República de Moçambique FACULDADE DE DIREITO
Apontamentos de DIREITO PROCESSUAL PENAL٭ Preparados para os alunos do 4° Ano Jurídico 1994/1995
Professores: Dr. João Trindade Dr. Luís Mondlane
Maputo, Fevereiro de 1995
٭Actualizados pelo Mestre Casimiro Pedro Davane, docente de Direito Processual Penal e Magistrado do Ministério Público, no que respeita à legislação processual penal aprovada depois da entrada em vigor da Constituição da República de Moçambique de 2004.
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APRESENTAÇÃO
No ano lectivo transacto – aquele em que se formou e pela primeira vez trabalhou em conjunto a actual equipa docente de Direito Processual Penal – reconhecendo a exiguidade dos meios bibliográficos postos à disposição dos alunos para o estudo das matérias incluidas no plano temático da disciplina, preparámos e fomos distribuindo ao longo do semestre um conjunto de apontamentos que serviu, basicamente, de “auxiliares na consulta das obras indicadas como bibliografia”. A experiência revelou-se amplamente positiva e justificou o esforço que teve, então, de ser empreendido. Decidimos, por isso, seguir este ano a mesma orientação, introduzindo, porém, algumas modificações e melhorias no texto anterior, que nos foram solicitadas pelo acesso a novas fontes bibliográficas. Com a mesma advertência que, à guisa de introdução, deixámos expressa na primeira versão destes “Apontamentos”- a de que eles não dispensam o estudo necessariamente mais profundo das matérias, através da consulta dos manuais e compêndios referidos como bibliografia obrigatória – esperamos ter prestado um bom serviço aos nossos estudantes.
Os docentes
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I – NOÇÕES FUNDAMENTAIS
1. Conceito de Direito Processual Penal 1.1.
Noção de Direito Processual Penal
O Direito Penal (ou Direito criminal)1, considerado no seu sentido mais amplo2, constitui um ordenamento jurídico complexo, que se reparte por três disciplinas, mas mutuamente complementares: o direito penal substantivo (material), o direito processual penal (formal ou adjectivo) e o direito da execução das penas (ou direito penitenciário). Aqui, mais do que em qualquer ramo da ciência juridica, as relações entre o direito substantivo e o direito adjectivo formam uma unidade tal que, o primeiro não pode realizar-se plenamente sem o concurso do segundo. Na verdade - e de modo diverso do que sucede, por exemplo, com o direito civil, que na maioria dos casos se realiza e aplica espontaneamente por livre vontade dos interessados - , o direito penal não é de aplicação voluntária, só se efectiva por via de uma actividade processual. Por isso, o art. 1° do CPP. Penal dispõe que “a todo o crime ou contravenção corresponde uma acção penal, que será exercida nos termos deste código”. Há, assim, uma relação de instrumentalidade necessária entre o direito processual penal e o direito penal, que os distingue da conexão também existente entre os demais ramos de direito e os respectivos processos. Isto resulta do facto de ser por meio do direito penal, globalmente considerado, que o Estado cumpre a importantíssima função de proteger os valores fundamentais da sociedade humana – entre as quais sobressaem o direito à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade sexual, à propriedade individual ou colectiva, à ordem pública, e outros - , função que se expressa no dever de administrar e realizar a justiça penal. É o que se designa por jus puniendi ou monopólio estadual da função jurisdicional. Feitas estas considerações preliminares, podemos definir o direito processual penal como o conjunto de normas jurídicas que disciplinam a aplicação do direito penal aos casos concretos, pelos tribunais”3 ou, por outras palavras, como o conjunto de regras que asseguram “a 1 Sobre o debate em torno da designação mais adequada, veja-se, entre outros, Beleza, Teresa Pizarro, Direito Penal, 1° volume, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 17. 2 A que alguns autores chamam de direito penal (v. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, Reimpressão, Coimbra, 1984, p.24). 3 Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa, 1955, pág. 5. 3
realização do direito penal substantivo, através da investigação e valoração do comportamento do acusado da prática de um facto criminoso”4. 1.2.
Direito Penal, Processo Penal e Direito Processual Penal
Já sabemos que o direito penal define, de um modo geral e abstracto, quais os factos ou comportamentos humanos que devem ser considerados criminosos e quais as penas que lhes correspondem. Todavia, averiguar se, num dado caso concreto, um certo agente praticou um tipo legal de crime e qual a sanção que lhe deve ser imposta, obriga a uma actividade que de modo nenhum pode ser arbitrária, antes exige garantias de respeito pelos direitos individuais para que se obtenha uma verdadeira realização da justiça penal. A essa actividade – constituída por uma sequência de actos juridicamente pre-ordenadas e praticadas por certas pessoas legitimamente autorizadas, com vista a lograr a decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e a sua justa aplicação – é o que se costuma designar por processo penal. O complexo de normas jurídicas que a regulam e disciplinam é que forma o direito processual penal. Dissemos acima que o direito penal e o direito processual penal formam uma unidade, participam do mesmo ordenamento jurídico, e que entre ambos prevalece uma relação de mútua complementaridade. No desenvolvimento desta ideia, Cavaleiro de Ferreira escreve: “O direito penal e o processo penal devem por isso ajustar-se aos mesmos princípios. Uma consideração mais profunda da personalidade do delinquente, como é exigida pelo direito penal, permanecerá letra morta se não for acompanhada da conformação do direito processual a idêntico fim”. As modificações o direito penal substantivo acarretam assim, naturalmente, a conveniência da alteração do direito processual (…). Mas se necessariamente o processo penal se deve conformar ao espírito do direito penal vigente, por outro lado será impossível a execução do direito penal sem um processo penal a ele adaptado”5. Com efeito, frequentemente o sentido e solução de concretos problemas processuais dependem da posição que tiver sido adoptada pelo direito substantivo, como acontece relativamente aos chamados poderes de cognição do juíz e ao caso julgado, quando se está perante a materia relative ao crime continuado ou à punição do concurso de infracções6.
4 Figueiredo Dias, op. cit. p. 28. 5 Cavaleiro de Ferreira, op. cit. .p. 18. 6 Exemplos apontados por Figueiredo Dias, op. cit. p.29 4
Por outro lado, o direito processual exerce igualmente a sua influência na solução de certas questões pertinentes ao direito penal substantivo. Assim, por exemplo, o actual movimento em favor da ‹‹elitização e purificação do direito penal››, ao pretender que este só intervenha nos casos de insuportável violação de bens fundamentais da comunidade é, sem dúvida, também consequência da exigência processual de que os tribunais penais não sejam submersos por uma multidão de infracções de duvidoso relevo ético-social7. Apesar destas mútuas influências, o certo é, porém, que não deixa de existir uma clara autonomia entre o direito penal e o direito processual penal, resultante, desde logo, da diversidade dos respectivos objectivos: o primeiro tem a ver directamente com a ordenação da vida em sociedade, qualificando de forma geral e abstracta os comportamentos humanos em função dos valores jurídicos que considera fundamentais para a comunidade e prescrevendo sanções para quem violar esses valores; o segundo visa assegurar que os actos tendentes à decisão sobre a prática de um crime e à aplicação da pena ao respectivo agente se realize com absoluto respeito pelos princípios de justiça.
1.3.
Âmbito do Direito Processual Penal
A função essencial do direito processual penal cumpre-se, como vimos, na decisão jurisdictional de saber se foi praticado um crime e, em caso afirmativo, qual a consequência juridica que daí deriva. Por isso certos autores entendem que seu âmbito de aplicação se esgopta com trânsito em julgado da sentença, já não abrangendo a fase de execução da pena, que teria índole puramente administrativo. Outros, pelo contrário, sustentam que o direito de execução das penas se integra, todo ele, no direito processual penal, pese embora a circunstância de à administração penitenciária estar reservada uma esfera de actuação própria, que pode dizer-se livre da jurisdição. Nesta última corrente se situa Figueiredo Dias, para quem, no entanto, é necessário distinguir a regulamentação respeitante à determinação prática do conteúdo da sentença condenatória – e, por conseguinte, à realização concreta da pena imposta - ,da regulamentação referente ao efeito executivo da sentença (num sentido análogo àquele em que, no processo civil, se fala da exequibilidade da sentença) e, consequentemente, aos preliminares ao controlo geral da excução (incluindo os incidentes da execução. No primeiro caso, tratar-se-á de matéria substantiva e no segundo, de matéria processual8.
7 Idem,pág. 31. 5
Cremos poder concordar com este autor, tanto mais que, como ele próprio assinala, o C.P.Penal vigente consagra um Título específico às execuções (o Título VIII do Livro II - arts.625 a 640) – sem, todavia, abranger a parte respeitante às penas privativas de liberdade - , o que reforça o argumento de ser esta, essencialmente, uma área de actuação do direito processual.
1.4.
O Objecto do processo penal
A determinação do objecto do processo – ou seja, da matéria à volta da qual se desenvolvem as actividades processuais – é de extrema importância teórica e prática. A estrutura do sistema processual penal vigente entre nós é, conforme veremos adiante 9, basicamente acusatória se bem que integrada por um princípio de investigação. Isso implica que o tribunal só possa intervir quando solicitado por uma acusação formulada por uma entidade dele distinta e independente (o Ministério Público), e que o conteúdo da acusação delimita a própria actividade processual do tribunal. Existe assim uma identidade essencial entre o conteúdo da acusação, a pronúncia e a sentença final, que constitui importante garantia para o arguído, na medida em que só terá de defender-se do que é acusado (e pronunciado) e só pelo que é acusado poderá ser julgado. Disto resulta que a sentença final, salvo casos excepcionais que a lei expressamente prevê, só pode condenar por factos constantes do despacho de pronúncia ou equivalenete. É o que dispõe o art. 447 do CPP:”O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente”, (o soblinhado é nosso). No comentário a este preceito legal, Beleza dos Santos escreve: “Este limite imposto ao tribunal de julgamento representa uma justa garantia para o réu e tem uma justificação fácil de ver. O réu não deve ser surpreendido por uma imputação de factos feita na audiência de julgamento e tomada em consideração na sentença, quando por tais factos não foi anteriormente pronunciado e não pôde, por isso, organizar e deduzir a sua defesa a tal respeito, oferecer e produzir a respectiva prova, com os prazos devidos. A lei ordena a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente ao réu, sob pena de nulidade (…) precisamente para que ele possa ter conhecimento dos factos que lhe são imputados e com tempo necessário prepare a sua defesa. Por isso, haveria uma flagrante incoerência e um manifesto contrasenso na lei se ela permitisse que o réu fosse 8 Fig. Dias. op.cit. p.37 9 V. supra “A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique”, ponto II, 5.2. 6
condenado por factos diversos daqueles que constassem da acusação de que foi notificado e de que lhe deram cópia, por factos que ele desconhecia e que viriam a ser imputados na audiência de julgamento e na sentença”.10 Pode, pois, concluir-se que o objecto do processo penal é o facto (ou comportamento humano) concreto, na sua existência real, que importa averiguar e cuja verificação é pressuposto da aplicação da pena11. O objecto do processo penal não se apresenta delimitado desde o início deste. É susceptível de diferentes graus de apreciação, consoante a evolução que o próprio processo vai tendo, quer dizer, de acordo com as fases em que se desenvolve. A um primeiro juízo de suspeita sobre o facto, segue-se uma fase instrutória destinada precisamente a obter a confirmação desse juízo de suspeita. Com a acusação e pronúncia, o juízo de suspeita transforma-se num juízo de probabilidade. Por último, para que a decisão final seja condenatória é necessária a formulação de um juízo de certeza sobre o facto objecto do processo12. É no momento da passagem do juízo de supeita para um juízo de probabilidade – com o trânsito em julgado do despacho de pronúncia ou equivalente – que se fixa , em termos definitivos, o objecto do processo.
1.5.
Fim do Processo Penal
Vimos acima que o processo penal visa a aplicação do direito penal substantivo aos casos concretos. Essa função instrumental que lhe é característica exprime-se de forma simples nestas duas máximas latinas: impunitus non relinqui facinus (nenhum criminosos deve ficar sem punição) e innocentum non condemnari (nenhum inocente deve ser condenado). De acordo com uma certa maneira de encarar o direito, e o processo penal em particular, a aludida natureza instrumental impõe a este, como fim a prosseguir, a ideia de realização da
10 - in A sentença condenatória e a pronuncia em processo penal, Rev. de Legis. Jurisp., 63°Ano, págs. 385 e segts. 11 - ou, na definição de José da Costa Pimenta, “… é um conjunto de factos humanos, devidamente situados no tempo e no espaço, que integram os pressupostos de que depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida segurança criminais” (in Introdução ao processo penal, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 22) 12 Sobre a distinção entre juízos de suspeita, de probabilidade e de certeza, v. Cavaleiro de Ferreira, op. cit. págs.33 e II Volume, pág. 283. 7
justiça, que só é possível obter com a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz juridica violada. Certo é, todavia, que a realização da justiça do mesmo modo que a segurança do direito e a verdade material – todas elas categorias axiológicas por certo compreendidas no fim ultimo do processo penal- não podem ser estimadas como valores absolutos, antes devem entender-se na sua referência a cada caso historicamente determinado. Tanto assim é que, frequentemente,estes valores entram em conflito uns com os outros. Com efeito, quantas vezes institutos como o do caso julgado, ou princípios como o in dubio pro reo, de aplicabilidade mais do que reconhecida no processo penal, conduzem, na prática, a condenações e absolvições materialmente injustas, em nome da segurança juridica das respectivas decisões …No entanto, esta mesma segurança juridica tem, noutras ocasiões, de ceder perante as exigências da ideia de justiça, como acontece no recurso de revisão (art. 673 e segs. do CPP) e na chamada “suspensão e anulação de sentenças injustas ou ilegais” ( art. 38, alíneas c) e d), da lei n. 10/92, de 6 de Maio). Por outro lado, o princípio da verdade material sofre, também ele, evidentes restrições – em homenagem agora à salvaguarda dos direitos fundamentais - , como acontece com a prova da verdade dos factos no crime de difamação (art.400 do CP) ou quando se proibem certos meios de prova designadamente a narcoanálise 13o uso de detectores de mentiras, registo de sons, entre outros, não autorizados. O fim do processo penal deverá, pois, ser alcançado a partir de uma adequada ponderação destes valores em conflito permanente, no sentido de saber qual deles, em concreto, haverá que dar preferência14. Seguindo o ensinamento de Figueiredo Dias, podemos então dizer que o fim do processo penal consiste em obstar a insegurança do direito que necessariamente existe ‹‹antes›› e ‹‹fora››daquele (processo), declarando o direito do caso concreto, i.é, definindo o que para este caso é, hoje e aqui, justo”15.
2. Natureza Jurídica do Direito Processual Penal 2.1.
O Direito Processual Penal como parte do Direito Processual
13 Técnica consistente na administração, a uma pessoa, de narcóticos ou produtos equiparados que, conduzindo a um estado de adormecimento, implica uma consequente perda do domínio da vontade. 14 Esta não é uma questão que apenas tem a ver com o direito processual penal, mas que se prende com a própria filosofia do direito. 15 Op.cit. pág. 46; v.também, sobre este ponto, José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 21. 8
Para uma certa corrente de pensamento jurídico16, desenvolvida entre os finais do século XIX, e o começo do séc. XX, a existência de distintos ramos do direito processual – de que são exemplo o processo civil, o processo penal, o processo administrativo, o processo fiscal, o processo constitucional, entre outros, - com princípios básicos semelhantes, idêntica estrutura fundamental e problemas comuns ou análogos, justificaria o surgimento de uma nova ciência, que se ocupasse da teoria geral do processo. Os seus defensores não conseguiram, porém, escapar às críticas que lhes foram endereçadas, a principal das quais reside no facto de que a teoria geral “… opera com abstracções, no mundo dos conceitos, esquecendo a vida e a realidade social. É capaz de construir um direito lindo que dê autogratificação aos seus elaboradores, mas inadequado a resolução dos problemas concretos”17. Não obstante a inconveniência de elaboração de uma teoria geral do processo, deve reconhecerse a utilidade de estabelecer a comparação entre processo penal e o processo civil, quer por se tratar de dois tipos processuais inteiramente jurisdicionalizados – ou seja submetidos ao domínio da actividade jurisdicional, quer porque, por força da lei18, o processo civil funciona como direito subsidiário relativamente ao processo penal. Vejamos, pois, alguns traços diferenciadores destes dois tipos de processo: a) Enquanto no processo civil se dirimem conflitos de interesses particulares, tutelados pelo direito privado, no processo penal está em causa a justiça da pretensão punitiva do Estado derivada de um crime, isto é, da violação de interesses fundamentais da ordem jurídica (interesses comunitários), tutelados pelo direito publico. b) O processo civil não é forçosamente chamado a intervir para que, através da decisão judicial, se concretize uma relação de direito privado – na generalidade dos casos, a realização concreta do direito privado tem lugar independentemente do processo, ao passo que o processo penal é o pressuposto necessário da realização do direito penal substantivo - a submissão do agente de um ilícito criminal às sanções previstas na lei só 16 Estamos a referirmo-nos ao direito que se desenvolveu na Europa ocidental, que forma o chamado sitema roma-germânico, a cuja família pretence o direito português e, por via dele, o direito moçambicano. 17 V. José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 36; Figueiredo Dias, op.cit. pág. 54. 18 V. art, 1, & Único do CPP: “nos casos omissos, quando as suas disposuções não possam aplicar-se por analogia, observer-se-ão as regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicar-se-ão os princípios gerais do processo penal”. 9
pode realizar-se por via de um processo e da consequente decisão jurisdicional: vigora aqui o princípio nulla poena sine processu (ou nulla poena sine judicio). c) No processo civil tem plena aplicação o princípio da disponibilidade do objecto processual pelas partes – estas gozam da faculdade de fazer valer no processo as suas pretensões ou de renunciarem a elas; no processo penal o objecto do processo é indisponível pelos sujeitos processuais, pois de outra forma seria impossível satisfazer o interesse da comunidade e do próprio Estado em esclarecer os crimes e punir os seus responsáveis.
Destes três princípios elementares de distinção entre o processo civil e o processo penal resultam outras diferenças que importa salientar: em processo penal, contrariamente ao que sucede no processo civil, não domina o princípio da auto-responsabilidade das partes em matéria de prova e por consequência, é inexigível o ónus de provar, contradizer e impugnar; em processo penal o juíz goza de uma ampla discricionaridade na apreciação dos factos que constituem o objecto do processo, por força do princípio da investigação ou da verdade material, o que não acontece no processo civil; entre os participantes, não existe em processo penal uma verdadeira contraposição de ineteresses, pois, como veremos na altura devida, o Ministério Público não actua no sentido de obter a condenação do arguido a qualquer preço, mas está (como o acusador particular ou o próprio defensor) obrigado a um dever de objectividade19 – contraposição de interesses existe, sim, entre as partes no processo civil.
2.2.
O Direito Processual Penal como parte do direito público
Do que atrás ficou dito, fácil é concluir que, tal como o direito penal, o direito processual penal é um ramo do direito público. É direito público porque a prevenção e repressão da criminalidade, através da administração da justiça, constitui tarefa exclusiva do Estado que a realiza no exercício de uma das suas funções – a função jurisdicional. Como ramo do direito público, o direito processual penal tem na sua base o conflito permanente que opõe os interesses e exigências da comunidade constituida em Estado aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. A solução deste conflito e dos problemas que lhe são inerentes pressupõe em menor ou maior medida, uma limitação do poder do Estado e depende, fundamentalmente, do estádio de desenvolvimento social e cultural da comunidade, do nível de consciência juridica alcançada pelos seus membros, das concepções políticas de base e das formas concretas de actuação do Estado. 19 V. art. 12, &1°, do Decreto-lei 35007, de 13 de Outubro de 1945. 10
Assim, numa concepção autoritária de Estado – como a que caracterizou a monarquia absolutista dos séculos XVII e XVIII na Europa 20, ou, mais recentemente, regimes como o nazí na Alemanha, o fascista na Itália, o de Pinochet no Chile e muitos outros - , o processo penal é dominado inteiramente pela ideia de interesse do Estado sem que aos interesses individuais das pessoas seja concedido real valor autónomo. O arguído é aqui encarado como mero objecto de inquisição e não como verdadeiro sujeito processual: em nome da soberania e dos superiores interesses do Estado, nega-se-lhes o reconhecimento dos mais elementares direitos, nomeadamente dos que se prendem com a sua protecção perante os abusos e a parcialidade dos poderes públicos, incluindo o poder judicial. A esta concepção corresponde grosso modo, o processo do tipo inquisitório que, em devido tempo,estudaremos com maior detalhe. O que, em última instância, se pretende é “…impedir que um excessivo respeito pelos direitos individuais conduza à impunidade dos malfeitores, que não merecem – aos … olhos (do Estado) – as garantias dos cidadãos. O que o Estado procura em primeira linha é a eficácia (nomeadamente da repressão) e para ele os fins quase sempre justificam os meios…”.21. Contrapondo-se ao modelo absolutista (de Estado-Polícia), seguiu-se historicamente a concepção de Estado liberal, que encarna uma relação Estado-indivíduo diametralmente oposta à anterior. O centro das preocupações é agora o indivíduo, autonomamente considerado, com os seus direitos naturais, originários e inalienáveis. O processo penal tem aqui como pressuposto uma oposição de interesses entre o Estado e o indivíduo, colocados num plano de inteira paridade: perante o interesse do primeiro em perseguir os crimes e punir os seus responsáveis, levanta-se o interesse do segundo (escudado no direito de defesa e nas garantias individuais) em subtrair-se a qualquer medida privativa ou restritiva de liberdade. Consequentemente, a estrutura do processo penal assenta nas ideias juridico-políticas da separação dos poderes, da subordinação dos órgãos estaduais ao direito e à legalidade, do reconhecimento dos direitos humanos e da participação popular na administração da justiça 22, aproximando-se bastante do processo civil: vigoram entre outros, princípios como o dispositivo, o da verdade formal ou intrapocessual, o da auto-responsabilidade probatória das partes e o da presunção de inocência do acusado até decisão judicial definitiva. À perspectiva liberal corresponde geralmente o processo de tipo acusatório. 20 Cuja expressão maxima terá sido atingida em frança, com Luís XIV (1613-1715) – o Rei Sol- e a sua célèbre proclamação “L’État c’est moi”. 21 V. José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 64. 22 José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 67. 11
Por último, numa época historicamente mais recente (após a II Guerra Mundial), surgiu uma outra concepção - a do Estado-de-Direito Social- para quem a relação comunidade-pessoa (ou Estado-indivíduo) assenta em princípios que não coincidem nem com o absolutismo, nem com o liberalismo. O Estado assume-se como ordenador e impulsionador de formas de vida comunitária, que permitam ao indivíduo como ser social, a livre realização da sua personalidade e das suas capacidades. O processo penal estrutura-se como parte dessa ordenação comunitária: mais do que mero instrumento do aparelho repressivo estadual (concepção autoritária), ou simples meio de protecção dos direitos individuais face ao poder coercitivo do Estado (concepção liberal), ele desempenha agora uma função eminentemente social, no sentido de que lhe cabe assegurar as necessárias condições para a livre realização do homem, enquanto membro de uma dada comunidade. Ao Estado-de-Direito social corresponde um tipo processual basicamente acusatório, mas limitado por um princípio instrutório ou investigatório, que é o nosso sistema. 2.3.
O Direito Processual Penal e a sua conformação jurídica com a Constituição
A referência histórica que acabou de ser feita às diversas concepções políticas do Estado e à sua conexão com os correpondentes modelos estruturais do processo penal mostra como este está tão intimamente relacionado com o Direito Constitucional. De tal modo essa ligação é estreita que um autor alemão, H. Henkel,23 considera o direito processual penal como verdadeiro direito constitucional aplicado. Isto, não só porque os fundamentos daquele representam simultaneamente os alicerces constitucionais do Estado, mas também porque a concreta regulamentação de problemas essenciais do processo penal é, e deve ser, conformada com a Constituição. Desta conformação jurídico-constitucional do processo penal resultam, como consequências: -
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A obrigatoriedade de uma estrita e minuciosa regulamentação legal dos meios de coacção e de quaisquer medidas que se traduzam numa limitação dos direitos fundamentais dos cidadãos, constitucionalmente garantidos; A exigência de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial destes direitos, ainda que a Constituição lhe conceda liberdade para os regulamentar; A necessiddade de controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado, mesmo dos que cumpram funções puramente administrativas, quando estejam em causa as garantias constitucionais; a proibição de jurisdições excepcionais, pela afirmação do princípio do juíz natural;24
23 Citado por Figueiredo Dias, op. cit. págf.74. 12
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a não valoração de provas obtidas com violação da liberdade de querer e de entender da pessoa; a interpretação e aplicaçào da lei ordinária a partir e de acordo com a Constituição.
Vejamos, então, alguns dos princípios consagrados na actual Constituição da República de Moçambique que directamente se prendem com o direito processual penal: arts. 59- 60-6162-64-65-66 e 217 da Constituição de 2004.
3. Princípios gerais do processo penal São princípios constitucionais do processo penal os que consubstanciam os valores preferenciais e os bens prevalecentes em dado momento, numa certa comunidade. Tais princípios hão-de reduzir-se necessariamente ao mínimo de modo a terem acolhimento ou aceitação geral dos membros da comunidade e a corresponderem à sua consciência éticojurídica. Pesem embora tais limitações, são estes princípios gerais do processo penal que dão sentido à vastidão de normas vigentes, orientação ao legislador, e permitem à dogmática, não apenas explicar, mas sobretudo compreender os problemas do direito processual e caminhar no sentido da sua superação. A sistematização em grandes capítulos dos princípios gerais do processo penal tem por fim proporcionar maior clareza e uma exposição didáctica ao desenvolvimento que se segue. Assim, referem-se em seguida os princípios gerais relativos à: I – promoção ou iniciativa processual: princípios da oficialidade, da legalidade e de acusação; II – prossecução ou decurso processual: princípios da investigação, da contraditoriedade e audiência, da suficiência e da concentração; III- prova: princípios da investigação, da livre apreciação da prova e in dubio pro reo; IV – forma: princípios da publicidade, da oralidade e da imediação; V – estrutura do processo: princípios da jurisdição e do juíz natural, do inquisitório, do acusatório e misto.
24 V. Supra, (ponto 6.3.1.) em que se traduz este princípio. 13
3.1.
Princípios relativos à promoção processual 3.1.1. O princípio da oficialidade
Ao debruçarmo-nos sobre este princípio, há que indagar, desde logo, a quem compete a iniciativa (impulso) de investigar a prática de uma infracção e a decisão de a submeter ou não a julgamento. Incide tal questão no sentido de se estabelecer se uma tal iniciativa deve pertencer a uma entidade pública ou estadual – que persegue o interesse da comunidade, constituido em Estado, na investigação oficiosa das infracções – ou antes, a quaisquer entidades particulares, designadamente ao ofendido pela infracção. Sendo o Direito Penal um direito de protecção dos bens fundamentais da sociedade e o processo penal um assunto da comunidade jurídica, em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime, perseguir e punir o criminoso, torna-se assim compreensível que a generalidade das legislações actuais se paute no sentido de reputar a promoção processual das infracções tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares. Em reforço do bom fundamento deste princípio da oficialidade está a circunstância de o carácter público das reacções criminais, que em processo penal se aplicam, se não coadunar com o deixar-se ao arbítrio dos particulares a sua aplicação efectiva e, bem assim, no facto de, na actual concepção do Estado, recair sobre este, em exclusivo, o dever de administração e realização da justiça penal, decorrente da sua obrigação de promover as indispensáveis condições de livre realização da personalidade ética dos membros da comunidade. O princípio da oficialidade é, na verdade, uma conquista dos tempos modernos. No direito romano vigorava o princípio da acção popular, segundo o qual qualquer pessoa (qui vis ex populo) poderia deduzir a acusação penal. Poderia, à primeira vista, entender-se que se estaria perante uma privatização extrema do processo penal: todavia, tal facto traduz-se no testemunho maior da elevada consciência da co-responsabilidade de qualquer membro da comunidadde na administração da justiça penal, Considerava-se na asserção de Montesquieu, que “cada cidadão tem quase no seu poder todos os direitos da Pátria”. No anterior direito germânico vigorava o princípio da acusação privada, que deixava a promoção processual penal na vontade do ofendido, ou da família ou grupo a que pertencia. Com o desenvolvimento alcançado no domínio jurídco-político da ideia de Estado e o consequente monopólio estadual da função jurisdicional, a par a influência de relevo do direito canónico, assistiu-se por toda a parte a uma acentuação do princípo da oficialidade que não conduziu, é claro, ao imediato afastamento dos princípios da acusação privada e da acção popular, antes se combinou com eles em maior ou menor extensão. No direito processual penal vigente o princípio da oficialidade pretende receber consagração plena. A instrução preparatória acha-se por regra confiada a entidades oficiais sem funções 14
jurisdicionais, que devem promover oficiosamente o conjunto de diligências destinadas a provar a culpa ou a inocência dos arguidos: (em regra ao Ministério Público – arts. 12 e 14 do Dec-Lei 35007, de Outubro de 1945) que pode delegar em certos casos nas autoridades policiais (art. 16 ) e excepcionalmente a outros entes públicos. O Dec-lei 35007, através do seu art. 1°, acentua o carácter público da acção penal no sentido de que o Estado é titular exclusivo da acusação penal, que exerce oficiosamente por intermédio do M°P° (art. 16) ou, em casos particulares, (art.12) de outras entidades oficiais, como as autoridades administrativas e outros organismos do Estado com competência para a fiscalização de certa actividade ou da execução de regulamentos especiais. De notar, porém, que este princípio da promoção oficiosa não se afirma sem limitações, que podem ser de ordem legal ou de ordem jurisprudencial. São de ordem legal as derivadas da existência de crimes semipúblicos e dos crimes particulares. As de ordem jurisprudencial advêm do facto de se continuar a admitir amplamente a possibildade de os particulares assistentes acusarem por crimes públicos, mesmo nos casos em que o M°P° se tenha abstido de acusar. São crimes públicos aqueles em que o M°P° promove oficiosamente e por inciativa própria o processo penal e decide com plena autonomia – observando, porém, estritamente o princípio da legalidade - da submissão ou não de uma infracção penal a julgamento. Crimes particulars, latu sensu, são aqueles em que a legitimidade do M°P° para por eles acusar precisa de ser integrada por uma denúncia ou também por uma acusação particular. Fácil é de compreender a ratio dos crimes particulars e mesmo semi-particulares (ou semipúblicos) se se atentar ao facto de que certas infracções, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos,injúrias, não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de forma tão directa, de tal sorte que aquela sinta a necessidade de reagir automaticamente contra o infractor. Se o ofendido enteder não fazer valer a exigência da retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal: isto por um lado. Por outro lado, há que reter a ideia de que em certas infracções ( v. g. crimes sexuais, furto entre parentes) a prossecução penal contra a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo de consequência negativa para interesses seus dignos de toda consideração, uma vez que se encontram relacionados com a sua esfera íntima ou familiar. Face a tal conflito de interesses juridicamente relevantes, o legislador optou por dar prevalência ao interesse do particular. Para além destas razões, acresce, ainda, o princípio da legalidade, que vincula estritamente o M°P° a dar acusação por todas as infracções cujos pressupostos considera verificados. Não havendo, assim, limitações acima referidas e, por força do princípio da legalidade, poderia resultar que os tribunais se vissem assoberbados por um elevado número de processos penais de duvidoso valor e interesse comunitário. 15
A denúncia ou acusação particular são exigências do direito penal substantivo que se assumem como verdadeiros pressupostos processuais (v. os seguintes dispositivos do C.P.: para a denúncia, os arts. 359, &único; 360 &único;363,&único; 369, &1°; 379,&2°; 399, referido aos arts 391 e ss, 430 e &2°, 431, & 2°, 438,450&único, 451&2°,453&2°, 455&único, 472&1°,473 &único e 477; para a cusação particular, os arts 254,&único; 363&único,in fine; 369,&2°,in fine;401,&&3°e 4°;404 e &1°.
3.1.2. Princípio da Legalidade Com o princípio da perseguição oficiosa das infracções visa o Estado corresponder ao seu dever de administração da justiça penal, de onde resulta a condenação de todos os culpados, e somente deles,da prática de uma infracção. Daqui se extrai que a peça fundamental deste processo – de modo contrário ao que acontece no processo civil, onde se dá ao autor a faculdade de aquilatar da oportunidade de propositura da acção – o princípio da legalidade. Tal asserção encontra fundamento em dispositivos legais, designadamente os arts. 1, 165 e 349 do CPP e 6 do DL 35007. De acordo com tais comandos normativos, o M°P° está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos – factuais e jurídicos, substantivos e processuais – tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Em processo penal não há lugar a qualquer juízo de oportunidade sobre a promoção e prossecução processual. Pelo contrário, a promoção e a prossecução do processo penal apresentase como um dever para o M°P°, uma vez reunidos os seguintes requisitos: a) existência de pressupostos processuais (v.g. competência e inexistência de obstáculos processuais como, por exemplo, a imunidade); b) punibilidade do comportamento segundo o direito penal substantivo (v.g. ilicitude, culpa, condições objectivas de punibilidade; c) conhecimento da infracção (art. 165 do CPP) e a existência de indícios suficientes (art. 349 do CPP) ou prova bastante (a contrário sensu dos arts. 345 do CPP e 26 do do DL 35007) que fundamentam a acusação. A actividade do M°P° desenvolve-se, assim, sob a estrita vinculação da lei – daí o princípio da legalidade – e não segundo considerações de oportunidade (ex. de ordem política – raison d`Etat - , ou financeira – custas). O interesse do Estado neste princípio é de tal ordem, que o incumprimento do dever nele contido poderá integrar uma infracção penal (arts. 287 e 288 do CP). Como corolário lógico do princípio da legalidade no que respeita à acusação pública, resulta o princípio da imutabilidade. De acordo com este princípio, a acusação não pode ser retirada a partir do momento em que um tribunal foi chamado a decidir sobre ela. Por esta via está excluida a renúncia à acusação (art. 18 do CPP) e, bem assim, a desistência dela. Ressalva-se, no entanto, 16
a eficácia do perdão dos ofendidos no caso dos crimes particulares ((art 3, &único do DL 35007) e semi-públicos, exceptuando os casos em que a sentença condenatória haja transitado em julgado, e ainda nos casos especialmente fixados por lei (art.125, &6° do CP). Resumindo: Sob este princípio da imutabilidade ou da indisponibilidade, os sujeitos processuais não podem dispor da relação processual. O M°P° não pode desistir da acusação, o arguído não pode pôr fim ao processo, mesmo que confesse, as partes não podem transigir. Este princípio é dominante nos crimes públicos, em relação aos quais o M°P° não só tem a obrigação de promover a acção penal, como o dever de com ela prosseguir depois de requerida. Nos crimes semi-públicos é reconhecido ao participante ou denunciante o direito de perdoar ou renunciar à queixa, extinguindo-se assim o procedimento criminal (art. 125, n°4 do CP e art 7, & 2°, do CPP). O princípiopda legalidade impõe ao M°P° a obrigação de promover sempre a acção penal, desde que existam os necessários elementos (art.165 do CPP). A este princípio opõe-se o princípio da oportunidade, que dá ao M°P° competência para deixar de exercer a acção penal quando razões de consciência pública assim o exijam, ou quando se trate de infracções de pequena gravidade. O princípio da legalidade preserva um dos fundamentos essenciais do Estado de direito, na medida em que isenta a justiça penal de suspeitas e tentações de parcialidade e arbítrio. Se acaso fosse permitida aos órgãos públicos encarregados do procedimento penal apreciarem da conveniência do seu exercício e omiti-lo por inoportuno, avolumar-se-ia o perigo de aparecimento de influências externas da mais variada ordem, na administraçao da justiça penal e, mesmo que tais influências não lograssem impôr-se, ficaria irremediavelmente comprometida a confiança da comunidade na incondicional objectividade e imparcialidade daquela administração. Vem, assim, o princípio da legalidade em reforço e confirmação de uma máxima tão importante como a da igualdade na aplicação do direito, máxima essa com foro constitucional na República de Moçambique ( v. arts.35, 59 n°1, 234 n°2 e 236 da CRM de 2004). Depreende-se destas normas que o titular público da acusação deve exercer os poderes conferidos por lei sem atentar no estado ou na qualidade da pessoa ou nos interesses de terceiros. Ressalvam-se, naturalmente, as limitações derivadas dos pressupostos processuais ou de condições de aplicabilidade do próprio direito penal substantivo25. O princípio da legalidade defende e potencia, neste contexto, o efeito da prevenção geral que deve estar e continuar ligado não só à pena, mas a toda a dministração da justiça penal. 25 De modo diverso expende Castanheira Neves, ao considerar a invocação da garantia política ou administrativa como verdadeiro limite ao princípio da legalidade. 17
3.1.3 Princípio da acusação A imparcialidade e objectividade que associados à independência são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial, só estarão assegurados quando a entidade julgadora não tenha funções de investigação preliminar e acusação de infracções mas apenas possa “…investigar e julgar dentro dos limites que são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra, o M°P° ou um juíz de intrução)”26. É assim que modernamente se afirma o princípio da acusação. De realçar, no entanto, que pode formalmente existir um órgão diferenciado encarregado da acusação sem, todavia, estar-se perante o princípio da acusação. Foi o que sucedeu durante a vigência plena do CPP de 1929 a 1945 quando o M°P° deduzia a acusação mas em função de uma instrução preliminar (corpo de delito) dirigido pelo mesmo juíz a quem caberia o julgamento. Trata-se, neste caso, de um processo com forma acusatória e não de um processo com princípio de acusação. Um processo de tipo acusatório (seja ele puro, como v.g., o inglês clássico, ou esteja integrado por um princípio de investigação) supõe – para além do princípio da acusação – a aceitação da participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito do caso. No direito processual vigente em Moçambique – que, como todos sabemos, é basicamente o que herdámos do direito português – nem sempre o princípio da acusação foi adoptado plenamente. Basta reparar que o CPP, aprovado pelo Decreto n° 16489, de 15 de Fevereiro de de 1929, e tornado extensivo às então colónias, atribuía ao M°P° competência para deduzir acusação ( art.349) , mas em função de uma instrução preliminar (chamado corpo de delito), dirigida pelo mesmo juíz, a quem depois caberia o julgamento (art.171 e segs). Este sistema só se alterou com a aprovação do DL 35007, de 13 de Outubro de 1945, mais tarde posto igualmente em vigor nas colónias, que veio confiar ao M°P° a direcção da instrução preparatória e o exercício da acção penal. Da consagração deste princípio resultam substancialmente as seguintes implicações: 1. O tribunal a quem cabe o julgamento não pode, por sua iniciativa, começar uma investigação tendente ao esclarecimento de uma infracção e a determinação dos seus sujeitos. Tal só pode ter lugar numa fase processual cuja iniciativa e direcção caiba a uma entidade diferente; 2. A dedução da acusação é pressuposto de toda a actividade jurisdicional de investigação, conhecimento e decisão. Ela afirma publicamente que sobre alguém recai uma suspeita tão forte de responsabilidade por uma infracção, que impõe uma decisão judicial; e, por consequência, a afirmação pública e solene de que a comunidade jurídica chama um seu membro à responsabilidade; 26 Figueiredo Dias, op. cit. pág. 136 e segs. 18
3. A acusação define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. Num processo de tipo inquisitório puro, a cognição do tribunal poderia dirigir-se indiscriminadamente a qualquer suspeita de infracção ou de infractor, mesmo que aquela não tivesse nenhum reflexo no contexto da acusação (se esta existisse). Segundo o princípio do acusatório, pelo contrário - e esta é, sem dúvida a sua implicação mais relevante - , a actividade cognitiva e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação (e da pronúncia). É a este efeito que alguns autores chamam de vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou da indivisibilidade e da consução do objecto do processo penal, isto é, os princípios segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo desde a acusação ao trânsito em julagado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e deve considerar-se irrepetivelmente decidido. Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se apreendem quando se pensa que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido – sem o qual o fim do processo penal é inatingível -, que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitiva e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar o seu interesse de punir só os verdadeiros culpados.
3.2.
Princípios relativos à prossecução processual 3.2.1. O princípio da investigação
Já se fez referência a este princípio como elemento integrante da estrutura basicamente acusatória do processo penal vigente. O princípio da investigação pretende traduzir-se como o “… poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o ‹‹facto›› sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão”27. O princípio da investigação poderia designar-se também por princípio instrutório ou inquisitório não fosse a circunstância de tais designativos se prestarem a equívocos. O termo instrutório poderia fazer crer que o domínio do princípio se estenderia apenas à fase instrutória do processo penal. O segundo despertaria, eventualmente, reminiscência do antigo processo de tipo inquisitório. Este princípio, para além de servir de orientador à prossecução ou desenvolvimento de todo o processo penal, incide primeiramente na obtenção das bases da decisão e,
27 Figueiredo Dias, op. cit. pág. 148. 19
consequentemente na matéria das provas. É por essa razão que também é designado correctamente por princípio da verdade material. 3.2.2. Princípio da contraditoriedade e audiência Cabendo ao juiz cuidar de reunir as bases necessárias à sua decisão, não deve ele, todavia, levar a cabo a sua actividade isoladamente, pelo contrário, deve ouvir tanto a acusação como a defesa. Tal não significa, porém, que o juiz deva permanecer passivo e ouvir o debate que perante ele se desenrola – o que caracterizaria um sistema acusatório puro e não um sistema como o que vigora no nosso direito processual penal, com uma estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação – antes sim que toda a prossecução processual deve cumprir-se de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da defesa e, portanto, aceitando a iniciativa própria destes sujeitos processuais. O princípio do contraditório encontra assento generalizado na legislação processual penal vigente, se bem que em medida e sob formas diferentes, consoante o concreto estado do processo. No que se refere à fase do julgamento o preceito onde ele surge de forma mais explícita é do art.415 do CPP: “O juíz ouvirá sempre o M°P° e os representantes da parte acusadora sobre os requerimentos dos representantes da defesa e estes sobre o que tenham requerido aqueles”.
E muitos dos artigos seguintes (por ex., o art. 423) é à luz deste princípio que devem compreender-se. Quanto à fase chamada de acusação e defesa, a contraditoriedade transparece sobretudo nos arts. 379 e segs, 390 e 398, sendo ela própria, por outro lado, o autêntico fundamento da fase da instrução contraditória (art.326 e segs., revogado pelo DL 35007). É, de resto, para assegurar o contraditório que o art. 98, n°s 5 e 6 do CPP, considera como nulidade principal a falta de notificação do despacho de pronúncia ou equivalente ao arguido e seu defensor, bem como a falta de entrega do rol de testemunhas. Uma achega, conferindo maior estabilidade e concretização ao princípio do contraditório, provém da corrente moderna no sentido de atribuir verdadeira autonomia substancial perante o princípio da verdade material e perante o direito de defesa do arguido, através da sua concepção como princípio ou direito de audiência. O princípio da audiência traduz-se na oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no desenrolar do processo. 20
3.2.3. O princípio da suficiência - questões prejudiciais O princípio da suficiência vem consagrado no art. 2 do CPP. De acordo com este princípio, o processo penal é o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária à decisão a tomar (as excepções estão referidas nos artigos seguintes). Na tramitação do processo que há-de conduzir a esta decisão podem surgir questões de diversa natureza (penal, civil, administrativa, etc.), cuja resolução condiciona o ulterior desenvolvimento do processo. Ao dar competência ao juíz penal para delas conhecer, a lei considera que o processo penal se basta a si mesmo, que é auto-suficiente. A razão de ser do princípio é fácil de entender: se não se limitar a possibilidade de o processo penal ser sustido ou interrompido, pelo facto de nele surgir uma questão susceptível de apreciação autónoma, pôr-se-ão em risco as exigências da concentração processual ou da continuidade do processo e permitir-se-á colocar obstáculos ao exercício da acção penal. Pelo que acima ficou exposto, fácil é de compreender que a questão da suficiência suscita o problema das questões prejudiciais. São questões prejudiciais “aquelas que possuindo objecto – ou até natureza – diferente do da questão principal do processo em que surgem, e sendo susceptíveis de constituir objecto de um processo autónomo, são de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal dependendo o sentido deste conhecimento da solução que lhes for dada”28. Uma questão prejudicial terá de reunir os seguintes requisitos: I) um antecedente jurídico concreto da decisão do fundo da causa, impondo, por isso, o seu conhecimento prévio à decisão final da questão principal; II) uma questão autónoma, quer no seu objecto, quer na sua natureza, podendo o problema jurídico concreto ser susceptível de constituir objecto próprio de um processo independente; III) uma questão necessária à decisão da questão principal, porque condicionante do conhecimento e decisão da questão principal. O problema dos limites da suficiência em processo penal revela-se na sua verdadeira dimensão e autonomia, só relativamente às questões prejudiciais não penais em processo penal. No que respeita às questões prejudiciais penais em processo penal, a matéria vem regulada nos arts. 4 , 153 e 154 do CPP, e bem assim no art. 97 do C. P. Civil. Retomando agora as questões prejudiciais não penais em processo penal, o seu tratamento vem consignado no art. 3 do CPP, Reconhece-se, neste dispositivo legal, a excepção ao principio da suficiência. Teve, no entanto, o legislador o cuidado de acautelar que não se 28 Figueiredo Dias, op. cit. pág. 164. 21
criem obstáculos ao exercício do processo penal, com a devolução da questão prejudicial para o tribunal normalmente competente (v. arts. 3, &3°, do CPP). 3.2.4. Princípio da concentração Considerado na sua mais ampla acepção, o princípio da concentração do processo penal exige uma prossecução tanto quanto possível unitária e continuada de todos os termos e actos processuais, devendo, no seu conjunto e em todas as fases do processo, desenvolver-se concentradamente, quer no espaço, quer no tempo. Do que atrás ficou dito extrai-se que este princípio enforma todo o processo penal e funda-se na necessidade de conferir livre curso ao processo penal, sem obstáculos ou impedimentos ao seu exercício. O princípio em questão, embora presente em todas as fases do processo, ganha mais relevo e autonomia na audiência de julgamento, associando-se aos princípios de forma, enquanto corolário dos princípios da oralidade e de imediação (v. 76,&1°, 334, 337 e 403 do CPP).
3.3.
Princípios relativos à prova
3.3.1. Princípio da investigação ou da verdade material Perante o acto inicial de promoção de qualquer espécie de processo dão-se fundamentalmente duas possibilidades opostas de construir a respectivo prossecução processual: a) em uma delas as partes disporão do processo (tal qual dispõem da respectiva relação jurídica material) como coisa ou negócio seu; b) na outra será o tribunal a investigar, independentemente das contribuições dadas pelas das partes, o facto sujeito a julgamento e, assim, a construir autonomamente as bases da sua decisão. Deste modo se opõem dois princípios que dizendo sobretudo respeito à maneira de adquirir para o processo o material probatório não deixam de condicionar toda a prossecução processual: de um lado o princípio dispositivo, de contradição ou discussão, ou da verdade formal – que domina no processo civil; do outro, o princípio da investigação, instrutório, inquisitório ou da verdade material – que impera no nosso processo penal. Do princípio da verdade formal resultam certas consequências de que importa assinalar as mais relevantes:
22
a) É às partes que compete trazer ao processo toda a matéria fáctica e o material probatório que há-de servir de base à decisào. Nesta, o juíz só poderá, portanto, ter em conta os factos alegados pelas partes e as provas por elas produzidas; b) Na lógica da consequência anterior, está na circunstância de recair sobre as partes todo o risco da condução do processo, através do ónus que sobre elas incide, de afirmar, contradizer e impugnar: é a isto que se chama o princípio da auto-responsabilidade probatória das partes. À sua luz terá o juíz de considerar não necessitados de prova todos os factos que, apresentados por uma parte, não sejam contraditados pela outra: sobre eles haverá acordo, expresso ou apenas tácito por força de não- impugnação. Estes factos, possam embora não ser verdadeiros, são tidos (valem) como tal para efeitos da decisão. É por isso se diz que a sentença procura e declara a verdade formal. c) Finalmente, sendo objecto do processo uma relação jurídica material disponível, às partes pertence o direito de disporem do objecto do processo, quer pondo-lhes fim através da desistência da instância, quer determinando o próprio conteúdo da sentença de mérito através da confissão, da desistência ou da transacção. Na base do princípio da investigação ou da verdade material é totalmente diversa a posição do juíz perante a investigação do facto sujeito a julgamento. i) A dedução e esclarecimento do material de facto e dos elementos probatórios não pretence aqui exclusivamente às partes, mas em último termo ao juíz: é sobre ele que recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento. Esta consequência do princípio da verdade material enconttra-se consagrada , com carácter geral, no art. 9, e , a propósito de problemas específicos, nos arts. 330, 332, 333 && 1°e 2°, 404 &1°, 425 &3°, 435, 443, 465 &único, etc., do CPP. ii) Dado o dever de investigação judicial autónoma da verdade, logo se compreende que não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de afirmar, contradizer e impugnar, como, igualmente, que não se atribua qualquer eficácia a não apresentação de certos factos ou ao acordo, expresso ou tácito, que se formaria sobre os factos não contraditados, como, finalmente, que o tribunal não tenha de limitar a sua convicção sobre os meios de prova apresentados pelos interessados. Por isso se diz que em processo penal está em causa, não a verdade formal, mas a verdade material, entendida como verdade subtraida à influência do comportamento processual da acusação e da defesa e como verdade judicial, prática e processualmente válida. iii) Não há aqui lugar para o princípio do dispositivo, pois se está perante a indisponibilidade do objecto processual, a impossibilidade de desistência da acusação pública, de acordos eficazes entre a acusação e a defesa e de limitações postas ao tribunal na apreciação juridica do caso submetido a julgamento. Este último ponto vale, 23
sobretudo, perante as alegações orais na audiência de discussão e julgamento (arts. 467, 533 e 539 do CPP). Pode o M°P° ter pedido a absolvição do arguido e o tribunal condená-lo, como pode a defesa, considerando provado o crime, pedir apenas a condenação em uma pena leve e o tribunal absolver o arguido. 3.3.2. Princípio da livre apreciação da prova Com a produção da prova em julgamento tem-se em vista oferecer ao tribunal as condições necessárias para que forme a sua convicção sobre a existência ou não dos factos ou situações relevantes para a sua decisão – a sentença. Ao tratar deste matéria importa, desde logo, dar resposta cabal à seguinte questão: a apreciação da prova deve ter lugar segundo regras legais predeterminados do valor a atribuir-lhes (sistema de prova legal), ou antes de acordo com a livre valoração do juíz e da sua convicção pessoal (sistema de prova livre). Tal questão tem recebido ao longo do tempo soluções divergentes, quer nos diferentes estádios evolutivos do Direito Pocessual Penal, quer nos diversos sistemas processuais. Por um lado, vastas legislações do passado, receosas de que o juíz incorresse em erro na valoração dos meios de prova, fixavam critérios de apreciação da prova fundada em regras da vida e da experiência que tradicionalmente eram tidas por seguras. Através delas se deterninava ou se hierarquizava o valor dos distintos meios de prova. É neste contexto que a confissão era tida como a rainha de todas as provas, (no sistema canónico medieval) defendia-se que, ao confessar, “o arguido exprimia uma vontade expiatória que, afinal,se identificaria com a própria vontade da lei”. Do mesmo modo se aponta a razão de ser das regras das Ordenações Filipinas, no que respeitava à apreciação da prova testemunhal – unus testis nullus testis. Com o advento das reformas legislativas do processo penal consequentes à Revolução Francesa, afirmou-se a ideia de que o valor e a força dos meios de prova em processo penal não podem ser correctamente aferidos a priori, através de regras com o carácter de generalidade próprio dos critérios legais, mas só o devem ser no contexto das circunstâncias concretas do caso. Vários factores concorrem em reforço desta ideia, designadamente a instituição do júri como entidade competente para a apreciação da prova em processo penal, a difusão dos chamados métodos científicos de prova que permitiria a redução da margem de erro na livre apreciação daquela e, por último, de que só através da livre valoração se lograria apreciar a personalidade do delinquente (v.art. 84 do CPP). Segundo o princípio da livre apreciação da prova, a valoração das provas pelo juíz não está sujeita a critérios legais, a regras pre-determinadas que indicam o valor de certo meio de prova. Esta valoração é feita segundo a livre convicção do juíz, convicção essa que 24
não pode ser puramente subjectiva, emocional, imotivável, portanto arbitrária. A apreciação da prova deve ser racional e apoiar-se nos elementos de prova produzidos. O juíz não pode servir-se, para fundamentar a sua decisão, de factos conhecidos fora dopprocesso – Quod non est in actis non est in mundo… O princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juíz vale, em geral, no nosso direito processual penal, para todo o domínio da prova produzida.No entanto, considerados os singulares meios de prova admitidos, há que assinalar algumas questões que, por vezes, se traduzem em importantes limitações ou mesmo excepções a este princípio: a) No que respeita à prova testemunhal e por declarações (art. 214 e segs do CPP) o princípio vale hoje sem quaisquer limitações, sendo este o seu campo de eleição. Todavia, a lei dá a entender, por diversos modos, não ter a prova por declarações a mesma dignidade probatória que a testemunhal, mas nada disto se reflecte em termos de critério de apreciação da prova. O juíz é livre de formar a sua convicção na base do depoimento de um declarante em desfavor de testemunho (s) contrário (s); b) No tocante ao depoimento do arguido (arts. 244, 250 e segs. , 425 e segs. Do CPP), há que distinguir duas situações, conforme este negue ou confesse os factos. Em caso de negação, recorre-se por inteiro ao princípio da livre apreciação e convicção. A confissão, contudo, está sujeita, quanto ao seu valor, a um verdeiro critério legal de apreciação. Com efeito, o art. 174 do CPP dispõe que “ a confissão do arguído desacompanhada de quaisquer outros elementos de prova não vale como corpo de delito”. E acrescenta no seu &único : “ainda que o arguido tenha confessado a infracção, o juíz deverá proceder a todas as diligências para o apuramento da verdade, devendo investigar, com todos os elementos de que dispuser, se a confissão é ou não verdadeira”; c) Quanto à prova pericial, afirma-se no nosso direito a ideia da absoluta liberdade da sua apreciação pelo juíz, ao contrário do que sucedeu no deslumbramento consequente ao advento da chamada prova científica em que se advogava que os pareceres dos peritos deviam considerar-se como contendo verdadeiras decisões às quais o juíz tinha de sujeitar-se; d) A apreciação de factos constantes de documentos autênticos ou autenticados, traduz-se num verdadeiro critério legal (v. art. 468, &único do CPP, arts.165 e 169 do CPC). 3.3.3. Princípio in dubio pro reo Vimos já que em processo penal cabe ao juíz o dever de, oficiosamente, instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento: não há, em processo penal, qualquer verdadeiro ónus de prova que recaia sobre o acusador ou o arguido. Em direito processual penal não há seguramente, o chamado onus da prova formal, segundo o qual as partes teria o dever 25
de produzir as provas necessárias como fundamento das suas afirmações de facto, sob pena de os mesmos factos não serem tidos como provados. Se o tribunal, em processo penal, através da sua actividade probatória, não lograr obter a certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá de decidir em disfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de provas. Este é o conteúdo do princípio de, na dúvida, dever decidir-se a favor do réu. 3.4. Princípios relativos à forma 3.4.1. Os princípios de forma como princípios estruturais da fase de julgamento Estes princípios integram, por sua vez, os princípios da publicidade e da oralidade, com o seu corolário mais importante que é o princípio da imediação.Tais princípios dizem respeito, de modo directo, à forma sob a qual há-de decorrer e a que deve obedecer o processo penal. Afirmam-se, no entanto, com maior expressão na fase da audiência e julgamento, sendo esta o seu campo de eleição.
3.4.2. Princípio da publicidade Nos termos do art. 407 do CPP , conjugado com n° 1 do art.13, da Lei n° 24/2007, de 20 de Agosto,(Lei orgânica dos tribunais judiciais), as audiências dos tribunais são públicas. Significa isto que qualquer cidadão tem direito a assistir ao (e a ouvir o) desenrolar da audiência de julgamento, mas que também são admissíveis os relatos públicos daquela audiência. As excepções à publicidade da audiência de julgamento estão previstas no art. 407 do CPP. 3.4.3. Princípio da oralidade e da imediação Outro dos princípios fundamentais do processo penal a que importa fazer referência é o princípio da oralidade que se afirma com maior relevo na fase da audiência de discussão e julgamento. Oralidade não significa exclusão da escrita, no sentido de proibição de que os actos que tenham lugar oralmente fiquem registos, actas ou protocolos (que servem, por ex., fins de controle de produção da prova, sobretudo em matéria de recurso). Significa, tão somente, que a actividade processual é exercida na presença dos participantes do processo e, portanto, oralmente. Quando se fala de oralidade como princípio geral do processo penal, tem-se em vista a forma oral de atingir a decisão: o processo será dominado pelo princípio da escrita 26
quando o juíz profere a decisão na base de actos processuais que foram produzidos por escrito (exames, peritagens, etc.) e será, pelo contrário, dominado pelo princípio da oralidade quando a decisão é proferida com base em uma audiência oral da matéria a considerar. A importância do princípio da oralidade reside no facto de permitir o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só a oralidade permite, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só ela permite, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitandolhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na delcaração do direito do caso. O princípio sofre algumas limitações quando a audiência de julgamento se realize sem a presença do arguido – arts. 413, 547, 562 e sgs. do CPP. Do mesmo modo, a fase dos recursos decorre sob forma escrita. Em conexão estrita com o princípio da oralidade está o princípio da imediação, aliás corolário daquele. Pode, em geral, definir-se como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão”. Por exemplo, a exibição de documentos (art. 426 do CPP) é uma manifestação do princípio de imediação. Também aqui, tal como no princípio da oralidade, o ponto de vista decisivo é a forma de obter a decisão. 4. A Lei processual penal 4.1. Fontes do Direito processual Penal moçambicano Por mero interesse de clareza de exposição, adopta-se a seguinte sistematização no que respeita às fontes do direito processual penal: fonte material ou imediata (direito legal); fonte legislativa internacional; fonte doutrinária e fonte jurisprudencial.
Fonte material ou imediata – direito legal a) A Constituição da República de Moçambique A Constituição, porque lei fundamental e hierarquicamente superior, é a fonte primeira do direito processual penal. Tanto é assim que alguns consideram que, como vimos, o direito processual penal como direito constitucional aplicado. Na verdade, ele contém preceitos 27
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos que são directamente aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas. Especial referência deve ser feita aos seguintes dispositivos constitucionais como fontes do nosso direito: art.35 - igualdade dos cidadãos perante a lei; art.40 - direito à vida e integridade física; o Capítulo III repoprta-se à garantia dos direitos e liberdades, delas se destacando os arts. 56, 59, 60 a 70, entre outros; no TÍTULO IX, Capítulo I, referente aos tribunais, são disposições relevantes para a matéria em questão os arts. 212 a 216 e 244 a 248. b) O Código do Processo Penal e legislação avulsa O CPP é, sem dúvida, uma das mais importantes fontes do direito processual penal. Este diploma foi aprovado e publicado através do Decreto n° 16489, de 15 de Fevereiro de 1921, e mandado aplicar nas então colónias portuguesas pelo Decreto n° 19271, de 24 de Janeiro de 1931, com as alterações deste constantes. Outro diploma de relevo é o Decreto-Lei n° 35007, de 13 de Outubro de 1945, mandado aplicar a Moçambique, com algumas modificações, pela Portaria n° 17076, de 20 de Março de 1959. Por sua vez, o Decreto-Lei n° 185/72, de 31 de Maio, contém a última e mais extensa e importante das reformas sofridas desde 1929, pelo CPP, reforma esta que implicou a revogação de várias disposições do Decreto-Lei n° 35007. O CPP de 1929 tem por fontes principais o direito anterior, a jurisprudência portuguesa e a prática dos tribunais, além de vários projectos que antecederam a sua aprovação. Considerando o estado caótico da legislação e da prática processuais anteriores, o CPP de 1929 teve o grande mérito de englobar numa concepção unitária e ordenada os princípios do direito processual penal, e de os regulamentar dentro de um sistema livre de contradições. Com ele deu-se mais ênfase à descoberta da verdade material como fim do processo penal, ampliou-se, consequentemente os poderes de cognição do juíz e vedaram-se as práticas processuais abusivas e as dilações voluntárias da prossecução processual. O Código veio substituir a anterior concepção, de base acusatória, por outra, de índole inquisitório, em que competia ao juíz, para além de julgar, realizar a investigaçao preliminar, fundamentadora da acusação – a que se designou de corpo de delito. Não deixou, porém de respeitar formalmente a concepção acusatória, na medida em que era ao M°P° que competia deduzir a acusação. É o princípio da forma acusatória ou acusatório formal. Coincidiam na mesma pessoa as funções de investigar e julgar, o que acarretava sérios riscos de lhe criar, naquela primeira fase, um preconceito do qual, na segunda, dificilmente conseguia livrar-se – deste modo se lhe furtava a objectividade e a imparcialidade necessárias a um correcto julgamento. O Decreto-Lei 35007 procurou eliminar estes inconvenientes. Para tanto, atribuiu ao M°P°, não só a titularidade da acção penal (art. 1°), como, na fase de instrução preparatória, os poderes e as 28
funções que, antes dele, eram atribuídas ao juíz. A grande crítica que se faz a este diploma é o facto de atribuir a uma magistratura dependente e hierarquicamente estruturada funções e poderes que implicam intromissões na esfera das liberdades do cidadão, sem fixar mecanismos de controle judicial do exercício daquelas funções. O Decreto-lei 185/72 não deu solução a este problema, muito embora tenha reformado extensas zonas do processo penal relacionadas com a fase de instrução (preparatória e contraditória), a acusação e defesa e as execuções. Deixou, portanto, persistir um dos maiores problemas no que respeita à instrução – o da falta de controle judicial da actividade instrutória de todos os órgaos do Estado (mesmo dos que cumpram funções administrativas), desde que tal actividade se prenda com a esfera dos direitos constitucionalmente garantidos. Tal problema só viria a ser resolvido em Portugal pela Lei n°2/72 e pelo Decreto n°343/72, que permitiram a criação dos juízes de intrução criminal nas comarcas em que o movimento processual assim o exigisse. Tais diplomas não chegaram, porém, a ser tornados extensivos aos territorios sob administração colonial. No nosso país só recentemente, com a aprovação e publicação da Lei n°2/93, de 24 de Junho, a questão veio a ser parcialmente colmatada. Para além do CPP, há que considera a legislação avulsa pertinente ao processo penal como fonte do nosso direito processual penal: ٭O Decreto-lei n°28/75, de 1 de Março, que alarga o âmbito de aplicação do processo sumário e simplioica o formalismo do processo de transgressões; ٭O Decreto-lei n°4/75, de 16 de Agosto, que além de ter proibido o exercício de advocacia a título de profissão liberal, continha disposições relativas ao exercício da acção penal pelo M°P° e à impossibilidade de constituição de assistente; ٭A Lei n°9/92, de 6 de Maio, que imprime alterações ao formalismo processual penal e reintroduz a figura do assistente, derrogando os arts. 17 e 19 do Decret-Lei n° 4/75; ٭A Lei n° 10/92, de 6 de Maio, Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, que veio a ser revogada pela Lei n°24/2007,de 20 de Agosto; ٭A Lei n°2/93, de 24 de Junho, relativa à institucionalização dos juízes da instrução criminal
Fontes legislativas internacionais Os textos jurídicos internacionais são fonte do direito processual penal na medida em que vigorem na ordem jurídica interna. Aflora-se aqui o problema da aplicabilidade e vigência interna do Direito Internacional, cujo desenvolvimento encontra-se em disciplina própria. Assim sendo, e sem pretender esgotar a matéria, nomeiam-se os textos mais significativos: 29
٭Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; ٭Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e respectivo Protocolo facultativo; ٭Convenção Contra a Tortura e outras Formas de Tratamento ou Punição Cruel, Desumano ou Degradante, de 26 de Junho de 1987; ٭Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de Junho de 1981.
Fontes Doutrinárias A doutrina tem um papel de relevo na construção da dogmatica jurídico-processual penal. A renovação e desenvolvimento da doutrina resulta da busca incessante de soluções justas e adequadas para concretos problemas da vida comunitária. Contribuições nesse sentido são vastas e variadas, situando-se no tempo desde o século XVIII até aos nossos dias. Na indicação bibliográfica distribuida aos alunos encontram-se algumas obras e artigos de revista mais significativos da doutrina a que temos mais fácil acesso que é, apesar de tudo, a portuguesa.
Fonte jurisprudencial
A jurisprudência não constitui fonte em sentido formal, mas cabe-lhe, de algum modo, uma função criadora do Direito. Na verdade, não se coloca ela ao mesmo nível de obrigatoriedade geral própria da lei, nem tão pouco em conflito com ela, o que poderia suscitar uma questão de prevalência ou hierarquização. A sua força reside no facto de o direito ter deixado de ser um conjunto de princípios gerais e abstractos, achando-se aqui (no processo penal) aplicado a um caso concreto. Todavia, tem a jurisprudência desempenhado um papel de relevo de parceria com a doutrina processual penal, na construção teórica e dogmatica do respectivo direito. Tal contribuição panteteia-se hoje na afirmação de princípios jurídicos com reflexos de tal ordem no direito positivo, que nele alcançam assento por via da consagração legal. Exemplos clássicos nesse sentido são-nos revelados pelos princípios respeitantes: à conexão de processos e consequente unidade de cognição, sobretudo em via de recurso – art. 663; à convolação – arts. 148 e segs e 447 e segs.; ao recurso de revisão com base em factos novos – art. 673 (todas as disposições do CPP).
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Uma questão particular e específica é a suscitada pela figura dos assentos, que se traduz na fixação, pelos tribunais, de doutrina com força obrigatória geral (v. art.do CCivil e 763 e segs. do CPP), resulta ela da necessidade de se saber se o conteúdo normativo do assento assumiria a mesma natureza e valor próprio da lei em sentido formal. Se atentarmos ao facto de que a função do tribunal assenta na aplicação do direito ao caso concreto, não se coadunando, portanto, com a fixação de doutrina com força obrigatória geral, facilmente se apreenderá da delicadeza do problema em análise. Trata-se, com efeito, de uma questão actual e pertinente, dividindo opiniões e correntes entre a aceitação e a rejeição desta figura por inconstitucional e se traduzir no uso, pelos tribunais, de poderes que são próprios de um órgão legislativo. Entre nós a questão ainda não foi levantada, sendo certo que a Lei n° 10/92, de 6 de Maio, previa no seu art. 33, alínea a) a possibilidade de o plenário do Tribunal Supremo, funcionando como tribunal de 2ª instância “”…uniformizar a jurisprudência, quando no domínio da mesnma questão fundamental de direito, tenham sido proferidas decisões contraditórias nas várias instâncias do Tribunal Supremo”.
4.2. Interpretação e integração da lei processual. A analogia As normas do direito processual penal suscitam, como as do direito material, problemas de interpretação. Buscar e encontrar o sentido e o espírito da norma para esclarecer a sua obscuridade ou para determinar o seu alcance, ou mesmo decidir sobre qual a norma aplicável a casos não expressamente previstos, são problenmas comuns a todos os ramos de direito. Interpretar a lei significa fixar exactamente o seu conteúdo e alcance, determinando qual é a vontade expressa pela norma em conexão com as demais normas e com as exigências sempre novas da vida comunitária. Há, em princípio, quanto aos elementos utilizados, a interpretação literal (ou gramatical) e a interpretação lógica (ou racional). Quanto aos efeitos ou resultados, a interpretação pode ser declarativa, extensiva ou restritiva. Em todas as formas de interpretação da lei está sempre implícito o pressuposto de uma contradição entre a vontade do legislador e a sua imperfeita manifestação e, por via disso, a necessidade de rectificação desta, com o objectivo de assegurar a supremacia e predominância daquela. De todo o modo, e nas suas linhas gerais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia em relação aos restantes ramos do direito. 29 É de assinalar, no entanto, a relevância que no direito processual penal assume a consideração do fim do processo para uma interpretação axiológica e telológica. Na verdade, assumindo-se o direito 29 V. por todos, Andrade, Manuel Augusto Domingues de, Fontes do Direito- Vigência, interpretação e aplicação da Lei, in Boletim do Ministério da Justiça, n° 102, pág. 141. 31
processual penal como verdadeiro direito constitucional aplicado, não será por demais acentuar a necessidade de se tomar em conta o princípio da interpretação conforme a Constituição. O problema das lacunas da lei e da sua integração merece, em direito processual penal, uma consideração especial. O art. 1, &único do CPP dispõe que, “nos casos omissos, quando as suas disposições não possam aplicar-se por analogia, observer-se-ão as regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicar-se-á os princípios gerais do processo penal”. Há, pois, um triplo caminho a percorrer no processo de integração das lacunas em processo penal: a) a analogia; b) as regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal; c) os princípios gerais do processo penal. Quanto à analogia, ela é aqui permitida, ao contrário do que sucede no direito penal substantivo, no que respeita à fundamentação da pena (incriminação) ou ao seu agravamento (arts. 5 e 18 do CP). Mas o facto de analogia ser permitida em processo penal não significa que ela possa ser usada em detrimento dos direitos processuais do arguido ou para enfraquecer a sua posição processual. É que, tal como no direito penal, o direito processual penal deve reger-se pelo princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado (arts.60, n°1 e 302 da Constituição). Constituindo o princípio da legalidade a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do poder, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo momento pôr em perigo a liberdade das pessoas. Não sendo possível a integração por via da analogia, há que recorrer às regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal. Confere-se assim às normas do processo civil o estatuto de direito subsidiário, desde que se demonstre a sua harmonia, no caso concreto, com os princípios do processo penal. Só quando a lacuna não tenha podido ser colmatada com o recurso à analogia e às normas do processo civil, é possível atender aos princípios gerais do processo penal.
4.3. Aplicação da lei processual penal no tempo e no espaço 32
4.3.1. Âmbito de aplicação material O âmbito de aplicação material do direito processual penal coincide com os estritos limites da jurisdição moçambicana em matéria penal. É, pois, demarcado pela especialidade do objecto do processo penal, abrangendo o crime acusado, as contravenções e as reacções criminais que em abstracto lhes caibam. Está, naturalmente, fora de questão a autonomia das jurisdições penal e civil. Todavia, a lei manda que o pedido civil de indemnização por perdas e danos derivada de um crime deve ser deduzido em processo penal (art. 29 do CPP). Optou, assim, o legislador pelo chamado sistema de interdependência ou da adesão da acção civil à penal. Sobre o assunto nos referiremos mais detalhadamente no capítulo próprio30. 4.3.2. Âmbito de aplicação espacial O âmbito de aplicação do direito processual penal no espaço assenta na ideia de que a jurisdição penal se confina aos limites territoriais do Estado – vigora aqui o princípio da territorialidade. Nada impede, porém, que à jurisdição penal moçambicana se aplique a crimes cometidos no estrangeiro (arts. 46, 48, 49 e 50 do CPP), o que acontece naqueles precisos casos em que é aplicável a lei penal substantiva. Significa isto que é inadmissível, salvo tratado internacional em contrário, executar em território estrangeiro actos processuais cabidos na jurisdição nacional e vice-versa. Em consequência do princípio acima aludido – que domina as relações entre a jurisdição nacional e as estrangeiras – à sentença penal estrangeira não são reconhecidos efeitos positivos ou executórios, embora possam ser admitidos efeitos negativos. Assim, no caso de infracções cometidas no estrangeiro, a sentença ali proferida impede que a questão seja de novo julgada em Moçambique (art. 53, n°s 3 e 5, do CP) e , em caso de novo processo, ter-se-á em conta a pena já cumprida pelo réu no estrangeiro (n°3 do art. 53) e, bem assim, o &4° do art 35 do CP. Excepções ao princípio da territorialidade resultam de tratados internacionais firmados por Moçambique com outros países, de entre os quais se destacam os acordos de cooperação jurídica e judiciária com Cuba31 e Portugal.
4.3.3. Âmbito de aplicação pessoal O âmbito de aplicação pessoal do direito processual penal coincide com o da aplicação do direito penal substantivo: quer dizer, estão sujeitos à jurisdição penal moçambicana todas as pessoas (e 30 V. infra, Capítulo III. 31 V. Resolução da Assembleia Popular n°3/89, de 23 de Março (BR, I Série, n° 12, 3° Suplemento). 33
só elas) a que seja aplicável o direito penal moçambicano. Daqui se extrai que o direito processual penal não atinge apenas os arguidos ou suspeitos, mas também uma ampla gama de terceiros se encontra sujeita a determinações processuais em matéria de prazos, de deveres de comparecer, prestar declarações, suportar exames, buscas e apreensões, etc. Cabe, assim, ao próprio direito processual deterninar os direitos e deveres processuais de todas as pessoas, nacionais ou estrangeiras participantes de um processo penal, que devem submeter-se ao nosso direito. Há, no entanto, limitações a considerar no que respeita ao âmbito de aplicação pessoal. A primeira resulta de preceitos do direito internacional público, como expressão do princípio da extraterritorialidade. São as chamadas imunidades diplomáticas que atingem Chefes de Estado estrangeiros, diplomatas e agentes equiparados, suas famílias e, em parte, também o pessoal administrativo e técnico das representações diplomáticas, pessoal de serviço e cônsules. O texto legal mais importante é a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, de 28 de Abril de 1961. Outro grupo de limitações deriva do Direito Constitucional e atinge o Presidente da República (arts. 153 e 154 da Constituição) e os Deputados da Assembleia da República (art. 174 da Constituição). Esta imunidade estende-se a entidades nomeadas pelo Presidente da República (art.51, da lei n°24/2007, de 20 de Agosto).
4.3.4. Âmbito de aplicação temporal A lei processual penal, como em geral toda a lei “… só dispõe para o futuro”, nos termos do art. 12 do C. Civil. Todavia, a aplicação da lei processual penal a actos ou situações que decorram na sua vigência mas que se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei processual penal antiga, não deve contrariar nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade. Resulta daqui que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido na vigência da lei antiga, sempre que da nova lei possa resultar um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa32.
II- OS SUJEITOS PROCESSUAIS
32 V. a propósito, o princípio consagrado no artr. 60 da Constituição de 2004. 34
5. Introdução Dissemos acima33 que o processo penal se pode definir como uma sequência de actos juridicamente pre-ordenadas e praticadas por certas pessoas legitimamente autiorizadas com vista a lograr a decisão sobre se foi praticado um crime e, em caso afir mativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e a sua justa aplicação. Essas pessoas e entidades que, investidas nas suas diversas funções, desenvolvem actividades no processo, recebem a designação genérica de participantes processuais. Mas nem todos os participantes processuais realizam uma função determinante, a ponto de imprimirem ao processo uma certa direcção ou fisionomia própria. Os funcionários judiciais, por exemplo, colaboram no processo e, no entanto, a sua actuação não é decisiva. O mesmo se passa com as testemunhas, os declarantes e os peritos, que intervêm como meios de prova, mas não têm poder de iniciativa nem de decisão relativamente às questões processuais. Aos participantes a quem, por força da sua particular posição jurídica, são reconhecidos direitos e deveres processuais autónomos, no sentido de poderem condicionar a concreta tramitação do processo, costuma chamar-se sujeitos processuais34. Assim, são sujeitos processuais, além do tribunal (ou por outras palavras, o juiz penal), o Ministério Público, o arguido e o seu defensor, o ofendido e o assistente. Iremos estudar detalhadamente cada um deles. Antes, porém, convirá fazer uma breve referência à estrutura fundamental do processo penal com particular relevo para o que resulta da legislação em vigor.
5.1. O conceito de “parte” e os modelos estruturais do processo penal Discute-se muito se o processo penal é ou não um processo de partes (à semelhança do processo civil), considerando o significado adjectivo ou instrumental do conceito. Alguns autores – Eduardo Correia, Cavaleiro de Ferreira, Castanheira Neves e os italianos Manzini e Carnellutti, entre outros, definem como partes os sujeitos processuais que discutem a 33 V. “Direito Penal, Processo Penal e Direito Processual Penal”, ponto 1.1.2. 34 A distinção entre sujeitos e simples participantes processuais – ou, como preferem alguns autores, entre sujeitos principais e sujeitos secundários ou axcessórios – é meramente doutrinal, não tem reflexo na lei. Apresenta, todavia, um certo interesse sistemático, como veremos adiante, ao estudar a posição jurídica de cada um deles no processo. 35
causa e esperam do juíz uma apreciação do mérito dela. É nesta perspectiva que eles consideram o processo penal como um processo de partes, não em sentido puro, mas em sentido meramente formal, porquanto os sujeitos que discutem a causa – o Ministério Público e o acusado – apenas formalmente estão colocados em campos opostos. Na verdade, ao Ministério Público – já o dissemos35, não cabe o dever de obter a condenação do arguido, mas, como tal ao juíz, um dever de objectividade (v. Art. 12, &1° e 25 do Decreto-Lei n° 35007 e art. 647, n°1 do CPP). Por outro lado, ao arguido cabe indiscutivelmente um direito de defesa, mas não, por certo, um dever de defesa (não se lhe exige que se oponha à acusação), pelo que bem pode acontecer não se verificar uma necessária contraposição de interesses entre o Ministério Público e a defesa. Outros –Figueiredo Dias e alguns autores alemães -, dando ao conceito de parte um sentido processual material, definem como tal os titulares de interesses contrapostos que no processo se discutem e se encontram concretamente em jogo. Para estes não se pode, relativamente ao processo penal, falar em processo de partes, nem mesmo em sentido formal, já que, precisamente por não existir uma necessária contraposição de interesses entre a acusação e a defesa, e distinção que se pretende assinalar (entre os sujeitos que pretendem fazer valer, perante o juíz, as suas posições) nada contribui para explicar a estrutura íntima do processo penal. Esta estrutura processual (resultante do modo de actuação dos sujeitos) explica-se, de acordo com esta corrente, através da referência aos modelos estruturais que historicamente se desenvolveram, sobretudo o de tipo inquisitório e o do tipo acusatório. O processo inquisitório (que, como já foi referido, teve a sua consagração nas legislações europeias continentais dos séculos XVII e XVIII, embora surja em épocas mais recentes nos Estados de regime autoritário), é o exemplo-padrão de um processo sem partes. Nele, a investigação da verdade e, de uma forma geral, o domínio do processo estão concentrados num único órgão – o juíz: a este competia simultaneamente inquirir, acusar e julgar, sem que intervenha qualquer outra entidade oficial encarregada da acusação. O processo é, em regra, totalmente escrito e secreto, do que resulta a impossibilidade, para o arguido, de exercer efectivamente o seu direito de defesa. Todos os meios, incluindo a tortura, são considerados legítimos para extorquir do réu a confissão tida como rainha das provas. Como é fácil de imaginar, de um órgão no qual convergem as funções de instrução, acusação e julgamento, não pode esparar-se uma atitude de imparcialidade e de independência face ao poder político. O processo acusatório (que vigora, ainda hoje, nos países anglo-saxónicos ou influenciados por estes) é, pelo contrário, o exemplo marcante de um processo penal de partes. 35 - Uma vez que o sentido substantivo, ligado que está à ideia de acção material, se encontra hoje superada, mesmo no processo civil (v. Figueiredo Dias, op. Cit. Pág. 243). 36
O interesse público de perseguição e punição das infracções penais é encabeçado no representante da acusação (que pode ser uma entidade pública ou privada), o interesse do arguído é representado pelo defensor e o processo surge, deste modo, como uma discussão, uma autêntica confrontação entre ambos, sob o olhar imparcial e passivo do juíz. A este não cabe colher o material probatório, mas sim às partes por meio do sistema interrogatório e contra-interrogatório (examination and cross-examination, como se diz em inglês jurídico) das testemunhas, dos peritos e do próprio arguido (que pode testemunhar em causa própria). O papel do juíz é unicamente o de dirigir a audiência, velando sobretudo por que as partes não se afastem do formalismo prescrito, e proferir a decisão final na base das provas apresentadas pela acusação e pela defesa. 5.2. A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique Face aos modelos estruturais acabados de descrever, e em função do que acima foi dito, quer a propósito do objecto do processo, quer das diferenças entre os processos penal e civil, facilmente se conclui que o tipo de processo penal definido na legislação entre nós não corresponde a um puro processo de partes. E não é um puro processo de partes, pelas seguintes razões essenciais: ٭Contrariamente ao que sucede com as partes naquele tipo de processo, o Ministério Público e o arguido não se encontram, de facto e de jure, ao mesmo nível – as suas posições não são idênticas, nem entre ambos se verifica uma absoluta igualdade de oportunidades no tratamento do objecto do processo. Na realidade, o Ministério Público beneficia de uma posição jurídica supraordenada em relação à do arguido: dispõe de um aparelho investigativo e coactivo (formado pelos chamados órgãos auxiliares do Ministério Público – a PIC e as outras forças policiais, os estabelecimentos especializados de investigação, enfim, todos os organismos do poder do Estado), de que pode e deve fazer uso o que falta por completo ao arguido; pode impôr ao marguido a prisão (art. 293 do CPP, na nova redacção que lhe foi dada pela Lei n°2/93, de 24 de Junho) e requerer ao juíz da instrução criminal outras medidas coercivas de limitação ou privação da liberdade. ٭O Ministério Público não tem, como as partes em processo civil, o domínio do objecto do processo: não lhe cabe qualquer margem de discricionaridade em acusar ou não acusar, nem a acusação pode ser retirada a partir do momento em que o tribunal for chamado a decidir sobre ela. Por outro lado, a confissão do arguido não produz qualquer efeito processual quando desacompanhada de outros elementos de prova (v. Art. 174 do CPP), nem sobre aquele recai responsabilidade alguma pela não-produção de uma prova36, ao mesmo tempo que – por força do princípio da verdade material - nada obsta a que o tribunal, por sua iniciativa, realize as diligências que entender necessárias, mesmo que tenham o arguido por objecto. 36 - v. Figueiredo Dias, Ónus de alegar e de provar em processo penal?, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 105, pág. 125 e segts. 37
Do exposto resulta que o processo penal em Moçambique é tipicamente um processo sem partes, embora isso não signifique que a sua estrutura se confunde com a do tipo inquisitório (pelo menos na sua forma pura). Ele é, na verdade, um processo basicamente acusatório, mas integrado por um princípio de investigação, que, como vimos, está consagrado com carácter geral no art. 9 do CPP.
6. O Tribunal 6.1. A jurisdição penal 6.1.1. Conceito de jurisdição São diversos os sentidos que pode assumir o termo jurisdição. Etimologicamente, a palavra significa dizer o direito (do latim= juris dicere) e é empregue, na linguagem jurídica, para designar: - o poder ou função jurisdicional, enquanto faculdade contida no direito de soberania do Estado; - o conjunto dos órgãos do Estado aos quais compete o exercício desse poder ou função, ou seja, os tribunais; e - a actividade dos tribunais, enquanto órgãos de administração da justiça.
É este último sentido o que agora nos interessa, para caracterizarmos o sujeito processual a quem cabe, em exclusivo, a declaração do direito do caso. Na verdade, superada que está, historicamente, a época da vindicta privada37, há muito que o Estado chamou a si o jus puniendi, o poder-dever de administrar a justiça penal. Fá-lo através de órgãos próprios - os tribunais, e só eles - que reúnem uma série de características particulares, a que nos referiremos em seguida. A jurisdição penal integra, assim, um conjunto de poderes e deveres cuja finalidade é a declaração (ou não) do facto como crime e do arguido como seu responsável (ou não), a aplicação da pena e sua execução, quando for caso disso, e bem assim a verificação dos pressupostos das medidas de segurança criminais, sua aplicação e execução.
37 Característica das sociedades pré-estaduais, de poder descentralizado, em que os conflitos juridicamente relevantes entre os seus membros eram resolvidos por acordo voluintário ou pela força, 38
6.1.2. Organização dos tribunais judiciais A jurisdição como função soberana do Estado, é exercida em exclusivo pelos tribunais. Este princípio está consagrado na Constituição (de 1990) ao estabelecer, no seu art. 168, n°138, que: “Na República de Moçambique a função jurisdicional é exercida através do Tribunal Supremo e demais tribunais estebelecidos por lei”. - Mas quais os tribunais, de entre os que a Constituição enumera, exercem a jurisdição penal e em que medida? A jurisdição penal pertence aos tribunais judiciais, hierarquicamente organizados de acordo com o estabelecido na respectiva Lei Órgânica (Lei n° 24/2007, de 20 de Agosto), e aos tribunais militares, estes com competência especializada e a organização definidas na Lei n°17/87, de 21 de Dezembro. Assim, nos termos da referida Lei n° 24/2007, (art. 29, n°1) , existem as seguintes categorias de tribunais judiciais: - Tribunal Supremo; - Tribunais Superiores de Recurso; - Tribunais Judiciais de Província; -Tribunais Judiciais de Distrito (poderão ser de 1ª ou 2ª classes – v. Art. 78, n°2 da Lei n° 24/2007)39.
Ao Plenário do Tribunal Supremo, funcionando como tribunal de segunda instância, compete, de harmonia com o disposto no art.45, alínea c) da lei 24/2007, julgar em última instância e em matéria de direito, os recursos interpostos das decisões proferidas nas diversas jurisdições previstas na lei (nas quais se incluem as jurisdições penais). Como tribunal de instância única, compete-lhe, com força do estatuido no art.46 alíneas a), b) e c), da Lei 24/2007, julgar os processos-crime em que sejam arguidos o Presidente da República, O Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, os Juízes Conselheiros do 38 Corresponde ao art. 225 da Constituição de 2004. 39 Ao nivel da base da organização territorial, definida no art. 7, n°1, da Constituição, nos postos administrativos e localidades -, bem como nos bairros dos principais centros urbanos, funcionam os chamados Tribunais Comunitários, que se regem por lei própria (Lei n° 4/92, de 6 de Maio) e não fazem, portanto, parte do sistema judiciário formal. 39
Tribunal Supremo e do Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral da República, Procuradoresgerais Adjuntos, o Provedor de Justiça e os juízes eleitos do Tribunal Supremo. Às secções do Tribunal Supremo, como tribunal de segunda instância, cabe, de acordo com o preceituado no art. 50 da Lei n°24/2007, “julgar os recursos das decisões proferidas pelos tribunais superiores de recurso; conhecer dos conflitos de competência entre tribunais superioress de apelação e entre estes e os tribunais judiciais de província”, entre outras competências. Como tribunal de primeira instância compete-lhe, nos termos do art. 51 da Lei n°24/2007, julgar em primeira instância os processos crime em que sejam arguidos deputados da Assembleia da República, membros do Conselho de Ministros e do Conselho de Estado e outras entidades nomeadas pelo Presidente da República, excepto os previstos no art. 46 da mesma Lei; julgar em processos crime os juízes profissionais dos tribunais superiores de recurso e magistrados do Ministério Público junto dos mesmos; julgar os processo crime instaurados contra os juízes eleitos dos mesmos tribunais superiores de recurso; e julgar processos de extradição. Aos tribunais judiciais de província funcionando como tribunal de primeira instância, cabe, segundo o art. 73, n° 2 da lei 24/2007, “julgar as infracções criminais cujo conhecimento não seja atribuido a outros tribunais (alínea a); conhecer os processos crime em que sejam arguidos juízes profissionais dos tribunais judiciais de distrito e magistrados do Ministério Público junto dos mesmos (alínea b). Funcionando como tribunal de segunda instância, compete-lhes conhecer dos recursos interpostos das decisões dos tribunais judiciais de distrito e dos demais que, por lei, lhe devam ser submetidos; conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de distrito da sua área de jurisdição; conhecer dos pedidos de habeas corpus que lhe devam ser remetidos, nos termos da lei. (art. 74 da Lei 24/2007 alíneas a, b, e d ). Aos tribunais judiciais de distrito de 1ª classe, compete julgar em primeira instância, as infracções criminais cujo conhecimento não seja atribuido a outros tribunais; julgar as infracções criminais que correspondem a pena não superior a 12 anos de prisão maior. ( art. 84, n°2 da lei 24/2007). Finalmente, aos tribunais judiciais de distrito de 2ªclasse, compete julgar, em primeira instância, as infracções criminais cujo conhecimento não seja atribuido a outros tribunais; julgar as infracções criminais que correspondam a pena não superior a oito anos de prisão maior. (art. 85, n°2, als. a e b da lei n°24/2007). Os tribunais judiciais de distrito de 1ª e 2ª classes, julgam em segunda instância os recursos interpostos das decisões proferidas pelos tribunais comunitários e conhecer dos pedidos de habeas corpus que lhe devam ser submetidos, nos termos da lei (art. 86 da Lei n°24/2007).
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6.2. O juíz penal 6.2.1. Função e características
A lei n°24/2007, de 20 de Agosto, no seu art. 1 define os tribunais como órgãos de soberania que administram justiça em nome do povo. No que que toca ao processo penal, quer isto dizer que os tribunais são os únicos órgãos competentes para como representantes da comunidade jurídica e do poder do Estado decidirem os casos juridico-penais que processualmente sejam levados à sua apreciação, aplicando o direito penal substantivo40. Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes de per si – órgãos de soberania, e pertecendo só a eles a função judicial (cujo exercício se consubstancia na actividade a que se costuma designar por jurisprudência), tem forçosamente de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais – reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que se formam – é condição indispensável da administração da justiça. Daí que a Constituição consagre o princípio da independência dos tribunais (art.217, n°1) princípio que é retomado e desenvolvido pelo Estatuto dos Mguirados Judiciais (Lei n°10/91, de 30 de Julho) e que constitui a característica fundamental destes órgãos. A independência dos tribunais, quando analisada em pormenor, nos seus elementos essenciais, assume diversos significados e comporta várias consequências:
a) Em primeiro lugar, independência perante os outros poderes do Estado ou perante os restantes órgãos de soberania41. Avulta aqui o significado político da independência: os tribunais gozam, em tudo quanto respeita à função judicial – e, designadamente à decisão a proferir em cada caso concreto - de plena autonomia e liberdade, que os ponha a coberto de quaisquer influências e pressões, directas ou indirectas, de outro órgão de poder do Estado; 40 Esta exclusividade do exercício da função judicial pelos tribunais tem, como se sabe, a sua origem remota na doutrina de separação de poderes, de Montesquieu (séc. XVIII), que está na base da construção do moderno Estado-de-Direito. 41 O Presidente da República, a Assembleia da República, o Conselho de Ministros e o Conselho Constitucional, segundo a enumeração contida no art. 133 da Constituição. 41
b) Em segundo lugar, independência perante quaisquer grupos ou entidades da vida pública, como os partidos políticos, os grupos de interesse ou de pressão, os lobbies, os meios de comunicação social e outros. Atendendo ao nível de desenvolvimento técnico e tecnológico atingido, e a evolução que o próprio Estado conheceu nos tempos mais recentes, deve reconhecer-se que não é fácil preservar os tribunais das influêncis de tais grupos e da opinião pública em geral. Essa influência é, pelo menos, muito mais latente e próxima de concretização do que a dos outros poderes do Estado e da própria hierarquia judicial. Daí que, para reduzir os efeitos negativos que este fenómeno pode produzir no exercício independente e imparcial da administração da justiça, o Estado deva criar um adequado conjunto de condições que permitam a independência subjectiva dos juízes, nomeadamente nos domínios social e económico42. c) Em terceiro lugar, independência perante a organização hierárquica dos próprios tribunais, no sentido de não poderem os juízes receber ordens ou instruções concretas vindas de outros juízes de categoria superior. Evidentemente que esta independência diz respeito ao exercício da função judicial propriamente dita (ou seja, à decisão que ao juíz cumpre tomar nos casos submetidos à sua apreciação), e não a assuntos relacionados com a organização e fiscalização dos serviços judiciais. Neste domínio existe uma hierarquia a respeitar – Presidente e Vice-Presidente do Tribunal Supremo, Juízes Conselheiros, Juizes de Direito e Juízes (dos tribunais judiciais de distrito). Além disso, a própria lei ressalva o dever de acatamento, pelos tribunais inferiores, das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores ( art. 4 da lei n°10/91). Intrinsecamente ligado ao princípio da independência judicial, e como seu limite está o dever que sobre os juízes impende de obediência à lei ( art. 217, n°1 da Constituição). Nos termos do art. 3, n°3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, esse dever “... não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”, o que traduz uma concepção estritamente legalista e positivista de encarar o direito43. Além da independência, são características da função judicial, igualmente salvaguardadas pela Constituição (art. 217, n°2) e pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais (arts. 5 e 6), a irresponsabilidade e a inamovibilidade dos juízes. 42 Parece ser esse, pelo menos no plano das intenções, o caminho preconizado no art. 59 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, ao estabelecer que: “1. O Estado garantirá a independência económica dos magistrados judiciais, mediante uma remunaração adequada à dignidade das suas funções; 2. O regime de remuneração referido no número anterior é fixado por diploma legal, tendo em conta a especificidade da função judicial,a categoria e tempo de serviço prestado pelo magistrado”. 43 V. Figueiredo Dias, op. cit. pág. 312. 42
6.2.2. Impedimentos e Suspeições
A independência dos tribunais constitui uma garantia, não só para os juízes como para os próprios cidadãos da actuação livre daqueles, perante pressões ou influências que lhes possam ser dirigidas, tanto de dentro como de fora do sistema judiciário. Mas isto não basta para que fique preservada e defendida a objectividade da actuação dos tribunais: é necessário, para além dessa garantia geral, que não seja posta em causa ou em dúvida a imparcialidade dos juízes, já não em face de pressões externas, mas em virtude de especiais relações que os liguem com o caso concreto que devam julgar. Podem, com efeito, e por razões diversas, levantar-se dúvidas sobre a capacidade de um juíz se revelar isento e imparcial no julgamento. Todavia, os fundamentos em que essas dúvidas se baseiam não produzem sempre o mesmo efeito jurídico: umas vezes conduzem à impossibilidade de o juíz intervir no processo, a qual deve ser declarada independentemente de qualquer objecção suscitada pelos participantes processuais – estaremos, então, perante um dos impedimentos enumerados no art. 104 do CPP; outras vezes, limitam-se a dar aos sujeitos processuais a possibilidade de recusarem a intervenção do juíz no processo – temos, neste caso, uma que deve ser levantada com base num dos fundamentos do art. 112 do mesmo Código. Os impedimentos devem ser declarados oficiosamente pelo juíz (é a regra do judex inhabilis) em qualquer altura do processo; quando o não sejam deve o Ministério Público e podem o assistente e o arguido requerer a sua declaração, de acordo com os prazos e mediante o formalismo que se acham prescritos no arts 110 do CPP. Nos termos do art. 111, a arguição dos impedimentos por qualquer dos sujeitos processuais (que não o próprio juíz, pois este não argui, declara) suspende o andamento do processo, que pode, porém, seguir seus termos conjuntamente com os dos incidentes, se o juíz entender tratar-se de simples expediente dilatório. A Suspeição não pode ser voluntariamente declarada pelo juíz mas pode ser levantada pelo Ministério Público, pela parte acusadora ou pelo arguido (é a regra do judex suspectus), no prazo de cinco dias a contar daquele em que o recusante interveio no processo, depois de conhecido o fundamento da suspeição (art.114 do CPP, que também se refere ao processo a seguir na dedução e decisão desta). A dedução da suspeição suspende o andamento do processo até ela ser julgada, podendo, no entanto, o juíz que conhecer do incidente praticar quaisquer actos urgentes do processo principal (art.115 do diploma em referência).
43
6.3. A competência do tribunal em matéria penal
6.3.1.O princípio do “juíz natural” O princípio da legalidade em matéria penal obriga, como se sabe, ao afastamento da analogia em matéria de incriminação e determinação das penas: “nullum crimen, nulla poena sine lege”. Não se ficam, no entanto, por aqui, as implicações deste princípio fundamental. Também no processo penal ele se manifesta através do chamado princípio do “juíz natural”, ou do juíz legal, que representa o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não designado arbitrariamente. Este princípio tem um triplo significado: 1- Só a lei pode instituir o tribunal e fixar-lhe a competência; 2- A fixação do tribunal e da sua competência têm de ser feitas por uma lei vigente ao tempo em que foi praticado o facto criminoso que será o objecto do processo; 3- A fixação legal da competência visa excluir qualquer possibilidade de arbítrio ou descricionaridade na determinação do juíz competente. O princípio do juíz natural tem, hoje, assento constitucional (art.65, n°4 legal (art.37 da Lei 24/2007), segundo o qual:
da Constituição) e
“Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, excepto nos casos especialmente previstos na lei”. Veremos quais são esses casos que a lei especialmente prevê, quando nos referirmos à chamada competência por remoção.
6.3.2. Espécies de competência Em relação a cada feito criminal, a cada caso penal em concreto, importa, pois, que a lei determine qual de entre os tribunais existentes, deve apreciar e julgar a causa. É nisto que se traduz a deterrninação da competência em processo penal. Esta determinação da competência implica a resposta a três perguntas diferentes: 1- Qual o tribunal que, segundo a sua espécie (porque existem diferentes espécies de tribunais penais – os tribunais de polícia, os tribunais criminais, os tribunais militares, os tribunais marítinmos, etc.), deve conhecer de uma infracção penal de certa natureza (uma 44
contravenção ao Cód. da Estrada, um furto simples, um homicídio qualificado, um crime de deserção, uma violação das leis sobre pesca nas águas jurisdicionais, etc.). Trata-se aqui do problema da determinação da competência material; 2- Qual o tribunal que, entre os da mesma espécie, deve segundo a sua localização no território, ser chamado para conhecer do mérito da causa. É o problema da determinação da competência territorial. 3- Qual o tribunal competente para a prossecução de certas fases processuais, ainda ao nível da primeira instância, ou para o desenvolvimento do processo na fase de recurso. Trata-se da determinação da competência funcional. Deste modo, o problema da determinação da competência resolve-se definindo a natureza e sede territorial do tribunal e a sua categoria, dando lugar às três espécies de competência que apontamos: competência material, territorial e funcional. Vejamos em seguida quais os critérios seguidos pela doutrina e pela lei vigente para a definição de cada uma destas espécies de competência.
6.3.2.1. Competência material Na distribuição da competência para apreciação dos feitos criminais pelas várias espécies de tribunais existentes, pode o legislador servir-se de um de dois métodos ou vias de procedimento: a) o método de deterrninação abstracta da competência – que resulta directamente da lei, atribuindo esta a cada tribunal poderes para o conhecimnto e decisão de certo tipo de crimes ou para aplicação de certo tipo de penas; b) o método de determinação concreta da competência – que deriva de uma previsão do crime, tal como é de esperar que venha a ser definido concretamente na sentença, ou da pena que virá ser aplicada em concreto. As legislações que se baseiam no método de determinção abstracta – como é o caso que vigora entre nós – utilizam, geralmente, três tipos de critérios distintos: I) um critério quantitativo – que antende à gravidade das infracções, determinada pelo máximo da pena aplicável; II) um critério qualitativo - que leva em conta a natureza das infarcções em causa; III) um critério fundado na qualidade da pessoa do arguido – em que a específica função pública por este exercida (ou o grau de perigosidade demonstrada pelo delinquente) funciona como elemento de conexão determinante da competência. 45
Embora o critério mais utilizado na nossa legislação seja o quantitativo44, os outros dois também aparecem referenciados45. É de realçar o disposto no n°2 do art.29 da Lei n°24/2007, que permite a criação de tribunais de competência especializada, como é o caso do Tribunal de Menores de Maputo, a quem cabe a aplicação de medidas de prevenção criminal (relativas a menores inimpuitáveis). Relacionada com o problema da competência material pode pôr-se a questão da prorrogação da competência de acordo com as regras enunciadas nos && 1° e 2° do art 447 e art. 61, ambos do CPP. A prorrogação da competência resulta do facto de o tribunal, ao qualificar diversamente a matéria que constitui objecto do processo, condenar em penas que caberiam na competência de um tribunal inferior, a qual é , deste modo, absorvida (tendo em conta o princípio “quem pode o mais pode o menos”). A situação inversa não pode verificar-se, pois que se estaria perante a excepção da incompetência prevista no art. 138, 1°, do CPP, pelo que o caminho a seguir será o de proceder nos termos do &2° do art. 447, com a consequente aplicabilidade do art. 145 (remessa do processo ao tribunal competente), ambos do mesmo Código. Assim, a competência por excesso está coberta pela prorrogação, mas se ela for por defeito dá lugar à excepção atrás referida.
6.3.2.2. Competência territorial A competência territorial obtém-se estabelecendo a conexão entre o tribunal e o facto criminoso objecto do processo de acordo com um critério de localização geográfica e tendo em vista a afrimação do princípio da imediação.
44 Quer fazendo a lei traduzir o máximo da pena aplicável no facto de se utilizar uma certa forma de processo (v. Arts. 63, 64 e 65 do CPP, aplicável por força e com as alterações constantes doart.11 do Decreto n°19271, de 24 de Janeiro de 1931 – o diploma que pôs em vigor nas então colónias o Código de Processo Penal -, e o art. 1 do Decreto-Lei, n°28/75, de 1 de Março), quer referindo-o directamente a certa categoria de tribunais (v.arts. 84, n°2, e 85, n°2, da Lei n°24/2007). 45 V. art. 66 do CPP quanto ao critério qualitativo, e os arts. 46, alíneas a), b) e c); 51, alíneas a), b) e c), art. 73, n°2, alínea b), todos da Lei n°24/2007, quanto ao critério fundado na qualidade da pessoa do arguido. 46
A regra geral para a determinação da competência territorial é a do locus delicti, segundo a qual é competente para o conhecimento da infracção o tribunal do local da sua prática ou da sua ocorrência. Mas como apurar o local da ocorrência de uma infracção para efeitos de determinação da competência? São três os critérios adoptados para obtrer a resposta a esta questão: 1 – o critério da actividade – de acordo com o qual o local da ocorrência do delito é o espaço geográfico em que se processou a actividade típica, independentemente do local de produção do evento; 2 – o critério do resultado – nos termos do qual o locus delicti é o da ocorrência do evento, ou seja, do resultado típico, sendo competente o tribunal com jurisdição nessa área; 3- o critério da antecipação da consumação – o qual leva a definição do locus delicti como o espaço em que tenha começo a produção do evento, mesmo que a produção do resultado típico só finde noutra área.
O art. 45 do CPP, reportando-se aos crimes materiais, consagra o critério do resultado. Mas como nem todos os crimes atingem o estado da consumação, é evidente que o princípio geral da determinação da competência territorial - baseado no critério de resultado – não se aplica sem excepções. Assim, o &1° do art. 45 do CPP estabelece que “se a infracção não chegou a consumar-se é competente o tribunal em cuja área se praticou o último acto de execução ou facto punível”. Este preceito aplica-se às hipóteses de tentativa e frustração, bem como aos actos preparatórios cuja punição esteja prevista como crime autónomo (exemplos: art. 444 do CP - fabrico de gazuas e artifícios para abrir fechaduras – arts. 5 e 6 da lei n°19/91, de 16 de Agosto – Lei dos crimes contra a Segurança do Estado), e por identidade de razão, aos crimes formais. Nos termos do & 2° do mesmo preceito, sendo a consumação efectuada por factos sucessivos ou reiterados, como acontece nos crimes habituais (ex: lenocínio- art. 405 do CP, com a redacção dada pela lei n° 8/2002, de 5 de Fevereiro), ou de um acto ou omissão susceptível de se prolongar no tempo e no espaço, como sucede com os crimes permanentes (ex. cárcere privadoart. 330 do CP), o locus delicti é o da cessação da consumação (que se verifica com o termo do evento nos crimes materiais) ou da prática do último facto (que se verifica com o termo da execução nos crimes formais). Relativamente a crimes só parcialmente cometidos em território moçambicano, o critério do locus delicti sofre uma restrição resultante da regra da absorção, que então se aplica, e que leva 47
à atribuição da competência aos tribunais moçambicanos, mesmo que o iter criminis (ou seja, o processo executivo do delito) só findar no estrangeiro. Competente será neste caso o tribunal moçambicano em cuja área se praticou o último facto de consumação, execução ou comparticipação, que seja punível pela lei moçambicana, conforme estabelece o art. 46 do CPP ( com especificidades referidas nos seus && 1° e 2°). Outras restrições ao princípio geral do locus delicti verificam-se relativamente: Aos crimes cometidos no estrangeiro a que seja aplicável a lei moçambicana – v. Arts. 4946 e 50; Aos crimes cometidos nos limites territoriais de diversos tribunais da mesma espécie (por exemplo, nos limites de dois ou mais tribunais judiciais de província, ou de dois ou mais tribunais judiciais de distrito), quando houver dúvidas acerca do lugar em que o foi – v. &3° do art. 45 (princípio da prevenção da jurisdição); Aos crimes praticados em local desconhecido – art. 47 (princípio do forum deprehensionis); Aos crimes cometidos a bordo de navio ou aeronave – art. 48. 6.3.2.3. Problemas comuns à determinação da competência material e territorial Além das restrições que acabamos de ver, as regras de distribuição da competência material e territorial, sofrem outras alterações por força da existência da conexão (ou ligação) especiais entre diversas infracções. Dá-se então a chamada competência por conexão. A conexão pode ser subjectiva (ou pessoal), quando se verifica a identidade do agente e uma pluralidade de crimes; e objectiva (ou material), quando se observa uma pluiralidade de agentes e de crimes, estando estes particularmente interrelacionados. À conexão subjectiva refere-se o art. 55 do CPP. Como se pode ver por este dispositivo legal, a conexão ocorre quando as infracções são praticadas pelo mesmo agente, ou seja, no caso de concurso real de infracções (em que as penas não se acumulam materialmente, mas juridicamente – art. 102 n°s 1 e 2 e & 1° do CP). A regra é, pois, no sentido de julgamento conjunto das infracções, sendo excepcional o conhecimento separado (&& 2° e 3° do art. 55). Tem-se aqui em vista a apreciação
46 Já no tempo colonial esta disposição devia harmonizar-se com o estatuido no art. 6 do Decreto n°19271 de 24 de Janeiro de 1931. Segundo tal preceito, “para conhecer das infracções contra a segurança, a autoridade e o bom nome do governo de uma colónia ou dos superiores órgãos ou instituições da sua administração, quando cometidas em país estrangeiro e a elas seja aplicável lei penal vigente na colónia, é competente o juízo criminal da capital dessa colónia”. Uma interpretação actualizada de ambas as normas levará a considerar competentes para conhecimento das infracções contra a segurança e o crédito do Estado moçambicano, cometidas em país estrangeiro e a que seja aplicável a lei penal moçambicana, as Secções Criminais do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. 48
unitária da personalidade do réu, garantir a economia processual, evitar decisões contraditórias e possibilitar o cúmulo jurídico das penas. No caso de se ter de efectuar o julgamento separado, resta saber qual o tribunal competente para proceder ao cúmulo jurídico das penas – será, naturalmente, o que proferir a última sentença condenatória (parte final do &2° do art. 55 do CPP). A conexão objectiva verifica-se quando uma determinada infracção foi levada a cabo por diversos agentes (dá-se assim uma comparticipação criminosa a que se refere o art 56 do CPP) , ou quando diversas infracções foram levadas a cabo na mesma ocasião, reciprocamente ou por várias pessoas reunidas (v. Art. 57 do CPP), ou ainda quando, tratando-se de diversas infracções cometidas em ocasiões diferentes, umas foremcausa ou efeito das outras (art. 58 do CPP). Nos dois primeiros casos (dos arts. 56 e 57), a conexão é obrigatória, pois funciona ope legis e, no terceiro caso (art. 58), é facultativa, sendo declarada ope judicis. Além dos exemplos cabados de referir de conexão entre várias infracções ou agentes da mesma infracção, a regra geral de determinação da competência territorial pode sofrer ainda um outro desvio. Trata-se dos casos de remoção da competência, também chamada de desaforamento por motivos muito especiais, que têm de estar previstas na lei, a infracção criminal é julgada por um tribunal diferente do normalmente competente. A essas situações de desaforarmento e ao seu carácter excepcional se referem os arts. 37 e 45, alínea d), da lei n°24/ 2007, de 20 de Agosto, e os arts.671, 683 e 698 do CPP. 6.3.2.4. Competência funcional Já acima se disse que a questão essencial da determinação da competência funcional é a de saber qual o tribunal competente para a prossecução de certas fases processuais – estando o processo a decorrer em primeira instância – ou para seu conhecimento na fase de recurso. Esta espécie de competência pode, pois sintetizar-se em duas categorias distintas ( há quem se refira a uma terceira categoria, mas veremos em seguida que não tem aplicação no nopsso caso): a) competência funcional por graus – deriva da circunstância de as decisões penais não adquirirem carácter definitivo logo que são proferidas mas permitir a lei o seu reexame sucessivo por parte de outros órgãos judiciais. De acordo com a nossa organização judiciária, e no que diz respeito à jurisdição comum, temos a considerar, como tribunais de primeira instância, os tribunais judiciais de distrito e de província (e, só excepcionalmente, o Tribunal Supremo), Como tribunais de segunda instância, temos o Tribunal Supremo (Secções), relativamente aos recursos interpostos nos 49
Tribunais Superiores de Recurso, e os Tribunais Superiores de Recurso relativamente aos tribunais judicias de Província e os tribunais distritais de 1ª classe, relativamente aos de 2ªclasse. A última instância pertence ao Plenário do Tribunal Supremo, que julga unicamente sobre a matéria de Direito. b) competência funcional por fases – tendo em conta a complexidade do decurso do processo penal, necessária para que este atinja o seu fim, ele desenvolve-se numa pluralidade por fases: três dessas fases são determinantes para a fixação da competência funcional: a fase da instrução – em que intyervêm os juízes da instrução criminal, instituidos pela lei 2/93 de 24 de Junho; a fase de julgamento – em que as decisões pertencem exclusivamente aos tribunais (de jurisdi9ção comum ou especialiozada); e a fase de execução – que, no nosso país, já pertenceu ao chamado Tribunal de Execução das Penas, entretanto extinto pela lei n°5/81, de 8 de Dezembro, e hoje decorre nos tribunais criminais. A terceira categoria, admitida por alguns autores, é a da competência funcional por órgãos, pela qual se faz a distinção entre o juíz monocrático ou singular e o juíz colegial. Ora, como sabemos, segundo a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (já ssim era na vigência da lei n°12/78, de 2 de Dezembro), todos os tribunais da República de Moçambique têm uma composição colegial, não existindo a figura de juíz singular, pelo menos para efeitos de julgamento e decisão. 6.4. A declaração de incompetência - Dedução e conhecimento A incompetência do tribunal é uma das excepções referidas no art.138 do CPP. As outras são a litispendência, o caso julgado e a prescrição. Como regra, as excepções devem ser conhecidas e declaradas oficiosamente pelo juíz ou deduzidas pelo Ministério Público, e podem ser também deduzidas pela parte acusadora ou pelo arguido, depois de admitidaos a intervir no processo (art. 139 do CPP). Também como regra, as excepções, incluindo a incompetência do trubnal, podem ser deduzidas ou conhecidas em qualquer altura do processo até decisão final (ou seja, até ao trânsito em julgado da sentença em primeira instância, ou do acórdão que julgar o recurso, se este tiver sido interposto). Ressalva-se o caso referido no &1° do art. 140 (respeitante à excepção fundada na incompetência territorial). Este preceito estabelece: - “A excepção de incompetência com o fundamento de que o juíz competente é o de outra circunscrição territorial somente pode ser deduzida ou declarada atém ao dia em que se realiza a audiência de julgamento em 1ª instância”.
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7. O Ministério Público 7.1. Posição jurídica do Ministério Público no processo penal 7.1.1. O Ministério Público como órgão autónomo de administração da justiça A figura do Ministério Público, como titular das funções de investigação da suspeita de um crime e de dedução da respectiva acusação, surge a partir da consagração do “processo penal reformado, misto ou napoleónico” que, segundo as ideias iluministas e revolucionárias do séc. XVIII em França, devia substituir o anterior processo de estrutura inquisitória. É através desta magistratura que se logra obter: - a separação entre a entidade que preside à instrução preparatória e se encarrega da acusação e a que julga e profere a decisão; - a vinculação temática do tribunal ao objecto do processo, pela exacta delimitação dos seus poderes cognitivos, o que constitui uma importante garantia de defesa do arguido e dos seus direitos fundamentais. A separação institucional e funcional entre o Ministério Público e o juíz não impede, todavia, uma estreita correlacionação dos dois sujeitos dentro do processo penal. Trata-se de duas entidades públicas, órgãos do mesmo Estado, às quais a lei confere a categoria de magistraturas paralelas, como veremos adiante. As actividades por ambas desenvolvidas convergem na prossecução de um mesmo fim: a administração da justiça penal. É este relacionamento estreito entre Ministério Público e juíz que torna difícil e muito discutida a definição da posição jurídica do primeiro dentro do processo penal. A questão, mais do que respeitar propriamente ao Direito processual penal, prende-se com o Direito Constitucional e com a Organização Judiciária. As principais posições que se têm manifestado na doutrina sobre o assunto podem reunir-se em três grupos: a) as que consideram o Ministério Público como pura entidade administrativa, verdadeiro órgão da Administração comum (numa palavra, como parte do Poder Executivo), considerando os princípios da amovibilidade, responsabilidade e dependência hierárquica, que prersidem à sua orgânica estrutural. As críticas dirigidas a esta posição alicerçam-se no facto de a actividade administrativa se orientar predominantemente por critérios de oportunidade e de discricionaridade – embora sempre na base dos limites impostos pelo Direito – e não pelo estrito princípio da legalidade, a que está vinculada toda a actuação do 51
Ministério Público. Além disso, a actividade do Ministério Público desenvolve-se, desde o início da instrução preparatória até ao final do julgamento em estreita colaboração com o juíz (mesmo é dizer, com a função judicial), tendo em vista a descoberta da verdade e a realização da justiça penal. b) as que defendem a ideia de que o M°P° participa na função e no poder judicial e que, por conseguinte, lhe atribuem a qualidade de órgão integrante do poder Judicial. Esta tese é rejeitada por muitos autores, com a argumentação de que a função judicial se concretiza, materialmente, pela declaração do direito do caso (ou seja, pela aplicação das normas jurídicas a um caso penal concreto), através de uma decisão susceptível de transitar em julgado. E esta possibilidade está vedada ao M°P°: ele participa dessa função, é verdade, como dela participam os outros sujeitos processuais, mas não lhe pertence declarar o direito do caso, nem as suas decisões assumem a característica ou virtualidade de caso julgado. c) Finalmente a tese hoje dominante na doutrina alemã (que exerce enorme influência nos paises de sistema romano-germânico), perfilhada, entre outros autores, por Figueiredo Dias, que qualifica o M°P° como órgão autónomo de administração da justiça. Segundo esta corrente doutrinária, há que distinguir a função de administração da justiça da função judicial em sentido estrito, por um lado, e da função administrativa comum, por outro lado. A primeira funciona como uma ponte entre o Poder Judicial e o Poder Executivo. A função de administração da justiça ou administração judiciária, abrange toda a actividade, estadual ou não, caracterizada pela sua estreita relacionação com o Direito (no sentido e com o fim da sua realização no caso concreto) e subordinada aos valores da verdade e da justiça. Desta função participam órgãos e entidades como os tribunais, os notários, os defensores em processo penal, etc. Só uma parte do exercício desta actividade se pode considerar jurisprudência (e, portanto, função judicial), enquanto a outra constitui simplesmente administração da justiça. O Ministério Público é, portanto, um órgão autónomo desta administraçãoautónoma, no sentido de independente dos tribunais e dotado de estrutura e organização próprias.
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7.1.2. Princípios fundamentais da sua actividade e estrutura Como órgão de administração da justiça, o Ministério Público está incondicionalmente vinculado aos valores da descoberta da verdade e da realização da justiça no caso concreto. Daqui decorre a exigência de que, em todas as suas intervenções no processo penal, obedeça a critérios de estrita objectividade jurídica. Com efeito, ao Ministério Público compete trazer ao processo e ajudar a esclarecer, não só os factos que possam demonstrar a culpa do arguido, mas também todos os indícios da sua inocência ou da sua menor culpa. Para que o Mistério Público possa cumprir o seu dever de objectividade, é necessário que esteja assegurada a sua imparcialidade. Daí que os arts. 105 e 113 do CPP tenham tornado extensivo aos agentes do MP o sistema de impedimentos e suspeições que anteriormente vimos ser aplicável aos juízes. Outra característica da actividade do Ministério Público, para além da objectividade e da imparcialidade, é a da sua submissão à lei. Este dever de obediência à lei, de conteúdo análogo ao que também verificámos impor-se ao juíz, revela-se através do princípio da legalidade da promoção do processo penal. Todas estas características se encontram proclamadas no art.234, n°2 da Constituição 47, que estabelece: “No exercício das suas funções, os magistrados e agentes do Ministério Público estão sujeitos aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição às directivas e ordens previstas na lei”. Quanto à estrutura do Minsitério Público, e como reflexo dos critérios de actuação acabados de referir, há que assinalar a sua autonomia em relação aos demais órgãos do Estado – consagrada no art. 2, n°2 da lei n° 22/2007, de 1 de Agosto) - incluindo os tribunais. Aliás, relativamente a estes, o n°1 do art. 37 da antiga lei orgânica da Procuradoria Geral da República Lei n°6/89, de 19 de Setembro), dispunha que
“A magistratura do Ministério Público é paralela à magistratura judicial e dela independente”. Por tudo isto – pela sua autonomia e organização hierárquica, pela objectividade, isenção e obediência à lei – é que os magistrados do Ministério Público estão apenas sujeitos às directivas e ordens do respectivo superior hierárquico, terminando no Procurador-Geral da República. 47 - E aparecem reafirmadas na Lei Orgânica da Procuradoria-geral da República – Lei n°22/2007, de 1 de Agosto, nomeadamente no seu art. 2, n°2. 53
De acordo ainda com a Lei Orgânica da Procuradoria-geral da República e com o estatuto dos magistrados, esta magistratura tem a seguinte representação: - O Procrador-Geral da República representa o MP junto dos plenários do Tribunal Supremo, do tribunal Administrativo e no Conselho Cosntitucional; - o Vice-Perocurador Geral da República substitui o Procurador-geral nas suas faltas e impedimentos; - Os Procuradores Gerais Adjuntos representam o MP juntodas Secções do Tribunal Supremo, do Tribunal Administrativo. - Os Sub- procuradores gerais da república representam o MP nas secções dos Tribunais Superiores de Recurso; - Os procuradores da república de principais, de 1ª, de 2ª e de 3ª, classes representam o MP nos tribunais judiciais provinciais e de distrito. - Os procuradores distritais representam o MP nos tribunais judiciais de (cfr. Art.5 da Lei n°22/2007, de 1 de Agosto). Exactamente por se tratar de uma magistratura hierarquicamente organizada, os magistrados do M°P° são responsáveis no exercício das suas funções, responsabilidade que se traduz no dever de acatamento das directivas e instruções emanadas dos seus superiores hierárquicos (desde que não sejam contrárias à lei e ao Direito).
7.1.3. Relações entre o Ministério Público e os tribunais penais
O princípio geral nesta matéria é posto clara e correctamente em evidência pelo já citado art.37 da lei n°6/89, de 19 de Setembro 48, segundo a qual “a magistratura do Ministério Público é paralela à magistratura judicial e dela independente”. As relações entre as duas magistraturas caracterizam-se, assim, por uma igualdade e independência, das quais cabe extrair três consequências:
1- Os tribunais (os juízes) não podem dar quaisquer ordens ao Ministério Público49. 2- O Ministério Público não pode dar quaisquer ordens ou instruções aos tribunais; 48 Este Diploma foi revogado pela Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, que já não faz referência a este paralelismo, mas que se deduz dos articulados referentes à representação do M°P° junto de cada tribunal aos diversos níveis. 54
3- Ninguém pode, simultaneamente, actuar como MP e como juíz no mesmo processo 50
penal . Ainda no contexto das relações entre o Ministério Público e os tribunais, cabe dizer que os agentes do M°P° não estão vinculados à jurisprudência dos tribunais (jurisprudência, no sentido de decisões judiciais, de precendtes formados através da aplicação do direito substantivo aos casos concretos), mas em nome da unidade da aplicação do direito, devem respeitá-la como orientação a seguir.
7.2. Funções do Ministério Público no processo penal 7.2.1. A direcção da instrução preparatória
Como órgão encarregado de promover a preseguição dos crimes e outras infracções à lei penal, compete ao Ministério Público, em primeiro lugar, proceder à sua completa investigação e ao seu possível esclarecimento. Para lhe permitir a plena realização desta finalidade, a lei atribui-lhe a direcção da instrução preparatória – art. 14 do Decrdeto-lei n° 35007. Esta regra geral sofre, no entanto, algumas restrições constantes dos preceitos seguintes do mesmo diploma legal. Assim, o art. 15 dispõe que: - Nos crimes a que corresponderem as penas referidas nos arts. 63 e 64 do Código de Processo Penal a instrução preparatória será, sempre que possível, presidida pelo Ministério Público, que, porém, a poderá delegar, sem prejuízo da sua direcção, nos juízes municipais de julgados correspondentes a circunscrições ou concelhos que não forem sede de comarca”51. 49 A situação prevista nos arts. 44 (segunda parte) do Decreto-lei n°35007 e 346 do CPP – segundo os quais, se o MP tiver promovido que o processo se arquive ou aguarde a produção de melhor prova finda a instrução contraditória e o juíz entender que há elementos para se prosseguir no processo, assim o declarará em despacho fundamentado, ordenando que volte com vista ao MP, para deduzir acusação – têm de considerar-se aqsolutamente excepcionais e só justificáveis pela posição de predomínio processual que a natureza das coisas obriga a atribuir ao juíz em qualquer fase judicial do processo penal. 50 Já vimos isso a propósito dos impedimentos – art. 104, n°3, do CPP. 51 Redacção constante da Portaria n° 17076, de 20 de Março de 1959, que tornou extensivo a Moçambique e às restantes ex-colónias portuguesas o Decreto-Lei n° 35007. Também os arts. 16 e 17 sofreram alterações introduzidas pela mesma Portaria. 55
O art.16 estabelece: - “Nos crimes a que correpsonderem as penas referidas no art. 65 do CPP, a instrução prepareatória poderá ser delegada nos juízes municipais ou de paz das circunscrições ou concelhos que não forem sede de comarca, sem prejuízo da sua direcção pelo Ministério Público, que poderá requisitar à entidade instrutora, ou efectuar directamente as diligências complementares que reputar necessárias”. Por sua vez, o art. 17 determina: - “Nos casos em que outras autoridades, além do Ministério Público, podem exercer acção penal, a elas compete a instrução preparatória dos respectivos processos, podendo, contudo, o Procurador da República ordenar que a instrução seja cometida à Polícia Judiciária”. Finalmente, vejamos o que estatui o art. 18: - “Compete aos órgãos privativos de polícia judiciária efectuar a instrução preparatória em todas as causas que lhes sejam afectas nos termos da respectiva legislação”. As autoridades que, além do Ministério Público, podem exercer acção penal são as enumeradas no art. 2 do mesmo Decreto-Lei: 1 - As autoridades judiciais nos tribunais onde não haja representante titular do M°P°52. 2- as autoridades administrativas, quanto às transgressões de posturas, regulamentos e editais; 3 – As autoridades policiais, quanto às infracções que devam ser julgadas em processo sumário e a todas as contravenções; 4 – Os organismos do Estado com competência para fiscalização de certas actividades ou da execução de regulamentos especiais, quanto às contravenções verificadas no exercício dessas actividades ou contra esses regulamentos.
Órgãos privativos de polícia judiciária – expressão utilizada no art. 18 – são vários ramos em que se organiza e estrutura a PRM (Polícia da República de Moçambique). Com efeito, os diversos ramos policiais são órgãos da administração (do Poder Executivo – daí a sua subordinaçao ao Ministério do Interior) que tem por fim último zelar pela ordem e 52 Uma interpretação actuializada deste preceito leva necessariamente a concluir que o Ministério Público está hoje representado em todos os tribunais – arts. 4, n°1, alínea a) e 5 da Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto -, pelo que em situiação alguma as autoridades judiciais podem exercer a acção penal. 56
tranquilidade públicas. A sua actividade inscreve-se na prevenção e luta contra a criminalidade nas áreas específicas para que estão vocacionados – protecção geral, criminalidade nos transportes e comunicações, criminalidade no trânsito automóvel, etc. Ora, no exercício de tal actividade, por razões práticas e de eficiência, esses órgãos podem receber competência para a prática de actos (designadamente actos instrutórios) que se repercutem no processo penal. Por isso eles agem como auxiliares da administração da justiça e os actos que praticam podem considerar-se como actos de polícia judiciária. Quanto à PIC (Polícia de Investigação Criminal), constitui sem dúvida o órgão de polícia judiciária por excelência. A sua existência é uma necessidade da vida moderna, pois nenhum país pode hoje dispensar uma polícia altamente especializada e dotada de poderes, meios e instrumentos para exercer uma completa investigação criminal. A PIC funciona como o mais precioso auxiliar do Ministério Público no exercício da sua função de perseguição do crime. Um aspectro que não pode deixar de ser realçado é o de que as restrições apontadas à realização da instrução preparatória pelo Ministério Público não põem minimamente em causa a função de direcção que lhe está cometida. Efectivamente, o arts, 15 e 16 do Dec-Lei 35007, acima transcritos, o legislador apenas se referiu à possibilidade de a instrução preparatória ser delegada noutras autoridades, sem prejuízo da sua direcção pelo Ministério Público. Nos arts. 17 e 18 atribui às autoridades que exercem a acção penal e aos órgãos privativos de polícia judiciária competência para efectuar a instrução preparatória, sem que haja retirado ao M°P° os poderes de direcção e de controlo que este possui das actividades instrutórias e processuais por aquelas entidades levadas a cabo, com poderes que, aliás, aparecem reforçados na Lei n°22/2007, de 1 de Agosto53.
7.2.2. Dedução da acusação e a sua representação em julgamento
Nos termos do art. 349 do CPP: - “Se da instrução resultarem indícios suficientes da existência do facto punível, de quem foram os seus agentes e da sua responsabilidae, o Ministério Público, se para isso tiver legitimidade, deduzirá acusação (...)”.
53 V. art. 4, n°1, alíneas c) , h), j) e q) da Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto. 57
A legitimidade do Ministério Público terá de advir da natureza pública do crime, ou da participação do ofendido se se tratar de crime semi-público, ou da participaçao e acusação particular se tratar de crime particular. Através da dedução da acusação, o Ministério Público chama a responder perante um tribunal, em nome da sociedade, uma pessoa determinada sobre a qual recai a fundada suspeita de ter cometido um crime. Com isto, o Ministério Público exprime a necessidade, sentida pela comunidade jurídica, de punir, com a sanção prevista na lei, o responsável por um dano àquele causado. O Ministério Público não detém, todavia, o monopóplio exlcusivo da dedução da acusação. Desde logo, nos crimes particulares a acusação principal – e que pode ser a única – está a cargo dos próprios particulares (v. Art. 3, &único, do Decreto-Lei n° 35007). Mas também, como vimos, outras entidades públicas gozam – nos termos do art. 2 do mesmo diploma – de competência para, relativamente a certas infracções, exercer a acção penal54. A função do Ministério Público no que toca à acusação não se esgota, porém, na sua dedução, mas abrange a sua representação em julgamento. A representação da acusação em julgamento – convém voltar a sublinhar – não significa que Ministério Público deva actuar cegamente, na tentiva de obter a todo o custo a condenação do arguido e ver, assim, procedente a acusação deduzida. Pelo contrário, o Ministério Público deve pautar a sua actuação em vista a descoberta da verdade e a realização da justiça, baseando-se sempre nos critérios da objectividade e da legalidade a que já nos referimos. Esta forma de agir assume particular relevo e importância na fase das alegações orais (arts. 467, 533, 539 e 559, in fine, do CPP), durante a qual deverá tomar posição, quer sobre a questão-de facto, quer sobre a questão-de-direito.
7.2.3. Abstenção da acusação
De acordo com o art. 25 do Decreto-Lei n° 35007: - “Se se verificar não ter havido crime, ou estar extinta a acção penal, ou se houver elementos de facto que comprovem a irreponsabilidade do arguido, o Ministério Público 54 - O que significa que essas autoridades realizam o acto processual correspondente à acusação – v. Art. 543 e segs. do CPP. Para a forma de processo de transgressões, e art. 556 e segs. Para a forma de processom sumário. 58
abster-se-á de acusar, declarando nos autos as razões de facto e de direito justificativas”.
O art. 26 do mesmo diploma legal estabelece: - “Se não houver prova bastante dos elementos da infracção, ou de quem foram os seus agentes, o Ministério Público acusará provisoriamente e requererá a instrução contraditória, se for de presumir que possa completar-se a prova indiciária, ou absterse-á de acusar, comunicando o facto ao Procurador da República hierarquicamente superior nos termos do art. 23”55, (o sublinhado é nosso) Estão aqui as duas hipóteses de abstenção da acusação, à qual se refere também o art. 343 do CPP. Dado que a acção penal é pública ( v. art.1 do Decreto-Lei n° 35007), e que o Ministério Público constitui uma magistratura paralela a judicial e dela independente, o controlo da decisão de abstenção do M°P° só pode fazer-se, segundo a legislação em vigor, por via hierárquica. E esta fiscalização hierárquica da abstenção de acusação pode ser desencadeada por um dos seguintes meios: 1 – Por iniciativa do denunciante, que deverá ser notificado do dispacho de abstenção da acusação e que “se for pessoa com a faculdade de se constituir assistente...” poderá reclamar para o Procurador da República(superior) da falta de acusação – art. 27 do Decreto-Lei n° 35007; se o denuciante já se tiver constituido assistente, não lhe será permitida a reclamação hierárquica, mas poderá deduzir a acusação - & único do mesmo art. 27; 2 – Por intermédio do juíz a quem, na falta de reclamação, ou não havendo denuciantes ou assistentes, os autos serão conclusos, e que “se entender que estão verificadas as condições suficientes para a acusação, fará constar de despacho as suas razões, subindo os autos oficiosamente ao Procurador da República (superior) ...”- art. 28 do Decreto-Lei n°35007. 3 – Por via directa do próprio Procurador da República (superior) a quem o Ministério Público enviará trimestralmente ... relação dos autos de instrução preparatória referentes a crimes públicos a que corresponderem as penas indicadas nos arts. 63 e 64 do CPP (pena maior ou pena de prisão superior a um ano) que não conduziram a acusação...”- art. 23 do mesmo Decreto-Lei. Neste 55 De harmonia com a Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, as comunicações são dirigidas ao Procurador hierarquicamente superior, (v. alínea e), n° 2 do art. 42 da Lei n° 22/2007) ; alínea g), n° 1, do art. 43, e alínea e) , n° 2, do art. 45, todos da referida Lei n° 22/2007. 59
caso, os autos serão arquivados, se decorridos trinta dias sobre a comunicação ao Procurador da República superior, a acusação não for deduzida, (v. & único do art. 29 do Decreto-Lei n° 35007). Vê-se, assim, que, em qualquer dos casos – seja qual for o meio utilizado – é ao Procurador da República imediatamente superior a que se absteve de acusar, que compete decidir em último termo se deve ou não ser proferida a acusação. Naturalmente que as disposições do Decreto-lei n° 35007 devem ser interpretadas de modo adequado, tendo em conta a estrutura do Ministério Público consagrada na lei actualmente em vigor. Assim, e atendendo o disposto na lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, é de admitir que, do despacho de abstenção de acusação proferido por um Procurador Distrital se deva recorrer para o Procurador provincial e do despacho deste para o Sub- Procurador Geral da República, tendo em conta que a lei (...) criou esta nova categoria de magistrados previstas no art. 83 da lei n° 22/2007, que se situa entre o Procurador Geral Adjunto da República e o Procurador Principal. No mesmo sentido de progressão hierárquica devem os magistrados do Ministério Público aos vários níveis dar cumprimento ao disposto no art. 23 do Decreto-lei n° 35007. Tudo quanto se acaba de dizer refere-se à abstenção da acusação que tenha tido lugar após a instrução preparatória. Se a abstenção da acusação tiver lugar após a instrução contraditória (o que poderá acontecer no caso previsto na primeira parte do art. 26 do Decret-Lei n° 35007), há que ter em atenção o disposto no art. 346 do CPP, a que já se fez referência56. Outro aspecto a salientar é que a abstenção da acusação do Ministério Público pode dar ao processo dois destinos diferentes: - ou o seu arquivamento, de harmonia com o disposto no art. 343 do CPP; - ou o de ficar a aguardar a produção de melhor prova, segundo o preceituado no art. 345 do mesmo Código. Sobre o valor ou eficácia jurídico-criminal destas decisões (arquivamento ou situação de aguardar a produção de melhor prova), sobretudo relativamente à primeira, levantam-se alguns problemas que não encontram solução uniforme na doutrina e na jurisprudência. Quando o processo fica a aguardar a produção de melhor prova, é entendimento mais ou menos generalizado de que a decisão assim proferida adquire força análoga a do caso julgado, mantendo-se sob reserva da cláusula conhecida pela expressão latina rebus sic stantibus – quer dizer, a força de caso julgado fica condicionada à superveniência de factos ou elementos de prova que devam considerar-se novos em relação aos já apreciados.
56 V. ponto 7.1.3. 60
Relativamente ao arquivamento do processo nos termos do art. 343 do CPP é que se levantam divergências no entendimento dos efeitos a atribuir à respectiva decisão. A jurisprudência dos tribunais portugueses e a doutrina representada por autores como Cavaleiro de Ferreira57 e Fernandes Afonso58 entendem que os despachos de arquivamento proferidos pelo Ministério Público têm natureza administrativa e não judicial – não estabelecem caso julgado e nem são susceptíveis de recurso, só podendo ser alterados por via de reclamação hierárquica. Outros autores como Eduardo Correia59 e Figueiredo Dias60 opinam que a transferência de poderes para o Ministério Público, operada pelo Decreto-lei n° 35007, não implicou a impossibilidade às respectivas decisões o regime dos arts. 343 e sgs. do CPP ou de adquirirem força de caso julgado, para efeitos dos arts. 148 e segs. Assim, a definitividade do arquivamento do processo, a que se refere o &único do art. 29 do Decreto-Lei n° 35007 corresponde ao reconhecimento, pela lei, dos efeitos de caso julgado à respectiva situação. O Prof. Eduardo Correia expende ainda que, mesmo que a decisão de arquivamento seja considerada acto administrativo, terá de ser considerada um acto constitutivo de direitos, dominada pelo princípio da legalidade e não pelo da oportunidade. E sendo assim, também não poderá tal decisão deixar de esgotar o jus puniendi do Estado relativamente aos factos apreciados e de criar, para o arguido, o direito de por eles não voltar a ser perseguido.
7.2.4. Outras funções
Até aqui indicaram-se as funções mais importantes que o Ministério Público desempenha no processo penal: a direcção da instrução preparatória, a dedução da acusação, a sua represntação em julgamento e a abstenção de acusar. São estas as actividades que melhor caracterizam a posição jurídica que o Ministério Público assume no processo penal. 57 Op. cit. vol. III, págs. 163 58 - O caso julgado e os despachos de abstenção de acusar proferidos pelo Ministério Público, in Scientia Juridica,Tomo XIII, pág. 153. 59 “Despacho de arquivamento do processo e caso julgado”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 99, pág. 33 60 Op. cit. pág. 411 e segs. 61
Todavia, há que fazer igualmente referência, ainda que meramente sumária, a outras funções que ao Ministério Público cabe realizar:
- A intervenção na instrução contraditória, nos termos do art. 330 do CPP, a direcção desta fase processual incumbe ao juíz. O Ministério Público exercerá ali a sua função geral de fiscalização da legalidade e de colaboração na descoberta da verdade material e na realização do Direito; - A interposição de recursos, o Ministério Público tem legitimidade para interpor recursos, tanto no interesse da acusação, como no interesse (até exclusivo) da defesa – v. arts. 647 e 675 do CPP; - A promoção da execução das penas e medidas de segurança: veja-se o disposto no Art. 627 do CPP. 7.2.5. Orientação e dependência funcional dos órgãos de polícia judiciária
Já atrás dissemos61 que a Polícia de Investigação Criminal constitui o mais precioso auxiliar do Ministério Público no exercício da sua função de perseguir os crimes e de dirigir a instrução preparatória do processo penal. Muito embora a PIC se encontre hoje organicamente subordinada ao Ministério do Interior, por força do estabelecido na lei n°19/92, de 31 de Dezembro, o certo é que ela depende funcionalmente do Ministério Público. Essa dependência funcional tanto se revela na prática de actos concretos e isolados de instrução, sob a orientação directa dos agentes do Ministério Público – no caso de colocação de funcionários ou agentes da polícia à disposição daqueles – como na realização pela PIC da instrução preparatória, com vista a permitir o exercício da acção penal pelo Ministério Público. Referência expressa ao poder de direcção e controlo que o Ministério Público exerce em relação às actividades instrutórias e processuais levadas a cabo pelos órgãos de polícia judiciária são-nos dadas pelo art. 4, n°1 alíneas j) e q), da lei n°22/2007, de 1 de Agosto,, e pelo artr. 14 do Decreto-Lei n° 35007 – ambos já anteriormente citados – entre outras disposições.
8. O Arguido e o seu Defensor 61 Ponto 7.2.1. 62
8.1. O arguido 8.1.1. Conceito e constituição de arguido
Nos termos do art. 251 do CPP, “É arguido aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção, cuja existência esteja suficientemente comprovada”.
A lei dá-nos, assim, uma definição concreta de arguido, exigindo, por um lado, que a existência da infracção esteja suficientemente comprovada e, por outro lado, que haja forte suspeita – radicada em elementos constantes do processo de que tenha sido perpetrada por determinada pessoa (arguido). Da constituição de uma pessoa como arguido resultam efeitos processuais da maior importância, que não coincidem com os atribuidos a outros participantes do processo, designadamente as testemunhas e os declarantes. Na verdade, é profundamente diverso o regime de inetrrogatório do arguido (v. art. 250 e 253 e segs do CPP) relativamente ao simples suspeito (v. art. 252) e ao das testemunhas e declarantes (v. art.218 e segs.), pois aquele reveste-se de um formalismo muito mais rigoroso e de maiores garantias do que estes. Além disso, só em relação ao interrogatório do arguido exige a lei a presença de advogado constituido ou de defensor oficioso – quando se trate de arguido-preso (v. arts. 253 e 264) – ou, pelo menos, a admite – tratandos-se de arguido não preso (v. art.265). Daí que, do conceito de arguido, devam distinguir-se as noções – igualmente utilizadas no processo penal – de simples suspeito ou de réu. Suspeito será “... todo aquele a respeito de quem se procure na instrução averiguar dos fundamentos da suspeita de ter cometido uma infracção” – como resulta do disposto no corpo do art. 252 – não sendo, todavia, esta suspeita ainda forte, como no caso do arguido. Por isso, o & único desta disposição legal permite ao simples suspeito requerer que lhe passe a ser dado, no processo, tratamento de verdadeiro arguido. Réu será considerado unicamente o indivíduo pronunciado, ou seja, aquele que já foi solenemente chamado à responsabilidade perante a comunidade jurídica através de uma acusação aceite ou recebida por um juíz. Esta distinção conceitual entre arguido, suspeito e réu tem valor meramente doutrinal . O Código de Processo Penal refere-se em muitos dos seus preceitos, a réu, querendo abranger também o arguido em fase anterior à pronúncia (vejam-se, por exemplo, os arts. 22 e segs e art. 98, n° 4, ambos do CPP), do mesmo modo que utiliza indistintamente 63
outras expressões, como acusado (v. art.379 e segs), indiciado (v. arts. 366, 369, 370, etc.) e mesmo – ainda que impropriamente – culpado (v. art.243). por isso, no dizer de Figueiredo Dias “... Deve ser repudiada como conceitualista-formal qualquer tentativa de partir do qualificativo para se lhe ligarem efeitos jurídico-materiais”62.
8.1.2 Posição jurídica do arguido no processo penal
O estatuto jurídico que a lei providencia ao arguido no processo penal constitui um elemento fundamental para se avaliar que tipo de relações se estabelece entre o Estado e a pessoa individual e a consequente posição desta na comunidade. Num Estado de Direito democrático o arguido é sujeito e não objecto do processo, sendolhe assegurada uma posição jurídica que lhe permite uma participação determinante na declaração do direito do caso concreto, através de concessão de autónomos direitos processuais legalmente definidos. Esses direitos processuais deverão ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal. Isto não significa que o arguido não possa, nos termos expressamente definidos pela lei, ser objecto de medidas coactivas e constituir, ele próprio, um meio de prova. Significa apenas – e fundamentalmente – que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca radicar-se na extorção de declarações ou de qualquer forma de autoincriminação, pois todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua livre personalidade. É nisto que se consubstancia o essencial das garantias de defesa referidas no art. 62 da Constituição, preceito que se insere nos “Direitos, Deveres e Liberdades Fundamentais dos cidadãos (Título III). Vejamos então quais são, concretamente, os principais direitos e garantias que a lei assegura ao arguido, como sujeito do processo penal: a) Direito de audiência, o arguido tem o direito de ser ouvido quanto aos factos que lhe são imputados. Esse direito expressa-se no chamado interrogatório do arguido, o qual sendo um meio de prova, é igualmente um meio de defesa por excelência. O interrogatório do arguido (a que a lei também chama de perguntas – v. arts 250 e segs do CPP) tem, portanto, esta dupla característica, a qual já não está presente nas chamadas declarações do arguido (art. 244), que funcionam como um simples meio de prova. 62 Op. cit. pág. 427. 64
Em termos de interrogatório, a lei estipula como necessária a existência de vários, o que não pode considerar-se como redundância processual, mas como a consagração deste direito de audiência. Existe, desde logo, o chamado primeiro interrogatório, o qual é realizado “logo que, com base na denúncia ou no resultado de diligências probatórias, a instrução preparatória seja dirigida contra pessoa determinada...”(art. 250), ou quando tiver ocorrido a prisão de um réu, quer em flagrante delito, quer fora dele (arts. 290 e 311). O regime jurídico deste primeiro interrogatório não é o mesmo que se aplica aos interrogatórios subsequentes, pois enquanto aquele é feito exclusivamente pelo juíz da instrução criminal.(ou do juíz da causa ou do lugar da prisão) 63, estes são feitos pelo Ministério Público na instrução preparatória e pelo juíz da causa na instrução contraditória64. Há ainda a referir os interrogatórios em julgamento, que são feitos pelo juiz-presidente (v. art. 425 do CPP). A lei impõe que o inquiridor advirta o arguido antes do início do interrogatório, de que a certas matérias ele não é efectivamente obrigado a responder. Assim, o arguido é obrigado a prestar certas declarações quanto à sua identidade e antecedentes criminais (v. art. 254, 1°) – sob pena de desobediência (art. 188 do CP), ou de falsidade em caso de falsas declarações (art. 242 do CP) – podendo omitir qualquer declaração relativamente aos factos que lhe são imputados (art. 254, 3° ). O juíz ao interrogar o arguido, deve esclarecê-lo claramente quanto aos factos que lhe são imputados, indicando, se não houver prejuízo para a continuação da instrução, as provas em que se baseia a imputação e as suas fontes ( art.254, 2°). Prestando declarações, o arguido poderá confessar ou negar os factos de que vem acusado. Confessando, haverá que aplicar-se o disposto nos atrs. 256, 258 e 174, &único, do CPP. Neste caso, gozará da atenuante da confissão espontânea enunciada no n° 9 do art. 39 do CP. Se negar, o art. 259 permite ao juíz confrontar o arguido com depoimentos anteriores e fazer-lhe ver a eventual inconsitência da negativa quanto à matéria de facto.
b) Direito de presença – além do direito de audiência, ao arguido é reconhecido o direito de presença, como elemento essencial de um verdadeiro exercício do direito de defesa.
63 - V. arts. 1, n°2, alínea a), e 2, n°2, da Lei n° 2/93, de 24 de Junho, e arts 253 e 311 do CPP. 64 V. arts. 264 e 265 do CPP. 65
O direito de presença ou de comparência, como também é usual chamar-se, desdobra-se em duas facetas distintas:
Presença física em determinados actos processuais; Presença cognoscente, ou seja, como fonte de percepção de informações, através da consulta de documentos e de peças processuais, etc.
A fundamentação deste direito de presença é fácil de entender: quer dar-se ao arguido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, ao mesmo tempo que garantir-lhe uma relação de imediação com o juíz e com as provas.
Casos de comparência pessoal obrigatória do arguido, encontramo-los: *como regra geral, impeditiva de substituição por advogado, no art. 22 do CPP. * no art. 203, &2°, quanto às buscas, às quais o arguido estará presente sempre que o juíz entenda necessário, ou se estiver preso; * no art. 253, quanto ao primeiro interrogatório; * como regra geral aplicável ao julgamento, no art. 418 – disposição que excepciona dessa obrigatoriedade os réus em processos de transgressões 65relativa a infracções a que não corresponda pena de prisão, os quais poderão fazer-se representar por advogado (v. art.547 ), podendo, no entanto, o juíz tornar obrigatória essa comparência (&&1° e 2° deste preceito). Reconhecida como um direito e imposto, por vezes, como um dever, a presença do arguido só muito excepcionalmente será vedada por lei. A maioria das situações legais em que esta excepção ocorre é, aliás, alvo das maiores críticas e pode mesmo considerar-se inconstitucional... A primeira excepção resulta, quanto à instrução prepaeratória, do próprio carácter secreto desta fase (v. art. 70 do CPP), do qual decorre que, em princípio, o processo só pode ser mostrado ao arguido ou ao respectivo advogado quando não houver incoveninte para a descoberta da verdade (v. & 1° do art. 70). Sucede, porém, que, mesmo na fase preparatória, logo que a instrução seja dirigida contra uma pessoa determinada (que, neste caso, deverá ser interrogada como arguida), o
65 No concernente ao processo sumário, v. art. 5° do Decreto-Lei n° 28/75, de 1 de Março. 66
segredo de justiça cede perante o direito que assiste à defesa de tomar conhecimento de certas peças processuais, nomeadamente:
Das declarações prestadas pelo arguido; Das declarações e requerimentos dos assistentes; Das diligências de prova a que puder assistir ou dos incidentes ou excepções em que puder intervir como parte.
Para efeito desta consulta, os autos ficarão patentes na secretaria pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo (v. & 1° do art. 70). Quanto à instrução contraditória, permite-se ao juíz que determine a não assistência do arguido a certas diligências – art. 39, & único, do Decreto-Lei n°35007 e art. 330, & 1°, do CPP -, tendo estes preceitos sido largamente criticados e considerados incostitucionais em Portugal, após a Constituição de 1976. No que toca ao julgamento, sendo, como vimos, a regra geral a da comparência obrigatória do réu (art.418), mesmo assim, a lei faculta o julgamento sem a presença daquele, no caso de julgamento de réus ausentes. Tal julgamento pauta-se por um conjunto de princípios especiais destinados a garantir, por um lado o direito de defesa do réu, e por outro o interesse da justiça em proferir uma decisão que muitas vezes é necessária para a definição da situação dos co-réus presentes. A audiência de julgamento pode ocorrer em virtude de dois tipos de situações distintas: *ausência justificada – quando em virtude da idade avançada, doença ou qualquer outra causa justificativa, o réu não possa comparecer no acto de julgamento; * ausência injustificada – quando ocorrer qualquer outra circunstância. Tratando-se de ausência justificada a lei estabelece dois regimes distintos, conforme a ausência seja de carácter temporária ou definitiva – v. & 1° e corpo do art. 566. No caso de ausência injustificada (v. arts. 563 e 565), o julgamento decorrerá sob forma especial, designada processo de ausentes, cuja tramitação está prevista no art. 571 do CPP. c) Direito à assistência de defensor – este direito constitui uma emanação directa e necessária do próprio direito de defesa, garantido pelo art. 62 da Constituição. O direito de defesa pressupõe, na verdade, que o arguido seja esclarecido - por pessoa da sua confiança ou que em todo o caso, tenha por função velar exclusivamente pelo interesse da defesa – quanto ao objecto da culpa e da prova. Veremos adiante, com mais pormenor, este direito à assistência de defensor, que é referido no art. 22 do CPP. 67
d) Direito à interposição de recursos – Está consagrado no art. 647, n° 2, do CPP, relativamente a todas as decisões proferidas contra o arguido e, portanto, com a excepção das decisões que lhe sejam favoráveis (v. & 3° do art. 647). Na altura própria será também estudada a matéria referente aos recursos em processo penal.
8.1.3. Audiência do arguido
Fez-se atrás referência ao regime jurídico dos interrogatórios a que o arguido é submetido nas diversas fases do processo. Também se disse que o conteúdo essencial da posição do arguido como sujeito (e não objecto) do processo está em que todos os actos processuais que pratique deverão ser expressão da sua livre personalidade. Esta ideia assume, naturalmente, a maior importância em matéria de interrogatório e conduz directamente à distinção entre meios legítimos e ilegítimos (admissíveis e inadmissíveis) de interrogar e de obter declarações. A lei processual penal vigente avança muito pouco na regulamentação desta matéria. Segundo o art. 255 do CPP, o arguido não pode ser “obrigado a responder precipitadamente”– ou, em todo o caso, sem o tempo conveniente para obter recordações exactas – a qualquer pergunta. Por seu turno, o art. 261 dispõe que “as perguntas não serão sugestivas nem cavilosas, nem acompanhadas de dolosas persuasões, falsas promessas ou ameaças”. E acrescenta o & único que “o juíz ou agente do Ministério Público que violar o disposto neste artigo incorrerá na respectiva pena disciplinar”. Sendo isto praticamente tudo quanto se encontra na nossa legislação processual penal sobre a ilegitimidade dos meios de obter declarações do arguido, torna-se evidente que esta disciplina terá de ser interpretada nos termos mais amplos e complementar-se-á com os preceitos da Constituição (nomeadamente com referências aos arts. 40, 41 e 56 da CRM/2004). Da conjugação de tais direitos resultarão algumas consequências em matéria de meios processuais de interrogatório: a) Têm de considerar-se proibidos e inadmissíveis em processo penal todos os meios de interrogatório e de obter declarações que importem ofensa à dignidade da pessoa humana, à integridade pessoal (física ou moral) do arguido, em especial os que importem qualquer perturbação da sua liberdade de vontade e de decisão. Nesta proibição se abrangerá o emprego de maus tratos, castigos corporais, administração de hipnose, utilização de meios cruéis e enganosos, bem como a perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória e de avaliação do arguido, a utilização da força fora dos casos e dos 68
limites expressamente permitidos por lei, a ameaça e a promessa de qualquer vantagem não prevista legalmente. Do mesmo modo se devem considerar ilegítimos dois outros métodos de interrogatório que utilizam técnicas mais modernas, nomeadamente a narcoanálise, a que já foi feita referência66 e o polígrafo67; b) Estes meios de interrogatório e de obter declarações acabados de referir devem continuar considerar-se proibidos e processualmente inadmissíveis ainda que o arguido consinta na sua utilização. Desde logo, um tal consentimento só muito raramente poderia considerar-se livre, visto estar o arguido coagido pelo receio de que a negação do consentimento pudesse ser interpretado como indício da sua culpa. Além disso, tal consentimento seria ineficaz por recair sobre bens ou valores indisponíveis - a autonomia e dignidade da pessoa humana e sua liberdade de vontade e decisão ...; c) A proibição do emprego de tais métodos de interrogatório deve valer, nos mesmos termos, para qualquer pessoa a quem caiba ouvir o arguido em declarações, seja o juíz, o Ministério Público ou qualquer autoridade policial; d) As violações de tais proibições devem, se não determinar a insuficiência do corpo de delito – e, portanto, a nulidade principal do processo referido no art. 98, n° 1 do CPP -, pelo menos a inadmissibilidade de valoração das declarações prestadas e das indicações que, por seu intermédio, tenham sido obtidas acerca de outros meios de prova.
8.1.4. A garantia constitucional da presunção de inocência
Já se disse que o arguido é um sujeito processual e que, em razão dessa qualidade, o seu estatuto comporta um complexo de direitos e deveres atrás enunciados. Importa agora referir a especial tutela de que goza por imperativo constitucional: a presunção de inocência. O art. 59, n° 2 da Constituição de 2004 estabelece que “os arguidos gozam de presunção de inocência até decisão judicial definitiva”. O mesmo princípio acha-se consagrado na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e 66 V. supra, ponto 1.5. 67 - Aparelho que se liga à pessoa a interrogar e que regista os traçados da sua respiração, pulsação, tensão arterial, transpiração cutânea, etc.. Sobre estes métodos, v. Figueiredo Dias, op. Cit. pp. 455 e ss. 69
Políticos, instrumentos de direito internacional ratificados pela Assembleia da República e, como tal, integrados na ordem jurídica interna68. O princípio da presunção de inocência é, no dizer de Marques da Silva :”... antes de mais uma regra política que revela o valor da pessoa humana na organização da sociedade e que recebeu consagração constitucional como direito subjectivo público, direito que assume relevância prática no processo penal num duplo plano: no tratamento do arguido no decurso do processo e como princípio de prova”69. Como regra de tratamento processual, manifesta-se através do direito do arguido a ser considerado como não responsável pela prática dos factos que lhe são imputados, enquanto não for condenado por sentença com trânsito em julgado. Enquanto princípio de prova, significa que toda a condenaçào deve ser precedida de uma actividade probatória a ser levada a cabo tanto pelo Ministério Público, como representante da acusação, como pelo tribunal, em homenagem ao prinmcípio da investigação ou da verdade material: ao arguido não pode exigir-se a prova da sua inocência e, em caso de dúvida, deve ser absolvido.
8.2. O Defensor 8.2.1. Função e posição jurídica do defensor em processo penal
Num verdadeiro processo penal de partes – como vimos ser característica dos paises de inspiração anglo-saxónica - , a função exercida pelo defensor e a posição jurídica por ele assumida não levantaria dúvidas de grande monta: trata-se aí, como no processo civil, de uma autêntica representação judiciária do arguido, cabendo ao defensor a prática, em nome e no 68 - A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, adoptada pela XVII Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, em Junho de 1981, em Nairobi, Kenia, e ratificada pela Resolução n° 9/88, de 25 de Agosto, da Assembleia da República, dispõe, no seu art. 7, n° 1: “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada. Esse direito compreende : ...b) o direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente...”. Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966, e ratificado pela Resolução n° 5/91, de 10 Dzembro, da Assembleia da República, estatui, no seu art. 14, n°2 : ‘Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”. 69 - Curso de Processo Penal, vol. I, Editora Verbo, Lisboa, 1993, pág. 219. 70
interesse daquele, de todos os actos processuais para os quais lhe tenha sido concedida procuração bastante. Mas não é essa a situação prevalecente na nossa legislação processual penal. No nosso caso estamos, como já foi dito, perante um processo sem partes, em que tanto ao juíz como ao Ministério Público cabe oficiosamente velar pela protecção dos direitos processuais do arguido e, inclusivé, pela sua própria defesa. Todavia, é evidente que não pertence ao juíz nem ao Ministério Público, como função característica e essencial, exercer os misteres da defesa do arguido. Justamente porque o juíz e o M°P° têm de comportar-se imparcial e objectivamente, só a existência de um órgão a quem caiba actuar – ainda que, também ele, objectivamente – no exclusivo interesse da defesa, pode dar a garantia de que os factos que constituem objecto do processo serão esgotantemente investigados, e de que procurará evitar, até onde é humanamente possível, erros desfavoráveis ao arguido, na apreciação daqueles factos. Assim se caracteriza a função do defensor em processo penal – exclusivamente a de fazer avultar no processo tudo quanto seja favorável ao arguido. Através dela pode-se, então, determinar a posição jurídica do defensor. Deste modo, embora o art. 22 do CPP possa dar a entender que o defensor é um mero representante judiciário do arguido – nos casos em que ele não seja obrigado a estar pessoalmengte em juízo -, o certo é que o fundamento da prática, pelo defensor, de actos processuais não reside na procuração forense ou nos poderes representativos concedidos pelo arguido, mas encontra-se directamente no pode-dever que a lei lhe confere de realizar a função de defesa sem estar condicionado às instruções ou vontade do arguido. Neste sentido, pode e deve afiramar-se que a função de defesa é pública, tem o seu assento no direito público e não no instituto jurídico-privado da representação; Também não basta, para caracterizar a posiçào jurídica do defensor, dizer que a sua função é de assistência jurídica do arguido. Se por assistência quisermos entender uma mera função de auxiliar processual, então terá de concluir-se que tal caracterização é inexacta, pois o exercício da função de defesa não está essencialmente subordinada às intenções ou à vontade do arguido, nem exclusivamente dependente do interesse subjectivo deste ( p.ex. o de obter a absolvição a todo o custo); A exacta caracterização da posição do defensor é, pois, a seguinte: tal como o M°P°, também o defensor, seja ou não advogado, é um órgão autónomo de administração da justiça, como tal lhe cabendo basicamente colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na relaização do Direito. A função da defesa ultrapassa o eventual interesse subjectivo do arguido para cumprir uma tarefa que diz directamente respeito à própria comunidade jurídica – a de que só sejam punidos em processo penal os verdadeiros culpados e, para isso, a de que sejam protegidos todos os arguidos.
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É, pois, profundamente errónea a concepção – infelizmente tão disseminada entre os práticos do foro – que vê no defensor, a priori, um “inimigo” do Ministério Público e até do próprio juíz. Na verdade, a posição do defensor penal é a de um colaborador – embora de um colaborador à sua própria maneira e de fornma diferenciada – na realização do fim por todos prosseguido. Evidentemente que a específica forma de intervenção do defensor na realização da justiça o afasta, tanto da actividade judicial, como da do Ministério Público (com quem é natural que esteja muitas vezes em oposição), na medida em que, servindo embora a descoberta da verdade e a realização do Direito, serve-as actuando exclusivamente em favor do arguido. É por isso que, quer o Estatuto da Ordem dos Advogados70, quer a lei que criou o IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica), prevêm a imposição ao advogado do dever de segredo profissional relativamente a tudo quanto possa desfavorecer a posição do arguido. É na interacção destes deveres de protecção, favorecimento processual, verdade e sigilo – teórica e abstractamente compatíveis, se bem que eventualmente conflituantes no caso concreto – que o defensor tem de encontrar equilíbrio da sua actuação, sendo através deles que se alcança o essencial da sua posição jurídica no processo penal.
8.2.2. Admissibilidade e obrigatoriedade da defesa
Nos termos da 1ª parte do art. 49 do Decreto-lei n° 35007, “o arguido pode constituir Advogado em qualquer altura do processo”. Por esta forma dá a lei a entender que o exercício da função de defesa é admissível em qualquer processo e em qualquer fase em que este se encontre. Mas apesar deste princípio geral de admissibildade, o certo é que só em alguns casos a defesa se torna, por lei, necessária ou obrigatória. Assim, de acordo com a 2ª e 3ª partes do citado art. 49, é obrigatória a nomeação de defensor oficioso, se ainda não houver advogado constituido, no despacho de pronúncia provisória em processo de querela (como desapareceu,entretanto, o despacho de pronúncia provisória, a referência a ele feita deve entender-se como o despacho que recebe o requerimento para abertura da instrução contraditória). Nos processos de polícia correccional deverá ser nomeado para julgamento. Nos processos sumários e transgressões, o juíz é obrigado a nomear defensor oficioso se o arguido o pedir ou se houver lugar a aplicação de medidas de segurança.
70 O Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique foi aprovado pela Lei n° 28/2009, de 29 de Setembro. 72
Além destes casos, também é obrigatória a intervenção (a presença) de defensor nos interrogatórios de quaisquer arguidos presos, durante a fase da instrução preparatória, nos termos dos arts. 253 e 264 do CPP. Segundo o art. 98, n°4 do CPP, a falta de nomeação de defensor ao réu, quando necessária, constitui nulidade principal do processo penal, cujo regime é regulado pelo &5° do mesmo preceito. Para além disso, há que ter em conta o disposto no art, 268 do CPP, segundo o qual ‘” é nulo ... qualquer interrogatório sem a assistência de defensor, quando obrigatória, ou se o advogado foi indevidamente impedido de assistir, quando facultativa”.
8.2.3. A defesa e a pessoa do defensor
O defensor pode ser chamado a assumir a sua posição no processo penal pelo arguido ou pelo tribunal. Se for o arguido a chamá-lo, estaremos perante uma constituição de advogado (ou defensor) – ART. 49 do Decreto-lei n° 35007 ; se for o tribunal, depararemos com a nomeação de defensor oficioso (art. 22 && 1° e 2° do CPP). O princípio que rege nesta matéria é o da liberdade de escolha de defensor e , portanto, da sobreposição da constituição à nomeação. Em qualquer altura do processo em que o arguido constitua defensor, cessam as funções do defensor que tiver sido nomeado oficiosamente (v. art. 22, &3° do CPP). Portanto, só quando o arguido não faça uso do seu direito de escolha e que caso se trate de defesa obrigatória, o juíz lhe nomeará defensor oficioso. Além desta distinção entre defensores constituidos e nomeados, há que ter em conta o que dispõe o Estatuto do IPAJ sobre a determinação das pessoas que podem intervir no processo penal como defensores (distinção entre advogados, técnicos jurídicos e assistentes jurídicos). Para o caso de serem vários os arguidos, dispõe o corpo do art. 23 do CPP que “cada um poderá ser representado no processo e até na audiência de julgamento por um advogado”. O defensor não pode ser considerado impedido ou suspeito – seja por força da lei ou por acção do juíz ou do Ministério Público – apesar de, como se disse, também ele deve ser tido como órgão de administração da justiça. Todavia, é claro que, tratando-se de advogado constituido, pode o arguido em qualquer altura escolher novo defensor e, por este caminho, afastar da defesa o advogado anteriormente constituido – dá-se a revogação do mandato, nos termos do art. 39 do CPC. Se se tratar de defensor oficiosamente nomeado, estatui o art. 26 do CPP que o juíz poderá sempre substitui-lo, a requerimento do arguido, por causa justificada. Também o defensor pode, em certas condições, recusar ou abandonar o patrocínio. Tratando-se de advogado, a recusa assume carácter de dever relativamente a toda causa que não considere
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justa (v. Estatuto do IPAJ). Quanto ao abandono, ele só poderá ter lugar, nos termos do art. 28 do CPP, desde que o defensor tenha sido devidamente substituido, sob pena de multa. Hipótese diferente desta é a da retirada da palavra ao defensor pelo tribunal, confiando a defesa a outro advogado – v. art. 412 do CPP.
8.2.4. O concreto exercício da função de defesa No concreto exercício da função que lhe está confiada, como órgão da administração da justiça, o defensor goza de certos direitos e está sujeito a determinados deveres que iremos agora em breve síntese analisar. O defensor deve, antes de tudo, prestar ao arguido o mais completo e esclarecedor conselho jurídico de que for capaz. Não deve limitar-se estar ao lado do arguido, a assisti-lo ou representálo nas suas diversas intervenções processuais: a assistência ou representação só ganham sentido quando cada intervenção seja, sempre que possível, precedida do esclarecimento da situação jurídica material e processual. Naturalmente que, logo nesta matéria, se lhe podem começar a pôr alguns problemas resultantes do conflito entre o seu dever de defesa e a participação na descoberta da verdade e na justa realização do Direito. Contra o dever de verdade (procurada, como vimos, no exclusivo interesse do arguido), actuará o defensor que aconselhe o arguido a proferir afirmações inexactas ou que sabe serem falsas, mesmo quando elas possam conduzir a uma absolvição ou a uma atenuação da pena. Ao contrário do que sucede no processo penal de inspiração anglo-saxónico, não constitui, na nossa lei, tarefa específica do defensor proceder a investigações autónomas do material fáctico, paralelas as que cabem ao Ministério Público e aos órgãos seus auxiliares. Daí que a lei processual penal não reconheça ao defensor quaisquer meios de coacção e apenas lhe permita, na instrução preparatória, “apresentar ao Ministério Público memoriais ou requerimentos de diligências de prova, que este tomará em consideração ou deferirá na medida em que entenda que podem contribuir para a descoberta da verdade”(art. 13, & único, do Dec.lei n. 35007). Tal não significa que o defensor não possa ou não deva procede ràs suas próprias averiguações complementares, sempre que isso seja imposto ou aconselhado pela função de defesa – por ex., exame ao local da infracção, procura de testemunhas ou declarantes relevantes para a defesa e comprovação do seu conhecimento e da sua razão de ciência – sem, evidentemente, tentar influenciar, expressa ou encobertamente, o sentido das suas declarações. Essencial à eficácia da função de defesa é o asseguramento do direito de presença do defensor às diligências de prova de que sejam passíveis quaisquer participantes processuais. O código de processo penal assegura esse direito ao defensor durante toda a audiência de julgamento 74
conforme se vê dos arts. 416 e segs. do CPP. O mesmo se pode dizer para a instrução contraditória, uma vez que, nos termos da 2ª parte do corpo do art. 330 do CPP, “aos actos de instrução contraditória poderão assistir o agente do Ministério Público, o arguido, o seu defensor e o advogado dos assistentes”. O direito de assistência do defensor durante a fase da instrução preparatória não é tão ampla e eficazmente assegurado porque, nesta fase, deve respeitar-se o segredo de justiça a que já anteriormente nos referimos. Vejamos o que dispõe o art. 70 do CPP: O processo penal é secreto até ser notificado o despacho de pronúncia ou equivalente ou até haver despacha definitivo que mande arquivar o processo. Têm obrigação de guardar segredo de justiça os magistrados que dirijam a instrução e os funcuionários que nela participem. & 1° - No decurso da instrução preparatória o processo poderá ser mostrado ao assistente e ao arguido, ou aos respectivos advogados, quando não houver inconveniente para a descoberta da verdade. Logo que a instrução preparatória seja dirigida contra pessoa determinada, a defesa tem o direito de tomar conhecimento das declarações prestadas pelo arguido e das declarações e requerimentos do asssitente; tanto a acusação como a defesa têm o direito de tomar conhecimento dos autos de diligências de prova a que pudessem assistir e de incidentes ou excepções a que devam intervir como partes. Para estes efeitos, as referidas declarações, requerimentos e autos ficarão patentes, avulsos, na secretaria, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. A todos é imposto o dever de guardar segredo de justiça...”(os sublinhados são nossos). A função atribuida ao defensor em processo penal só poderá ser eficazmentye cumprida se, além do mais, lhe for conferido um amplo direito de consulta dos autos e de exame dos objectos da prova. Já vimos que, durante a instrução preparatória, rege o disposto no &1° do art. 70 do CPP. Após a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, é aplicável o disposto no art. 72 do mesmo Código. Outro dos direitos fundamentais do defensor penal é o de comunicar, oralmente e por escrito, com o arguido. Se este se encontra em liberdade, o problema não se põe, pois é óbvio que a liberdade de comunicação é total. Se o arguido se encontra preso, o problema do exerício do direito de comunicação com o advogado ganha então particular realce. Nos termos do &1° do art. 311 do CPP, os presos não poderão comunicar com pessoa alguma antes do primeiro interrogatório. E o &2° acrescenta que, “depois de terminada a incomunicabilidade, e enquanto durar a instrução preparatória, o agente do Ministério Público pode proibir a comunicação do arguido com certas pessoas, ou condicioná-la se tal se mostrar indispensável para evitar tentativas de perturbação da instrução do processo”.
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Estas disposições foram, com razão, objecto de severas críticas na doutrina 71, pois não se vê justificação plausível para elas num Estado de Direito. Se é compreensível que a lei imponha a incomunicabilidade do arguido antes do primeiro interrogatório, já não é de aceitar a extensão dessa incomunicabilidade a pessoa do defensor. Em muitos países a legislação processual penal dá maior relevância ao asseguramento da comunicabilidade entre o arguido e o seu defensor em reais condições de liberdade, segurança e segredo, do que propriamente a obrigatoriedade de assistência do defensor aos interrogatórios. É o que se passa nos direitos inglês e americano, que consideram nulidade do processo o incumprimento, pelos órgãos policiais e instrutórios, do dever de advertirem o arguido, no momento da prisão, de que tem o direito de se consultar com um advogado antes de prestar quaisquer declarações.
9. O OFENDIDO E O LESADO 9.1. Conceito de ofendido em processo penal De um ponto de vista estritamente penal, ofendido é a pessoa que, de acordo com o tipo legal de infracção preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela conduta violado ou posto em perigo. Por outras palavras, na definição de Beleza dos Santos, é o “titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal”. Este conceito estrito ou típico de ofendido é o que resulta do disposto no art. 4, n° 2 do Dec-Lei n° 35007 (que reproduz nessa parte o art.11 do CPP) e assume relevância quando se trata de matérias especialmente penais. Uma definição mais lata de ofendido ( ou lesado) é utilizada quando estão em causa normas de direito civil, para salvaguarda de interesses particulares juridicamente protegidos. Neste caso, 71 - Figueiredo Dias escreve, a propósito, no seu Direito Processual Penal, págs 500 e segs. : “É absurdo que a lei se tenha preocupado seriamente (como vimos ter sucedido com o DL n° 185/72) em assegurar a assistência do defensor a qualquer interrogatório de arguidos presos, durante a instrução preparatória, e ao mesmo tempo tenha tirado quase toda a eficácia real a tal assistência, decretando a incomunicabilidade total antes do primeiro interrogatório e frustrado, assim, o direito de comunicação prévia entre arguido e defensor. Uma tal contradição só existiria, é claro, se a assistência de defensor aos interrogatórios tivesse por único fim desencorajar ou impossibilitar o uso sobre o arguido de sevícias ou quaisquer outros métodos ilegítimos de interrogatório. Mas sabe-se que assim não é o que uma tal assistência visa também garantir o mais possível a pureza real dos autos, evitar declarações emitidas por equívoco, confusão, receio ou ignorância, permitir, enfim, a plena consistência futura do direito de defesa. Ora, é medianamente evidente que nada disto se logrará se não for permitida a consulta e comunicação prévia do arguido com o seu defensor...”. 76
ofendido será a pessoa que, segundo as normas de direito civil, tenha sido prejudicada em interesses juridicamente protegidos. A ela deve, por isso, ser reconhecida legitimidade para deduzir, em processo penal, um pedido civil de indemnização ou qualquer outro de natureza patrimonial, derivado de uma infracção penal.
9.2. A constituição de assistente e a posição jurídica deste no processo penal
Conforme vimos, na determinação das pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal, a legislação em vigor parte do conceito estrito de ofendido – como tal se considerando o titular do interesse ou interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação (art. 4, n° 2, do Decreto-Lei n° 35007). Deste princípio geral resulta que, relativamente a certos crimes públicos, ninguém poderá constituir-se assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é exclusivamente público: é o que sucede nos crimes contra o Estado, contra a boa administração da justiça, contra a ordem e tranquilidade públicas, e outros. Pelo contrário, “qualquer pessoa nos processos relativos aos crimes de peculato, peita, suborno, concussão e corrupção” pode constituir-se assistente (art. 4, n° 5) o que se traduz, na prática, por um alargamento daquele conceito de ofendido, justificado pelo desejo de uma colaboração de todos os particulares na detecção e perseguição de tais crimes que põem em causa a imagem e o prestígio do Estado. O mesmo se passa, em certa medida, nas outras hipóteses de constituição de assistente previstas nos n°s 3 (‘o marido nos processos por infracções em que seja ofendida a mulher, salvo oposição desta72) e n°4 (“o cônjugue não separado de pessoas e bens, ou viúvo, ou qualquer ascendente, descendente ou irmão no caso de morte ou de incapacidade permanente do ofendido para reger a sua pessoa”). O direito de constituição de assistente é irrenunciável, conforme determina o art. 18 do CPP: “Ninguém poderá renunciar à faculdade de promover a acção penal, salvo o disposto nos && 1°, 2° e 3° do art. 8 e no & 1° do art. 14. O & único do mesmo preceito acrescenta, no entanto, 72 “- Figueiredo Dias considera esta hipótese questionável: o seu fundamento residia no dever que, segundo o art. 39 do Decreto n° 1, de 24 de Dezembro de 1910, competia ao marido de defender a pessoa e os bens da mulher; hoje o dever de assistência é mútuo (v. art. 1673, n° 1, do C. Civil) e não parece que possa ver-se inscrito um especial dever de defesa da mulher na posição do marido como chefe de família (v. art. 1674 do mesmo Código), posição esta também discutível do ponto de vista constitucional. 77
que “o o disposto neste artigo não osbta a extinção da acção penal pelo perdão da parte nos casos em que a lei o permite”. Daqui decorre que uma coisa é a renúncia à faculdade de constituição de assitente – que a lei não permite, determinando a nulidade de qualquer declaração nesse sentido (corpo do artigo) ; outra coisa é a renúncia ou desistência da posição de assistente, já processualmente assumida - que a lei admite em certos casos, através do perdão da parte (&único). Quanto à forma de constituição de assistente dispõe o & 3° do art. 9 do Decreto-lei 35007 que ela pode fazer-se por meio de declaração prestada no processo ou por meio de requerimento. Tratando-se de crime particular, a declaração é obrigatória, conforme estabelece no & 3° do art. 9 do Decreto- Lei 35007. Sobre o momento de constituição de assistente, o & 5° do art. 4 do mesmo Decretro-Lei dispõe que “os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram até cinco dias antes de audiência de discussão e julgamento”. Obviamente que este preceito não se aplica tratando-se de ofendido por crime dependente de acusação particular, caso em que a declaração terá de ser feita na denúncia. Nos termos do art. 5 do referido Decreto-Lei, “os assistentes deverão ser sempre representados por advogado. Havendo vários assistentes, serão todos representados por um só advogado, sem prejuízo do disposto no & 1° do art. 21 do CPP, e, se divergirem quanto à sua escolha, decidirá o juíz”.
9.3. Os poderes processuais do assistente Para melhor compreender as formas de que se pode revestir a actuação do assistente no processo penal, importa distinguir as diversas fases processuais, designadamente a instrução preparatória, a instrução contraditória, a acusação, o julgamento e a fase dos recursos. Assim, a intervenção do assistente na instrução preparatória restringe-se, muito especialmente, a uma função de colaboração com o Ministério Público na recolha dos elementos de prova necessários para fundamentar a acusação. A sua actividade está, portanto, nesta fase do processo, subordinada à actuação daquele, sendo-lhe unicamente permitido (tal como ao arguido), apresentar ao Ministério Público “memoriais ou requerimentos de diligências de prova, que este tomará em consideração ou definirá na medida em que entenda que podem contribuir para a descoberta da verdade, juntando, porém, aos autos, no prazo prescrito para a junção de documentos, todos os papéis recebidos .. dos assistentes que respeitem ao processo”. Os && 1° e 2° do art. 70 do CPP dão ao assistente ou ao seu advogado, nesta fase, o popder de consultar o processo, o direito de tomar conhecimento das declarações do arguido, dos autos de 78
diliogências de prova a que pudessem assistir e de incidentes ou excepções em que devam intervir, bem co0mo o direito de lhes serem facultados os autos de instrução preparatória, para o efeito de formular a acusação. Na instrução contraditória já se pode e deve afirmar que a intervenção do assistente tem um carácter autónomo, relativamente ao Ministério Público. Nos termos do art. 4, &2°, n° 2 do DecLei n°35007, compete aos assistentes “intervir directamente na instrução contraditória, oferecendo provas e requerendo ao juíz diligências convenientes”. Em execução deste princípio geral é concedido ao assistente, por intermédio do seu advogado, o direito de assistir aos actos de instrução contraditória (v. art. 330 do CPP), de requerer ao juíz que sejam feitas às testemunhas quaisquer perguntas para completar ou esclarecer os depoimentos (v. art. 332), ou que sejam pedidos aos peritos os esclarecimentos necessários (v. art. 333, & 2°), bem como, no caso de a acusação ter precedido a instrução contraditória, o direito de ser notificado para manter ou não a acusação (v. art. 335). No que diz respeito à acusação, compete em especial aos assistentes, nos termos do art. 4, &2°, n°1, do Dec-Lei n° 35007 “formular a acusação independentemente da do Ministério Público e ainda que este se tenha abstido de acusar”. Se bem repararmos nesta redacção do preceito, tal como foi posta em vigor em Moçambique pela Portaria n° 17076, de 20 de Março de 1959, verificaremos que lhe foi acrescentada a frase que sublinhamos (“... e ainda que este se tenha abstido de acusar”), relativamente à redacção vigente no continente português. Este acréscimo evitou de certo modo que, entre nós (e nas restantes ex-colónias portuguesas), se pusesse a controvérsia e debatida questão de saber se a faculdade de os assistentes deduzirem a acusação quando o ministério Público se tenha abstido de acusar abrangia também os crimes públicos e semi-públicos ou tão somente os crimes particulares. A resposta – que, por via jurisprudencial, já era dada em Portugal no sentido de abranger tanto os crimes particulares como os crimes públicos – tem de ser no sentido de ver abrangidos pela disposição legal as diferentes espécies de crimes. Quanto à intervenção do assistente no julgamento, cabe dizer que, atribuindo-lhe a lei, como vimos, o direito de formular independentemente a acusação, por certo que teria de lhe conceder de igual modo os poderes necessários para sua efectivação na fase de julgamento. Assim, o art. 415 do CPP contém um afloramento do princípio do contraditório ao determinar que “o juíz ouvirá sempre o Ministério Público e os representantes da parte acusadora sobre os requerimentos dos representantes da defesa e estes sobre o que tenham requerido aqueles” 73. Podem lhe ser tomadas declarações em qualquer altura durante a produção da prova (v. art.428), possuindo em contrapartida o direito de interrogar e contra-interrogar as testemunhas (art. 435). 73 Quando estejam presentes, pois a falta de advogado dos assistentes não determina a suspensão ou adiamento da audiência (v. art. 417, & 3°, do CPP) e a comparência do próprio assistente não é, em princípio, obrigatória (v. art. 420 do CPP). 79
Finalmente, no que toca à fase dos recursos, têm os assistentes, nos termos do art.4 & 2°, n°3, do Dec.Lei n° 35007, competência para “recorrer do despacho de pronúncia ... e da sentença ou do despacho que ponha termo ao processo, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito”. Este princípio sofre, porém, a restrição constante do &4° do mesmo artigo: “quando os assistentes formulem acusação por factos diversos dos que constituem objecto da acusação do Ministério Público, não poderão recorrer da decisão do juíz se este receber a acusação do Ministério Público”. Esta restrição só tem cabimento nos processos que não dependam da acusação particular (por crimes públicos e semi-públicos), como se depreende do estatuido no & único do art. 3 do Dec-Lei 35007.
III – AS PARTES CIVIS E A RESPONSABILIDADE CIVIL PELAS MULTAS E INDEMNIZAÇÕES
10 – As partes na acção civil conexa com a criminal
Em muitos casos e de parceria com a lesão ou o perigo para bens jurídicos fundamentais da comunidade, a infracção criminal acarreta uma lesão de direitos civis patrimoniais de certas 80
pessoas: os ofendidos, isto é, os jurídico-civilmente lesados pela infracção. Importa, no caso em apreço, não o conceito típico ou estrito de ofendido que se extrai do Art. 4, n° 2 do Dec-Lei n° 35007. Há que atender aqui a uma ampla gama de pessoas a quem deve ser dada a legitimidade para deduzir, em processo penal, um pedido cível de indemnização, ou qualquer outra de natureza patrimonial derivado de uma infracção penal. O conceito lato ou extensivo abrange todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal. É este que interessa reter para a matéria que a seguir se vai tratar. Daqui se extrai a relevância jurídico-civil de uma facto criminoso. Dele pode resultar, pois, danos indemnizáveis, os quais podem não ter, necessariamente, natureza patrimonial. É exemplo disso o caso da ressarcibilidade dos danos morais emergentes do ilícito penal (v. & 2° do art. 30 do CPP; causa de pedir de pretensões civis distintas – por exemplo, o adultério que, sendo crime74, fundamenta o pedido de divórcio litigioso, ou qualquer crime cometido pelo donatário que é fundamento para a revogação da doação (art. 976, n° 3 do C. Civil); e pode ser fonte de obrigação de restituir nos casos em que haja privado o lesado da propriedade ou da posse de determinada coisa (v. art. 75, n° 2 do C. Penal). Interessa, portanto, para o nosso estudo, considerar o facto criminoso quando dele resultem danos indemnizáveis (sejam de natureza patrimonial ou não) e quando seja fonte de obrigação de restituir. O problema da indemnização em processo penal suscita, desde logo, várias questões no que toca à sua natureza e bem assim ao tratamento que lhe tem sido reservado. Dividem-se opiniões entre os que acentuam o carácter civil da indemnização e os que perfilham o seu carácter social, sendo ela parte integrante da sanção penal. Voltaremos a esta questão mais adiante. Por sua vez, a problemática do ressarcimento dos danos emergentes do facto criminoso, coloca um conjunto de questtões, de que se destacam: ٭a que consiste em saber se o particular lesado pelo crime poderá obter, numa acção penal pendente, um ressarcimento desses danos; ٭se, para o efeito, terá de deduzir um pedido autónomo, desencadeando um processo próprio, ou se o juíz tem poderes para, independentemente do pedido, condenar o réu no pagamento de uma quantia a título de reparação pelos danos sofridos pelo lesado; ٭se o pedido do lesado terá de efectuar-se obrigatoriamente na acção penal que estiver pendente ou poderá ser deduzido em separado; ٭se , por último, o encargo da indemnização deve ser suportado por quem seja réu no processo criminal, ou por entidades públicas. 74 O adultério deixou de ser considerado crime pela Lei n° 8/2002, de 5 de Fevereiro, mantendo-se no entanto como um dos fundamentos para pedido de divórcio em matéria de família. 81
A razão de ser desta última questão reside no facto de certas teorias modernas dominantes na Criminologia pugnarem pela ideia de co-responsabilidade do Estado e da comunidade no que respeita ao agravamento da criminalidade. Tome-se como exemplo a cultura institucionalizada da violência, disseminada pelas mais diversas formas e meios, de que se destaca a televisão, o cinema e o vídeo. Em reforço ainda desta ideia vem o facto de, não raras vezes, ser a própria vítima que se coloca em circunstâncias favoráveis à perpetração do crime. No que respeita às demais questões acima enunciadas, a sua resposta será encontrada ao longo do desenvolvimento que segue. No tocante à interrelação entre a acção cível e acção penal, várias soluções têm sido adoptadas ao longo do tempo. De acordo com os sistemas actuais vigentes, a impossibiliodade de o lesado obter, no processo penal, o ressarcimento dos danos emergentes de uma infracção criminal só não é admitida nos sistemas em que se consagra uma absoluta independência ou separação das acções penal e civil. Nestes últimos, tende-se a purificar o processo penal de todas as questões relativas à reparação pecuniária do dano causado pelo facto criminoso.
Sistema da absoluta identidade das acções civis e criminais Este sistema é aquele que aglutinava os dois sistemas processuais (civil e penal) o que reflecte um estádio primitivo no tratamento deste problema. É o chamado sistema da identidade a que se fez referência por mero interesse histórico. Corresponde a uma fase da evolução da ciência jurídica em que se confundia o direito penal com o direito civil e a uma concepção do processo penal onde não está ainda presente o interesse da sociedade na punição do culpado, mas apenas o interesse da vítima em obter vingança e reparação, o que denota o estado primitivo das legislações.
Sistema da absoluta independência Preconiza este sistema a absoluta independência dos dois processos. Esta é a orientação acentuadamente individualista e tradicional no direito anglo-saxónico (Inglaterra e EUA).
Sistema da adesão optativa O sistema de adesão tem como elemento essencial a possibilidade ou mesmo obrigatoriedade de juntar a acção civil ao processo penal, permitindo ou impondo que a jurisdição penal se pronuncie sobre o objecto da acção civil. 82
Legislações há que combinam o sistema de adesão com o da alternatividade ou opção. O fundamento deste sistema está na necessidade de se acautelar os perigos que possam advir para a satisfação plena dos direitos civís do lesado no sistema de adesão, dada a natureza distinta dos sistemas processuais. Segundo este sistema, o lesado escolhe livremente ou a jurisdição penal ou a jurisdição civil para apreciar o seu pedido cívil resultante da infracção. Contudo, escolhida uma via, não poderá o lesado lançar mão de outra: una via electa non datur recursus ad alteram (é o sistema vigente na França, Alemanha, Itália e Espanha).
Sistema da adesão vinculada Outros sistemas, porém, tendo em conta as particulares necessidades sociais que só ficam satisfeitas com a efectividade da indemnização devida por um crime, determinam o carácter oficioso do arbitramento da indemnização e chegam mesmo a considerá-la uma autênctica parte da sanção penal. Daí a consequente obrigatoriedade de adesão da acção civil ao processo penal e da fixação da indemnização em caso de condenação. É esta a solução adoptada, entre nós, pelo art.29 do CPP, quando dispõe: “O pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal . . .” Tal sistema tem por fundamento, e em primeira linha, a ideia defendida pela escola positivista italiana, representada por E. FERRI75, do interesse social existente na obrigatoriedade de o delinquente reparar o prejuízo civil decorrente do crime; o dano ex delicto, essencialmente distinto do dano ex contracto e subsistente em qualquer infracção penal, deveria ser sempre obrigatoriamente reparado no interesse da defesa social. Não constituindo teoricamente pena, é todavia uma sanção reparatória, consequência necessária da infracção a ser imposta não só para a legítima reparação da parte lesada, mas também como sanção suficiente para a violação decorrente de lei penal. Mostra-se assim mais adequada à realização daquelas funções, a obrigatoriedade da dependência processual do pedido civil no processo penal. Com isso, cumprir-se-ia a função eminentemente pública ligada à indemnização, mas também as exigências compreensíveis de economia processual, protecção do lesado e auxílio à função repressiva do direito penal (art. 34 do CPP). Com efeito, dispõe este dispositivo legal que: “O juíz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida”. 75 - in Principii di Dirito Criminale e Sociologia Criminal. 83
Tem-se assim que a lei processual penal (art. 29) manda cumular com a acção penal o pedido de indemnização do dano causado pela infracção penal. No que respeita à restituição das coisas, aplicam-se as regras dos arts. 29 e ss. do CPP, não obstante ser um meio de indemnização. No caso, porém, de as ditas coisas não poderem ser restituidas, valem as mesmas regras, e bem assim no que respeita às despesas feitas pelo lesado para obter a indemnização. Estas últimas não se comfundem com a indemnização, pois não resultam do crime. Deste modo, os arts. 29 e ss. referem-se apenas à responsabilidade civil emergente da infracção. Esta solução adoptada pelo nosso Código não é de todo pacífica, havendo em seu redor argumentos a favor e contra.
A favor refere-se que: . a acumulação tem a vantagem da economia processual: . a indemnização serve de adjuvante da pena criminal; . a parte lesada, intervindo no processo penal, pode auxiliar a acção do tribunal criminal; . o juíz cível não está, muitas vezes, em tão boas condições para avaliar o dano moral como o juíz criminal, perante o qual o delito aparece com toda a veemência; . muitos lesados não têm meios para demandar a indemnização no juízo civil; . o processo criminal é simples, rápido e mais inacessível a fricas forenses.
Em contrário, observa-se: . as duas responsabilidades têm fundamentos diferentes; . os critérios para apreciação da responsabilidade são também diferentes dado que, na responsabilidade criminal, é precisa a imputabilidade moral do delinquente, enquanto que na responsabilidade civil, não tem a mesma importância; . o objecto das sentenças é distinto, pois, na sentença penal pune-se o delinquente na sua pessoa e, na sentença civil, ele é condenado a indemnizar com os seus bens; . a acção penal compete ao MP (acção pública), sendo dispensável que o lesado se constitua parte acusadora, ao passo que na acção cível tem de ser intentada pelo lesado;
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. a acção penal só pode ser movida contra o réu, enquanto que a acção civil tem natureza patrimonial, podendo a obrigação ser exigida aos herdeiros e a co-devedores solidários sem responsabilidade criminal; . a acção penal, com o seu ambiente sentimental, pode postular a serena apreciação dos factos; . se o lesado se contenta com a indemnização, não há necessidade de o obrigar a colaborar com o MP na acusação, ou a acusar num crime particular.
O Código de Processo penal vigente optou pela doutrina da acumulação (art. 29 e 34 do CPP). Na verdade, muitas pessoas lesadas pelo facto ilícito deixariam de receber a indemnização, se esta não fosse fixada em processo penal, porquanto a necessidade de intentar, no tribunal civil, a acção de indemnização levaria a um desencorajamento de muitos lesados. Para além disso, economiza-se tempo, incómodos e despesas, evitam-se decisões de certo modo contraditórias. De considerar ainda que o juíz penal está, em regra, em melhor situação de julgar a questão da indemnização, pois tem de conhecer da infracção e das suas circunstâncias.
11. A natureza da reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal
Não se têm levantado dúvidas dignas de realce quanto à natureza civil desta reparação. Trata-se de uma verdadeira indemnização de perdas e danos. Com efeito, no processamento do respectivo pedido são observados pelo tribunal penal os princípios fundamentais do processo civil. Têm aqui plena aplicação os princípios ne procedat judex ex officio e ne eat judex vel extra petita partium. São também observadas as regras do direito civil substantivo no que respeita, sobretudo, à determinação do objecto e do montante a fixar na indemnização. Mais ainda, a decisão condenatória que conheça do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui essa eficácia às sentenças cíveis. É orientação dominante na doutrina considerar que o arbitramento na sentença condenatória penal, de uma reparação ao lesado é uma decisão em coisa cível, uma verdadeira indemnização civil de perdas e danos. Invoca-se, a favor desta orientação dominante, o teor literal do art. 29 do CPP quando manda cumular o pedido de indemnização por perdas e danos no processo penal. Todavia este argumento não tem grande peso, porquanto se refere apenas à natureza do pedido e não à 85
natureza da resposta a ser dada pelo tribunal. De todo o modo, seria contraproducente esperar-se que de um pedido civil se obtenha como resposta uma decisão de natureza diversa. Acresça-se que mesmo em caso de absolvição em processo penal, haverá lugar a indemnização, sendo o pedido civil bem fundado. São estes os argumentos que sustentam a teoria dominante, perfilando a seu lado outras em contrário. Ressalta, em primeiro lugar, o facto de a lei mandar cumular a acção civil com o processo penal sem que a primeira perca a sua natureza estritamente civil. No entanto, o art 34 do CPP não admite a possibilidade de transacção e, mais do que isso, viola um princípio basilar do processo civil que é a necessidade do pedido, ao impôr ao juíz penal a reparação “...ainda que não lhe tenha sido requerida”. Por outro lado, o art.34 considera a reparação como um efeito necessário ou mesmo automático da condenação penal (art.450, n° 5 do CPP). O & 2° do art. 34 mostra serem distintos os critérios de avaliação da reparação penal e da indemnização civil. Para esta última vale o critério do dano – a teoria da diferença quando se trate de danos materiais, e a ideia da compensação ou satisfação adequada, quando se trate de danos não patrimoniais. De modo diverso, e no que respeita à responsabilidade penal, vigora sem restrições o princípio da culpa na determinação quer abstracta, quer concreta da pena (& 2° do art. 34). Um problema prático que se coloca com acuidade é o de saber se a decisão sobre o pedido civil cumulado com o processo penal terá ou não valor de caso julgado perante a jurisdição civil. Não se têm levantado problemas quando o montante da indemnização fixada é superior ou igual ao valor pedido pelo lesado. As opiniões divergem quando o valor arbitrado é inferior ao pedido. Umas encaminham-se no sentido de que a decisão do tribunal penal tem efeito de caso julgado, não podendo o lesado recorrer à jurisdição cível. Outros advogam precisamente o contrário, argumentando-se que a reparação arbitrada em processo penal é como que uma extensão da condenação penal e, como tal, não constitui caso julgado para a acção civil76. De um modo geral, podem resumir-se da seguinte forma as correntes dominantes no que respeita a esta questão: a) Para uns, o arbitramento da indemnização ao ofendido, no processo penal, é uma decisão em coisa cível e tem natureza de indemnização civil de perdas e danos. Esta é a orientação dominante na doutrina portuguesa, seguida por Vaz Serra, Cavaleiro de Ferreira, Gomes a Silva e 76 - E contrário expende Luis Nunes de Almeida ( Natureza da Reparação de perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal, in Rev. Ordem dos Advogados, Ano 29, 1989, pág. 5 e ss.) :”...a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal assume natureza civil, produzindo consequentemente efeitos civis, isto é, uma vez arbitrada a reparação em processo penal não poderá o lesado vir pedir uma posterior correcção da indemnização ao tribunal civil”. 86
Perreira Coelho. A propósito, Cavaleiro de Ferreira argumenta que “a responsabilidade civil emergente do facto punível é, por sua natureza, responsabilidade civil e não uma expansão da responsabilidade penal, e que a conexão se verifica apenas porque o facto ilícito penal é também um facto ilícito civil. Todo o problema está na admissão do desvio à regra da competência normal dos tribunais civis, atribuindo a competência para julgamento da responsabilidade civil aos tribunais penais”77; b) Em contrário, sustenta-se que a reparação civil arbitrada em processo penal tem uma natureza específica penal. Esta é a posição dominante na jurisprudência portuguesa e é defendida por alguns autores, como Figueiredo Dias, Castanheira Neves e Eduardo Correia.
12. As partes na acção civil – sua determinação
Posto isto, há que examinar o problema da determinação das partes quanto à acção civil que deverá seguir as disposições pertinentes do CPC. Todavia, a influência da orgânica do processo penal sobre a estrutura da acção civil conexa é manifesta. A acção civil acha-se acomodada e absorvida pela acção penal. A conexão da acção civil com o processo penal pode alterar ou exigir um complemento à doutrina das partes em processo penal. Não é pois exclusivamente em função dos preceitos do processo civil que se determina a capacidade e a legitimidade das partes na acção civil em processo penal. Qual, então, a influência modificadora do processo penal incidente sobre esta particular questão na acção civil? O art. 29 do CPP declara que os réus são os agentes da infracção. Poderá, no entanto, haver outros responsáveis civilmente, que não sejam os autores da infracção penal. Quanto a estes, o CPP não prevê a sua intervenção no processo. A acção civil no processo penal só pode ser exercida contra aqueles responsáveis civis que forem conjuntamente arguidos no processo penal. Estão, assim, de fora todos aqueles que com eles sejam solidariamente responsáveis ou aos quais cabe uma responsabilidade subsidiária, e ainda os garantes da responsabilidade, ou seja, os seguradores para os quais tenha sido transferida a obrigação resultante da responsabilidade civil. Diferentemente se passa, porém, no que respeita aos processos penais que tenham por objecto infracções previstas no Cód. da Estrada. Na verdade, do art. 67 daquele diploma legal extrai-se que poderão intervir na acção civil, mesmo quando exercida em acção penal, os responsáveis civilmente pelo facto imputado ao arguido. Têm, pois, intervenção como parte no processo penal, 77 - Cavaleiro de Ferreira, op. cit. vol. I, p. 177. 87
e relativamente ao objecto da acção civil, pessoas que, como partes, não têm intervenção no processo penal. O CPP não prevê a intervenção dos credores, do ponto de vista activo no processo penal, mesmo daqueles que podem intervir como parte acusadora ou assistentes, todos eles legitimados independentemente de qualquer posição de credores em razão do direito civil à indemnização. Nem o conteúdo do & n°1 do art. 34 do CPP permite tal facto, embora parecer indicar o contrário. Dispõe, tão somente, que no processo penal se concederá indemnização mesmo àqueles que não podem intervir como partes. Concede, assim, a lei reparação civil a pessoas diversas dos ofendidos pelos crimes. A este respeito, o Cód. da Estrada não veio trazer qualquer inovação. É também omisso quanto à possibilidade de intervenção, como parte, de qualquer credor por indemnização civil que não possa figurtr na posição de parte acusadora ou assistente. As partes civis na acção penal têm uma intervenção limitada, de tal modo que devem normalmente coincidir com quem possa revestir de igual modo a posição de parte na acção penal. Excepção do ponto de vista passivo provém do art. 67 do Cód. da Estrada, ao autorizar a intervenção em processo penal dos responsáveis civis, ainda que não sejam responsáveis penalmente pelo facto criminoso. Contudo, terá de ser um crime previsto naquele diploma legal. A conexão da responsabilidade civil com a responsabiloidade penal tem efeitos na estrutura do processo penal, porquanto nesta se integra, nos casos indicados pela lei, uma acção civil. A instauração da acção civil em processo penal é acessória da acção penal; as partes na acção civil são também indirectamente acessórias da sua posição processual na acção penal. Como regra, o pedido de indemnização por perdas e danos resultante de um facto punível deve fazer-se no correspondente processo penal (art. 29 do CPP). Só pode fazer-se separadamente perante o tribunal cível nos casos em que a acção penal não tenha tido andamento normal, designadamente: . se seis meses após a denúncia do facto criminoso, o Ministério Público não exercer acção penal ou a acção penal se extinguir; . se o processo penal instaurado tiver sido arquivado ou o réu absolvido e bem assim nos casos em que, ou não o se instaurou a acção penal, ou instaurada, se extinguiu, ou terminou sem a verificação do facto criminoso; . se, finalmente, o processo esteve sem andamento durante seis meses (arts. 30 e 33 do CPP).
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A lei processual vigente estabelece uma forma de conexão entre o direito à acçào civil e o direito de acusação particular ou de participação do crime em juízo, nos chamados crimes semipúblicos. Nestes casos a acção civil recobra inteira autonomia e pode ser livremente intentada na jurisdição civil, mas o uso desta liberdade equivale à renúncia à acusação particular em processo penal, e à invalidade da denúncia em juízo, nos casos em que a denúncia particular condiciona o exercício da acção penal. Em consequência disso, a transacção na acção civil tem idêntico efeito (art. 30 & 1° e 2° e art. 31 do CPP). Autores na acção civil podem ser todos os que sejam partes legítimas segundo as normas de proceso civil. Não é necessário que possam constituir-se ou se tenham constituido assistentes em processo penal (arts 32 e 34 &1° do CPP). Quanto aos titulares passivos da indemnização civil são, em regra, os réus na acção penal. A indemnização deve ser, em princípio, pedida em requerimento ou petição articulada, mas a concessão da indemnização não depende da formulação expressa do pedido (arts. 32 &2° e art. 34 do CPP). Pelas perdas e danos pode ser responsável civilmente outrem além do autor do crime. Prevê ainda a legislação e, em alguns casos, uma responsabilidade civil de terceiro, pelo quantitativo da pena de multa. Tal acontece em algumas hipóteses de direito aduaneiro. De considerar ainda que a responsabilidade civil de terceiros, que não podem intervir no processo em que ela é verificada, pode determinar a condenação destes sem defesa processual directa. Só o Cód. da Estrada é que veio permitir a intervenção em processo penal por infracções previstas no mesmo código de todos os responsáveis civis pelo facto imputado aos arguidos (art. 67 do De4c. Lei n°39672, de 20 de maio de 1954). De assinalar, por fim, que o critério para a fixação do conteúdo da prestação na indemnização por perdas e danos por casos da responsabilidade civil conexa com a criminal, consta do & 2º do art. 34 do CPP. Este preceito aplica-se, quer nos casos erm que a indemnização é fixada em processo penal, quer quando é fixada no processo civil.
RESUMINDO: I - As partes na acção civil conexa com a acção penal podem ser o lesado (que seria o Autor na correspondente acção declarativa de condenação em processo civil) ; os demandados (que seriam os réus na correspondente acção em processo civil) ; e os terceiros intervenientes (que abrangem as várias figuras de terceiros previstas no art. 320 do CPC e que assumam a 89
posição de parte na acção civil conexa com a criminal, do mesmo modo que é permitido no processo civil). Às partes aplicam-se os princípios próprios do processo civil, nomeadamente no que respeita à capacidade judiciária, activa ou passiva. Neste particular aspecto, referência especial deve ser dada aos menores. Embora a capacidade judiciária penal seja plena a partir dos 16 anos, não o é para o pedido cível, ainda que o demandado seja arguido. Os menores de 18 anos carecem de capacidade judiciária civil (arts. 122 e 123 do C. Civil e 9, n°2 do CPC) e a sua (in)capacidade é suprida por representação. O menor, relativamente ao pedido de indemnização civil, tem de ser representado pelo pai, mãe, tutor ou administrador dos bens. O mesmo se passa em relaçao aos interditos e inabilitados. II – A legitimidade (activa) para a formulação do pedido não depende de prévia constituição como parte acusadora (v. arts. 32 do CPP e 75, n°3 do CP). O art. 34 do CPP permite a atribuição do direito de indemnização não só aos ofendidos (corpo do artigo), como também a outras pessoas (&1°), ou seja, a pessoas que podem não ser sequer assistentes no processo penal. O Ministério Público tem legitimidade nos termos do & 1° do art. 32 do CPP. Legitimidade têm também todos os titulares, segundo a lei civil, o direito à indemnização (vg. os herdeiros do ofendido – como é o caso dos filhos da vítima de homicídio - direito por sucessão. Tem legitimidade passiva quem for arguido em processo penal. Esta é a regra básica. Exceptuam-se, no entanto, as pessoas apenas civilmente responsáveis (art.67 do Cód. da Estrada, conjugado com os arts. 57, 503 e ss. 507 do CPP). Decorre da regra básica acima citada que esta legitimidade passiva não poderá ser extensiva analogicamente aos casos de danos causados por qualquer infracção. III – No que respeita à representação, o lesado tem de ser representado, ou pelo Ministério Público, ou por advogado (v. & 1° do art. 32 do CPP).
13. Dos civilmente responsáveis pelas multas e indemnizações Trata-se de um sujeito acessório na relação processual penal. O CPP não prevê a intervenção da pessoa civilmente responsável pelo pagamento das multas e indemnizações.
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Todavia, a lei substantiva prevê a responsabilização de terceiros pelo pagamento de multas e indemnizações aplicadas ao arguido (v. art. 5 da Lei n° 9/87, de 19 de Setembro). Não se tata, porem, da responsabilidade meramente civil pelos danos, casos em que estes terceiros devem ser demandados como partes no pedido civil, mas de responsabilidade, ainda que de natureza civil, pelas multas e indemnizações em que os representantes foram penalmente condenados. Poderão estes terceiros civilmente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que foram penalmente condenados os seus representantes ser também condenados sem terem intervenção no processo? A resposta é logicamente negativa, pois ninguém pode ser condenado sem ter tido possibilidade de se defender. Todavia, nos termos do CPP vigente, não se autoriza a intervenção destes terceiros, a não ser nos casos já acima enunciados. À volta desta questão, a doutrina divide-se sobre a melhor solução. Para uns, a acusação deveria ser também deduzida contra a pessoa civilmente responsável pelo pagamento das multas a que o arguido fosse penalmente condenado. Outros consideram que a acusação apenas deveria ser deduzida contra o responsável penal, servindo a sentença de condenação de título executivo também contra a pessoa apenas civilmente responsável, podendo esta, porém, defender-se na execução mediante embargos. Não parece, porém, que esta última posição seja sustentável. Na verdade, no processo de execução a legitimidade toma um aspecto formal e determina-se pela regra do art. 55 do C.P. Civil. Veja-se também, a propósito o que dispõe o art. 57 do mesmo diploma legal. Parece-nos, por isso, os terceiros responsáveis civilmente pelas multas e indemnizações a que for condenado o arguido devem também intervir no processo como responsáveis civis e, assumindo, consequentemente o estatuto de sujeitos processuais.
IV – OS ACTOS PROCESSUAIS 14. Considerações gerais Sabemos já que o processo penal prossegue um fim bem definido, que é, sucintamente, o de obter a declaração do direito no caso concreto, historicamente determinado. Para a prossecução desse fim, o processo penal conta com uma dinâmica própria, constituida por uma multiplicidade de actos jurídicos, da mais variada natureza e de conteúdo e funções diversas, que são os actos processuais. Embora já se tenha tentado construir uma teoria geral dos actos processuais, tal não constitui tarefa fácil, porquanto os princípios que dominam a sua regulamentação nem sempre são, na mesma medida, aplicáveis a todos eles. Por outro lado, a lei também não lhes dá um 91
tratamento sistematizado, pelo que o interesse na construção de uma teoria geral dos actos processeuais não se afigura de grande relevância78. Vamos, pois, limitar-nos ao que é essencial para compreender a dinâmica do processo, referindo as possíveis classificações e os vícios que afectam a validade e a eficácia dos actos processuais. 15. Classificação dos actos processuais
São inúmeras, na doutrina, as propostas de classificação, consoante os diferentes pontos de vista pelos quais a questão é abordada. Mais do que a enumeração dessas tentativas de classificação, cuja utilidade seria reduzida, uma vez que nehuma assume preponderância decisiva, importa indicar alguns dos critérios com base nos quais se constroem tais classificações. . Um primeiro critério a ter em conta é o da função que os actos processuais realizam no processo. E, assim, teremos a distinção entre actos finais e actos instrumentais. Actos finais serão aqueles que consubstanciam o fim do próprio processo e se resolvem na punição. Actos instrumentais são os que preparam ou colocam os meios idóneos para tornar possível aquela finalidade. Nos actos instrumentais – que constituem a grande massa – podem distinguir-se os actos de governo processual, os actos de aquisição, de elaboração e de verificação. Actos de governo processual são os destinados a ordenar ou regular o processo, pondo-o em condições de prosseguir: marcam a direcção ou o rumo do processo e tanto podem provir do juíz como dos restantes sujeitos processuais. Actos de aquisição são aqueles mediante os quais se adquirem os elementos materiais, provas ou argumentos, necessários a realização do seu fim. Os elementos assim adquiridos são objecto de actos de elaboração para integrar aqueles elementos no processo para que possa através deles atingir-se o fim a que se destinam. Actos de verificação processual são já actos determinantes relativamento ao objecto do processo, traduzindo-se no resultado da sujeição do arguido ou da sua liberação do processo; são, pois, os actos mais importantes, entre os actos instrumentais. . Um segundo critério é o do conteúdo dos actos, atendendo aos seus efeitos jurídicos ou à sua estrutura.
78 - v. Cavaleiro de Ferreira, op. cit., Vol. I, pág. 240 e segts. 92
Quanto aos efeitos jurídicos, os actos processuais podem ser principais ou acessórios. Os principais subdividem-se em constitutivos e extintivos, e os acessórios em impeditivos e modificativos. Em razão da sua estrutura, os actos processuais dividem-se em declarações (podem ser declarações de vontade – quando se dirigem à produção de determinado efeito jurídico; simples declarações voluntárias - quando a vontade cobre apenas a própria declaração e não se dirige a um efeito jurídico; ou declarações de ciência – quando exprimem o conhecimento sobre determinados factos ou matérias, exteriorizando, não o que se quer, mas o que se sabe) e actos materiais (os que produzem efeitos processuais através da alteração de situações de factos – ex. a apreensão de provas ou a execução de madados de captura). . Finalmente, o critério dos agentes que praticam o acto. Distinguem-se, deste modo, actos judiciais e actos não judiciais. Fazendo um esquema dos critérios acabados de descrever, a título exemplificativo, teremos: ACTOS PROCESSUAIS
Actos finais I - Quanto à função:
a) actos de governo processual Actos instrumentais >
b) actos de aquisição c) actos de elaboração d) actos de verificação
principais: a) constitutivos b) executivos Atendendo aos efeitos jurídicos > II - Quanto ao conteúdo:
acessórios: a) impeditivos b) modificativos
Atendendo à estrutura: > declarações: de vontade, voluntárias e actos materiais
de ciência;
III - Quanto aos agentes: judiciais e não judiciais
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16. Validade e eficácia dos actos processuais – Nulidades e irregularidades processuais
Os actos processuais, para produzirem efeitos jurídicos, devem obedecer a um certo número de requisitos. A falta desses requisitos afecta o acto na sua validade e na sua eficácia. O acto inválido não produz efeitos jurídicos, porque lhe falta algum elemento constitutivo (a vontade, o fim a que se destina, a forma). O acto ineficaz também não produz efeitos jurídicos por lhe faltar algum requisito externo (a capacidade, a legitimidade a idoneidade do seu objecto). À ineficácia corresponde a nulidade do acto (que pode ser absoluta ou relativa). À invalidade pode corresponder a nulidade ou a própria inexistência jurídica do acto. As nulidades absolutas são insanáveis. A lei processual penal reduziu-as, porém, ao mínimo: assim se consideram as hipóteses referidas nos n°s 4 (falta de nomeação de defensor ao réu, quando cometida na audiência de julgamento, sendo obrigatória), 7 ( falta do número legal dos juízes ou jurados nos julgamentos e 8 (discussão e julgamento sem assistência do Ministério Público ou sem a presença do réu, quando a lei exija o seu comparecimento) do art. 98 do CPP. Embora insanáveis, as nulidades absolutas precisam de ser declaradas, contrariamente ao que sucede com a inexistência. O acto tem existência jurídica e, por isso, subsiste enquanto não for declarado nulo. As nulidades relativas, pelo contrário, podem ser sanadas e constituem a maioria: são as que se encontram previstas nos n°s 1,2,3, 4 (quando cometida antes de transitar em julgado o despacho de pronúncia ou equivalente), 5 e 6 do citado art. 98. Às formas de sanação referem-se os diversos && do mesmo preceito legal. Quando não tiverem sido sanadas, podem sê-lo, geralmente, em qualquer estado do processo, por qualquer tribunal, mesmo de recurso, oficiosamente ou a requerimento dos interessados. Exceptuam-se as nulidades do n°2 , quando consistam no emprego de forma de processo comum mais solene em vez de outra menos solene, caso em que só poderá ser arguida até ao dia em que se realize a audiência de julgamento 79, e dos n°s 5 e 6 , que só podem ser arguidas até ao interrogatório do réu na audiência de julgamento80.
79 - V. & 1° do Art. 99 do CPP. Na verdade, seguindo-se uma forma de processo mais solene do que a prevista no caso concreto, não só se não prejudicou em nada o fim do processo, como se concedeu mais garantia de defesa ao arguido. 94
O vício da inexistência verifica-se quando ao acto faltam elementos que são essenciais à sua própria substância, de modo que em caso algum pode produzir efeitos jurídicos. A lei processual vigente não faz alusão expressa à inexistência, mas tanto a doutrina como a jurisprudência referem-se a esta espécie de vício dos actos processuais81. O acto inexistente não carece de ser anulado, pois não tem virtualidade para produzir efeitos jurídicos nem pode originar caso julgado. Mas os actos inexistentes não determinam, por si só e necessariamente, a anulação de todo o processo no qual foram praticados . De acordo com Cavaleiro de Ferreira: “Todos os actos processuais se integram, fortemente conexos, na marcha do processo para o seu objectivo. A apreciação judicial do processo, em razão do seu fim, desdenha do que para esse fim foi acidental ou desnecessário, embora em si mesmo ilegal. E é por isso que os actos em si mesmos inexistentes não determinam necessariamente a nulidade do próprio processo. A questão da inexistência colocar-se-á com mais acuidade quanto à decisao final, à sentença, pois que todos os demais actos para ela se encaminham e a preparam. Certo é, porém, que além dos actos judiciais, também outros actos processuais, quando juridicamente inexistentes, podem impedir o caso julgado. Deverão ser, porém,vícios dos actos processuais que se traduzem na inexistência da própria relação jurídica processual”82. Embora as decisões inexistentes não produzam efeitos jurídicos e nem possam estabelecer caso julgado, não necessitando, por isso, de ser declarada a inexistência, considera-se que é sempre útil fazer tal declaração, que deve ser requerida ao juíz da causa. Além das nulidades absolutas e relativas e da inexistência jurídica, os actos processuais podem ainda sofrer de vícios menos graves, a que o CPP chama de irregularidades do processo e faz referência do art. 100. Mas, como atrás se salientou, a lei processual penal não regula todas as nulidades dos actos processuais. Nomeadamente, no que aos vícios da sentença diz respeito, aplica-se a lei geral (v. art.668 do CPC), pelo que não estão submetidos ao regime dos arts. 98 ou 100 do CPP. 80 - V. & 2° do art. 99. O fundamento desta excepção é o de que, depois do interrogatório, já o réu tem conhecimento dos factos da pronúncia e do rol de testemunhas, encontrando-se, assim, satisfeito o princípio do contraditório. 81 - Por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 1 de Abril de 1964 (in V. B.M.J.,n°136, pág. 232), decidiu que existe, como espécie autónoma, o vício de inexistência, de sentença ou acórdão, no caso de a decisão ter sido proferida por quem não está investido de poder jurisdicional – v.g. sentença proferida pelo Ministério Público ou por um funcionário da secretaria. 82 V. Cavaleiro de Ferreira, op. cit. p. Vol. I, p. 269. 95
Para que acto ferido de irregularidade (nos termos do art. 100) seja válido e produza efeitos, não é necessária a sua sanação. Pelo contrário, só deixará de produzir efeitos se for invalidado, quer dizer, o acto imperfeito só se torna ineficaz mediante intervenção dos interessados destinada a obter a declaração dessa ineficácia. A irregularidade determina, pois, a anulabilidade do acto e não a sua nulidade.
V – A PROVA 17. Fim da prova
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