econom ia mista ou empresa concessionária de serviço público (art. 54, II, c). O parlam entar que infringir qualquer das proibições m encionadas perderá o m andato, desde que a Casa que ele com põe decidir pela per da, por voto secreto e m aioria absoluta, mediante provocação da res pectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, garantida a ampla defesa (art. 5 5 , 1 e § 2o, da Constituição Federal). Também perderá o m a n d a to — desde que obedecido o procedi m ento descrito an terio rm en te — o parlam entar que agir de m odo incompatível com o decoro parlam entar, sendo que os atos in co m p a tíveis com o decoro parlam entar, além daqueles definidos no regi m ento interno, consistem no abuso das prerrogativas asseguradas aos m em bros do Congresso Nacional ou na percepção de vantagens indevidas (art. 55, II e §§ I o e 2o). Causa polêmica a possibilidade de im por a perda do m andato, por quebra do decoro parlamentar, ao deputado ou senador acusado da
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prática de atos anteriores ao m andato ou durante período em que es teve afastado das funções parlam entares.19 A perg u nta que surge é a seguinte: pode u m d ep u tad o ou senador perder o m an d ato sob a acusação de quebra do decoro p a r lam entar em razão de atos praticados q u an d o não exercia função no Parlamento? A Consultoria Legislativa da Câm ara dos Deputados, em agosto de 2005, respondeu afirmativamente a essa questão. Para chegar a tal con clusão, o consultor legislativo José T heodoro M. Menck argum entou que, no m u n d o jurídico, um só ato h u m an o repercute em duas ou mais esferas. Portanto, “é natural que determinadas ações sejam sim ul tânea, ou sucessivamente, cobradas no âm bito penal, civil e adm inis trativo. Se assim é, mais do que natural que determ inada ação possa vir a ser cobrada nas esferas política e penal”. C om efeito, a falta de dignidade para o exercício do m andato ou a ausência de honradez para desem penhar as funções parlamentares, que caracterizam a quebra de decoro, podem decorrer de atos pratica dos antes ou durante o exercício do m andato.20 Também perderá o m an dato o deputado ou o senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. No entanto, da m esm a form a m encionada quando da análise das duas hipóteses anteriores, a perda do m andato, no caso, somente ocorrerá p o r voto secreto e maioria absoluta dos m em bros da Casa Legislativa a que per tence o parlamentar, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada a m pla defesa (art. 55, VI e § 2o, da Constituição Federal). 19Tal polêmica surgiu, por exemplo, quando da discussão sobre a perda do mandato do então deputado Talvane Albuquerque, acusado de ter participado do homicídio da deputada Ceei Cunha, da qual era suplente na época. A controvérsia também ocorreu quando da cas sação do mandato de Hildebrando Pascoal — comprometido com tráfico de drogas, crime eleitoral e homicídio — e do suplente de deputado Feres Nader, acusado de envolvimento no chamado crime organizado do Rio de Janeiro. A questão voltou a ser debatida quando do jul gamento de José Dirceu, acusado de participar da compra de deputados para que votassem a favor do governo na época em que, afastado das funções parlamentares, estava investido no cargo de ministro-chefe da Casa Civil. 70 Contudo, não é essa a previsão do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução n. 17/89, art. 244) e do Código de Ética e Decoro Parlamentar da mesma Casa Legislativa (Resolução n. 25/2001, especialmente arts. 4o e 5o).
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A perda do m andato de deputado ou senador ocorrerá, ainda, se o parlam entar deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, se ele perder ou tiver suspensos os direitos políticos ou quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição (art. 55, III a V). Nes sas hipóteses, a perda do m andato ocorrerá de maneira mais simplifi cada do que nos outros casos, pois será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou m ediante provocação de qualquer de seus m em bros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada am pla defesa (art. 55, § 3o). No entanto, não perderá o m andato o deputado ou o senador li cenciado pela respectiva Casa p o r motivo de doença, ou para tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, neste caso, o afas tam ento não ultrapasse 120 dias por sessão legislativa (art. 56, II). Por fim, cum pre esclarecer que a renúncia do parlam entar subm e tido a processo que vise ou possa levar à perda do m andato terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais da Casa Legislativa ou da Mesa, com o prevê o § 4o do art. 55 da Constituição Federal, acrescen tado pela Emenda Constitucional de Revisão n. 6/94. Assim, se o deputado ou senador submetido a processo de perda do mandato renunciar após a instauração do procedimento, a renúncia não produzirá efeitos enquanto não houver deliberação final. Se a decisão for pela perda do mandato, a renúncia não terá produzido efeitos; mas, se a decisão da Mesa ou da Casa — conforme o caso — for pela manutenção do mandato, aí sim a renúncia prevalecerá, produzindo seus efeitos. H
F U N C IO N A M E N T O DO PODER LE G IS LA TIV O
| Reuniões O Congresso Nacional reúne-se, anualmente, na capital federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de Io de agosto a 22 de dezembro (art. 57, caput, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda C ons titucional n. 50, de 2006). Esse período anual de reunião do Parlamento é cham ado de sessão legislativa. Cada sessão legislativa é form ada por dois períodos legisla
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tivos, sendo o prim eiro com preendido entre 2 de fevereiro e 17 de j u lho e o segundo entre Io de agosto e 22 de dezembro. O recesso parlam entar ocorre quando o parlam ento não está reu nido, ou seja, no intervalo entre os períodos legislativos: de 23 de dezembro a Io de fevereiro e de 18 a 31 de julho. As sessões legislativas extraordinárias são aquelas convocadas, nos term os dos §§ 6o a 8o do art. 57 da Constituição Federal, para ser reali zadas durante o recesso parlamentar, com o intuito de deliberar sobre as matérias para as quais foram convocadas e sobre as eventuais m edi das provisórias que estiverem pendentes de apreciação. A convocação extraordinária do Congresso Nacional será feita pelo presidente do Senado Federal, em caso de decretação de estado de defe sa ou de intervenção federal, de pedido de autorização para a decretação de estado de sítio e para o compromisso e a posse do presidente e do vice-presidente da República (art. 57, § 6o, I, da Constituição Federal). O Congresso Nacional tam bém poderá ser convocado extraordi nariam ente pelo presidente da República, pelos presidentes da Câm ara dos Deputados e do Senado Federal, ou a requerim ento da maioria dos m em bros de ambas as Casas, em caso de urgência ou interesse público relevante. Nessas hipóteses, a convocação somente ocorrerá se for apro vada pela maioria absoluta de cada um a das Casas do Congresso N a cional (art. 57, § 6o, II, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 50, de 2006). Nos term os do § 7o do art. 57, na sessão legislativa extraordinária, o Congresso Nacional somente deliberará sobre a matéria para a qual foi convocado, sendo vedado o pagam ento de parcela indenizatória, em razão da convocação. E, com o afirmado anteriorm ente, se existirem medidas provisórias pendentes de apreciação pelo Congresso Nacional na data da convoca ção extraordinária, elas serão autom aticam ente incluídas na pauta da convocação, conforme previsão do § 8o do art. 57 da Constituição Fe deral, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 32/2001. Há ainda o conceito de reuniões diárias, tam bém chamadas sim plesmente de sessões ordinárias, que consistem nas reuniões realizadas diariamente pelo Congresso Nacional para a deliberação das matérias de sua competência.
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Por fim, cum pre registrar que cada legislatura terá a duração de quatro anos, nos term os do parágrafo único do art. 44 da Constituição Federal. | Quorum
Se não houver disposição constitucional em contrário, as delibe rações de cada Casa do Congresso Nacional e de suas comissões serão tom adas por maioria dos votos, desde que presente a maioria absolu ta de seus m em bros (art. 47 da Constituição Federal). Esse é o cham a do quorum de m aioria simples ou relativa, que é alcançado pelo voto de mais da m etade dos parlamentares presentes na sessão, desde que esteja presente mais da metade dos m em bros da Casa. A título de exemplo, no Senado Federal, com posto de 81 parla mentares, a sessão pode ser aberta se estiverem presentes 41 senadores ou mais. Presente o núm ero m ín im o de parlamentares (41), o quorum de maioria simples é atingido com o voto de 21 congressistas. Por outro lado, se estiverem presentes, por exemplo, 71 senadores, a m aio ria simples será 36. C om o se verifica, há um a variação em razão do n úm ero de parlamentares presentes na sessão. Já o quorum de maioria absoluta é atingido pelo voto de mais da metade dos m em bros da Casa, não variando em razão do núm ero de parlamentares presentes na sessão. Assim, no exemplo m encionado, se estiverem presentes 41, setenta ou oitenta senadores, o quorum de m aio ria absoluta será alcançado sempre com o voto de 41 congressistas, levando em conta que o Senado é com posto de 81 membros. C om o se verá mais adiante, q u an do da análise das espécies n o r mativas, o quorum de maioria simples é exigido para a aprovação das leis ordinárias e o quorum de maioria absoluta, para a aprovação das leis complem entares (art. 69 da Constituição Federal). Há ainda as hipóteses de maiorias qualificadas, como, por exem plo, o quorum de três quintos exigido para a aprovação das em endas à Constituição (art. 60, § 2o) e o quorum de dois terços para a autoriza ção e o julgam ento do presidente da República nos crimes de respon sabilidade (arts. 5 1 , 1, e 5 2 , 1, e § Io, da Constituição Federal). Nesses casos, o cálculo para atingir o quorum exigido constitucionalmente
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leva em consideração sempre o núm ero de m em bros da Casa Legis lativa, e não o de presentes na sessão. Com efeito, o único quorum que tem com o parâm etro os parlamentares presentes na sessão é o de maioria simples. |
Mesas Diretoras
A Mesa Diretora é o órgão com funções administrativas que dirige a Casa Legislativa, devendo se assegurar, na sua formação, tanto q u a n to possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa (art. 58, § Io). Além das funções administrativas de direção e polícia da Casa Le gislativa, vale lem brar que as Mesas da C âm ara dos Deputados e do Senado têm legitimidade para p ro p o r ação de inconstitucionalidade, nos term os do art. 103, II e III, da Constituição Federal. A eleição dos parlamentares que com porão as Mesas Diretoras da Câm ara dos D eputados e do Senado Federal deve ser realizada pelas respectivas Casas Legislativas, sendo que os eleitos terão m andato de dois anos, vedada a recondução para o m esm o cargo na eleição im e diatam ente subseqüente (art. 57, § 4o). Mas não só o Senado e a C âm ara dos Deputados têm Mesas Dire toras. Com efeito, o Congresso Nacional tam bém possui esse órgão di retivo, que é presidido pelo presidente do Senado, sendo os demais car gos exercidos, alternadamente, pelos ocupantes de cargos equivalentes na C âm ara dos Deputados e no Senado Federal (art. 57, § 5o).
Comissões parlamentares permanentes ou temporárias As comissões, com o afirma José Afonso da Silva,21 são órgãos do Poder Legislativo encarregados de estudar e examinar as proposições legislativas e apresentar pareceres, cuja composição deve ser de um núm ero reduzido de parlamentares, obedecendo-se, tanto quanto pos sível, à representação proporcional dos partidos ou dos blocos parla mentares que participam da respectiva Casa (art. 58, § Io).
21 S ilva, José Afonso da.
Curso de direito constitucional positivo
cit. p. 512 e 513.
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As comissões podem ser perm anentes22 ou tem porárias23 e se cons tituem na Câm ara dos Deputados ou no Senado Federal. Elas podem tam bém ter composição mista,21 ou seja, de deputados e senadores, sendo que suas atribuições devem constar do regimento interno da respectiva Casa Legislativa ou no ato de que resultar a criação da co missão (art. 58, caput). C ontudo, a própria Constituição desde logo prevê que comissões, em razão da m atéria de sua competência, têm as seguintes atribu i ções: (a) discutir e votar projeto de lei que dispensar, na form a do re gimento, a competência do plenário, salvo se houver recurso de um
27A título de exemplo, é possível citar as seguintes comissões permanentes da Câmara dos Deputados: Comissão de Constituição e Justiça e de Redação; Comissão de Agricultura e Políti ca Rural; Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias; Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior; Comissão de Direitos Humanos; Comissão de Educação, Cultura e Desporto; Comissão de Finanças e Tributação; Comissão de Minas e Energia; Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e Narcotráfico; Comissão de Seguridade Social e Família; Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público; Comissão de Viação e Transportes. No Senado, existem as seguintes comissões permanentes (além das subcomissões permanentes): Comissão de Assuntos Econômicos; Comissão de Assuntos Sociais; Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania; Comissão de Educação; Comissão de Fiscalização e Controle; Comissão de Serviços de Infra-estrutura; Comis são de Legislação Participativa; Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. 23Além das comissões parlamentares de inquérito — sempre temporárias — da Câmara do Deputados, do Senado Federal ou mistas, nos últimos anos, por exemplo, foram criadas as seguintes comissões temporárias: (a) comissão temporária interna do Senado Federal "des tinada a acompanhar as relações bilaterais, particularmente as comerciais, de Brasil e Canadá, tendo em vista os contenciosos nas relações de comércio internacional entre esses países"; (b) comissão especial da Câmara dos Deputados destinada a efetuar estudo em relação às matérias em tramitação na Casa, cujo tema abrangesse a reforma trabalhista; (c) comissão especial da Câmara dos Deputados destinada a proferir parecer à proposta de Emenda à Cons tituição n. 40-A, de 2003, do Poder Executivo, relativa à chamada Reforma Previdenciária; (d) comissão mista especial, com a finalidade de "estudar as causas da crise de abastecimento de energia no País, bem como propor alternativas ao seu equacionamento". 24 Um exemplo de comissão mista permanente é a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, que, nos termos do art. 166, § 1o, I e II, da Constituição Federal, tem a competência para: "I — examinar e emitir parecer sobre os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais, assim como sobre as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República; II — examinar e emitir parecer sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição Federal e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais Comissões do Congresso Nacional e de suas casas, criadas de acordo com o art. 58".
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décimo dos m em bros da Casa;25 (b) realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; (c) convocar ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; (d) receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públi cas; (e) solicitar depoim ento de qualquer autoridade ou cidadão; (f) apreciar program as de obras, planos plurianuais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles em itir parecer. Por fim, o § 4o do art. 58 estabelece que, d u ra n te o recesso parla m entar, haverá um a comissão representativa do Congresso Nacional, eleita p o r suas Casas na últim a sessão ordinária do período legislati vo, com atribuições definidas no regim ento com um , cuja com posi ção reproduzirá, q u an to possível, a proporcionalidade da represen tação partidária. /4s comissões parlam entares de inquérito Nos term os do § 3o do art. 58, as comissões parlamentares de inquérito (CPIs) terão poderes de investigação próprios das autori dades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respecti vas Casas, e serão criadas pela C âm ara dos D eputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerim ento de um terço de seus m em bros, para a apuração de fato determ inado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encam inhadas ao Mi nistério Público, para que prom ova a responsabilidade civil ou crim i nal dos infratores.
Criação das comissões parlamentares de inquérito As comissões parlamentares de inquérito devem ser criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separa Outra disposição sobre essa comissão encontra-se no art. 72 da Constituição Federal. Há, tam bém, no § 9o do art. 62 da Constituição Federal (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 32/2001), a previsão de criação de comissão mista de deputados e senadores cuja competência será a de "examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem aprecia das, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional". 25 Nesse caso, fala-se em "votação conclusiva" (art. 24 do Regimento Interno da Câma ra dos Deputados).
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damente. Portanto, tais comissões podem ser mistas — isto é, formadas por deputados e senadores — ou não. O requerim ento para a criação da CPI deve receber a assinatura de um terço dos m em bros da Casa Legislativa — ou das Casas — em que se pretende instalá-la. Em 1996, depois de requerida a criação da cham ada CPI dos Ban cos por mais de um terço dos m em bros do Senado, e após a indicação de mais da m etade dos parlamentares que a com poriam , o plenário daquela Casa Legislativa, por 48 votos contra 24, decidiu pelo arquiva m ento do requerim ento e extinção da CPI, por falta de indicação do fato determ inado a ser apurado (art. 58, § 3o, da Constituição Federal) e do limite das despesas a serem realizadas (art. 145, § I o, do Regimen to Interno do Senado Federal). Inconformados, dezessete senadores im petraram m an d ad o de se gurança contra o aludido ato do Senado Federal (MS 22.494/DF, rel. Min. Maurício Corrêa). O Suprem o Tribunal Federal, naquela ocasião, entendeu que o fundam ento regimental, relativo ao limite das despe sas a ser realizadas pela CPI, seria m atéria interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à apreciação do Poder judiciário. Com isso, o m andado de segurança, por maioria de votos, não foi conhecido. Em 2004, surgiu um a questão parecida. Houve o requerim ento para a instalação da cham ada CPI dos Bingos, assinado por mais de um terço dos senadores, com o prevê o art. 58, § 3o, da Constituição Fe deral, mas não ocorreu a indicação dos m em bros que a com poriam , pelos líderes partidários da base governista, levando o presidente do Senado a determ inar o arquivam ento do m encionado requerimento. Irresignados, senadores im petraram m andado de segurança con tra ato do presidente da aludida Casa Legislativa (MS 24.83l/DF, rel. Min. Celso de Mello). A discussão girava em to rn o de saber se o Supre m o Tribunal Federal reconheceria o direito de a m inoria exigir a Fisca lização dos atos do Poder Executivo, por meio da CPI, ou se a Corte Constitucional brasileira se furtaria a decidir tal questão, sob o argu m ento de que se tratava de matéria interna corporis. Os mais formalistas poderiam argumentar, com o fez o então p ro curador-geral da República, no M andado de Segurança n. 22.494-1, que a Constituição não assegura à m inoria parlam entar a possibili
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dade de criação de CPI. Permite, sim, que um terço dos m em bros de qualquer das Casas do Congresso Nacional formule requerimento para instalação da CPI. Caberia ao plenário da Casa Legislativa decidir, so beranam ente, sobre a instalação ou não da comissão. Tomada a decisão pelo plenário, tal questão política não poderia ser subm etida ao exame e decisão do Poder Judiciário, sob pena de se violar o princípio consti tucional da independência e harm onia dos poderes, previsto no art. 2o da Constituição Federal. N orberto Bobbio, lem brando Tocqueville, afirma que: (...) entre os efeitos deletérios da onipotência da maioria, estão a insta bilidade do Legislativo, a conduta freqüentemente arbitrária dos fun cionários, o conformismo das opiniões, a redução do número de homens ilustres na cena política.
E Bobbio continua explicando, ainda sob a luz dos pensam entos de Tocqueville, que: (...) a democracia, entendida como participação direta ou indireta de todos no poder político, não é por si só remédio suficiente contra a tendência a se constituírem sociedades cada vez menos livres.
E conclui dizendo que: (...) o problema político por excelência é o relativo não tanto a quem detém o poder quanto ao modo de controlá-lo e limitá-lo. 0 bom gover no não se julga pelo número grande ou pequeno dos que o possuem, mas pelo número grande ou pequeno das coisas que lhe é lícito fazer.26
John Raws,27 por seu turno, argum enta que a aplicação ilimitada da regra da m aioria é m uitas vezes considerada hostil às liberdades. Assim, há “dispositivos constitucionais que compelem a maioria a re tardar a realização de sua vontade e a obrigam a tom ar decisões mais Norberto. Liberalismo e democracia, p. 58. John. Uma teoria da justiça, p. 250 e 251.
26 Bo b b io , 27 R a w s ,
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discutidas e ponderadas. Considera-se que dessa e de outras maneiras as limitações processuais mitigam os defeitos do princípio da maioria”. E José Joaquim Gomes Canotilho28 ainda adverte que apesar de a democracia ter com o suporte inalienável o princípio da maioria, “isso não significa qualquer absolutismo da maioria’ e, m uito menos, o d o m ínio da maioria. O direito da maioria é sempre u m direito em con corrência com o direito das minorias”. Portanto, atentando para a preservação dos direitos da minoria e da oposição, sem os quais não se pode falar em verdadeira democracia, é que o Supremo Tribunal Federal, em 22 de ju n h o de 2005, afastou o com portam ento abusivo e autoritário da maioria, que se pretendia intocável, sob o argumento de que teria natureza de ato interna corporis. Assim, p o r m aioria de votos, a Suprema Corte brasileira concedeu a ordem no m andado de segurança relatado pelo m inistro Celso de Mello,29 para assegurar a efetiva composição da comissão parlam entar de inquérito. Para tanto, determ inou que o presidente do Senado Fe deral — m ediante aplicação analógica do art. 28, § I o, do Regimento Interno da Câm ara dos Deputados,30 com binado com o art. 85, caput, do Regimento Interno do Senado31 — procedesse, ele próprio, à desig nação dos nom es faltantes dos senadores que iriam com por o órgão de investigação legislativa, observando o disposto no § Io do art. 58 da Constituição da República.32 28 C a n o t i l h o ,
José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição,
p. 311.
29 Na realidade foram seis mandados de segurança com o mesmo objeto, todos relata dos pelo ministro Celso de Mello e julgados em 22 de junho de 2005 (MS 24.831, 24.845, 24.846, 24.847, 24.848 e 24.849). 30 Tal dispositivo do Regimento Interno da Câmara dos Deputados estabelece que o "Presidente fará, de ofício, a designação se, no prazo fixado, a Liderança não comunicar os nomes de sua representação para compor as Comissões, nos termos do § 3o do art. 45". 31 O art. 85, caput, do Regimento Interno do Senado Federal estabelece o seguinte: "Art. 85. Em caso de impedimento temporário de membro da comissão e não havendo suplente a convocar, o Presidente desta solicitará à Presidência da Mesa a designação de substituto, devendo a escolha recair em Senador do mesmo partido ou bloco parlamentar do substituído, salvo se os demais representantes do partido ou bloco não puderem ou não quiserem aceitar a designação". 37 O art. 58, § 1o, da Constituição Federal prevê que, na composição das comissões "é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa".
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Prazo certo e fato determinado C om o prevê o art. 58, § 3o, da Constituição Federal, a CPI deve ser criada, por prazo certo e para investigar um fato específico, não se adm itindo que tenha por objeto situações imprecisas e amplas a ser apuradas por prazo indefinido. Porém nada impede que as CPIs, apesar de limitadas à investiga ção de fatos específicos, apurem fatos conexos ou outros fatos que forem surgindo no decorrer das investigações, com o já decidiu o Su prem o Tribunal Federal:33 Por uma necessidade funcional, a comissão parlamentar de inquérito não tem poderes universais, mas limitados a fatos determinados, o que não quer dizer que não possa haver tantas comissões quantas as necessárias para realizar as investigações recomendáveis, e que outros fatos, inicial mente imprevistos, não possam ser aditados aos objetivos da comissão de inquérito, já em ação. O poder de investigar não é um fim em si mesmo, mas um poder instrumental ou ancilar relacionado com as atribuições do Poder Legislativo (Habeas Corpus n. 71.039/RJ, rel. Min. Paulo Brossard, j. 07.04.1994).
Além disso, é possível que ocorram prorrogações do prazo dos tra balhos das CPIs, p o r sucessivos aditamentos, apesar de serem elas constituídas por prazo certo, desde que não se ultrapasse o final da le gislatura, com o prevê o § 2o do art. 5o da Lei n. 1.579/5231 e assentou o Supremo Tribunal Federal:
33 Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal também entendeu que a "Co missão Parlamentar de Inquérito deve apurar fato determinado. CF, art. 58, § 3o. Todavia, não está impedida de investigar fatos que se ligam, intimamente, com o fato principal" (Habeas Corpus n. 71.231/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, j. 05.05.1994). 34 A Lei n. 1.579/52, que dispõe sobre as comissões parlamentares de inquérito, prevê, em seu art. 5o, § 2o, que a "incumbência da Comissão Parlamentar de Inquérito termina com a sessão legislativa em que tiver sido outorgada, salvo deliberação da respectiva Câmara, prorrogando-a dentro da Legislatura em curso". O Supremo Tribunal Federal, no Habeas Cor pus n. 71.231/RJ, relatado pelo ministro Carlos Velloso e julgado em 5 de maio de 1994, de cidiu que "locução 'prazo certo', inscrita no § 3o do art. 58 da Constituição, não impede prorrogações sucessivas dentro da legislatura, nos termos da Lei n. 1.579/52".
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL A duração do inquérito parlamentar — com o poder coercitivo sobre par ticulares, inerentes à sua atividade instrutória e a exposição da honra e da imagem das pessoas a desconfianças e conjecturas injuriosas — é um dos pontos de tensão dialética entre a CPI e os direitos individuais, cuja solução, pela limitação temporal do funcionamento do órgão, antes se deve entender matéria apropriada à lei do que aos regimentos: donde, a recepção do art. 5o, § 2o, da Lei n. 1.579/52, que situa, no termo final de legislatura em que constituída, o limite intransponível de duração, ao qual, com ou sem prorrogação do prazo inicialmente fixado, se há de res tringir a atividade de qualquer comissão parlamentar de inquérito (Habeas
Corpus n. 71.193/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.04.1994).
Portanto, a obrigação de criação da CPI por prazo certo não im pede a prorrogação do período de trabalho inicialmente fixado. Da m esma forma, o dever de investigar um fato determ inado não coíbe a possibilidade de apuração de fatos conexos ou outros fatos que surgi rem no desenrolar das investigações.
Poderes e limites das comissões parlamentares de inquérito A Constituição prevê que as comissões parlamentares de inquéri to têm o poder de investigação próprio das autoridades judiciárias. Assim, as CPIs, de m odo geral, estão habilitadas a produzir todos os meios de prova legítima e licitamente aceitos. Com isso, podem o u vir os investigados ou indiciados, requisitar docum entos, realizar perí cias e inquirir testemunhas — até m esm o conduzindo-as coercitivamente, se for o caso — , com o entendeu o Suprem o Tribunal Federal, quando do julgamento, em 7 de abril de 1994, do Habeas Corpus n. 71.039/RJ, relatado pelo m inistro Paulo Brossard: A comissão parlamentar de inquérito, destinada a investigar fatos rela cionados com as atribuições congressuais, tem poderes imanentes ao na tural exercício de suas atribuições, como de colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a depor; a este poder corresponde o dever de, comparecendo a pessoa perante a comissão, prestar-lhe depoimento, não podendo calar a verdade. Comete crime a testemunha que o fizer. A Constituição, art. 58, § 3o, a Lei
SEPARAÇÃO DOS PODERES n. 1.579/52, art. 4o, e a jurisprudência são nesse sentido. Também pode requisitar documentos e buscar todos os meios de provas legalmente admi tidos. Ao poder de investigar corresponde, necessariamente, a posse dos meios coercitivos adequados para o bom desempenho de suas finalidades; eles são diretos, até onde se revelam eficazes, e indiretos, quando falharem aqueles, caso em que se servirá da colaboração do aparelho judiciário.
Além disso, tais comissões podem determinar, sem a necessidade de se socorrer do Poder Judiciário, a quebra dos sigilos bancários, fis cais e de dados35 — nestes incluídos os telefônicos e telemáticos — , mas todas as decisões deverão ser, sempre, fundam entadas, sob pena de nulidade.36 A motivação dos atos decisórios das comissões parlamentares de inquérito, além de um postulado do Estado democrático de direito, decorre da previsão constitucional que exige a motivação de todas as decisões do Poder Judiciário (art. 93, IX). Se a CPI tem poderes de inves tigação próprios das autoridades judiciárias, suas decisões também devem ser fundamentadas, como a Constituição impõe ao Poder Judiciário.37 C ontudo, as comissões parlamentares de inquérito não podem im pedir a assistência jurídica (arts. 5o, LXXIV, e 133 da Constituição
35 Luis Roberto Barroso entende de modo diverso, como se nota do seguinte artigo: B a r r o s o , Luis Roberto. "Comissões parlamentares de inquérito e suas competências: política, di reito e devido processo legal". In: Revista Diálogo Jurídico, v. 1, n. 1, CAJ — Centro de Atua lização Jurídica. Disponível em http://www.direitopublico.com.br (acesso em 11 de setembro de 2005). 36A fundamentação exigida das comissões parlamentares de inquérito quanto à quebra de sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático não ganha contornos exaustivos equiparáveis à dos atos dos órgãos investidos do ofício judicante. Requer-se que constem da deli beração as razões pelas quais veio a ser determinada a medida (MS 24.749/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.09.2004). 3' Nesse sentido, conferir o julgamento do Mandado de Segurança n. 23.480/RJ, ocorri do em 4 de maio de 2000 e relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence: "Quebra ou transfe rência de sigilos bancário, fiscal e de registros telefônicos que, ainda quando se admita, em tese, susceptível de ser objeto de decreto de CPI — porque não coberta pela reserva absolu ta de jurisdição que resguarda outras garantias constitucionais — , há de ser adequadamente fundamentada: aplicação no exercício pela CPI dos poderes instrutórios das autoridades judi ciárias da exigência de motivação do art. 93, IX, da Constituição da República". No mesmo sentido, dentre muitas outras decisões, conferir as proferidas no MS 24.029/DF (rel Min. Mau rício Corrêa, j. 22.03.2002) e no MS 23.843/RJ (rel. Min. Moreira Alves, j. 10.10.2001).
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Federal), nem decretar prisão, salvo em flagrante delito (art. 5o, LXI). Tampouco pode im por medidas cautelares38 próprias da atividade do Poder Judiciário, com o a busca e apreensão39 de docum entos e a decre tação da indisponibilidade de bens dos investigados. Tratando dos limites ao poder das comissões parlamentares de in quérito, o Suprem o Tribunal Federal firm ou o seguinte en tend im en to:'10 Limitações aos poderes investigatórios da comissão parlamentar de in quérito. A Constituição da República, ao outorgar às comissões parla mentares de inquérito "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais" (art. 58, § 3o), claramente delimitou a natureza de suas atribuições institucionais, restringindo-as, unicamente, ao campo da indagação probatória, com absoluta exclusão de quaisquer outras prerro gativas que se incluem, ordinariamente, na esfera de competência dos magistrados e Tribunais, inclusive aquelas que decorrem do poder geral de cautela conferido aos juizes, como o poder de decretar a indisponibili dade dos bens pertencentes a pessoas sujeitas à investigação parlamen tar. A circunstância de os poderes investigatórios de uma CPI serem es sencialmente limitados levou a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal a advertir que as comissões parlamentares de inquérito não podem formular acusações e nem punir delitos (RDA 199/205, rel.
38 "Incompetência da comissão parlamentar de inquérito para expedir decreto de indis ponibilidade de bens de particular, que não é medida de instrução — a cujo âmbito se res tringem os poderes de autoridade judicial a elas conferidos no art. 58, § 3o — mas de provi mento cautelar de eventual sentença futura, que só pode caber ao juiz competente para proferi-la" (STF, MS 23.480/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 04.05.2000). No mesmo senti do foi a decisão proferida no Mandado de Segurança n. 23.471/DF, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 10 de novembro de 1999 e relatado pelo ministro Octávio Gallotti. 39 Não foi isso que decidiu o Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 71.039/RJ, julgado em 7 de abril de 1994 e relatado pelo ministro Paulo Brossard: "A comissão pode, em princípio, determinar buscas e apreensões, sem o que essas medidas poderiam tornar-se inócuas e quando viessem a ser executadas cairiam no vazio. Prudência, moderação e ade quação recomendáveis nessa matéria, que pode constituir o punctum dollens da comissão parlamentar de inquérito no exercício de seus poderes, que, entretanto, devem ser exercidos, sob pena da investigação tornar-se ilusória e destituída de qualquer sentido útil". 40 MS 23.452/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.1999.
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Min. Paulo Brossard), nem desrespeitar o privilégio contra a auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha (RDA 196/197, rel. Min. Celso de Mello; HC 79.244-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence), nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195, rel. Min. Celso de Mello; RDA 199/205, rel. Min. Paulo Brossard).
As comissões parlamentares de inquérito não podem ingerir-se na esfera da autonom ia estritamente individual e das entidades privadas, estando impedidas de apurar fatos relativos ao âm bito da vida privada de pessoas físicas ou jurídicas e que digam respeito a negócios jurídi cos de natureza objetivamente privada, celebrados entre particulares. Com efeito, as investigações devem se voltar a questões da adm inistra ção pública ou que tenham vínculo com atos do Poder Público e fatos relevantes para o interesse público.” Além disso, as comissões parlamentares de inquérito não têm p o deres para fiscalizar a atuação estritamente jurisdicional, ou seja, não podem , sob o pretexto de realizar qualquer investigação, imiscuir-se na
41 Nesse sentido: B a r r o s o , Luis Roberto. "Comissões Parlamentares de Inquérito e suas Competências" cit. p. 4, 5 e 24. Conferir também a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 71.039/RJ, julgado em 7 de abril de 1994 e relatado pelo minis tro Paulo Brossard: "Ao poder de investigar corresponde, necessariamente, a posse dos meios coercitivos adequados para o bom desempenho de suas finalidades; eles são diretos, até onde se revelam eficazes, e indiretos, quando falharem aqueles, caso em que se servirá da colaboração do aparelho judiciário. Os poderes congressuais, de legislar e fiscalizar, hão de estar investidos dos meios apropriados e eficazes ao seu normal desempenho. O poder de fis calizar, expresso no inc. X do art. 49 da Constituição, não pode ficar condicionado a arrimo que lhe venha a dar outro poder, ainda que, em certas circunstâncias, ele possa vir a ser necessário. A comissão parlamentar de inquérito se destina a apurar fatos relacionados com a administração, Constituição, art. 49, X, com a finalidade de conhecer situações que possam ou devam ser disciplinadas em lei, ou ainda para verificar os efeitos de determinada legis lação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Não se destina a apurar crimes nem a punilos, da competência dos Poderes Executivo e Judiciário; entretanto, se no curso de uma inves tigação, vem a deparar fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito, como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo. Constituição, art. 58, § 3o, in fine. A comissão parlamentar de inquérito tem meios para o desempenho de suas atribuições e finalidades".
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atividade jurisdicionai, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2o da Constituição Federal.42 Essas comissões devem, ainda, respeitar as chamadas cláusulas de reserva jurisdicionai, segundo as quais somente os m em bros do Poder Judiciário podem praticar determ inados atos, como, por exemplo, as hipóteses contempladas nos incs. XI e XII do art. 5o da Constituição Federal. Com base nesse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte:43 Princípio constitucional da reserva de jurisdição e quebra de sigilo por determinação da CPI. O princípio constitucional da reserva de jurisdição — que incide sobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5o, XI), de interceptação telefônica (CF, art. 5o, XII) e de decretação da prisão, ressal vada a situação de flagrância penal (CF, art. 5o, LXI) — não se estende ao tema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, e por efeito de expressa autorização dada pela própria Constituição da República (CF, art. 58, § 3o), assiste competência à comissão parlamentar de inquérito, para decre-
47 Nesse sentido, conferir, por exemplo, o Habeas Corpus n. 79.441/DF, relatado pelo mi nistro Octávio Gallotti e julgado em 15 de setembro de 2000: "Comissão Parlamentar de Inquérito. Não se mostra admissível para investigação pertinente às atribuições do Poder Judi ciário, relativas a procedimento judicial compreendido na sua atividade-fim (processo de inven tário). Art. 1o da Constituição e art. 146, b, do Regimento Interno do Senado Federal. Pedido de habeas corpus deferido, para que não seja o magistrado submetido à obrigação de prestar depoimento". A ministra Ellen Gracie, em 31 de agosto de 2005, também deferiu liminar no Habeas Corpus n. 86.581-0, consignando o seguinte: "1. A CPI dos Bingos aprovou o Requeri mento n. 116/05, do Senador Flávio Arns, para a convocação de uma juíza para prestar depoi mento. Vê-se, da justificação apresentada (fls. 11/12), que a convocação está relacionada com a atuação jurisdicionai da magistrada, que teria concedido diversas liminares à empresa GTECH, prejudicando a Caixa Econômica Federal. Daí este habeas corpus que visa impedir a inquirição, sob pena de afronta ao princípio da separação dos Poderes. É relevante a densidade jurídica da tese posta na inicial. A fiscalização da atuação jurisdicionai é incumbência do próprio Poder Judiciário. Há precedentes da Corte a respeito do tema, lembrados na inicial (fls. 6/7). 2. Tais as circunstâncias, suspendo, liminarmente, a convocação. Solicitem-se informações". Conferir também o Habeas Corpus n. 80.089/RF, relatado pelo ministro Nelson Jobim e julgado em 21 de junho de 2000, cuja ementa é a seguinte: " Habeas corpus preventivo. Comissão Parlamen tar de Inquérito. Convocação de juiz. Princípio da independência dos Poderes. Convocação de Juiz para depor em CPI da Câmara dos Deputados sobre decisão judicial, caracteriza indevida ingerência de um poder em outro. Habeas deferido". 43 MS n. 23.652/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2000.
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tar, sempre em ato necessariamente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de privacidade das pessoas. Autonomia da investigação par lamentar. O inquérito parlamentar, realizado por qualquer CPI, qualificase como procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria, circunstância esta que permite à comissão legislativa — sempre respeitados os limites inerentes à competência mate rial do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição — promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir, eventualmente, sobre aspectos refe rentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a processos judi ciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual. Doutrina. Precedente: MS 23.639-DF, rel. Min. Celso de Mello.
Assim, as CPIs podem , p o r seus próprios meios, quebrar o sigilo de dados telefônicos, desde que a decisão seja fundam entada, mas não têm o poder de determ inar a realização de interceptações telefônicas,1'1 pois essa competência foi conferida pela Constituição Federal somente ao Poder Judiciário. As comissões parlamentares de inquérito, em bora possam, por autoridade delas mesmas, ordenar a quebra dos sigilos bancário, fiscal e de dados, não podem dar, indevidamente, publicidade a esses regis tros, visto que a confidencialidade das informações sigilosas é tran s mitida aos seus depositários.45 Por fim, os abusos cometidos pelas comissões parlamentares de inquérito estão sujeitos ao controle por meio do Poder Judiciário,46 u m a vez que, nos term os do art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, não se pode excluir da apreciação deste poder a lesão ou a ameaça a direito. Foi o que decidiu o Suprem o Tribunal Federal:
44 MS n. 23.452/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.1999. 45 Nesse sentido, verificar a decisão proferida no MS 23.452/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.1999. 40 Para uma visão mais ampla do controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário, conferir S il v a F il h o , Derly Barreto. Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário.
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL Ao Supremo Federal compete exercer, originariamente, o controle jurisdicional sobre atos de comissão parlamentar de inquérito que envolvam ile galidade ou ofensa a direito individual, dado que a ele compete processar e julgar habeas corpus e mandado de segurança contra atos das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, art. 102,1, /, da Constituição, e a comissão parlamentar de inquérito procede como se fora a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal ou o Congresso Nacional.
Portanto, se realmente a CPI tem poderes amplos, isso não signifi ca dizer que tem poderes ilimitados. Assim, eventuais abusos devem ser contidos pelo Poder Judiciário. ■I
PR O CESS O LE G IS LA TIV O
O processo legislativo consiste no cam inho previsto na C onstitui ção Federal para a criação das espécies normativas previstas no art. 59. Neste ponto, será analisado o processo legislativo exigido para a elaboração das leis ordinárias, sendo que as diferenças existentes em relação à formação dos demais tipos de norm as serão analisadas, caso a caso, no próxim o tópico, que tratará, individualmente, de cada espé cie norm ativa m encionada no art. 59. |
Iniciativa
A iniciativa é o ato que faz surgir o projeto de lei, dando o primeiro passo do processo legislativo tendente a criar a espécie normativa. C o m o regra geral, a Constituição Federal prevê que os projetos de lei p o d em ser iniciados p o r qualquer m em b ro ou comissão da C âm ara dos D eputados, do Senado Federal, do Congresso Nacional ou pelo presidente da República. É a cham ada iniciativa concorrente (art. 61, caput). C ontudo, há matérias que a Constituição estabelece que somente poderão ser tratadas por meio de leis de iniciativa exclusiva de certas pessoas ou órgãos. São as denom inadas iniciativas privativas. Exem plos desse tipo de iniciativa podem ser encontrados no § I o do art. 61 ou no art. 93 da Constituição Federal. O art. 61, § Io, prevê que são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
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I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na adminis tração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organiza ção administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabili dade e aposentadoria; d) organização do Ministério Público e da Defenso ria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Fede ral e dos Territórios; e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da admi nistração pública, observado o disposto no art. 84, VI; f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.47
Os arts. 51, IV, e 52, XIII, estabelecem a iniciativa de projetos de leis da C âm ara dos D eputados e do Senado Federal, respectivamente, ao instituir a com petência privativa dessas Casas Legislativas para “dispor sobre sua organização, funcionam ento, polícia, criação, transform ação ou extinção dos cargos, em pregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva rem uneração, observados os parâm etros estabelecidos na lei de diretrizes o rç a m e n tárias”. Já o art. 93 prevê que a lei complementar que dispuser sobre o Es tatuto da Magistratura será de iniciativa do Supremo Tribunal Federal.
47 O art. 63 da Constituição estabelece que não será admitido aumento de despesa pre vista nos projetos de iniciativa exclusiva do presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, §§ 3o e 4o, nem nos projetos de organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público. Os §§ 3o e 4o do art. 166 da Constituição Federal prevêem o seguinte: "§ 3o As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: I — sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias; II — indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de des pesa, excluídas as que incidam sobre: a) dotações para pessoal e seus encargos; b) serviço da dívida; c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal; ou III — sejam relacionadas: a) com a correção de erros ou omissões; ou b) com os dispositi vos do texto do projeto de lei. § 4o As emendas ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias não poderão ser aprovadas quando incompatíveis com o plano plurianual".
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Com isso pretende-se dizer que, por exemplo, se u m parlam entar ou um a comissão do Senado ou da Câm ara propuser um projeto de lei para cuidar dos assuntos que somente podem ser tratados por projeto de lei de iniciativa privativa do presidente da República, haverá um a inconstitucionalidade formal que poderá ser declarada pelo Poder Ju diciário pela via de ação direta ou pela via de exceção, com o se viu a n teriorm ente quando da análise do controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Aliás, se um projeto de lei for de iniciativa privativa do presidente da República, mas outra pessoa deflagrar o processo legislativo, a in constitucionalidade formal persiste mesmo se o presidente, ao fim da tramitação do projeto, manifestar sua aquiescência com o texto aprova do, apondo sua sanção. Em outras palavras, a concordância do presi dente da República — por meio da sanção — com um projeto de lei de sua iniciativa privativa, porém iniciado por outra pessoa, não tem o condão de sanar o vício de iniciativa ocorrido. Mas nem sempre foi esse o entendim ento do Suprem o Tribunal Federal. D urante a vigência da Constituição de 1946, em 13 de dezem bro de 1963, a Suprem a Corte brasileira, por meio da Súmula n. 5, pacificou o seguinte entendim ento: “A sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo”. Já sob a égide da Constituição de 1967, com a Emenda n. 1/69, o Suprem o Tribunal Federal alterou seu posicionam ento e, no julga m ento da Representação n. 890/GB, em 27 de abril de 1974, relatada pelo m inistro Oswaldo Trigueiro, ficou decidido que a “sanção não supre a falta de iniciativa”.'18 Por fim, a Constituição Federal — prestigiando o princípio de que todo o poder em ana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (art. I o, parágrafo único) — criou a possibili dade de um projeto de lei ser proposto pela população. É a cham ada iniciativa popular, segundo a qual o projeto de lei pode ser apresenta do à C âm ara dos Deputados, desde que subscrito por, no mínim o, 1%
48 Sobre esta questão, conferir F e r r e ir a F il h o , Manoel Gonçalves. Do processo legislati vo, p. 214 e segs.; e M o r a e s , Alexandre de. Direito constitucional, p. 576.
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do eleitorado nacional, distribuído pelo m enos p o r cinco estados, com não m enos de 0,3% dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2o).
Deliberações do Congresso Nacional Dado início ao projeto de lei, ele terá de ser aprovado pelas duas Casas antes de ser encam inhado ao presidente da República para san ção ou veto. A Casa Legislativa em que o projeto começa a tram itar é a cham a da Casa Iniciadora. Por outro lado, a Casa Parlamentar que apreciará o projeto aprovado pela Casa Iniciadora é a denom inada Casa Revisora. C om o regra geral, a C âm ara dos Deputados é a Casa Iniciadora e o Senado Federal, a Casa Revisora. A situação se inverte nas hipóteses em que o projeto de lei é proposto por senadores ou por comissões do Senado, quando, então, a Casa Iniciadora será o Senado Federal e a Ca sa Revisora será a C âm ara dos Deputados. Assim, os projetos de lei de iniciativa dos deputados federais, das comissões da Câm ara dos Deputados, do presidente da República, do Supremo Tribunal Federal, dos demais Tribunais Superiores e os p ro jetos de iniciativa popular terão início na C âm ara dos Deputados, sen do esta, portanto, a Casa Iniciadora (arts. 61, § Io, e 64, caput). Nos term os do art. 142 do Regimento C o m u m do Congresso N a cional, os “projetos elaborados por Comissão Mista serão encam inha dos, alternadamente, ao Senado e à Câm ara dos D eputados”. Proposto o projeto, a Casa Iniciadora irá discuti-lo e votá-lo. E antes de ir a plenário, o projeto passará pelas comissões parlamentares que estudarão e examinarão as proposições legislativas, apresentando pareceres. Convém lembrar que os projetos devem passar pelas comissões que analisam as matérias tratadas no texto proposto, bem com o na Com is são de Constituição e Justiça, que apreciará a constitucionalidade do projeto, realizando um dos tipos de controle prévio da constitucionali dade, com o se viu no item sobre controle da constitucionalidade. Na fase de tram itação do projeto no Parlamento é possível a reali zação de propostas de alteração do texto do proposto. Isso se faz por meio de em endas supressivas, aglutinativas, substantivas, modificativas ou aditivas.
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Conforme as definições apresentadas pelo art. 118 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, as emendas supressivas são as que erradicam qualquer parte de outra proposição. Já as emendas aglutinativas resultam da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por tran sação tendente à aproximação dos respectivos objetos. As emendas substi tutivas são apresentadas com o objetivo de substituir parte de outra proposição. Denomina-se substitutivo quando a emenda altera, subs tancial e formalmente, em seu conjunto, a proposição. Emendas modificativas são as que alteram a proposição sem modificá-la substancialmente. E as emendas aditivas são as que se acrescentam a outra proposição. Denomina-se subemenda a em enda apresentada em comissão a outra em enda e que pode ser, por sua vez, supressiva, substitutiva ou aditiva, desde que não incida, a supressiva, sobre em enda com a mesma finalidade. Por fim, em enda de redação é a em enda modificativa que visa a sanar vício de linguagem, incorreção técnica legislativa ou lapso manifesto. Em seguida, o projeto deve ser encam inhado ao plenário, onde será subm etido à votação para saber se foi aprovado ou rejeitado. Vale lem brar que às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe votar o projeto de lei que dispensar, na form a do regimento, a competência do plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos m em bros da Casa (art. 58, § 2o, I). A aprovação ou rejeição do projeto é verificada com base no quo rum exigido constitucionalmente para cada espécie normativa. Se o projeto for rejeitado, ele será arquivado, sendo certo que a matéria constante dele não poderá constituir objeto de novo projeto na mesma sessão legislativa, exceto se o novo projeto sobre o mesmo tem a for proposto pela maioria absoluta dos m em bros de qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 67 da Constituição Federal). Esse postulado, que consagra a irrepetibilidade dos projetos rejeita dos na mesma sessão legislativa, busca racionalizar o processo legisla tivo, evitando que o Parlamento, seguida e reiteradamente, seja obrigado a se manifestar sobre matéria por ele já rejeitada. Se o desrespeito à regra da irrepetibilidade dos projetos rejeitados se der por ato do presidente da República, haverá evidente violação ao princípio da separação dos poderes.
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No entanto, sobre essa questão, o Suprem o Tribunal Federal deci diu que é possível a “apresentação de projeto de lei, pelo presidente da República, no início do ano seguinte àquele em que se deu a rejeição parlam entar”, quando o Congresso Nacional estiver reunido extraordi nariam ente:49 A norma inscrita no art. 67 da Constituição — que consagra o postulado da irrepetibilidade dos projetos rejeitados na mesma sessão legislativa — não impede o Presidente da República de submeter, à apreciação do Con gresso Nacional, reunido em convocação extraordinária (CF, art. 57, § 6o, II), projeto de lei versando, total ou parcialmente, a mesma matéria que constituiu objeto de medida provisória rejeitada pelo Parlamento, em sessão legislativa realizada no ano anterior.
Caso o projeto seja aprovado na Casa Iniciadora, segue para a Casa Revisora, onde tam bém deverá ser discutido e votado, passando primei ramente pelas comissões para, então, ir a plenário (art. 65, caput). A aprovação do projeto se configura pelo fato de se alcançar o n ú m ero de votos favoráveis ao projeto suficiente para atingir o quorum exigido constitucionalmente para aprovação. Com o no presente caso está se analisando o processo legislativo para a criação de um a lei ordinária, o quorum exigido é o de maioria simples (art. 47), ou seja, mais da metade dos votos dos parlamentares presentes na sessão, desde que a sessão tenha sido aberta com mais da metade dos parlamentares que com põem a Casa. Por outro lado, se o quorum exigi do não for atingido, considera-se que o projeto foi rejeitado. A título de exemplo, pode-se dizer que, se um projeto de lei ordinária, em tramitação na Câmara dos Deputados, for colocado em votação com o núm ero mínim o de presentes na sessão — ou seja, 257 dos 513 deputa dos que compõem a Casa Legislativa — , ele será considerado aprovado se 129 congressistas disserem sim à proposição, mas será rejeitada a propos ta se um núm ero de deputados inferior a esse votar a favor do projeto. Voltando à tram itação do projeto de lei: se o projeto for aprova do na Casa Iniciadora, ele deverá ser revisto pela o u tra Casa do C o n
49 Medida Cautelar na ADIn n. 2.01 O/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 30.09.1999.
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gresso Nacional, em um só tu r n o de discussão e votação (art. 65, caput). Se, na Casa Revisora, o projeto for rejeitado, será arquivado (art. 65, caput), aplicando-se, tam bém nessa hipótese, o art. 67 da Constituição Federal, que diz o seguinte: a “matéria constante de projeto de lei re jeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos m em bros de qualquer das Casas do Congresso Nacional”. Mas ainda podem acontecer duas outras hipóteses na Casa Revi sora: a aprovação do projeto encam inhado pela Casa Iniciadora sem alterações ou a aprovação com alterações. Ocorrendo alterações na Casa Revisora, o projeto deve retornar à Casa Iniciadora para que apenas as modificações introduzidas sejam analisadas, sendo, então, aprovadas ou rejeitadas. Nesse caso, prevalecerá a vontade da Casa Iniciadora. Com efeito, ao apreciar as emendas feitas pela Casa Revisora, a Casa Iniciadora dirá se concorda ou discorda das alterações propostas, não podendo modificá-las. Se a Casa Iniciadora aceitar as mudanças, o texto final do projeto será o modificado pela Casa Revisora. No entanto, se a Casa Iniciadora rejeitar as alterações feitas pela outra Casa Parlamentar, prevalecerá o texto originalmente propos to, sem as emendas introduzidas pela Casa Revisora. Em seguida, o pro jeto segue para o Presidente da República, para sanção ou veto. Se a Casa Revisora aprovar, sem alterações, o projeto enviado pela Casa Iniciadora, passa-se à fase das deliberações do chefe do Poder Executivo. Antes de analisar os pontos relativos às deliberações executivas, vale lembrar que, via de regra, os projetos de lei não têm prazo para que sejam votados. Todavia, o presidente da República, nos projetos de sua iniciativa, poderá solicitar urgência na apreciação da proposta (art. 64, § I o).50 C om isso, o projeto passa a tram itar em regime de urgência.
“ O presidente da República pode solicitar urgência na tramitação do projeto de sua ini ciativa tanto no momento em que formular a proposição quanto em qualquer momento de tramitação da proposta. Contudo, neste último caso, os prazos para apreciação do projeto começarão a fluir a partir do momento em que o presidente da República fizer a solicitação de urgência.
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Se o projeto estiver tram itand o em regime de urgência, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal deverão se manifestar sobre a p ro posição, cada qual sucessivamente, em até 45 dias, sob pena de serem sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa — com exceção das que tenham prazo constitucional determ inado, como as relativas a medidas provisórias (art. 62, caput e parágrafos) — , até que se ultime a votação (art. 64, § 2o). Ainda na hipótese de projeto de lei que esteja tram itando em re gime de urgência, a Constituição Federal estabelece que a apreciação das em endas do Senado Federal pela C âm ara dos Deputados deverá ocorrer no prazo de dez dias (art. 64, § 3o). Assim, a fase de deliberação de um projeto de lei que tramita em regime de urgência deve se ultimar no prazo m áxim o de cem dias. Caso os prazos estabelecidos nos §§ 2o e 3o do art. 64 da Constituição Fede ral não sejam obedecidos, a pauta de votação deverá ficar trancada até que se ultime a votação do projeto urgente, exceções feitas às delibe rações parlamentares que tenham prazo constitucional determinado.
Deliberação do chefe do Poder Executivo Terminada a fase de deliberação legislativa com a aprovação do projeto de lei em ambas as Casas do Congresso Nacional, ele deve ser encam inhado ao presidente da República para que este manifeste sua concordância ou sua discordância em relação ao projeto. A aquiescência do chefe do Poder Executivo com o projeto de lei enviado a ele pela Casa Legislativa na qual foi concluída a votação se dá p o r meio da sanção (art. 66, caput). A sanção pode ser expressa ou tácita, isto é, o presidente da República pode explicitamente exarar sua aquiescência ao projeto — quando ocor rerá a sanção expressa — ou, passados quinze dias úteis sem a manifes tação explícita do chefe do Executivo, seu silêncio importará sanção (nesse caso, tácita), conforme previsão do art. 66, § 3o, da Constituição Federal. Sancionado o projeto, deverá ocorrer, com o será visto, a p ro m u l gação e a publicação da lei. Mas, ao receber o projeto de lei que lhe foi encam inhado pelo Le gislativo, o presidente da República poderá discordar dele, no todo ou em parte, ocasião em que deverá vetá-lo (art. 66, § Io).
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O veto, diferentemente da sanção, deve ser sempre expresso e m o tivado. Nem poderia ser diferente, pois o silêncio do presidente da Re pública significa que ele concordou com o projeto, dando-se, então, a sanção. Portanto, o veto deve ocorrer em até quinze dias úteis, contados da data em que o presidente da República recebeu o projeto de lei da Casa Legislativa que concluiu a votação. Com o se afirmou, o veto deve ser motivado, sendo certo que as ra zões da discordância do presidente da República em relação ao projeto de lei que lhe foi encam inhado podem ser de dois tipos: o chefe do Po der Executivo pode entender que o projeto é inconstitucional (quando ocorrerá o denom inado veto jurídico) ou contrário ao interesse públi co (nessa hipótese, dar-se-á o cham ado veto político), ou, ainda, pode entender que o projeto deve ser vetado por am bos os motivos. A motivação do veto é imprescindível, pois, com ela, o Congresso Nacional, ao apreciar o veto, poderá se convencer ou não dos motivos que levaram o presidente da República a discordar do projeto. É im portante m encionar que o veto pode ser total ou parcial, ou seja, o presidente da República pode discordar de toda a proposição ou de apenas parte do projeto de lei. C ontudo, o veto parcial somente poderá abranger texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea (art. 66, § 2o), evitando-se, assim, que o presidente da República, p o r meio do veto, crie algo novo com a supressão de u m a palavra ou de um a expressão. Com efeito, o veto contempla a noção de eliminação, supressão, exclusão do texto do projeto de lei, jamais de acréscimo ou adição. Com a previsão do art. 66, § 2o, da Constituição Federal, impede-se, por exemplo, que um projeto que determinava um a proibição passe a determinar, com o veto, um a permissão, com o na hipótese de esta belecer que “não é perm itido praticar o ato X” e, com o veto da palavra “não”, passar a ter a seguinte redação: “é perm itido praticar o ato X”. Proíbe-se, tam bém , que um texto que previa que “esta lei entrará em vigor 120 dias após sua publicação” entre em vigor na própria data da publicação, com o veto das palavras “ 120 dias”. C um pre esclarecer que o veto é superável, ou seja, pode ser rejeita do pelo Congresso Nacional.
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Isso ocorre um a vez que o veto e seus motivos devem ser encam i nhados ao Congresso Nacional, que o apreciará, em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, podendo o Legisla tivo aceitar ou não o veto levado a efeito pelo presidente da República (art. 66, § 4o). Esgotado o prazo de trinta dias, sem deliberação pelo Congresso Nacional, o veto será colocado para apreciação na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua vo tação final (art. 66, § 6o). O veto será considerado rejeitado — m antendo-se, portanto, o texto original, anteriorm ente enviado pelo Congresso Nacional ao presidente da República — somente pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores, em votação secreta (art. 66, § 4o). Portanto, para d errubar o veto, mais da m etade dos m em bros da C âm ara dos Deputados e do Senado Federal devem se manifestar contra o texto do projeto, ou de parte dele, pelo chefe do Poder Executivo. D errubado o veto, o projeto deverá ser enviado ao presidente da República para prom ulgação (art. 66, § 5o). Mas, se a lei não for p ro mulgada em 48 horas pelo chefe do Poder Executivo, o presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao vice-presidente do Senado fazê-lo (art. 66, § 7o). Vale lem brar que a promulgação, o próxim o ato do processo legis lativo, é o ato que atesta a existência e a autenticidade da lei, co n ferindo a ela presunção relativa de constitucionalidade. E a publicação dá notoriedade à lei e a to rn a obrigatória, infor m an d o a todos sua existência e seu conteúdo. A partir da veiculação da lei no Diário Oficial ninguém mais pode alegar seu desconheci mento. H
ESPECIES NORMATIVAS
As espécies norm ativas são os tipos de regras prim árias que criam direitos e obrigações e derivam diretam ente da C onstituição Federal. Elas estão previstas no art. 59 da C onstituição Federal e são as seguintes: em endas à Constituição, leis com plem entares, leis ordinárias, leis delegadas, m edidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
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Emenda à Constituição
Já se tratou das emendas à Constituição quando foi analisado o p o der constituinte reformador, visto que essa espécie normativa é o instru mento por meio do qual a reforma da Constituição é levada a efeito. Portanto, ao se criar um a em enda à Constituição, o texto consti tucional estará sendo alterado, de m o d o que nele se acrescente, retire ou modifique alguma ou algumas disposições. C ontudo, as em endas à Constituição sofrem limites de ordem m a terial, formal e circunstancial. Os limites materiais dizem respeito ao assunto, ao tema, à matéria constitucional que não poderá ser objeto de modificação. Essas m até rias form am o núcleo imutável da Constituição e são chamadas de cláusulas pétreas, previstas nos incs. I a IV do § 4o do art. 60 da C ons tituição Federal. Pergunta-se, nesse caso, o que não pode ser alterado por meio de em endas à Constituição. Assim, não podem ser objeto de deliberação as propostas de em en da à Constituição tendentes a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, periódico e universal; a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4o, I a IV). Os limites formais são aqueles relativos ao procedim ento exigido pela Constituição para que ocorra sua própria alteração. A pergunta, aqui, é a seguinte: com o se altera a Constituição? A modificação da Constituição som ente poderá acontecer se forem obedecidas as for mas, os procedimentos, os ritos previstos na própria Lei Maior, que diferem dos procedim entos para a aprovação da legislação ordinária. Portanto, as emendas à Constituição somente podem ser p ropos tas pelo presidente da República; por um terço, no m ínim o, dos m e m bros da Câm ara dos Deputados ou do Senado Federal; ou p o r mais da m etade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, m an i festando-se, cada um a delas, pela maioria relativa de seus m em bros (art. 6 0 , 1 a III). Proposta a em enda à Constituição, ela será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos m em bros (art. 60, § 2o).
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Com a aprovação pelo Congresso Nacional do projeto de em enda à Constituição, ela será prom ulgada pelas Mesas da C âm ara dos D epu tados e do Senado Federal, com o respectivo n ú m ero de ordem (art. 60, § 3o). A matéria constante de proposta de em enda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma ses são legislativa (art. 60, § 5o), ou seja, no m esm o intervalo de tem po anual de reunião do Congresso Nacional, previsto art. 57, caput, da Constituição Federal. Por fim, os limites circunstanciais são aqueles previstos no art. 60, § Io, da Constituição Federal e dizem respeito ao fato de que a Consti tuição Federal não poderá ser em endada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Nesse caso, questiona-se o seguinte: quando não se pode alterar a Constituição? A resposta está no referido art. 60, § I o. |
Lei complementar
Inicialmente, convém esclarecer que o critério que diferencia a lei com plem entar das demais espécies normativas não é o fato de que ela “com plem enta” a Constituição — com o se poderia imaginar e como geralmente as pessoas que não lidam com o direito m encionam — , pois outras espécies normativas, como, por exemplo, as leis ordinárias e as medidas provisórias, tam bém “com plem entam ” a Constituição. A lei complementar é um a espécie normativa primária, que busca seu fundamento de validade diretamente na Constituição. Assim, a Cons tituição da República dirá qual o conteúdo que as leis complementares podem ter e como essa espécie normativa deverá ser elaborada. Basicamente, duas características identificam a lei complementar: o quorum para sua aprovação pelo Congresso Nacional e a matéria que a Constituição reserva a ela. O quorum para a aprovação da lei com plem entar é o de maioria absoluta (art. 69), ou seja, mais da m etade dos m em bros do Congres so Nacional. Portanto, considera-se aprovada u m a lei com plem entar se ela alcançar, na C âm ara dos Deputados e no Senado Federal, em um único tu rn o de votação em cada Casa, mais da metade dos votos dos m em bros que a com põem .
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Q u an do a Constituição Federal exigir que determ inada matéria seja regulamentada p o r lei complementar, deverá dizê-lo expressa mente.51 O u seja, se um a previsão constitucional não contiver menção expressa sobre a exigência de que aquele dispositivo deva ser regulado por lei complementar, significa que ele pode ser tratado por o u tra es pécie norm ativa que a Constituição exige para sua aprovação — quo rum de maioria simples (art. 47). | Lei ordinária A lei ordinária tam bém é um tipo de n o rm a prim ária, que encon tra fundam ento de validade diretam ente na Constituição Federal. As duas características fundam entais da lei ordinária dizem res peito ao quorum para sua aprovação e às matérias que serão tratadas por ela. O quorum para a aprovação da lei ordinária é o de maioria sim ples, ou seja, considera-se aprovada um a lei ordinária se mais da m eta de dos presentes na sessão — desde que abertos os trabalhos com mais da metade dos m em bros da Casa Legislativa — votar a favor do proje to (art. 47 da Constituição Federal). Convém lem brar que u m projeto de lei ordinária é considerado aprovado se alcançar o quorum de maioria simples nas duas Casas do Congresso Nacional (Câm ara dos Deputados e Senado Federal) em um único tu rn o de votação em cada Casa. Os temas a serem tratados por lei ordinária são todos aqueles que a Constituição Federal não menciona que devam ser regulados por lei complementar. Assim, quando a Constituição reclama a criação de lei ordinária para disciplinar algum de seus dispositivos, ou ela não faz menção ao tipo de norm a que deve regulamentar aquela previsão cons titucional, ou contempla expressões com o as seguintes: “qualificações que a lei estabelecer” (art. 5o, XIII); “a lei estabelecerá o procedim ento” 51 Exemplos de dispositivos constitucionais que exigem sua regulamentação por meio de lei complementar: art. 14, § 9o ("Lei complementar estabelecerá"); art. 93 ("Lei complemen tar... disporá"); art. 131 ("nos termos da lei complementar que dispuser"); art. 134, parágra fo único ("Lei complementar organizará"); art. 146 ("Cabe à lei complementar"); art. 148 ("A União, mediante lei complementar, poderá instituir"); art. 202, caput ("regulado por lei complementar").
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(art. 5o, XXIV); “a lei punirá” (art. 5o, XLI); “nos termos da lei” (arts. 5o, XLII, e 201); “a lei regulará” (arts. 5o, XLVI, e 90, § 2o); “fixado em lei” (art. 7o, IV); “na form a da lei” (art. 17, § 3o); “a lei disporá” (art. 88); “nos limites da lei” (art. 133). Com base no que foi dito, percebe-se que a aprovação das leis o r dinárias ocorre por um procedim ento mais fácil do que o previsto para a criação das leis complementares, pois, enquanto a Constituição exige quorum de m aioria absoluta para este últim o tipo de n o rm a (lei com plem entar), reclama quorum de maioria relativa para aquela espécie norm ativa (lei ordinária). Sem dúvida, isso significa que a Constituição deu um a relevância política m aior às matérias que devem ser tratadas por leis co m plementares, se com paradas aos temas a serem regulados por leis ordinárias. Mas isso não autoriza dizer que as leis com plem entares são, do ponto de vista jurídico-formal, hierarquicam ente superiores às leis o r dinárias,52 pois a hierarquia jurídico-formal implica reconhecer que a n orm a superior dá fundam ento de validade à norm a inferior, im p o n do a m aneira de sua criação e o conteúdo que deve ter. E, no caso das leis com plem entares e ordinárias, isso não acontece, porque ambas encontram fundam ento de validade na Constituição Federal e não tratam das mesmas matérias, salvo raríssimas exceções.53 | Lei delegada As leis delegadas são as espécies norm ativas elaboradas pelo presi dente da República, mediante solicitação dele ao Congresso Nacional (art. 68, caput, da Constituição Federal). 52 Nesse sentido, conferir, entre outros, T e m e r , Michel. Elementos de direito constitucional. p. 146 e 147. Discordam dessa posição e, portanto, apontam a superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária, entre outros, Fe r r e ir a F il h o , Manoel Gonçalves. Do processo legislativo, p. 243; e M o r a e s , Alexandre de. Direito constitucional, p. 595 e 596. s3 Uma exceção pode ser encontrada, por exemplo, na disposição do parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, segundo o qual uma lei complementar deve dispor sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Outro exemplo é dado por Alexan dre de Moraes (in; Direito constitucional, p. 596): confrontando o parágrafo único do art. 79 e os arts. 8 9 ,1, e 90, § 2°, podem surgir disposições conflitantes sobre algumas atividades do vice-presidente da República.
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Contudo, a delegação não constitui um a transmissão ilimitada de poderes do Legislativo ao Executivo, pois, se o Congresso Nacional aco lher a solicitação do presidente da República, fará a delegação espe cificando seu conteúdo e os term os do seu exercício (art. 68, § 2o). Ademais, a Constituição Federal (art. 68, § Io), desde logo, impede que o Congresso Nacional autorize o presidente da República a editar lei delegada sobre os seguintes objetos: atos de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49); atos de competência privativa da Câm ara dos Deputados e do Senado Federal (arts. 51 e 52); matéria reservada à lei com plem entar; legislação sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus m e m bros; legislação sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. Por fim, o Congresso Nacional tem a prerrogativa de perm itir que o presidente da República edite a lei delegada, sem que ela seja apre ciada pelo Legislativo, antes de entrar em vigor, ou, p o r o u tro lado, pode exigir a apreciação do projeto pelo próprio Congresso Nacional, sendo que, neste caso, a análise do projeto será feita em votação única, não se p erm itin do n e n h u m a em enda, ou seja, ou o Poder Legislativo aprova integralm ente o projeto de lei delegada encam inhado pelo Poder Executivo ou o rejeita inteiram ente, não p o d en d o alterá-lo (art. 68, § 3o). Tal espécie norm ativa tem sido m uito pouco utilizada, principal m ente em razão de a Constituição Federal ter conferido ao presidente da República a possibilidade de editar medidas provisórias com força de lei, sem que se exija dele a solicitação a quem quer que seja.54
54 Segundo o site da Presidência da República (www.planalto.gov.br), consultado em setembro de 2005, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, somente duas leis delegadas foram editadas: a Lei Delegada n. 12, de 7 de agosto de 1992, que dispôs sobre a instituição de gratificação de atividade militar para os servidores militares federais das Forças Armadas; e a Lei Delegada n. 13, de 27 de agosto de 1992, que instituiu grati ficações de atividade para os servidores civis do Poder Executivo, reviu vantagens e deu ou tras providências. Antes disso, outras onze leis delegadas tinham sido editadas, todas no ano de 1962.
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Decreto legjslativo ejresolução A rigor, os decretos legislativos são espécies normativas que teriam a função de tratar das matérias de competência exclusiva do Congres so Nacional (art. 49),55 enquanto as resoluções, via de regra, discipli nariam as matérias de competência privativa da C âm ara dos D eputa dos (art. 51) e do Senado Federal (art. 52). Na realidade, essas espécies normativas primárias não têm um a disciplina rigidamente sistematizada na Constituição.56 Assim, em de term inadas situações, a Constituição Federal estabelece, por exemplo, que certa matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional deve ser tratada por decreto legislativo (por exemplo, o § 3o do art. 62) e, em outras, por resolução (por exemplo, o § 2o do art. 68). Detalhes sobre quando um a ou outra espécie norm ativa deve ser utilizada encontram -se nos Regimentos Internos das Casas Legislativas ou do próprio Congresso Nacional. Certo é que o presidente da República não tem competência para sancionar ou vetar os projetos de decretos legislativos e de resoluções (art. 48, caput); tam pouco tem o poder de prom ulgar e fazer publicar tais espécies normativas. São tipos de norm as instruídas, discutidas, votadas, aprovadas e promulgadas no âm bito interno do Congresso Nacional ou de u m a de suas Casas. Via de regra, a iniciativa de projetos de decretos legislativos e de resoluções é de competência interna do próprio Parlamento, mas há hipóteses em que a iniciativa é do presidente da República, como, por exemplo, no caso de autorização para o chefe do Poder Executivo: (a) declarar guerra, celebrar a paz e perm itir que forças estrangeiras tra n sitem no território nacional ou nele perm aneçam tem porariam ente (art. 4 9 , 1); (b) se ausentar do país, q u and o a ausência exceder a quinze dias (art. 49, III); (c) elaborar leis delegadas (art. 68, caput).57
55 Nesse sentido. F e r r e ir a F il h o , Manoel Gonçalves. Do processo legislativo cit. p. 199. 55 A imprecisão no uso dos termos "decretos legislativos" e "resoluções" na história constitucional brasileira é lembrada por S a m p a i o , Nelson de Sousa. O processo legislativo, p. 91 e 92. S7 Nesse sentido, S a m p a io , Nelson de Sousa. O processo legislativo, p. 140.
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Assim, quando o Congresso Nacional ou qualquer de suas Casas pretende disciplinar as matérias previstas nos arts. 49, 51 e 52, deve fazê-lo p o r meio de decretos legislativos ou resoluções, conforme exigência da própria Constituição Federal ou dos Regimentos Internos do Congresso Nacional, do Senado Federal ou da C âm ara dos D epu tados, sem que o presidente da República participe da sanção, do veto, da promulgação e da publicação de tais espécies normativas. Convém, ainda, esclarecer que a espécie norm ativa cham ada de creto legislativo não se confunde com o antigo decreto-lei — atual m ente inexistente no o rd en a m en to constitucional brasileiro, com o se verá adiante, q u an d o forem analisadas as m edidas provisórias — , nem com o decreto, tipo de n o rm a cuja edição é de com petência do chefe do Poder Executivo e tem a função de: (a) dar fiel execução à lei (art. 84, IV); (b) dispor sobre a organização e fu ncion am ento da adm inistração federal, q u a n d o não implicar au m en to de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (art. 84, VI, a); (c) dis p o r sobre a extinção de funções ou cargos públicos, q u a n d o vagos (art. 84, VI, b). | Medida provisória Breve histórico A Constituição brasileira de 1967, com a Emenda n. 1/69, outorga da pelo regime militar, previa um a espécie normativa chamada decretolei, que foi extinta e “substituída” pelas medidas provisórias, quando da prom ulgação da Constituição Federal de 1988. Na vigência da Constituição de 1967, o presidente da República podia editar decreto-lei sobre alguns assuntos, no caso de relevância ou urgência, com prazo de sessenta dias, subm etendo-o ao Congresso Nacional. Caso o Poder Legislativo não apreciasse o decreto-lei no p ra zo m encionado, ele era considerado aprovado p o r decurso de prazo. Assim, o silêncio do Congresso Nacional significava sua concordância com o decreto-lei editado pelo presidente da República.58 58 O art. 58 da Constituição de 1967 tinha a seguinte redação: "Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não
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Procurando m anter a possibilidade de o Poder Executivo editar espécies normativas primárias, de maneira rápida, em situações excep cionais, a Constituição de 1988 substituiu o decreto-lei pela medida provisória, estabelecendo que, em caso de relevância e urgência, o presi dente da República poderia editar essa espécie normativa, com força de lei, subm etendo-a imediatamente ao Congresso Nacional, que, em trin ta dias, deveria apreciá-la. Se a medida provisória não fosse convertida em lei no prazo assinalado, perderia a eficácia desde a edição.59 Todavia, essas previsões constitucionais permitiram expressivos abu sos por parte dos sucessivos chefes do Poder Executivo — que passaram a editar e reeditar medidas provisórias sobre as mais diversas matérias — , sem que houvesse objeção significativa do Legislativo e do Judiciário.60 resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias: I — segurança nacional; II — finanças públicas. Parágrafo único. Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação o texto será tido como aprovado". A Constituição do Estado Novo, outorgada em 1937, conheci da como Polaca, previa a possibilidade de edição de decretos-leis, mas com perfil bastante diferente: "Art. 12.0 Presidente da República pode ser autorizado pelo Parlamento a expe dir decretos-leis, mediante as condições e nos limites fixados pelo ato de autorização. Art. 13. 0 Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decre tos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes: a) modificações à Constituição; b) legislação eleitoral; c) orçamento; d) impostos; e) institui ção de monopólios; f) moeda; g) empréstimos públicos; h) alienação e oneração de bens imóveis da União. Parágrafo único. Os decretos-leis para serem expedidos dependem de parecer do Conselho da Economia Nacional, nas matérias da sua competência consultiva. Art 14. 0 Presidente da República, observadas as disposições constitucionais e nos limites das respectivas dotações orçamentárias, poderá expedir livremente decretos-leis sobre a organização do Governo e da Administração federal, o comando supremo e a organização das forças armadas". 59 As previsões constitucionais brasileiras parecem ter sido inspiradas no art. 77 da Cons tituição italiana do pós-guerra: "0 Governo não poderá, sem delegação das Câmaras, editar decretos que tenham força de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e de urgência, o Governo adotar, sob sua responsabilidade, medidas provisórias com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para sua conversão às Câmaras, as quais, inclusive quando não estiverem reunidas, serão devidamente convocadas e se reunirão dentro dos cinco dias seguintes. Os decretos perderão eficácia desde o início se não forem convertidos em lei dentro dos sessenta dias de sua publicação. As Câmaras poderão, no entanto, regular por lei as relações jurídicas surgidas em virtude dos decretos que não foram convertidos." M Segundo estatística da Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República — publicada no site www.planalto.gov.br e consultada em setembro de 2005 — ,
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Na prática, as medidas provisórias revelaram-se um instrum ento tão ou mais autoritário do que o antigo decreto-lei, conferindo, ao presidente da República, efetivos e regulares poderes legislativos. Com vistas a restringir, definitivamente, a utilização das medidas provisórias, dando um perfil bastante detalhado dessa espécie n o rm a tiva, o art. 62 da Constituição Federal foi alterado pela Em enda C ons titucional n. 32, de 11 de setembro de 2001. Os requisitos “relevância” e “urgência" Com a Em enda n. 32/2001 foram m antidos os requisitos de rele vância e urgência para que o presidente da República tenha autoriza ção para editar as medidas provisórias (art. 62, caput). Não existe nenhum parâm etro constitucional para aferir a presen ça ou não da relevância para a adoção da medida provisória. Assim, a prim eira apreciação do que é ou não relevante cabe ao presidente da República, autoridade competente para editar o aludido ato normativo. Em seguida — u m a vez que a m edida provisória deve ser imedia tam ente submetida ao Poder Legislativo (art. 62, caput) — , cabe a cada um a das Casas do Congresso Nacional, antes da deliberação sobre o mérito da m edida provisória, verificar se houve atendim ento aos pres supostos constitucionais para sua edição, dentre os quais a relevância (art. 62, § 5o). Q uanto à urgência, a análise da presença desse requisito tam bém compete prim eiram ente ao presidente da República e, em seguida, ao Congresso Nacional, conforme exposto anteriorm ente. O Poder Judiciário, se provocado, tam bém deve apreciar a pre sença ou não dos requisitos constitucionais para a edição das medidas provisórias, com o decidiu o Suprem o Tribunal Federal, em 4 de abril de 2002, ao julgar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitu cionalidade n. 2.213-0/DF, relatada pelo m inistro Celso de Mello: entre a promulgação da Constituição de 1988 e a aprovação, em 11 de setembro de 2001, da Emenda Constitucional n. 32, que alterou a disciplina das medidas provisórias, tinham ocorri do, em média, por mês: a edição de 3,97 medidas provisórias; a reedição de 26,1; a conver são em lei de 2,79 medidas provisórias; a revogação de 0,16; a perda da eficácia de 0,24 e a rejeição de 0,16. É espantosa a constatação de que, em todo esse período de mais de dez anos, tenha sido editada ou reeditada aproximadamente uma medida provisória por dia.
SEPARAÇÃO DOS PODERES Possibilidade de controle jurisdicionai dos pressupostos constitucionais (urgência e relevância) que condicionam a edição de medidas provisórias. A edição de medidas provisórias, pelo presidente da República, para le gitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, caput). Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo ex pondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do presidente da Repú blica, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disci plina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. Doutrina. Preceden tes. A possibilidade de controle jurisdicionai, mesmo sendo excepcional, apóia-se na necessidade de impedir que o presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais.
Apesar de os requisitos de relevância e urgência revelarem-se rela tivamente indeterm inados e fluidos, com o reconheceu o Suprem o Tri bunal Federal, a urgência pode ser aferida, de m o d o objetivo, desde que se observe o parâm etro constitucional estabelecido no art. 64, §§ Io a 4o, da Constituição Federal, com o advertem Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky.61 Com efeito, ao analisar a tramitação dos projetos de lei em regime de urgência, quando se falou sobre o processo legislativo, foi visto que, solicitada a urgência, pelo presidente da República, a um a proposta de lei de sua iniciativa, o projeto deve ser apreciado, sucessivamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em 45 dias (art. 64, §§ I o 61 M ota , Leda Pereira & S pitzcovsky , Celso.
Curso de direito constitucional, p. 198.
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e 2o). E, ocorrendo emendas ao projeto pelo Senado, a Câmara terá dez dias para apreciar as alterações sugeridas (art. 64, § 3o). Assim, constitu cionalmente pode-se entender que um projeto que tramita em regime de urgência deve ser discutido e votado, no máximo, em cem dias. Então, se um a determ inada questão — por mais relevante que seja — puder aguardar cem dias para ser tratada com força de lei, não ha verá urgência, sendo vedada sua veiculação por m edida provisória. Por outro lado, se o assunto for tão prem ente que não puder aguardar o referido prazo, a urgência estará configurada, autorizando a edição da m edida provisória, desde que presente tam bém o requisito da relevân cia e atendidas as demais previsões constitucionais, especialmente as que im pedem a adoção de medidas provisórias sobre determ inados assuntos (art. 62, § I o).
Matérias que não podem ser objeto de medidas provisórias 0 § I o do art. 62 veda a edição de medidas provisórias sobre m a téria: 1 - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira
e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orça mentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3o; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; III reservada a lei complementar; IV - já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Além desses temas, tam bém não podem ser objeto de medidas provisórias as m atérias cuja delegação a C onstituição proíbe, ou seja, todos aqueles temas previstos no art. 68, § Io, do texto constitu cional. É verdade que grande parte dos assuntos previstos no art. 68, § I o (matérias que não podem ser objeto de leis delegadas), foi repetida no § Io do art. 62 (temas que não podem ser tratados por m edidas provisórias).
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Mas, por exemplo, o art. 62, § Io, não impede, explicitamente, a edição de medida provisória sobre direitos individuais, matéria que expressamente não pode ser veiculada por lei delegada (art. 68, § Io, II, da Constituição). Sendo assim, seria possível editar m edida provisória sobre direitos individuais, desde que não se esbarrasse nas vedações impostas expres samente pelo § Io do art. 62? A resposta é negativa, ou seja, apesar de não haver previsão explíci ta sobre a impossibilidade de edição de medida provisória sobre direi tos individuais, o fato de a Constituição im pedir a elaboração de lei de legada sobre esse assunto acarreta, via de conseqüência, a adoção de m edida provisória sobre o tema. É que, se o presidente da República não pode editar lei delegada sobre um assunto, tam bém não pode fazê-lo por m edida provisória, pois seria absolutam ente ilógico que a Constituição impedisse a edição de um a espécie normativa que exige solicitação ao Congresso Nacional e delegação deste ao chefe do Poder Executivo (lei delegada) e p erm i tisse a edição de outra espécie normativa, com força de lei, pelo presi dente da República, sem que ele precisasse fazer qualquer solicitação ao Parlamento (m edida provisória). C om o se não bastasse esse argum ento, adm itir a edição de m edi da provisória sobre todos os assuntos que não estejam expressamente previstos nas limitações impostas pelo art. 62, § Io, da Constituição, levaria ao absurdo de o presidente da República poder editar m edida provisória para tratar, por exemplo, de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49), privativa da C âm ara dos Deputados (art. 51) ou do Senado Federal (art. 52).62 Por fim, cum pre lem brar que o art. 246 da Constituição Federal impede a adoção de m edida provisória na regulamentação de artigo cuja redação tenha sido alterada por meio de em enda promulgada entre Io de janeiro de 1995 e 11 de setembro de 2001, período em que foram promulgadas, p o r exemplo, as Emendas ns. 19/98 e 20/98, que
62 Tais matérias não podem ser objeto de lei delegada, conforme previsão expressa con tida do art. 68, § 1o, da Constituição, mas não fazem parte do rol de assuntos sobre os quais se impede a edição de medida provisória (art. 62, § 1o).
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instituíram as chamadas reformas administrativa e da previdência, respectivamente.
Prazos de vigência e prorrogação das medidas provisórias As medidas provisórias têm eficácia imediata, mas, a rigor, perde rão a eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias. Esse prazo é prorrogável, um a única vez, tam bém por sessenta dias, se a votação da m edida provisória ainda não estiver encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional (art. 62, §§ 3o e 7o). Nos term os do art. 10 da Resolução n. 1/2002 do Congresso N a cional, se a m edida provisória não tiver sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional no prazo de sessenta dias, “estará autom aticam ente prorrogada um a única vez a sua vigência p o r igual p erío d o ”. Portanto, a prorrogação da vigência da m edida provisória ainda não apreciada pelo Congresso Nacional ocorre autom aticam ente, por um único período de sessenta dias, sem necessidade de n en h u m a m a nifestação do presidente da República ou do próprio Parlamento. Frise-se que o prazo de vigência deverá ser contado da data da p u blicação da m edida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional (art. 62, § 4o). Portanto, entre 23 de dezembro e I o de fevereiro, bem com o do dia 18 ao dia 31 de julho (períodos de recesso parlamentar, conform e o art. 57, caput) — desde que o Congresso Nacional não tenha sido co n vocado extraordinariamente, nos term os dos §§ 6o a 8o do art. 57 — , o prazo de vigência das medidas provisórias ficam suspensos. Em o u tras palavras, o prazo de vigência da m ed id a provisória deixa de ser con tad o a p a rtir do início do recesso, voltando a ser c o m p u ta d o q u a n d o do re to rn o aos trabalhos parlam entares, não se desprezando os dias iniciais de vigência em que as m edidas p ro v i sórias tiveram eficácia antes do recesso parlam entar. C o m isso, um a m edida provisória editada poucos dias antes do recesso p a rla m e n tar de final de an o — desde que não ocorra a convocação ex tra o rd in ária do Congresso Nacional — pode vigorar, teoricam ente, p o r até 160 dias.
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Apreciação das medidas provisórias pelo Congresso Nacional
As medidas provisórias, im ediatamente após sua edição, devem ser submetidas à apreciação do Congresso Nacional (art. 62, caput), tendo sua votação iniciada na C âm ara dos Deputados (art. 62, § 8o). Editada a medida provisória, será form ada um a comissão mista de deputados e senadores cuja função será examiná-la e sobre ela emitir parecer, antes de sua apreciação, em sessão separada, pelo plenário de cada um a das Casas do Congresso Nacional (art. 62, § 9o). Convém ressaltar que cada Casa do Congresso Nacional, antes de deliberar sobre o m érito das medidas provisórias, deve analisar se fo ram ou não atendidos os pressupostos constitucionais para sua edição (art. 62, § 5o), como, por exemplo, a presença dos requisitos de rele vância e urgência, bem com o se a Constituição perm ite a disciplina da matéria em questão por meio de medida provisória. Se a m edida provisória não for apreciada em até 45 dias, contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada um a das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que term ine a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tram itando (art. 62, § 6o). Além da aprovação integral do texto da medida provisória, convertendo-a em lei, é possível que o Congresso a rejeite totalmente. Mas, ainda há um a terceira possibilidade: a alteração, pelo Poder Legislati vo, do texto original da medida provisória enviada pelo presidente da República. Nesse caso, se for aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da m edida provisória, esta será m antida integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto (art. 62, § 12). Proibição de reedição das medidas provisórias
O § 10 do art. 62 da C onstituição Federal prevê, expressamente, que o presidente não pode reeditar, na m esm a sessão legislativa, m edida provisória que tenha sido rejeitada pelo Congresso Nacional ou que tenha perdido sua eficácia p o r decurso de prazo. O u seja, é vedada a reedição, na m esm a sessão legislativa, da m edida provisória que não tenha sido convertida em lei no prazo de sessenta dias, p r o r
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rogável, um a única vez, p o r igual período, conform e previsão do § 3o do art. 62. Os efeitos das medidas provisórias não convertidas em lei
Inicialmente, vale lem brar que as medidas provisórias não conver tidas em lei são aquelas rejeitadas expressamente pelo Congresso N a cional ou que perderam a eficácia por não terem sido apreciadas pelo Legislativo no prazo previsto constitucionalmente. O § 3o do art. 62 da Constituição Federal determ ina que as m e d i das provisórias não convertidas em lei no prazo fixado pela C o nsti tuição perderão a eficácia, desde a edição, devendo o Congresso N a cional disciplinar, p o r decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. O corre que, se o aludido decreto legislativo não for editado em até sessenta dias após a rejeição ou perda da eficácia da m edida p ro visória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos p ra ti cados d u ra n te sua vigência conservar-se-ão p o r ela regidas (art. 62,
§ 11 ). Se, por um lado, essas previsões constitucionais buscam co m p e lir o Congresso Nacional a disciplinar, por decreto legislativo, as re lações jurídicas decorrentes das m edidas provisórias rejeitadas o u que perderam a eficácia — em razão de não terem sido apreciadas pelo Legislativo, no prazo estipulado constitucionalm ente — , p o r o u tro lado, na prática, se o Congresso Nacional não editar o decreto legislativo para regular as relações jurídicas advindas da m edida p ro visória que não foi convertida em lei, os atos praticados d u ran te sua efêmera vigência passam a ser regidos pela p ró p ria m edida p rovi sória que perdeu a eficácia. Isso significa que, em algumas situações, os efeitos produzidos pe la m edida provisória — diferentemente do que se poderia supor ini cialmente — são preservados, m esm o não ocorrendo sua conversão em lei.
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PODER EXECU TIVO ■ i FUNÇÕES
O Poder Executivo exerce tipicamentebi a direção geral e política do Estado, além de aplicar, de ofício, o direito a casos concretos, de m odo a alcançar os fins estatais fixados constitucionalmente. Nas palavras de Lúcia Valle Figueiredo,6'1a (...) função administrativa consiste no dever de o Estado, ou de quem aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos comandos normativos, de maneira geral ou individual, para a realização dos fins pú blicos, sob regime prevalente de direito público, por meio de atos e com portamentos controláveis internamente, bem como externamente pelo Legislativo (com o auxílio dos Tribunais de Contas), atos, estes, revisíveis pelo Judiciário.
As funções atípicas são as de julgar, quando, por exemplo, são ins taurados os processos administrativos disciplinares, bem com o as de legislar, quando, p o r exemplo, o presidente da República edita medidas provisórias (art. 62) ou participa do processo legislativo, p o r meio da iniciativa, da sanção ou do veto. As funções do Poder Executivo podem ser divididas em funções de chefe de Estado e funções de chefe de governo. As funções de chefe de governo se caracterizam pelas atividades de representação interna, p o r m eio da gerência política e ad m in istra tiva dos negócios internos do país, en q u an to as funções de chefe de 63 Santi Romano distingue a função executiva da administrativa. Para ele, a função exe cutiva não se identifica com a administrativa, "que nada mais é senão sua parte integrante. A administração diz respeito à manutenção da segurança pública e ao atendimento das ne cessidades físicas, econômicas, morais e intelectuais da população, e tem sempre por objeto um interesse particularmente circunscrito e determinado. Além da administração, a função executiva compreende a atividade política, ou seja, aquela atividade de ordem superior, que se refere não aos interesses particulares e específicos, mas à direção suprema e geral do Esta do, no seu conjunto e na sua unidade, e portanto aos atos que nos fins fundamentais desta direção encontram sua causa" (in: Princípios de direito constitucional geral, p. 359). 64 F ig u e ire d o , Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p. 31 e 32.
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Estado dizem respeito à representação da nação em suas relações in ternacionais. Entende-se que, se as funções de chefia de Estado e de chefia de go verno são exercidas por um a única pessoa, o sistema adotado foi o presi dencialismo. Por outro lado, se a chefia de Estado é exercida por um a pes soa (o presidente, na forma republicana de governo, ou o rei, na forma monárquica) e a chefia de governo, por outra (o primeiro-ministro, que chefia o Gabinete), o sistema escolhido foi o parlamentarismo. C om o explica Paolo Biscaretti Di Ruffia,65 a forma de governo par lamentar, tanto na versão m onárquica quanto na republicana, não apresenta diferenças substanciais, (...) já que em cada um desses casos o Executivo aparece, igualmente, diferenciado em duas secções bem separadas, a saber: um Chefe de Esta do politicamente irresponsável (e, portanto, dotado de funções principal mente formais) e um Gabinete (constituído por vários ministros) que traça a orientação política, é responsável perante o Parlamento, e deve demi tir-se quando perdeu o valor essencial da forma parlamentar que consiste em manter inamovível o Chefe do Estado (vitaliciamente, se for Rei, e por um determinado período de tempo, se for Presidente), assegurando as sim ao governo um elemento estável de continuidade, tornando o Poder Executivo (concentrado, principalmente, no Gabinete) extremamente sen sível a toda flutuação da opinião pública.
A análise dos incisos do art. 84 da Constituição revela que o Brasil concentrou nas m ãos de um a única pessoa, o presidente da República,
65
Di R u ffia , Paolo Biscaretti.
Direito constitucional cit. p. 191 e 192. Raul Machado Horta
(in: Direito constitucional cit. p. 677) enumera as seguintes características do parlamentarismo: "I — existência de um Chefe de Estado politicamente irresponsável; II — responsabilidade políti ca dos Ministros perante o Parlamento; III — órgão coletivo formado pelos Ministros — Con selho de Ministros ou Gabinete — sob a direção do Presidente do Conselho, Primeiro-Ministro ou Chanceler; IV — técnicas de ação recíproca de um Poder sobre o outro, especialmente a questão de confiança, a moção de censura, a interpelação, a questão oral, a dissolução das Câmaras ou de uma delas pelo Chefe de Estado; V — dualidade de órgãos do Poder Executivo — o Chefe de Estado (Monarca ou Presidente da República) e o Chefe de Governo (PrimeiroMinistro, Presidente do Conselho de Ministros, Chanceler)".
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as funções de chefe de Estado e as de chefe de governo, adotando o sis tema presidencialista.66 Com efeito, os incs. VII, VIII, XIX e XX do aludido artigo prevêem que o presidente da República exerce as funções de chefe de Estado ao “m anter relações com Estados estrangeiros”, “celebrar tratados, con venções e atos internacionais”, “declarar guerra” ou “celebrar a paz”. E as funções de chefe de governo tam bém são conferidas ao presidente da República, com o se percebe dos incs. I a VI, IX a XVIII e XXI a XXVII do art. 84 da Constituição Federal (por exemplo, compete ao presidente da República: nom ear e exonerar m inistros de Estado; exer cer a direção superior da administração federal; prestar, anualmente, ao Congresso Nacional, as contas referentes ao exercício anterior). Além disso, com o ocorre nos sistemas presidencialistas em geral, no Brasil o presidente da República é eleito para um m andato certo,67 sendo auxiliado pelos ministros de Estado, nom eados livremente por ele (arts. 76 e 8 4 , 1, da Constituição). Mostra-se im portante ressaltar, ainda, que u m a das competências do presidente da República é expedir decretos e regulamentos para dar fiel execução à lei, nos term os do art. 84, IV, da Constituição Federal. Os decretos e regulamentos, editados pelo presidente da Repúbli ca, são espécies norm ativas secundárias, visto que não derivam direta m ente da Constituição Federal, com o acontece com as espécies n o r mativas primárias, previstas no art. 59, que criam direitos e obrigações. C om efeito, os decretos e regulamentos são atos norm ativos infe riores à lei e têm a função de viabilizar a fiel execução da n o rm a legal que está sendo regulamentada,6S jamais criando direitos e obrigações. 66 Ademais, o presidente da República, que simultaneamente exerce as funções de chefe de Estado e chefe de governo, é politicamente responsável perante o Parlamento, como se nota das previsões dos arts. 85 e 86 da Constituição Federal. 67 No caso brasileiro atual, o mandato do presidente da República é de quatro anos, conforme o art. 82 da Constituição Federal. 68 Nesse sentido foi a decisão proferida, em 7 de novembro de 1996, pelo Supremo Tri bunal Federal, na Medida Cautelar na ADIn n. 1.435/DF, relatada pelo ministro Francisco Rezek: "Ação Direta de Inconstitucionalidade. Medida Liminar. Decreto 1.719/95. Telecomu nicações: concessão ou permissão para a exploração. Decreto autônomo. Possibilidade de controle concentrado. Ofensa ao art. 84, IV, da CF/88. Liminar deferida. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (art. 84, IV da CF/88). A Emenda Constitucional n. 8, de 1995 — que alterou o inc. XI e alínea a
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Com isso, pretende-se dizer que o sistema constitucional brasileiro não admite o cham ado decreto autônom o,69 ou seja, aquele que busca seu fundam ento de validade diretamente na Constituição Federal e cria di reitos e obrigações.70 No caso de o Poder Executivo exorbitar os poderes regulamentares, o Congresso Nacional tem a competência de sustar tal ato abusivo, com o estabelece o art. 49, V, da Constituição Federal. ■I
E L E IÇ Ã O DO P R E S ID E N T E DA R E P Ú B L I C A
O art. 12, § 3o, I, da Constituição Federal, estabelece que o cargo de presidente da República é privativo de brasileiro nato, excluindo-se, portanto, o exercício da Presidência da República por estrangeiro ou por brasileiro naturalizado. Além disso, são condições de elegibilidade para o cargo de presidente da República: ter, no mínimo, 35 anos de idade; estar no pleno exercício dos direi do inc. XII do art. 21 da CF — é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos ter mos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. 0 decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei n. 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da maio ria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. Medida liminar deferida” . 69 Conferir B a n d e ir a d e M e l l o , Celso Antônio. Curso de direito administrativo cit. p. 315 e segs. O Superior Tribunal de Justiça, em 20 de outubro de 1998, ao julgar o Recurso Espe cial n. 156.858/PR, relatado pelo ministro Adhemar Maciel, firmou o seguinte entendimento: "Tributário. AITP. Decreto n. 1.035/93: Limites. I - Como no ordenamento jurídico brasileiro não existe o 'decreto autônomo', mas tão-somente o decreto para a 'fiel execução da lei', padece de ilegalidade o Decreto n. 1.035/93, que atuou ultra vires em relação à lei regu lamentada (Lei n. 8.030/93). O art. 3o do regulamento, na verdade, criou novos sujeitos passi vos para a obrigação tributária, uma vez que equiparou, sem poder, os operadores portuários aos 'importadores, exportadores ou consignatários das mercadorias'. II - Afronta ao princípio da legalidade (CTN, art. 97, III). III - Recurso não conhecido". 70 Nesse sentido, verificar B a n d e ir a d e M e l l o , Celso Antonio. Curso de direito adminis trativo cit. p. 317. Esse autor define o regulamento, no direito brasileiro, "como ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à exe cução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública". O regulamento pre visto no art. 84, VI, é uma limitadíssima exceção, e apresenta uma fisionomia toda ela pecu liar". Hely Lopes Meirelles, por outro lado, admite o regulamento para prover situações não disciplinadas em lei e afirma que, na "omissão da lei, o regulamento supre a lacuna, até que o legislador complete os claros da legislação. Enquanto não o fizer, vige o regulamento, desde que não invada matéria reservada à lei" (in: Direito administrativo brasileiro, p. 112 e 113).
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tos políticos; estar alistado eleitoralmente; ter filiação partidária; não ser analfa beto e não incidir em nenhuma hipótese de inelegibilidade prevista constitu cionalmente ou em lei complementar (arts. 14 e segs. da Constituição Federal). O m andato do presidente da República é de quatro anos e tem iní cio no dia Io de janeiro do ano seguinte ao de sua eleição (art. 82), sendo permitida a reeleição para um único período subseqüente (art. 14, § 5o, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 16/97). A eleição do presidente da República e do vice-presidente da República71 deve ser realizada simultaneamente, sendo certo que o prim eiro tu rn o ocorrerá no prim eiro dom ingo de ou tu b ro e o segun do turno, se houver, deverá ser realizado no últim o dom ingo de o u tu bro do ano anterior ao do térm ino do m andato presidencial vigente (art. 77, caput). A previsão sobre a realização de dois tu rn o s de votação busca dar m aior legitimidade ao eleito. C om efeito, o presidente da República é considerado eleito no p ri meiro tu rn o se alcançar, desde logo, a maioria absoluta dos votos váli dos, ou seja, todos os votos, m enos os em branco e os nulos (art. 77, § 2o). Em outras palavras, a eleição em prim eiro tu rn o ocorre se um dos candidatos atingir mais votos do que a soma dos votos dados aos de mais candidatos ao cargo de presidente da República. Se n en hu m dos candidatos alcançar a maioria absoluta dos votos válidos na prim eira votação, deve ocorrer o segundo tu rn o da eleição, quando concorrerão os dois candidatos mais votados. Será considera do eleito, então, aquele que obtiver a maioria absoluta dos votos válidos, ou seja, tiver mais votos do que o outro concorrente, excluindo-se do côm puto os votos em branco e os nulos (art. 77, § 3o). Vale lem brar que, se antes de realizado o segundo turno, ocorrer m orte, desistência ou im pedim ento legal de candidato, será convoca do, dentre os remanescentes, o de m aior votação (art. 77, § 4o).
71 O vice-presidente da República, além de substituir o presidente, no caso de impedi mento, e suceder-lhe na hipótese de vacância (art. 79), também auxiliará o presidente, sem pre que por ele convocado para missões especiais, devendo exercer, ainda, outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar (art. 79, parágrafo único).
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IM P E D IM E N T O E V A C AN C IA
A eleição do presidente da República im porta a do vice-presidente com ele registrado (art. 77, § I o). Mas, passados dez dias da data fixa da para a posse sem que o presidente ou o vice assum am o cargo, este será declarado vago, exceto no caso de a posse ter sido impossibilitada por motivos de força m aior (art. 78, parágrafo único). A vacância ocorre nas hipóteses de impossibilidade definitiva de o titular do cargo assumi-lo ou de continuar a exercê-lo, como, por exem plo, em razão de morte, perda dos direitos políticos ou renúncia. Já o impedimento se dá nos casos em que a impossibilidade de exercer o cargo tem caráter temporário, como ocorre nas hipóteses de férias ou licença para tratam ento médico. Com base nessas noções é que a Constituição Federal estabelece que o vice-presidente da República substituirá o presidente, no caso de im pedim ento, e o sucederá na hipótese de vacância do cargo (art. 79, caput). No caso de im pedim ento do presidente e do vice-presidente da Re pública, ou vacância dos respectivos cargos, devem ser chamados, su cessivamente, ao exercício da Presidência o presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal. Essa ordem foi estabelecida pelo constituinte porque a Câmara dos Deputados é composta de representantes do povo (art. 45) — portanto, é o presidente dessa Casa Legislativa o primeiro a ser chamado no caso de im pedimento ou vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República — , enquanto o Senado Federal é formado por represen tantes dos estados e do Distrito Federal (art. 46). Já o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário, não é formado por m e m bros eleitos diretamente, mas sim por brasileiros natos, com mais de 35 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal (art. 101, caput e parágrafo único, bem como arts. 84, XIV, e 52, III, a). Atente-se para o fato de que todos esses cargos (presidente e vicepresidente da República, presidente da C âm ara dos Deputados, presi dente do Senado Federal e m inistro do Suprem o Tribunal Federal) são privativos de brasileiros natos, nos term os dos incs. I a IV do § 3o do art. 12 da Constituição Federal.
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Frise-se que, havendo o impedimento (impossibilidade temporária para o exercício do cargo) do presidente e do vice-presidente da Repúbli ca, o primeiro que estiver apto a reassumir as funções deve fazê-lo, vol tando o substituto a exercer a primitiva função que desempenhava. C ontudo, se nos dois primeiros anos de m andato ocorrer a vacân cia tanto do cargo de presidente quanto do de vice-presidente da Re pública, inviabilizando, definitivamente, a reassunção das funções por esses mandatários, deverá ser convocada eleição direta para am bos os cargos no prazo de noventa dias, contados da abertura da última vaga (art. 81, caput). Por outro lado, se ocorrer a vacância dos dois cargos nos últimos dois anos do m an dato presidencial, a eleição será feita trinta dias de pois de aberta a última vaga, pelo Congresso Nacional, na form a da lei, com o prevê o art. 81, § Io, da Constituição Federal. Essa é a única h i pótese de eleição indireta para presidente da República estabelecida pela atual Constituição. Finalmente, tanto no caso de vacância de am bos os cargos nos dois primeiros anos de m andato com o na hipótese de se tornarem vagos os cargos nos dois últimos anos, os eleitos deverão apenas completar o período de seus antecessores (art. 81, § 2o). M
R E S P O N S A B I L I D A D E DO P R E S ID E N T E DA R E P Ú B L IC A
Em um Estado de direito, todos — governantes e governados — estão subordinados à Constituição e às leis, razão pela qual o desres peito às disposições normativas deve implicar a responsabilização do agente, até m esm o na hipótese em que o infrator seja o presidente da República. Paulo Brossard adverte que a “idéia de responsabilidade é indisso ciável do conceito de dem ocracia” e, para “to rn ar efetiva a responsabi lidade do Poder Executivo, a Constituição adotou u m processo parla mentar, fiel ao princípio de que toda autoridade deve ser responsável e responsabilizável”.72 72
Brossard, Paulo,
da República,
p. 4 e 6.
O impeachment: aspectos da responsabilidade política do presidente
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Geraldo Ataliba, por outro lado, afirma que os “agentes públicos respondem pelos seus atos” e todos “são, assim, responsáveis” n um re gime republicano, visto que este é o regime da responsabilidade. “A responsabilidade é a contrapartida dos poderes em quem , em razão da representação da soberania popular, são investidos os mandatários. É lógico corolário da situação de administradores, lato sensu, ou seja, gestores de coisa alheia.”73 Portanto, é possível afirm ar que as previsões do art. 85 da Consti tuição Federal decorrem da adoção, pelo Brasil, da forma republicana de governo e do Estado democrático de direito. |
Crimes de responsabilidade
0 presidente da República, gestor da coisa pública, pode cometer infrações de natureza político-administrativa, chamadas de crimes de responsabilidade — previstos no art. 85 da Constituição Federal — , quando atentar contra a Constituição e, especialmente, contra: 1 - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.74
Essas previsões constitucionais estão reguladas pela Lei n. 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade e disciplina o respectivo pro cesso de julgamento.75 Geraldo. República e Constituição, p. 38 e 39. Esse autor também lembra que, se no regime republicano ocorre a responsabilização política, penal e civil dos mandatários executivos, nas outras formas de governo, principalmente na monarquia, o chefe de Estado é irresponsável e, portanto, investido vitaliciamente. 74 A Lei n. 1.079/50 define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. 75O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança n. 21.564/DF, julgado em 23 de setembro de 1992, assentou o seguinte: "Admitindo-se a revogação, pela EC n. 4, de 1961, que instituiu o sistema parlamentar de governo, dos crimes de responsabilidade não tipificados no seu art. 5o, como fizera a CF/46, art. 89, V a VIII, certo é que a EC n. 6, de 1963, que revogou a EC n. 4, de 1961, restabeleceu o sistema presidencial instituído pela CF/46, salvo o disposto no seu art. 61 (EC n. 6/63, art. 1o). É dizer: restabelecido tudo quan 73 A ta lib a ,
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Frise-se que o rol de crimes estabelecidos no art. 85 da C onstitui ção é m eram ente exemplificativo,76 ou seja, a lei poderá definir outras condutas que configurem crime de responsabilidade do presidente da República, sujeitando-o ao processo político den o m in ad o impeachm ent.77
to constava da CF/46, no tocante ao sistema presidencial de governo, ocorreu repristinação expressa de todo o sistema". Na Medida Cautelar na ADIn n. 1.628/SC, julgada em 20 de junho de 1997 e relatada pelo ministro Nelson Jobim, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a definição de crimes de responsabilidade e a regulamentação do processo e do julgamento são de competência da União: "Liminar. Constituição do estado de Santa Catarina e Regi mento Interno da Assembléia Legislativa do Estado. Impeachment: (a) Competência para jul gar; (b) Regras de procedimento. A definição de crimes de responsabilidade e a regulamen tação do processo e do julgamento são de competência da União (Constituição Federal, art. 85, parágrafo único, e 22, I). Vigência da Lei n. 1.079/50 e aplicação de seus dispositivos, recepcionados com modificações decorrentes da Constituição Federal. Liminar deferida, em parte, por unanimidade". 76 Nesse sentido, conferir a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida no Manda do de Segurança n. 21.564/DF, em 23 de setembro de 1992. n O Senado Federal também tem a competência privativa de processar e julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador-geral da República e o advogadogeral da União nos crimes de responsabilidade (art. 52, II). O vice-presidente da República também está sujeito a julgamento, pelo Senado Federal, por crime de responsabilidade, assim como os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáu tica nos crimes da mesma natureza conexos com os praticados pelo presidente ou pelo vicepresidente da República. Os crimes de responsabilidade cometidos pelos ministros de Estado ou pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são processados e julgados pelo Senado Federal somente quando da mesma natureza e conexos com aqueles praticados pelo presidente ou pelo vice-presidente da República. Caso contrário, caberá ao Supremo Tri bunal Federal processá-los e julgá-los (art. 102, I, c), como já decidiu o Supremo Tribunal Fe deral, ao julgar, em 11 de setembro de 2002, a Petição n. 1.954/DF, relatada pelo ministro Maurício Corrêa: " 1 - 0 processo de impedchment dos ministros de Estado, por crimes de responsabilidade autônomos, não-conexos com infrações da mesma natureza do presidente da República, ostenta caráter jurisdicionai, devendo ser instruído e julgado pelo Supremo Tri bunal Federal. Inaplicabilidade do disposto nos arts. 5 1 ,1, e 5 2 ,1, da Carta de 1988 e 14 da Lei n. 1.079/50, dado que é prescindível autorização política da Câmara dos Deputados para a sua instauração. 2 - Prevalência, na espécie, da natureza criminal desses processos, cuja apuração judicial está sujeita à ação penal pública da competência exclusiva do Ministério Público Federal (CF, art. 129, I). Ilegitimidade ativa ad causam dos cidadãos em geral, a eles remanescendo a faculdade de noticiar os fatos ao parquet. 3 - Entendimento fixado pelo Tri bunal na vigência da Constituição pretérita (MS n. 20.422, Rezek, DJ 29.06.1984). Ausência de alteração substancial no texto ora vigente. Manutenção do posicionamento jurisprudencial anteriormente consagrado. 4 - Denúncia não admitida. Recebimento da petição como notitia criminis, com posterior remessa ao Ministério Público Federal".
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A acusação do presidente da República pela prática de crime de responsabilidade pode ser feita por qualquer cidadão, que deverá enca m inhá-la à Câm ara dos Deputados.78 O presidente dessa Casa Legisla tiva, por seu turno, tem a competência de examinar, liminarmente, a idoneidade da denúncia popular, rejeitando-a de imediato, se for evi dentemente inepta ou sem justa causa, com o já decidiu o Supremo Tri bunal Federal, ao apreciar, em 28 de agosto de 2002, o M andado de Segurança n. 23.885/DF, relatado pelo ministro Carlos Velloso: Constitucional. Impeachment. Presidente da República. Denúncia. Câmara dos Deputados. Presidente da Câmara. Competência. I -
Impeachment do presidente da República: apresentação da denúncia à Câmara dos Deputados: competência do presidente desta para o exame liminar da idoneidade da denúncia popular, "que não se reduz à verifi cação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender (...) à rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do plenário da Casa, mediante recurso (...)". MS 20.941-DF, Sepúlveda Pertence, DJ 31.08.1992. II. M.S. indeferido.
A admissão da acusação, pela Câmara dos Deputados, somente ocor rerá pelo voto de dois terços dos membros dessa Casa Legislativa (arts. 5 1 , 1, e 86, caput), sendo a votação nominal, ou seja, aberta, nos termos do art. 23 da Lei n. 1.079/50.79 Trata-se, nessa fase, de análise política sobre a admissibilidade ou não do processo, visto que o julgamento, propriam ente dito, deverá ser feito pelo Senado Federal, na hipótese de aceitação do processo pela Câm ara dos Deputados. 78Os arts. 14 e 15 da Lei n. 1079/50 estabelecem o seguinte: "Art. 14. É permitido a qual quer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de respon sabilidade, perante a Câmara dos Deputados. Art. 15. A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo". 79O Supremo Tribunal Federal entendeu que esse dispositivo legal foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 (MS n. 21.564/DF, j. 23.09.1992). O Regimento Interno da Câmara dos Deputados também prevê, atualmente, que não será objeto de deliberação por escrutínio secreto a instauração de processo por crime comum ou de responsabilidade con tra o presidente da República (art. 188, § 2o, IV).
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C ontudo, já nesse m om ento, deve ser garantido o direito de defe sa ao presidente da República, tendo em vista que a Constituição Fede ral assegura, aos acusados em geral, a am pla defesa (art. 5o, LV).80 Admitida a acusação, o presidente da República será subm etido a julgam ento perante o Senado Federal (arts. 5 2 , 1, e 86, caput). C o n tu do, o Senado “não se transforma, às inteiras, nu m tribunal judiciário subm etido às rígidas regras a que estão sujeitos os órgãos do Poder Ju diciário”,81 já que se trata de um órgão político. Com a instauração do processo no Senado Federal, o presidente Fi cará automaticamente suspenso de suas funções (art. 86, § Io, II). Essa suspensão perdurará por, no máximo, 180 dias. Assim, se o Senado, nesse prazo, não encerrar o julgamento do acusado, ele voltará a exercer suas funções, mas o processo continuará a tram itar (art. 86, § 2o). Essa previsão reclama um a atuação razoavelmente célere do Senado num a ocasião institucionalmente delicada, im pedindo que essa Casa Legislati va prolongue indevidamente o processo de impeachment com o intuito de m anter o presidente da República afastado de suas funções. As sessões do Senado Federal que tratarão do processo e julgam en to do presidente da República por crime de responsabilidade deverão ser presididas pelo presidente do Suprem o Tribunal Federal, como estabelece o parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal, garan tindo-se ao acusado o exercício do direito à ampla defesa. A condenação do presidente da República por crime de responsa bilidade som ente será proferida por dois terços dos votos dos m e m bros do Senado,82 limitando-se a im por a perda do cargo, com inabili80 Foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança n. 21,564/DF, em 23 de setembro de 1992: "No procedimento de admissibilidade da denúncia, a Câmara dos Deputados profere juízo político. Deve ser concedido ao acusado prazo para defesa, defesa que decorre do princípio inscrito no art. 5o, LV, da Constituição, observadas, entretanto, as limitações do fato de a acusação somente materializar-se com a instauração do processo, no Senado. Neste é que a denúncia será recebida, ou não, dado que, na Câmara, ocorre, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político, em que a Câmara verifica se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem razoável pro cedência, não sendo a acusação simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas". «' MS 21,623/DF, rel. Min. Carlos Velloso, j. 17.12.1992. 82 Sobre as razões de se dar ao Senado a competência de julgar o impeachment do presi dente da República, nos Estados Unidos da América, conferir os arts. LXV e LXVI escritos, respec tivamente, por Alexander Hamilton e James Madison (in: Os artigos federalistas cit. p. 416-26).
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tação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (art. 52, parágrafo único). C um pre registrar que a renúncia do presidente da República, de pois de instaurado o processo pelo Senado Federal, não interrom perá o julgamento, que poderá ser levado a efeito som ente para condená-lo à inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, como aconteceu no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, conforme decidiu o Suprem o Tribunal Federal n a quela ocasião (M andado de Segurança n. 21.689/DF, rel. Min. Carlos Velloso, j. 16.12.1993): IV - No sistema do direito anterior à Lei n. 1.079, de 1950, isto é, no sistema das Leis ns. 27 e 30, de 1892, era possível a aplicação tãosomente da pena de perda do cargo, podendo esta ser agravada com a pena de inabilitação para exercer qualquer outro cargo (Constituição Federal de 1891, art. 33, § 3o; Lei n. 30, de 1892, art. 2o), empres tando-se a pena de inabilitação o caráter de pena acessória (Lei n. 27, de 1892, arts. 23 e 24). No sistema atual, da Lei n. 1.079, de 1950, não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade (CF 1934, art. 58, § 7o; CF 1946, art. 62, § 3o; CF 1967, art. 44, parágrafo único; EC n. 1/69, art. 42, parágrafo único; CF 1988, art. 52, parágrafo único; Lei n. 1.079, de 1950, arts. 2o, 31, 33 e 34). V - A existência, no impeach
ment brasileiro, segundo a Constituição e o direito comum (CF 1988, art. 52, parágrafo único; Lei n. 1.079, de 1950, arts. 2o, 33 e 34), de duas penas: a) perda do cargo; b) inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública. VI - A renúncia ao cargo, apresentada na sessão de julgamento, quando já iniciado este, não paralisa o processo de impeachment. VII - Os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37). VIII - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativamente aos crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais, na forma do Decreto-lei n. 201, de 27.02.1967. Apresentada a denúncia, estando o prefeito no exercício do cargo, prosseguirá a ação penal, mesmo após o término do manda to, ou deixando o prefeito, por qualquer motivo, o exercício do cargo. IX - Mandado de segurança indeferido.
SEPARAÇÃO DOS PODERES
Isso significa que as penas previstas no parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal são autônom as, ou seja, a inabilitação para o exercício de função pública, por oito anos, não é u m a pena acessória à perda do cargo. E a renúncia do presidente da República, após o início do julgam ento por crime de responsabilidade, não tem o condão de interrom per o processo de impeachment. |
Crimes comuns
Além do processo por infrações políticas, o presidente da Repúbli ca pode ser processado e julgado por crimes com uns, ou seja, por ter praticado aquelas condutas descritas nas leis penais com o crimes ou contravenções. Aliás, com o adverte Paulo Brossard,83 um m esm o fato pode ense jar a responsabilização do presidente da República por crime com um e por infração política, com aplicação das sanções penais mais aquelas previstas no parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal em razão da condenação no processo de impeachment: À sanção aplicada pelo Senado pode somar-se outra infligida pela justiça, e podem coexistir crimes comuns e "crimes" de responsabilidade, exata mente porque estes últimos não constituem crime, mas infrações políti cas, relacionadas a ilícitos de natureza política, politicamente sanciona das. São entidades distintas e nada mais.
A acusação, no caso de crimes com uns, deve ser feita perante o Supremo Tribunal Federal, por meio de denúncia, no caso de ação penal pública, ou de queixa-crime, quando se tratar de ação penal p ri vada. Todavia, o Suprem o Tribunal Federal somente poderá processar e julgar o presidente da República pelo crime com um a ele im putado se a C âm ara dos Deputados, pelo voto de dois terços de seus membros, previamente adm itir a acusação formulada, com o determ inam os arts. 5 1 , 1, e 86, caput, da Constituição Federal.
83 B rossard , Paulo.
O impeachment, cit. p. 74.
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Com a instauração do processo no Suprem o Tribunal Federal84 em razão do recebimento da denúncia ou da queixa-crime, o presidente da República ficará autom aticam ente suspenso de suas funções (art. 86, § I o, I). Essa suspensão perdurará por, no máximo, 180 dias. Por tanto, se o Supremo Tribunal Federal, nesse prazo, não term inar o jul gamento do acusado, ele voltará a exercer suas funções, sem prejuízo da continuidade do processo (art. 86, § 2o). Da mesma form a que acontece no processo de impeachment, essa previsão dem anda um a atuação razoavelmente ágil do Supremo Tribu nal Federal, tendo em vista a gravidade da situação, qual seja, o processo do chefe do Poder Executivo por suposta prática de crime com um . Com isso, a Constituição Federal procura impedir que o Supremo Tribunal Federal prolongue indevidamente o processo judicial com o objetivo de m anter o presidente da República afastado de suas funções. Por força do disposto no art. 86, § 3o, da Constituição Federal, nas infrações com uns, enquanto não sobrevier sentença condenatória, o presidente da República não estará sujeito a prisão. Finalmente, vale lem brar que o presidente da República, na vigên cia de seu m andato, não poderá ser responsabilizado por atos estra nhos ao exercício de suas funções (art. 86, § 4o). Essa espécie de imunidade conferida pela Constituição Federal ao presidente da República significa que ele, durante seu mandato, somente poderá ser responsabilizado por crimes com uns que tenham sido come tidos em razão das funções por ele exercidas, como, por exemplo, cor rupção passiva, peculato, concussão ou prevaricação. Trata-se de um a im unidade relativa tem porária, com o deixou cla ro o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar, em 30 de setembro de 1992, a Questão de O rdem na Ação Penal n. 305/DF, relatada pelo m inistro Celso de Mello: O art. 86, § 4o, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao presidente da República, excluiu-o, durante a vigência
84 Os arts. 230 a 246 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e a Lei n. 8.038/90 (arts. 1o a 12) prevêem as normas procedimentais perante o Supremo Tribunal Federal relativas à ação penal originária.
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de seu m andato — e por atos estranhos ao seu exercício — , da possi bilidade de ser ele subm etido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado. A cláusula de exclusão inscrita nesse preceito da Carta Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judi cial, alcança as infrações penais com uns praticadas em m om ento ante rior ao da investidura no cargo de C hefe do Poder Executivo da União, bem assim aquelas praticadas na vigência do m andato, desde que estra nhas ao ofício presidencial. A norma consubstanciada no art. 86, § 4o, da Constituição, reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal. A Constituição do Brasil não consagrou, na regra positivada em seu art. 86, § 4o, o princípio da irresponsabilidade penal absoluta do presidente da Republica. O Chefe de Estado, nos ilícitos penais praticados in officio ou cometidos propter offidum , poderá, ainda que vigente o m andato presidencial, sofrer a persecutio crim inis, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câm ara dos Deputados.
Assim, o art. 86, § 4o, da Constituição Federal, im põe que os crimes praticados pelo presidente da República que não tenham rela ção com as funções por ele desem penhadas somente poderão ser leva dos a julgam ento após o térm ino do mandato.
PODER J U D I C I Á R I O ■I F U N Ç Õ E S T ÍP IC A S E ATÍPICAS
A função85 típica do Poder Judiciário é a de resolver, de maneira definitiva, os conflitos de interesses — caracterizados por pretensões resistidas — colocados à sua apreciação, substituindo a vontade das partes. Não deve ser um a função m eram ente legalista, de subsunção de u m fato à norm a, mas u m a função de criação do direito, por caminhos
85
André Ramos Tavares analisa a função interpretativa e de enunciação constitucional,
além das funções estruturante, arbitrai, legislativa, governativa e "com unitarista" da Justiça Constitucional (in:
Teoria da justiça constitucional,
p. 185-368).
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interpretativos racionais e controláveis, sob pena de expulsar a justiça do sistema.86 A função jurisdicionai é exercida tanto no caso de lesão quanto na hipótese de ameaça de lesão a direito, com o estabelece o art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, que consagra o princípio do livre acesso ao Judiciário. É im portante mencionar que, em decorrência de a Constituição Federal ter instituído u m Estado democrático de direito (art. Io, caput), todas as decisões dos órgãos do Poder Judiciário deverão ser fundam en tadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX). Com isso, ao mesmo tem po em que se busca impedir o arbítrio e o autoritarismo, viabiliza-se a im pug nação das decisões judiciais por meio dos recursos, respeitando-se, assim, os princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do con traditório e do duplo grau de jurisdição (art. 5o, LIV e LV). Tipicamente, o Judiciário também exerce o controle difuso da cons titucionalidade, quando, incidentalmente, no processo judicial, analisa se as norm as infraconstitucionais são compatíveis ou não com as dispo sições previstas na Constituição, ao interpretar e aplicar as regras jurídi cas ao caso concreto. Por outro lado, quando o Judiciário exerce o controle abstrato da constitucionalidade, ele age, na realidade, com o legislador negativo. No controle concentrado da constitucionalidade, os efeitos da decisão do Suprem o Tribunal Federal que declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato norm ativo valem para todos (erga omnes) e de m o d o vin culante. Portanto, basta a decisão do Judiciário para que a lei ou o ato norm ativo declarado inconstitucional não tenha mais validade e seja
86 Abreu.
Para uma análise critica do formalismo e do legalismo, conferir Da iia r i , Dalmo de
O poder dos juizes,
p. 82 e segs. Antes do advento da Constituição de 1988, José
Eduardo Faria alertava para o seguinte risco: "S e não propiciar instrumentos normativos mais abrangentes e flexíveis, em condições de abrir cam inho para um efetivo equacionam ento dos graves desequilíbrios sociais, setoriais e regionais existentes, que hoje tornam uma caricatura o decantado princípio da igualdade perante a lei, a nova constituição correrá o risco mortal de ser idealista" (Faria , José Eduardo.
A crise constitucional e a restauração da legitimidade,
p. 19). Para uma análise dos juizes políticos e o Estado de direito, conferir D w o rkin , Ronald.
Uma questão de principio,
p. 3-39, especialmente. Para um estudo da jurisprudência política
do Suprem o Tribunal Federal, conferir V ieira , Oscar Vilhena.
jurisprudência politica.
Supremo Tribunal Federal:
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retirado do ordenam ento jurídico, não valendo mais para ninguém, função esta preponderantem ente exercida pelo Poder Legislativo. O utras funções atípicas do Poder Judiciário são encontradas no art. 96 da Constituição Federal. Esse dispositivo estabelece que os tri bunais têm a competência de elaborar seus regimentos internos (função de natureza legislativa, mas que é atipicamente conferida ao Judiciário), bem como: organizar suas secretarias; prover os cargos de juiz de carreira; prover os cargos necessários à adm inistração da Justi ça; conceder férias, licença e outros afastamentos a seus m em bros e aos juizes e servidores que lhe forem im ediatam ente vinculados (funções de natureza executiva, mas que são atipicamente outorgadas ao Poder Judiciário). Com isso, a Constituição procura viabilizar a independên cia do Poder Judiciário, em atenção à regra contida em seu art. 2o: “São Poderes da União, independentes e harm ônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. ■I A U T O N O M I A A D M IN IS T R A T IV A E F IN A N C E I R A
O art. 99 da Constituição Federal estabelece que “ao Poder Judi ciário é assegurada autonom ia administrativa e financeira”. A autonomia administrativa é garantida, basicamente, pelo exercício das funções atípicas, como as previstas no art. 96 da Constituição Federal. Todavia, de nada adiantaria assegurar a autonom ia administrativa do Poder Judiciário se a ele não fosse concedida independência finan ceira. A autonom ia financeira se inicia com a previsão de que os trib u nais devem elaborar suas propostas orçam entárias dentro dos limites estipulados conjuntam ente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias (art. 99, § I o). Com o intuito de evitar que essas previsões se tornem palavras vazias, o art. 168 da Constituição Federal determina que os recursos cor respondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos do Poder Judiciário de vem ser entregues a eles até o dia 20 de cada mês, em duodécimos. Vale lem brar que, no âmbito federal, caso esses dispositivos não sejam cum pridos, poderá se configurar crime de responsabilidade do presidente da República, que, ao deixar de repassar os recursos no
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prazo fixado, estará atentando contra o livre exercício do Poder Judi ciário e contra a lei orçam entária (art. 85, II e VI), sujeitando-se, p o r tanto, ao processo de impeachment. Já no plano estadual, o desrespeito às previsões m encionadas poderá ensejar a intervenção federal para garantir o livre exercício do Poder Judiciário na unidade da Federação (art. 34, IV).87 ■i A S Ú M U L A V I N C U L A N T E
A Emenda Constitucional n. 45/2004 incluiu o art. 103-A no texto constitucional e criou a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal aprovar, revisar e cancelar súmulas vinculantes sobre qualquer matéria constitucional, desde que obedecidos os requisitos mencionados a seguir. A súm ula deve ter p o r objetivo a validade, a interpretação e a eficá cia de norm as determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de p ro cessos sobre questão idêntica (art. 103-A, § Io). Assim, é possível perceber que, com a súmula vinculante, procura-se preservar a segurança jurídica — abalada por grande quantidade de controvérsias entre órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública — , bem com o reduzir o n úm ero de demandas, im pedindo a multiplicação de processos sobre questões idênticas. A aprovação da súmula deve se dar pelo Supremo Tribunal Fede ral, mediante decisão de dois terços dos seus m em bros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Com a publicação da súmula na imprensa oficial, ela terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, tanto na esfera federal, quanto na estadual e na municipal (art. 103-A, caput). A legitimidade para provocar a aprovação, a revisão ou o cancela m ento da súmula vinculante é das mesmas pessoas que podem ingres sar com a ação direta de inconstitucionalidade, previstas nos incisos do art. 103 da Constituição Federal (art. 103-A, § 2o). Esse rol foi am plia do pela Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que disciplinou a 87
Nesse sentido, conferir titucional, p. 244 e 245.
M ota,
Leda Pereira &
S p it z c o v s k y ,
Celso. Curso de direito cons
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matéria, perm itindo que a aprovação, a revisão ou o cancelamento da súmula vinculante tam bém se dê por provocação do Defensor Público-Geral da União, dos Tribunais Superiores, dos Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal e Territórios, dos Tribunais Regio nais Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho, dos Tribunais Regionais Eleitorais, bem com o dos Tribunais Militares (art. 3o, VI e XI). Os Municípios tam bém foram autorizados pela referida lei a p ro por, incidentalmente ao curso dos processos em que sejam parte, a edição, a revisão ou cancelamento do enunciado da súmula vincu lante. Além disso, a aprovação da súmula poderá ocorrer de ofício, ou seja, o Suprem o Tribunal Federal pode aprovar um a súmula vincu lante por iniciativa própria, sem provocação de terceiros (art. 103-A, caput, da Constituição). A súmula vinculante, via de regra, terá eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro m om ento (pro futuro), por razões de segurança jurídi ca ou de excepcional interesse público (art. 4o da Lei n. 11.417/2006). Se um ato administrativo ou um a decisão judicial contrariar um a súmula vinculante aprovada pelo Suprem o Tribunal Federal - sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de im pugnação — , caberá reclamação a este órgão do Poder Judiciário que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, determ inando que outra seja proferida (art. 103-A, § 3o, da Constituição, e art. 7o da Lei n. 11.417/2006). C ontudo, a Lei n. 11.417/2006 determ ina que, contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será adm itido após esgotamento das vias administrativas, em flagrante violação ao art. 5o, XXXV, da CF, que garante o livre acesso ao Judiciário, indepen dentem ente do esgotamento das vias administrativas. Por fim, o Supremo Tribunal Federal, ao acolher a reclamação fu n dada em violação de enunciado de súm ula vinculante, deverá dar ciên cia à autoridade para que adeqüe as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal (art. 9o, da Lei n. 11.417/2006, que acrescentou o art. 64-B à Lei n. 9.784/99).
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■ i O C O N S E L H O N A C I O N A L DE J U S T I Ç A
A Em enda Constitucional n. 45/2004 tam bém criou o Conselho Nacional de Justiça com o um órgão do Poder Judiciário (art. 9 2 , 1-A) responsável por controlar a atuação administrativa e financeira deste e o cu m prim en to dos deveres funcionais dos juizes. Nos term os do art. 103-B da Constituição Federal: O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de 35 e menos de 66 anos de idade, com mandato de dois anos, admiti da uma recondução, sendo: I - um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal; II - um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; III - um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; IV - um desem bargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; V - um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VIII - um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; IX - um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Tra balho; X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; XI - um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão com petente de cada instituição estadual; XII - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câm ara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
C om o se percebe, apesar da previsão de que tal conselho integra a estrutura do Poder Judiciário, a Constituição Federal estabelece que ele se com põe de nove m em bros do Poder Judiciário, dois do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos. Os m em bros do conselho devem ser nom eados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela m aioria absoluta do Se nado Federal, sendo certo que tal órgão será presidido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate, mas fi cará excluído da distribuição de processos naquele tribunal.
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O § 4o do art. 103-B da Constituição Federal prevê que compete ao Conselho Nacional de Justiça: (...) o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cum prim ento dos deveres funcionais dos juizes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da M agis tratura: I - zelar pela autonom ia do Poder Judiciário e pelo cum prim ento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âm bito de sua competência, ou recomendar providências; II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cum prim ento da lei, sem prejuízo da com petência do Tribunal de Contas da União; III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judi ciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos presta dores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da com petência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determ inar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tem po de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V - rever, de ofício ou mediante provocação, os pro cessos disciplinares de juizes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferen tes órgãos do Poder Judiciário; VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
Tais alterações constitucionais, levadas a cabo pela E m enda n. 45/2004, geraram grande polêmica, não somente em razão da co m p o sição do conselho, mas tam bém das atribuições conferidas a ele.
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Preocupada com os possíveis riscos à independência do Poder Ju diciário, a Associação dos Magistrados Brasileiros ingressou com ação direta de inconstitucionalidade alegando que a Em enda C onstitucio nal n. 45/2004, ao prever a criação do Conselho Nacional de Justiça, teria violado os princípios da separação dos poderes e da form a federativa de Estado, estabelecidos como cláusulas pétreas no art. 60, § 4o, I e III, da Constituição Federal.88 Em abril de 2005, com acerto, o Supremo Tribunal Federal, por 7 votos a 4, julgou im procedente o pedido da ação direta de inconstitu cionalidade, rejeitando os argum entos da Associação dos Magistrados Brasileiros e afirm ando que a criação do conselho não representa risco à independência do Poder Judiciário, pois não tem competência juris dicionai e, portanto, não exerce atividade capaz de interferir no desem penho da função típica do Judiciário. Q uanto à presença de pessoas de fora do Poder Judiciário na com posição do conselho, o ministro Cezar Peluso afirmou que (...) pode ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evi dentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional que obscurece os pro cedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder.
Já a alegação de que a Em enda n. 45/2004 feriria o pacto federati vo, ao subm eter o Poder Judiciário dos estados à supervisão adm inis trativa e disciplinar do Conselho Nacional de Justiça, foi afastada sob o argum ento de que as Justiças nos estados integram u m m esm o p o der, o Judiciário, e o Conselho Nacional de Justiça é concebido e estru turado com o um órgão do Poder Judiciário nacional, e não da União. Vale lem brar que a decisão do Supremo Tribunal Federal, nesse ca so, produziu eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública dire ta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, § 2o, da Constituição Federal, e art. 24 da Lei n. 9868/99). Assim, encerrou-se a
88 ADIn n. 3.367-DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 13.04.2005.
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discussão sobre a constitucionalidade do cham ado “controle externo do Poder Judiciário”. O Suprem o Tribunal Federal, ao com bater o corporativism o e o isolamento da Justiça brasileira, adm itiu com o legítima a crítica social e perm itiu que o Poder Judiciário se subm eta a um a fiscalização mais transparente. Q uem ganhou com isso foi a democracia. Mas não se pode esquecer que as ações contra o Conselho Nacio nal de Justiça serão julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, r), fazendo com que o cham ado “controle externo do Poder Judi ciário” seja controlado “internam ente”. m
G A R A N T IA S DA MAGISTRATURA
As garantias da magistratura encontram -se previstas nos incs. I a III do art. 95 da Constituição Federal, constituindo-se na vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Todas elas são previsões que procuram assegurar aos juizes a p os sibilidade de exercício da função jurisdicional de m o d o livre e inde pendente, sem que precisem se sujeitar a coações, pressões indevidas e influências ilegítimas. | Vitaliciedade A vitaliciedade consiste na garantia de que o juiz somente perderá seu cargo por decisão judicial transitada em julgado, além das hipóteses de aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade ou por vontade própria. C om o explica Alexander Hamilton, o “critério do bom co m p o rta m ento para a vitaliciedade no cargo da m agistratura judicial é certa m ente um dos mais valiosos aperfeiçoamentos ocorridos na prática do governo”.89 Assim, desde que tenha “b om com po rtam en to” o magistrado não perde o cargo, a não ser por vontade própria ou por aposentadoria compulsória. C ontudo, a vitaliciedade, no prim eiro grau de jurisdição, somente é adquirida pelo juiz depois de dois anos do exercício da função, ou se ja, após o cham ado estágio probatório. 89 Os artigos federalistas cit. p. 479, art. LXXVIII.
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Assim, durante o estágio probatório, a perda do cargo dependerá de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado. E, após o es tágio probatório, com a aquisição da vitaliciedade, a perda do cargo somente ocorrerá por força de sentença judicial transitada em julgado, com o afirmado anteriorm ente. É im portante ressaltar que a aquisição da vitaliciedade pelo magis trado ocorrerá somente depois de dois anos do exercício da função, quando ele ingressar na carreira em prim eiro grau de jurisdição, por concurso público de provas e títulos. Isso significa que o juiz que ingressar na carreira em o utro grau de jurisdição adquire a vitaliciedade imediatamente. E quais são as hipóteses em que o juiz não ingressa na carreira no prim eiro grau de jurisdição? A hipótese mais co m u m é a do ingresso pelo cham ado “quinto constitucional”. O art. 94 da Constituição Federal estabelece que (...) um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será com posto de mem bros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advo gados de notório saber jurídico e reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Parágrafo único. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subseqüentes, esco lherá um de seus integrantes para nom eação (art. 94, parágrafo único).
Portanto, 20% dos m em bros dos tribunais não são juizes de car reira, mas ex-advogados e ex-m em bros do Ministério Público que in gressaram no Poder Judiciário, diretam ente nos tribunais, por meio do m ecanismo do quinto constitucional, em atenção às previsões conti das no art. 94 da Constituição Federal. Há outras hipóteses em que os magistrados não ingressam em p ri meira instância, como, por exemplo, quando se trata da formação do Suprem o Tribunal Federal. Nos term os do art. 101 da Constituição Fe deral, os m em bros do Supremo Tribunal Federal deverão ser cidadãos com mais de 35 e m enos de 65 anos de idade, de notável saber jurídi-
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co e reputação ilibada, sendo certo que os ministros do Suprem o de vem ser nom eados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, com binado com o art. 52, III, a). | Inamovibilidade A garantia da inamovibilidade assegura ao juiz, a partir do m o m ento em que adquire a titularidade do cargo, o direito de não ser transferido, removido ou prom ovido a não ser por iniciativa própria. Uma única exceção é prevista pela Constituição Federal: o motivo de interesse público, na form a do art. 93, VIII. Esse dispositivo constitucional, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, estipula que o ato de remoção, disponibili dade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, deve se fundar em decisão por voto da m aioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de justiça, assegurada ampla defesa. Assim, exceto por vontade própria ou por interesse público — apurado nos term os do art. 93, VIII, da Constituição Federal — , o m a gistrado, titular do respectivo cargo, não pode ser removido do local onde desem penha suas funções. | Irredutibilidade de subsídios De nada adiantaria assegurar a vitaliciedade e a inamovibilidade se pudesse ser imposta a redução dos subsídios dos magistrados. Alexander H am ilton,90 no Fim do século XVIII, já afirmava que, depois da “vitaliciedade no cargo, nada pode co n trib u ir mais para a independência dos juizes que u m a estipulação definitiva de seus p ro ventos”. E completava dizendo que, no “curso geral da natureza h u m ana, o poder sobre o sustento de u m hom em eqüivale ao poder sobre sua vontade”. Exatamente para assegurar a independência dos juizes é que a Constituição Federal garante a eles a irredutibilidade dos proventos, da remuneração, dos subsídios, como prefere o inc. III do art. 95, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98. 90 Os artigos federalistas cit. p. 485, art. LXXIX.
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IM P E D IM E N T O S IM P O S T O S AOS JU ÍZ E S
Com o intuito de garantir a imparcialidade dos juizes, a Constituição Federal, no parágrafo único do art. 95, impede que eles exerçam, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo um a de magistério. Apesar da clareza do dispositivo constitucional, ao prever que o juiz está im pedido de exercer outro cargo ou função, salvo um a de magistério, o Suprem o Tribunal Federal entendeu que “o objetivo da restrição constitucional é o de im pedir o exercício da atividade de magistério que se revele incompatível com os afazeres da m agistratu ra”. Assim, deve-se avaliar, “no caso concreto, se a atividade de magis tério inviabiliza o ofício judicante”.91 E concluiu que “um a função de magistério” não significa que o magistrado está restrito a exercer a função de professor em um a única instituição. O art. 95, parágrafo único, da Constituição Federal, tam bém im pede que os magistrados recebam, a qualquer título ou pretexto, cus tas ou participação em processo, além de proibir que eles se dediquem a atividades político-partidárias. A Emenda Constitucional n. 45/2004 incluiu mais impedimentos aos juizes (art. 95, parágrafo único, IV e V). São eles: receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; e exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. 9' Medida Cautelar na ADIn n. 3.126/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.02.2005. A ementa do acórdão tem o seguinte teor: "(...) Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra a Resolução n. 336, de 2003, do Presidente do Conselho da Justiça Federal, que dis põe sobre o acúmulo do exercício da magistratura com o exercício do magistério, no âmbito da Justiça Federal de primeiro e segundo graus. 2 - Alegação no sentido de que a matéria em análise já encontra tratamento na Constituição Federal (art. 95, parágrafo único, I), e caso comportasse regulamentação, esta deveria vir sob a forma de lei complementar, no próprio Estatuto da Magistratura. 3 - Suposta incompetência do Conselho da Justiça Federal para editar o referido ato, porquanto fora de suas atribuições definidas no art. 105, parágrafo único, da Carta Magna. 4 - Considerou-se, no caso, que o objetivo da restrição constitucional é o de impedir o exercício da atividade de magistério que se revele incompatível com os afaze res da magistratura. Necessidade de se avaliar, no caso concreto, se a atividade de magistério inviabiliza o ofício judicante. 5 - Referendada a liminar, nos termos em que foi concedida pelo ministro em exercício da presidência do Supremo Tribunal Federal, tão-somente para sus pender a vigência da expressão 'único(a)', constante da redação do art. 1o da Resolução n. 336/2003, do Conselho de Justiça Federal".
Direito s
e
g a r a n t i a s
FUNDAMENTAIS
8
A Constituição é o docum ento jurídico que, fun dam en talmente, rege as relações de poder em um a sociedade, fixan do a m aneira de seu exercício, a forma e o sistema de gover no, a estrutura dos órgãos do Estado, bem com o os limites de sua atuação, especialmente por meio da previsão dos direitos fundamentais. Essa noção surge com o advento das Constituições escri tas, resultantes do constitucionalismo, no fim do século XVIII, visando à contenção do poder absoluto. Assim é que a Declaração dos Direitos do H o m em e do Cidadão, de 1789, previu, em seu art. 16, o seguinte: “Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direi tos nem determ inada a separação dos poderes, não tem C onstituição” 1
' Para uma análise das origens e evoluções das liberdades fundamentais, bem como da evolução dos direitos do homem na França depois da Declaração de 1789, conferir Is r a e l , Jean-Jacques. Direitos das liberdades fundamentais, p. 52 e segs.
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AS G ER AÇÕES DOS D I R E I T O S FUNDAMENTAIS
C om um ente, a doutrina identifica os direitos fundam entais em três gerações, conform e seu surgim ento histórico. A primeira geração é formada pelos tradicionais direitos individuais ligados à liberdade, criando um a oposição entre o indivíduo e o Estado. Os direitos de prim eira geração têm caráter negativo, visto que suas previsões cam inham no sentido de exigir um a abstenção, u m não fazer, um a omissão do Estado, ou seja, os direitos de prim eira geração são respeitados na medida em que o Estado não ingressa na esfera de direitos conferidos aos indivíduos. Nessa prim eira fase, que se inicia no fim do século XVIII, são dis seminados, entre outros, os direitos relacionados à liberdade de loco moção, de religião, de opinião e de imprensa, bem com o à inviolabili dade de domicílio e ao sigilo de correspondência. A segunda geração contempla os direitos coletivos, buscando asse gurar a igualdade entre as pessoas p o r meio da exigência de prestações do Estado. Portanto, diferentemente dos direitos de prim eira geração, agora não se pretende mais um a abstenção do Estado, mas são reclamadas ações efetivas deste com vistas a conferir os direitos às pessoas.2 Os direitos de segunda geração têm caráter positivo, um a vez que suas previsões exigem um a ação do Estado, ou seja, os direitos de se gunda geração são respeitados na m edida em que o Estado age, atua, pratica ações voltadas a proporcionar a igualdade entre indivíduos.3
2 Sobre essa transição, Norberto Bobbio (in: A era dos direitos, p. 69) afirma o seguinte: "Com relação ao primeiro processo, ocorreu a passagem dos direitos de liberdade — das chamadas liberdades negativas, de religião, de opinião, de imprensa etc. — para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado". 3 Conferir M a r t in e s , Temistocle. Diritto costituzionale, p. 689 e segs. Esse autor, distin guindo as liberdades negativas das liberdades positivas, afirma que, na passagem do Estado moderno ou de direito ao Estado social, não se exige somente que os poderes públicos deixem de intervir na esfera da autonomia privada do indivíduo, mas pretende-se um comporta mento ativo do Estado, para dar atuação ao princípio da igualdade substancial, viabilizando o exercício dos direitos políticos, econômicos e sociais.
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Na segunda geração, que tem início no século XIX, mas se firma nos prim eiros anos do século XX, são difundidos, por exemplo, os direitos sociais, econômicos, previdenciários, bem com o os relaciona dos à saúde, educação e cultura. Os arts. 6o a 11 da C onstituição Federal contem plam os direitos sociais de form a sistematizada. O art. 6o prevê que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a m oradia, o lazer, a segurança, a p re vidência social, a proteção à m aternidade e à infância, bem com o a assistência aos desam parados. O art. 7o en um era os direitos dos tra balhadores urbano s e rurais en q u an to o art. 8o trata da livre associa ção profissional ou sindical. O art. 9o disciplina o direito de greve. Já o art. 10 dispõe que é “assegurada a participação dos trabalhadores e em pregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus inte resses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”. Por fim, o art. 11 estabelece que, nas empresas com mais de duzentos em pregados, é assegurada a eleição de u m representante destes com a finalidade exclusiva de prom over-lhes o en ten dim ento direto com os em pregadores. A terceira geração, identificada nas últimas décadas, consagra direi tos universais voltados à fraternidade, procurando assegurar a todos, por exemplo, um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a soli dariedade entre os povos e a paz.4 Essas três gerações de direitos fundam entais foram reconhecidas pelo Suprem o Tribunal Federal, ao julgar, em 30 de ou tu b ro de 1995, o M andado de Segurança n. 22.164/SP, relatado pelo m inistro Celso de Mello:
Norberto Bobbio (in: A era dos direitos cit. p. 6 ) comenta que, ao "lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda ex cessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído". Manoel Gonçalves Ferreira Filho (in: Curso de direito cons titucional cit. p. 288) afirma que "se começa a falar numa terceira geração dos direitos do homem. Seriam direitos de solidariedade: direito à paz, ao desenvolvimento, ao respeito ao patrimônio comum da humanidade, ao meio ambiente". 4
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Direi to de terceira geração. Princípio da solidariedade. O direito à integridade do meio ambiente — típico direito de terceira geração — constitui prerro gativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o
princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econôm i cos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o principio da igualdade, os direitos de ter
ceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da soli
dariedade e constituem um momento importante no processo de desen volvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracteri zados, enquanto valores fundam entais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.
Ainda não há um consenso sobre quais seriam os direitos de q u a r ta geração. Aliás, nem sequer há consenso sobre a existência dessa o u tra geração de direitos. N orberto Bobbio, no início da década de 1990, já falava no surgi m ento de direitos de quarta geração “referentes aos efeitos cada vez mais traum áticos da pesquisa biológica, que perm itirá manipulações do patrim ônio genético de cada indivíduo”.5 Mas, na m esma década, partindo de u m a análise sobre a globalização econômica e política, Paulo Bonavides defendia que seriam: (...) direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aber ta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência .6
Norberto. A era dos direitos cit. p. 6. 6 B o n a v id e s , Paulo. Curso de direito constitucional cit. p. 524-6. 5 Bob bio,
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Tais gerações de direitos, obviamente, não se excluem, mas vão se som ando e com pletando com o passar do tempo.
DIREITOS E GARANTIAS
A diferença que se faz entre os direitos e as garantias é a seguinte: enquanto aqueles se traduzem com o bens da vida, as garantias buscam assegurá-los. Os direitos são declaratórios, enquanto as garantias são assecuratórias.7 Um exemplo típico de um direito e sua respectiva garantia se en contra no art. 5o, XV e LXVIII, da Constituição Federal. Enquanto aquele inciso declara o direito à livre locomoção em território nacional em tem po de paz, este garante o exercício desse direito na m edida em que estabelece a concessão de habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
APLICABILIDADE
O art. 5o, § Io, da Constituição Federal, prevê que as norm as definidoras dos direitos e garantias fundam entais têm aplicação im e diata. Assim, todas as disposições que definirem os direitos e garantias fundam entais — segundo a classificação de José Afonso da Silva sobre a eficácia e aplicabilidade das norm as constitucionais — devem ser consideradas norm as de eficácia plena ou contida, produzindo im e diatam ente todos efeitos possíveis, em razão de disciplinar diretam en te as matérias, as situações e os com portam entos que cogitam. Apesar de ser um parágrafo do art. 5o da Constituição, a dispo sição constitucional que impõe a aplicação imediata aos direitos e ga
Nesse sentido é a exposição de José Afonso da Silva (in: Curso de direito constitucional positivo cit. p. 189 e 190), baseada nas lições de Ruy Barbosa. Conferir também B onavides, Paulo. Curso de direito constitucional cit. p. 481 e segs. 7
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rantias fundam entais não se refere somente aos direitos e garantias previstos no art. 5o, mas a todos aqueles espalhados pela Constituição.8 Em bora tal disposição constitucional não resolva todos os proble mas relacionados à aplicabilidade dos direitos fundam entais,9 a im portância dela é inegável. C o m o afirma José Joaquim G om es Canotilho, a aplicação im e diata dos direitos e garantias im pede que as entidades legiferantes criem atos legislativos contrários às n o rm as e aos princípios consti tucionais, ou seja, proíbe a edição de leis violadoras dos direitos e garantias. Além disso, o legislador está vinculado positivam ente aos direitos e garantias, devendo realizá-los, o tim izando sua norm atividade e atualidade.10
Nesse sentido, Piovesan , Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas cit. p. 106 e 107; Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 248. José Afonso da Silva afirma que a disposição do art. 5o, § 1o, "abrange, pelo visto, as normas que revelam os direitos sociais, nos termos dos arts. 6 o a 11" (S ilva, José Afonso. Aplicabilidade das nor mas constitucionais cit. p. 165). 9 Sobre essa questão, José Afonso da Silva afirma o seguinte: "Isso, contudo, não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplica bilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais e coletivos. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia condita e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta" (S ilva, José Afonso. Aplicabilidade das normas cons titucionais cit. p. 165). Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky também reconhecem tal dificul dade e optam por uma solução que leva em conta uma interpretação literal do § 1o do art. 5o: "O comando constitucional utiliza a expressão 'as normas definidoras', não se podendo con cluir daí que todas aquelas contidas no Título II sejam 'definidoras' de direitos e garantias funda mentais. Algumas apenas delineiam direitos, relegando à legislação infraconstitucional a tarefa de defini-los. Esses dispositivos, dependentes de integração posterior, não estão contemplados pela Constituição entre aqueles aos quais atribui aplicabilidade imediata, por óbvia impossi bilidade lógica" (Curso de direito constitucional cit. p. 461). 10 C anotilho , José Joaquim Gomes. Direito constitucional cit. p. 401-3. Flávia Piovesan (in: Proteção judicial contra omissões legislativas cit. p. 107) afirma que "onde se encontre um preceito definidor de direito ou garantia fundamental, está delineado o campo de incidência do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias funda mentais. Cabe, assim, aos poderes constituídos, em seu âmbito próprio de competência, a tarefa de realizar a função prospectiva, dinamizadora e transformadora deste princípio". Essa autora (in: ob. cit. p. 107 e 108), com base na análise de José Joaquim Gomes Canotilho, tam bém trata da vinculação do legislador, dos órgãos jurisdicionais e da administração ao princí pio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais. 8
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Q uanto aos órgãos da administração pública, Canotilho afirma que eles, quando do exercício de sua competência de execução da lei, devem executá-la em conform idade com os dispositivos constitucio nais que consagram os direitos e as garantias. Ademais, a adm inistra ção deve executar as regras constitucionais interpretando-as de um m odo conform e aos direitos e garantias." Esse autor assevera, ainda, que os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados aos direitos e garantias fundam entais na m edida em que suas decisões, nos casos concretos, têm de ser dirigidas por tais direitos e garantias.12
EXTENSÃO
O art. 5o, § 2o, da Constituição Federal, estabelece que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios p o r ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Assim, os direitos e garantias fundam entais não são som ente aque les expressamente previstos na Constituição, mas os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Com base nisso, pode-se afirmar, com acerto, que, por exemplo, a Constituição Federal acolhe com o um direito fundam ental a desobe diência civil, definida por Maria Garcia com o u m a “form a particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ao ato de autoridade”, que tem por objetivo a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania.13 T am bém p o r força do disposto no art. 5o, § 2o, da C onstituição, o S u p rem o T ribunal Federal e n te n d e u que o p rin cíp io trib u tá rio da
11 C anotilho , José Joaquim Gomes.
Direito constitucional cit. p. 404-7.
' 2 C anotilho , José Joaquim Gomes. Op. c/f., p. 408 e 409.
Nesse sentido, conferir G a rc ia , Maria. Desobediência civil: direito fundamental, p. 257 e segs. '3
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an terio rid ad e, previsto no art. 150, III, b ,u é u m a garantia ind ivi d u a l.15 Além disso, os direitos e garantias fundamentais podem decorrer de tratados internacionais em que o Brasil seja parte.16 A Em enda Constitucional n. 45/2004 acrescentou o § 3o ao art. 5o, prevendo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos hum anos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos m em bros, serão equivalentes às emendas constitucionais.17 É possível identificar quatro tendências principais acerca da hierar quia dos tratados internacionais de direitos hum anos: a) um a que reconhece a hieraquia supraconstitucional de tais tratados; b) no extremo oposto, outra corrente pretende atribuir hierarquia de lei ordinária aos referidos docum entos internacionais; c) um a terceira vertente admite a natureza constitucional dos tratados que versam sobre direitos funtamentais; d) e a última, que confere caráter suprale-
O art. 150, III, a a c estabelece o seguinte: "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III - cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b ". 15ADIn n. 939/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 15.12.1993. Parte da ementa dessa decisão tem o seguinte teor: "1 - Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da C.F.). 2 - A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2o, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2o desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica o art. 150, III, b e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1 — o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5o, § 2o, art. 60, § 4o, IV, e art. 150, III, b, da Constituição); 2 — o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4o, I, e art. 150, VI, a, da CF)". 16 Sobre a recepção dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos na ordem jurídica brasileira, conferir Piovesan , Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional 1/1
internacional. Conferir P iovesan , Flávia. "Reforma do Judiciário e direitos humanos". In: Tavares, André Ramos et a i (coord.). Reforma do Judiciário analisada e comentada, p. 67-81. 17
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
gal mas infraconstitucional aos tratados que se ocupam dos direitos h u m an o s.18 Celso de Albuquerque Mello,19 u m dos defensores da vertente que prega a hierarquia supraconstitucional dos tratados, afirma que o Brasil ratificou, em 1929, a convenção sobre tratados de Havana, de 1928, que prevê o seguinte: “Art. 11. Os tratados continuarão a p ro duzir os seus efeitos, ainda quando se modifique a constituição inter na dos Estados contratantes”. Ademais, a convenção de Viena de 1969, sobre o direito dos trata dos, não inclui entre suas causas extintivas a alteração do direito inter no.20 Por força desses argum entos e da previsão do art. 5o, § 2o, da Constituição brasileira, Celso de Albuquerque de Mello acentua que “a n o rm a internacional prevalece sobre a n o rm a constitucional, m esm o naquele caso em que um a n o rm a constitucional posterior tente revo gar um a n o rm a internacional constitucionalizada”.21 O principal e correto questionam ento em relação a essa posição se dá com base na impossibilidade de controle da constitucionalidade dos tratados internacionais sobre direitos hum anos, caso eles sejam entendidos com o norm as supraconstitucionais. E isso não se poderia adm itir n u m Estado com o o brasileiro, que adota u m a Constituição rígida e, portanto, hierarquicamente superior, do ponto de vista formal e material, em relação ao restante do ordenam ento jurídico. Diam etralm ente oposta é a posição defendida, por exemplo, por Alexandre de Moraes22 e, m ajoritariam ente, pelo Suprem o Tribunal
Para uma análise dessas correntes, conferir Piovesan , Flávia, Direitos humanos e o di reito constitucional internacional. Verificar, também, o voto do ministro Gilmar Mendes pro ferido no RE n. 466.343-1 (relator ministro Cezar Peluso). 19 Conferir, desse autor, "0 § 2o do art. 5o da Constituição Federal” , in T orres , Ricardo Lobo (org.), Teoria dos direitos fundamentais, p. 1-33. 20 0 art. 27 dessa Convenção prevê que “ uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado". 21 M ello, Celso de Albuquerque, ” 0 § 2o do art. 5o da Constituição Federal”, in Torres , Ricardo Lobo (org.), p. 25. 22 M oraes , Alexandre de, Direito constitucional, 17a ed., p. 616-9 e 662-4. Esse autor admite uma exceção, qual seja, a dos tratados de direitos humanos que, aprovados com base no art. 5o, § 3o, da Constituição, ingressariam no ordenamento jurídico brasileiro com o status de emenda constitucional e passível, portanto, de controle da constitucionalidade. 18
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Federal,23 que atribuem hierarquia de lei ordinária federal aos tratados internacionais de direitos hum anos, aplicando-se, no caso de eventual antinom ia, o critério da revogação da lei anterior pela lei posterior que com ela seja incompatível. Para sustentar essa tese, seus defensores argum entam que o art. 4 9 , 1, da Constituição estabelece a competência do Congresso Nacional resolver, por meio de decreto legislativo, sobre tratados internacionais. E essa espécie norm ativa tem natureza infra constitucional. Ademais, o art. 102, III, b, da Constituição, confere ao Suprem o Tribunal Federal a competência de julgar, mediante recurso extraordinário, quando a decisão recorrida declarar a inconstitu cionalidade de tratado internacional ou lei federal. Essa tendência, apesar da interpretação literal que faz dos arts. 49 e 102 da Constituição, parece deixar de lado o disposto no art. 5o, § 2o, do m esm o texto constitucional, o que não se pode admitir. C om o se não bastasse, com prom ete a boa-fé e viola a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. A terceira corrente, que tem Flávia Piovesan2'1 com o um a das expoentes, defende que os tratados de direitos hum anos ingressam na ordem jurídica brasileira no patam ar hierárquico da Constituição, por força do art. 5o, § 2o, da Lei Fundamental. Essa vertente afirma que o Brasil adota um sistema misto para disciplinar os tratados, ou seja, o ordenam ento jurídico brasileiro estabelece um regime diferenciado entre os tratados internacionais de direitos hum anos e os tratados
No Supremo Tribunal Federal, essa tese passou a ser defendida a partir de 1977, com o julgamento do RE n. 80.004, relatado pelo ministro Xavier de Albuquerrque. Posterior mente, já na vigência da Constituição de 1988, esse entendimento foi ratificado quando do julgamento, em 1995, do HC n. 72.131 /RJ (relator ministro Marco Aurélio) e, em 1997, da Medida Cautelar na ADIn n. 1.480-3/DF (relator ministro Celso de Mello). Posteriormente, esse entendimento foi repetido no julgamento do RE n. 206.482-3/SP, ocorrido em 1998 (relator ministro Maurício Corrêa), e reafirmado em 2002, no HC n. 81.319-4/GO (relator ministro Celso de Mello). Cumpre ressaltar que, antes de 1977, o Supremo Tribunal Federal consagrava o primado do direito internacional sobre o direito interno infraconstitucional (Ap. cível n. 7.872, de 1943, relatada pelo ministro Philadelpho Azevedo, e Ap. cível n. 9.587, de 1951, relatada pelo ministro Orosimbo Nonato). Para uma análise dessas decisões, conferir P iovesan , Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 61 e seguintes. Verificar, também, o voto do ministro Gilmar Mendes proferido no RE n. 466.343-1 (relator ministro Cezar Peluso). 24 Piovesan , Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 43-104. 23
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internacionais com uns. Estes seriam equiparados a leis federais enquanto aqueles, em razão de seu caráter especial, teriam natureza de n o rm a constitucional. Ainda em razão do art. 5o, § 2o, da Constituição de 1988, “todos os tratados de direitos hum anos, independentem ente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, co m po nd o o bloco de constitucionalidade”.25 O § 3o do art. 5o, ao estabelecer um quorum qualificado, apenas reforça a natureza constitucional dos tratados de direitos hum anos, perm itindo que se dê a eles, além de sua configu ração materialmente constitucional, um lastro form alm ente constitu cional. Assim, para essa corrente, ao se adm itir a natureza constitucional de todos os tratados de direitos hum anos, eles se to rn am cláusula pétrea e não podem ser abolidos por meio de em enda (art. 60, § 4o). Mas os tratados apenas materialmente constitucionais são passíveis de denúncia, ao passo que os material e form alm ente constitucionais não são suscetíveis de denúncia.26 Todavia, com a inclusão do § 3o ao art. 5o da Constituição, a tese da hierarquia constitucional dos tratados de direitos hum anos restou, em certa medida, fragilizada. Tal dispositivo constitucional, além con ferir aos referidos tratados um lugar privilegiado no ordenam ento jurídico brasileiro, ressaltando o seu caráter especial em relação aos demais tratados, deixou claro, por outro lado, que aqueles d o cu m en tos internacionais que não forem “submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser co m parados às norm as constitucionais”.27 Assim, resta com o mais adequada à disciplina constitucional brasileira da atualidade o entendim ento dos tratados internacionais de direitos hum anos com o norm as supralegais mas infraconstitucionais, colocando-se, dessa forma, com base no art. 5o, § 2o, “acima da inse gurança e volativilidade do direito ordinário, mas devendo submeter-
25 Piovesan , Flávia.
Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 72.
25 Piovesan , Flávia. Op. c/f., p. 75-7. 27
Peluso).
Voto do ministro Gilmar Mendes proferido no RE n. 466.343-1 (relator ministro Cezar
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se à vontade constitucional”.28 Adotam essa posição, p o r exemplo, Sepúlveda Pertence29, Gilmar M endes30 e Oscar Vilhena Vieira31. Mas se a pretensão for a de inserir no patam ar constitucional os direitos previstos nos tratados internacionais de direitos hum anos — com todas as conseqüências daí advindas, com o a petrificação de tais norm as — , deve-se adotar o procedim ento previsto no art. 5o, § 3o, da Constituição, que estabelece a aprovação dos aludidos tratados pelo quorum das em endas constitucionais.32
DESTINATÁRIOS
Apesar de o caput do art. 5o da C o n stitu ição Federal estabelecer que se garante “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes n o País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu rança e à p ro p rie d a d e ”, deve-se en te n d e r que os destinatários dos direitos e das garantias fu n d am en tais são os brasileiros natos ou naturalizados, b em com o os estrangeiros, residentes ou não no Brasil, desde que estejam sob o c o m a n d o do o rd e n a m e n to jurídico brasileiro. Além das pessoas físicas, tam bém são destinatárias dos direitos e garantias fundam entais as pessoas jurídicas e as entidades com o as massas falidas e os condom ínios, desde que a natureza do direito ou da garantia se coadune com tais pessoas ou entidades.
28 V ieira , Oscar Vilhena,
Direitos fundamentais, p. 43.
Voto proferido pelo ministro relator, Sepúlveda Pertence, quando do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2000, do Recurso em HC n. 79.785/RJ. 30 Voto do ministro Gilmar Mendes no RE n. 466.343-1 (relator ministro Cezar Peluso). 31 V ib r a , Oscar Vilhena. Op. cit, p. 43. 32 ••§ 3 0 os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem 29
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
SUSPENSÃO
O art. 60, § 4o, IV, da Constituição Federal diz que não será objeto de deliberação a proposta de em enda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Portanto, os direitos e garantias individuais cons tituem cláusulas pétreas, não adm itindo alteração que tenda a extin gui-los, que busque suprimi-los. C ontudo, são constitucionalmente previstas as hipóteses de d im i nuição da abrangência dos direitos e garantias fundam entais nas situa ções excepcionais de decretação de estado de defesa ou estado de sítio (arts. 136, 138 e 139 da Constituição Federal).
HABEASCORPUS C O N C E IT O E H IS T O R IC O
O habeas corpus é u m a ação constitucional voltada a assegurar a liberdade física das pessoas, é u m a garantia constitucional posta à disposição dos indivíduos para viabilizar o exercício do direito de lo comoção. O habeas corpus já existia no common law e, em 1215, com a Carta Magna, outorgada pelo Rei João Sem-Terra, na Inglaterra, estabeleceu-se formalmente, além do respeito ao devido processo legal33 e do acesso ao Judiciário,34 a liberdade de locomoção.35
Na Carta Magna já se estabelecia, por exemplo, que "nenhum homem livre será deti do ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país". Para o texto traduzido, conferir www.direitoshumanos.usp.br. 34 Também já constava da Carta Magna o seguinte: "Não venderemos, nem recusare mos, nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça". 35 "Daqui para diante será lícito a qualquer pessoa sair do reino e a ele voltar, em paz e segu rança, por terra e por mar, sem prejuízo do dever de fidelidade para conosco; excetuam-se as situ ações de tempo de guerra, em que tal direito poderá ser restringido, por um curto período, para o bem geral do reino, e ainda prisioneiros e criminosos, à face da lei do país, e pessoas de países em guerra conosco e mercadores, sendo estes tratados conforme acima prescrevemos." 33
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Com a Lei do habeas corpus, de 1679,36 a Inglaterra passa a p re ver regras para dar m aior eficácia a esse in stru m en to judicial contra prisões arbitrárias, ao estabelecer, p o r exemplo, que qualquer indiví duo poderia form ular req uerim en to escrito a favor de alguma pessoa detida ou acusada da prática de um crim e e que, concedida a provi dência de habeas corpus em benefício do preso, a o rd em seria execu tada e o preso apresentado ao tribunal, em curto prazo, conform e a distância, não excedendo em caso algum o período de vinte dias. Na referida lei, tam bém se estabelecia que os oficiais e os guardas que deixassem de praticar os atos de execução seriam pun ido s com m ulta e perda do cargo. No Brasil, a Constituição do Império, de 1824, previu implicita m ente o habeas corpus ao proibir as prisões arbitrárias.37 O Código Crim inal do Império, de 1830, nos arts. 183 a 188, estabelecia sanções para quem recusasse ou retardasse a concessão ou a execução da o r dem de habeas corpus. E, em 1832, com a edição do Código de Proces so Criminal (arts. 342 e segs.), foram estabelecidas as regras adjetivas concernentes ao habeas corpus}* O § 22 do art. 72 da Constituição de 1891, por sua vez, estabeleceu expressamente o cabim ento do habeas corpus nos seguintes termos: “Dar-se-á o habeas corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em im inente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de p o d er”. C om o se nota, não havia referência explícita à violência ou coa ção em relação à liberdade de locomoção, possibilitando, então, o su r
Para o texto da Lei do habeas corpus de 1679, conferir www.direitoshumanos.usp.br. 37 0 art. 179, VIII da Constituição do Império previa o seguinte: "Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos declarados na Lei; e nestes dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Vilas, ou outras Povoações próximas aos Io ga res da residência do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoável, que a Lei mar cará, attenta ã extensão do territorio, o Juiz por uma Nota, por ele assinada, fará constar ao Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testemunhas, havendo-as". 38 Sobre a história do surgimento do habeas corpus no Brasil, conferir Sidou, J. M. Othon. 36
"Habeas corpus", mandado de segurança, mandado de injunção, "habeas data", ação popular: as garantias ativas dos direitos coletivos, p. 87 e segs.
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gim ento da cham ada doutrina brasileira do habeas corpus. Segundo essa teoria, que nasceu da redação ampla da Constituição de 1891, a d o u trin a e a jurisprudência passaram a adm itir a utilização do habeas corpus não só para garantir a liberdade física, mas tam bém para asse gurar o exercício dos direitos que dela decorressem.39 Assim, o habeas corpus “abrigava todos os direitos fundam entais que tivessem na li berdade individual o seu suporte”, ou seja, “o rem édio tutelava qual quer direito violado, desde que tivesse com o pressuposto a liberdade de locom oção”.40 A reform a constitucional de 1926 restringiu o cabim ento do habeas corpus som ente para a defesa da liberdade de locomoção,41 to r nand o insustentável a defesa da idéia surgida com a referida teoria, fa to este que im pulsionou o surgim ento do m andado de segurança pela Constituição de 1934.12
O habeas corpus, portanto, não estaria vinculado ao disposto nos §§ 13 a 16 do art. 72 da Constituição de 1891, que estabeleciam o seguinte: "§ 13. A exceção do flagrante delito, a prisão não poderá executar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente. § 14. Nin guém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as exceções especificadas em lei, nem levado à prisão ou nela detido, se prestar fiança idônea nos casos em que a lei a admitir. § 15. Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada. § 16. Aos acusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assinada pela autoridade competente com os nomes do acusador e das testemunhas". 40 S id o u , J. M. Othon. Ob. cit. p. 96. 41 A redação do art. 72, § 22, da Constituição de 1891, com a emenda de 1926, passou a ser a seguinte: "dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, por meio de prisão, ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção". 42 Nesse sentido, conferir W ald , Arnold. Do mandado de segurança na prática judiciária, p. 11 e segs.; B arsi, Celso Agrícola. Do mandado de segurança, p. 25 e segs.; S idou, J. M. Othon. "Habeas corpus", mandado de segurança cit. p. 125 e segs.; V elloso , Carlos Mário. "Direito líquido e certo. Decadência". In: Ferraz, Sérgio (org.). Cinqüenta anos de mandado de segurança, p. 52 e segs. 39
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A previsão do habeas corpus se repetiu nas Constituições de 1934,45 1937,44 194645 e 1967,46 com a Ementa n. 1/69.47 Atualmente, a Consti tuição de 1988 estabelece, no art. 5o, LXVIII, que será concedido “ha beas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de p o d er”. ■I
HABEAS CORPUS
P R E V E N T IV O
OU R E P R E S S IV O
C om o se nota da redação do inc. LXVIII do art. 5o da Constituição Federal, o habeas corpus pode ser im petrado quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção. Na prim eira hipótese, quando o indivíduo já sofreu lesão à sua li berdade de locomoção, o habeas corpus deve ser im petrado para res taurar o direto de ir e vir da pessoa, sendo chamado, nesse caso, de habeas corpus repressivo. É o que ocorre, por exemplo, quando o indi víduo está preso e se verifica o excesso de prazo da instrução criminal, que não pode ser atribuído à defesa: Habeas corpus. Processo penal. Excesso de prazo. Constrangimento ilegal. O prazo para encerramento da instrução criminal conta-se separadamente. Precedentes. A demora na formação da culpa, excedendo os 81 dias, sem motivo dado pela defesa, caracteriza constrangimento ilegal. Habeas deferido.
(HC n. 78.978/PI, rel. Min. Nelson Jobim, j. 09.05.2000). Art. 113, número 23: "Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus". 44 Art. 122, número 16: "dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar". 45 Art. 141, § 23: "Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar amea çado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus". 46 Art. 150, § 20: "Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar amea çado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas corpus". 47 O art. 153, § 20, repetiu a redação do então art. 150, § 20. 43
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Habeas corpus. Homicídio qualificado e privilegiado. Condenação. Anu lação do julgamento pelo Tribunal do Júri em sede de apelação. Manutenção da prisão cautelar fundada no clamor social e na credibi lidade das instituições. Excesso de prazo. 1 - O clamor social e a credibi lidade das instituições, por si sós, não autorizam a conclusão de que a garantia da ordem pública está ameaçada, a ponto de legitimar a manutenção da prisão cautelar do paciente enquanto aguarda novo jul gamento pelo Tribunal do Júri. 2 - A prisão processual, pela excepcionalidade que a caracteriza, pressupõe inequívoca demonstração da base empírica que justifique a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal. 3 Hipótese, ademais, em que se configura o constrangimento ilegal pelo excesso de prazo da instrução criminal, que não pode ser atribuído à defesa. Ordem concedida. (HC n. 84.662/BA, rel. Min. Eros Grau, j. 31.08.2004).
A segunda hipótese é a de o indivíduo se achar na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção. Assim, para evitar que a lesão à liberdade física da pessoa se efetive, é cabível o habeas corpus preventivo, tam bém cham ado de salvo-conduto. Em várias opo rtu nid ad es o Suprem o Tribunal Federal tem conce dido a ordem de habeas corpus preventivo, como, p o r exemplo, para im pedir que brasileiro, residente no Brasil, sofra constrangim ento em sua liberdade de locomoção, em virtude de m an d ad o de prisão expe dido por Justiça estrangeira, que, por si só, não tem n e n h u m a eficácia no país;'18 para resguardar ao acusado o direito ao silêncio, p o r ocasião
O art. 5o, LI, da Constituição estabelece que "nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprova do envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei". Parte da ementa do Habeas Corpus n. 80.923/SC, relatado pelo ministro Néri da Silveira e julgado em 15 de agosto de 2001, tem o seguinte teor: "(...) Habeas corpus preventivo. 2 - Mandado de prisão expedido por magistrado canadense contra pessoa residente no Brasil, para cuja execu ção foi solicitada a cooperação da Interpol-Brasil. Inexistência de pedido de extradição. 3 Competência do STF. Art. 102,1, g, da Constituição Federal. 4 - Em face do mandado de pri são contra a paciente expedido por magistrado canadense, sob a acusação de haver cometi do o ilícito criminal previsto no art. 282, a, do Código Penal do Canadá, e solicitada à Interpol sua execução, fica caracterizada situação de ameaça à liberdade de ir e vir. 5 - Habeas corpus ' l8
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de seu depoim ento à comissão parlam entar de inquérito, em relação aos fatos que possam constituir elementos de sua incrim inação;49 ou para garantir o direito de o indivíduo não ser preso senão por ordem fundam entada da autoridade judiciária com petente ou em flagrante delito.50 As duas hipóteses — a do habeas corpus preventivo e a do repres sivo — , além de decorrerem do inc. LXVIII do art. 5o da Constituição Federal, como afirmado anteriorm ente, tam bém se originam do dis posto no inc. XXXV do m esm o artigo, que consagra o livre acesso ao Judiciário no caso de lesão ou ameaça a direito. ■I O PACIENTE, O IM P E T R A N T E E O IM P E T R A D O
Paciente é o destinatário do habeas corpus, é a pessoa física que vai usufruir dessa garantia, que pretende se beneficiar desse remédio cons titucional, sob a alegação de que está sofrendo ou acha-se ameaçada de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, p o r ilegali dade ou abuso de poder. parcialmente conhecido e, nessa parte, concedido, para assegurar à paciente salvo conduto em todo o território nacional. Em se tratando de pessoa residente no Brasil, náo há de sofrer constrangimento em sua liberdade de locomoção, em virtude de mandado de prisão expedi do por justiça estrangeira, o qual, por si só, não pode lograr qualquer eficácia no país. 6 - Co municação da decisão do STF ao Ministério da Justiça e ao Departamento de Polícia Federal, Divisão da Interpol, para que, diante da ameaça efetiva á liberdade, se adotem providências indispensáveis, em ordem a que a paciente, com residência em Florianópolis, não sofra restri ções em sua liberdade de locomoção e permaneça no país enquanto lhe aprouver". 49 Conferir, entre muitos outros, o Habeas Corpus n. 80.584/PA, relatado pelo ministro Néri da Silveira e julgado em 8 de março de 2001: "(...) Habeas corpus. 2 - Pretendida exclusão dos pacientes, desde logo, do inquérito, e que não sejam presos, nem processados, em decorrência dos fatos investigados por comissão parlamentar de inquérito (CPI). 3 - Não é cabível, sem exame de fatos concretos, reconhecer que esteja a CPI impedida de investigar os pacientes. Além disso, não há indicação de ato concreto e específico, por parte do órgão tido por coator, a evidenciar a prática de comportamento abusivo ou ilegal, ou ameaça à liberdade de ir e vir dos pacientes, o que não se há de ter como caracterizado pela só circunstância de convocação para depor na CPI. 4 - Habeas corpus preventivo deferido, parcialmente, tão-só, para que seja resguardado aos acusados o direito ao silêncio, por ocasião de seus depoimen tos, de referência a fatos que possam constituir elemento de sua incriminação". ,j0 "Habeas corpus. 'Trotoir'. Salvo-conduto. É direito indispensável da recorrente não ser presa senão por ordem fundamentada da autoridade judiciária competente ou em fla grante (CF, art. 5o, LXI), o que não impede o exercício do poder de polícia preventivo ou repressivo do funcionário da administração, segundo as normas legais e regulamentares, respondendo este pelos abusos que cometer. Recurso conhecido e, em parte, provido para
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O autor da ação constitucional denom inada habeas corpus é cha m ado de im petrante, que pode ser qualquer pessoa capaz ou incapaz, conhecida ou desconhecida do paciente. Aliás, o próprio paciente pode im petrar habeas corpus em seu favor. U m a vez que as garantias fundam entais devem ser, sempre, inter pretadas extensivamente, deve-se aceitar a impetração do habeas corpus por pessoa jurídica, com o já adm itiu o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso de Habeas Corpus n. 3.716-4/PR, julgado em 29 de ju n h o de 1994 e relatado pelo m inistro Jesus Costa Lima: É possível a impetração de habeas corpus por pessoa jurídica em favor de um de seus sócios, pois não se deve antepor restrições a uma ação cujo escopo fundamental é preservar a liberdade do cidadão contra quaisquer ilegalidades ou abusos de poder.
C um pre frisar que a im petração do habeas corpus não exige a pre sença de advogado, mas, obviamente, pode ser feita p o r esse profis sional do direito. O representante do M inistério Público tam b ém pode im p etrar habeas corpus, desde que não seja desautorizado pelo paciente31 e não tenha a intenção de desvirtuar o objetivo da garantia constitucional que, com o se viu, se presta a proteger a liberdade de locomoção dos indivíduos. Assim, não deve se aceitar a impetração de habeas corpus pelo órgão do Ministério Público q u an d o isso ocorrer para favorecer interesses da acusação.52 assegurar a garantia constitucional acima referida" (Recurso em HC n. 67.441/SP, rel. Min. Célio Borja, j. 07.04.1989). 51 Conferir Habeas Corpus n. 75.347/7-MG, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 3 de setembro de 1997 e relatado pelo ministro Carlos Velloso: "Constitucional. Processual Penal. Habeas corpus impetrado pelo Ministério Público: desautorização pelo paciente. I Habeas corpus impetrado originariamente ao Supremo Tribunal Federal, pelo Ministério Pú blico, e desautorizado pelo paciente (RI/STF, art. 192, parágrafo único). Não conhecimento do pedido. II - HC não conhecido". 52 Conferir Habeas Corpus n. 77.017-5-RS, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de junho de 1998, relatado pelo ministro Maurício Corrêa: " Habeas corpus. Legitimidade ativa do Promotor de Justiça. Crime militar. Lesão corporal leve (art. 209, caput, do CPM). Vítima com idade inferior a 18 (dezoito) anos. Retratação da representação. Lei n. 9.099/95. Aplicação do art. 8 8 na Justiça Militar. 1 - O Código de Processo Penal (art. 654) e a Lei Or gânica Nacional do Ministério Público (art. 32, I) conferem legitimidade ao Promotor de
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Por fim, o órgão do Poder Judiciário pode conceder a ordem de habeas corpus, de ofício, ao tom ar conhecimento de que está ocorrendo u m a lesão ilegal ou abusiva ao direito de locomoção de um a pessoa.53 O im petrado é a autoridade que, ilegalmente ou com abuso de p o der, viola ou ameaça de lesão a liberdade de locomoção do indivíduo. A autoridade poderá ser, p o r exemplo, um delegado, um p ro m o to r de Justiça,5‘‘ um juiz ou um tribunal. Admite-se, excepcionalmente, a impetração de habeas corpus contra particular, como se nota da seguinte decisão proferida em 29 de abril de 1996, pelo Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus n. 4.120-0/RJ (rel. Min. Anselmo Santiago e rel. para o acórdão Min. Vicente Leal): Constitucional. Processual penal. Constrangimento ilegal. Restrição ao direito de locomoção. Ato de particular. Habeas corpus. Admissibilidade. 0 habeas corpus é ação constitucional destinada a garantir o direito de locomoção, em face de ameaça ou de efetiva violação por ilegalidade ou abuso de poder. Do teor da cláusula constitucional pertinente (art. 5o, LXVIII) exsurge o entendimento no sentido de admitir-se o uso da ga rantia inclusive na hipótese em que a ilegalidade provenha de ato de particular, não se exigindo que o constrangimento seja exercido por agente do Poder Público. Recurso ordinário provido.
Nesse caso, um a pessoa requereu ordem de habeas corpus apontan do como coator um particular, no caso, o síndico do condom ínio onde residia, alegando que, em bora fosse proprietária de um dos apartam en Justiça para impetrar habeas corpus, desde que, segundo a jurisprudência desta Corte, a im petração não atente contra o interesse do paciente, caracterizando abuso de poder, com o fito de favorecer interesses da acusação. 2 - Formalizada na Polícia Civil a representação con tra o agressor, tem-se como contaminada pelo vício de manifestação da vontade da vítima, com idade inferior a 18 (dezoito) anos, a retratação ocorrida em estabelecimento militar, me diante termo tomado por oficial militar e perante outros policiais que anteriormente a seviciaram. 3 - Aplica-se à Justiça Militar o art. 8 8 da Lei n. 9.099/95. Precedentes. 4 - Habeas corpus indeferido". S3 Nesse sentido, conferir a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 77.255-3/RJ (rel. Min. Sydney Sanches, j. 23.02.1999). M Quando, por exemplo, a instauração do inquérito policial se dá em razão de requisição do órgão do Ministério Público, com base no art. 5o, II, do Código de Processo Penal. Nesse sen tido, conferir o julgamento do Recurso Extraordinário n. 285.569-3/SP, pelo Supremo Tribunal Federal, ocorrido em 18 de dezembro de 2000, cujo relator foi o ministro Moreira Alves.
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tos do edifício, vinha sendo impedida de entrar no aludido prédio pelo fato de existir débito condominial sobre a referida unidade. Apesar da possibilidade de mover a ação possessória pertinente, o Superior Tribunal de Justiça adm itiu o cabim ento do habeas corpus, pois havia efetivo cerceamento do direito de ir e vir do paciente. C ontudo, a admissibilidade da impetração de habeas corpus nesses casos deve ser excepcional, porque, se a liberdade de locomoção de u m a pessoa está sendo violada por u m particular, o atingido terá à sua disposição as ações possessórias ou, diante de um crime, como, por exemplo, seqüestro ou cárcere privado, o com um seria com unicar o fa to à autoridade policial para as devidas providências. C ontudo, em situações com o a descrita acima ou, por exemplo, na internação de u m a pessoa em um a clínica médica particular, a jurisprudência tem adm itido o cabim ento do habeas corpus.
Wm I M P O S S IB I L I D A D E
DE S U PR E S S Ã O
Por força do disposto no art. 60, § 4o, IV, da Constituição Fede ral, o habeas corpus é u m a cláusula pétrea, ou seja, não se pode a d m i tir n e n h u m a em enda à Constituição que tenda a abolir essa garantia individual. Todavia, nas hipóteses de estado de defesa ou estado de sítio, a Constituição Federal admite, excepcionalmente, e nos estritos termos previstos nos arts. 136, 138 e 139, a dim inuição da abrangência do habeas corpus, como, por exemplo, ao perm itir que um a autoridade administrativa — e não o juiz — determ ine a prisão de pessoas por crime contra o Estado. Por fim, vale lem brar que os arts. 142, § 2o, e 42, § Io, da C onsti tuição Federal, estabelecem que não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Assim, o Judiciário está im pedido de conceder habeas corpus se a restrição à liberdade de locomoção ocor reu em razão de punição disciplinar militar. Esses dispositivos constitucionais devem ser entendidos de m odo a evitar que o Judiciário se imiscua no m érito do ato punitivo, preser vando, assim, os fundam entos de hierarquia e disciplina que regem as Forças Armadas, as Polícias Militares e os C orpos de Bombeiros Mili tares dos estados e do Distrito Federal.
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Foi nesse sentido que decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao jul gar, em 19 de agosto de 2003, o Recurso Extraordinário n. 338.840/RS, relatado pela m inistra Ellen Gracie: Recurso extraordinário. Matéria criminal. Punição disciplinar militar. Não há que se falar em violação ao art. 142, § 2o, da CF, se a concessão de
habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tãosomente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito. Concessão de ordem que se pautou pela apreciação dos aspectos fáticos da medida punitiva militar, invadin do seu mérito. A punição disciplinar militar atendeu aos pressupostos de legalidade, quais sejam, a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente, tornando, portanto, incabível a apreciação do habeas corpus. Recurso conhecido e provido.
C om o adverte Alexandre de Moraes,55 baseado nas lições de Pontes de M iranda e em decisões do Suprem o Tribunal Federal, o Judiciário não está im pedido de analisar os pressupostos de legalidade do ato, verificando, para a imposição da punição disciplinar militar ao transgressor, a obediência aos seguintes requisitos: hierarquia; poder disciplinar; ato ligado à função; pena suscetível de ser aplicada disci plinarm ente.56
55 M oraes , Alexandre de.
Direito constitucional cit. p. 124.
No Habeas Corpus n. 70.648-7/RJ, relatado pelo ministro Moreira Alves e julgado em 9 de novembro de 1993, o Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte: "O entendimento relativo ao § 20 do art. 153 da Emenda Constitucional n. 1/69, segundo o qual o princípio, de que nas transgressões disciplinares não cabia habeas corpus, não impedia que se exami nasse, nele, a ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (a hie rarquia, o poder disciplinar, o ato ligado ã função e a pena susceptível de ser aplicada discipli narmente), continua válido para o disposto no § 2° do art. 142 da atual Constituição que é apenas mais restritivo quanto ao âmbito dessas transgressões disciplinares, pois as limita às de natureza militar". 56
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
H A B E A S D ATA S U R G IM E N T O E C O N C E IT O
O habeas data é um a garantia constitucional que, no direito b ra sileiro, surgiu com a Constituição de 1988 para proteger a intimidade, a privacidade e a dignidade das pessoas,57 assegurando o acesso às informações sobre elas constantes dos registros ou bancos de dados governamentais ou de caráter público, bem com o para viabilizar a reti ficação de eventuais informações incorretas ali constantes. A criação dessa ação judicial se deu, com o lembra Michel Temer,58 em razão do térm ino do período em que o Brasil foi subm etido à di tadura militar, quando os órgãos de informação coletavam dados so bre a convicção política, filosófica, além da conduta pessoal dos indi víduos, m antendo tais informações sob sigilo, mas utilizando-as para desencadear perseguições, restringir direitos e im p o r sanções. No entanto, o increm ento da informática, com a penetração desta no cam po dos negócios, tam bém pode ser apontado com o motivo para a criação do habeas data, com o afirma O th o n Sidou.59 Assim, a Constituição, buscando evitar os arbítrios que eram co metidos durante o regime militar e im pedir que novos abusos viessem a ocorrer com o desenvolvimento da informática, passou a assegurar às pessoas, por meio do habeas data, o conhecim ento das informações relativas a elas, constantes dos bancos de dados de entidades governa mentais ou de caráter público, bem com o a possibilidade de retificação de eventuais dados incorretos. Tal previsão, que se presta a defender a dignidade, a privacidade e a intim idade das pessoas, encontra-se no art. 5o, LXXII, da Constituição Federal. Esse dispositivo constitucional, regulamentado pela Lei n. 9.507, de 12 de novembro de 1997, encontra-se assim redigido: “conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecim ento de informações relati
57 Sobre a proteção da intimidade e da dignidade da pessoa, por meio do habeas data, conferir G uerra Filho, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, p. 159. 58 T em er , Michel. Elementos de direito constitucional cit. p. 211. 59 S idou , J. M. Othon. "Habeas Corpus", mandado de segurança cit. p. 287.
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vas à pessoa do im petrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retifi cação de dados, quando não se prefira fazê-lo p o r processo sigiloso, judicial ou administrativo”. M
O B J E T IV O S
Em Portugal, o art. 35 da Constituição estabelece regras relativas à utilização da informática da seguinte maneira: 1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei. (...) 3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados refe rentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não dis criminação ou para processamento de dados estatísticos não individual mente identificáveis. 4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei. (...) 6. A todos é garantido livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras e as formas adequadas de proteção de dados pessoais e de outros cuja salva guarda se justifique por razões de interesse nacional. 7. Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de proteção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da lei.
No Brasil, com o já foi dito, a Constituição estabelece que, por meio do habeas data, é possível alcançar dois objetivos: conhecer as infor mações sobre a pessoa do im petrante, constantes de registros ou b a n cos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; e retificar os dados existentes. Sem dúvida, o direito de retificação dos dados abrange tam bém a atualização das informações e até m esm o a supressão dos dados exis tentes sobre o impetrante.
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Sobre essa questão — e adm itindo a fungibilidade entre o habeas corpus e o habeas data — o extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo proferiu a seguinte decisão: Habeas corpus. Impetração fundada na existência de certidão de antece dentes criminais na qual consta erroneamente que o paciente estaria preso por força de condenação definitiva. Conhecimento como habeas data e deferimento para que sejam canceladas as anotações. É de ser conhecido como habeas data o habeas corpus impetrado com fundamento na existência de certidão de antecedentes criminais na qual consta, erroneamente, que o paciente estaria preso por força de conde nação definitiva, imposta, na verdade, ao autor do delito com o qual o ora paciente compartilha dados coincidentes de qualificação. Impõe-se o deferimento para que seja determinado o cancelamento dessas anota ções, para que ele não continue submetido a evidente constrangimento ilegal. Apesar de ser o habeas data definido como ação civil especial, é irrelevante o fato de o registro que se deseja ver modificado tenha origem criminal (São Paulo, 8a Câmara, Habeas Corpus n. 440.580/8, rel. Ubiratan de Arruda, j. 22.05.2003).
A Lei n. 9.507/97, que regula o direito de acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data, acrescentou outro objetivo ao prever que o habeas data tam bém será concedido para anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro, mas justificável, e que esteja sob pendência judicial ou amigável.60 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, aplicando essa pre visão legal, decidiu o seguinte:
As previsões da Lei n. 9.507/97, sobre essa questão, estão assim redigidas: "Art. 4o. § 2o Ainda que não se constate a inexatidão do dado, se o interessado apresentar explicação ou contestação sobre o mesmo, justificando possível pendência sobre o fato objeto do dado, tal explicação será anotada no cadastro do interessado". "Art. 7°. Conceder-se-á habeas data: (...) III - para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável." 60
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m a n u a l de d ir eit o c o n s t it u c io n a l
O devedor que se encontra discutindo o débito que deu ou poderá dar origem a registros em bancos de dados de informações creditícias tem direito à anotação e não à eliminação ou sustação do referido registro. Exegese dos arts. 4o, §§ 2° e 7o, III, da Lei n. 9.507/97 (17a Câmara Cível, Ap. 70006345003, rel. Elaine Harzheim Macedo, j. 26.08.2003).
Em 1991, o Suprem o Tribunal Federal, ao julgar o Recurso em Habeas Data n. 22/DF, relatado pelo m inistro Celso de Mello, revelava a im portância e os objetivos dessa garantia constitucional, afirm ando que o regime democrático rejeita o poder que oculta e o poder que se oculta: A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracteriza ção da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo político-jurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que se oculta. Com essa vedação, pretendeu o cons tituinte tornar efetivamente legítima, em face dos destinatários do poder, a prática das instituições do Estado. O habeas data configura remédio jurídico-processual, de natureza constitucional, que se destina a garantir, em favor da pessoa interessada, o exercício de pretensão jurídica discernível em seu tríplice aspecto: (a) direito de acesso aos registros; (b) direito de retificação dos registros e (c) direito de complementação dos registros. Trata-se de relevante instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, a qual representa, no plano institucional, a mais expressiva reação jurídica do Estado às situações que lesem, efetiva ou potencialmente, os direitos fundamentais da pessoa, quaisquer que sejam as dimensões em que estes se projetem.
Levando em conta o entendim ento jurisprudencial brasileiro e a experiência portuguesa, bem com o o fato de que os direitos e garan tias fundam entais devem ser interpretados extensivamente, não se pode negar a possibilidade de im petração do habeas data para que o interessado obtenha esclarecimentos sobre as razões da coleta dos d a dos pela entidade que m antém os registros ou o banco de dados. Tam bém não se deve im pedir que o im petrante do habeas data discuta,
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além da veracidade das informações, a constitucionalidade e a legali dade da coleta delas.61 ■I L E G IT IM ID A D E ATIVA
O im petrante do habeas data pode ser tanto pessoa física quanto jurídica, nacional ou estrangeira.62 C ontudo, por se tratar de um ins tru m en to voltado à defesa da dignidade, da intim idade e da privaci dade, deve-se perm itir que o im petrante somente obtenha, p o r meio dessa garantia constitucional, as informações relativas a ele mesmo. ■1 L E G IT IM ID A D E PASSIVA
O im petrado deve ser a entidade governamental ou o órgão priva do que arm azena as informações, os registros ou os bancos de dados de caráter público. C om o estabelece o parágrafo único do art. I o da Lei n. 9.507/97, considera-se de (...) caráter público todo registro ou banco de dados contendo infor mações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações.
Assim, além das entidades governamentais, tam bém as entidades privadas — com o o Serviço de Proteção ao Crédito ou as instituições financeiras privadas — têm legitimidade para figurar no pólo passivo do habeas data, desde que m an ten ham registros ou bancos de dados que contenham informações que sejam ou que possam ser transm iti das a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade prod uto ra ou depositária das informações.63 Nesse sentido, conferir M ota, Leda Pereira & S pitzcovsky , Celso. Curso de direito cons titucional cit. p. 536. Tais autores defendem a ampliação do cabimento do habeas data com base nas lições dos juristas portugueses José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira. 62 Nesse sentido, conferir Tavares , André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 721. 63 Logo após a promulgação da Constituição, Vicente Greco Filho afirmava que esta ex cluiria do pólo passivo do habeas data as "entidades privadas, ainda que sob fiscalização ou regramento geral do Poder Público, como os bancos ou instituições financeiras" (in: Tutela constitucional das liberdades, p. 177). 61
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C ontudo, tal previsão legal restringe, sobremaneira, o cabimento do habeas data, revelando-se, portanto, inconstitucional. Ora, adm itir a im petração do habeas data somente contra as pes soas que m an ten ham registros ou bancos de dados que contenham informações terceirizáveis esvazia a previsão do art. 5o, LXXII, ay da Constituição. Tal dispositivo estabelece que o habeas data deve ser concedido para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do im pe trante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades gover namentais ou de caráter público. E se informações de “caráter público” significam, por definição legal, aquelas que podem ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade pro dutora ou depositária das informações, qual o interesse de a pessoa impetrar habeas data se a informação pode, desde logo, ser transmitida a terceiros e, portanto, ser do conhecimento do próprio interessado? Sem dúvida, o interessado deve ter conhecim ento de informações sobre ele que constem de qualquer órgão governamental ou entidade privada de caráter público, principalmente se as informações não fo rem terceirizáveis, sob pena de se adm itir o uso de tais dados para de sencadear perseguições, im por sanções e restringir direitos. Aliás, sem atentar para essa questão é que o Suprem o Tribunal Federal decidiu, p o r exemplo, que o Banco do Brasil não tem legitimi dade para figurar no pólo passivo do habeas data:M Habeas data. Ilegitimidade passiva do Banco do Brasil S.A para a revela ção, a ex-empregada, do conteúdo da ficha de pessoal, por não se tratar, no caso, de registro de caráter público, nem atuar o impetrado na condi ção de entidade Governamental (Constituição, art. 5o, LXXII, a e art. 173, § 1o, texto original).
RE n. 165.304-3/MG, rel. Min. Octávio Gallotti, j. 19.10.2000. O Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Data n. 32/DF, relatado pelo ministro José Dantas e julgado em 10 de abril de 1996, decidiu o seguinte: "Funcionário público. Registros funcionais. Conhecimento. Habeas data. Deferimento para determinar o pronto atendimento da postulação do requerente, de há tempo protocolizada, e ao qual não se opõe a própria autoridade impetrada". 64
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C om o se percebe, o Suprem o Tribunal Federal tem entendido que, se as informações forem terceirizáveis, o órgão que as mantiver em seus registros o u bancos de dados pode figurar com o im petrado na ação de habeas data. H
R E Q U E R IM E N T O A D M IN IS T R A T IV O PRÉVIO
A jurisprudência se firm ou no sentido de que não cabe o habeas data se não houver recusa, por parte da autoridade administrativa, de prestar as informações.65 Seguindo o entendim ento jurisprudencial, a Lei n. 9.507/97, no parágrafo único do art. 8o, estabeleceu que a petição inicial do habeas data deve ser instruída com prova: a) da recusa ao acesso às infor mações ou do decurso de mais de dez dias sem decisão; b) da recusa em fazer-se a retificação ou do decurso de mais de quinze dias sem decisão; c) da recusa em fazer-se a anotação a que se refere o § 2o do art. 4o ou do decurso de mais de quinze dias sem decisão. Vale lembrar que o § 2o do art. 4o da Lei n. 9.507/97 foi aquele que ampliou as hipóteses de cabimento do habeas data, conforme m en cionado anteriormente, ao prever que “ainda que não se constate a ine xatidão do dado, se o interessado apresentar explicação ou contestação sobre o mesmo, justificando possível pendência sobre o fato objeto do dado, tal explicação será anotada no cadastro do interessado”. C ontudo, algumas objeções devem ser feitas à exigência legal e j u risprudencial no sentido de que o im petrante, para im petrar o habeas data, dem onstre que form ulou o requerim ento administrativo e este foi negado ou a ele não foi dada resposta. A Constituição Federal, no art. 5o, XXXV, garante o livre acesso ao Judiciário ao afirm ar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Ju diciário lesão ou ameaça a direito”. Com isso, a Constituição im pediu que se condicionasse o ingresso no Judiciário ao esgotamento das vias administrativas. Apenas um a exceção ao livre acesso ao Poder Judiciário foi pre vista constitucionalmente: a hipótese da Justiça desportiva. O § Io do Enunciado n. 2 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: "Não cabe o habeas data (CF, art. 5o, LXXII, a) se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa". 65
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art. 217 estabelece que o “Poder Judiciário só adm itirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instân cias da justiça desportiva, reguladas em lei”. Assim, não se deveria restringir o acesso ao Judiciário, no caso do habeas data, ao prévio requerim ento administrativo. C ontudo, a jurisprudência que se assentou exige o requerim ento administrativo para adm itir o cabim ento do habeas data argum entan do que, sem que se negue o acesso da pessoa às informações, ela não teria interesse processual, visto que não estaria configurada a necessi dade da tutela jurisdicional, advinda de um a pretensão resistida. ■I
HABEAS DATA
E DADOS S IG IL O S O S
0 art. 5o, XXXIII, da Constituição Federal estabelece que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado”. Esse dispositivo constitucional deve ser conjugado com aquele que prevê o habeas data, de m o d o a restringir o acesso das in fo r m ações sobre a pessoa do im p etran te dessa garantia, q u a n d o o sigi lo dos dados seja im prescindível para a segurança da sociedade e do Estado? A resposta mais adequada a essa questão é negativa. Não se deve restringir o cabim ento do habeas data sob o argum ento do sigilo das informações em razão da segurança da sociedade e do Estado.66 Não foi esse, contudo, o entendim ento do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, em 10 de m aio de 2000, o Habeas Data n. 56/DF: Habeas data. Art. 5o, XXXIII, informação sigilosa. Decreto n. 1.319/94. 1 - O direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse par ticular, previsto no art. 5o, XXXIII, não se reveste de caráter absoluto,
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Nesse sentido, conferir, por exemplo, o entendimento de A lvim , José Eduardo Car reira. Habeas data, p. 13 e segs. Em sentido contrário, por exemplo, C retella J únior , José. Os
“writs" na Constituição de 1988: mandado de segurança, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção, habeas data, ação popular, habeas corpus, p. 122.
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS cedendo passo quando os dados buscados sejam de uso privativo do órgão depositário das informações. II - No caso dos autos, as informações postuladas, pertinentes a avaliação de mérito do oficial requerente, se encontravam sob responsabilidade da CPO - Comissão de Promoções de Oficiais e, nos termos do art. 22 do Decreto n. 1.319/94, eram de exclu sivo interesse desse órgão. Depreende-se, pois, que o caráter sigiloso das informações buscadas estava, objetivamente, previsto. Ordem denegada (rel. Min. Felix Fischer).
Ora, o habeas data existe para assegurar o conhecim ento de infor mações relativas à pessoa do próprio im petrante, constantes de regis tros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. Sendo assim, não há que se falar em sigilo sobre os dados do próprio im petrante, pois, com o adverte Alexandre Moraes,67 se as informações forem falsas, sua retificação não causará n e n h u m dano à segurança da sociedade e do Estado. Por outro lado, se forem corretas as informações, elas certam ente já eram de conhecim ento do próprio impetrante.
M A N D A D O DE S E G U R A N Ç A ■I S U R G IM E N T O E C O N C E IT O
A partir da Constituição de 1891, a doutrina e a jurisprudência brasileiras passaram a adm itir a utilização do habeas corpus não só para garantir a liberdade de locomoção, mas tam bém para assegurar a todos os indivíduos a defesa de qualquer direito que sofresse ou se achasse em im inente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegali dade ou abuso de poder, nos term os do art. 72, § 22, daquela Consti tuição. Essa concepção foi cham ada de doutrina brasileira do habeas corpus. Em 1926 foi levada a cabo um a reforma constitucional que to rno u insustentável a defesa da idéia surgida com a referida teoria, visto que
67 M o r a e s ,
Alexandre. Direito constitucional cit. p. 134 e 135.
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restringiu o cabim ento do habeas corpus estritamente à defesa da liber dade de locomoção.68 Com esse fato, vários direitos que eram violados p o r atos ilegais e abusivos de autoridades deixaram de ter um remédio eficaz e ágil para sua defesa, como o habeas corpus.69 Assim, com a Constituição de 1934 foi criada um a nova garantia constitucional70 denom inada m andado de segurança,71 com vistas a assegurar, de forma célere, a defesa dos direitos violados por ilegalidade ou abuso de poder que não pudessem ser protegidos pelo habeas corpus. O m andado de segurança não foi contem plado pela Constituição de 1937, mas voltou a ser previsto na Constituição de 1946,72 na de 1967,73 com a Emenda n. 1/69,74 e na de 1988. A Emenda Constitucional de 1926 deu a seguinte redação ao art. 72, § 22, da Constituição de 1891: "dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, por meio de prisão, ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção". 69 Na realidade, desde o fim do século XIX, os interditos possessórios eram utilizados pa ra a defesa dos direitos pessoais, mas o habeas corpus, até a reforma de 1926, era utilizado de forma mais eficiente para a defesa dos direitos individuais do que as ações possessórias, como afirmam V elloso , Carlos Mário. "Direito líquido e certo. Decadência" cit. p. 52; e Barbi, Celso Agrícola. "Mandado de segurança: fundamentos históricos e constitucionais". In: Fer raz, Sérgio (org.). Cinqüenta anos de mandado de segurança, p. 74 e 75. 70 Othon Sidou afirma que "o mandado de segurança nasceu da primeira Constituição da República. Ela não poderia dispensar um instituto de garantias individuais para fazer face ao estado-de-direito que plantara. O que fez a Carta de 1934 foi restaurá-lo, banido como havia sido de nossa sistemática jurídico-constitucional quando a Reforma Bernardes deu sen tido clássico ao habeas corpus, não permitindo que este nome latino se aclimatasse a um reclamo caboclo" (in: "Habeas corpus", mandado de segurança cit. p. 131). 71 No direito mexicano, há o remédio judicial conhecido como juicio de amparo, comumente comparado com o mandado de segurança. O art. 103,1, da Constituição do México, de 1917, estabelece o seguinte: "Os tribunais da Federação resolverão toda controvérsia que se suscite: I - por leis ou atos da autoridade que viole as garantias individuais". E o art. 107 da mesma Constituição prevê que o "amparo" é cabível tanto em matéria administrativa quanto para atacar atos de tribunais judiciais, administrativos ou do trabalho, e até mesmo contra sen tenças definitivas. Para uma breve análise do "amparo" mexicano, conferir Barbi, Celso Agríco la. Do mandado de segurança, p. 15-8. 72 Art. 141, § 25: "Para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder". 73 Art. 150, § 21: "Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito indivi dual líquido e certo não amparado por habeas corpus, seja qual for a autoridade responsá vel pela ilegalidade ou abuso de poder". 74 O art. 153, § 21 repetiu a redação do então art. 150, § 21. 68
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Atualmente, a previsão encontra-se no art. 5o, LXIX, assim redigido: (...) conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Portanto, o m andado de segurança é um a ação constitucional, de natureza civil, voltada a proteger direito líquido e certo, não am parado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O dispositivo que consagra esse remédio constitucional está regu lamentado, basicamente, pela Lei n. 1.533/51.75 ■I
D IR E ITO L ÍQ U ID O E CERTO
Para fins de m andado de segurança, a expressão “direito líquido e certo” significa que a garantia constitucional visa à proteção daqueles direitos que decorrem de fatos que podem ser provados por d o cu m en tos, com a petição inicial. Nesse sentido, Carlos Mário Velloso76 afirma que (...) o conceito de direito líquido e certo situa-se nos fatos. Haverá direito líquido e certo, pressuposto da ação de Segurança, do cabimento da ação, se os fatos forem incontroversos. É importante, portanto, examinar
As Leis ns. 4.166/62, 4.348/64, 5.021/65, 6.014/73, 6.071/74 e 9.259/96 ou altera ram a redação de dispositivos da Lei n. 1.533/51 ou disciplinaram questões específicas relati vas ao mandado de segurança. 75 V elloso , Carlos Mário. "Direito líquido e certo. Decadência" cit. p. 57. Hely Lopes Meirelles (in: Mandado de segurança, p. 36 e 37) conceitua direito líquido e certo da seguinte forma: "é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração (...) Em última análise, direito líquido e certo é direito comprovado de plano". Não se pode concordar com tal definição, pois os fatos é que devem ser provados, não o direito. Isso não significa que o impetrante esteja dispensado de demonstrar o direito que alega ter. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, em 1969, aprovou a Súmula n. 474, com o seguinte teor: "Não há direito líquido e certo, amparado pelo manda do de segurança, quando se escuda em lei cujos efeitos foram anulados por outra, declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal". 75
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL um tema: a prova no Mandado de Segurança. A questão é relevante, por isso que, conforme já falamos, o direito líquido e certo é condição da ação, e o direito líquido e certo é o que resulta de fatos incontroversos.
Assim, por mais complexa que seja a interpretação jurídica, por mais intrincado que se mostre o direito discutido, ele será considerado líquido e certo se tiver origem em fatos que possam ser demonstrados por meio de provas documentais, juntadas no início do processo, com a inicial.77 Aliás, nesse sentido se assentou a jurisprudência do Suprem o Tri bunal Federal com a edição da Súm ula n. 625, cujo teor é o seguinte: “Controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de m a n dado de segurança”. A imposição de se ter a prova pré-constituída ocorre porque no pro cedimento do m andado de segurança não existe dilação probatória, ou seja, não é possível, durante a tramitação dos processos dessa natureza, a realização de perícia ou cie audiência para a produção de provas orais. Todas as provas devem ser documentais e juntadas quando da propositura da ação judicial, isto é, com a inicial do m andado de segurança, como forma de dar mais agilidade e celeridade ao remédio constitucional. M
CABIM ENTO
O m andado de segurança só é cabível quando não for o caso de proteção de direitos am parados por habeas corpus ou habeas data. As sim, se houver lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção, não é cabível o m andado de segurança, pois se trata de hipótese de habeas corpus. Também não será o caso de m andado de segurança, mas sim de habeas data, se o objetivo for assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, bem como para obter a retificação desses dados. O m andado de segurança serve para atacar atos ou omissões78 de correntes de ilegalidade ou abuso de poder praticados por autoridade Nesse sentido. B astos , Celso. Do mandado de segurança, p. 9-16; e Figueiredo , Lúcia Valle. Mandado de segurança, p. 16-8. 78 Por exemplo, no Mandado de Segurança n. 23.267/SC, julgado pelo Supremo Tribunal em 3 de abril de 2003 e relatado pelo ministro Gilmar Mendes, houve a concessão do mandado de 77
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pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, prestando-se, ainda, a evitar a lesão ao direito79 e a obter a restauração do direito lesado. O art. 5o da Lei n. 1.533/51 prevê que não cabe m andado de segu rança: (a) quando houver recurso administrativo com efeito suspensivo;80 (b) contra decisão judicial que possa ser atacada por recurso processual eficaz81 ou modificado por meio de correição;82 (c) contra ato disciplinar, salvo quando praticado p o r autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial.83 segurança em razão da omissão de uma autoridade. A ementa tem o seguinte teor: "(...) Manda do de segurança. 2 - Ato omissivo de governador de estado. 3 - Atraso no repasse dos duodécimos correspondentes às dotações orçamentárias do Poder Judiciário. 4 - Art. 168 da Constituição Federal. 5 - Independência do Poder Judiciário. 6 - Precedentes. 7 - Deferimento da ordem". 79 Conferir, por exemplo, parte da ementa do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 678.667, em 6 de setembro de 2005, relatado pelo ministro Teori Albino Zavascki: "1 - Mandado de segurança é instrumento para tutela do direito líquido e certo, ameaçado ou violado por ato de autoridade. Só há direito líquido e certo quando o fato jurídico que lhe dá origem está demonstrado por prova pré-constituída. 2 - Tratando-se de man dado de segurança preventivo, a tutela jurisdicional é concedida em face da simples ameaça a direito, razão pela qual é dispensável a prova da sua efetiva lesão". Conferir também trecho da ementa da decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em 24 de novembro de 2004, no Mandado de Segurança n. 25.009/DF, relatado pelo ministro Carlos Velloso: "Constitucional. Processual. Mandado de segurança preventivo. Vantagem deferida por sentença judicial transi tada em julgado. Tribunal de Contas. Determinação no sentido da exclusão da vantagem. Coisa julgada. Ofensa. CF, art. 5o, XXXVI. I — A segurança preventiva pressupõe existência de efetiva ameaça a direito, ameaça que decorre de atos concretos da autoridade pública". 80 Verificar, por exemplo, o Recurso em Mandado de Segurança n. 9.359, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 9 de maio de 1962 (rel. Min. Ribeiro da Costa), cuja ementa é a seguinte: "Mandado de segurança. Inadmissível contra ato que caiba recurso administrati vo, com efeito suspensivo". Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança n. 24.551/DF, relatado pelo ministro Marco Aurélio e julgado em 30 de outubro de 2003, reiterou o entendimento: "Mandado de Segurança. Pendência de recurso adminis trativo com efeito suspensivo. Carência da ação. Uma vez pendente recurso administrativo dotado de efeito suspensivo, como é o caso dos embargos declaratórios contra decisão do Tribunal de Contas da União — arts. 32, II e 34, § 2o, da Lei n. 8.443/92 — , mostra-se inade quada a impetração, a teor do disposto no art. 5o, I, da Lei n. 1.535/51". 81 Conferir, por exemplo, o Agravo Regimental no Mandado de Segurança n. 19.928/DF, julgado em 3 de novembro de 1971 e relatado pelo ministro Aliomar Baleeiro. 82 Repetindo os dizeres da lei, em 13 de dezembro de 1963 o Supremo Tribunal Fede ral aprovou a Súmula n. 267, com o seguinte enunciado: "Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição". 83 Verificar, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 21 de março de 1990, no Mandado de Segurança n. 20.999/DF, relatado pelo ministro Celso de Mello. Na ementa
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Vale lem brar que essas hipóteses têm sido abrandadas pela juris prudência81 com base no princípio do livre acesso ao Judiciário, na possível irreparabilidade do dano, na necessidade imediata da provi dência e, ainda, com fundam ento de não se perm itir tais restrições caso haja lesão a direito líquido e certo. desse acórdão proferido logo após a promulgação da Constituição de 1988 consta a seguinte passagem: "1 - A Constituição brasileira de 1988 prestigiou os instrumentos de tutela jurisdi cionai das liberdades individuais ou coletivas e submeteu o exercício do poder estatal — como convém a uma sociedade democrática e livre — ao controle do Poder Judiciário. Inobstante estruturalmente desiguais, as relações entre o Estado e os indivíduos processam-se, no plano de nossa organização constitucional, sob o império estrito da lei. A rule of law, mais do que um simples legado histórico-cultural, constitui, no âmbito do sistema jurídico vigente no Brasil, pres suposto conceituai do Estado Democrático de Direito e fator de contenção do arbítrio daque les que exercem o poder. É preciso evoluir, cada vez mais, no sentido da completa justiciabilidade da atividade estatal e fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito conseqüencial, a interdição de seu exercício abusivo. O man dado de segurança desempenha, nesse contexto, uma função instrumental do maior relevo. A impugnação judicial de ato disciplinar, mediante utilização desse writ constitucional, legitima-se em face de três situações possíveis, decorrentes ( 1 ) da incompetência da autoridade, (2 ) da inobservância das formalidades essenciais e (3) da ilegalidade da sanção disciplinar. A pertinên cia jurídica do mandado de segurança, em tais hipóteses, justifica a admissibilidade do controle jurisdicionai sobre a legalidade dos atos punitivos emanados da Administração Pública no con creto exercício do seu poder disciplinar. O que os juizes e Tribunais somente não podem exami nar nesse tema, até mesmo como natural decorrência do princípio da separação de poderes, são a conveniência, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição disciplinar. Isso não significa, porém, a impossibilidade de o Judiciário verificar se existe, ou não, causa legítima que autorize a imposição da sanção disciplinar. O que se lhe veda, nesse âmbito, é, tão-somente, o exame do mérito da decisão administrativa, por tratar-se de elemento temático inerente ao po der discricionário da administração pública. 2 - A nova Constituição do Brasil instituiu, em favor dos indiciados em processo administrativo, a garantia do contraditório e da plenitude de defe sa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5o, LV). O legislador constituinte consagrou, em norma fundamental, um direito do servidor público oponível ao poder estatal. A explícita constitucionalização dessa garantia de ordem jurídica, na esfera do procedimento administrativo-disciplinar, representa um fator de clara limitação dos poderes da Administração Pública e de cor respondente intensificação do grau de proteção jurisdicionai dispensada aos direitos dos agentes públicos". 84 Conferir a Súmula n. 429 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 1o de junho de 1964: "A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do man dado de segurança contra omissão da autoridade". Conferir também o Recurso Extraordinário n. 1201.351/RF, julgado em 17 de dezembro de 1984 pelo Supremo Tribunal Federal e relata do pelo ministro Sydney Sanches: "Mandado de Segurança. Impetração na pendência de recur so administrativo com efeito suspensivo. Súmula n. 429. Incidência apenas nas hipóteses de procedimento omissivo da autoridade pública. Não nas de procedimento comissivo. Recurso Ex traordinário não conhecido". Em 25 de abril de 1966, o ministro Evandro Lins relatou o Recur-
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O Supremo Tribunal Federal tam bém já pacificou entendim entos segundo os quais não cabe m andado de segurança contra lei em tese85 nem contra decisão judicial transitada em julgado.86
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IM P E T R A N T E E IM P E TR A D O
O impetrante do m andado de segurança é o titular do direito líqui do e certo não protegido por habeas corpus ou habeas data que tenha sido lesado ou ameaçado de lesão por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de função pública. Assim, o legitimado ativo pode ser pessoa física ou jurídica, além das universalidades patrimoniais, com o os espólios e as massas falidas, e dos órgãos públicos despersonalizados, desde que dotados de capaci dade processual. so Extraordinário n. 57.752/ES, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal assentou o seguin te: "Mandado de Segurança. 0 efeito suspensivo do recurso administrativo não constitui óbice à impetração do writ". E, em 8 de abril de 1986, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recur so Extraordinário n. 100.41 O/RJ, relatado pelo ministro Aldir Passarinho, explicitou o seguinte: "O rigor da Súmula n. 267, segundo a qual 'não cabe mandado de segurança contra ato judi cial passível de recurso ou correição', tem sido abrandado pela jurisprudência, vindo a ser admi tido em casos excepcionais, configurando-se a hipótese como um deles, até porque além da irreparabilidade do dano, e necessidade de imediata providência, o impetrante não integra rela ção processual na ação em conseqüência da qual adveio o ato impugnado". 85 Súmula n. 266 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 13 de setembro de 1963: "Não cabe mandado de segurança contra lei em tese". Isso se deve ao fato de que o manda do de segurança não substitui a ação direta de inconstitucionalidade e, portanto, não pode ser utilizado como instrumento de controle abstrato da validade constitucional das leis e dos atos normativos em geral, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, em 1o de março de 2001, no Ag. Reg. no Mandado de Segurança n. 23.809/DF, relatado pelo ministro Celso de Mello: "Não se revelam sindicáveis, pela via jurídico-processual do mandado de segurança, os atos em tese, assim considerados aqueles - como as leis ou os seus equivalentes constitucionais que dispõem sobre situações gerais e impessoais, que têm alcance genérico e que disciplinam hipóteses neles abstratamente previstas. Súmula n. 266/STF. Precedentes. O mandado de segurança não se qualifica como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, não podendo ser utilizado, em conseqüência, como instrumento de controle abstrato da validade constitucional das leis e dos atos normativos em geral". 86 Súmula n. 268 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 13 de dezembro de 1963: "Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado". "Agra vo de instrumento. Decisão. Impugnação. Mandado de segurança. O mandado de segurança é meio impróprio a impugnar-se decisão de relator que haja implicado o julgamento de agra vo de instrumento, quer considerado o disposto no inc. II do artigo 5o da Lei n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951, quer o trânsito em julgado da decisão" (STF, Tribunal Pleno, MS 25031/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 02.12.2004, DJ 18.02.2005).
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Q uanto às pessoas físicas ou jurídicas, elas podem ser nacionais ou estrangeiras, domiciliadas no Brasil ou não.87 C om o decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao “estrangeiro, resi dente no exterior, tam bém é assegurado o direito de im petrar m a n d a do de segurança” (RE 215.267/SP, rel. Min. Ellen Gracie, j. 24.04.2001). O im petrado, nos term os do art. 5o, LXIX, da Constituição Fede ral, é a autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de função pública. Para fins de m andado de segurança, o im petrado deve ser a autori dade com petente para desfazer o ato,88 investida de poder de decisão para corrigir a ilegalidade ou o abuso praticado ou para suprir a om is são lesiva ao direito líquido e certo do impetrante. Portanto, nem sem pre o im petrado é o m ero executor do ato.89 O § I o do art. Io da Lei n. 1.533/51, com redação dada pela Lei n. 9.259/96, considera autoridade, para fins de m andado de segurança, o representante ou adm inistrador de entidades autárquicas e das pessoas naturais ou jurídicas com funções delegadas do Poder Público, so m ente no que entender com essas funções. Assim, o im petrado pode ser até m esm o o particular, desde que es teja no exercício de atribuições do Poder Público, por meio de um a das maneiras previstas no ordenam ento jurídico.90 Mas, com o já decidiu o Suprem o Tribunal Federal, o sujeito passi vo no m an d ad o de segurança é “a pessoa jurídica de direito público a que pertence o órgão tido com o coator, ou seja, a União, o Estado ou o Município” (RE 91.947/RJ, rel. Min. Moreira Alves, j. 06.02.1980).91
Conforme M eirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança cit. p. 59. 88 Lúcia Valle Figueiredo faz ressalvas a esse entendimento em texto publicado em 1986: "Autoridade coatora e sujeito passivo". In: Ferraz, Sérgio (org.). Cinqüenta anos de mandado de segurança, p. 24 e 25. Para essa autora, a autoridade coatora é aquela que pratica a constrição. 89 Conferir Figueiredo , Lúcia Valle. "Autoridade coatora e sujeito passivo" cit. p. 25. 90 A Súmula n. 510 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 4 de outubro de 1969, prevê o seguinte: "Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, con tra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial". 91 Nesse mesmo sentido, conferir as seguintes decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal: Ag. Reg. no RE n. 368.715/MS, rel. Min. Ellen Gracie, j. 17.06.2003; eAgr. Reg. no RE n. 233.319/PB, rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.08.2003. Nesta última decisão, a ementa do acórdão tem 87
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PRAZO PARA IM P E T R A Ç Ã O
O art. 18 da Lei n. 1.533/51 prevê que o direito de requerer m a n dado de segurança extingue-se em 120 dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato im pugnado. Trata-se de prazo decadencial, que não se suspende nem se interrom pe.92 A constitucionalidade do referido art. 18 foi bastante debatida nos tribunais e pela d o u trin a,93 mas o Suprem o Tribunal Federal as sentou, p o r meio de sua Súm ula n. 632, que “é constitucional a lei que fixa o prazo de decadência para a im petração de m a n d ad o de se» 04 gurança . Se a obrigação for de trato sucessivo, quando, por exemplo, o ato da autoridade se repete mensalmente, o prazo para impetração se renova com a m esm a freqüência.95 Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar, em 3 de maio de 2005, o Recurso em M andado de Segurança n. 24.736/DF, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa: “O
o seguinte teor: "Mandado de segurança. Autoridade coatora. Ilegitimidade para interpor recur so extraordinário. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a pessoa jurídica de direito público a que pertence a autoridade ou o órgão tido como coator é o sujeito passivo do mandado de segurança, razão por que é ele o único legitimado para recorrer da decisão que defere a ordem. Agravo regimental improvido". Em sentido contrário, conferir o Ag. Reg. no RE. n. 240.377/MG, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 22 de abril de 2003 e relatado pelo ministro Carlos Velloso: ''Mandado de segurança. Autoridade coatora. A autoridade coatora é parte na causa, representante da entidade pública, motivo por que pode recorrer". 92 A Súmula n. 430 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 1964, prevê que o "pe dido de reconsideração na via administrativa não interrompe o prazo para o mandado de segurança". 93 Celso Agrícola Barbi (in: Do mandado de segurança cit. p. 137), com acerto, afirma que o "prazo de 1 2 0 dias, tradicional em nosso direito, não tem mais razão de ser, após a transformação operada no mandado de segurança pela Constituição de 1946. Enquanto ele era adequado apenas a casos excepcionais, de ilegalidade manifesta, ainda se poderia justi ficar a limitação temporal. Mas agora, quando o mandado se tornou instrumento de uso nor mal, condicionado quase somente pelo problema probatório, não se encontram motivos pon deráveis para distingüir, apenas pelo fator tempo, entre o uso dessa via expedita e os das vias processuais comuns". Em seguida, o autor sugere a regulação do assunto pelas normas ordi nárias da prescrição. 94 Nesse sentido, conferir Figueiredo , Lúcia Valle. Mandado de segurança cit. p. 23. 95 No Recurso em Mandado de Segurança n. 24.214/DF, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 14 de junho de 2005 (rel. Min. Ellen Gracie), restou decidido o seguinte: "Não ocorre a decadência se a impetração é feita contra atos omissivos de execução autônoma e sucessiva, como o pagamento de vencimentos mensais".
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prazo de impetração do m andado de segurança é de 120 dias, contados da data da ciência do ato im pugnado (art. 18 da Lei n. 1.533/51). C on tudo, em se tratando de prestações de trato sucessivo, o prazo renova-se a cada ato”. E se o m andado de segurança for im petrado para com bater um a omissão da autoridade, o prazo de 120 dias para a impetração deve começar a contar do m o m en to em que se esgotar o prazo para a p ráti ca do ato pela autoridade.96
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L IM IN A R
O art. 7o, II, da Lei n. 1.533/51, estabelece a possibilidade de co n cessão de liminar, suspendendo o ato que deu motivo ao pedido do m andado de segurança, quando for relevante o fundam ento e se do ato im pugnado puder resultar a ineficácia da medida. Esses dois requisitos correspondem , em linhas gerais, ao fu m u s boni iuris e periculum in mora. Assim, a liminar deve ser deferida pelo magistrado quando, em sede de cognição sumária, ele ficar convenci do da aparência do direito do im petrante e da possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação, caso a medida liminar não seja deferida desde logo.
Conferir as seguintes decisões do Supremo Tribunal Federal: Mandado de Segurança n. 23.126/DF, rel. Min. limar Galvão, j. 30.09.1998; Mandado de Segurança n. 21.067/DF, rel. Min. limar Galvão, j. 20.11.1991; Mandado de Segurança n. 20.475/DF, rel. Min. Octávio Gallotti, j. 24.05.1985 ("Mandado de segurança. O prazo para a impetração tem inicio a partir do transcurso do lapso estabelecido em lei para a prática do alegado ato omissivo"); RE 71.937/SP, rel. Min. Oswaldo Trigueiro, j. 20.05.1971 ("Mandado de segurança contra ato omissivo. Do término do prazo fixado na lei para a prática do ato postulado, conta-se o prazo para a impetração da medida"); Embargos no Recurso em Mandado de Segurança n. 18.387/MG, rel. Min. Aliomar Baleeiro, j. 10.12.1969 ("Se marca a lei prazo para a prática do ato, após o decurso desse prazo começa a omissão a violar o direito do impetrante. Logo, a contar do fim daquele prazo, começou a ilegalidade por omissão, devendo-se daí contar o prazo de 120 dias para ingresso em juízo"). Mais recentemente e com menos rigor foi a de cisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso em Mandado de Segurança n. 23.657/DF (rel. Min. Marco Aurélio, j. 21.11.2000): "Tratando-se de ato omissivo — no caso, a ausência de convocação de candidato para a segunda fase de certo concurso — , descabe potencializar o decurso dos cento e vinte dias relativos à decadência do direito de impetrar mandado de segurança, prazo estranho à garantia constitucional". 96
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Em Io de ju n h o de 1964, o Suprem o Tribunal Federal aprovou a Súmula n. 405, segundo a qual, “denegado o m andado de segurança pela sentença, ou no julgam ento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”. E, mais recentemente, com a aprovação da Súmula n. 626, em 24 de setembro de 2003, o Suprem o Tribunal Federal assentou que “a sus pensão da liminar em m an d ad o de segurança, salvo determinação em contrário da decisão que a deferir, vigorará até o trânsito em julgado da decisão definitiva de concessão da segurança ou, havendo recurso, até a sua manutenção pelo Supremo Tribunal Federal, desde que o objeto da liminar deferida coincida, total ou parcialmente, com a impetração”. ■I
NATUREZA DA DECISÃO
A decisão no m andado de segurança tem natureza m andam ental. O que se pretende alcançar, por meio dessa ação constitucional, é um a ordem para que se pratique ou se deixe de praticar um determ inado ato que está violando o direito do im petrante ou está na iminência de lesá-lo. Portanto, o que se pretende com o m andado de segurança é a preservação ou a restauração do direito in natura, não um a reparação por eventual lesão ao direito do impetrante. Por esses motivos é que o Suprem o Tribunal Federal, em 13 de dezembro de 1963, pacificou o entendim ento de que o “m andado de segurança não é substituto de ação de cobrança” (Súmula n. 269) e a “concessão de m andado de segurança não prod uz efeitos patrim oniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados ad m i nistrativamente ou pela via judicial própria” (Súmula n. 271). Frise-se, ainda, que a “decisão denegatória de m andado de segu rança, não fazendo coisa julgada contra o im petrante, não im pede o uso da ação própria” 97 Portanto, indeferido o m andado de segurança, o impetrante poderá se valer de ação de outra natureza para postular judicialmente seu direito.
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Súmula n. 304 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 13 de dezembro de 1963.
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H O N O R Á R IO S A D V O C A T ÍC IO S
O Suprem o Tribunal Federal, p o r m eio da Súm ula n. 512, a p ro vada em 3 de o u tu b ro de 1969, Firmou o en ten d im en to de que “não cabe condenação em ho n o rário s de advogado na ação de m an d ad o de segurança”.98 Apesar de tal posição ser pacífica na jurisprudência até os dias atuais, não parece de acordo com a Constituição, na medida em que o art. 133 prevê que o “advogado é indispensável à administração da justiça”.99 Ora, se o advogado é indispensável à administração da justiça e seu trabalho é imprescindível no caso da impetração do m andado de segu rança, não há razão para, na hipótese de procedência do pedido, deixar de receber os honorários de sucumbência. Aliás, seria um a forma de desestimular os atos ilegais e abusivos por parte das autoridades. A condenação, nesse caso, deveria ser solidária entre a autoridade e a entidade a que ela pertence, que é o sujeito passivo no m an d ad o de segurança. Por outro lado, por um a decorrência lógica do argum ento acima exposto, tam bém deveria ocorrer a condenação do im petrante em h o norários, se não tiver êxito no m andado de segurança.
M A N D A D O DE S E G U R A N Ç A C O L E T I V O S U R G IM E N T O , C O N C E IT O E F IN A L ID A D E
O m andado de segurança coletivo surgiu com a Constituição Fe deral de 1988 e está previsto no inc. LXX do art. 5o da seguinte forma: (...) o m andado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindi
No Superior Tribunal de Justiça, a Súmula n. 105, aprovada em 1994, firmou o mes mo entendimento: "Na ação de mandado de segurança não se admite condenação em ho norários advocatícios". 99 Conferir, por exemplo, a crítica de Celso Agrícola Barbi à posição do Supremo Tribunal Federal acerca do não-cabimento de condenação em honorários em mandado de segurança (in: Do mandado de segurança cit. p. 175-77). 98
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS cal, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcio namento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus mem bros ou associados.
Com isso, a Constituição procurou diminuir a grande quantidade de ações individuais idênticas por meio de um mecanismo facilitador do aces so ao Judiciário que pudesse reduzir decisões diferentes para casos iguais. Assim, autorizou que os sindicatos, as entidades de classe e as asso ciações realizassem a defesa de seus m em bros, filiados ou associados — ou m esm o que os partidos políticos defendessem a sociedade com o u m todo — , sem a necessidade da outorga de procuração específica por cada um dos beneficiários. Desse m odo, provoca-se o fortalecimento dos partidos políticos, das organizações classistas e de outras associações, ao m esm o tem po em que se busca pacificar as relações sociais, solucionando, com um a única ação, várias situações litigiosas. ■■ ESPÉCIE DO GÊNERO MANDADO DE SEGURANÇA
A disciplina norm ativa sobre o m andado de segurança coletivo re sume-se ao dispositivo constitucional citado anteriorm ente, situação que tem causado um a série de divergências tanto na doutrina quanto na jurisprudência. C ontudo, é possível afirmar que o m andado de segurança coletivo é um a espécie de m an d ad o de segurança, razão pela qual alguns p o n tos desenvolvidos sobre este devem ser aplicados, tam bém , àquele. Assim é que, da mesma forma que ocorre com o m andado de se gurança individual, o m andado de segurança coletivo serve para atacar ato ou omissão decorrente de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autoridade pública ou por agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. Por meio do m an d ad o de segurança coletivo é possível proteger o direito lesado com o tam bém defender o direito ameaçado de lesão. O m an d ad o de segurança coletivo não é cabível quando o direito em questão for protegido por habeas corpus ou habeas data. Por fim, o m andado de segurança coletivo, assim com o o m a n d a do de segurança individual, existe para proteger direito líquido e certo,
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ou seja, aquele que decorre de fatos comprováveis, por docum entos, com a petição inicial.
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O B JETO
O m andado de segurança coletivo existe para proteger os direitos coletivos, em sentido am plo — que abrangem os direitos difusos e os direitos coletivos em sentido estrito — , bem com o os direitos indivi duais homogêneos, cujos conceitos podem ser extraídos, basicamente, do art. 81 do Código de Proteção e Defesa do C onsum idor.100 Os direitos individuais hom ogêneos são aqueles plenam ente divi síveis, mas decorrentes de origem com um , sendo possível a identifica ção da parcela de titularidade do direito de cada beneficiário em relação ao bem litigioso. Os direitos coletivos, em sentido estrito, são aqueles direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular um grupo, um a categoria ou um a classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por um a relação jurídica base, como, por exemplo, as pessoas que exercem um a mesma profissão. E difusos são os direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterm inadas e ligadas p o r circuns tâncias de fato, com o os direitos a um am biente saudável ou relativos à proteção do consumidor. ■■ L E G IT IM ID A D E ATIVA
Nos term os do art. 5o, LXX, da Constituição Federal, “o m andado de segurança coletivo pode ser im petrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, enti dade de classe ou associação legalmente constituída e em funciona m ento há pelo m enos um ano, em defesa dos interesses de seus m e m bros ou associados”.101 Para uma conceituação doutrinária, conferir Figueiredo , Lúcia Valle. Mandado de segurança cit. p. 28 e 29. t0’ Além desses legitimados, deve-se admitir a impetração de mandado de segurança coletivo pelo Ministério Público, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em 25 de agosto de 2003, ao apreciar o Recurso Especial n. 427.140/R0, relatado pelo ministro José Delgado (rel. para o acórdão Min. Luiz Fux). 100
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
A legitimidade dos partidos políticos A legitimidade do partido político está condicionada à necessi dade de ele ter ao m enos um representante na Câm ara dos Deputados ou no Senado Federal. Preenchido esse requisito, o partido político pode im petrar m a n dado de segurança coletivo para a defesa de quaisquer direitos líquidos e certos difusos, coletivos ou individuais hom ogêneos102 violados ou ameaçados de violação por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, logo após a prom ulga ção da Constituição, passou a dar interpretação mais restritiva ao dis positivo constitucional, perm itindo ao partido político com represen tação no Congresso Nacional somente im petrar m andado de segurança coletivo para defender os seus filiados e em questões políticas, desde que autorizado por lei ou pelo estatuto.103 No entanto, a d o u trin a tem com batido esse en ten d im en to jurisprudencial, tendo em vista que a Constituição não estabelece tal res trição à legitimidade dos partidos políticos, com o se pode n o ta r na seguinte passagem da obra de Lúcia Valle Figueiredo: O Supremo Tribunal Federal não tem admitido a defesa dos interesses individuais homogêneos por meio do mandado de segurança coletivo, quando impetrado por partido po lítico, como se pode perceber da decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 196.184/AM, relatado pela ministra Ellen Gracie e julgado em 27 de outubro de 2004: "1 - Uma exigência tributária configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo ser impugnada por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE n. 213.631, rel. Min. limar Galvão, DJ 07.04.2000. 2 - 0 partido político não está, pois, autorizado a valer-se do manda do de segurança coletivo para, substituindo todos os cidadãos na defesa de interesses indivi duais, impugnar majoração de tributo. 3 - Recurso extraordinário conhecido e provido". Nesse sentido também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 1.348/MA, rel. Min. Américo Luz, j. 02.06.1993): "Mandado de segurança cole tivo. Partido político. Ilegitimidade de parte. Reconhecimento. Os interesses individuais não devem ser avocados pelos partidos políticos, quando no uso do mandado de segurança cole tivo, pois a sua atuação nesse campo não tem a amplitude que pretendem". ,03 Conferir, nesse sentido, Mandado de Segurança n. 197/DF, relatado pelo ministro José de Jesus Filho (rel. para o acórdão Min. Garcia Vieira) e julgado em 8 de maio de 1990: "Processual. Mandado de segurança coletivo. Partido político. Ilegitimidade. Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto. Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filia 102
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL (...) na medida em que associações e sindicatos podem impetrar manda do de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados, os partidos políticos não conhecem restrições constitucionais. Ou, por outra, a proteção não será apenas para os filiados do partido, muito pelo contrário.10'1
Ademais, o art. Io da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei n. 9.096/95) prevê que essas pessoas jurídicas destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema re presentativo e a defender os direitos fundam entais definidos na C ons tituição. Portanto, a interpretação do dispositivo constitucional que con fere legitimidade aos partidos políticos para impetração de m andado de segurança coletivo só pode ser ampliativa, e jamais restritiva, com o pretende a jurisprudência. /A legitimidade
dos sindicatos e das entidades de classe
Os sindicatos e as entidades de classe podem im petrar m andado de segurança para a defesa do direito com um aos integrantes de suas respectivas categorias, desde que haja relação de pertinência entre o direito a ser protegido e os objetivos do im petrante, não se exigindo que os direitos defendidos sejam exclusivos dos pertencentes à institui ção impetrante. Q u an do um a organização sindical ou u m a entidade de classe im petra m andado de segurança coletivo, a legitimação para agir é extra ordinária, ocorrendo a cham ada substituição processual, por meio da qual o im petrante defende, em nom e próprio, direito alheio. O Supremo Tribunal Federal, nesses casos, tem exigido tão-somente a autorização genérica prevista nos estatutos da entidade para que se possa im petrar o m andado de segurança coletivo, não reclamando auto
dos ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles". No mesmo sentido, conferir Mandado de Segurança n. 1.252/DF, rel. Min. Humber to Gomes de Carvalho, j. 17.12.1991; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 2.423/PR, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 27.04.1993. 104 Figueiredo , Lúcia Valle. Mandado de segurança cit. p. 38.
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rização expressa e específica, como acontece na hipótese do art. 5o, XXI, da Constituição Federal.105 Esse foi o en ten d im e n to firm ado pelo S uprem o Tribunal Fede ral ao julgar, em 28 de ju n h o de 1996, o Recurso E xtraordinário n. 193.382/SP, relatado pelo m inistro Carlos Velloso: Constitucional. Processual civil. Mandado de segurança coletivo. Substituição processual. Autorização expressa. Objeto a ser protegido pela segurança cole tiva. CF, art. 5o, LXX, b. I - A legitimação das organizações sindicais, entidades de classe ou associações, para a segurança coletiva, é extraordinária, ocor rendo, em tal caso, substituição processual. CF, art. 5o, LXX. II - Não se exige, tratando-se de segurança coletiva, a autorização expressa aludida no inc. XXI do art. 5o da Constituição, que contempla hipótese de representação. III - O objeto do mandado de segurança coletivo será um direito dos associados, independentemente de guardar vínculo com os fins próprios da entidade impetrante do writ, exigindo-se, entretanto, que o direito esteja compreendi do na titularidade dos associados e que exista ele em razão das atividades exercidas pelos associados, mas não se exigindo que o direito seja peculiar, próprio, da classe. IV - R.E. conhecido e provido.
Levando em conta reiteradas decisões sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal tam bém editou, em 24 de setembro de 2003, as Sú mulas ns. 629 e 630, que prevêem o seguinte: Súmula n. 629. A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe de autorização destes. Súmula n. 630. A entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse apenas a uma parte da respectiva categoria.
O art. 5o, XXI, da Constituição estabelece o seguinte: "as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente". 105
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Portanto, com o já afirmado, os sindicatos e as entidades de classe não precisam de autorização expressa dos filiados ou associados para im petrar m andado de segurança coletivo nem , m uito menos, de p ro curação de cada u m de seus membros. Além disso, a pretensão levada a juízo pela entidade de classe ou pelo sindicato, p o r meio do m andado de segurança coletivo, pode estar afeta a somente um a parte da categoria, como, p o r exemplo, a defesa, por u m sindicato de funcionários públicos, dos direitos apenas dos fi liados que são funcionários públicos inativos e que foram atingidos por um ato ilegal de um a autoridade. Ademais, as entidades de classe e os sindicatos não precisam estar legalmente constituídos e em funcionam ento há mais de um ano, co m o se exige das associações (art. 5o, LXX, b). Nesse sentido já decidiu o Suprem o Tribunal Federal, com o se n o ta de parte da em enta do acórdão proferido no Recurso Extraordinário n. 198.919/DF: “Legitimidade do sindicato para a impetração de m a n dado de segurança coletivo independentem ente da comprovação de um ano de constituição e funcionam ento” (rel. Min. Ilmar Galvão, j. 15.06.1999). | A legitim idade das associações Q uanto às associações, por outro lado, a Constituição Federal exi ge que elas tenham sido constituídas e estejam em funcionam ento há pelo m enos um ano para que possam im petrar m andado de segurança coletivo. Preenchido esse requisito — que procura im pedir a atuação de as sociações eventuais, com intuitos temerários — , a associação atuará com o substituta processual, defendendo, em nom e próprio, os direitos dos associados em juízo. A autorização para a im petração do m andado de segurança cole tivo precisa somente constar dos estatutos da associação, não sendo necessário n en h u m outro consentim ento expresso ou individualizado dos associados. No Recurso Extraordinário n. 141.733/SP, relatado pelo ministro Ilmar Galvão e julgado em 7 de m arço de 1995, o Suprem o Tribunal Federal decidiu o seguinte sobre essa questão:
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS Mandado de segurança coletivo. Impetração por associação de classe. Legitimação ativa. Art. 5o, XXI e LXX, b, da Constituição Federal. A asso ciação regularmente constituída e em funcionamento pode postular em favor de seus membros ou associados, não carecendo de autorização es pecial em assembléia geral, bastando a constante do estatuto. Mas como é próprio de toda substituição processual, a legitimação para agir está condicionada à defesa dos direitos ou interesses jurídicos da categoria que representa.
Assim, estando constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, a associação pode defender, em juízo, por meio de m andado de segurança coletivo, os direitos e interesses de seus membros, bastando, para tanto, autorização estatutária e que a defesa seja dos direitos ou interesses jurídicos da categoria que representa ou de parte dela. H
C O IS A J U L G A D A
Q uanto à coisa julgada, a solução mais adequada é a que impõe a formação dela quando a decisão judicial concede a ordem no m an d a do de segurança coletivo. Sendo a decisão desfavorável ao im petrante, ela não se forma, perm itindo, então, que o exercício do direito de ação seja exercido por outras vias. No caso dos efeitos da coisa julgada, form ada quando do julga m ento do m an d ad o de segurança coletivo, parece adequado adotar, p o r analogia, a disciplina instituída no art. 1 0 3 ,1 a III, do Código de Defesa do C onsum idor (Lei n. 8.078/90),106 cuja redação é a seguinte: Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiên cia de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inc. I do parágrafo único do art. 81 ;107 106Nesse sentido, Figueiredo , Lúcia Valle. Mandado de segurança cit. p. 47 e 48. 107 Esse dispositivo do Código de Defesa do Consumidor tem a seguinte redação: "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo Improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso ante rior, quando se tratar da hipótese prevista no inc. II do parágrafo único do art. 81 ;108 III -
erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para benefi
ciar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inc. III do parágrafo único do art. 81.109
Portanto, se o m an d ad o de segurança coletivo for im petrado para defender direitos difusos, a coisa julgada se form ará com eficácia erga omnes, atingindo todas as pessoas, caso a ordem seja concedida. Se o pedido for julgado improcedente, com o enfrentam ento do mérito, outra ação coletiva com o m esm o fundam ento não poderá ser p ro posta, mas nada im pede que ações com fundam entos idênticos sejam ajuizadas individualmente pelos titulares dos direitos. E, por fim, se o pedido não for acolhido por falta de provas, outra ação coletiva, com o m esm o objetivo, poderá ser proposta, desde que sejam apresentadas novas provas, adm itindo-se tam bém a impetração de ações indivi duais com o m esm o fu nd am en to .110 No caso da im petração para a defesa de direitos coletivos, a coisa julgada será form ada para atingir o grupo, a categoria ou a classe, na quando se tratar de: I — interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indetermi nadas e ligadas por circunstâncias de fato". 108 O inc. II do referido artigo do Código de Defesa do Consumidor estabelece o seguinte: "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coleti va será exercida quando se tratar de: (...) II - interesses ou direitos coletivos, assim entendi dos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma re lação jurídica base". ,09 O inc. III do mencionado artigo do Código de Defesa do Consumidor estatui o se guinte: "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: (...) III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum". 110 Nesse sentido, conferir Raboneze , Ricardo. Mandado de segurança coletivo: legiti mação, coisa julgada e execução. Dissertação de mestrado apresentada na Pontifícia Univer sidade Católica de São Paulo, na área de direito das relações sociais, subárea de processo civil, 1998. p. 95 e segs.
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hipótese de o pedido do m andado de segurança coletivo ser acolhido. Se a Improcedência for por insuficiência de provas, nada impede que nova ação coletiva ou ações individuais sejam propostas, com o mesmo fundamento. Caso não seja concedida a ordem, com a análise do m éri to, nova ação coletiva não poderá ser proposta, mas nada impede que ações individuais sejam formuladas com idêntico fundamento. Em relação à coisa julgada na hipótese de mandado de segurança cole tivo impetrado para a defesa de direitos individuais homogêneos, ocorrerá a formação da coisa julgada erga omnes somente se o pedido for julgado procedente. No caso de não ser acolhido o pedido formulado, cada pessoa poderá propor ações individuais, com o mesmo fundamento, desde que não tenham participado da demanda coletiva como litisconsorte ativo.
AÇÃO P O P U L A R ■I
C O N C E IT O
A ação popular está prevista no art. 5o, LXXIII, da Constituição Federal,1" que estabelece o seguinte: (...) qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Esse dispositivo constitucional está regulamentado pela Lei n. 4.717, de 29 de ju n h o de 1965. ■■ I N S T R U M E N T O
DE
D EM O C R A C IA
D IR ET A
O art. I o, parágrafo único, da Constituição Federal prescreve que todo o poder em ana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos term os da Constituição. Para uma análise histórica da ação popular e também um estudo de direito comparado, conferir S ilva, José Afonso da. Ação popular constitucional: doutrina e processo, p. 11-61. Sobre as origens das ações populares em geral, conferir C ampos Filho, Paulo Barbosa de. Ação popular constitucional, p. 3 e segs. 1,1
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Assim, se é correto afirmar que a Constituição brasileira adota o regime da democracia representativa, por outro lado ela tam bém prevê alguns mecanismos de participação direta da população na gestão e no controle da coisa pública. A ação popular — ao lado, por exemplo, do plebiscito, do referen do e da iniciativa popular de lei — é u m dos instrum entos de d e m o cracia direta previstos na Constituição Federal. ■I
F IN A L ID A D E S
Por meio da ação popular, permite-se que qualquer cidadão b ra sileiro, diretamente, faça a fiscalização do Poder Público, defendendo a coisa pública,112 que é patrim ônio do povo. A defesa da res publica, por meio da ação popular, ocorre com a invalidação dos atos lesivos ao patrim ônio público,113 à moralidade
Do latim res publica, que é a origem morfológica da palavra República. 1.3 A Lei n. 4.717/65 prevê hipóteses de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos estados, dos municípios, de entidades autárquicas, de socieda des de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos estados e dos municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos: "Art. 2o São nulos os atos lesivos ao patri mônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Pará grafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incomple ta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegali dade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inade quada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de com petência. Art. 3o Os atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou privado, ou das entidades mencionadas no art. 1 o, cujos vícios não se compreendam nas especificações do artigo anterior, serão anuláveis, segundo as prescrições legais, enquanto compatíveis com a natureza deles. Art. 4o São também nulos os seguintes atos ou contratos, praticados ou cele brados por quaisquer das pessoas ou entidades referidas no art. 1o. I - A admissão ao serviço público remunerado, com desobediência, quanto às condições de habilitação, das normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais. II - A operação bancária ou de crédi1.2
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administrativa, ao meio am biente e ao patrim ônio histórico e cultural, e, tam bém , com a condenação dos responsáveis a ressarcir os danos causados ao erário. C um pre m encionar que a ação popular pode ser proposta repres siva ou preventivamente. Nesta hipótese, busca-se evitar a lesão à coisa pública. Já naquele caso, procuram -se a invalidação do ato e o ressarci m ento do dano ocorrido, com a condenação dos responsáveis e dos beneficiários em perdas e danos. C om o já decidiu o Suprem o Tribunal Federal, “para o cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar norm as específicas que regem a sua prática ou por se desviar dos princípios que norteiam a administração pública”, dispen sando-se a dem onstração de prejuízo material ao erário: Ação popular. Abertura de conta em nome de particular para movimen tar recursos públicos. Patrimônio material do poder público. Moralidade
to real, quando: a) for realizada com desobediência a normas legais, regulamentares, estatutárias, regimentais ou internas; b) o valor real do bem dado em hipoteca ou penhor for inferior ao constante de escritura, contrato ou avaliação. III - A empreitada, a tarefa e a concessão do serviço público, quando: a) o respectivo contrato houver sido celebrado sem prévia concor rência pública ou administrativa, sem que essa condição seja estabelecida em lei, regulamento ou norma geral; b) no edital de concorrência, forem incluídas cláusulas ou condições que com prometam o seu caráter competitivo; c) a concorrência administrativa for processada em condições que impliquem na limitação das possibilidades normais de competição. IV - As modi ficações ou vantagens, inclusive prorrogações que forem admitidas, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos de empreitada, tarefa e concessão de serviço público, sem que estejam previstas em lei ou nos respectivos instrumentos. V - A compra e venda de bens móveis ou imóveis, nos casos em que não cabível concorrência pública ou administrativa, quando: a) for realizada com desobediência a normas legais, regulamentares, ou constantes de instruções gerais; b) o preço de compra dos bens for superior ao corrente no mercado, na época da opera ção; c) o preço de venda dos bens for inferior ao corrente no mercado, na época da operação. VI - A concessão de licença de exportação ou importação, qualquer que seja a sua modalidade, quando: a) houver sido praticada com violação das normas legais e regulamentares ou de instruções e ordens de serviço; b) resultar em exceção ou privilégio, em favor de exportador ou importador. VII - A operação de redesconto quando sob qualquer aspecto, inclusive o limite de valor, desobedecer a normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais. VIII - O empréstimo concedido pelo Banco Central da República, quando: a) concedido com desobe diência de quaisquer normas legais, regulamentares, regimentais ou constantes de instruções gerias; b) o valor dos bens dados em garantia, na época da operação, for inferior ao da avalia ção. IX - A emissão, quando efetuada sem observância das normas constitucionais, legais e regulamentadoras que regem a espécie".
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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL administrativa. Art. 5o, LXXIII, da Constituição Federal. O entendimento sufragado pelo acórdão recorrido no sentido de que, para o cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se desviar dos princípios que norteiam a administração pública, dispensável a de monstração de prejuízo material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inc. LXXIII do art. 5o da Constituição Federal, norma esta que abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o cultural e o histórico (RE 170.768/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26.03.1999)."4
O Superior Tribunal de Justiça, no mesmo sentido, entendeu que é possível “propor ação popular para afastar lesão à moralidade adm i nistrativa, mesmo sem a ocorrência da lesividade” (REsp 537.342/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 24.11.2003).'15 Pode-se vislumbrar lesão à moralidade sem que se tenha efetivo prejuízo ao erário, quando, por exemplo, o presidente da República, ao viajar no avião presidencial para a abertura da Assembléia Geral da ONU, acaba oferecendo u m a carona ao próprio filho, que pretende passear nos Estados Unidos da América. Um a ação popular seria eficiente para condenar pai e filho a pagar ao erário todos os gastos feitos com tal ato imoral, apesar de, efetiva mente, os cofres públicos não terem sofrido prejuízo, um a vez que a viagem realmente ocorreria e havia lugares vagos no avião. C ontudo, a moralidade protegida constitucionalmente não permite atos dessa n a tureza, em que se dá a utilização de bens públicos para fins estrita m ente particulares.
O Supremo Tribunal Federal, no RE n. 160.381/SP, julgado em 29 de março de 1994, relatado pelo ministro Marco Aurélio, decidiu que na "maioria das vezes, a lesividade ao erário público decorre da própria ilegalidade do ato praticado. Assim o é quando dá-se a contratação, por município, de serviços que poderiam ser prestados por servidores, sem a feitura de licitação e sem que o ato administrativo tenha sido precedido da necessária jus tificativa". u 5 No mesmo sentido, conferir os Embargos de Divergência no Recurso Especial n. 14.868/RJ, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 9 de março de 2005 e relatado pelo ministro José Delgado. Sobre o controle da moralidade, verificar Figueiredo , Marcelo. O con 1,4
trole da moralidade na Constituição.
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■I LEG ITIM IDAD E ATIVA
O autor da ação popular, nos term os do art. 5o, LXX1II, da C ons tituição Federal, é o cidadão. Por força da previsão do § 3o do art. Io da Lei n. 4.717/65, a prova da cidadania, para ingresso em juízo, deve ser feita com o título eleitoral ou com docum ento que a ele corresponda. Assim, em razão da interpretação conferida pela lei à Constituição passou-se a entender que o autor da ação popular deve ser o brasileiro nato ou naturalizado — sempre, portanto, pessoa física — que esteja no gozo de seus direitos políticos. Essa limitação tem razão de ser som ente na hipótese da defesa, por meio de ação popular, do patrim ônio público ou de entidade de que o Estado participe, bem com o da moralidade administrativa. Nesses casos, há um a relação lógica entre o exercício dos direitos políticos e a defesa de tais direitos. Mesmo adm itindo, para esses casos, o conceito restrito de cidadão, deve-se perm itir que o autor popular, relativamente incapaz, ingresse com a ação para a defesa da moralidade administrativa e do p atrim ô nio público ou de entidade de que o Estado participe sem a necessi dade de ser assistido pelos pais ou responsáveis, um a vez que o direito de participar diretam ente da gestão e do controle da coisa pública de corre expressamente da Constituição, não podendo sofrer restrição pela legislação infraconstitucional. Já para a defesa do meio ambiente e do patrim ônio histórico e cul tural, um a interpretação da lei conform e a Constituição recomenda que a expressão cidadão, prevista no art. 5o, LXXIII, da Constituição Federal, seja entendida de m aneira mais ampla. É preferível adotar, com o fez Celso Lafer, com base no pensam en to de Fíannah Arendt, o conceito de cidadania com o o direito a ter di reitos.116 Portanto, não se deve condicionar a propositura da ação p o pular, no caso de defesa do meio ambiente e do patrim ônio histórico e cultural, som ente aos brasileiros que estejam no pleno exercício dos
1,6 Lafer , Celso.
A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento
de Hannah Arendt, p. 146-66.
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direitos políticos, mas a todos aqueles que sejam sujeitos de direitos e obrigações.117 Ora, qual seria a lógica de impedir a propositura de ação popular para a defesa desses bens por pessoas que não estejam no gozo dos d i reitos políticos ou até m esm o p o r estrangeiros residentes ou não no Brasil? Mais evidente seria o equívoco de restringir a propositura de ação popular apenas aos que estiverem no exercício dos direitos políti cos quando tal m edida judicial se dirige à defesa do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado."8 Nesse caso, por se tratar de um direito de terceira geração e, portanto, universal, não se deve limi tar a defesa dele sequer aos nacionais. C um pre ressaltar que a legitimidade ativa do cidadão deve ser a mais am pla possível, de m odo que ele possa pro p o r a ação popular até m esm o em locais onde não resida. Frise-se que, nos term os da Súmula n. 365 do Suprem o Tribunal Federal, aprovada em 13 de dezembro de 1963, a “pessoa jurídica não tem legitimidade para p ro p o r ação p o p u lar”. C ontudo, o Superior Tribunal de Justiça, am pliando a legitimida de ativa da ação popular, adm itiu que o Ministério Público fosse autor da referida ação constitucional. Foi nesse sentido a decisão proferida, em 25 de agosto de 2003, no Recurso Especial n. 427.140/R0 (rel. Min. José Delgado, rel. para o acórdão Min. Luiz Fux), com o se nota no tre cho da em enta a seguir transcrito: 1 - O Ministério Público, por força do art. 129, III, da CF/88, é legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa do patrimônio público social, não se limitando à ação de reparação de danos. Destarte, nas hi póteses em que não atua na condição de autor, deve intervir como custos
legis (LACP, art. 5o, § 1o; CDC, art. 92; ECA, art. 202 e LAP, art. 9o).
Defendendo essa posição, no caso de ação popular para a proteção do meio am biente, conferir Fiorillo , Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental, p. 359-61. Conferir também Barro so , Darlan & Lettière, Juliana Francisca. Prática jurídica civil, p. 230. 118 A Constituição Federal, no art. 225, prescreve o seguinte: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". 117
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 2 - A carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37 da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instru mentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microssistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da admi nistração pública, nele encartando-se a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas. 3 - Em conseqüên cia, legitima-se o Ministério Público a toda e qualquer demanda que vise à defesa do patrimônio público sob o ângulo material (perdas e danos) ou imaterial (lesão à moralidade). 4 - A nova ordem constitucional erigiu um autêntico "concurso de ações" entre os instrumentos de tutela dos interes ses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o mane jo dos mesmos. 5 - A lógica jurídica sugere que legitimar-se o Ministério Público como o mais perfeito órgão intermediário entre o Estado e a socie dade para todas as demandas transindividuais e interditar-lhe a iniciativa da ação popular, revela contraditio in terminis. 6 - Interpretação histórica justi fica a posição do MP como legitimado subsidiário do autor na ação popu lar quando desistente o cidadão, porquanto à época de sua edição, valori zava-se o parquet como guardião da lei, entrevendo-se conflitante a posição de parte e de custos legis. 7 - Hodiernamente, após a constatação da im portância e dos inconvenientes da legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da legitimatio ad causam do MP para a ação popular, a ação civil pública ou o mandado de segurança coletivo.
Assim, a legitimidade para a propositura da ação popular tem sido estendida, em algumas decisões judiciais, tam bém ao Ministério Públi co, apesar de tal interpretação consagrar um exagero, u m a vez que essa instituição tem à sua disposição um a ação judicial cujo objeto é até mais amplo, qual seja, a ação civil pública, prevista no art. 129, III, da Constituição Federal.119 O art. 6 o, § 4o, da Lei n. 4.717/65, que trata da ação popular, prevê que o "Minis tério Público acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores". E o art. 9o da mesma lei estabelece que se o autor desistir da ação, fica assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, promover o prosseguimento da ação. n9
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■■ S U JEITO S PASSIVOS
O art. 6o da Lei n. 4.717/65 estabelece que a ação popular deve ser proposta contra as pessoas jurídicas de direito público da adm inis tração direta ou indireta, empresas públicas e sociedades de econom ia mista, além das pessoas jurídicas privadas em nom e das quais tiver si do praticado o ato atacado. Todas essas pessoas devem com por o pólo passivo da ação em ra zão do pedido de anulação do ato lesivo ao patrim ônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrim ônio histórico e cultural. C ontudo, por autorização do § 3o do referido art. 6o, a (...) pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante ou dirigente.
Portanto, por força de tal dispositivo legal, as pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado não estão obrigadas a defender o ato indicado como lesivo, podendo, até mesmo, optar por atuar ao lado do autor popular, caso entendam que o interesse público assim o exige. Também devem constar do pólo passivo da ação popular as autori dades, os funcionários e os administradores que tiverem autorizado, apro vado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado oportunidade à lesão. Essas pessoas devem ser citadas para participar do processo judicial, pois responderão pelo ressarcimento ao erário, no caso de procedência do pedido da ação popular. Por fim, a ação popular tam bém deve ser proposta contra os bene ficiários diretos do ato im pugnado, pois, além de serem atingidos por eventual procedência do pedido que anular o ato lesivo, poderão res pond er civilmente pelos danos causados. M
C O IS A J U L G A D A
Com base no art. 18 da Lei n. 4.717/65, pode-se afirmar que a decisão proferida n u m a ação popular produz os efeitos da coisa julga
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da erga omnes se os pedidos forem julgados procedentes ou se forem julgados improcedentes em razão de ser infundada a ação. Por outro lado, se a ação popular for julgada im procedente por de ficiência de prova, não se form ará a coisa julgada, perm itindo-se, nesse caso, que qualquer cidadão intente outra ação com idêntico funda mento, valendo-se de nova prova. ■I CUSTAS J U D IC IA IS E Ô N U S DA S U C U M B Ê N C IA
A Constituição Federal isenta o autor popular das custas judiciais e dos ônus da sucumbência, salvo se ele tiver agido com comprovada má-fé. Com isso, viabiliza-se a propositura da ação popular, pois, se o ci dadão tivesse de recolher as custas judiciais e estivesse sujeito ao ônus da sucumbência — como corriqueiramente ocorre quando se trata de outros tipos de ações judiciais — , inviabilizar-se-ia a utilização dessa garantia constitucional. Nesses litígios habitualmente estão envolvidas vultosas quantias, o que acarretaria considerável dispêndio de dinheiro com custas judiciais e eventuais ônus da sucumbência, inibindo o autor popular. Por outro lado, a Constituição somente isenta o autor popular do pagam ento das custas judiciais e do ônus da sucum bência se ele não tiver agido com com provada má-fé. Assim, procura-se im pedir o uso indevido da ação popular, com o reprovável intuito de denegrir a im a gem dos réus, especialmente das autoridades públicas. Com base na parte final do inc. LXXIII do art. 5o da Constituição Federal, o art. 12 da Lei n. 4.717/65 estabelece que a sentença que, apre ciando o fundam ento de direito do pedido, julgar a lide manifestamente temerária condenará o autor ao pagamento do décuplo das custas.
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B ib l io g r a f ia
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