Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Introdução ao Direito I 1ª Lição: Introdução A interpretação do direito começa com um problema concreto. A pergunta típica do jurista é então “quid iuris” (o que é o direito) -> o jurista transforma o problema jurídico num problema conceptual. O direito é uma realidade multifacetada, polimórfica e complexa: - Seria legítimo adotar uma perspetiva sociológica (pois o direito dá-se na sociedade, é um facto social); - Seria legítimo discutir o fundamento desse direito adotando uma perspetiva filosófica; - Como o direito gerou uma ciência também se pode adotar uma perspetiva epistemológica (que tipo de ciência será? Empírica? Social?), pois o direito é algo que está aí, para nós o conhecermos; - Privilegia-se a perspetiva prático-normativa, sem descartar por completo todas as outras (podem vir a ser marginalmente convocadas). A ação não é um puro acontecer do Homem. Em relação a ele, só este adota um certo comportamento: ao contrário do animal, o Homem é radicalmente livre. O domínio da ação é o domínio das interações, das relações entre o Homem. O direito é a normatividade no mundo da nossa ação, oferecendo uma fundamentação e um critério, na medida em que diz da validade e da nulidade, da licitude e da ilicitude das nossas ações comunitárias. O direito é uma realidade, logo o papel do jurista é compreender a sua normatividade e projetá-la na realidade. É um papel prático porque tem de assumir e compreender a intenção própria do direito e projetá-la na sociedade (realidade). Fá-lo através do juízo e decisões que vai proferindo. O direito só se torna real quando é convocado para transformar tra nsformar a realidade, ou seja, colocando a realidade em conformação com as normas. A perspetiva prático-normativa é a que melhor combina com o papel do jurista. O pensamento jurídico é um pensamento de carácter prático e para uma conceção prática do direito a categoria fundamental é a do juízo de resolução de casos. O juízo é uma ponderação de uma realidade concreta, orientada por argumentos que são pertinentes, que têm relevância. Do Jurista espera-se a virtude, que seja prudente, sensato, saiba qual o agir correto, qual a ação correta a adotar.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2ª Lição: A Ordem Jurídica Estrutura Porque precisamos de uma ordem? A ordem jurídica visa articular um todo com uma certa coerência. É uma das expressões do esforço cultural do Homem para vencer a anarquia resultante da sua natural dispersão. Uma ordem regula, articula as relações entre as pessoas, tem um efeito integrador. A ordem que o direito constitui é a Ordem Jurídica -> esta é a síntese de uma estrutura formal e de um sistema com um determinado conteúdo material. Através da estrutura da Ordem Jurídica podemos perceber o tipo de situações jurídicas que o direito regula. Há duas formas de estruturas a Ordem Jurídica:
Modelo da árvore: o direito é como um tronco que se vai ramificando; Modelo do triângulo sociedade
C
B)
cidadãos
cidadãos A)
A) Linha de Base: Base: aqui se encontram as relações relevantes que estabelecemos uns com os outros na veste de sujeitos de Direito Privado. Somos então particulares ante particulares e relacionamo-nos em termos de paridade. Nesta linha a Ordem Jurídica define as nossas autonomias, delimitando-as, e permite a realização dos nossos no ssos interesses, tutelando-os. Nesta linha avultam dois valores: o da liberdade relativa e o da liberdade (horizontal). Esta primeira linha tem preponderantemente a ver com a Justiça de Troca ou Comutativa (comutatividade é a troca de prestações que se compensam). É muito importante esta linha pois é o domínio do Direito Privado (Civil e Comercial). A esfera do Direito Civil abrange o Direito das Obrigações, da Família e das Sucessões; B) Linha ascendente: ascendente: nós não somos apenas indivíduos, mas também cidadãos e as relações que estabelecemos entre cada um de nós e a sociedade tomada no seu todo é o objeto desta segunda linha. A sociedade emerge como sujeito das relações que estabelecemos com ela. Com efeito, a sociedade tem ela própria valores e interesses a garantir que nos dirige e cujo cumprimento nos impõe. A sociedade surge aqui nas relações que connosco estabelece em primeiro plano. Mas os indivíduos também dirigem à sociedade exigências que derivam da afirmação da sua autonomia. Nas relações que estabelecemos com a sociedade estamos todos diante dela e não uns perante os outros. Por isso, esta linha regulamenta as relações das partes com o todo. Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Aqui, o Direito cumpre as funções de: tutela dos bens jurídicos fundamentais; responsabilização comunitária e garantia da autonomia das pessoas. Os ramos do Direito que aqui se localizam (Direito Constitucional, Penal, Fiscal e Militar) visam todos regulamentar, institucionalizar, legitimar e limitar o poder. A sociedade pode exigir-nos prestações mas não arbitrariamente. Encontram-se nesta linha valores como o da salvaguarda da nossa autonomia em momentos fundamentais como os são todos aqueles em que estejam em causa a liberdade e a responsabilidade social de cada um (ou responsabilidade comunitária). O tipo de Justiça aqui relevante é: - Geral: aquilo que se pode exigir a cada um em nome de todos e que cada um pode exigir ao todo. Deve conjugar-se com a Justiça... - Protetora: o direito é aqui chamado a institucionalizar formalmente, legitimar e controlar o poder e, consequentemente, a garantir a situação dos particulares que com ele se confrontam. C) Linha descendente: a sociedade é considerada uma entidade atuante, dinâmica, que tem um programa específico que quer atuar (art. 9º CRP) para atingir os objetivos a que se propõe. Esses objetivos podem ser-nos favoráveis mas também podem visar o benefício da própria sociedade: por exemplo, no Direito da Previdência ou Assistência Social somos muitas vezes beneficiários mas também contribuímos com descontos para fundos sociais. O direito aparece aqui como um estatuto de atuação, mas também de limitação. A sociedade vai, portanto, atuar o seu programa mas nos termos em que o direito o permitirá. Ele define os fundamentos e os meios com que a sociedade irá executar o programa. Há margem para discussão política sobre o melhor caminho. Aqui se localiza o Direito Público em geral – e nomeadamente o Direito Constitucional, Administrativo, de Previdência Social e o Direito Público da Economia. Os valores são os da igualdade material e o da solidariedade. Este último impõe uma atuação em termos de desigualdade para se atingir o fim. A igualdade não aparece aqui como critério mas como objetivo, pelo que se tenta, neste âmbito, chegar à igualdade pelo caminho da desigualdade (discriminação positiva). Afirma-se a Justiça Distributiva, que impõe uma atuação de recolha e redistribuição de meios (atribui-se a cada um o que lhe é devido em função dos vários critérios, como o mérito). Aqui também avulta a Justiça Corretiva , principalmente para corrigir “erros” entre as gerações (Justiça Intergeracional). Nota Histórica: o triângulo tem uma geometria variada consoante o modelo de sociedade ou de Estado. As diferentes linhas não apareceram simultaneamente. Só no século XV e XVI é que apareceu o Estado e a ideia de coletividade. Aparece a primeira linha, mas não plenamente. Só com as revoluções constitucionais é que o Estado foi submetido ao direito (segunda linha). O Estado posterior às revoluções era liberal, deixando as pessoas entregues a si próprias, controlando apenas a Ordem Jurídica e impondo os impostos básicos. Durante o século XX, o jogo da livre iniciativa tornou-se prejudicial, passando a ser necessária a intervenção dos Estados. A partir dos anos 60, quando surge o Estado Social, é que se desenvolve um plano coletivo de desenvolvimento que afeta o indivíduo e surge a terceira linha. Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra O modo como as linhas se articulam não é estático. Segundo o outro modelo, o conceito de Direito é como um tronco que se divide em Direito Público e Direito Privado. É importante distinguir porque as regras substantivas de Direito Público são naturalmente diferentes das de Direito Privado; mas também porque os tribunais que fazem valer o Direito Público são diferentes dos de Direito Privado. Existem quatro critérios de distinção: 1) Interesse: assenta na natureza do interesse preponderantemente protegido pela norma. Acontece muitas vezes serem defendidos interesses públicos para proteger os privados. Eles estão ligados havendo normas que distinguem ambos; 2) Posição relativa dos sujeitos: o direito público regulariza as relações entre sujeitos de supra ordenação e sujeitos de posição de infra ordenação. O direito privado estabelece as relações de igualdade entre os sujeitos; 3) Natureza dos sujeitos: as normas de Direito Público regulam uma relação em que uma ou ambas das partes é entidade pública. O Direito Privado regula só entre entidades privadas, mas que se movem no horizonte do Direito Público (ex: concessionárias de obras públicas: o Estado concede alguns dos seus poderes públicos); 4) Qualidade dos sujeitos: são normas de Direito Público as que regulam a relação em que uma (ou ambas) das partes é autoridade pública (tem jus imperium). As do Direito Privado regulam quando as partes não são autoridade pública – é necessário ver em que veste atuam os sujeitos. No âmbito do Direito Privado distinguimos: - Direito Privado Comum/Civil -> regula a conduta dos cidadãos. E foi aos poucos conhecendo alguns desvios, surgindo novos ramos como o Direito Comercial; - Direito das Obrigações -> regula as situações jurídicas pelas quais uma pessoa está vinculada a realizar, em benefício de outra, uma prestação. Diz-se sujeito ativo nas relações o credor que tem o direito de crédito. O sujeito passivo é o devedor; - Direito Real -> regula os poderes diretamente incidentes sobre os bens. Poderes que podem opor a quem quer que seja. O direito máximo que se pode ter sobre alguma coisa é o direito de propriedade (direitos reais amplos: de uso, superfície, posso e usufruto); - Direito da Família -> regula a constituição da família e as relações pessoais e patrimoniais que se desenvolvem no seu seio (eventualmente com terceiros); - Direito das Sucessões -> regula as vicissitudes da sucessão pela morte. Existe a sucessão: voluntária (testamento); legitimada (parte dos bens que passam automaticamente para certas
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra pessoas da família); e legitimarias (os herdeiros são convocados a receber a parte a que têm direito); No âmbito do Direito Público distinguimos: - Direito Constitucional: regula os órgãos de soberania e da vida em comunidade; - Direito Administrativo: compila o conjunto de normas que disciplinam a atividade da administração pública; - Direito Penal: o conjunto de normas jurídicas que ligam certas condutas (crimes) a certas consequências jurídicas específicas. A mais importante é a pena. Esta só pode ser aplicada se houver culpa. Há sanções que se baseiam na perigosidade do agente (medidas de segurança); - Direitos Processuais: conjunto complexo de normas que regulam o processo jurisdicional, atos que são realizados pelos tribunais e pelas pessoas que atuam perante eles, mesmo quando a questão em discussão e de Direito Privado; - Direito Financeiro: regula o direito fiscal, as finanças públicas, o direito tributário, etc. Quando nos referimos à estrutura e à organização do material jurídico há que levar em conta a complexidade de cada situação, daí não ser tão linear a distinção entre Direito Público e Direito Privado.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 3ª Lição: Funções da Ordem Jurídica Função Prescritiva (Primária): a Ordem Jurídica prescreve critérios à nossa ação. Dirige-nos certos modelos de comportamento e, no âmbito desta função, apresenta-se como princípio de ação e critério de sanção. É um princípio de ação porque define prescritivamente os direitos subjetivos e as responsabilidades ao mesmo tempo que avalia judicativamente os nossos comportamentos. Estas prescrições e juízos definem um princípio de ação porque através deles a ordem jurídica visa influenciar e direcionar o nosso comportamento, levando-nos a agir de modo lícito. Mas a Ordem Jurídica não é só princípio de ação ou não seria possível distinguir o seu carácter normativo de outros como, por exemplo, da moral. Critérios de distinção entre direito e moral: 1) C. do mínimo ético -> as conceções morais das pessoas são diversas mas há um núcleo mínimo de valores que definem um comportamento comum e que o direito defende; 2) C. da exterioridade (Kant): o direito contenta-se com a observância exterior constatável das normas, pouco lhe interessando que a pessoa cumpra a norma porque sabe do seu valor e limita-se a observá-lo. Já a moral exige uma ligação íntima ao valor que dita. Reclama das pessoas uma ação convicta – convicção de que se deve atuar de determinada maneira. Contudo, há áreas do direito (ex: direito penal) em que se dá importância à forma como as pessoas cumprem ou não as normas; 3) C. de heteronomia: as normas morais, sendo ditadas pela consciência de cada um a si mesmo, são a expressão da autonomia. Ao passo que o direito representa um conjunto de normas ditadas pelo exterior; 4) C. da sancionabilidade do direito: é o que permite distinguir da moral. As normas jurídicas são sancionáveis. Sancionabilidade é todo o meio que a Ordem Jurídica segue/mobiliza para fazer valer as suas prescrições. O que não acontece com a moral. O direito é sancionável e a moral não porque o direito repousa no seu carácter societário. A situação e o comportamento de cada um condiciona sempre a situação e a conduta do outro. Não existimos isolados e, por isso, vivemos sempre em reciprocidade. É no domínio desta relação intersubjetiva que surgem pretensões de ação e de omissão entre as pessoas. Para desfrutarmos do mundo exige-se sempre alguma prestação ou que os outros abdiquem de fazer algo. Sanção tanto pode ser negativa como positiva. Em termos de sanção positiva, pense-se nos diversos subsídios e isenções fiscais, nas bolsas de estudo. Por seu turno, as sanções negativas normalmente são posteriores a um determinado facto (infringe norma do código da estrada -> paga multa), mas também podem ser de carácter cautelar. Uma sanção impõe sempre algo de desagradável a quem as sofre. Nem todas as sanções negativas envolvem o
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra recurso à força ou constrição física (coação). O direito mobiliza diferentes meios sancionatórios -> sanção e coação não se confundem. Função Organizatória (Secundária): a Ordem Jurídica vira-se para si mesma para se autoorganizar. Sendo uma criação humana, e uma vez que o Homem é um ser dispersivo, a Ordem Jurídica correria o risco de se desagregar e deixar a sua principal função: organizar. É por mediação desta função que a Ordem Jurídica logra manter-se ordenada e coesa. Existem três momentos fundamentais:
M. da unidade sistemática: a Ordem Jurídica só se ordena se conseguir garantir a unidade e coerência das suas prescrições e, para isso, tem de estabelecer critérios que solucionem os problemas. A Ordem Jurídica é composta por uma multiplicidade de elementos. Há uma necessidade de esta se organizar para que não existam antinomias entre normas e critérios. Por outro lado, o direito está na história e no tempo, as normas vão-se modificando e os critérios a que se aludem podem não coincidir com a sucessão das relações que são chamadas a regular;
M. de desenvolvimento constitutivo: os problemas vão-se alterando e sucedendo no tempo, tal como a história se vai modificando. O direito tem de acompanhar inevitavelmente a realidade social e todas as suas mutações. Assim, também a Ordem Jurídica, como entidade histórica que é, tem de ser esforçar para se reconstruir, mas tem de garantir a possibilidade e a segurança das suas prescrições – não pode ser totalmente aberta. Tem de encontrar um equilíbrio entre a abertura, a segurança e a estabilidade. Ao tentar resolver a dialética, está em permanente desenvolvimento. Não é algo de constituído mas de constituendo;
M. de realização orgânico-processual: diz respeito aos órgãos da Ordem Jurídica e ao processo pelo qual ela se realiza. Cria órgãos chamados a desempenhar determinadas funções, os quais são dotados de uma certa competência e de um certo estatuto. Surge o processo: conjunto de atos ordenados com vista à realização de certos objetivos. Ou seja, racionaliza a ação dos órgãos, controlando-as; define as posições relativas do tribunal e das partes e diz quando e como se deve resolver a questão.
A Ordem Jurídica tem que estabilizar a sua dinâmica pois só assim garantirá a sua subsistência – e é precisamente a este dilema que visa dar resposta a função secundária da Ordem Jurídica. Se a função primária é a mais visível por ser a que mais diretamente nos toca, a secundária é bem mais importante uma vez que é por meio desta que a Ordem Jurídica logra subsistir como ordem. A Ordem Jurídica terá que encontrar um ponto de equilíbrio para a dialética entre subsistência e mutações.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 4.ª Lição: Notas Caracterizadoras da Ordem Jurídica a) É uma ordem (é um todo ordenado, um cosmos cultural. A Ordem Jurídica quer transformar o caos num cosmos – esforço de ordenação. Traduz um esforço cultural do Homem para compensar o seu carácter onto-geneticamente deficiente. O Homem é um ser inacabado, só está parcialmente ordenado. Os demais animais têm um código genético que os programa para agir de determinada maneira – o instinto. O instinto existe no Homem, mas condicionado e não determinado). b) Carácter Comunitário (a Ordem Jurídica traduz o empenho do Homem destinado a possibilitar a instauração de uma convivência. Visa assegurar uma integração de todos os indivíduos numa comunidade, pois representa uma instância de controlo da vida em comum. Define desde logo o comum normativo de uma comunidade concreta. Mas é sobretudo referida a valores que moralmente a fundamentam que a Ordem Jurídica aparece como um autêntico integrante comunitário, pois são os mesmos valores comungados pelos membros da comunidade concreta em causa). c) A Ordem Jurídica tem uma índole objetiva : a. Autárquica ou autossubsistência institucional (enquanto instituição a Ordem Jurídica subsiste apoiada nas suas próprias forças. No plano imediato aparece como um objeto institucional); b. Intencional ou dogmática (a nível do conteúdo. Na verdade, todo o universo prático-cultural (Direito incluído) tem referentes que postulam, que são pontos de partida para as ações-decisões que o entretecem. Sem eles, não existiria opção). A prática tem portanto pressupostos dogmáticos. O que se compreende visto que o Homem vive inserido numa tradição cultural. Toda a cultura pressupõe dogmas porque em todas as culturas é vinculado um conjunto de referentes que nos dão orientações para as nossas escolhas. Tal como na cultura, o dogma tem um peso importante no Direito. Os juízes estão incumbidos de definir e decidir casos e não podem ficar indefinidamente a decidir como vão aceitar um determinado dogma. O direito tem uma dogmaticidade inerente porque se apresenta, no seu carácter normativo, inerente à crítica. d) Autoridade (tem autoridade quem julga o caso, aquele a quem reconhecemos competência: o genuíno autor. O direito tende a dogmatizar pressupondo uma decisão que por sua vez pressupõe a necessidade de autoridade para a declarar. É pois em virtude da inevitável dimensão dogmático-decisória do Direito que nele se manifesta a autoridade de um poder).
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 5.ª Lição: Efeitos da Ordem Jurídica São o resultado das notas caracterizadoras.
Racionalização (a articulação horizontal de fatores diversos numa certa conexão unitária que, no limite, se nos apresenta como um sistema. O Homem invoca a razão sempre que não se conforma com os fenómenos tal como eles se apresentam. Procura enquadrar os factos desordenados num contexto, procurando situá-lo num quadro que lhe confira sentido) Existem três tipos de racionalidade: o
o
o
R. Finalista: estamos perante esta quando a ordem que se pretende é determinada pelo fim pragmático que se pretende atingir. Pensamos em termos de meio para fim, sendo que o dá sentido à nossa ação é o fim que pretendemos atingir. É a racionalidade estratégica aquela que nos fornece meios que permitem atingir os fins do modo mais eficaz possível; R. Axiológica: é no modelo de fundamentação que as ações são referidas e, por isso, avaliadas/aferidas ante determinados comportamentos. Os fundamentos é que conferem um certo sentido; temos a relação fundamento ou consequência numa perspetiva de validade; R. Sistemática: tem por objeto a articulação dos diversos comportamentos em termos meramente funcionais com o propósito de reduzir os efeitos desagregadores resultantes da multiplicidade de planos em que esses comportamentos se apresentem.
A racionalidade preponderante no domínio jurídico tende para a axiologia. Institucionalização (a Ordem Jurídica tem um efeito institucionalizador porque define padrões de comportamentos subsistentes com sentidos e valores simbólicos. O Homem precisa de instituições pois é atirado para a vida quase desarmado, não estando dotado para atuar de modo determinado: tem de ser autor de si mesmo) As instituições permitem que não partamos do nada, oferecem-nos bases de atuação e conceção do mundo. Desoneram o Homem do esforço exigido pelo exercício da liberdade. As instituições vão-se modificando, evoluindo à medida das pessoas. São a concretização de uma cultura, permitem desde logo articular a nossa sociedade. Traduzem o equilíbrio entre a liberdade individual e a comunidade. Esta é para o Homem uma condição de humanização. Mesmo o que somos onto-geneticamente é através da comunidade que o alcançamos. Mas, por outro lado, o Homem afasta-se da comunidade a que pertence, individualiza-se. Surge uma dialética que é resolvida na medida em que as instituições conseguem integrar a comunidade e as suas liberdades humanas. Para que não se institucionalize demais, esta deixa um espaço para a individualidade (liberdade). A Ordem Jurídica está sujeita à crítica e à reflexão, pretende equilibrar a liberdade com a comunidade. E faz isto porque tem o efeito de racionalização institucionalizadora nos
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra comportamentos sociais, de maneira a garantir o mínimo de liberdade a cada um. Daí na sociedade existirem vários papéis e estatutos. Mas a vida social, embora institucionalizadora, deixa sempre espaço para a liberdade.
Segurança (a Ordem Jurídica garante a segurança pois, estando no seu seio sabemos quais são os efeitos dos nossos atos juridicamente relevantes (e dos atos dos outros). Ao mesmo tempo que se sabe o que se pode esperar dos comportamentos jurídicos relevantes dos outros. Esta previsibilidade permite programar a nossa vida, sendo este fator de segurança de tal forma importante que alguns o consideram o valor nuclear do direito)
Liberdade (não existe liberdade absoluta. Tem que se aceitar limitar a liberdade porque se o outro que convive não vê um limite na sua ação ficamos permanentemente sujeitos ao seu arbítrio. Para que isso não aconteça temos que nos submeter a certas regras e definir concertadamente o que é lícito e o que é ilícito. A regra é sempre uma civilização. Há sempre uma compreensão da liberdade, contudo visa defender a própria liberdade) O que se pretende é definir regras que nos garantam perante os outros e os outros perante nós, uma certa liberdade evitando o comportamento arbitrário, sem regra.
Paz (o direito define: um conjunto de normas que nos integra; quais os meios para o cumprimento dessas normas e quais os órgãos que vão defender a aplicação dessas normas. O direito impede o exercício privado da força para a aplicação do direito, defendendo os órgãos estaduais e a incumbência de fazer valer o direito, mas submetendo-o a regras processuais, limitando o poder estatal e a relação com os outros) A Ordem Jurídica resolve os conflitos jurídicos entre as pessoas, contribuindo para a paz social. Contudo, tem que se ir além da paz, a paz não pode ser apenas a negação de violência. Há um sentido positivo da paz que só advém através da justiça. A paz que se pretende alcançar é a que provem da justiça e só assim será uma realidade. A paz é uma obra da justiça. A paz, à semelhança da justiça, articula a Ordem Jurídica, sendo que esta deve prosseguir o ideal da paz, apesar de nunca ser totalmente alcançado. A Ordem Jurídica substitui a força e a violência pela razão. Em arena processual é reproduzido o conflito – só que aí não se trocam agressões mas sim argumentos. O direito será tanto mais eficaz quanto mais prevenir (em vez de se limitar a resolver) os conflitos. O societariamente mais relevante efeito da Ordem Jurídica é, portanto, o da prevenção de conflitos: e quando isso acontece nem sequer nos apercebemos da existência do Direito – assimilámo-lo, pautámo-nos naturalmente por esse princípio de ação e concluímos que a Ordem Jurídica é um importante fator de paz.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 6ª Lição: Sentido do Direito A Ordem Jurídica é necessária para haver direito, mas não é suficiente, desde logo porque há outras ordens sociais que também têm estrutura, características e funções, etc., mas que não qualificamos de jurídicas. Compreender o sentido do Direito não é imediatamente fácil porque um sentido não é um objeto que se possa apreender. Através dos sentidos, é uma intenção que reflexivamente se compreende. A maneira de se compreender o sentido de algo é sempre em relação a um sujeito, há sempre uma participação naquilo que se está a observar (com base na adesão ou na recusa). Portanto, não nos podemos ficar pela exterioridade do fenómeno da Ordem Jurídica para compreendermos o sentido do direito. Não basta a mera referência à ordem em que o direito objetivamente se integra, mesmo que relevemos os respetivos efeitos imediatos. O apuramento do sentido traduz a compreensão de um fenómeno na sua interioridade, a qual só pode ser compreendida por outra interioridade – compreender sentidos é, por isso, estabelecer um diálogo connosco e com os outros sobre as coisas. A Ordem Jurídica revela uma insuficiência objetiva e normativa: objetiva porque há ordens que não são jurídicas, não basta falar de ordens. Há uma ordem normativa que deve ser compreendida. A Ordem Jurídica não basta por si só para nos desvelar o direito. É que há ordens sociais que provocam não a nossa adesão, mas a nossa repulsa (p. ex. a máfia). - Estadualidade e Juridicidade a) O Estado e o Direito não se identificam nem histórico-culturalmente, nem intencionalmaterialmente. Histórico-culturalmente, o Estado surgiu com o Renascimento. Primeiro houve o Estado Absoluto (todos os poderes reunidos nas mãos do monarca). Com as revoluções liberais, passa a ser o povo o titular do poder (soberania popular). Contudo, se é um facto que o Estado ocupa em relação ao direito um importante lugar, é certo que há muitos sinais que relativizam essa posição. A estadualidade não é característica necessária nem suficiente da juridicidade de uma ordem socialmente reguladora. A coincidência histórica entre estadualidade e juridicidade é acidental e não essencial. O Direito e o Estado não se identificam; a ordem de direito não é exclusivamente criada pelo estado; e o poder político que o Estado titula não é o fundamento da Ordem Jurídica, sendo a juridicidade que fundamenta materialmente a estadualidade. O direito-lei (legislação) é a vontade prescritiva do poder do Estado, o soberano prescreve o Direito. Estado e Direito também não se identificam material ou intencionalmente: a. Estado é uma organização de poder, remete para a política; o direito é uma ordem normativa que nos remete para um sistema de princípios que afirma uma validade; b. O Estado visa fins, mobiliza o poder (para atingir certos fins como o desenvolvimento económico) e pretende atingir à eficácia; já o Direito baseia-
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra se em valores, atua com normatividade e procura a validade. Ao contrário do Direito, o Estado não prescinde da coatividade; c. A racionalidade do Estado é de meio-fim, estratégica; mas a do Direito é a axiológica referida a valores – uma solução jurídica é válida porque está de acordo com certos valores e não porque pretende atingir um certo fim). b) A Ordem Jurídica não é só criada pelo Estado, nem todo o Direito que existe é de imediata constituição estadual; nem todos os sistemas jurídicos são sistemas de legislação (os precedentes são criados pelo tribunal, não pelo legislador); existem ainda outros sistemas em que o legislador não é o criador exclusivo da juridicidade, há outros modos de constituição do direito para além da lei (jurisprudência, costumes...); c) O poder político de que o Estado é titular não é o fundamento da juridicidade (o direito é que legitima o poder). O direito não é só direito por ter sido criado pelo Estado; o Estado é diferente de direito; estadualidade é diferente de juridicidade. O direito é direito porque provém do titular que governa o Estado; o fundamento do poder não pode ser o próprio poder, não é o direito que se precisa de fundamentar no direito, mas sim o poder. O Estado de Direito é aquele em que o poder está submetido à juridicidade. O que dá sentido jurídico (de direito) à Ordem Jurídica é uma dimensão normativa porque o Direito refere-nos a uma normatividade, a um dever cívico; assim a perspetiva normativa é a privilegiada para compreender o Direito (o Jurista tem de resolver problemas concretos). Para que um jurista possa projetar o direito na sua realidade, primeiro tem de a compreender. A normatividade do direito tem três dimensões fundamentais: 1) D. Normativa imanente, normativamente substantivada e sustentadora da vigência (a ordem de direito assimila certos valores e isso é que lhe dá conteúdo, interioridade. São esses valores que sustentam a vigência, porque a Ordem Jurídica é constituída por critérios e prescrições que levam imanentes certos valores no seu conteúdo. Os critérios da Ordem Jurídica valem porque se fundam em certos valores; é uma normatividade real com base na qual se solucionam problemas; o direito só vigora se for adequado e conforme os valores (tem de ter eficácia e validade); o direito é um dever-ser) As regras que constituem e densificam materialmente a ordem de direito baseiam-se em certos valores. Mas se limitássemos o direito a meros referentes axiológicos, correríamos o risco de o tornar num objeto fechado. O direito é um sendo, a realidade e os valores não são estanques. Há problemas sempre a surgir. Os valores em que o Direito assenta vão mudando ao longo do tempo. 2) D. Intencional transpositiva e reguladora (o direito como normatividade não pode ser apenas baseado nos valores. Ele é sempre um apelo a algo mais. O direito só no facto de se ultrapassar a si mesmo é que pode ser compreendido. Princípios como o da justiça e o da igualdade não são princípios acabados na sua normatividade, transcendem sempre as regras que os sustentam) Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra O direito é uma intenção, uma ideia regulativa, os próprios valores que o constituem também não são estáticos, não são sempre os mesmos. O direito está em constante constituição, é uma ordem ordenante e não ordenada, é um sendo, vai sendo; se o direito fosse só uma normatividade imanente ele estaria fechado, mas o direito é sempre mais do que aquilo que dele vai sendo concretizado nas normas; é um apelo à permanente constituição do direito; este não é só um objeto: é um projeto humano porque projeta permanentemente e é uma expressão material do dever ser. Sendo um dever ser ele transcende sempre o direito que já é. 3) D. Axiológica última fundamentante da validade do direito enquanto direito (a cultura europeia autonomizou o direito. E fê-lo porque os Homens se reconhecem uns aos outros como pessoas, sujeitos com uma inviolável dignidade ética e autonomia. Em consequência, na nossa cultura, cada homem exige o fundamento daquilo que o outro dele reclama e vice-versa. O Homem Europeu autonomizou o Direito reconhecendo-se a si e ao outro como um sujeito ético, como uma troca de razões devidas a quem assim se responsabiliza e se pessoaliza, projetando-se esta auto e hetero predicação axiológica num autêntico diálogo de validades) Assumindo os valores como sentidos universais, vemos também os interesses como fonte de conflitos. Sendo a dignidade ética de um Homem um valor, o que se disse significa que não é só um de nós que a titula, mas qualquer um. Em contrapartida, os interesses dividem-nos e é por isso que só conseguiremos atuar instituindo um poder. Com efeito, a normatividade traduz a exigência de uma axiologia que empreste validade à prática. Mas numa sociedade estrategicamente organizada, o Homem não é pessoa, surgindo como um elemento fungível. Justamente por uma pessoa ter valor nunca é insignificante. Logo, numa sociedade tecnicamente pré-ordenada à eficiência, tem sentido eliminar os ineficientes; mas numa comunidade constituída também por uma dimensão ética em que os homens se reconheçam uns aos outros como pessoas, já não se pode pensar assim. Para que um Homem seja uma pessoa é preciso que lhe seja associada uma verdade. A nossa cultura assenta na ideia do que deve ser o Homem. Se se quiser encontrar um fundamento para a validade do direito podemos encontrá-lo no valor último, na ideia de pessoa. Os valores que no tempo não são absolutos não estão à disposição do que chega ao poder. Estes valores exigem o ideal de pessoa humana. a) A solução positivista defende a procura da norma superior que valida todas as outras; b) A solução jusnaturalista encontra a solução na própria natureza das coisas. Está inscrito nas suas coisas o seu fim, a sua constituição que se justificam por si só; c) Teoria da auto transcendentalidade: em cada época histórica a maneira como o Homem se compreende projeta-se no direito.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 7ª Lição: Direito e Sociedade A sociedade é o campo onde o direito opera. Sociedade é a realidade da convivência enquanto se traduz na multiplicidade e conjunto das interações humanamente significativas que se oferece aos membros participantes em termos de uma particular e objetiva autonomia e na qual eles, quer através de formas comuns de convivências, quer através de fins ou intenções gerais, se encontram conexionados mediante uma realidade unitária que lhes é comum. Será a sociedade a mera soma dos indivíduos ou será um todo em si? As próprias características do Homem levam a esta problemática. A dialética entre a comunidade e a individualidade, como será solucionada pela sociedade? A Sociologia dá respostas que visam solucionar esta problemática. A sociedade é uma estruturação integrante da nossa coexistência. É um modo de nós sermos uns com os outros, por isso, podemos considerá-la a teia objetivante das nossas relações. Nós somos a única realidade da sociedade, somos a sua matéria. Para estudar esta coexistência surgem duas perspetivas: a) Perspetiva individualista (Max Weber): parte da ação individual e através dela dá sentido ao todo, de modo que a análise fundamental é a forma da ação individual. Para analisar a sociedade parte das trocas de sentido e das intenções entre as pessoas. O todo social constitui-se por diversas formas de socialização que podem ser: a. Mecânicas: os indivíduos associam-se atendendo ao que têm em comum, articulando então os seus esforços para realizar uma tarefa comum ou de interesse comum; b. Orgânicas (por diferenciação): quando se recorre à diferenciação e complementaridade (origem de recíprocas dependências entre todos, que assim se tornam interdependentes). b) Perspetiva do sistema (Parsons e Luhmann): aborda-se a sociedade a partir das estruturas e as funções que elas desempenham e que dela fazem parte. Há autores que partem da estrutura, outros partem das funções para perceber a estrutura: a. Parsons combina as duas: diz que a sociedade é um conjunto de instituições com estruturas que permitem a realização de determinadas funções sociais. As instituições estão ligadas aos padrões de comportamento; b. Luhmann defende que o sistema social não é mais do que a coerência funcional de fatores diversos. A sociedade é uma resposta à complexidade do mundo, tentando reduzi-la. Complexidade gerada pela grande variedade de relações que estabelecemos entre todos; c. Pinto Bronze propõe uma síntese reflexiva entre as duas. Que dê por um lado a individualidade humana e por outro os aspetos institucionais comunitários.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra O modo de vida e os sistemas não são diferentes. Revelam-se consoante a forma como vemos a sociedade. Defende que o sistema não pode dominar a vida das pessoas mas, por outro lado, a sistematização acaba também por ser necessária. As categorias fundamentais da nossa função da sociedade são o estatuto e papel: cada um de nós está na sociedade com diversos estatutos e desempenha determinados papéis. O papel social é a atuação específica resultante de um determinado estatuto. A tensão que se manifesta no indivíduo coletivo é agravada por sermos indivíduos de conflito e consenso, fatores importantes constitutivos da sociedade. A sociedade abre-se no conflito, o que faz com que ela se modifique. É sempre entendida por segmentos de unidade e diversidade, semelhança e diferença, coesão e atrito, atração e repulsão, permanência e mudança. Os valores materialmente densificantes de uma determinada sociedade, identificam o consenso comunitário e funcionam como fator de coesão social e elemento fundamental e fundamentante da integração comunitária. Atualmente há tendência para o antagonismo. O consenso e o dissenso aparecem-nos como complementares vetores nuclearmente constitutivos de uma sociedade: é por mediação do antagonismo que ela se abre à mudança e á evolução histórica. E é em virtude deste equilíbrio instável entre ambos - e da dialética daí resultante – que se acentua a complementaridade do modelo de equilíbrio e do modelo de conflito no processo de compreensão da sociedade. Só há conflito porque há comunidade. Cada conflito contribui para enriquecer a normatividade: identifica mais uma experiência que concorre com novas dimensões para a redensificação do Código Civil. O direito é o tecido conjuntivo e o regulador normativo das relações sociais. E o direito aparece-nos assim quer entendamos a sociedade como consenso, quer como dissenso. É, pois, o subsistema que a sociedade mobiliza para conseguir uma suficientemente harmónica integração das várias afirmações individuais no contexto comunitário. Mas o Direito não consegue eliminar todos os conflitos. Os elementos materiais da sociedade são: 1) Interesses (identificam a dimensão económica. Designam a nossa relação com o mundo. O interesse é aquilo que está entre nós e as coisas e os que nos liga ao mundo. Falamos de interesses quando queremos falar em satisfação das nossas necessidades com os meios que o mundo nos proporciona) O Homem é finito no tempo e o Mundo finito nos recursos. O que explica a necessidade de tomar decisões. A Economia é a disciplina que estuda as escolhas ótimas civilizadoras para a satisfação dos interesses das pessoas. Os interesses, definindo a relação que temos com o Mundo, identificam a relação que a economia tem com a sociedade; 2) Poder (define a dimensão política. A política designa a organização estratégica da sociedade para que ela se afirme como tal. Ao pensar na sociedade como um todo, é através da política que ela define os fins que quer atingir e as estratégias para os atingir. O poder é a institucionalização dessa política na sociedade); 3) Valores (exprimem a dimensão axiológica- cultural da sociedade. São os reflexos da significação de uma certa validade. Os modos de agir, de pensar de uma certa sociedade têm que ver com uma certa referência dada pelos valores que emprestam sentido e significado, a Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra ação pressupõe sempre uma fundamentação – e estes fundamentos são-nos dados pela nossa cultura). Qual é o papel do direito face a estes elementos materiais? O direito é um critério sobre os interesses, num quadro de um poder que também critica mobilizando, para o efeito, os valores. O direito é um sintetizador seletivo a propósito de todos estes elementos.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 8ª Lição: Direito Função na Sociedade O direito tem uma intenção própria que o distingue da economia, da cultura, da política, dos valores, culturais da sociedade. Há três teses possibilistas da sociedade: 1ª: Redução do Direito ao Económico (economicismo na conceção do direito. O Direito é uma expressão normativa das relações económicas. É a normação do económico. As teses do marxismo originário defendem que cada época histórica é determinada pelos modos de produção dominante, cada sociedade é marcada pelas relações económicas. O Direito não tem autonomia sobre a economia, pertence a uma estrutura gerada pela produção. Contudo, o direito detém uma autonomia sobre a esfera económica pois usamos o direito para julgar uma proposta/atividade económica. O Direito tem uma intencionalidade distinta: A racionalidade da economia é uma racionalidade meio-fim; a racionalidade jurídica procura uma fundamentação que justifique a decisão de um caso, que a valide. Por isso, na economia, impera o princípio da utilidade e no direito vale o princípio da justiça. Na economia há uma relação sujeito-objeto, já no direito está presente uma relação sujeito-sujeito, relação de comunicação. Na economia é referida a eficiência, no direito a validade) 2ª: Direito como normação da vontade política (a política deriva da polis que, em grego, significa tudo que se refere à cidade. Castanheira Neves reduz o equívoco, pois a polis não se deve identificar com o que se sabe de política mas remete sim para o político: o político é a dimensão integrante das significações humanas da ação. A política atualmente nutre-se dos valores fundamentais da comunidade, só que falamos de política num sentido diferente: é uma estratégia que visa o domínio. Num contexto político pode haver várias políticas. Todas se valem de valores de uma sociedade concreta. Agora, cada partido se propõe estratégias diferentes, uma diferente política, para atingir certos fins. O direito pode ser preferido ao político mas não se pode reduzir à política. Não pode servir para a implementação de uma determinada política. O direito está relacionado com a política porque ambos se referem aos mesmos valores, mas em dimensões diferentes) Nota Histórica: esta tese só se consuma na Idade Moderna com a emergência do Estado. A política só se autonomizou quando se separou da ética, da religião e do Direito. Até à Idade Moderna, o Direito integrava um todo indistinto. Incluía momentos de índole religiosa, ética e jurídica. Aparece então uma nova versão do Direito com ditados dessa nova pessoa jurídica que é o Estado. A legislação surge como vontade do Estado. A origem da identificação entre Direito e Estado mostra o quão relativa ela é. Segundo a tese de Hegel, o direito não é mais do que a vontade da instância politicamente soberana: - No estado absoluto, o direito era a expressão da vontade do titular do poder político (o soberano); - No estado demoliberal, o titular do poder do político era a Assembleia Representativa sendo esta que definia o Direito através da legislação; - No estado social, a sociedade política retrai-se, sendo substituída pela sociedade económica. Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Críticas a esta redução: a) Em perspetiva institucional, analisando as relações que sucedem entre poder e direito: o Estado que atua em determinado poder tem que legitimar esse poder. A justificação do poder tem que legitimar esse poder. A justificação do poder está para além do poder, o poder não fundamenta o poder. Procura-se algo que valide esse poder e o seu exercício. Hoje em dia a legitimação a que fazem apelo é de carácter democrático. É-lhe radicado no político. A democracia é uma expressão de certos valores fundamentais que nos permitem reconhecer uns aos outros como pessoas. É por isso que a democracia se identifica com a expressão da minoria. A fundamentação última da democracia está no direito, nos valores últimos em que ele se baseia. A democracia vale como instrumento de defesa dos valores em que o direito também se baseia. O poder tem que respeitar certos valores para ser legítimo. A normatividade jurídica precisa do poder para se exercer como o poder precisa da norma para se legitimar. O próprio conteúdo do poder tem que se mostrar conforme aos valores que dão substância. Ao direito, o conteúdo material do poder codetermina a sua legitimidade. A normatividade jurídica é o fundamento material do poder. Ela dá orientação se distinguirmos a racionalidade e a intencionalidade do Direito das da política. b) Em perspetiva intencional, destacamos a intencionalidade específica do jurídico e a do político: a política é uma estratégia para alcançar determinados fins. O direito tem uma intenção de validade e o político de eficácia. Durante a modernidade o direito identificou-se com lei, considerada a expressão da vontade geral. Só que a fé na lei esmoreceu, assistindo-se à crescente instrumentalização da lei à realização de desígnios políticos. Atualmente, revela-se o poder mas não deixa de ser lhe opor limites. O Estado de Direito é uma limitação do poder em nome do Direito (das exigências predicativas da dignidade ética que nos reconhecemos) – é uma tentativa de resolver a tensão entre o poder e as validades. Fala-se em Estado de Direito Material porque se afirmam valores jurídicos que estão acima da própria legalidade. A juridicidade é, portanto, o fundamento material do poder. O direito só se identifica com a política se os homens quiserem. O Direito distingue-se da legislação, logo não se pode pensar com sentido uma redução linear do Direito à Política. 3ª: Redução do Direito à Cultura (o direito assimila valores, sendo diferenciadamente condicionado com os problemas concretos como situações de conflitos, novidades históricas ou quando algo não corresponde às expectativas. Esta redução ignora a problemática do Direito. O Direito só existe se solucionar os problemas. As conceções do Direito que confundiram o Direito com a Cultura (ex: teoria jusnaturalista) esquecem a historicidade, humanidade e juridicidade do Direito, situando-o apenas no plano das ideias, sendo indiferente se se concretiza ou não. Humanização: o direito é uma tarefa humana porque tem que ver com a liberdade com que ele vai guiar os valores pelos quais regula a ação. O Direito embora não seja alheio a valores (pois é neles que afinal radica a sua dimensão de validade) não se reduz a eles: o Direito, para se afirmar autenticamente como tal, tem que ser eficaz pois só assim será vigente) Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 9.ª Lição: Sociedade Função do Direito Condições que permitem a emergência do direito enquanto Direito: 1) C. mundano-social: traduz-se numa evidência empírica: o mundo é só um e nós somos muitos, tendo que se organizar o acesso das pessoas ao mundo. Isto é um problema porque os outros podem ser um obstáculo ao nosso acesso ao mundo. É necessária então uma ordenação de repartição do mundo mas não só; 2) C. antropológico-existencial: tendo em atenção as características do Homem, ele precisa de uma ordenação que garanta que pode ser um indivíduo no seio da comunidade, porque não vive isolado. O que está em causa no domínio do direito é a repartição do mundo e o que nos garante o equilíbrio entre a comunidade e o indivíduo. Por um lado, estas duas condições identificam os dois problemas que estão na origem do Direito. São necessárias, mas não exigem que a ordem seja necessariamente jurídica: é preciso uma terceira condição...
3) C. ética: é a condição decisiva para que se responda ao problema do Direito e para isso é preciso que os homens a queiram. A condição ética exprime um compromisso humano e civilizacional porque a organização da repartição do mundo e da integração só será jurídica quando for fundada nos valores que exprimem a auto compreensão de nós mesmos. Esta condição só é possível se o homem quiser organizar a sua vida em comum e a repartição do mundo com base em valores que respeitem a pessoa humana. Não é opção recorrer ao poder e à força! Quais são então as funções que o Direito desempenha? - Na época clássica (idade pré-moderna), o direito tinha uma função legitimante com uma intenção declarativa de uma ordem natural pressuposta. Porque o Homem se encontrava inserido num todo ordenado. A natureza das coisas pressupõe uma ordem intrínseca. O direito explicitava a ordem já inserida nas coisas. O Homem nascia com determinado fim, tal como a natureza tinha as suas funções e o direito limitava-se a ponderar sobre isso. O direito declarava a ordem já pressuposta; - Na idade moderna, existe uma rutura com a ordem pressuposta. O Homem (Revolucionário) quer criar o mundo a partir do zero, quer planificar a vida para o futuro. O papel do Direito vai ser a função constituinte de legitimar. O Homem absolutizou a sua liberdade racional. O contratualismo apareceu como o esquema paradigmático desta autonomia: o contrato era o único vínculo que os próprios sujeitos constituíam. A ordem político-jurídica era produto da deliberação do próprio Homem. O Direito já constitua autenticamente (não se limitando a declarar) uma ordem e fazia-o para instituir uma legalidade universal articulante das liberdades. - Atualmente, a função do direito é de validade axiológica normativa e crítica num determinado sistema político-jurídico. Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Função (Negativa) Integrante - existe porque o direito possibilita a nossa vida em comum. O direito consegue-nos fazer convergir. Tarefa importante porque já não se pode confiar nas sociedades e no cimento social que garantia que as pessoas agissem da mesma maneira. As sociedades já não são homogéneas a nível de valores, crenças, religiões, etc. À medida que os cimentos sociais se diluíram foi transferido para o direito esse domínio de integração. O direito ainda consegue distinguir o que é válido e inválido, lícito ou ilícito, justo ou injusto, compensado o mundo da falta daqueles referentes. Cumpre as seguintes funções:
1) Subfunção de tutela de valores: o direito protege, tutela valores fundamentais para o domínio da relação social entre as pessoas; 2) Subfunção de resolução de conflitos de interesses: por um lado, integra-nos porque resolve os conflitos de interesses que podem surgir entre as pessoas; por outro, distingue o “meu” do “teu”. Regula a repartição do Mundo, o que é devido a quem. E sanciona negativamente quem transgride essa ordenação; 3) Subfunção de Garantia: o direito, em nome dos valores, limita também o próprio poder. Estabelece em que meio é que o poder deve garantir esses valores. Estas subfunções conexionam-se na medida em que concorrem para possibilitar a convivência humana (não obstante a pluralidade das mundividências que socialmente se afirmam). E elas integram-nos porque nos dão segurança. A função integrante tem um carácter negativo: proíbe e sanciona a transgressão. Para proteger certos valores, o direito sanciona; ao resolver os conflitos de interesses, o direito impede a perturbação do espaço de fruição de cada um por outros. Prevê os critérios de repartição do mundo e sanciona quem os quebra; ao regular o exercício do poder, limita-o; ao consagrar o princípio da legalidade da incriminação limita a legitimidade punitiva do poder. Função Positiva - a assimilação pelo direito dos referentes de validade (valores da vida, liberdade, igualdade, validade dos meios para se atingirem os fins) é que faz com que ele desempenhe uma função materialmente positiva na realidade social. O sentido positivo do Direito está na afirmação que ele faz desses valores, empenhando-se em realizá-los na comunidade. No nosso hemisfério cultural, esses valores estão hoje consagrados nas constituições.
- Momento relativo constitutivo: sabemos que o Direito é o último ponto de apoio em que todos nos podemos apoiar. Ora, quando o Direito se objetiva, torna-se um critério positivo para a resolução dos problemas. Mas antes de se objetivar, é já um apelo, um horizonte de sentido, um regulativo intencionado, não é apenas um conjunto de normas. Por ser um dever, transcende o que é em cada momento. Por isso a própria ideia de direito, valores e fundamentos, regulam o que o direito vai sendo: é um constituendo reconstituído pelas próprias ideias; - Momento de validade legitimante: o direito transcende a sua realização, está para além do seu próprio projeto. Quando se trata de ajuizar, criticar e legitimar o poder, ou validar as soluções do Direito, recorre-se ao mesmo. Validando-o à luz dos valores constitutivos de direito ainda não concretizado. As três dimensões se repercutem neste momento. Apontamentos de Introdução ao Direito I
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Função de validade - sendo o direito uma instância regulativa então o conjunto de princípios e valores que entretecem essa trans-objectividade funciona como instância de validade e crítica da nossa convivência social e do poder político. O Direito aparece como último critério das validades comunitárias suscetíveis de serem qualificadas como universais. Enquanto ponto de encontro comum que nos ajuda a compreender a própria divergência, o direito desempenha uma autêntica função de instância viabilizadora de uma efetiva comunicação intersubjectivamente significativa. É uma verdadeira instância crítica! Apesar de não dispor da força das armas, nem por isso deixa de conseguir, através dos seus princípios, assumir-se como a má consciência do poder.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 10ª Lição: Os Fatores Determinantes do Positivismo Jurídico O positivismo jurídico sustenta que o direito é proposto pelo legislador e o jurista deve, de modo científico estudar esse direito como um objeto neutral. O positivismo é marcado por uma divisão clara entre pensamento jurídico e Direito. Pensamento jurídico é a ciência, sendo o direito a técnica. Rompe com as teorias passadas em que havia uma unidade entre pensamento jurídico e direito. Eram os problemas que suscitavam a ponderação sobre o direito. Fator Filosófico-Cultural geral: o pensamento humano cultural moderno, iluminista. Até à modernidade o Homem compreendia-se como um ser que encontrava o seu sentido fora de si. Para perceber o significado da sua existência, das suas ações, o Homem procurava descodificar o sentido do mundo. Ele é um elemento do cosmos. Até aqui assumia-se que o mundo era um cosmos plenamente organizado. E o Homem era apenas uma parte do cosmos. O Homem para se compreender procurava espelhar-se no mundo. A prática humana insere-se nessa reflexão sobre o sentido da ordem do cosmos. Com a modernidade, o Homem tenta perceber-se através de si, remete-se para o sentido da imanência. A razão passa a ser o fundamento do conhecimento e da ação. Só na modernidade é que surge a ideia de que o Homem é um sujeito. Descartes afirma que ao sujeito que pensa se opõe o conjunto das coisas. A ação humana é vista como determinada razão;
Fator Antropológico: o individualismo é um resultado do exagero da autonomia. O Homem vai cortar todas as amarras que o prendiam a entidades supra individuais (ex: a Igreja). Procura encontrar ele mesmo as condutas a partir da sua razão. Só que ao fazê-lo hipertrofia a sua autonomia. Vai ter o quê como referência? Acha-se com a relação mais básica da natureza: o interesse.
Fator Cultural. Marcado pelos:
a) Secularismo moderno: com a modernidade iniciou-se um processo de secularização da sociedade – afirmação dos valores do século. Com a secularização não se nega a metafísica, mas no domínio imanente o Homem é responsável pelo seu destino e não fatalisticamente marcado por um destino ou ser divino. Não há nenhum critério exterior para ajuizar os nossos fins/comportamentos; b) Racionalismo moderno: exagero da racionalidade. A racionalidade pré-moderna era um meio para ler o sentido que as coisas tinham no mundo. Na época moderna, a razão deixa de ser a chave para a compreensão do mundo e passa a fundamento de si própria. Descartes diz que foi distribuindo-se a razão igualmente por todos porque confia na possibilidade de acertar todos o sentido das coisas na razão humana. Exagero do papel da razão como causa em si mesmo. Não se pode apelar ao mundo para se explicar o porque, mas sim utilizar a razão para construir a explicação das coisas.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Foi nesta fase que surgiram esquemas de organização dos quais também a área do Direito surgiu; c) Historicismo: exagero do valor da historicidade. O Renascimento salientou a evolução das conceções. O Homem representa o carácter excessivo pois divide a História por camadas sem aparente ligação entre elas. Fator Social: capitalismo. O pensamento moderno é marcado pela emergência do capitalismo. Quando o Homem se quis libertar das teias de valores, teve que apelar aos interesses para orientar a sua ação. Um a um, o Homem deixa de atuar por valores éticos mas sim baseado nos interesses. Vai ser a exploração ao limite destes interesses que vai estar na origem do capitalismo. Na modernização surge uma disciplina dedicada ao estudo para satisfazer os interesses individuais – a economia.
Fator Político: contratualismo. Até então vivia-se em comunidade, articulando os comportamentos. A partir da modernidade surgem as conceções do Homem como indivíduo que atua para os seus interesses. Esta nova maneira de agir fomentou o nascimento do contrato social: os indivíduos celebravam um contrato social onde estabelecem as regras para estabelecer as liberdades sem prejudicar as liberdades dos outros. Surgem as leis gerais (porque se aplicam a todos), abstratas e formais (porque dizem o âmbito dentro do qual podem agir. O pensamento moderno iluminista traz consigo um novo homem como indivíduo com interesses que se move num mundo intranscendentalizado. Só com base na razão determina os fins. Do ponto de vista económico, preocupa-se com os interesses individuais e a forma mais fácil de atingir determinados objetivos. Na política surge o contratualismo social que defende a liberdade de cada um sem prejudicar a liberdade do outro. O contexto ideológico: as ideologias liberal e democrática. O liberalismo afirma a liberdade preponderantemente à igualdade, a democracia afirma a igualdade com mais ênfase do que a liberdade. A ideologia liberal sobrevaloriza as garantias individuais, não podendo estas ser violadas pelo poder, porque são anteriores à própria instituição das comunidades políticas; esses direitos são manifestações de uma liberdade prévia à vida política que esta deve garantir. Por seu turno, a ideologia democrática acentua a igualdade e a vontade da maioria. Estes dois referentes, quando absolutizados, não são compatíveis. A liberdade sem restrições implica a emergência de desigualdades: surgem o marxismo e as encíclicas que vieram combater o excesso de liberdades. Por seu turno, os sistemas que querem realizar o igualitarismo cerceiam a liberdade e acabam por gerar ordens opressivas. Estas duas ideologias acabam por se sintetizar e dar origem ao Estado Representativo Demoliberal. E culminaram politicamente numa exigência comum: a de que a vivência social fosse definida por leis, pois só estas, atenta a respetiva generalidade e abstração, podiam concorrer para realizar a liberdade e a igualdade, entendidas como valores formais.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Fator Político: a Revolução Francesa. O Iluminismo repercutiu-se de maneira bem diferente nos vários países. Em França, traduziu os sonhos que o Iluminismo trazia consigo, bem como os excessos. Em termos jurídicos, os franceses escreveram um Código onde consagram o direito que a razão inspira. Na Alemanha a reação à codificação francesa é ambígua. Há uma polémica jurídica no início do século XIX, em que Tibou escreve que há a necessidade também de se escrever um Código Civil e com ele constituir um sistema fechado que regule a vida jurídica. Savigny recusa, defendendo que a Alemanha não tem que criar códigos, pois o projeto iluminista não servia à Alemanha: o romantismo alemão é a recusa aos iluminismos.
Escola Histórica do Direito -> à primeira vista, arranca de pressupostos diferentes mas acaba por chegar a pressupostos positivistas do Direito. Para esta escola, a juridicidade é a manifestação cultural de um povo. É uma expressão do espírito do povo. O direito devia ser procurado nas instituições culturais do povo, família, Estado, etc. – Manifestação estabilizada e normativa da cultura de cada povo. Defende o costume, não a lei. Para se investigar o direito, deve-se investigar essas instituições onde se reúnem as normas de um povo. Na prática era preciso recorrer ao material normativo que estivesse ao dispor da cultura para ser apto a resolver problemas jurídicos. Na Alemanha, o direito que regia essas instituições e que vigorava era uma miscelânea de normas de costumes locais, tradições bárbaras, fragmentos sem coerência. O direito romano carecia que se atualizasse. Os juristas tiveram que dar coerência e racionalidade. Mas o idealismo kantiano dominava as escolas alemãs. A Escola Histórica do Direito foi contrariada pela racionalidade em que se baseou. Começou-se a criar um sistema de concreto a partir das normas que ao longo do tempo passou a ser coerente, subsistente e autónomo em si mesmo. A racionalidade kantiana preocupa-se com o universal, abstrato e formal, desprezando o que é histórico, local e específico. A Escola recorreu a uma racionalidade que contraria o ponto de onde partiu. Nos discípulos de Savigny o sistema torna-se formal, abstrato. A Escola está comprometida com o surgimento do positivismo jurídico. Esta dizia que o direito não era imposto pelo legislador, mas pressuposto pela cultura, reduzido a um objeto que se tinha de investigar. Caracterizou-se por uma ideia de ciência que se projetou na elaboração de uma estrutura dogmática. Explica racionalmente a estrutura do direito e tem um compromisso prático com a realidade cultural. Quando se considerou o direito num sistema conceptual organizado, a Escola propôs uma teoria de estudo do direito que se repercutiu no positivismo. O ambiente cientista em que o positivismo surgiu no século XIX foi influenciado pelo próprio século. Este foi o apogeu das ciências inicialmente desenvolvidas no Renascimento. Época de grandes descobertas científicas, de utilização tecnológica, surge o positivismo como ciência filosófica. Havia agora que instaurar um modelo das ciências empírico-analíticas. Neste ambiente que reduzia toda a ciência humana e social ao paradigma da c iência natural, também o direito quis ser uma ciência. Para isso contribuiu o descrédito de uma metafísica e a distinção entre o direito e a política. A ideia é a de que o direito, para ser uma ciência, tinha que ter a mesma regra das outras ciências. O jurista tinha que estudar o direito com uma abordagem objetiva, neutral do direito.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Uma vez conhecido o direito, torna-se necessário resolver os problemas jurídicos, tarefa que cabe aos juízes. Vê-se um corte com toda a tradição pré-positiva entre o direito e a reflexão jurídica. Os valores do Direito são-lhe atribuídos pelo poder político, legislando através da vontade geral.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 11ª Lição: Coordenadas Caracterizadoras do Positivismo Jurídico 1) C. político-institucional: O Estado de Direito de Legalidade. O Estado que nasce da Revolução Francesa e Americana é o Estado Representativo Demoliberal. É um Estado de Direito de Legalidade Formal (aquele que tenta solucionar juridicamente o problema do poder). Está submetido ao direito que está entendido como lei. Apoia-se nos princípios: a. Separação de poderes: associa-se esta ideia a Montesquieu. A concentração dos poderes do rei foi feita à custa dos outros. Montesquieu torna-se contra o poder absoluto e defende a divisão de poderes. Repartindo o poder pelos novos órgãos para se moderarem uns aos outros. Os poderes devem repartir-se por grupos sociais: legislativo povo/aristocracia; executivo – monarca; judicial – independente. Este seria o equilíbrio formal mais saudável. Com o tempo o poder legislativo ganhou poder. Os outros passaram a agir tendo como base a lei. John Locke fala de poder: Legislativo, Executivo (judicial e administrativo) e Federativo. Tanto o poder judicial como o administrativo estavam subordinados ao executivo. A lei assume um estatuto formal, geral e abstrato; b. Legalidade: a lei (geral, abstrata e formal) estava na base de toda a vida da relação; c. Independência Judicial: o juiz tem que obedecer ao que está na lei. A sua decisão deve ser lógica e o mais impessoal e central possível. Esperava-se que o juiz conhecesse a lei e que depois a aplicasse lógico-dedutivamente. 2) C. Especificamente Jurídica: identificação do direito com a lei. O positivismo identificou a lei como a fonte do direito. Reduziu-se o direito à lei porque é óbvio que todo o direito vem do contrato racional da génese da vontade social. O direito que resultava do encontro das vontades livres era o direito com as características da lei. Locke tinha uma visão mais liberal: a lei resultava do contrato social, identificava-se com as regras que garantiam e delimitavam os direitos e liberdades de várias pessoas. Rosseau, com uma visão mais democrática, diz que a lei é uma síntese universal e racional da vontade geral. Características da lei:
Generalidade: dirige-se a todos; Abstração: alienava-se do concreto para aquilo que é comum. As leis procuram resolver os casos típicos. Se só diz respeito a todos, só pode prever o que é típico e comum a todos e não específico a cada um; Formalidade: as leis enquadravam as condições de ações de cada um mas dentro da esfera comum cada um age como achar melhor. A lei limita-se a impedir que cada um, no exercício da sua liberdade, invadia o outro; Imutabilidade: as leis queriam assimilar e exprimir o direito natural e racional e tinham pretensão de permanecer no tempo.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Num primeiro momento, a lei com estas características era válida no sentido racional. Válida pela sua base democrática e pelas suas características. 3) C. Axiológica: o positivismo foi um pensamento coerentemente formal até nos valores que defendeu. Todos são iguais perante a lei – foi o fim do direito definido pelo estatuto social de cada um. Quanto à segurança jurídica, as leis garantiam previsivelmente o exercício da liberdade. A preocupação era que as leias fossem universais, predestinadas e cognoscitivas pelas pessoas. Isto garantia uma certeza às pessoas: sabiam que o direito era aquele e o tipo de punições que consagrava. Desde que as leis fossem gerais, abstratas, formais e imutáveis asseguravam a igualdade sem ligar às especificidades dos sujeitos. Também garantiam a segurança independentemente do seu conteúdo. O positivismo não conceptualizou o que é “tratar todos por igual”. Era um valor meramente formal, sem conteúdo. 4) C. Funcional: a contraposição política/direito -> o positivismo distinguiu a criação (constituição) da aplicação (realização) do Direito. E fê-lo até em termos institucionais: concebeu ao poder legislativo a primeira tarefa e ao judicial a segunda. Também o Direito quis ser ciência. A função do Jurista era então apenas a de conhecer o direito – objeto que lhe era dado já pré-constituído pelo poder legislativo. A sua intenção era puramente cognitiva e a sua função passou a ser aplicativa. A ciência do Direito era fundamentalmente preocupada em sistematizar conceitualmente a fragmentária matéria jurídica. 5) C. Epistemológica – Metodológica Epistemológica - porque a ciência do Direito visava uma pura construção conceitual, feita a partir dos elementos que compunham o sistema jurídico; Metodológica - porque o direito era por este pensamento reduzido à mera legalidade pré-escrita que apenas se tratava de aplicar formalmente, lançando mão da realidade lógicodedutiva. O que importava era apurar e compreender o significado da lei enquanto proposição textual, para depois a aplicar aos casos que com ela estivessem numa relação de géneroespécies. O Jurista devia considerar o Direito-Lei como objeto que institucionalmente lhe competia conhecer e empenhar-se depois na conceitualização do material avulso assim recolhido em termos consonantes com o cientismo do tempo. A lei era um texto pelo que, para apurar o sentido do assim compreendido objeto do pensamento jurídico, deveria o jurista mobilizar as regras da hermenêutica filológica tradicional.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 12.ª Lição: Superação do Positivismo Jurídico Fatores Histórico-Culturais - o direito reflete sempre o contexto histórico, cultural, político e social em que se insere. O positivismo tinha como fundo o intelectualismo científico que reduzia as realidades culturais a um paradigma: o das ciências da natureza, ou ciências experimentais ou ainda empírico analíticas. A ciência era a chave de tudo – tudo o que não fosse ciência padeceria de uma deficiência. A sociedade de então era a liberal, em que apenas importava definir o estatuo enquadrante das ações individuais para que se considerassem garantidas a igualdade e a certeza formalmente prosseguidas. As leis moderno-iluministas apenas visavam traçar a estrutura suporte das ações individuais. O cientismo entrou em crise. O Homem não tinha todos os seus problemas resolvidos pela ciência porque havia os ainda autenticamente existenciais problemas da prática. Os problemas práticos são diferentes dos técnicos: se estes têm a ver com o saber fazer, aqueles preocupam-se com o reto agir, razão pela qual enquanto enquanto os primeiros implicam uma relação meio-fim, visando a eficiência, os segundos pressupõem uma validade. Ao lado das tradicionais ciências empírico-analíticas, começou a falar-se em ciências históricas, da cultura e em ciências hermêuticas. O positivismo apenas relevava as ciências naturais e o racionalismo com que operava era empírico-naturalista, físico-matemático e lógico apofântico. Isto traduzia uma empobrecedora limitação dos problemas epistemológicos, pois deles excluía tudo o que era afinal humanamente significativo. O cientismo positivista reduziu a prática a uma técnica operatória, mas o pensamento posterior recuperou o seu significado originário: a prática tem a ver com a própria comunicação na História, com o diálogo de ações viabilizador de uma troca de sentidos culturalmente densificados. A situação atual do pensamento jurídico é assim fortemente cunhada por influências
tributárias do “logos” prático, pelo que não surpreende que aquele pensamento privilegie hoje
os histórico-concretos problemas juridicamente relevantes que dizem respeito ao Homem na sua relação com o outro. Fatores Político-Sociais - a meramente formal igualdade implicada pelo contratualismo moderno-iluminista encobria, afinal, graves desigualdades e, portanto, injustiças materiais. Foi este emancipatório conjunto de razões que originou o Estado Social ou de Providência. Mas este acabou por fracassar: ao diminuir a responsabilidade da pessoa, propondo-se saciar todas as carências e resolver todos os problemas do Homem, o E. Providência percorreu deliberadamente o caminho que, no limite, resultaria na instauração de um sistema politicamente opressor e eticamente despessoalizante. O Homem pôs uma fé excessiva no sistema social, esquecendo-se que a uma aspiração satisfeita se segue sempre outra e outra e assim indefinidamente. Na verdade, sempre que exigimos demais do Estado, estamos a exigir demais de nós próprios – e é, no fundo, esta a lógica do Estado Providência que por isso talvez radique numa compreensão da política como a projeção da frustração individual sobre o coletivo.
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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Fatores Especificamente Jurídicos - para o positivismo, desde que fossem respeitadas as exigências procedimentais formalmente prescritas, o Direito admitiria qualquer conteúdo. Pois bem: o Direito não poderia continuar alheio às situações que concretamente se dessem aos problemas justificadamente qualificados como juridicamente relevantes. O juridismo formalismo típico da impostação positivista viu-se finalmente substituído por uma preocupação jurídica material. Só o julgador, atendendo à constituenda normatividade trans-legal do Código Civil vigente e às circunstâncias concretas do contexto de emergência e da particular especificidade do caso, estará em condições de concluir fundamentalmente pelo respeito ou pela violação das exigências que nela se sintetizam. Para o juridismo formal (do Positivismo) se um indivíduo fosse titular de um direito e tivesse a capacidade requerida para o exercer, poderia fazer dele o que quisesse. Então só importava definir as condições formais tanto da imputação dos direitos subjetivos como da capacidade do respetivo exercício, deixando-se aos sujeitos titulares a gestão dos fundos. Impõe-se cometer essa tarefa a uma instituição específica, que se encarregue de fazer o que não pode ser pedido ao legislador. Isto alterou os termos do princípio da separação de poderes – aqueles poderes passaram a ser compreendidos como interdependentes na sua recíproca autonomia; e o poder judicial emergiu como mediador constitutivo do Direito. O Positivismo legou-nos o Estado de Direito de Legalidade Formal. A sua superação implicou a conversão daquele modelo de Estado num autêntico Estado de Direito material que invoca princípios para além da lei (colocam-se exigências de Direito ao próprio legislador). O Direito exige um referente de legitimação diferente do objetivamente prescrito pelo poder legislativo: é o poder jurisdicional. Só os Tribunais podem ajuizar da validade das leis. Um autêntico Estado de Direito, entendemo-lo como um Estado de Justiça ou Estado de Jurisdição. No horizonte do assim compreendido Estado de Direito se convocam as validades
intersubjectivamente partilhadas para ajuizar criticamente da “voluntas” do poder: é uma
tarefa que exige uma contínua vigilância da pessoa. O Método Jurídico em que o Positivismo deliberadamente se projetou identificava uma mera exegese aplicadora. Ora não pode ser este o Método. A Metodologia Jurídica dos nossos dias tem que se assumir, em termos prático-racionais, uma tarefa normativamente constitutiva. Impõe-se que o decidente pressuponha reflexivamente o sentido do Direito, pois só assim logrará discernir o tipo de racionalidade e o modelo de fundamentação adequados à sua judicativo-concreta realização. É uma racionalidade prática que se mostra em consonância quer com a problematicidade das exigências a fazer, quer com a intencionalidade das exigências a cumprir na específica arena em que é chamada a intervir. “O Mundo de hoje já não é o do Positivismo”.
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